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Conselho Editorial Rafael de França Clara Sthel Produção Marcos Poubel Tarcila Seidel Jornalista Clara Sthel Revisão Carolina Nunes Comunicação Isadora Ribeiro
Edição e Design Rafael de França Colaboradores Paloma Dantas Mateus França Igor “Izy” Moreno Pâmela Duarte Marilia Pereira Renata Santiago Jaqueline Winter Romulo Ferreira Isabela Sousa
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O
Editorial
mercado invade o nosso ócio e até mesmo o nosso tempo livre é transformado em mercadoria. Você abre as páginas das redes sociais e anúncios do tipo de shampoo que você consome ou da marca de sapatos que você usa aparecem ao lado dos vídeos em que você clica pra rir e se distrair um pouquinho. Na sociedade do capital tudo passa a ter uma utilidade para gerar lucro para alguém que não somos nós, seres cansados que querem apenas abrir um site para ouvir a música do seu grupo favorito e relaxar. O nosso tempo de agora se torna útil não só para nós que tentamos aproveitá-lo, mas também para terceiros que o sabem mercantilizar. Então, se tudo é útil, o que é inútil? Aonde ficam as coisas do campo do inutensílio, nas palavras do poeta Paulo Leminiski? Nesta nona edição da Revista Ponto de Escambo, vertemos o olhar para tudo que a princípio não tem utilidade alguma para os homens do lucro. Trazemos então um grupo cultural que cria música sustentável; meninas e mulheres que se colocam no mundo através de debates culturais, do hip-hop e da palavra escrita; entrevista com um artista de rua diretamente envolvido em questões sociais; uma artista e produtora que nos mostra a importância da acessibilidade dentro dos teatros e centros culturais; o Festival Leopoldina Orgânica que nos contempla com o cuidado e o carinho pela natureza e finalmente muita poesia. Não podia faltar poesia na nossa revista porque de acordo com Leminski “a poesia é um inutensílio, a única razão de ser da poesia é que ela faz parte daquelas coisas inúteis da vida que não precisam de justificativa porque elas são a própria razão de ser da vida. Querer que a poesia tenha um porquê, querer que a poesia esteja à serviço de alguma coisa, é a mesma coisa que querer, por exemplo, que um gol do Zico tenha uma razão de ser, tenha um porquê, além da alegria da multidão. É a mesma coisa, de querer, por exemplo, que o orgasmo tenha um porquê. É a mesma coisa de querer, por exemplo, que a alegria da amizade, do afeto, tenha um porquê. Acho que a poesia faz parte daquelas coisas que não precisam ter um porquê. Para que ‘por quê’?”.
.íNDICE SOUL MINA
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LATA DOIDA Pamela Duarte
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MINAS DO HIPIHOP
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INFANCIA DE UMA CRIANÇA NEGRA
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(.E)NTREVISTA: IGOR “YZI” MORENO
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CIA. ARTISTICA EFICIENTES VISUAIS
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A MINHOCA DE METAL Mateus Machado
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CONHEÇA O FESTIVAL LEOPOLDINA ORGÂNICA
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Isabella Souza
Clara Sthel
Marília Pereira
Clara Sthel
Jaqueline Winter
Clara Sthel
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SOUL MINA
A PRIMEIRA RODA CULTURAL TOTALMENTE FEMININA DO RIO DE JANEIRO por Isabella Souza (Poet-isa) / fotos Mateus Lima
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ocalizada na pista de skate do Cocotá, na Ilha do governador, Zona norte do Rio, Soul mina surgiu após uma gafe, num momento que um jornal de renome entrevistava os organizadores da Soul Pixta, uma tradicional roda cultural também localizada na ilha do governador, muito conhecida na cena do hip-hop carioca; A entrevistadora questionou o fato de não haver nenhuma mulher na produção, então um de seus organizadores, conhecido como Small, pensou e percebeu que era realmente necessário ter algo voltado para as mulheres; Então chamou cinco mulheres distintas, Aline, Ana Sarah, Izy, Letícia e Renata (Edaz), que não se conheciam, para fazer um especial de dia da mulher em março de 2017, e assim nasceu a SOUL MINA, um evento que teria apenas uma edição, ganhou força e se tornou mensal, evento esse totalmente voltado para o público feminino. Quando fui convidada para falar sobre arte e cultura do meu território, rapidamente veio à minha cabeça o significado dessa palavra, “território: Espaço delimitado na natureza por um grupo (social) ou indivíduo”; Grupo social, mais uma vez pensei, e veio nós mulheres, por fim conclui que precisava falar dessas mulheres. Essas cinco mulheres, que umas são mães, estudantes,
trabalhadoras, empreendedoras, grafiteiras, Dj’s e acima disso tudo muito fortes. Abaixo vocês podem conferir uma pequena entrevista que fiz com elas: “Como funciona a Soul Mina?” Aline: São subdivisões, eu faço o planejamento, a Ana suporte, apoio…” Ana: “Eu sou a faz tudo (risos) publicidade, mídia… ajudo quem está precisando” Izy: “Eu faço o cronograma, e disseminação de pauta… e a Letícia e Edaz, são as musicalmente envolvidas, que trabalham como Dj’s.” “Como vocês escolhem as pautas?” Izy: “A gente escolhe a partir do tema, Aline planeja, a gente entra num acordo e procuro o que é pertinente de acordo com o tema, mas o foco sempre é sobre mulher, faço a pesquisa e o cronograma, e subdivido em outros temas e as vezes convidamos pessoas que são entendidas do assunto para vir falar sobre, e também divido nossas falas, aí a Letícia faz o checklist e a produção fica com a Renata. E Ana Sarah trabalha com a mídia, trazendo os convidados. E o Diego que trabalha na produção da Soul Pixta também colabora na produção” “Como é resistir no hip-hop ambiente que é majoritariamente masculino?” Ana Sarah: “É ser odiada, ainda
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mais eu, que só falo o que eu penso, eu nem pego mais no microfone, por motivos de é melhor não, eu deixo até minha arma em casa (riso de todas)” Aline “O microfone da Ana funciona como um Taser.” Izy: “É difícil, a maioria ainda não aceitou o que a gente está fazendo aqui, eles têm a famosa frase de que ‘estamos querendo unir segregando’ , então me sinto numa responsabilidade muito grande de dar a cara a tapa aqui. Chegar e apontar pra um homem o privilegio dele em cima de um palco, é um trabalho”. “Já tiveram que bater de frente com algum homem?” Todas: “JÁ! (alto), em todo evento.” Aline: “Pode botar aí, em todo evento, eu mesma já peguei o microfone gritando, porque tinha homem na plateia que começou a ficar de ti-ti-ti e risinho… Isso foi difícil, até para o Diego entender, tive que pedir para ele pegar o microfone e dar boa noite, para ele sentir e ver a diferença. Quando é um homem no microfone todo mundo fica calado e presta atenção. Quando somos nós, todo evento é uma luta. O interesse dos homens aqui na roda é sempre contestar o que estamos falando, quase nunca é prestar atenção e entender.” Ana Sarah: “É uma castração moral para eles, a gente dizer que está errado o que ele estão dizendo” “Vocês acham que dessa forma conseguiram mudar a cabeça de algum homem?” Izy: “Quando falamos sobre agressão tivemos um bom feedback,
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teve um cara da plateia que veio falar comigo ‘e se fosse minha irmã?’, mas eles quase nunca dão braço a torcer, mas fizemos eles pensar por outro aspecto.” “E conseguiram tocar na vida de alguma mulher?” Izy: “Uma senhora que veio dizer que cortou o cabelo por causa da gente, chegou aqui chorando, pediu para tirar foto com a gente, o namorado dela fala que ela ia ficar feia, e ela terminou com ele… E foi a filha dela que trouxe ela pra pixta.” Aline: “… Uma menina, 13 anos, puxou a mãe, ‘vamo lá que você precisa ouvir o que elas estão falando”. Ana Sarah: “Muita mina me procura pela internet” “Uma mulher que é referência para vocês?” Izy: “Bem, se fosse pensar agora, pra mim seria a Anin Urasse, ela é uma ativista pan-africana, mulherista, ela é completamente o oposto de mim, mas ela sempre tá preocupada com as outras pessoas, mesmo recebendo ameaça de morte, e mil coisas, ela não deixa de falar o que é necessário, eu admiro muito ela, e a Assata Shakur.” Aline: “Então… para mim, minha mãe, minha irmã, minhas amigas. Elas me dão força, elas que me fazem continuar aqui falando, as pessoas que me inspiram são as pessoas que estão próximas de mim, que eu convivo, pra aí sim chegar em mulheres que são ícones, eu preciso olhar pro lado, e quem me inspira está aqui comigo.” Ana Sarah: “… Aline, Izy, Let, todas que estão nessa luta aqui comigo… Agora grandes ícones, pra mim é a Amy Winehouse, a situação
dela sempre será minha pauta, que são os problemas psicológicos; Ela foi assassinada indiretamente, as pessoas ao redor dela ocasionaram a sua morte, e ainda assim tendo um fim trágico, ela se tornou um ícone musical eterno.” Letícia: “São muitas…tem várias, eu tento pegar um pouco de cada uma, eu agora, sou muito Erykah Badu, do tipo ‘me ouve e me respeita’, ‘respeita o corre dos outros’, ‘música preta’… mas ao mesmo tempo sou Michelle Obama, ‘gente vamos pela paz mundial’, porque política tem que ser uma parada pensada, e por não haver representatividade negra de mulheres na política… acho que seria uma mistura das duas.” Renata (Edaz): “Eu me inspiro em todas vocês, cada uma me inspira de uma maneira, minha mãe, vocês que estão aqui, mulheres que tem iniciativa, que estão ativas na sociedade.” “Um sonho de vocês para o Soul Mina?” NETFLIXXXX! (todas juntas). Aline: “A gente brinca que a Netflix tem que fazer uma série sobre a gente (risos), mas agora sério… Acho que meu sonho vai ser o dia que eu chegar aqui, pegar no microfone, e começar a falar e todo mundo prestar atenção, sem eu precisar ficar pedindo para alguém ficar em silencio.” Ana Sarah: “Meu sonho é a gente ter maior estrutura para manter o evento, levar o soul mina para outras rodas.” Izy: “É poder levar o soul mina para outros lugares também, outras rodas.” Letícia: “Cara, meu sonho é ter reconhecimento do que a
gente faz, que a gente começasse um movimento, que outras minas fizessem o que a gente faz, que outras pessoas pudessem escutar o que a gente fala, através de outras minas, que a gente não precisasse socializar as pessoas sobre o feminismo, e sim que aqui fosse um espaço de debate, e não de discurso. Queria que fosse comum debates sociais. Mas agora mesmo, eu queria um som foda, uma estrutura.” Renata (Edaz): “Eu queria ir além disso aqui, fazer mais do que nós estamos fazendo agora.”. “A soul mina é?” “Foda!”, -Ana Sarah “Guerra e suporte”,Aline “Resiliência”, -Izy. Pra todas : “IRMANDADE!.” Entrevistadas: Ana SarahInstagram@porraanasarah Izy — Instagram: @Izycast Renata — Instagram: @edaz.n Letícia — Instagram:@lualets Siga também a soul mina no instagram: @soulxmina
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Materia Lata Doida Pamela
L ata Doida
mais que uma banda, um agente de mudança pró-sustentabilidade e inclusão social por Pamela Duar te
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uem vê o Lata Doida pela primeira vez tende a achar que é somente uma banda, mas eles são mais que isso. São uma ONG com o título de Ponto de Cultura da Zona Oeste do Rio de Janeiro, concedido pelo Ministério da Cultura (MinC). A organização oferece diversas atividades envolvendo música, confecção de instrumen-
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tos musicais e artesanatos. Todas as iniciativas estão interligadas com o princípio da sustentabilidade e do meio ambiente. A história do Grupo Cultural Lata Doida começou em 2004, com Vania Maria, artesã e líder comunitária, junto com seu casal de filhos musicistas. Na época, Vanielle Bethania,
tes na Companhia de Habitação (COHAB), em Realengo. Depois de conseguir o espaço, matricular as crianças e realizar as primeiras atividades, eles perceberam que a demanda para o trabalho era maior do que se imaginavam. Algumas crianças não tinham condições de comprar os instrumentos musicais e o grupo não possuía instrumentos para todos.
estudante de História, e Vandré Nascimento, estudante de Geografia notaram os problemas sociais da região, reuniram suas habilidades e sensibilidades com o objetivo de intervir na realidade do bairro com arte. Não sabiam exatamente como e por onde começar, a quem se dirigir. A primeira ideia foi a oficina de música para crianças e adolescen-
Nascia assim a ideia que geraria a Associação Grupo Cultural Lata Doida, que tem como missão a promoção de experiências criativas, educativas e sustentáveis em arte, contribuindo para uma sociedade mais humana, menos desigual e capaz de se desenvolver em harmonia com o meio ambiente. Um trabalho que utiliza sucatas para a confecção de instrumentos de forma muito simples. O material mais usado são as latas, por isso, os alunos batizaram o projeto como “Lata Doida”. Com o passar do tempo, a utilização desses materiais que era apenas uma solução provisória, torna-se a linguagem, criando uma identidade na música com o uso de materiais que, são vistos como “lixo”.
A trajetória da família que virou um grupo cultural O trabalho é colaborativo. Enquanto Vandré e Vanielle trabalham nas
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oficinas de música e produção de instrumentos, Vania, realiza oficinas de artesanato para as mães dos alunos, orienta na pintura dos instrumentos e produz
contínua e independente. Muitos shows, festivais, eventos locais e parcerias permitem um aprofundamento da relação com o bairro de Realengo e uma maior percepção de suas reais dificuldades, influenciando o grupo a buscar formação que possibilite uma intervenção mais significati-
os cenários para as apresentações musicais. E é assim que eles recebem a colaboração de amigos, artistas e educadores que possibilitam a manutenção das atividades da ONG, de forma
va. Vania, além de mergulhar-se em uma dedicação constante às artes plásticas e visuais, se formou em Gestão Ambiental e participou de cursos em arte-educação e gestão. Vanielle
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se formou em História e se especializou em Educação para o Terceiro Setor, além de cursos livres e dedicação constante à música. Vandré se formou em Geografia e fez cursos de luthieria, acústica, áudio, audiovisual, gestão, produção cultural. Em 2013, o Lata Doida foi selecionado pela primeira vez em um edital de projetos culturais, o Edital de Criação Artística no Funk, da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro. Com o fomento foi gravado um disco autoral e acústico de funk, o álbum “Experimental Funk Lata Doida”, lançado no mesmo ano. Em 2014, tornaram-se um Ponto de Cultura, assinando um convênio com a Secretaria Municipal de Cultura.
cada vez mais sólida, sempre com poesia e dedicação. Durante quatro meses, como trabalho de conclusão do curso de comunicação social – Jornalismo, foi produzido o curta-documentário “Lata Doida: uma experiência em arte e sustentabilidade”, pela nossa repórter Pâmela Duarte. O curta está disponível no Youtube:
A associação vem ampliando sua rede e seu impacto na Zona Oeste com a realização de shows, oficinas, fóruns locais, coproduzindo eventos, gravando artistas, fornecendo e operando som. O Lata Doida já ganhou outros editais que viabilizam financeiramente algumas das suas atividades, como o edital da RioFilme, o Programa de Fomento Cidade Olímpica, além de participarem da Feira Favela Criativa. Apesar de toda a dificuldade de se produzir cultura e arte na periferia, o Lata Doida tem conseguido construir uma trajetória
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Minas do hip hop: Yas Werneck, a voz de Anchieta por Clara Sthel
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asminie Werneck, 25 anos, estudante de matemática do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), cristã protestante, professora e rapper, conta a sua relação com o movimento hip-hop e a partir dele, a sua descoberta como mulher negra. Criada dentro da igreja evangélica, desde criança Yasminie escrevia versos mesmo sem saber muito bem o que estava fazendo: “Eu e meus irmãos brincávamos de montar uma banda e escrevíamos as músicas. Nos eventos do colégio, na escola dominical quando tinha que compor a função sempre ficava comigo”, lembra. Yasminie cresceu, tornou-se Yas e o hábito de escrever versos permaneceu vivo. Até que, certo dia, ela foi a um evento de hip-hop, no Shopping de Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro, produzido por um amigo. No evento alguns rappers se apresentaram. No repertório, músicas que falavam mal das mulheres, no discurso a objetificação da mulher: “Eu nunca tinha levado esse tapa na cara antes, era tudo muito explícito. Fiquei indignada, cheguei em casa e escrevi uma resposta às letras dos caras”, comenta. Na época, ela já cantava na igreja. A primeira música foi Hey ladies, um positive rap. Yas fez em parceria com a Negabi. A
letra dizia: “Mulher é muito mais que curva pra mostrar/ tem sabedoria e ideias boas pra mandar”. Rimando nas igrejas usando tênis e calça rasgada, o grupo JEYBI invadiu a cena. Foi um avanço dentro do ambiente conservador que é uma instituição religiosa. Nos cultos de algumas igrejas que elas iam rimar, as mulheres só podiam usar saia. “Olha para nós, você não vê religião nem no tom da nossa voz/ aqui todo mundo é luz/ é voz ativa mandando para você uma ideia positiva”, dizia uma das rimas da música. O grupo durou dois anos. Acabou em 2012. Devido às mudanças de pensamentos e metas das integrantes. A rapper ficou parada até o final de 2013, quando fez sua primeira apresentação solo na Batalha da Caixinha, em Marechal Hermes, Zona Norte do Rio. Na ocasião, não havia nenhuma mulher na roda de rima e quase nenhuma como público. Logo depois, com a ajuda de um amigo, Yas gravou seu primeiro clipe Paciência. Em 2016, ela lançou o EP Hexagonal. São seis faixas que falam sobre amor, confiança, paz e autoestima. Recentemente foi lançado o clipe do single COMÉKI, feito pela produtora, AMaréVê Produções, e alcançou 55.386 visulizações, sem nenhum tipo de divulgação pa-
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foto: Frank Perez
trocinada. Yas acredita que o clipe alcançou notoriedade mais rápida porque a rapper Lívia Cruz, de São Paulo, cooperou na divulgação. É a sororidade das “manas” que estão no mesmo “corre”. Lívia Cruz que se nomeia a “tia” do rap, fez um vídeo no seu canal no YouTube indicando algumas rappers numa espécie de top 5, e Yas estava entre elas.A estudante de Matemática do Instituto Federal do Rio de Janeiro, Yas tenta conciliar os dois mundos: a universidade e as rodas de rima. “Eu sou professora, dou aulas de reforço e, quando meus alunos descobrem que eu canto rap, eles se interessam mais ainda pela minha aula”, revela. Os estereótipos femininos cantados por homens no rap dividem as mulheres em duas: a mãe, intocada quase uma santa, e a vadia interesseira, pronta para o ataque. Yas tem sorriso frouxo e fala firme: “As pessoas têm que prestar atenção no que eu estou falando e não no que eu estou vestindo.
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Tem apresentações que eu vou de tênis e vestido embalado a vácuo e outras em que eu vou com roupas mais largas como um menino”. Desde 2015 há uma movimentação muito forte das mulheres na internet. Foram lançadas campanhas como: #MeuAmigoSecreto, com denúncias de assédio sexual e moral; e a Chega de Fiu Fiu criada para combater o assédio sexual em locais públicos. A rua, espaço de criação de artistas, ainda é dos homens e as mulheres precisam criar mecanismos para se proteger: “Já andei muito sozinha pelo Rio, isso é normal para mim. Mas, quando eu sabia que voltaria sozinha das rodas de rap, sempre levava um casaco enorme na mochila para vestir na hora de ir embora, por medo de rolar algum tipo de assédio”, conta Yas. Yas reconhece o hip-hop como uma importante influência na construção da sua identidade. “Eu comecei a parar de sonhar com o príncipe branco e me apaixonar por negros por causa das referências que a cultura me trouxe.”
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A infância de uma criança negra
por Marília Pereira / ilustração Igor Izy
Na escola, nas dinâmicas de autorretrato, por não gostar do meu cabelo crespo, sempre me desenhei com os cabelos lisos e, pelo fato de o lápis “cor de pele’’ não representar a minha pele, eu não pintava o meu corpo, apenas fazia o contorno com o lápis de cor marrom mais claro da caixa, numa tentativa de me embranquecer para, quem sabe assim, ser aceita. Não funcionou.
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eguinha, preta, cabelo duro, nariz de batata, pedaço de carvão… durante minha infância as pessoas faziam uso desses termos para se referirem a mim. Minha família, com seu instinto protetor, me dizia: “Não liga, finge que não ouviu!”. Passei a infância inteira tentando fazer isso.
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Essa questão estética foi motivo de tristeza e dor por longos anos. Nas brincadeiras eu sempre era a empregada que arrumava toda a bagunça, a secretária que atendia as ligações e passava para a chefe, a babá ou a operadora de caixa. Nunca tinha um papel de destaque ou prestígio social. Ninguém nunca me perguntava o que eu queria ser. Me davam aqueles papéis e pronto.
Isso também refletiu na minha vida até pouco tempo. Eu achava que eu só poderia ser o que os outros queriam que eu fosse. Nada além disso. Para me divertir durante a infância, além das brincadeiras, eu assistia a desenhos na televisão. Desenhos esses que não me representavam. Não me enxergava naquelas personagens. As princesas sempre eram brancas, loiras e de cabelos lisos. Não tinha sequer uma superheroína pretinha como eu. Nada! Com as bonecas acontecia o mesmo. Já ouvi dizer que a infância é como se fosse um lugar delicioso do qual nunca queríamos ter saído. Talvez seja isso mesmo. Talvez se eu fosse criança para sempre não enxergasse o quanto o racismo é cruel! Como ele destrói nossa autoestima durante muito tempo, faz com que a gente queira negar a nossa própria imagem e nos faz acreditar que
determinados lugares não são para nós negros. Mas sabe de uma coisa? Que bom que eu cresci! Sai daquela zona ilusória e só agora, mulher, adulta, dotada de um certo conhecimento, consigo enxergar como essa sociedade racista contribuiu para a minha infância. E agora, tendo essa consciência, posso lutar para que a infância de crianças negras não sejam mais corrompidas pelo racismo como a minha foi. Posso ajudá-las a acreditar que nós podemos ser o que nós quisermos! Se amar enquanto negro é um processo longo e de muito enfrentamento, por isso, enfrentar o racismo na infância é fundamental, pois é nesse período que estão sendo moldadas todas as possibilidades de identidade das pessoas! Mulher, negra, 23 anos e estudante do curso de Letras — Português/ Literaturas na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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(.E)ntrevista IGOR “IZY” O artista que assina a ilustração da capa #9 da Ponto de Escambo, é o Igor Moreno mais conhecido na rua e nas redes sociais como Igor Izy. O jovem de 21 anos é morador de Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro. Ilustrador? Designer gráfico? Grafiteiro? Conversamos um pouco com o jovem que prefere não se limitar, por isso não cria rótulos: Revista Ponto de Escambo: Com quantos anos você começou a desenhar? Igor: Desde novo, meus pais sempre me incentivavam a desenhar, eles pintavam telas e também desenhavam. com o tempo eles foram se distanciando da arte mas eu continuei desenhando. Meu pai chegou a trampar na SuperVia, fazendo murais e sempre que olhava eu achava o máximo por que tinha sido ele que tinha feito. (.E): Quando foi que você começou a se identificar como artista? Igor: Comecei a me identificar como artista a partir do momento em que comecei a ser reconhecido pelas minhas artes. A galera passava na rua, via e vinha me falar e tal.
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Moreno (.E): Quais são suas referências na hora de criar? Igor: As minhas maiores referências no que faço são meus amigos, não só artisticamente mas as histórias deles servem como um exemplo incomum.
ACREDITO QUE ELES SÃO OS NOSSOS HERÓIS. Sou criador e participante de alguns projetos sociais. Atualmente faço 4 cursos, 2 deles são apenas pra gerir projetos. Na minha caminhada tive o apoio dos meus amigos nos aprendizados das artes de rua. Profissionalmente tive o apoio e tenho até hoje de uma ONG norueguesa, a Dream Learn Work (DLW), devo tudo a essas pessoas.
(.E): Como você se define? Artista? Grafiteiro? Designer Gráfico? Ilustrador? Igor: Eu costumo não me prender e nem me rotular a algo específico, já fizemos tantas coisas que sabemos fazer de tudo um pouco. (.E): Fala um pouco sobre o seu envolvimento com questões sociais, na sua arte você desenha muitas crianças e sempre está envolvido em muitos projetos, me fala um pouco deles... Igor: Sempre fui envolvido em causas sociais, fui educando de um Instituto, Instituto Bola pra Frente, lá aprendi, tive oportunidades e continuam me dando um suporte muito bom. Com o tempo me tornei professor de desenho e graffiti nessa mesma instituição. Minhas artes abordam sempre crianças como temática, porque nessa instituição aprendi a importância que tem a educação e instrução dos pequenos.
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“Mas que beleza de vida” Dizia o banqueiro, o prefeito, o presidente, Mas nunca o professor Que cá estaríamos nós Numa beleza de vida Morrendo aos 80 Trabalhando por 70 E ficando sós. Mas que beleza de vida! Que termina sem começar, Que caminha sem recordar Os dias tristes da história que nos trazem de novo ao mausoléu Que ignora as araras e seus réus que sobrevivem na memória e na matéria Matéria que transforma dor em poesia Arte, música, sabedoria E que só poderia vir desse povo Que sofreu, que sofre Que prefere o lado esquerdo da esquina E não cansam, ainda que desçam as aves de rapina. Note; quantos pássaros (nenhum livre) Bem semelhantes aos que ali estavam, Aonde aqui estamos, Mas digo: a tristeza nunca foi tão bonita “Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça.” Dedicado à verdade, à memória e aos herói e heroínas do povo.
Renata Santiago
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Fico muito feliz quando a arte proporciona acesso a todos. E cada vez mais isso vem acontecendo no Rio de Janeiro. Tal acesso é conhecido atualmente por acessibilidade. Dentro dos epaços da arte, a acessibilidade se traduz em acesso para cadeirantes e pessoas com deficiência, transmissão de audiodescrição e presença de intérprte de libras. Para darmos o pontapé inicial nesse projeto de inclusão, proponho que produtores e organizadores de evento façam a opção da audiodescrição e/ou intérprete de libras. Obviamente sugiro o sábado como o dia da inclusão nos teatros, exposições, etc., por ser um dia de folga para muitos trabalhadores. No entanto, se me refiro aos dias de folga, podem me questionar o seguinte: por que não os domingos? Creio que domingo seria de fato o dia ideal. Porém nesse dia a cidade em geral se encontra mais vazia, os meios de transporte são mais escassos e as ruas consequentemente ficam mais
desertas e perigosas. Se isso, de certa forma, representa um obstáculo para quem não tem deficiência, é um impedimento muito maior para deficiente visual que necessita da nossa ajuda para entra no ônibus correto, pegar o metrô e obter certas informações. As pessoas com deficiência se encontram nessas condições tanto pelas nossas escolhas erradas quanto pelas nossas negligências. Nossos governantes os expõem a situações de risco de forma cruel e covarde, mas ainda assim, além de lutar, também podemos nos organizar entre nós. Produtores, organizadores de eventos, diretores, atores, associações e empresas vamos todos dar o nosso braço para um cego. Escolham os sábados para os deficientes visuais. Incluam os sábados para a acessibilidade. A “Cia. Eficientes Especiais” agradece em nome de todos os deficientes. Um beijo carinhoso Jaqueline Winter Atriz, Arte Educadora e Fundadora da Cia. Eficientes Especiais.
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A minhoca de metal Cultura dos camelos no trem em cada ramal por Matheus Machado
“Trem expresso com destino à Central do Brasil”, início de mais um
dia às 5h40 da manhã numa estação de trem movimentada no Rio de Janeiro. São mais de 20 pessoas tentando entrar pela mesma porta do vagão. Muitas delas se conhecem, outras só se comunicam por olhares. “Por favor, colabore com o fechamento das portas.”, diz a voz do alto falante. Um empurrão ali outro aqui, e aos poucos as pessoas ficam praticamente imóveis com o tamanho de gente dividindo o mesmo metro quadrado. Observo e ouço de longe um rapaz de blusa azul com uma caixa de papelão na cabeça, tentando se movimentar lentamente entre o aglomerado de gente, “Licença. Olha o biscoito Torcida. Tem de Pizza, Churrasco, Bacon é só chamar.” Mais um dia para aquele que trabalha antes mesmo de todos chegarem ao seu trabalho. Desce gente em Madureira, desce gente no Engenho de Dentro. Conforme as pessoas vão descendo, a circulação nos vagões fica muito mais fácil. Ambulantes transitam de um lado a outro da composição e não param de vender. Circulam de vagão em vagão e sempre há quem compre. O consumo se inicia desde o primeiro vagão cheio do dia ao mais vazio à noite. Do
fotos Matheus Machado
Centro da Cidade Carioca à Zona Norte, Oeste e Baixada Fluminense, cada um vende o que preferir, a maioria se respeitando com algumas exceções de um ou outro que vende abaixo do preço informalmente estipulado de uma mercadoria. Vendedores de empada, carregadores de celular, lasanha, brinquedo, linguiça, fones de ouvido, chocolate, alicate de unha, cerveja, salgado, aquele amendoim que é empacotado ali mesmo e mais uma infinidade de coisas, como mesmo já dizia a música “Shopping móvel” na voz de Zeca Pagodinho, “Tem sempre tudo no trem que sai lá da central, chiclete, picolé do China e guaraná natural, tem agulheiro, paliteiro, desodorante, brigadeiro e um bom calmante quando a gente passa mal”. Em toda estação tem alguém trabalhando, da criança com sacos de bala ao senhor vendendo alho. Tem espaço pra quase tudo, literalmente. É um próprio centro comercial ambulante. Muita coisa antes de chegar na rua, chega ali primeiro.
isso raramente acontece. As pessoas mesmo sabendo disso, compram os produtos, pois ali que estão os preços mais baratos de coisas que fora dali são mais careiras. Há quem deduza que nenhum deles tem estudo formal, mas percebe-se que em sua grande maioria, são estudantes da escola da vida, aprendendo as coisas mais na prática do que no ensino. Sabem até fazer muito bem, mesmo que inconscientemente, um excelente marketing e uma boa publicidade dos seus produtos.
Apesar da venda desses produtos ser ilegal dentro das estações e dos trens, os ambulantes parecem não se preocupar com isso. Eles ficam observando os agentes de segurança que podem retirar suas mercadorias, mas a realidade é que
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por Clara Sthel
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o segundo final de semana de dezembro aconteceu o festival Leopoldina Orgânica que é organizado pelo coletivo de mesmo nome. O grupo nasceu em 2014. Eles ocupam algumas praças com feira de alimentos orgânicos, comercialização de alimentos da reforma agrária, teatro, música, apresentações de danças regionais, oficinas, rodas de conversa e valorização da zona norte da cidade.
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O festival aconteceu nos dias 9 e 10 de dezembro em 11 locais diferentes: Parque Ary Barroso, Penha, Olaria, Brás de Pina, Ramos, Bonsucesso, Parada de Lucas, Vigário Geral, Complexo do Alemão, Cordovil e Manguinhos. A Ponto de Escambo foi ao Parque Ary Barroso, na Penha Circular conhecer o evento e conversar com os expositores de produtos, ideias e saberes que construíram um festival com foco no meio
um tecido no chão, espalha muitos brinquedos coloridos e faz a mediação das atividades, e não tem faixa etária mínima para participar.
ambiente, agroecologia, sustentabilidade e alimentação orgânica. Uma das participantes do evento foi a Gaia Sanvicente, pedagoga e Arte-Educadora. Ela foi convidada pela organização para fazer parte do festival com a oficina itinerante “Laboratório Criativo Prábrincá”, um projeto para crianças com atividades recreativas com brinquedos reciclados. Propondo um resgate as brincadeiras tradicionais ela explica como funciona o projeto: “Queremos proporcionar um laboratório de criação da brincadeira livre, trazemos uma série de brinquedos que não são brinquedos estruturados como tampinhas e garrafas pet. Quando uma criança tem um carrinho ela só brinca com ele como um carrinho já os brinquedos não estruturados dá a possibilidade de a criança criar a partir da sua imaginação”. Gaia defende que a cidade tem que ser um local que acolha as crianças e a infância: “Como mãe, quando a minha filha era menor eu me sentia muito desconfortável em vários ambientes porque eles não acolhiam ela”. Uma atividade aparentemente simples, mas que gera uma mudança em qualquer local: A pedagoga forra
Outra atividade que rolou foi uma palestra sobre compostagem com o Antônio Soares, que é biólogo, paisagista e permacultor urbano. Ele criou o “Kombotânica”. Com a onda dos “food trucks” o biólogo pensou em criar uma “garden truck” para levar o conhecimento sobre permacultura para as pessoas na cidade. “De forma bem resumida, a permacultura é um sistema de resgate da agricultura ancestral. É uma agricultura permanente que se inicia na Austrália na década de 70. Bill Mollison, um pesquisador naturalista começou a observar nas suas pesquisas que o jeito que agricultura é feita destrói o solo, então ele foi buscar na ancestralidade dos povos a maneira de
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cuidar da terra”, explica brevemente Antônio. No Festival Leopoldina Orgânica o biólogo foi falar de compostagem doméstica, uma forma de transformar lixos da cozinha em adubo. O festival contou também com a feira de produtos orgânicos do assentamento Terra Prometida (COOPATERRA) do MST, em Tinguá. O festival acabou, mas a feira orgânica de Olaria acontece todos os sábados de 7h às 13h. Na feira é possível encontrar produtos orgânicos, sem veneno, frescos e direto do produtor. O endereço fica na Praça Marechal Maurício Cardoso (Rua Leopoldina Rêgo, 651, esquina com Av. Professor Plínio Bastos), Leopoldina, Rio de Janeiro - RJ.
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N ess a s ár e as d o in u te n s ílio , h á vi d a al é m d a tir a n ia d o lu cr o e d a u t i l i d a d e . A o b r i n c ar e j o ga r, e s ta mo s s alv o s , l i v r es . E d e v o lta . Para o Z e n , é n a p r ó p r ia v id a co ti d i a n a q u e es tá o s e g re d o . É p r eci s o r es g at a r a g ra n d e z a in fini t a d o s g es to s s imp le s e “ele m e n t a r e s ”. Cu id a r d a v id a . Cu rti r a m i n ú ci a . L a v a r a p r ó p r ia ro u pa. A l o u ça. Ar r u ma r a c a s a . Faze r s u a co m i d a . To ma r b a n h o co mo q u e m r eal i z a u m a to s a c r o . Recu p er a r o p r az e r d a p r á tic a d o s ato s p r i m ár i o s . D á tr a b al h o . Mas p ar a b r i l h a r, a s e s tr e la s tê m q u e a r d e r a t é o s e u g lo r io s o f im.
Paulo Leminsk
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