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A alteração tácita do contrato
Aquela velha ideia de que alguém deve cumprir um contrato simplesmente porque o assinou vem constantemente sendo abandonada nos tribunais nacionais e nos estudos de direito. Na verdade, ela inspirou a teoria contratual do século XIX, fundada em ideias liberalistas, e decorre da máxima latina pacta sunt servanda, que quer dizer que os pactos devem ser sempre respeitados e os acordos sempre cumpridos, tornando-se as partes servos de seus contratos.
Hoje, no entanto, não é a concepção mais adotada e nem a de maior prestígio. Decerto, ainda tem vigência nos ordenamentos jurídicos atuais, mas, sem sombra de dúvidas, de uma forma bem relativizada. Cada vez mais, entre nós, ganha força o princípio da boa-fé objetiva, que chama atenção para o comportamento das partes no decorrer da relação contratual em detrimento daquilo que foi acertado previamente pelas partes, quando da celebração do contrato.
Pela doutrina da boa-fé objetiva, é essencial para as relações contratuais a questão da proteção da confiança. Como não deve parecer nenhum absurdo, ao longo do contrato, as partes vão tomando algumas atitudes, que acabam determinando um padrão de seu comportamento, despertando na parte contrária a expectativa de que este padrão será respeitado no futuro.
A proteção da confiança visa, exatamente, tutelar estes standards comportamentais, criando algumas regras de proibição, destacando-se dentre elas duas bem especiais: (i) a supressio; e (ii) a surrectio.
Por detrás desses nomes latinos tão herméticos - supressio e a surrectio - há uma ideia bem simples: a de que o comportamento reiterado das partes cria uma relação de confiança naquele padrão, que deve ser respeitada, não devendo ser rompida a relação de confiança estabelecida. Supressio e Surrectio surgem na linha de proibição de comportamento contraditório e são, na verdade, duas faces da mesma moeda. A supressio consiste na perda da faculdade de o contratante manifestar o seu direito, por não o ter exercido durante certo período de tempo, enquanto a surrectio é o ganho da possibilidade da contraparte de opor esta exceção ao contratante omisso.
Transplantadas para a nossa realidade quotidiana, temos que o contrato pode ser alterado, mesmo sem cláusula expressa, pela forma como as partes o executam. Prazos concedidos ao longo de muitos anos não podem ser retirados repentinamente, sem prévio aviso e sem um motivo justo; cláusulas de volume jamais exigidas pelas companhias deixam de ser exigíveis, principalmente em momentos de crise. Em síntese, o contrato passa a ser entendido à luz do real comportamento das partes ao longo da sua execução.
Os tribunais começam a se dar conta de que tão importante quanto o texto escrito é a confiança que uma parte legitimamente deposita na outra, e que o direito não pode acolher como legítimas a ruptura da expectativa legitimamente gerada na contraparte de boa-fé.
* Em co-autoria com o advogado Leonardo Birchal