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Ano VII - Volume X - Nº 10 – set. - 2019

Equipe de Redação: Editores: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS)

Pesquisa: Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Prof. Ms. Renato Lopes (UNIRIO) Prof. Ms. Rafael Eiras (UCAM)

Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Prof. Dr. Júlio Gralha (UFF) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Adílio Jorge Marques (UFF) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS) Profª. Martha Souza (MEC) Revista Eletrônica Acadêmica/Gnarus Revista de História. Vol.10, n.10 (Set 2019). Rio de Janeiro, 2019 [on-line].

Gnarus Revista de História Disponível em: www.gnarus.org ISSN 2317-2002 1. Ciências Humanas; História; Ensino de História

https://www.facebook.com/gnarusrevistadehistoria/


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Sumário AO LEITOR ....................................................................................................................................................................................................................................... 4 Fernando GralhaErro! Indicador não definido.

ARTIGOS:

UMBANDA: TERRITÓRIO DE DIVERSIDADE, RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA............................................................................. 5 Frederico Ricardo de Medeiros Lima e João Paulo Carneiro Erro! Indicador não definido. MEDÉIA: UMA ALTERIDADE À SOCIEDADE GREGA ANTIGA .................................................................................................................................... 14 Alanna Freitas e Allan Freitas REGIME NARRATIVO, EPISTOLOGRAFIA E ATITUDE SATÍRICA NAS CARTAS CHILENAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: UMA PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO............................................................................................................................................................................... 20 Rodrigo Elias DUAS FACES DA LÚXURIA: PROSTITUIÇÃO E ALCOVITAGEM NA BAIXA IDADE MÉDIA CASTELHANA .................................................. 32 Pâmela Viegas A ESCRITA CONTISTA COMO ESCRITA DE SI EM MAURA LOPES CANÇADO .................................................................................................... 41 Edivaldo Rafael de Souza AS MULHERES E O MOVIMENTO ABOLICIONISTA: PARTICIPAÇÃO E ENGAJAMENTO (RECIFE, 1880-1888) ....................................... 48 Maria Emilia Vasconcelos dos Santos e Jacilene de Lima Leandro A VISÃO DA CABANAGEM NO BOI-BUMBÁ DE PARINTINS: UMA ANÁLISE DAS TOADAS TEMPO DE CABANAGEM E TESOUROS DA CABANAGEM ............................................................................................................................................................................................................. 56 Gabriel Augusto Nogueira dos Santos O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO CÂNONE NEOTESTAMENTÁRIO (SÉCULO I AO IV D.C.) ........................................................................ 63 Flávio Henrique Santos de Souza A ECONOMIA COMO FATOR DECISIVO PARA A QUEDA DO GOVERNO DE SALVADOR ALLENDE ......................................................... 77 Bernardo Farias Lima CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS E INTELECTUAIS DE ANTÔNIO GRAMSCI (1891-1937): UMA REFLEXÃO SOBRE O RACISMO E O ANTIRRACISMO ............................................................................................................................................................................................................... 80 João Paulo Carneiro A FISICATURA-MOR DO BRASIL .......................................................................................................................................................................................... 94 Germano Martins Vieira A PADRONIZAÇÃO E REGRAMENTO DE NORMAS E CONDUTAS ATRAVÉS DO MANUAL DO SERVIÇO SAGRADO....................... 106 Marcos Vinícius da Silva Ramos RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA TERRA DE SANTA CRUZ: AMERÍNDIOS, EUROPEUS E AFRICANOS .................................................... 114 Vitor Arantes

COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA

CULTURA, POLÍTICA E COTIDIANO: PILARES DE SUSTENTAÇÃO DE UM CINEMA PERIFÉRICO ............................................................... 123 Gustavo Souza 3% - A DISTOPIA COMO CRÍTICA DO BRASIL .............................................................................................................................................................. 136 Rafael Garcia Madalen Eiras

COLUNA: A HISTÓRIA NOS QUADRINHOS

A CIDADE DAS HQ’s OU AS HQs NA CIDADE? RELAÇÕES POSSÍVEIS. ............................................................................................................. 150 Elbert de Oliveira Agostinho

COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA

COMO SER UM CARIOCA MODERNO, ELEGANTE E “FRANCÊS” NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA! .............................................................. 158 Fernando Gralha de Souza

RESENHA

UM CONVITE À LEITURA DE “Introdução à teoria do cinema”. ........................................................................................................................... 164 Renato Lopes Pessanha O LUTO COMO CHAVE DE SUPERAÇÃO. UM CONVITE À LEITURA DE “Melancolia de Esquerda”. ....................................................... 167 Pedro Gabriel Torres de Assis

EDUCAÇÃO

A EDUCAÇÃO TRADICIONALISTA E DISCIPLINAR TORNANDO A FRAGMENTAÇÃO DO SABER CADA VEZ MAIOR. ..................... 170 Miriam de Souza Oliveira Machado e Adílio Jorge Marques

INTERDISCIPLINAR

O ESPÍRITO ZEN E A EPISTEMOLOGIA. .......................................................................................................................................................................... 180 Lincoln Mansur Coelho E Adílio Jorge Marques Erro! Indicador não definido.

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AO LEITOR

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hegamos ao número 10, uma longa e prazerosa jornada pelo conhecimento desde o ano de 2012. Pitágoras, filósofo e

matemático grego, vê no número 10 a criação do

saberes, no qual, do pós-doutor ao graduando, nestes 10 números discutir o saber historiográfico de forma democrática, múltipla e diversa sempre foi nossa prioridade,

universo, a dezena representa o sagrado. Pitágoras

O número 10 também serve de base para muitos

representou o número 10 por meio de um

sistemas de contagem. Ele representa um ciclo.

triângulo composto por dez pontos. Na primeira

Nesse sentido, ele tem também o significado de

linha há apenas um ponto, na segunda, dois

começo, fim e recomeço. E a Gnarus está neste

pontos, na terceira, três, e na quarta, quatro.

patamar, o enceramento de um ciclo que

Nomeou esse triângulo Tetraktys. Nele, cada linha

esperamos, consigamos recomeçar.

de pontos da sua base possui o admirável significado dos respectivos números: 1 - divino, o princípio de tudo; 2 - dualidade: divino e humano, bem e mal, entre outros; 3 - físico, psíquico e espiritual; 4 - quatro elementos, quatro pontos cardeais.

No mais, este é o momento de agradecermos a toda a equipe, aos colaboradores e principalmente aos leitores que a são razão disso tudo, não esperávamos chegar tão longe, isso só foi possível por vocês. Muito obrigado. Fernando Gralha

E a Gnarus 10 tem tudo isso, em seus vinte e um trabalhos o divino, a dualidade, o humano, o físico, o espiritual se fazem presentes em textos vindos de todos os 4 pontos cardeais do país. A Gnarus se orgulha em, mesmo nestes tempos estranhos, de abrir espaço para todas as crenças e Gnarus Revista de História - VOLUME X - Nº 10 - SETEMBRO - 2019


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Artigo

UMBANDA: TERRITÓRIO DE DIVERSIDADE, RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA Por Frederico Ricardo de Medeiros Lima e João Paulo Carneiro

RESUMO: O presente artigo trata especificamente da Umbanda como espaço de promoção de diversidade, resistência e construção identitária diante dos debates a respeito da intolerância e discriminação religiosa. No âmbito da questão da construção identitária lançamos mão da análise teórica que compreende o sujeito na dimensão pós-moderna e da relação com a Umbanda no sentido de uma religião híbrida (HALL, 2014; CANCLINI, 2013; BIRMAN, 1983). Palavras Chaves: Umbanda; Identidade; Resistência

Introdução

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embramos de um caso que tomou repercussão midiática no Estado do Rio de Janeiro sobre a materialização da intolerância e da discriminação religiosa quando a adolescente Kaylane Campos de 11 anos de idade fora atingida na cabeça por uma pedra após sair de um culto religioso de matriz africana. Kaylane estava na companhia da avó, ambas caracterizadas com vestimentas que representam a religião quando foram surpreendidas por dois homens através de insultos, ou seja, violência verbal.1 1

Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/

Este não é um caso isolado, mas infelizmente muito pelo contrário, os exemplos vão se avolumando nos noticiários e nos relatórios policiais tanto no âmbito regional quanto nacional. A intolerância religiosa no esteio jurídico é considerado crime no Brasil, através do dispositivo legal amparado na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. De acordo com a Constituição Federal Brasileira, o país não tem uma religião oficial, isto é, o Brasil consiste como um Estado nos parâmetros da laicidade. Portanto, tipificado como crime de ódio, inafiançável e imnoticia/2015/06/crianca-vitima-de-intolerancia-religiosa-no-rio-se-encontra-com-dom-orani.html. Acesso em 28 de julho de 2019.

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GNARUS - 6 prescritível. Detenção que varia de 1 a 3 anos de reclusão para os sentenciados, mais multa. No dia 21 de janeiro, segundo a Lei nº 11.635/07, é festejado no Brasil o “Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa”. O Babalaô Ivanir dos Santos,2 premiado recentemente pelo governo dos Estados Unidos pelo reconhecimento ao combate à intolerância religiosa, desde 2008 tem liderado a marcha contra a intolerância religiosa na cidade do Rio de Janeiro. Quando tratamos da temática a respeito da intolerância religiosa, sobretudo das religiões de matrizes africanas não podemos dissociar as questões na esfera do preconceito racial.

Construção identitária: umbanda Para um determinado número de autores a Umbanda é o resultado de uma síntese de algumas manifestações religiosas de origem africanas, europeias, judaico-cristãos e orientais, associadas a aspectos culturais da sociedade brasileira que gerou uma nova perspectiva transformadora na experiência religiosa. Sendo assim, tanto a Umbanda como a população brasileira, possuem a dimensão da diversidade. E no que diz respeito à identidade dialogamos com Hall (2014). Para Ortiz (1999) esta religião seria então, produto direto das transformações ocorridas em um determinado período no contexto da sociedade brasileira como explica a seguir. “Constataremos assim, que o nasci2

Sacerdote candomblecista e Conselheiro Estratégico do Centro de Articulações de População Marginalizada (CEAP); Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR); Conselheiro Consultivo do Cais do Valongo; Vice-presidente da América do Sul no Ancient Religion Societies of African Descendants Internationl Council (ARSADIC), Nigéria.

mento da religião umbandista coincidi justamente com a consolidação de uma sociedade urbano-industrial e de classes. A um movimento de transformação social corresponde a um movimento de mudança cultural, isto é, as crenças e práticas afro-brasileiras se modificam tomando um novo significado dentro do conjunto da sociedade global brasileira. Nesta dialética entre social e cultural, observaremos que o social desempenha um papel determinante” (p.15). E diante das transformações sociais no contexto da sociedade brasileira imbricam de maneira híbrida. Na perspectiva dos estudos culturais as identidades não são mais “fixas” e “estáveis” como era apresentada no sujeito do iluminismo,3 ou seja, um sujeito construído em sua identidade essencializada (Hall, 2014). Com os teóricos pós-modernos a visão identitária passa a ser instável, fragmentada, inacabada, deslizante, flutuante, (HALL, 2014 p.28). Tais mudanças são apontadas pelo especialista através de cinco descentramentos4 do sujeito da modernidade. O indivíduo descentrado segundo Hall (2014) é identificado como aquele que tem novas identidades, ou seja, híbrida. Canclini (2013) faz a seguinte abordagem sobre o termo “hibridismo”: “Entendo por hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para formar novas estruturas, objetos e práticas” (p.XIX). Estruturas ou práticas discretas denominadas pelo o autor, não são puras, isto é, já sofreram 3 Iluminismo foi um movimento intelectual que ocorreu na Europa do século XVIII, e teve sua maior expressão na França, palco de grande desenvolvimento da Ciência e da Filosofia. Além disso, teve grande influência no contexto cultural, social, político e espiritual em diversos países. 4 1º Às tradições do pensamento marxista; 2º A descoberta do inconsciente de Freud; 3º A linguística estruturalista de Saussure; 4º No trabalho de Michel Foucault; 5º O movimento feminista.

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mudanças no processo de hibridações. Assim, compreendemos a Umbanda neste trabalho com o auxílio de Canclini (2013) e Hall (2014), na visão identitária que “elementos culturais distintos que se atenuam formam um terceiro elemento que carrega parte dos elementos anteriores” (CARNEIRO, 2017 p.99). Portanto, segundo Carneiro (2017) “para esses processos múltiplos, diversos, plurais, nas dimensões culturais é que devemos observar no âmbito da Umbanda aqui apresentada” (p.99). E também na dimensão da diversidade, como bem apresenta Gonçalves (2009): “Por diversidade entende-se uma gama de questões como diferença de classe, território, cor/raça, etnia, gênero, deficiência física e mental” (p.91). Completando a gama temática trazida pela autora, Munanga (2014) criticando aspectos culturais do currículo de cunho eurocêntrico e monocultural, nos auxilia no entendimento da importância da diversidade no campo religioso, pois “não respeita nossas diversidades de gêneros, sexo, religiões ,5 classes sociais, raças, e etnias” (p.21). Sendo assim, Umbanda é tratada neste texto como uma religião plural e 5

Grifo nosso.

aberta, de identidade não fixa e não essencializada, mediada por processos de hibridações (HALL, 2014; CANCLINI, 2013; BIRMAN, 1983).

Construções e produções do imaginário europeu Tratando do quesito incorporação é de vital importância que se diga que, diante das construções da cultura cristã desde a Idade Média, a “exousia”,6 Isto é, prática exercida pela igreja nos rituais de exorcismos ecoou uma gama de imaginários, construindo imagens negativas, preconceituosas e discriminantes dos sujeitos no processo histórico que em suas comunidades e práticas religiosas evocando suas divindades pela prática da incorporação. Sendo assim, a prática do exorcismo em síntese, representava desde a idade medieval a evocação de uma autoridade superior para expulsar a entidade do corpo do possuído. Os relatos cristãos por toda a Bíblia associam as incorporações (denomina6 Terminologia do grego que significa “obrigar mediante juramento”.

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GNARUS - 8 das pela linguagem cristã de possessão) aos espíritos malignos, ou seja, representantes da entidade do Diabo cristão. Logo, no imaginário construído pelo cristianismo através dos séculos em seus ensinamentos, pela arte que perpassa o renascimento, as incorporações reforçam os aspectos negativos. Por este conjunto de imaginários construídos, o outro, na visão do ocidental-colononizadorcristão, será o inimigo a ser conquistado, dominado e salvo. Assim, os inimigos da igreja. “A visão de mundo dualista do cristianismo tornou herético e diabólico todo sagrado não oficial. Os judeus, os mulçumanos, as mulheres, doravante transformadas em bruxas, e todos os grupos de possíveis inimigos da igreja foram vistos como representantes do Diabo na terra” (DELUMEAU, 1989 p.592).7 O cristianismo tornou o herético como criminoso, e como apontado por Delumeau (1989) deixa clarividente, representantes do Diabo. Assim, perpassando séculos de conflitos, perseguições, criminalizações, sentenças, extermínios, uma verdadeira caçada aos “filhos do Diabo”. “O desafio consiste na dimensão de combater as visões que reforçam estereótipos que persistem no processo histórico, na sociedade brasileira, nos Livros Didáticos, no imaginário construído (...)” (CARNEIRO, 2017 p.114). Entretanto, anterior a Idade Média, o Ocidente, construiu as suas sementes discriminatórias na Antiguidade Clássica, atribuindo na visão hegemônica do europeu a inferiorização do outro, isto é, do não europeu, do não ocidental, do não cristão (SERRANO & WALMAN, 2007). Na Antiguidade Clássica marcando o “outro”, o “estrangeiro”, o “bárbaro”, como “inferior” e na Idade Média, conservando os estereótipos para o “outro” não cristão como “filhos do Diabo”. “O cristianismo, sobretudo, o europeu, impôs 7

ao continente africanos aspectos simbólicos negativos” (CARNEIRO, 2017 p.115). Diversas expressões construídas no imaginário cultural europeu alimentaram relações que desqualificaram e ainda desqualificam ideologicamente a população negra e os adeptos das religiões de matrizes africanas. “O calor associa-se a sensualidade, igualmente repudiada pelo pensamento cristão. Não por acaso, o cristianismo criou expressões como o fogo ou o calor dos infernos” (SERRANO; WALDMAN, 2007 p 26,27). Assim, foram atribuídos aos africanos devido ao clima e geografia, características de “passionalidade”, “preguiça”, “baixa intelectualidade”, referente à elevada umidade do ar (CARNEIRO, 2017 p.115). Tais conjuntos de relações construídas ideologicamente contribuíram e ainda contribuem para uma sociedade que caminha na contramão da diversidade, do respeito, da diferença, da igualdade, da multiplicidade de crenças e opiniões. Intolerância construída no processo histórico brasileiro: perseguição e racismo É elementar evidenciar que estamos tratando racismo neste trabalho não como determinação biológica. Áreas como a biologia e a genética já desconstruíram o que fora no final do século XVIII e por todo o XIX, ciência, ou seja, a humanidade hierarquizada como inferiores e superiores, em síntese, caucasianos com características morfológicas carregando aspectos e sentidos discursivos positivos e negros carregando as características negativas. Construções discursivas reinventadas por interesses de relações de poder no período da Segunda Guerra Mundial através da política do nazismo e do fascismo. O antropólogo Antônio Sérgio Alfredo Guimarães, faz importantes afirmações em seu artigo sobre como trabalhar com

Grifo nosso.

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GNARUS - 9 “raça” em sociologia. O principal questionamento gira em torno do que são raças para a sociologia? Guimarães (2003) responde que “são discursos sobre as origens de um grupo, que usa termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicos etc.” (p.96). O autor também declara que raças são “cientificamente, uma construção social e deve ser estudada por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais” (p.96). O debate teórico sobre raça também requisita o debate teórico sobre o racismo (CARNEIRO, 2017). Portanto, raça neste trabalho é tratada como categoria analítica como bem desenvolve Guimarães (2012) “[...] a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de (cor) enseja são efetivamente raciais e não apenas de classe” (p.50). Diante do posicionamento dos autores aqui discutidos percebe-se que o caminho trilhado pelas ciências sociais postulam duas vertentes. A primeira diz respeito à caducidade do conceito pelo determinante biológico, isto é, “raça” inexiste, a segunda, porém, reafirma a relevância do conceito no âmbito social, político e cultural (MUNANGA, 2012; GUIMARÃES, 2012; HALL, 2014). No âmbito do Brasil do século XVII, de maneira tirânica e opressora, as práticas e crenças dos indígenas e dos escravizados negros foram negadas e silenciadas. Os desdobramentos da exclusão se mantiveram no Império brasileiro, especialmente no dispositivo legal através da Constituição de 1824 no artigo 5º que instituiu a religião católica como a religião oficial do Império.8 Mesmo Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao24.htm. Acesso em: 28 de ju8

diante das negociações políticas devido o protestantismo europeu tomando corpo no cenário brasileiro, permitindo em certa dose pequenos avanços no que tange a proibição persecutória no âmbito religioso, entretanto, devido às construções racistas, não ocorrera concretas mudanças para os praticantes das crenças dos escravizados negros. Não tencionamos traçar uma história da religiosidade no Brasil, muito menos pretendemos esgotar a temática, entretanto, precisamos pontuar algumas características fundamentais no processo histórico que nos descortinam o pano de fundo da intolerância religiosa inter-relacionada ao racismo. No Código Penal Brasileiro de 1890, no capítulo intitulado: “DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA”, trazem em seus artigos, especialmente, os artigos que transcrevemos: • Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestias curaveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. • Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000.9 lho de 2019. 9Código Penal Brasileiro de 1890. Disponível em: http:// www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaoorigi-

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GNARUS - 10 Diante da legislação vigente no Brasil República, nota-se que as práticas ritualísticas, sagradas, culturais, desenvolvidas pelo hibridismo das religiões de matrizes africanas estão proibidas e com base legal, ou seja, legitimadas por grupos sociais na esfera das relações de poder do qual impera a visão ocidental-europeu-cristão. Diante da exposição legal o caminho para perseguição religiosa das religiões Afro-Brasileiras estava legitimada. Dentre muitas indagações necessárias, uma se faz pertinente. Qual é a relação do racismo, das religiões de matrizes africanas e a intolerância? Todas estão imbricadas. Pois embora, as religiões Afro-Brasileiras no processo histórico intercambiaram com não negros, elas foram construídas no discurso e no imaginário do branco-cristão-colonizador, como religião de negros.

nal-1-pe.html. Acessado em: 27 de janeiro de 2018.

Breves apontamentos sobre a intolerância no âmbito evangélico pentecostal da IURD Somente em 1946 com a Carta Constitucional em seu Artigo 141, Parágrafo 7º: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurado o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil”.10 Para o aprofundamento sobre as perseguições aos espaços sagrados das religiões de matrizes africanas sugerimos Valquíria Velasco (2018).11 Tanto nos programas televisivos quanto nos materiais impressos e digitais, mormente, o seguimento pentecostal e neopentecostal 12 da igreja evangélica, os ataques as crenças 10 Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=DO+ART.+141%2C+DA+CONSTITUI%C3%87%C3%83O+FEDERAL+DE+1946. Acessado em: 27 de janeiro de 2018. 11 VELASCO, Valquíria. Ideologia racial, higienismo e a repressão às religiões de matrizes africanas. Dissertação em andamento no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ. 12 Igreja protestante que como as pentecostais defendem a prática dos dons espirituais – glossolalia. Os

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GNARUS - 11 das religiões Afro-Brasileiras são cada vez mais denunciadas e debatidas no espaço público. A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que se enquadra doutrinariamente como neopentecostal , classificação que tem como base doutrinária a prática da “batalha espiritual”. A batalha espiritual traz em seu bojo linguagens e sentidos de visão de mundo como um “campo de batalha”. Tendo o mundo como campo de batalha, há inimigos a serem combatidos pelos soldados de Jesus. Essa tem sido a tônica teológica da maioria dos grupos neopentecostais. Portanto, a guerra fora declarada, sobretudo pelo Bispo Edir Macedo, líder e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, uma das maiores igrejas neopentecostais no Brasil, com filiais em diversos países nos cinco continentes. “No candomblé, Oxum, Iemanjá, Ogum e outros demônios são verdadeiros deuses a quem o adepto oferece trabalhos de sangue, para agradar quando alguma coisa não está indo bem ou quando deseja receber algo especial”. (MACEDO, 2016 p.8) . Assim, como no Candomblé, a Umbanda também é atacada nas pregações e ensinamentos do Bispo Edir Macedo, através como afirmamos anteriormente, materiais impressos, programas televisivos, nos ensinamentos doutrinários e na pregação praticada nos templos. Tais posicionamentos das lideranças desenvolvem e encontram espaço reverberativo em seus fiéis. “Na realidade, orixás, caboclos e guias, sejam lá quem forem, tenham lá o nome mais bonito, não são deuses” (MACEDO, 2016 p.9).13 São esses ensinamentos que são reproduzidos em reuniões de “exorcismos”, onde as divindades das religiões Afro-Brasileiras são abertamente, declaradas de demônios e são “expulsos” dos corpos dos indivíduos que necessitam de libertação segundo as pregações dos templos, neopentecostais são caracterizados por doutrinas da teologia da prosperidade e da batalha espiritual. 13 Grifo nosso.

sobretudo da IURD. Todo o panteão do culto Afro-Brasileiro é alvo de ofensas e ataques. “Os exus, os pretos-velhos, os espíritos de crianças, os caboclos ou os “santos” são espíritos malignos sem corpo, ansiando por achar um meio para se expressarem neste mundo, não podendo fazê-lo antes de possuírem um corpo. Por isso, procuram o corpo humano, dada a perfeição de funcionamento dos seus sentidos.” (MACEDO, 2016 p.9). A demonização das divindades Afro-Brasileiras é a principal causa das tensões e conflitos, consequentemente, os discursos de ódio e de intolerância são instaurados. Neste contexto, o espaço sagrado para os adeptos das religiões de matrizes africanas, sobretudo umbandista, objeto desta pesquisa, diante de uma sociedade racista e intolerante, encontra refúgio, irmandade, resistência, força e identidade. “Enfim, o candomblé, o tambor-de-mina, o xangô, o batuque e a umbanda, compõem um conjunto de alternativas religiosas que se insere cada vez mais como oportunidades de opções para todos (...)” (PRANDI, 2007 p.14). Portanto, as religiões de matrizes africanas são religiões mágicas (PRANDI, 2007). O contato com as entidades/personagens permite uma relação com o sagrado intensa e vigorosa. Dialogar com as suas entidades, sendo elas símbolos vivos do que é sagrado e divino, é dialogar com um representante de Deus ou com o próprio Deus, pode ser motivo para se sentir amado, acompanhado e protegido, para muitos é sentir a presença de Deus no seu corpo através do contato com o ser divino incorporado e dessa forma encurtar as distancia com o sagrado, e estabelecer uma relação intimista numa experiência divina e totalmente orgânica.

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GNARUS - 12 Considerações Finais

Bibliografia

Considerando os aspectos teóricos discutidos no texto em tela não nos permite afirmar que os caminhos para a diversidade, a desconstrução dos estereótipos negativos, a intolerância religiosa e os demais temas abordados e dialogados estão fechados. Muito pelo contrário, estão todos abertos e incompletos.

BAUMAN, Zygmunt. Vida liquida. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2007.

Umbanda é uma religião por suas complexidades, ou seja, devido à questão plural, sincrética, simbólica, dialética multiétnica e híbrida, que organiza seu campo cultual e ritualístico. Sujeitos que outrora foram marginalizados e subalternizados, ou seja, indígenas, negros, mulheres, prostitutas, enfim, indivíduos que através de construções discursivas foram inferiorizados, por outro lado, passam a serem incluídos na dinâmica do sagrado com outros representantes sociais, sobretudo, sujeitos da elite. Diante dos conflitos, tensões, embates, sobretudo no que se refere à intolerância religiosa, nos fora possível perceber o espaço sagrado da Umbanda como elemento primordial para a construção identitária como processo fluido e plural dos sujeitos praticantes. Espaço de acolhimento promotora da diversidade, aberta, acolhendo independente da questão de gênero, raça, etnia, sexo ou classe. João Paulo Carneiro é Mestre em Relações Étnico-Raciais (CEFET/RJ) e Professor da Educação Básica na Firjan SESI; e Frederico Ricardo de Medeiros Lima é Mestre em Química (IME), Mestre em Ciência, Tecnologia e Educação (CEFET/RJ) e Professor de Tecnologia da Educação Básica – IFRJ, Campus Maracanã.

_____. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. BIRMAN, Patrícia. O que é Umbanda. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. BRASIL, disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/busca?q=DO+ART.+141%2C+DA+CONSTITUI%C3%87%C3%83O+FEDERAL+DE+1946. Acesso em: 27 de janeiro de 2018. BRASIL, disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24. htm. Acesso em: 28 de julho de 2019. BRASIL, disponível em: http://www2.camara. leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 28 de julho de 2019. CANCLINI. Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 2013. CARNEIRO. João Paulo. Ensino de História: Possibilidades e desafios na perspectiva das relações étnico-raciais no caderno de avaliação do Saerjinho. Rio de Janeiro, 2017. 155 f. Dissertação (Mestrado) apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico -Raciais do Centro Federal de Educação Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ. DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. GONÇALVES, Maria Alice Rezende. A cultura Afro-Brasileira e a Lei 10.639/03. In: SOUZA, Maria Helena Viana (Org). Relações raciais no cotidiano escolar: diálogos com a Lei 10.639/03. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009. P. 91-106. GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com raça em sociologia. Educação

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GNARUS - 13 e Pesquisa, São Paulo, V. 29, N.1, p.93-107, jan./ jun. 2003. _____, Classes, raças, e democracia. São Paulo: Editora 34, 2012. HALL, Stuart. A identidade cultural na pósmodernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. MACEDO, Bispo Edir. Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios? Rio de Janeiro: UNIPRO Editora, 2016. MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. ______. Educação e diversidade étnico-cultural: A importância da história do negro e da África no sistema educativo brasileiro. In: COELHO, Wilma Nazaré Baía. MÜLLER, Tânia Mara Pedroso (orgs). Relações étnico-raciais e diversidade. Niterói: Editora da UFF, Alternativa, 2014. P. 21-33. O GLOBO, disponível em: http://g1.globo.com/ rio-de-janeiro/noticia/2015/06/crianca-vitimade-intolerancia-religiosa-no-rio-se-encontracom-dom-orani.html. Acesso em: 28 de julho de 2019. ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro: Umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1999. PRANDI, R. Encantaria Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas 2004. SANTOS, Milton. As cidadanias mutiladas. In: GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO; SECRETARIA DA JUSTIÇA E DA DEFESA DA CIDADANIA, SECRETARIA DE ESTADO E CULTURA. O Preconceito. São Paulo: UMESP, 1997, p. 133-144. SERRANO, Carlos. WALDMAN, Maurício. Memória DÁfrica: A temática africana na sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007.

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Artigo

MEDÉIA: UMA ALTERIDADE À SOCIEDADE GREGA ANTIGA Por Alanna Freitas e Allan Freitas

RESUMO: Nesse artigo, tratamos a forma como a personagem Medéia, da tragédia de Eurípides, através de suas ações, constituiu-se em uma alteridade ao feminino na sociedade grega antiga. Para isso, analisamos, segundo interpretações de alguns autores, a condição prevista para a mulher grega no tempo da tragédia Medéia, assim como as inovações de Eurípides ao escrever a obra. Palavras Chaves: Medéia; Eurípides; Antiguidade; Grécia; Mulher; Alteridade.

Introdução

O

diálogo sobre o valor e a função social da mulher nos tempos atuais é constante, mas não possui suas origens no tempo presente. Na antiguidade grega existia um discurso político, o qual procurava afirmar condições de submissão das mulheres em relação à figura masculina . Por esse motivo, não é de se estranhar que uma atitude de oposição às ideias, por exemplo, de seu marido, não fosse bem vista para uma mulher naquela sociedade.

deia, através de suas atitudes, depois de traída, se diferencia do padrão das mulheres helênicas do seu tempo, como é apresentado na tragédia de Eurípides, Medéia. Desse modo, contextualizaremos as condições da mulher grega no tempo da tragédia Medéia, mostrando os ideais da sociedade grega antiga desse mesmo período (séc. V a.c), e a inovação de Eurípides em escrever a obra. Assim, o presente artigo disserta sobre o modo como as atitudes da personagem Medéia romperam com a tradição de seu tempo.

É nesse âmbito que a personagem MeGnarus Revista de História - VOLUME X - Nº 10 - SETEMBRO - 2019


GNARUS - 15 Medéia e a mulher na sociedade grega antiga wEntre os seres com psique e pensamento, quem supera a mulher na triste vida? Impõe-se-lhe a custosa aquisição do esposo, proprietário desde então de seu corpo – eis o opróbrio que mais dói! E a crise do conflito: a escolha recaindo probo ou no torpe? À divorciada, a fama de rampeira; dizer não! Ao apetite másculo não nos cabe. Na casa nova, somos mânticas para intuir como servi-lo? Instruem-nos? Se duro estágio superamos, sem tensão conosco o esposo leva jugo – quem não inveja? – ou melhor, morrer. Quando a vida em família o entedia, o homem encontra refrigério fora, com amigo ou alguém de mesma idade. A nós, a fixação numa só alma. “Levais a vida sem percalço em casa” (dizem), “a lança os põe em risco.’’ Equívoco de raciocínio! Empunhar a égide dói muito menos que gerar um filho. Sei bem que nossas sendas não confluem: dispões de pólis, elos de amizade, lar paternal, desfrutes na vivência; quanto a mim, só, butim em solo bárbaro, sem urbe, rebaixada por Jasão, sem mãe, sem um parente, sem... que a âncora soerga longe deste pesadelo! Jaeger nos relata a respeito da personagem da tragédia de Eurípedes: “Medéia faz reflexões filosóficas sobre a posição social da mulher, sobre a desonrosa violência da entrega sexual a um homem estranho a quem é preciso seguir no casamento e comprar por um rico dote”. Assim, nesse excerto da obra de Eurípedes, em que há um diálogo entre

Medéia e o Coro das mulheres de Corinto, é possível notar uma reflexão sobre a posição social da mulher na Grécia Antiga, quando a própria personagem retrata o modo como os maridos concebiam a presença feminina na sociedade. Em seguida, na fala de Medéia, são evidenciadas diferenças entre a personagem e as mulheres do Coro, como o fato da mesma ser uma bárbara , isto é, pertencia a uma sociedade de diferentes costumes e tradições da civilização grega e, além disso, estava em uma terra estrangeira, longe da família e abandonada pelo marido. Nesse âmbito, o autor da referida tragédia faz uma representação do social feminino na antiguidade. Assim como Eurípedes retrata em Medéia uma visão vigente na época sobre o papel da mulher na sociedade grega antiga, muitos autores, como Xenofonte, também fizeram tal reflexão em suas obras . Tais descrições surgem de visões masculinas, como podemos perceber na fala do Coro das helênicas ao aconselhar Medéia sobre como ela, pelo menos, não deve agir: “[...] Tânatos terminal já desponta? Deixa de invocá-lo! Se teu marido virou idólatra de cama infrequentada, isso é com ele! Não te inflames! Zeus abraça tua causa! Evita que te consuma o pranto esponsalício!’’ Ao mesmo tempo em que é revelada uma mulher, na antiguidade, a qual não aceita apaticamente a traição do seu marido, observamos um grupo de outras mulheres, as quais sugerem uma indiferença em relação à traição de um homem. Lessa, ao citar Xenofonte , ratifica o fato de haver na escrita dos antigos uma delimitação do espaço feminino na sociedade: “Os textos antigos insistem na existência de uma demarcação rígida de es-

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GNARUS - 16 paços sociais masculinos e femininos. Xenofonte por exemplo nos oferece uma divisão sexual nos espaços de atuação em interno-feminino e externo masculino.” Na atualidade, em algumas obras nas quais falam sobre a mulher na antiguidade grega, é encontrado um discurso em que é postulada a ideia de submissão de tais mulheres em relação aos homens, sobretudo, seus maridos. Um exemplo dessa interpretação pode ser observada na música de Chico Buarque de Hollanda, Mulheres de Atenas , a qual exibe uma representação literária, ou ainda na seguinte afirmação: “[...] não eram precisamente medéias as mulheres de Atenas. Eram oprimidas demais, submetidas a uma educação rígida, que as levava a acreditar na própria inferioridade e em seu dever de submissão” . Em que pese o fato de que mesmo os dois autores crendo no modelo de submissão, Chico Buarque de Hollanda é irônico, utilizando-o num contexto também poético, enquanto Lopes apenas o reitera. Em seu artigo, Lopes nos diz que a própria mulher na antiguidade, neste caso as gregas atenienses, se viam de forma “inferior” em relação aos homens. É como se as mentes dessas estivessem impregnadas por ideologias sobre a posição adequada dos gêneros na pólis. Porém, essa visão sustentada por Lopes, do feminino sobre o feminino, deve ser questionada, pois até então, exceto Safo, não foi encontrada nenhuma documentação de mulheres na Grécia antiga falando sobre elas mesmas, isto é, a documentação a qual se tem acesso é de homens falando sobre o assunto. Apesar da imagem de submissão e reclusão doméstica apresentada sobre a mulher grega na antiguidade – e ainda hoje ao se estudar a figura feminina em Atenas – Andrade afirma

que o feminino estava, na verdade, ativamente ligado às relações da pólis: “Não se trata de incluir as mulheres no ‘clube de homens’’, mas de evidenciar que este tal ‘clube de homens’ que, pretende-se, teria sido a cidade-estado grega, não era mais do que a ponta visível de um iceberg, e que a pólis era também uma pólis das mulheres.” Andrade prossegue nos dando a informação de que a mulher vivia em uma pólis diferente da dos “cidadãos’’ e estava presente na vida cotidiana e comercial, além de possuir destaque; essas mulheres transitavam entre os incluídos (cidadãos) e os que apenas habitavam aquela região da Ática. A autora afirma a existência de uma atuação da mulher na antiguidade grega, ainda que de uma forma diferente dos “cidadãos” e apesar de serem excluídas da vida institucional. Elas possuíam a sua pólis, “uma pólis das mulheres”. Andrade nos revela um olhar sobre as mulheres gregas quase nunca presente, sobretudo, nos estudos que se referem à Grécia Antiga: [...] Mesmo que se diga que as mulheres cidadãs, em Atenas, eram enquadradas segundo certos modelos de conduta. Os quais podiam ser aceitos ou transgredidos na prática social, é verdade que havia um outro “modelo”, não de boa esposa, mas de mulher “feminina”, amada, desejada, mas sobretudo temida: porque a sedução feminina tira do homem a sua previdência, sua atenção, seu esforço. Mediante às suas atitudes, Medéia não pode se encaixar ao grupo de “boa esposa” ou das mulheres atenienses em “submissão”. Provavelmente, ela está mais enquadrada ao “modelo” de mulher “temida”, mas coloquemos aqui, o conceito de “temida’’ em um uni-

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GNARUS - 17 verso diferente da sedução, especificamente, o temor . Como diz a própria Medéia, ela era temida por ser uma ávida conhecedora de fármacos: “Se introduzes o novo entre os cabeças-ocas, parecerás um diletante, não um sábio. Se acima te colocam de quem julgam ter cabedal na ciência, te encrencas” . Em tal cena, na qual a personagem dialoga com o rei Creonte, observamos a justificativa da mesma para a sua negação por parte dos habitantes de Corinto, na qual ela afirma que é apenas especialista em uma nova área de estudos, e por saber mais que os ditos “sábios’’, era fruto de um desprezo, que se caracteriza como um temor.

no padrão de características tradicionais da figura heróica, nem os assemelha tanto aos deuses. Segundo Romilly, há nas tragédias de Eurípedes uma semelhança entre o modo de vida dos personagens heróicos ou míticos a dos outros homens . Analisamos na referida tragédia, que Jasão vivia uma vida comum, sofria das mesmas aflições sofridas pelos humanos, assim como a personagem Medéia, embora essa fosse uma feiticeira. Não mais sorri aos jogos dos meninos, nem cria outra linhagem com sua ninfa: meus fármacos fatais hão de matar terrivelmente a terribilíssima. Não queiram ver em mim um fleumático ou flébil. Tenho outro perfil, Amor

Eurípides e a inovação na tragédia Medéia Eurípides era oriundo de uma família humilde e, assim como Ésquilo e Sófocles, foi um escritor trágico da Grécia antiga . E foi, sobretudo, um inovador: “Eurípides imprimiu ao gênero trágico uma profunda renovação de que todas as suas obras são testemunhas. Desenvolveu a ação, forçou os efeitos, libertou a música, multiplicou as personagens, retirou o herói do seu pedestal, representou mil reviravoltas, algumas das quais roçam o melodrama.” Na tragédia Medéia, a inovação em retirar o herói “do seu pedestal” é perceptível na ausência de clássicos atributos heróicos à figura de Jasão. Um exemplo disso é o momento em que a personagem Medéia, em diálogo com o mesmo, o descreve: “Longe de ser um rasgo de bravura, olhar de frente amigos que arruinou é a pior moléstia que acomete alguém: a canalhice!” . Nesse trecho, Jasão não é glorificado, e segundo a descrição de Medéia, nem é digno. O autor não insere suas personagens

ao amigo, rigor contra o inimigo; eis o que sobreglorifica a vida!

Matar friamente e por vingança a princesa, e consequentemente o rei de Corinto, e os próprios filhos para afetar diretamente a Jasão, foram atitudes que, carregadas de melodrama, constituíram-se naquele tempo, como inusitadas na tragédia e na vida social grega então vigorante. A descrição da paixão e a inserção do amor na tragédia por parte de Eurípides foram também aspectos no mínimo impactantes para uma sociedade que se deparava com o novo na tragédia Medéia. A paixão da personagem, com a qual ela é capaz de romper com qualquer padrão imposto a um ser humano, é forte, voraz e a rouba irresistivelmente. É com ela que a personagem consegue concretizar seus planos, Medéia é a paixão . ‘’Não é que ignore a horripilância do que perfarei, mas a emoção derrota raciocínios e é a causa dos mais graves malefícios’’. Segundo Andrade, características em Me-

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GNARUS - 18 déia como o seu conhecimento em magia e o fato de ser uma bárbara acentuaram o conflito entre a esposa ilegítima e o marido, entre a mulher de terra estrangeira e as leis predominantes na cidade , ou seja, uma mulher que não tinha apegos às tradições helênicas justamente por não pertencer àquela cultura . Depreendemos, então, que esse seja um dos motivos do autor não usar uma personagem grega para as inovações realizadas em sua obra.

Considerações finais Neste trabalho, objetivou-se explorar o modelo do “outro feminino” na tragédia Medéia, o qual é apresentado através de uma personagem que subverte os paradigmas previstos para a mulher daquele período. Nesse âmbito, o uso de documentação e bibliografia de outros autores nos forneceu diversas ideias acerca do assunto, mas por outro lado também significou a necessidade de amadurecimento sobre o tema.

nossa contemporaneidade acerca do assunto. Procuramos evidenciar um universo feminino quase nunca mostrado em tais discussões, ‘’uma pólis das mulheres’’, o universo ao qual pertence Medéia enquanto “mulher temida”. Ao descrever a personagem de Eurípedes, tivemos a preocupação em ressaltar aspectos inovadores do autor no gênero da tragédia e a ruptura com os paradigmas do feminino. É importante entender o que representava a barbárie, o conhecimento em fármacos, e a ousadia de Medéia, não só para o enredo da obra, como também para o contexto de uma sociedade que se deparava com o novo.

Allan Freitas e Alanna Freitas são graduados em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)

Documentação EURIPIDES. Medéia. São Paulo, São Paulo: Editora 34, 2010.

Trabalhar com outras obras implicou em diversas representações sobre o conteúdo central do nosso artigo, e a maior dificuldade estava em saber lidar criticamente com o que se estava lendo. Por meio de Medéia, é possível obter uma variedade de informações sobre o papel do feminino no período em que a obra foi escrita. Mas não poderíamos esquecer-nos da subjetividade do autor (uma figura masculina falando sobre o feminino), existente na referida tragédia.

XENOFONTE. Econômico. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1999.

Apresentamos uma reflexão a respeito de ideias presentes na escrita dos antigos, as quais se referem ao previsto para a presença feminina na antiguidade grega, e as contextualizamos com algumas representações da

Bibliografia

Documento Sonoro HOLLANDA, Chico Buarque de; BOAL, Augusto Pinto. Mulheres de Atenas. São Paulo: Cara Nova Editora Musical Ltda, 1976. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MabbVn0Rlv4.

ANDRADE, Marta Mega de. A Cidade Das Mulheres: Cidadania e Alteridade Feminina Na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: LHIA, 2001.

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GNARUS - 19 JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1995. LOPES, Giovana dos Santos. Medéia, de Eurípedes: um olhar sobre tradição e ruptura, na tragédia grega. Revista Urutágua - revista acadêmica multidisciplinar Nº 14 – dez. 07/jan./ fev./mar.2008 – Quadrimestral – Maringá - Paraná - Brasil. LESSA, Fábio de Souza. Redes sociais informais e esposas na Atenas de Aristófanes. Phoînix, Rio de Janeiro, 7: 142-148, 2001. ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Lisboa: Edições 70, LDA, 2008.

Medéia, de Paul Cézanne

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Artigo

REGIME NARRATIVO, EPISTOLOGRAFIA E ATITUDE SATÍRICA NAS CARTAS CHILENAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: UMA PROPOSTA DE INTERPRETAÇÃO Por Rodrigo Elias

RESUMO: As Cartas Chilenas, um conjunto de sátiras produzidas em Minas Gerais no final do século XVIII e atualmente atribuídas, na maior parte, a Tomás Antônio Gonzaga, constituem um corpus documental bastante conhecido dos estudos sobre o passado colonial brasileiro. Por ter circulado originalmente entre personagens capitais da Conjuração Mineira (1788-89), tal conjunto tem sido pouco considerado na historiografia que trata de outros aspectos daquele contexto cultural. O que o presente artigo pretende, portanto, é chamar atenção para algumas dimensões, em geral, subvalorizadas naqueles escritos, a saber: o seu caráter satírico; o papel da atitude epistolográfica na sua composição; e o recurso a uma retórica dos nervos na conformação de um regime narrativo próprio de certas audiências letradas da Época Moderna tardia. Palavras Chaves: sátira; epistolografia; retórica; regime narrativo; Tomás Antônio Gonzaga

T

omás Antônio Gonzaga, português nascido no Porto em 1744 e morto em Moçambique em 1810, é um personagem já muito conhecido na historiografia política e na crítica poética e literária luso-brasileira – sua obra já está, de forma muito consolidada, associada a interpretações sobre a poesia árcade ou “pré-romântica”, ou, em termos históricos, ao contexto politicamente conflagrado das rebeliões do período pré-Independência. No caso específico das Cartas Chilenas, um conjunto satírico anônimo cuja autoria – na maior parte – acabou atribuída definitivamente a Gonzaga (que se escondia sob o pseudônimo de Critilo) por Manoel Rodri-

gues Lapa em 19581, o escrutínio foi ainda mais intenso, sobretudo por conta da própria questão da autoria. O conjunto conhecido atualmente é um poema satírico constituído de 4.268 versos decassílabos brancos, divididos em 14 unidades epistolares (treze cartas, sendo a última incompleta, e uma “Epístola a Critilo”, atribuída a Claudio Manuel da Costa), além de uma dedicatória e um prólogo.2 Como as cópias mais antigas que chegaram até nós, são manuscritos do século XIX, houve um grande esforço de inúmeros críticos, LAPA, Manuel Rodrigues. As “Cartas Chilenas”: um problema histórico e filológico. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1958. 2 GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 1

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GNARUS - 21 lizo em alguns destes pontos meu interesse: seu caráter satírico, seu caráter epistolográfico, seu recurso a uma retórica dos sentidos.

Tomás António Gonzaga

desde aquele período, para ligar o conteúdo do texto ao contexto histórico específico – o governo de Luís da Cunha Menezes em Minas Gerais, finalizado em 1788; portanto, um período no qual foram nutridas as relações sociais e políticas que desaguaram na Conjuração Mineira. Como, entre os séculos XIX e XX, aquele evento foi alçado ao lugar de momento fundador da própria nacionalidade brasileira3 , Gonzaga, assim como Claudio Manuel da Costa e o próprio mártir Tiradentes, recebeu muita atenção por conta das suas respectivas ações políticas – considerado um dos líderes intelectuais dos conspiradores, o magistrado e poeta acabou condenado à morte e, posteriormente, tendo sua pena comutada em degredo para a África oriental portuguesa. Há, entretanto, aspectos naquele conjunto textual que não foram suficientemente aprofundados nas análises historiográficas e mesmo pela crítica literária e poética. FocaCARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

3

Em primeiro lugar, a sátira. É comum, a partir da retórica e da poética de Aristóteles, definirmos a sátira como uma espécie de negativo canônico: como o autor grego definiu as formas discursivas adequadas para cada tipo de tema e ocasião, a sátira consistiria basicamente na inversão dessas regras. Por exemplo, usar linguagem grandiloquente para falar sobre temas baixos, ou usar formas cotidianas para falar de pessoas ou assuntos nobres. 4 Assim, é comum restringir o caráter satírico das Cartas Chilenas à ideia de que se trata de um longo poema épico que discorre sobre uma figura moralmente rebaixada, um anti-herói, o Fanfarrão Minésio / Luís da Cunha Menezes. Entretanto, esse conjunto não é caracterizado apenas pelo formato épico, abrigando também, no seu programa satírico, versos de amor. As falas de Critilo, portanto, não podem ser reduzidas a um negativo canônico. Há outras características importantes a serem consideradas na escrita satírica que podem ser vinculadas às Cartas Chilenas. Jesús Gascón Pérez acredita que a sátira é uma categoria literária difícil de definir em seus aspectos formais, sobretudo porque ela tende a ser fluida 5 – é o que se percebe no texto de Gonzaga, quando passa de um estilo a outro, às vezes dentro de uma mesma carta. Ela pode começar como uma carta a um amigo – HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora Unicamp, 2004, p. 292. 5 GASCÓN PÉREZ, Jesús. “La espuma que resaca el mar de la cólera: los pasquines, vía de expresión de la oposición política aragonesa” in La rebelión de las palabras: sátiras y oposición política en Aragón (15901626). Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza / Departamento de Educación, Cultura y Deporte del Gobierno de Aragón; Huesca: Instituto de Estudios Altoaragoneses, 2003, p. XXVII-XXXI. 4

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GNARUS - 22 usando de hostilidade amistosa –, passar para o estilo épico, interpolar versos líricos e terminar com imprecações contra um inimigo. Podemos, assim, seguindo o conselho de Gascón Pérez, caracterizar a sátira mais por sua atitude do que por seu formato: a atitude satírica é uma tentativa de corrigir costumes, censurar vícios de indivíduos ou de sociedades inteiras. O hibridismo formal das Cartas Chilenas, um texto altamente moralizante, serve para insultar um grupo político específico, encabeçado por Fanfarrão Minésio, inimigo de Critilo em várias esferas da vida – econômica, social, política e mesmo afetiva (Critilo e Fanfarrão compartilham, no poema, um mesmo amor: Laura / Nise / Marília loura, ou seja, Maria Joaquina Anselma de Figueiredo – não a Marília morena, Maria Doroteia Joaquina de Seixas, mais canonicamente associada à poesia lírica e à trajetória biográfica de Gonzaga 6). O latinista Gilbert Highet, em 1962, já considerava a sátira nesta chave mais alargada, mais atenta aos objetivos e aos efeitos do que a modelos prescritivos. Highet se empenhou em assinalar características mais gerais da escrita satírica, como o recorrente recurso a uma linguagem mais forte e mais vívida – mais típica do tempo do escrito e, assim, mais reconhecível por seus contemporâneos. A sátira, como um chamado à ação, precisa conter o sentido de urgência da vida real.7 As Cartas maldizem, no calor da hora, um inimigo político e pessoal e lamentam o fim de uma relação amorosa. É uma espécie de tratado do ressentimento apaixonado. Outro elemento que ajuda a definir um trabalho enquanto sátira é o tema tratado. Não existe um acervo de tópicos definidos para

OLIVEIRA, Tarquínio J. B. de. As Cartas Chilenas: Fontes textuais. São Paulo: Editora Referência, 1972, p. 132. 7 HIGHET, Gilbert. The anatomy of satire. Princeton: Princeton University Press, 1962, p. 3. 6

esta modalidade de escrita, mas Highet chama atenção para uma preferência: o objeto da escrita satírica é geralmente concreto, circunscrito e pessoal. Será quase sempre possível ver no texto pessoas reais em situações concretas e reconhecíveis ao público leitor imediato. Gonzaga, magistrado português que estava cometendo um crime ao escrever textos anônimos, traz sob criptônimos (que nem sempre fazem questão de esconder identidade alguma) os personagens que compunham seu contexto imediato, deixando claro na forma que descreve cada um deles o nível de simpatia ou de antipatia que possuía em relação aos mesmos. O autor também se refere a uma série de eventos ou de relações que podiam ser facilmente reconhecidos por seus contemporâneos e, em especial, seus amigos letrados – além, é claro, de aparecer ele mesmo como antagonista de Minésio. A linguagem mais forte e “vívida” também é encontrada na escrita de Gonzaga, que descreve da forma mais crua possível algumas situações absurdas e grupos ou indivíduos tolos ou maus. O autor de sátiras, aliás, tende a considerar o público mais geral como sendo anestesiado em relação à verdade que só ele consegue enxergar, de modo que a sua obra deve enfatizar o impacto de uma realidade perversa. O satirista, além da descrição vívida, inclusive utilizando linguagem popular e eventualmente chocante, procura inspirar um sentimento de protesto – ele quer não apenas chocar, mas provocar, através do choque, uma ação política no mundo.8 Ora, vejamos o que o “tradutor anônimo” das cartas de Critilo – isto é, o próprio Gonzaga – pretende (na dimensão fictícia do poema, este teria sido redigido originalmente em castelhano), em sua “Dedicatória”: HIGHET, Gilbert. The anatomy of satire. Princeton: Princeton University Press, 1962, p. 19-20. 8

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GNARUS - 23 “Dois são os meios, por que nos instruímos; um, quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo da imitação: outro, quando vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento. Ambos estes meios são eficazes: esta a razão, por que os teatros instituídos para a instrução dos Cidadãos umas vezes nos representam a um Herói cheio de virtudes, e outras vezes nos representam a um monstro coberto de horrorosos vícios. Entendo, que V. Ex.as se desejarão instruir por um, e outro modo. Para se instruírem pelo primeiro, têm V. Ex.as os louváveis exemplos de seus Ilustres Progenitores. Para se instruírem pelo segundo, era necessário, que eu fosse descobrir a Fanfarrão Minésio em um Reino estranho. Feliz Reino, e felices grandes, que não têm em si um modelo destes!”9

Deste modo, o autor da “Dedicatória” deixa claro o uso que pretende que seja dada à sua obra, uma descrição de personagem monstruoso como forma de despertar seus leitores preferenciais em prol de uma dada atitude (o bom governo). Em segundo lugar, é preciso voltar os olhos para um fato até certo ponto óbvio: as Cartas Chilenas são, afinal, cartas. Levar em conta o fenômeno da epistolaridade e todas as suas implicações nas sensibilidades literárias, poéticas e políticas da Época Moderna parece ser algo crucial. O fato de que aquele texto é marcado por uma dimensão satírica e, em alguma medida, ficcional não deve retirar do observador a consciência de que o mesmo é identificado por seu autor – ou por seus autores – como este extraordinário artefato intelectual que serve à comunicação interindividual e que teve extraordinária difusão na Época Moderna. GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.33-34. 9

É preciso levar em consideração que este tipo de escrita, a epistolografia ficcional, havia se tornado bastante corriqueiro na Época Moderna, assumindo um lugar especial na formação de uma certa sensibilidade literária no século XVIII – época que viu surgir um novo leitor a partir das reações “emocionais” ao livro de Rousseau, Julia ou A Nova Heloísa (1761), romance composto por cartas e, segundo Robert Darnton10 , a obra com maior circulação no século XVIII (foram cem edições em menos de quarenta anos, e pagava-se aluguel diário para sua leitura). A sátira gonzagueana é produzida durante o auge de uma tradição de pelo menos um século na literatura ocidental à qual Gonzaga dificilmente estaria imune. O contexto desse tipo de escrita, que atinge seu ponto máximo na Julia de Rousseau, se abre com as Cartas Portuguesas (1669) (que, apesar do nome, foram publicadas em francês e na França) do conde de Guilleragues (sob o pseudônimo Mariana Alcofarado), uma fictícia troca de epístolas enamoradas entre uma freira portuguesa e um oficial francês.11 E há uma infinidade de exemplos desta modalidade de produção ao longo do restante da Época Moderna, seja na Europa continental, seja na Inglaterra. Talvez Os sofrimentos do jovem Werther (1774), romance epistolar (e semiautobiográfico) de Goethe que deu forma, em alguma medida, ao amor burguês contemporâneo, seja um dos exemplos mais famosos. Werther não apenas alçou o seu autor ao panteão dos inventores do romance ocidental moderno, mas despertou no público reações como uma onda de suicídios entre seus leitores, identificados com o destino trágico do personagem principal – o chaDARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 11 ALCOFARADO, Mariana. Cartas portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 2000. 10

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GNARUS - 24 mado “efeito Werther”, ou “febre Werther”, mais tarde incorporado pela psicologia como sinônimo de morte voluntária por imitação.12 As cartas eram um acontecimento social que dava voz e forma à auto-representação dos indivíduos, por um lado, e à difusão de novas sensibilidades coletivas, por outro. Nas palavras do historiador Gary Schneider, que produziu um estudo a partir de uma amostragem de 40 mil cartas escritas entre os séculos XVI e XVIII, as epístolas da Época Moderna são projetadas para reforçar padrões socioculturais.13 A escolha deste modelo em uma obra narrativa (e as sátiras de Gonzaga também são narrativas) deve decorrer de uma busca por adequação a um contexto linguístico próprio do período, no qual vai se afirmando uma cultura letrada no interior da qual os mecanismos próprios da escrita epistolar conformam um regime retórico, de acordo com o qual a função daquela obra é reconhecível e, por isso, ela é eficiente. A escrita epistolar moderna requer, primeiramente, alguma individualidade: sua função básica é a comunicação entre alteridades, a supressão, através de um discurso materializado em um suporte, da distância entre dois pontos que são fisicamente isolados ao ponto de não ser permitida a comunicação face a face. A função primordial da carta é tornar presente determinada ausência. Seguindo o estudo de Schneider, cujas cartas pesquisadas eram provenientes dos mais variados lugares sociais, é possível observar que este tipo de produção estava associado à CALABRESE, Stefano. “Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”, in MORETTI, Franco (org.). O Romance, 1: A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 697-732. 13 SCHNEIDER, Gary. The culture of epistolarity: vernacular letters and letter writing in early modern England, 1500-1700. Newark: University of Delaware Press, 2005, p. 22. 12

formação de vínculos entre grupos – considerando, inclusive, que se trata de uma sociedade de baixíssimo índice de letramento, como era a própria Inglaterra durante a Época Moderna 14 , na qual a incapacidade de ler poderia girar ao redor de 90% da população, situação que seria parecida com a de Portugal até o final do século XIX.15 Abandonando uma concepção extremamente formalista que poderia considerar o objeto carta exclusivamente como um substituto da comunicação entre dois agentes (ou “modelo diádico”), Schneider percebeu que as diversas etapas do processo epistolar – a escrita, a transmissão e a recepção – estavam abertas a um grupo maior de indivíduos, para além do emissor e do receptor prescritos. Cartas eram rascunhadas e depois passadas a limpo por outrem, descaminhos e violações eram comuns nos mais diversos sistemas de transmissão, sigilos eram rompidos por práticas de leitura e arquivamento do receptor, além dos seus diversos níveis de privacidade. Entretanto, para além desta ampliação não intencional do círculo de leitores de determinada produção escrita, é preciso considerar aquilo que Harold Love denominou “comunidade escritural”.16 Para este autor, que trata ainda da produção manuscrita em um sentido mais amplo do que a epistolografia, este tipo de escrita, além de funcionar como transmissor de informações, serve como reforço de laços entre indivíduos culturalmente e socialmente alinhados, formando comunidades políticas, compartilhando e reforçando valores e alianças que definem determinado grupo. Cartas manuscritas são projetadas para CRESSY, David. “Levels of illiteracy in England, 15301730”, in The Historical Journal. Vol. 20, no. 1, Mar., 1977, p. 1-23. 15 RAMOS, Rui. “Culturas da alfabetização e culturas do analfabetismo em Portugal: uma introdução à História da Alfabetização no Portugal contemporâneo”, in Análise Social. Vol. XXIV (103-104), 1988 (4o, 5o), p. 1067-1145. 16 LOVE, Harold. Scribal publication in Seventeenth-Century England. Oxford: Clarendon, 1993, p. 177. 14

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GNARUS - 25 a circulação em um meio social específico.17 Ora, as Cartas Chilenas, engenho poético satírico, circularam de forma manuscrita dentro de um circulo específico, os letrados mineiros próximos de Gonzaga – embora os textos estivessem endereçados explicitamente (dentro do poema) a um destinatário específico (Doroteu / Claudio Manuel da Costa, na maior parte das vezes). Se eram fundamentalmente projetados como vituperação de alguma figura pública (com o seu séquito), os escritos também deviam funcionar como elemento aglutinador de um grupo de leitores. Este grupo de leitores está delimitado pelos personagens que gravitavam, em Minas Gerais, ao redor de Tomás Antônio Gonzaga e Claudio Manuel da Costa – comunidade de cuja porosidade dependeu a própria eficiência da sátira, que, se julgarmos por um relato em um dos trechos do poema (a “Epístola a Critilo”, de Claudio/Doroteu), chegou aos ouvidos do principal atacado, o antagonista do autor.18 Outro elemento importante para a consideração das Cartas Chilenas é o paradoxo próprio da condição epistolar. A escrita de cartas, em qualquer época e em qualquer lugar, é marcada por uma certa ansiedade, decorrente da contraposição ausência x presença. Assim, a escrita de cartas na Época Moderna (e aqui talvez possamos incluir as “ficcionais”) é um elemento central para a SCHNEIDER, Gary. The culture of epistolarity: vernacular letters and letter writing in early modern England, 1500-1700. Newark: University of Delaware Press, 2005, p. 22. 18 É o que parece estar explicitamente formulado na “Epístola a Critilo”, atribuída a Claudio e escrita posteriormente à produção (e revisão pelo mesmo) da primeira parte das Cartas Chilenas: “Mas ah! Critilo meu, que eu estou vendo, / Que já chegam a ler as cartas tuas: / Estes bárbaros monstros são cobertos / De vivo pejo ao ver seus delitos, / Que em tão disforme vulto hoje aparecem.” Claudio Manuel da Costa, “Epístola a Critilo”, in GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 46. 17

consolidação, a circulação e a difusão de uma sensibilidade marcada por uma modulação de sentimentos fundamental para a tentativa de representar uma corporificação na ausência de alguém em cuja presença se deseja fisicamente estar. Em uma das pontas de uma carta, sempre falta um corpo. Embora os clássicos tivessem consciência do problema (Ovídio, por exemplo, um poeta exilado cujo sentimento tocou Critilo), tal fato não despertou interesse dos tratadistas retóricos da Antiguidade, que estiveram mais preocupados em considerar a epístola como um meio através do qual os tipos de discurso (estes sim, minuciosamente descritos) se propagavam. Na Época Moderna, a ausência do corpo (e das ações possíveis ao corpo relativas à paralinguagem, à prosódia e uma série de procedimentos comunicacionais não verbais) passou a preocupar não apenas os grandes humanistas – como Erasmo de Roterdã –, mas esteve na raiz de uma nova postura do público leitor e, sobretudo, dos autores de cartas, primeiramente “não-ficcionais”, depois assumidamente “ficcionais”. A produção epistolar será, conforme avança aquele período histórico, cada vez mais marcada por uma obsessão por aspectos da oralidade, buscando incessantemente a produção de presença.19 Ao lado deste problema fundamental da epistolografia – a falta do corpo físico e, por conseguinte, dos elementos corporais da comunicação face a face –, a escrita (sobretudo a de foro íntimo, cada vez mais importante) será acompanhada de uma progressiva consciência de si por parte do autor, tornando-se cada vez mais uma forma premeditada de comunicação à distância com vistas à simuSCHNEIDER, Gary. The culture of epistolarity: vernacular letters and letter writing in early modern England, 1500-1700. Newark: University of Delaware Press, 2005, p. 30-31. 19

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GNARUS - 26 lação e, portanto, ao convencimento daquela mesma presença ausente.20 Escrever uma carta é tentar seduzir alguém – Ovídio, mais uma vez, sabia disso, como demonstrou em suas Heroides, e o recurso à epistolografia para simular a tensão amorosa ne Época Moderna deve muito à eficiência alcançada pelo autor latino no uso do artifício.21 A escolha da epistolografia como forma preferida (e mais bem-sucedida) para a escrita de romances de temática amorosa entre os séculos XVII e XVIII não deve ser, sob esta perspectiva, um grande enigma – cartas, por conta das necessidades discursivas que as engendram, são potencialmente eróticas. Os protestos de amizade (e mesmo de hostilidade amistosa) de Critilo/Gonzaga em relação a Doroteu/Claudio ao longo do conjunto atribuído a Gonzaga podem ter, assim, uma nova legibilidade, reforçando por meio da poesia em forma de carta (ou carta em forma de poesia?) a proximidade afetiva existente entre os dois indivíduos – e mesmo entre o autor e outros que poderiam ter acesso mais oblíquo aos escritos, ali também supostamente tratados, como Alvarenga Peixoto, outro poeta inconfidente, e algum desamor. O recurso que Gonzaga faz à linguagem mais crua para descrever situações que se tornam quase que fisicamente sensíveis devia ser potencializada para uma audiência marcada por uma sensibilidade epistolar que hoje provavelmente perdemos (ou cujos ecos podem ser ouvidos, de forma análoga, nas mensagens de teor sexual trocadas por celular22). As sensibilidades que forjam a epistoloIdem, p. 32. ALTMAN, Janet Gurkin. Epistolarity: approaches to a form. Columbus: Ohio State University Press, 1982, p.14. 22 WEISSKIRCH, Robert S. e DELEVI, Raquel. “‘Sexting’ and adult romantic attachment”, in Computers in Human Behavior, n. 27, 2001, p. 1697-1701. 20 21

grafia moderna encontram um grande difusor na imprensa, sobretudo a partir dos romances epistolares. Para tratar do tema, Janet G. Altman propôs, em obra de 1982, o conceito de epistolaridade, isto é, “o uso de propriedades formais da carta para a criação de sentido”.23 De acordo com a autora, longe de constituírem meros recursos ornamentais, as estruturas presentes neste tipo de escrita – incluindo o recurso a relações temáticas, personificação de tipos, organização interna, narração de eventos – influenciam significativamente a forma como os autores escrevem as cartas e em grande medida informam a sua leitura. O público leitor de epistolografia ficcional no século XVIII, conforme era de se esperar, estava treinado para ler cartas. Como já foi ressaltado por estudiosos de história da literatura, mais do que uma simples coincidência cronológica, a chegada do romance ao status de gênero literário maior (o que aparentemente foi assumido por Rousseau) fez amplo recurso da escrita epistolar.24 Segundo Altman, que estudou o uso do modelo epistolar em romances em um largo espectro temporal, enquanto o recurso a este tipo de escrito fornece aos autores de romances um acervo de instrumentos retóricos para simulação de situações (mesmo que os romances não sejam calcados na narração de fatos), os leitores encontram ali modelos e perspectivas para interpretação.25 Segundo a mesma autora, aliás, a temática do afeto encontrará no modelo epistolar sua forma ideal. Enfim, a escrita epistolar em seus formatos ficcionais, que conheceu uma explosão na ALTMAN, Janet Gurkin. Epistolarity: approaches to a form. Columbus: Ohio State University Press, 1982, p. 4. 24 A este respeito, observar, por exemplo, o clássico WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, especialmente o capítulo “Richardson romancista: Clarissa”, p. 220-253. 25 ALTMAN, Janet Gurkin. Epistolarity: approaches to a form. Columbus: Ohio State University Press, 1982, p. 9. 23

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GNARUS - 27 Europa do século XVIII (e que, aliás, parece, segundo Márcia Abreu, ter despertado mais interesse no Brasil do que em Portugal26), se adequava às sensibilidades próprias de um contexto no qual uma ideia humanizada – e não sagrada – de amor se impunha como elemento central das relações entre os indivíduos. A sátira de Gonzaga, entretanto, se dá em meio a uma nova percepção do homem ocidental, e guarda com este algumas aproximações. O século XVIII ocidental foi nervoso. Comumente simplificado sob o epíteto de “Era da Razão”, foi, mais do que isso, uma descoberta da responsabilidade do homem sobre o seu destino e sobre o seu passado. Esta descoberta veio acompanhada de dois movimentos: em primeiro lugar, um mergulho no homem físico, em suas estruturas biológicas; em segundo, a constatação, ao longo de todo aquele século, de que o mundo é apreendido e reelaborado através dos sentidos. Os filósofos do século XVIII estavam muito empolgados com o avanço técnico trazido por áreas específicas do conhecimento – principalmente a matemática e a física. Desde o século XVII, com o triunfo das leis mecânicas que pareciam reger a natureza, organizando todas as partículas do universo, os pensadores trataram de adequar toda a teoria do conhecimento às mesmas regras que dominavam a produção do conhecimento sobre A autora fez uma análise a partir dos números da censura portuguesa entre os anos de 1763 e 1807. “Em comparação com os leitores do Porto, os cariocas parecem muito mais modernos, dando primazia aos romances em sua seleção de livros: há oito romances entre os livros mais enviados (55%). Os moradores do Porto, ao contrário, incluíram apenas seis narrativas de ficção entre os 31 livros mais procurados (19%).” Entre os portuenses – conterrâneos de Gonzaga – há uma acentuada preferência por clássicos latinos, sendo alguns dos principais autores Cícero, Virgílio e Horácio. ABREU, Márcia. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado das Letras / Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: Fapesp, 2003, p. 93. 26

o mundo físico. A visão sobre a natureza do conhecimento havia se transformado a partir do sucesso de Newton, como já escreveu Isaiah Berlin.27 Se a partir do século XVII era incontestável do ponto de vista dos pensadores que os temas relativos à “filosofia natural” (que hoje chamamos de “ciência”) estavam (ou deveriam estar) inteiramente submetidos ao tipo de argumentação e comprovação que hoje conhecemos como modelo científico de observação e experimentação, a reflexão nas áreas ligadas à vida social ainda obedecia lógicas que chamaríamos (retrospectivamente) de “não-científicas”. Entre os séculos XVII e XVIII, o cenário se transformou: homens como John Locke e David Hume passaram a associar a lógica perene da mecânica dos corpos, revelada em termos tão cristalinos (e úteis, e “verdadeiros”) por Newton, a uma naturalização da própria sociedade e, mais profundamente, ao próprio “entendimento” humano – ou seja, criaram as bases para uma nova gnosiologia. Se o mundo físico era conhecido a partir da experimentação direta, o conhecimento em si só poderia ser um fenômeno que se dá a partir do contato direto entre o mundo e o processo físico de formação das ideias.28 Paralelamente, mergulhava-se de fato no homem físico. George Rousseau, que estudou a interface entre literatura e conhecimento médico no século XVIII, propôs a existência do que chamou de uma “retórica dos nervos” no período. Ele reconstruiu o percurso e as apropriações feitas na linguagem científica e nas criações literárias da questão dos nervos. Estereótipos de classe BERLIN, Isaiah. “Os filósofos do Iluminismo”, in HARDY, Henry Hardy (org.). A força das idéias / Isaiah Berlin. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 62-83. 28 O irlandês George Berkeley (1685-1753), que era um fanático religioso, um sacerdote anglicano que acusava seus compatriotas de irreligiosidade e, desiludido, foi pregar nas Bermudas, formulou em 1710 o princípio segundo o qual “ser é ser percebido”. 27

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GNARUS - 28 e gênero, atitudes perante o corpo e o mundo, expectativas políticas e sociais vão precisar lidar com uma grande invenção científica do período: a percepção e a análise humanas (o tudo cognitivo) são processos neurofisiológicos. Segundo o autor, existe um percurso entre os séculos XVIII e XIX ligando os nervos ao culto da sensibilidade, o que teria sido fundamental para o próprio Romantismo – a sensibilidade romântica bebeu na retórica nervosa que transbordou do discurso médico.29 A primeira grande clivagem, neste sentido, será a sua sexualização. Os nervos atuariam, na retórica do século XVIII, de maneira diferente em homens e mulheres. Além disso, em um período de afirmação burguesa na Europa continental, os nervos também serão constituídos de acordo com o grupo social – os balneários, as estâncias e todo um conjunto de tratamento neurológico estarão disponíveis apenas para aqueles grupos cuja constituição nervosa será considerada mais delicada: os ricos e bem educados. Não é difícil notar esta segmentação social e de gênero no momento da emergência do romance: o público buscado é o das classes burguesas, e haverá também um certo direcionamento ao público feminino, o que pode ser visto inclusive na escolha das protagonistas de obras como Clarissa, Pamela, Julia...

corporativas sacadas da Idade Média e atualizadas na Época Moderna. O “corpo político”, outrora uma antropomorfização de uma visão cristã da vida social, também será observado a partir da sua correspondência com o corpo humano, uma vez que este é tomado como microcosmo daquele. Este é o centro de verdade ética disponível aos círculos letrados ocidentais na segunda metade do século XVIII. As “patologias” do “corpo social” serão, em épocas posteriores, cada vez mais recorrentes e assim serão tratadas as questões sociais: o racismo “científico”, a eugenia, as limpezas étnicas etc, ressoam esperanças de tratar a vida social como os iluminados médicos tratavam dos corpos físicos mais sensíveis – a equivalência entre certos posicionamentos políticos e patologias, muito comum em discursos públicos que vigoram atualmente no ocidente, tem tributos a pagar àquela distante transformação histórica. A obra mais significativa neste contexto de generalização de uma nova sensibilidade – que é, inclusive, paralela ao processo contínuo e cada vez mais agudo e generalizado de emergência da subjetividade ocidental relacionada com a escrita e com as práticas individuais de leitura – é a já mencionada Julia, de Rousseau, de 1761.30

Assim, vemos a expansão e a apropriação de um princípio biológico-anatômico pelo que pode ser chamado, com certas reservas, de “teoria social”, e uma difusão ainda mais significativa através de sua reelaboração literária – o que resultará, inclusive, na incorporação desta retórica dos nervos à teoria política, herdeira, como se sabe, das teorias

A história de amor narrada por Rousseau em formato epistolar teve um impacto inédito sobre leitores e leitoras. Um conjunto de cartas recebidas pelos editores e pelo próprio autor revela a relação que os leitores mantiveram com os personagens, especialmente sua protagonista. As desventuras da jovem, cujo destino trágico não turva sua existência virtuosa, despertou entre homens e mulheres os

ROUSSEAU, George S. “Para uma semiótica do nervo: a história social da linguagem em novo tom”, em BURKE, Peter e PORTER, Roy (orgs.). Linguagem, indivíduo e sociedade. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993, p. 287-364.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Júlia ou A Nova Heloísa. Cartas de dois amantes habitantes de uma cidadezinha ao pé dos Alpes. Introdução de Fulvia M. L. Moretto. São Paulo / Campinas, Hucitec, 1994.

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GNARUS - 29 mais exaltados sentimentos. Esta literatura, que tinha na verossimilhança um elemento de conexão com a “vida real” dos leitores, assume um papel ainda mais relevante quando o seu autor é Rousseau. Seus textos, ficcionais ou não, eram lidos como ensinamento, como exemplos para a vida, o que dará a Julia um papel ainda mais destacado como modelo, como exaltação do valor do sacrifício para que se mantenha uma existência “correta” – no caso, a realização plena do amor dentro do casamento. Como explicou Robert Darnton, as cartas endereçadas pelos leitores do livro revelam a centralidade destes elementos: “amor, casamento, paternidade – os grandes eventos de uma pequena vida e o material de que a vida era feita em toda parte, na França.”31 Se Rousseau não foi o primeiro a causar “epidemias de emoção” na Europa, Julia fez com que os leitores e as leitoras quisessem – e tentassem, de fato – viver aquelas vidas. A partir daí – desta identificação entre público e obra ficcional – desenharam-se as chamadas “patologias literárias”, uma série de efeitos na vida real a partir de reações aos romances. Os mais conhecidos destes efeitos são a já mencionada “febre Werther” e o “bovarismo”, índices de uma psicogênese propriamente contemporânea relacionada aos modelos propagados pela literatura. Os suicídios “por imitação” que se sucedem à leitura do livro de Goethe ou o descolamento da existência “real” suscitado pela obra de Flaubert apenas confirmam, como mostrou Calabrese, o que já foi classificado como “recepção produtiva” de um texto literário, desencadeado pela leitura do livro de Rousseau.32 Esta “norma”, uma espécie de elaDARNTON, Robert Darnton. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 309. 32 CALABRESE, Stefano. “Wertherfieber, bovarismo e outras patologias da leitura romanesca”, in MORETTI, Franco (org.). O Romance, 1: A cultura do romance. São 31

boração e implantação de padrões sociais a partir de modelos literários, será observada durante todo o século XIX, a partir de velhos e novos romances, e a psiquiatria vai descrever fartamente esta decalcomania, que no limite chegaria ao crime passional e ao suicídio. O texto literário, a partir da personagem rousseauniana, havia se tornado cosmografia, e as obras de grande impacto publicadas posteriormente, quando tratam da questão da virtude relacionada à questão do gênero e dos afetos, vinculariam leitura e performance. Enfim, não é difícil supor que comportamentos “nervosos” eram mais esperados de grupos sociais que estavam no topo da pirâmide social – pessoas que estavam mais afeitas a este tipo de afetação por conta da sua suposta constituição mais frágil, ao contrário da grande massa ao longo do século XVIII, exposta a doenças de outra ordem (a plebe não enlouquecia, morria de tifo). Assim como às mulheres eram atribuídos comportamentos resultantes desta constituição, os homens de alta extração deviam se adequar a esta forma de auto-representação social – corar, chorar, sorrir, desmaiar, emocionar: atitudes “nervosas” que resultam de sentimentos como o amor e a raiva, ou de sensações como dor e prazer, irrigam não apenas a vida das pessoas nestes círculos sociais, mas povoam os registros escritos da época, inclusive nas correspondências – este é o resultado esperado do “leitor criativo” normal, isto é, oriundo de categorias sociais superiores. Estes limites criativos estavam previstos na economia retórica do novo regime narrativo. E o mundo letrado português setecentista não estava imune à nova ordem: o autor da “Epístola a Critilo”, comumente aceito como Claudio Manuel da Costa, definitivamente um homem do seu tempo, fala sobre a sua Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 697-732.

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GNARUS - 30 reação ao ler o poema atribuído a Gonzaga:

“Dentro

em

minha

alma

Que diversas paixões, que afetos vários A um tempo se suscitam! Gelo, e tremo Umas vezes de horror, de mágoa e susto Outras vezes do riso apenas posso Resistir

aos

impulsos:

igualmente

Me sinto vacilar entre os combates Da raiva, e do prazer. Mas ah! que disse! Eu retrato a expressão, nem me subscrevo Ao sufrágio daquele, que assim pensa Alheio da razão, que me surpreende. Trata-se aqui da humanidade aflita (...)”33

Esta reação emocional – ou nervosa – é exatamente o que se espera de um personagem do porte de Claudio, bem educado, letrado, com sensibilidade poética e aliado de pessoas de alta posição social. As linhas de Claudio Manuel da Costa, e mesmo o restante das Cartas, devem também ser compreendidas dentro do contexto do que George Rousseau chamou de “nobilitação do comportamento nervoso”. É preciso alertar ainda que o recurso à epistolografia também está associado, desde os seus exemplos mais clássicos, a duas funções do discurso: advertir e emocionar (para lembrar de Paulo, o apóstolo, e de Ovídio). Quanto ao primeiro aspecto, sua dimensão moral, esta pode ser percebida na apresentação das Cartas Chilenas. Quando o seu autor adverte sobre a sua atitude satírica, ele não está dando à sua obra um caráter singular: ao contrário, está enfatizando, ao sobrepor o papel moderno da sátira ao missivismo literário, o seu caráter admoestador. A função de emocionar, por seu turno, já é um elemento forGONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 37-38.

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mador da escrita poética naquele momento, e é evidente, dentro do padrão retórico herdado do cânone clássico, que os fatos da vida cotidiana (“baixos”, portanto) só podem ser objeto de recriação poética ou literária por meio da sátira (uma epopeia jamais poderia contê-los, a não ser na forma de idílio – que, aliás, o próprio Gonzaga dominava, como ficou claro em seu Marília de Dirceu).34 Além disso, a escolha do formato de cartas apela para a proximidade com os possíveis leitores, como já se disse, dando a entender que os fatos narrados (poeticamente, satiricamente) encontram respaldo no mundo real, próximo a eles, sendo verdadeiros ou verossímeis. O formato é, em si, um apelo aos sentidos. Pode-se aduzir, portanto, que o uso deste tipo específico de escrita neste contexto tem relação com o regime narrativo do século XVIII. Este, por sua vez, tem como um elemento distintivo a descoberta e a valorização dos sentidos. Esta literatura (em sentido largo) epistolográfica, seja deliberadamente ficcional ou não (e, se não for muito arriscado dizer, seja em prosa ou em verso), cria um plano de realidade que está diretamente relacionado à consciência dos sentidos – este se constitui em marcador do seu regime narrativo. Não é à toa que esta modalidade de escritos (a epistolografia “ficcional” do século XVIII), dentro deste regime narrativo, confunde deliberadamente verdadeiro e falso. Geralmente divulgadas anonimamente ou sob pseudônimos (como fizeram Rousseau e Gonzaga, por razões diversas – um por reputação, outro por risco), as distintas compilações de cartas trazem em uma imitação de relatos verdadeiros os seus enredos em alguma medida inventados – por vezes colhiEmbora O Hissope, de Cruz e Silva, que circulou manuscrito desde 1768, seja uma sátira escrita em estilo épico – um poema heroico-cômico.

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GNARUS - 31 dos em situações efetivas, mas alterados ao gosto das mitologias poéticas ou literárias dentro das quais seus autores são formados; por outras, completamente inventados, mas sempre verossímeis, adequados às mitologias que supostamente formam o seu público-alvo. Talvez as Cartas de Olinda a Alzira, saídas sob o nome de Bocage, que entre outras coisas falam em enrubescimento, palpitação, hiperventilação, voz trêmula, calores, lábios inflamados, êxtase, “voluptuoso tato”, “lúgubres ideias”, “sentidos todos confundidos”, tudo atribuído a “prodígios” da incontornável e sábia natureza, que não mente, deem uma boa mostra desta nova forma de ver, sentir e comunicar o mundo (“Eu não coro de dar-me toda a Alcino, / Nem eu coro também de confessá-lo: / Instintos naturais se não são crimes, / Como crime será narrar seus gozos?...”).

preconizava o cânone erudito clássico. As Cartas Chilenas, embora poesia, embora sátira, também podem ser percebidas como uma atualização do mundo dentro do regime narrativo proto-romântico e aristocratizante de Tomás Antônio Gonzaga. Trata-se de alguém formado em um regime narrativo que vai se generalizar na intelligentsia ocidental naquele século, regime este que inclui determinados padrões afetivos e políticos – todos eles já dados pela sensibilidade narrativa (ou formados por uma mitologia) que não devia ser muito estranha àquilo que Rousseau dera vazão, e confrontados com a nova situação: o conflito com o governador (que, aliás, disputará sua amante), a dissolução da primazia do seu grupo político na Capitania de Minas Gerais, o desrespeito patrocinado por seu antagonista ao decoro do Antigo Regime.

Gonzaga, ao longo das Cartas Chilenas, usa as convenções retórico-narrativas próprias da escrita poética e da epistolografia dos sentidos para sensibilizar – e, assim, ganhar a simpatia de – um público bastante específico, que assim como ele estivesse desconfortável com a possível dissolução do mundo relativamente estável que conhecia ou defendia.35 Em outros termos, Tomás Antônio Gonzaga era todo sentimento.

As descrições em linguagem forte de reações físicas às emoções – enrubescimento, suor, boca seca, insônia, pernas que tremem, sejam por amor ou por ódio, por afeição ou por oposição política – que se espraiam pela sátira gonzagueana,36 potencializadas pelo formato epistolar, estão em conformidade com a destruição de um contexto pessoal e, principalmente, se adequam a um regime narrativo dentro do qual circulam os letrados da segunda metade do século XVIII e que ajudaria a conformar o que seria, naquela virada para o século XIX, uma sensibilidade moderna – ou, enfim, contemporânea.

O autor desta sátira, através do uso de um modelo de escrita (as epístolas) quer advertir (o que também assume, obviamente, como função básica do satirista) e apelar aos sentidos, tal como acontecia com esta modalidade literária no século XVIII e como Já na primeira carta, Critilo/Gonzaga dá uma pequena prova da sua proximidade com aquele contexto, ao narrar aflição causada por um cometa que, na ficção poética, anunciava a chegada do seu rival: “Aflito o coração no peito bate; / Eriça-se o cabelo, as pernas tremem, / O sangue se congela, e todo o corpo / Se cobre de suor. Tal foi o medo.” GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 58 35

Rodrigo Elias é professor da UniCarioca, das Faculdades Integradas Simonsen e mestre e doutor em História pela Universidade Federal Fluminense “Que é isso, Doroteu? Tu já retiras / Os olhos do papel? Tu já desmaias? / Já sentes as moções, que alheios males / Costumam infundir nas almas ternas?” GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. Introdução de Joaci Pereira Furtado. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 94. 36

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Artigo

DUAS FACES DA LÚXURIA: PROSTITUIÇÃO E ALCOVITAGEM NA BAIXA IDADE MÉDIA CASTELHANA Por Pâmela Viegas

RESUMO: Este artigo científico propõe o estudo da prostituição e da alcovitagem castelhana.Analisando a prostituição como prática marginal,porém não criminosa.Já a alcovitagem constituía um prática marginal e criminosa. Palavras Chaves: História, Idade Média, Prostituição, Alcovitagem

Introdução

O

presente trabalho tem por objetivo analisar a questão da prostituição e da alcovitagem na Baixa Idade Média em Castela.1 Contudo, im-

O termo “Idade Média” foi empregados pelo humanistas, a partir do século XIV. Os homens do Renascimento tinham a ideia que a Idade Média teria sido um período de escuridão. Intermediário entre a Antiguidade e a época em que viviam; época esta que teria renascido as artes, o culto das letras (LE GOFF, 2011, p.27). Os homens das luzes, do século XVIII irão intensificar essa “desvalorização” da Idade Média, pelo fator de que neste período reinava a ignorância religiosa e intelectual. Será Chateaubriand, Lessing, Victor Hugo e Balzac que deram uma reviravolta neste quadro, transformando a Idade das trevas na do Ouro. Le Goff diz que a Idade Média teria se estendido até o século XIX. O ensino e a pesquisa nos mostra que a Idade Média teria delimitado a construção do Império Romano, século V até o triunfo do humanismo, fim do século XV. Para ele isto é um monstro cronológico (LE GOFF, 2011, p.29). 1

porta ressaltar que a temática da prostituição e da alcovitagem neste período, nem sempre foi palco de interesse dos historiadores. Tal abordagem começou a ser mais largamente discutida a partir dos anos 60/70, quando a 3° geração da Escola dos Annales interessou-se por pesquisar os grupos/indivíduos que eram representados como marginais na sociedade medieval. Desde então muitos estudos dedicaram-se a tal temática. A prostituição nunca foi constituída um crime, embora sendo vista como algo impuro pela sociedade, era considerada algo necessário. Pois poderia proteger as “boas moças” da

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GNARUS - 33 violência masculina. Visto que estes poderiam procurar prostitutas para que satisfizessem suas necessidades sexuais; testando o homem assim, sua virilidade, antes de constituir matrimônio.

financiados com dinheiro do governo. Era dado a uma abbesse ou um administrador, que recrutavam e colocavam ordem nos prostibulum. Caso este(a) falecesse, o governo se incumbia de administrar a casa.

Neste artigo iremos analisar primeiramente a prostituição em âmbito geral, visto que esta se deu de forma “parecida” em toda a Europa Ocidental, mas neste estudo o foco será a região de Castela, sob o governo de Afonso X e, mais tarde, em finais do período medieval.

Os bordéis não eram uma casa fechada, as prostitutas que moravam nas ruas, que eram consideradas desonestas, podiam circular pelas tabernas ou em outros lugares, porém deveriam levar seus clientes aos bordéis, local em que eles festejavam e depois iam para os quartos.

A fim de realizar tal tarefa, utilizou-se como fontes primárias os documentos normativos de Afonso X, As Siete Partidas e material literário: La Celestina, de Fernando Rojas como forma de verificar através de diferentes olhares a realidade da prostituição e da alcovitagem castelhana.

Além dos bordéis públicos, havia as casas de banho. Muito embora fosse proibida a presença de prostitutas, estas iam para fins profissionais. Existiam regulamentos que estabeleciam dias e horas para mulheres e homens reservadamente frequentassem as casas de banho. Havia diversas camareiras, embora houvesse as salas de maquinas e cubas, os quartos eram numerosos, com camas suntuosas. Assim, as casas de banho eram lugares de prostituição, por servirem de locais de encontros e alcovitagem.

A prostituição na Idade Média Buscou-se analisar aqui a prostituição a partir das teorias, principalmente, de dois historiadores: Jacques Rossiaud (1991), com sua pesquisa sobre a França e Jeffrey Richards (1993), a partir de sua experiência de Europa Ocidental. Ambos os pesquisadores, apresentam uma discussão muito parecida, mostrando que a prostituição se deu em toda a Europa de forma equivalente. Rossiaud, (1991, p.20) observa que a prostituição se deu tanto nas cidades como no âmbito rural embora tenha sido na cidade que a Prostituição desabrochou. Lugar este de escolha da presente abordagem. A Prostituição em sua grande parte acontecia em prostibulum. Estes eram públicos,

Outro meio de prostituição eram pequenos bordéis privados, que eram dirigidos por uma alcoviteira. Estes bordéis eram na própria casa dessas intermediarias, lá elas tinham duas ou três mulheres que faziam a prostituição. Este será o objeto de análise deste estudo. E por último a prostituição por conta própria. Estas conseguiam seus clientes nas tabernas e nos mercados (ROUSSIAUD,1991). As mulheres entravam na prostituição por razões basicamente iguais, pobreza, perda de status, passado familiar perturbado, violência, incesto ou inclinação natural. A maioria dos clientes eram de jovens e não - casados. Nickie Roberts (1998, p.89-90) explica o

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GNARUS - 34 muitas prostitutas seguiram juntamente com os exércitos cristão para a Terra Santa, nas Cruzadas, afirmando que em 1189, soldados franceses se recusaram de partir viajem sem o navio de mulheres que haviam recrutado.

Iluminura medieval: Mulheres no inferno sistema feudal como sendo de advento da prostituição, muito embora o feudalismo fosse um sistema rural e este artigo discorra da prostituição urbana. Em meio ao sistema feudal, o servo que prestava serviços ao senhor poderia ter seu trabalho interrompido a qualquer momento, para servi-lo na ocasião de combates. Assim, estes teriam que migrar em busca de trabalho. Entre esses servos itinerantes, havia muitas mulheres, viúvas, filhas e esposas, que se submetiam à prostituição como meio de sobrevivência. Assim como os produtos eram vendidos em mercados rurais e feiras, a prostituição também. Algumas prostitutas serviam os peregrinos, viajantes pagadores de promessa, que precisavam de entretenimento. Havia também as prostitutas peregrinas, que vendiam sexo nas cidades onde passavam. Outras iam juntos com os exércitos e exerciam não somente a função de prostitutas, mas também de cozinheiras, enfermeiras e faxineiras. Estas eram consideradas essenciais e suas condições variavam de acordo com o soldado ao qual acompanhavam. Nickie Roberts (1998, p.92) afirma que

O governo determinava regras sanitárias, religiosas e de vestimentas. Na época de epidemias como a peste, os prostibulum eram fechados. Era proibido realizar eventos escandalosos na Semana Santa e no Natal. As prostitutas não deveriam vestir-se de forma luxuosa, para não incitar as “moças puras” e pobres a perdição. Contudo, essas determinações não eram obedecidas. Por isso, impôs-se o controle da prostituição através dos prostibulum público. Richards (1993, p.121), trata das zonas conhecidas como da Luz Vermelha. Ele diz da rua da Rosa, onde toda a cidade Medieval possuia uma. Eram nessas zonas onde ocorria a prostituição. A sociedade medieval aceitava que homens buscassem prostitutas para divertir-se. Era um meio dos jovens afirmassem sua masculinidade. Richards (1993, p.122) diz que a partir dos dezesseis/dezoito anos os jovens do sexo masculino podiam frequentar bordéis. Muito embora fosse proibido a entrada de judeus, leprosos, homens casados e clérigos nos bordéis, estes os frequentavam esporadicamente. De acordo com Jacques Rossiaud (apud RICHARDS,1993, p.123), 20% dos que frequentavam os bordéis privados e as casas de banho eram membros do clero. Embora a Igreja tolerasse em parte a prática da prostituição, alguns dos meios adotados com os leprosos eram usados com as prostitutas. Elas deveriam ser diferenciadas do res-

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GNARUS - 35 tante da população, através das vestimentas, bem como não viver nas cidades, devendo ser colocadas a parte, assim como os leprosos. Com o crescimento das cidades, a prostituição passa a ser vista como um fenômeno social, que precisava de regulamentação. A Igreja via a prostituição como um mal necessário, segundo Agostinho, pois a prostituição poderia manter os padrões sexuais e sociais estáveis. A Igreja estimulava a regeneração das prostitutas. Era oferecido a remissão dos pecados a quem se casasse com uma prostituta. Muitas casas religiosas foram criadas, para receber as prostitutas regeneradas. Os bordéis ainda assim, eram vistos como perigosos para a ordem pública. Em Londres foi constituído um toque de recolher, em 1393, proibindo que qualquer homem circulasse pela cidade depois das nove da noite, e que nenhum estrangeiro pudesse circular depois das oito da noite (podendo ser multado ou preso), ou ainda que ninguém poderia andar mascarado. As prostitutas ocupavam um lugar seme-

lhante aos judeus e leprosos. Os três deveriam usar uma roupa que os especificasse, eram segregados e todos os três poderiam arrepende-se e regenera-se. Eram igualmente tolerados, pois desempenhavam uma função necessária. No caso dos judeus e das prostitutas, os judeus praticavam a usura e as prostitutas o sexo. Ambos necessários, contudo, abomináveis. Ainda que tenha havido evidências que mostram que as prostitutas, tinham tido uma melhoria na posição legal, o historiador Otis (apud, RICHARDS, 1993 p.134), encontrou exemplos de prostitutas que foram levadas como testemunhas e até levando acusações aos tribunais. Algumas fizeram testamentos e se casaram, as penas se abrandaram a quem desrespeitasse os estatutos municipais. Nos séculos XIII, eram açoitadas e perdiam as roupas, nos séculos XIV e XV eram multadas. Rossiaud (apud.RICHARDS,1993 p.134) explica que essa mudança se dá por uma mudança de atitude em relação às prostitutas, sendo elas mais integradas à sociedade. As monarquias da Europa Ocidental interessaram-se em regulamentar a prostituição,

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GNARUS - 36 com o intuito de ter mais responsabilidades pelas vidas dos súditos. Eram criados bordéis para a satisfação sexual, mas que não ofendessem a decência pública e manutenção da ordem. O primeiro rei a regulamentar um bordel foi Henrique III da Inglaterra. Algumas regras que foram estabelecidas a que mulheres grávidas, casadas ou freiras não podiam ser aceitas como prostitutas. A prostituta não deveria aceitar dinheiro sem ter se deitado com um homem por toda a noite, nem morar no mesmo local em que oferecia seus serviços. O rei Luís IX, da França, também se preocupou com a prostituição. Tentando elimina-la, pois acreditava que era seu dever moralizar o reino, ele ordenou que todas as prostitutas públicas fossem expulsas das cidades e dos arredores rurais. Ordenou que fosse confiscada qualquer casa que alugasse um quarto a uma prostituta, contudo, isto não ocorreu na prática. O que fez com que em 1256, Luís fizesse algumas modificações. Ordenou que as prostitutas ficassem somente fora dos muros e longe de lugares sagrados. Já em 1269, voltou a questão, e véspera antes de partir para as Cruzadas, como forma de purificação do reino, ordenou que todos os bordéis fossem fechados, isto também valia para os bordéis de fora da cidade. Prometeu pensão as prostitutas que se regenerassem e fundou retiros para as regeneradas. Muito embora, apenas duzentas haviam se apresentado para pedir a pensão. Filipe III (1270-85) e Luís Filipe IV (12851314), também tomaram iniciativas para limitar a prostituição. Depois ficou por quase um século sem haver mais iniciativas. Richards (1993, p.127), atribui este intervalo das tentativas de eliminar com a prostituição, a Guerra

dos Cem Anos, pois os reis estavam ocupados. Carlos V(1364-80), em 1367, foi quem voltou a limitar a prostituição. Era determinado ruas para que elas circulassem e, se fossem encontradas em outras ruas, seriam banidas. Assim como as monarquias, as municipalidades também tentaram manter a moralidade pública. No decorrer da Idade Média, a prostituição foi fundamente a mesma. As autoridades tentando regulamenta-la, apesar dos limites impostos a sua prática, oscilando assim entre períodos de maior e menor tolerância. Em 1417, foi ordenado o fechamento de todos os bordéis da cidade. Sobe o precedente de que causava perturbação, assassinatos, furtos, entre outros prejuízos. O rei Henrique VI, em 1460, ordenou que todas as prostitutas em Southwark, fossem removidas para a prisão, junto com seus cúmplices. Isto devido ao alto número de homicídios e saques que ali ocorriam. A coroa procurava manter a segregação, com o objetivo de criar um local de ordem, que de forma eficiente satisfizesse o ato sexual.

A prostituição como elemento marginal A prostituição também foi analisada pela historiografia como um elemento marginal diante de uma sociedade cristã medieval. Jean-Claude Schmitt (apud GONÇALVES, 2010, p.27) ressalta a dificuldade em tratar sobre a marginalidade. Segundo Schmitt, a condição marginal poderia ser temporária, podendo perder o status de marginal. As autoridades regias e eclesiásticas eram quem qualificavam os indivíduos como um tal.

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GNARUS - 37 Bronislaw Geremek, (apud GONÇALVES, 2010, p.28) diz que a condição de marginal era dada àqueles que se encontravam dessimetria com a sociedade. Sendo por conta de não estarem de acordo com o estatuto social, ou condição material, ou mesmo formação profissional ou por não participarem do processo de produção, por não participarem de uma célula familiar ou não obtiverem uma moradia fixa. Por não estarem de acordo com as normas de comportamento impostas pela sociedade em que situasse. Muito embora, não significava que estariam excluídos aqueles que não acatassem as regras da sociedade.

Alcovitagem em Castela pelo olhar de Fernando Rojas

Muitos indivíduos que eram inseridos na sociedade, seguiam seus pleitos e em um dado momento rompiam com as estruturas e ficando as margens da sociedade. No medievo eram constantes as alterações do marginal/ criminoso e criminoso/marginal, que moviam o espaço de inclusão e exclusão. Como mencionado antes a prostituição não configurava um crime, contudo explorá-la sim. Este era o caso da alcoviteiras e rufiões.

Celestina, uma típica alcoviteira, que usava de suas artimanhas para convencer Melibéia, uma moça de família abastada, muito bela e pura, que por sua beleza faz Calisto apaixonar-se. Calisto, moço belo, de posses, o que vai fomentar Celestina a ajudá-lo a conquistar Melibéia.

Geremek (2004, p. 243 -244) ao falar sobre a prostituição, diz que sob o ponto de vista moral e cultural cristã, não era aceito ou visto como algo suspeito. A prostituição está na lista de profissões em que eram inconciliáveis. Impedindo o acesso à carreira eclesiástica e, em algumas cidades, era proibido ocupar cargos cívicos. Contudo, o tipo de vida tinha uma importância capital. A marginalização dependia da situação econômica. Os que possuíam bens, mesmo exercendo atividades marginais, não eram marginalizados. A Igreja usava a ideia de restituição e do purgatório. Assim dando a possibilidade de salvação da alma e uma posição na sociedade.

Segundo Rossiaud (1991, p.39), a alcovitagem vem a ser uma atividade realizada por mulheres, visto que dos 83 bordeis privados de Dijon, 75 eram comandados por mulheres. Apesar da existência de homens neste tipo de atividade, a maioria era exercida por mulheres, ou seja, pelas alcoviteiras. A literatura nos mostra a alcoviteira como uma velha, feiosa, onde a alma depravada é correspondida com às suas feições. Esta descrição da alcoviteira é vista em La Celestina de Fernando Rojas.2

De início, Melibéia não corresponde ao amor de Calisto, o que o faz ficar louco de amores por ela. No desenrolar da história, o servo de Calisto, Semprônio, oferece ao seu amo buscar ajuda de Celestina, mesmo Parmeno, um outro servo de Calisto, dizendo que era para ele não confiar em Celestina, pois está era uma feiticeira, alcoviteira e muitos outros ofícios que não eram bem vistos.3 Fernando Rojas nasceu no povoado de Montalban, hoje município da Espanha, na província de Toledo. Residiu em Talavera de La Reina. Era um alcaide. Não sabe-se a data de seu nascimento, mas há evidencias que em 1538 ainda vivia, 40 anos depois de escrever La Celestina, obra que escreveu em sua juventude. Esta foi escrita nos fins do século XV, num momento de plenitude da sociedade espanhola, sob o governo de reis católicos. La Celestina seria hoje a obra literária que ocuparia o primeiro lugar, entre as espanholas, se não fosse por Quixote. 3 Tem esta boa senhora, perto do curtume, à margem do rio, uma casa afastada, meio caída, pouco composta e menos abastecida. Ela praticava seis ofícios: bordadeira, perfumista, mestra em confeccionar adornos e virgindades, alcoviteira e um pouquinho de feiticeira 2

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GNARUS - 38 Celestina em troca do dinheiro de Calisto, vai até a casa de Melibéia a convencer de dá uma chance a Calisto. Por fim, Melibéia é convencida por Celestina e se entrega ao amor de Calisto. Celestina é morta pelos servos de Calisto, Parmeno e Semprônio, que exigem que ela dívida com eles o que seu amo havia pago a ela. Como Celestina se recusou a dividir o pagamento, os dois servos a matam e acabam sendo presos e mortos em praça pública. Por uma fatalidade Calisto morre e Melibéia, louca de paixão se mata, para assim ficar próximo ao seu amado. Rossiaud (1991, p.39) afirma que havia vários graus na profissão de alcoviteira. Umas se limitavam a organizar encontros amorosos, outras fornecem moças, algumas possuem abertamente um bordel em sua residência. Outras trabalham para pessoas de status elevado, fornecendo moças que são enganadas por elas, para governadores, autoridades; enfim homens que ocupavam altos cargos administrativos.

Castela de Afonso X e as Siete Partidas Em 1252 morre o rei de Castela e Leão Fernando III, no mesmo ano assume o trono o primogênito de Fernando III, Afonso. É denominado de Afonso X, mais tarde conhecido como o Sábio. O reino de Castela e Leão estava estável no que tange as condições financeiras e sociais (MORAIS, 2010, p.12). A situação na Península era extremamente delicada, por conta da convivência de cristãos e mulçumanos. Que era composta de momentos pacíficos e violentos, o que não foi diferente no reinando de Afonso X (MORAIS, 2010, p.12). Na historiografia atual, acredita-se que a legislação afonsina tenha sido um esforço para combater a dissipação das regras, que pode-

Eram ardilosas, persuasivas, acolhem as vítimas de agressões, resgatam mulheres oprimidas pelo casamento, ou mesmo moças pobres, que haviam sido “abandonadas”. Muitas vezes essas alcoviteiras não trabalhavam sozinhas, tinham um marido que ajudavam a dirigir seu comércio. Enquanto a Prostituição era vista como algo necessário a sociedade, isto dito pelo próprio São Tomás de Aquino (apud, ROBERTS,1998, p.100): “a prostituição nas cidades é como a fossa no palácio: tire a fossa e o palácio vai se tornar um lugar sujo e malcheiroso.”

(ROJAS,1988, p.17).

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Capa das Siete Partidas. Exemplar de 1555


GNARUS - 39 riam ser ocasionadas pela multiplicidade que cada localidade obtinha sua regulamentação jurídica (LIMA, 2010, p.88). Segundo Maria Dolores Madrid Cruz (apud LIMA, 2010, p.88), o objetivo da legislação afonsina era haver uma unidade jurídica, onde todos os territórios pudessem ser regidos por um único direito, isso fortaleceriam os poderes do rei, frente aos poderes das cidades (apud LIMA, 2010, p.88). Seguindo a tese de Garcia Gallo (apud LIMA, 2010, p.89), o Especulo foi o texto base para a criação das legislações. Este que foi sendo concebido entre os anos 1255 e 1260 na corte afonsina. O autor diz que a obra foi redigida no ano de 1258 e foi sancionada por volta de 1260.Há indícios que em 1265 foi finalizada a sua segunda versão, onde seu título foi modificado para Libro Del Fuero de las Leyes.4 A alcovitagem era vista com maus olhos. Esta, pela Lei das Siete Partidas, Del Rey Alfonso El Sabio/Título XXII, era considerada crime e associada ao pecado da luxuria. CaNa primeira e na segunda revisão houve pequenas mudanças, somente com o neto de Afonso X, Fernando IV é que houve uma grande revisão. O texto foi revisado por juristas da corte monárquica que tinham grande formação filosófica. Na terceira redação a obra ganha um caráter didático-doutrinário ainda mais acentuado, onde foi incorporado um direito romano-canônico. Foi nesta edição que o livro passou a ser chamado de Libro De Las Leyes ou Partidas, sendo dividido em sete seções. Em 1325 houve uma outra mudança, onde o texto seria modificado significativamente. Onde havia sido intercalado e acrescido. Em 1340 houve uma quinta revisão, esta menos importante para Garcia Gallo. Houve uma modificação na introdução, onde a obra é datada entre 1256 e 1263. O Especulo foi usado por Afonso X como Fuero, era aplicada nos assuntos relacionados a corte real. De início foi um código criado para nível local. Em 1272, as cidade e vilas deixaram de usar a obra. Somente sendo usada para pleitos encaminhados ao rei. Após a morte de Afonso X, esta obra foi reelaborada, onde foi acentuado o seu caráter doutrinário, já que não tinha a força de uma lei. A partir daí que esta obra tornou-se o que conhecemos como a primeira partida.

racteriza-se cinco maneiras de alcovitagem: a primeira seria as que possuem um bordel e que usa as moças para ganhar dinheiro, fazendo-as venderem seus corpos. A segunda seriam as que a vão a casa de uma mulher a mando de um homem, ganhando algo para fazer isto. A terceira seria as que usam suas próprias casas para abrigar moças e usarem delas para ganhar dinheiro, fazendo maldades com seus corpos. A quarta seria quando o homem alcovita sua própria mulher. A quinta é quando a alcoviteira deixa com que uma mulher casada ou outras boas moças se encontre com homens em sua casa, em troca de algo que possa receber. Segundo a Lei das Siete Partidas, estas mulheres causam grandes danos, tornando muitas mulheres boas em más. A Lei também se refere que quando for provado a alcovitagem, a mulher deve ser punida. Expulsando das cidades, tirando as casas daqueles que a alugarem sabendo que será um bordel, assim como pagar dez libras de ouro. Sendo assim não somente a alcoviteira era punida, mas também aqueles que facilitassem seus trabalhos.

4

Considerações finais Neste trabalho abordamos o exercício da prostituição e da alcovitagem. Pode-se inquirir que a prostituição era um ato marginal, mas não criminoso, diferente da alcovitagem, que era uma realidade marginal e criminosa. Aqui salientou-se que a Igreja em parte, era tolerante para com a prostituição, bem como as monarquias. Contudo, havia um forte controle desta atividade, vez a moralidade, os bons costumes e a ordem social devia ser mantida. Através do olhar literário de Fernando Rojas e dos atos normativos de Alfonso X,

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GNARUS - 40 observou-se a realidade da prostituição e da alcovitagem em Castela em finais da Idade Média, sendo esta última prática considerada criminosa, sendo passível de punição a quem a exercesse. Rojas evidenciou em La Celestina, a alcoviteira como uma velha, astuta, feiticeira, sagaz, o quanto pode-se imaginar de maldades. Alfonso X salientou em as Siete Partidas a alcovitagem como um crime. Concluímos que a prostituição era tolerada, muito embora fosse mal vista, porém a alcovitagem era um contra censo. Cumprimos todos os objetivos aos quais foram propostos, uma vez que o fito era demonstrar a prostituição e a alcovitagem em Castela, focando na análise da alcovitagem como prática criminosa, apesar de sua frequência na realidade cotidiana medieval. Pâmela Viegas De Andrade Ferreira é licenciada em História pela Universidade Cândido Mendes

Obras Consultadas GEREMEK, Bronislaw. O Marginal. In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença,1990. GONÇALVES, Beatris dos Santos. Os Marginais e o Rei. A construção de uma Estratégica relação de poder em fins da Idade Média portuguesa. Tese (Doutorado) em História. Instituto de Filosofia e História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010. LIMA, M. P. O gênero do Adultério no discurso jurídico do governo de Afonso X (1252 – 1284). Tese (Doutorado) em História. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010. MORAIS, Natara Elisa Aguiar. O Escárnio de Afonso X. Os sentimentos de um rei nas cantigas medievais. Monografia em História. Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2010. ROBERTS, Nickie. As Prostitutas na História. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,1998. ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio De Janeiro: Paz e Terra,1991.

Referências Bibliográficas

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação. As Minorias Da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge

Fontes primárias

Zahar Ed.,1993.

ALFONSO X. Siete Partidas. Por la Academia de la Historia.1807.Disponível em: http:// b i b . c e r v a n t e s v i r t u a l . c o m / s e r v l e t / S i r v e Obras/89148404329025032610457/ima0674.html. Acesso em 28 de out de 2013. ROJAS, Fernando. A Celestina. Tradução Walmir Ayala, a partir da adaptação de Luís Escobar e Humberto de La Ossa. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1988.

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Artigo

A ESCRITA CONTISTA COMO ESCRITA DE SI EM MAURA LOPES CANÇADO Por Edivaldo Rafael de Souza

RESUMO: Utilizando-se da análise de alguns contos de Maura Lopes Cançado, o presente artigo traz os resultados de uma pesquisa referente à escrita de si presente na produção da escritora mineira. Espera-se que este trabalho possa servir de referência para pesquisadores que analisam a obra da autora, uma vez que este breve estudo identifica muitas rememorações e reminiscências que Maura Lopes Cançado incorpora a sua escrita contista, havendo, por meio das muitas descrições, a possibilidade de saber um pouco mais da relação da escritora com a família. Palavras Chaves: Maura Lopes Cançado; escrita de si; o sofredor do ver

Considerações iniciais

A

presente pesquisa sobre a escrita contista como escrita de si em Maura Lopes Cançado (1929-1993)1 buscou analisar de forma aprofundada alguns contos da autora em questão, já que quem lê fragmentos de sua obra se depara, certas vezes, com uma produção que trabalha de forma dialógica entre a vida A pesquisadora Solange Cordeiro em sua dissertação de mestrado intitulada, Discurso e escrita de si na obra Hospício é Deus de Maura Lopes Cançado trabalhou essa temática utilizando-se de um livro da escritora. A pesquisa aqui apresentada, por sua vez, analisa os contos da autora, que também trazem essa forma de escrita, porém, de uma forma mais romantizada. 1

privada da autora e a sua escrita. Com isso, a redundância de tais fatos promove algumas rememorações da trajetória de vida da escritora, bem como evidencia a descrição de alguns personagens que se parecem com aqueles com quem ela se deparou durante a sua vivência. Para a elaboração do trabalho em questão, foram analisados quatro contos que Maura Lopes Cançado publicou no Jornal do Brasil,2 Maura Lopes Cançado trabalhou e publicou os seus contos no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), durante a década de 1960 e 1970. Nesse período, conviveu com renomados escritores como Ferreira Gullar (1930-2016), Reynaldo Jardim (1926-2011), dentre outros.

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GNARUS - 42 a saber: Espiral Ascendente, No Quadrado de Joana, O rosto e Rosa recuada.3 É crucial destacar que levar em consideração a dualidade entre história e ficção na escrita de Maura Lopes Cançado é fator imprescindível, o que não impede, todavia, que haja uma análise e compreensão da escrita contista da escritora.

Os contos recontando uma vida: o eu - confessor como personagem principal Em 1958, Maura Lopes Cançado publicou o seu primeiro conto no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil intitulado “No quadrado de Joana”. Já nesse primeiro momento é possível identificar que a vida particular da autora estava presente também em sua escrita literária. A personagem principal do referido conto, Joana, é descrita como uma pessoa que sofre de esquizofrenia catatônica, ou seja, possui problemas mentais. Dessa forma, é sabido que Maura Lopes Cançado desde os seus sete anos de idade conviveu com algum tipo de distúrbio. Ressalte-se que um dos rótulos4 que a escritora carregava de hospício em hospício era justamente o de esquizofrênica. Em umas das passagens do seu livro diário chamado de “Hospício é Deus – Diário I (1965),5 a própria escritora discorre sobre esEsses quatro contos encontram-se inseridos em seu livro: O sofredor do ver (1968). Além desses, há mais nove contos na coletânea. 4 No período em que Maura Lopes Cançado esteve internada em hospitais psiquiátricos, foi diagnosticada por vários médicos diferentes, os quais, a cada nova avaliação, conferiam a ela uma nova doença mental. Os rótulos colocados pelos médicos nos doentes e internos acabavam trazendo maior dificuldade de tratamento para estes, além de os deixarem estigmatizados perante a sociedade. 5 O diário de Maura Lopes Cançado foi escrito no final de 1959 e início de 1960, porém só foi publicado em 1965, por José Álvaro editor. 3

ses tais rótulos, fazendo uma analogia a malas de viagem: “Terminarei pela vida como essas malas, cujos viajantes visitam vários países e em cada hotel por onde passam lhes pregam uma etiqueta: Paris, Roma, Berlim, Oklahoma. E eu: PP,6 Paranóia, Esquizofrenia, Epilepsia, Psicose Maníaco-Depressiva, etc”.7 Vale destacar que o conto “No quadrado de Joana” foi escrito um ano antes de Maura escrever o seu diário dentro de instituições para tratamento mental. Assim, pode-se entender que realmente havia uma escrita dualística da autora entre ficção e realidade. No conto “Espiral ascendente”, apesar da escritora não revelar que está narrando fatos sobre a sua vida, ela evidencia que tudo o que está se passando no conto ocorre dentro de um hospital psiquiátrico, uma vez que são muitas as cenas que trazem como tema o tratamento recebido dentro de tais instituições. Em uma dessas passagens ela escreve “- Meus braços doem. Tanta injeção”.8 Já em outro momento a escritora diz “estou só. Creio que me deram cicuta. Sinto dormência nos membros inferiores”.9 Toda a constância em descrever cenas comuns em hospícios pode levar a crer que as passagens por essas instituições não saíam da cabeça da autora. Assim, por meio de sua obra, Maura sempre relembrava as situações as quais fora submetida. Em exercício de análise do conto supracitado, percebe-se que a experiência que ela teve nos hospícios interferia diretamente tanto na sua escrita quanto na sua vida fora dessas casas para doentes mentais. É como se Maura ficasse sempre recordando as vivências nos hospitais psiquiátricos e não conseguisse se desvincular de tudo que acontecera por trás PP: Personalidade Psicótica. CANÇADO, 1979, p. 44. 8 CANÇADO, 2015, p. 12. 9 Opus citatum. 6 7

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GNARUS - 43 Sabe-se que desde quando a escritora foi embora de São Gonçalo do Abaeté – MG, sua terra natal, ela havia ficado longe do filho; primeiramente ela se mudou para Belo Horizonte e posteriormente para o Rio de Janeiro. Em seu livro Hospício é Deus – Diário I, ela também se recorda desse fato quando morava em Belo Horizonte. De acordo com Cançado (1979, p. 71), “escrevia sempre para casa, mandava ricos presentes para o meu filho, maneira falsa de estar em paz com ele.” Em relação à escrita de si, de acordo com Araújo: MAURA LOPES CANÇADO

[o]s próprios termos utilizados se embaralham: autobiografia, escrita de si, memórias, diários, escrita íntima, escrita confessional. Mas, de modo geral, e no que interessa a este trabalho, todos eles possuem a marca comum da afirmação pessoal: um eu que se revela no texto, procurando, ao menos em tese, ser sincero (ou parecer sincero), tentando, pela introspecção, justificar sua subjetividade, sua individualidade, tanto para si como para o outro.12

dos muros das instituições em que esteve internada. Em outra passagem, Maura escreve: “Não dormi, entretanto, fui acordada pelos meus próprios gritos. Minha cabeça. As ideias chegam, interrompidas, duras. Não conheço este quarto. Quarto - forte?”.10 No conto intitulado “O rosto” pode-se dizer que é onde a escrita de Maura Lopes Cançado mais se aproxima de sua vivência, visto que ela escreve como se fosse o seu filho Cesarion Cançado Praxedes (1945-2003), narrando a sua vida. Além disso, são relatados episódios que envolveram não só mãe e filho, mas também outros integrantes de sua família. O conto começa retratando o período em que a autora encontrava-se morando no Rio de Janeiro e seu filho na fazenda com sua avó. Durante essa época, o conto traz que Cesarion ficava sempre esperando o retorno de Maura, “- Guardava-lhe um presente. Ela não veio. Continuou esperando, guardando o presente. Dois anos de espera, de interrogações, de descobertas”.11 10 11

Idem Ibid., p. 97

Passado algum tempo de afastamento entre Maura Lopes Cançado e seu filho, ele foi levado para visitá-la em sua casa, no Rio de Janeiro. Ainda no conto “O rosto”, a escritora cita várias lembranças desse período, inclusive. Assim, muitos desses momentos vividos são descritos. Em relação à viagem, temos da autora a seguinte passagem: “Ela nunca esteve muito tempo junto dele. Uma vez foi ao Rio com mamãe e uma tia solteira para visitá-la, tinha sete anos. Ela saíra de um sanatório para nervosos, parecia estar bem, e mamãe voltou com a tia, deixando-os juntos. Moraram no Hotel Glória, uma beleza, ela contratou uma governanta francesa para atormentá-lo. Davam-se muito bem, ela e a velha mademoiselle.”13 12 13

ARAÚJO, 2011, p. 12. CANÇADO, 2015, p. 99.

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GNARUS - 44 Em outro fragmento do conto, expõese que o fato de uma amiga levar Cesarion para passear na praia era bastante comemorado por ele, já que Maura “Quase nunca ia, parecendo-lhe preocupada, ansiosa. Naquele tempo via-a como a uma estrangeira ”.14 Os momentos de ostentação na cidade carioca, principalmente os que dizem respeito a sua hospedagem em um hotel de luxo se explicam, segundo Meireles,15 pelo fato de que a escritora se envolveu em um relacionamento com um homem de grande poder aquisitivo que bancava algumas de suas despesas. Depois de um período na cidade carioca, Cesarion retorna ao interior de Minas Gerais para casa da família de Maura. Sobre tal momento ela escreve que ele “de repente viu-se embarcando num avião para sua terra. Sozinho. Ela chorava muito. Mais tarde foi buscá -lo. Novamente voltou sozinho. De qualquer forma sentia-se importante: viagens”.16 Em relação a forma de narrar o conto, pode-se levar em consideração que “(...), a escrita de si pressupõe que a vida de alguém só ganha sentido, só se realiza quando adquire um caráter narrativo”. 17 Posteriormente, no conto é descrito que a escritora decidiu visitar a família em Minas Gerais. “Meses depois ela chegou. Veio para casa. Foi um período feliz. Via-a preguiçosa, falando e rindo ao telefone, só acordando ao O termo estrangeira, na compreensão de Maura Lopes Cançado, pode ser interpretado como algo além de seu significado formal, pois na primeira página de seu livro Hospício é Deus – Diário I (1965), que foi escrito no mesmo ano do conto, a autora o utiliza como se referindo a alguém que vinha de um lugar de nome Estranja. Ou seja, um local fictício, mas que servia para a escritora imaginar e falar sobre pessoas que vinham de fora de sua terra natal. (Opus citatum) 15 MEIRELES, 2015, p. 118. 16 CANÇADO, 2015, p. 100. 17 ARAÚJO, 2011, p. 34. 14

meio-dia para o almoço. Depois brincavam”.18 Analisando-se tal passagem, é possível verificar muitas cenas detalhadas em que o filho de Maura pôde usufruir da companhia materna durante a estadia da escritora na casa da avó de Cesarion. Tem-se como exemplo os momentos em que Maura tinha visitas. “Ela tinha uma xícara na mão. Ignorando todos tirava-lhe com imprudência a xícara, sentavase em seu colo (...)”.19 Ou então, nesse trecho que descreve que “Ele brincava com a avó, a quem chamava mamãe (...)”.20 Durante o conto de nome “O rosto” chama a atenção à narração de fatos em que a mãe de Maura, Afonsina Álvares da Silva (18931970),21 também participou. No livro Hospício é Deus – Diário I, a autora fala pouco sobre a sua mãe, dando mais destaque ao pai José Lopes Cançado (1877-1945).22 De acordo com esse aspecto, ao tecer o conto a escritora rememora um pouco sobre cenas acontecidas em que estavam ela, o seu filho e sua mãe. Segundo Cordeiro23 a escritora descreve “o seu entendimento acerca do mundo e da sua realidade, esta sendo expressa através de discursos sobre si e sobre o universo do qual ela fazia parte.” Na narrativa do conto, entretanto, nem tudo era só alegria, havia também passagens de sentimentos tristes. “Diziam também que mamãe não era mais rica.24 Sentiu-se ameaçaCANÇADO, 2015, p. 100. Opus citatum. 20 Ibid., p. 101. 21 No livro Hospício é Deus – Diário I, também é retratado um pouco sobre Afonsina; Dona Santa, como era conhecida a mãe de Maura Lopes Cançado. Porém, em relação ao seu pai, as lembranças são bem mais detalhadas. 22 As memórias em que a escritora descreve sobre seu pai no livro são principalmente do comportamento de José Lopes Cançado, uma vez que ele era muito conhecido nas redondezas, sendo um temido e rico coronel, o coronel Zeca Lopes. 23 CORDEIRO, 2014 p. 26. 24 Depois da morte do pai José Lopes Cançado a família 18 19

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GNARUS - 45 do. Percebeu muita injustiça, sofreu”.25 Passado um tempo, “[e]la foi embora. Rio. Ele não chorou. Invejou-a, pensando nos dias claros de Hotel Glória. Ninguém podia ser infeliz numa cidade tão bonita, pensava. Ali, ele já nada mais podia fazer para ajudá-la. À tarde sentiu sua falta. Nada disse”.26 Há que se estar consciente de que “falar de si é, (...), algo fugidio, sinuoso, abrangente demais para ser reduzido à linguagem que, ao mesmo tempo em que revela, esconde.27 Dessa forma, há um processo de escolhas daquilo que será retratado na escrita. Assim, de acordo com Epprecht,28 Foucault “[c]entrava no corpo a relação da escrita de si com o processo de conhecimento. Ele lembra que tal escrita era forma de seleção do que foi lido e visto, enfim, experienciado, para assim evitar uma dispersão; trata-se do momento do retorno a si para elaboração do que lhe afetou”. Ao analisar tal forma de escrever, Foucault ainda revela que “[o] próprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em sangue” (FOUCAULT apud OLIVEIRA, 2015, p. 66). Visto isso, quando se analisa a escrita de si de Maura Lopes Cançado, logo se identifica diferentes possibilidades e olhares sobre a própria vida da autora,uma vez que esta emerge fatos e rememorações do seu passado e tenta narrar àquilo que lhe convêm, trazendo um alto grau de subjetividade para o texto; a dividiu a herança. Maura rapidamente se mudou para Belo Horizonte, lá gastou boa parte de seu dinheiro. Já no Rio de Janeiro, após um período, ela acabou encontrando-se em grave crise financeira, sendo, inclusive, ajudada por colegas escritores. 25 CANÇADO, 2015, p. 102. 26 Ibid., p. 103. 27 ARAÚJO, 2011, p. 21. 28 EPPRECHT, 2012, p. 10.

abordagem da escrita de Maura é característica fundamental a partir do momento em que se compõe numa mescla entre o verdadeiro e o fictício, sendo necessária uma análise detalhada não só dos contos, mas também de outras fontes de pesquisa. Maura Lopes Cançado ao desenvolver a escrita do conto a partir da perspectiva do seu filho, também discorre sobre comentários que algumas pessoas do interior do estado de Minas Gerais faziam em relação a ela, como se estas tentassem colocar para o menino que a sua mãe o havia abandonado e que ela sempre foi uma pessoa descompromissada, tanto em relação à família quanto em relação a sua própria vida. Tais acontecimentos na obra em análise causavam muita tristeza em Cesarion. Entende-se, assim, que toda a angústia e o sofrimento eram interpretados pela escritora como sendo algo que realmente ocorresse

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GNARUS - 46 com seu filho, já que a distância causava muita dolência na criança em relação às falas que supostamente eram dirigidas a ele. No conto, alguém disse ao seu filho

[a] escrita de si oferece (...), uma visão do real e sacia a curiosidade de um leitor ávido por bisbilhotar a vida do autor. Mas a estratégia encerra uma crítica: afinal, ao sugerir ao leitor que trata-se, enfim, de uma história real, pessoal do autor, o jogo de nomes, questionado no mesmo instante em que se estabelece, critica essa mesma curiosidade, porque não a mitiga de vez. O que resta, sempre, como se viu, é a impossibilidade de aferição de que se trata da verdade, porque a dúvida

“[n]em sua mãe te quer mais. Pensa, eu conheço ela desde menina, quando casou com seu pai, um aviador sem juízo. Ela também não tem não. Ajudou a esbanjar a fortuna do seu avô, homem direito. Onde se viu moça comprar avião,29 e voar o dia todo sozi-

permanece sempre entre o é e o não é.32

nha por aí, vestida de homem?”30

O fato de carregar o estigma de ser louca pode ter contribuído para que algumas pessoas que conviveram com ela no período da sua infância e adolescência não entendessem o seu modo de agir. Além disso, a escritora sempre teve que enfrentar sérios fatores sociais perante a comunidade na qual viveu durante essa época: um deles envolve diretamente o seu filho, pois assim que se separou de Jair de Almeida Praxedes, a escritora voltou a morar com os pais, e isso causava certo desconforto em alguns de seus conterrâneos. Dessa forma, “O comportamento social das pessoas gerava dolência na escritora, pois ela desviava-se de todas as imposições de uma sociedade extremamente rígida em torno dos costumes familiares e sociais”.31 Vale ressaltar que quando se analisa a forma de escrita que trata sobre si mesmo ou sobre pessoas que fazem parte do cotidiano de quem narra, principalmente em escritas literárias, como crônicas e contos, Aos 15 anos de idade a escritora aprendeu a pilotar aviões em um aeroclube na cidade de Bom Despacho – MG; logo após, ganhou uma pequena aeronave de sua família, na qual percorria toda região de São Gonçalo do Abaeté - MG, sobrevoando até cidades vizinhas, como Patos de Minas – MG. Em um trecho de seu livro Maura descreve que usava um macacão e boné durante as aulas no campo de aviação. Para saber mais sobre a infância e a adolescência da autora, Ver: SOUZA; SANTOS, 2017. 30 CANÇADO, 2015, p. 104. 31 SOUZA, 2017, p. 91.

No conto “Rosa recuada” Maura Lopes Cançado escreve em primeira pessoa, no entanto, a sua escrita é narrada de uma forma que não possibilita o leitor a identificar se realmente ela está narrando algo sobre sua vida ou se ela está criando algo que pode ser totalmente ficcional: “[c]ontinuei andando pelo apartamento vazio, sendo; mostrava-me, como única maneira possível de afirmação ao meu alcance. Meu corpo se despojando a cada instante, tão sôfregos eram os móveis, o teto, o próprio ar cumprindo-se inexorável”.33 A fala supracitada é a fala de alguém que está sentindo-se abandonado em um apartamento. Considerações finais Diante das particularidades observadas nas obras de Maura Lopes Cançado as quais o presente estudo se propôs a analisar, fica claro que a escritora utilizou de seus contos para retratar episódios da sua vivência, principalmente os relacionados à sua família.

29

Ao se fazer a análise de tais contos, é possível apreender e compreender um pouco mais a vida da autora em questão. As muitas formas e variações da escrita de Maura Lopes Cançado abrem um leque de possibilidades a serem observadas e estudadas. Uma dessas 32 33

ARAÚJO, 2011, p. 97. CANÇADO, 2015, p. 41.

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GNARUS - 47 possibilidades aponta especialmente para o fato de que em alguns momentos em seus contos, personagens fictícios são narrados, descritos e expostos pela autora para dar voz a si mesma.

Hospício é Deus – Diário I. 5ª edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. SOUZA, Edivaldo Rafael de; SANTOS, Roberto Carlos dos. Maura Lopes Cançado: entre memórias e experiências (São Gonçalo do Abaeté -MG/1929-1950). Revista Perquirere. Patos de Minas, 14 (3): 79-97, set./dez. 2017.

Edivaldo Rafael de Souza é graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), Pós-graduado em Metodologia do ensino de Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu (ISEAT), Pós-graduado em Biblioteconomia pela Faculdade Futura e Professor de História na rede Estadual de Ensino (SEE-MG).

Referências: ARAÚJO, Pedro Galas. Trato desfeito: o revés autobiográfico na literatura contemporânea brasileira. Dissertação (Mestrado em Literatura), Universidade nacional de Brasília, Brasília, 2011, 107p. CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus: Diário I. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1979. CANÇADO, Maura Lopes. O sofredor do ver. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2015. CORDEIRO, Solange. Discurso e escrita de si na obra Hospício é Deus de Maura Lopes Cançado. 2015. 135p. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondom, 2014. EPPRECHT, Catharina. A imaginação na escrita de si: estudo a partir de Sérgio Sant’anna. Revista: Palimpsesto. Rio de Janeiro – RJ, nº: 14, ano 11, 2012. Disponível em:<http://www.pgletras.uerj. br/palimpsesto/num14/dossie/palimpsesto14dossie01.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2017. MEIRELES, Maurício. (2015). Perfil Biográfico. In:

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Artigo

AS MULHERES E O MOVIMENTO ABOLICIONISTA: PARTICIPAÇÃO E ENGAJAMENTO (RECIFE, 1880-1888). Por Maria Emilia Vasconcelos dos Santos e Jacilene de Lima Leandro

RESUMO: O objetivo de nosso texto é iniciar uma reflexão acerca da participação feminina no movimento abolicionista em Recife, entre os anos de 1880 a 1888. Além disso, objetivamos identificar as formas de atuação das mulheres engajadas na luta pelo fim da escravidão, a exemplo das associadas à Ave Libertas, principal sociedade feminina na província de Pernambuco. Para tanto, utilizaremos como fontes para localizar a participação feminina nas ações antiescravistas na capital pernambucana: o livro de Pereira da Costa intitulado “Pernambuco ao Ceará: o dia 25 de março de 1884” o qual é uma compilação de jornais pernambucanos sobre a Abolição no Ceará em 1884, como também outros jornais que divulgaram ações das militantes abolicionistas. Do ponto de vista metodológico elaboramos tabelas onde elencamos informações que nos permitam acessar as sociabilidades da militância abolicionista feminina nos jornais. Pudemos coletar os seguintes dados: nomes, grau de parentesco com outras pessoas descritas na documentação, eventos de protesto (ações e estratégias de militância). Palavras Chaves: Mulheres no século XIX, Abolição da escravidão, Mulheres abolicionistas.

Introdução

O

presente texto buscou iniciar uma discussão acerca da atuação de mulheres no processo abolicionista, tema que nos últimos anos, mesmo com uma quantidade considerável de estudos sobre suas especificidades, apresenta lacunas em relação a questão de gênero. Esse fator incentivou a investigação, que discute a atuação de mulheres na cidade do Recife, entre os anos de 1880 e 1888, e suas contribuições para o movimento abolicionista. É interessante observamos que a década

de 1880 ampliou o debate sobre a “transição” do trabalho escravo para o livre extravasando as barreiras da política parlamentar e vindo a ocupar os espaços públicos com a fundação de associações abolicionistas, inclusive, sociedades compostas por mulheres. O processo investigativo se deu objetivando a identificação dessas mulheres, para que fosse possível definir características do engajamento feminino nas ações abolicionistas, seja com atuações de mulheres institucionalizadas ou não. Observando assim, como essas militantes colaboraram para o ativismo nos anos finais do século XIX.

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GNARUS - 49 Para essas identificações, o trabalho se voltou para o levantamento de nomes femininos, presentes em jornais que noticiavam atividades antiescravistas. Nos debruçamos sob o livro – Pernambuco ao Ceará – que é uma edição comemorativa sobre a abolição no Ceará ocorrida em 25 de março de 1884, organizada pelo intelectual Francisco Augusto Pereira da Costa, ou simplesmente Pereira da Costa, e corresponde a uma compilação de periódicos recifenses acerca das ações e festividades realizadas na cidade nesse ano. A intenção da publicação era repercutir os feitos cearenses e incentivar o engajamento de novos militantes à causa. Nos registros encontramos muitas citações sobre a maior sociedade abolicionista feminina da província pernambucana, nomeada de Ave Libertas, que atuou ativamente, com diversos eventos, ações e inclusive concessão de cartas de alforria, a qual se mostrou bastante influente politicamente, durante o período de desempenho de suas atividades, e muitos dos nomes de mulheres encontrados nesta pesquisa estavam relacionados à esta instituição. A Ave Libertas teria iniciado suas atividades em 1884, junto com muitas outras vitórias do movimento abolicionista desse ano, que incentivaram ainda mais a luta, como a emancipação do Ceará, que provavelmente encorajou essa inciativa das recifenses. Alguns dos nomes mais recorrentes nos registros sobre essa sociedade foram: D. Odila Pompilio, D. Maria Albertina Pereira do Rego e D. Leonor Porto. Essas mulheres já atuavam em ações antiescravistas, e ajudaram a consolidar a ideia da associação Ave Libertas, como encontramos nos jornais. Os periódicos são as principais fontes da nossa pesquisa pois, contém vestígios sobre as mulheres no movimento

abolicionista, que são limitadas, pois mesmo tendo indícios do engajamento feminino, é pequena a disponibilidade de documentos que apresentem as ações femininas produzidas por elas mesmas. Desse modo, podemos apreender também como a sociedade pernambucana em fins do século XIX organizou e perpetuou hierarquias sociais e de gênero.

O 25 DE MARÇO DE 1884 – PROPAGANDA ABOLICIONISTA E PARTICIPAÇÃO FEMININA A pesquisa ainda em curso iniciou a identificação de mulheres que participaram do movimento abolicionista pela via institucional – as associações abolicionistas – ou no que denominamos de mulheres em movimento. Isso significa dizer que, também registramos em nossa listagem mulheres que não pertencem às sociedades abolicionistas, mas, que de alguma forma demonstraram a sua adesão às lutas pelo fim da escravidão. O apoio pode ser asseverado por terem escrito saudações, poemas, músicas ou até mesmo por libertarem seus cativos. Localizamos algumas mulheres, em um primeiro momento, através da publicação produzida por Pereira da Costa1 intitulada: “Pernambuco ao Ceará: O dia 25 de março de 1884”.2 Francisco Augusto Pereira da Costa for1 Francisco Augusto Pereira da Costa foi um grande estudioso Pernambucano, sendo considerado, historiador, biógrafo, folclorista e jornalista. Foi sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, membro de academias e diplomado em direito. GASPAR, Lúcia. “Pereira da Costa”. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: http:// basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=article&id=630 Acesso em: 22 mar. 2019.

PEREIRA DA COSTA, F. A. Pernambuco ao Ceará: O dia 25 de Março de 1884. Recife, Typographia Central, 1884. Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco Obras Raras.

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GNARUS - 50 mou-se pela Faculdade de Direito do Recife e assumiu diversos cargos importantes. Atuou como secretário dos Governos de Pernambuco e do Piauí e, como membro do Conselho Municipal do Recife. Em 1901 foi eleito, deputado estadual por Pernambuco função que exerceu por 8 mandatos seguidos. Ele escreveu diversas obras literárias,3 sendo inclusive fundador da Academia pernambucana de Letras, os seus escritos versavam maiormente acerca da história das províncias do Nordeste. Trabalhou também na área do jornalismo contribuindo com o Jornal Diário de Pernambuco, além de ser membro e receber o título de sócio benemérito do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano4 lugar privilegiado da produção historiográfica no Brasil oitocentista. Pereira da Costa tinha a intenção de produzir um registro, uma memória dos fatos que envolviam o processo de abolição na província pernambucana seguindo os moldes dos letrados de meados do século XIX e início do século XX, com um interesse acentuado pela coleta de documentos.5 Ele também era simpatizante das questões relacionadas à liberdade dos cativos. Em um dos jornais presentes, no livro de sua autoria acima referido, aparece ele e sua família como adeptos da causa abolicionista. Prosseguindo na nossa análise, realizamos a busca de nomes de mulheres que defendiam o fim do cativeiro, no livro de Pereira da Costa de 1884, dedicado às comemorações pelo fim da escravidão no Ceará. A referida obra apresenta descrições das festas e ativi-

dades realizadas em Pernambuco a partir de alguns jornais do dia 25 de março de 1884. Vale destacar que alguns desses jornais não estão mais acessíveis para consulta no Arquivo Público do Estado de Pernambuco dado a degradação dos mesmos. Como também não foram microfilmados pela Fundação Joaquim Nabuco e nem digitalizados para compor o repositório digital da Biblioteca Nacional. O livro possui mais de 300 páginas que apresentam marcas provenientes da ação do tempo e do manuseio. O compêndio foi publicado há mais de 130 anos por isso, muitas páginas, devido a acidez do papel, estão manchadas ou quebradas tornando a leitura difícil ou mesmo impossível em alguns casos. Procedemos a leitura de toda a obra para criar uma tabela com um conjunto de informações que nos permitisse rastrear a atuação das mulheres junto ao movimento abolicionista em Pernambuco.6 Encontramos e listamos mais de 100 nomes de mulheres, nas edições dos jornais: O Rebate, O incentivo, O Echo de Palmares, O Thermometro, O Ceará Livre e o folheto Ave Libertas, presente na obra de Pereira da Costa.7 A circulação das ideias e das práticas dos abolicionistas se dava, notadamente, pelos meios de comunicação, como a propaganda mais tradicional, através de jornais, opúsculos e livros. Os jornais nos anos 1880, passaram a ser o principal espaço de propaganda abolicionista, o movimento aproveitou as transformações de comunicação que estavam se operando no império,8 fazendo dos periódicos o

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Produziu 58 obras além dos 10 volumes dos Anais Pernambucanos.

Itens da tabela: nome, ocupação, cidade natal, atuação (ações e estratégias de militância), parentesco, grupo/associação, data, jornal e referência na obra.

4 GASPAR, Lúcia. “Pereira da Costa”. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/>. Acesso em: 22 mar. 2019.

7 PEREIRA DA COSTA, F. A. Pernambuco ao Ceará: O dia 25 de Março de 1884. Recife, Typographia Central, 1884. Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco Obras Raras.

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TEIXEIRA, 2011.

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MACHADO, 2003.

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GNARUS - 51 meio de mobilização, para organizar eventos e anunciar feitos. As folhas jornalísticas presentes no livro de Pereira da Costa tratavam, primordialmente, do acontecimento de março de 25 de março de 1884. Data que no império se comemorava a Constituição de 1824, um dos três feriados nacionais existentes à época, mas, que a partir do ano de 1884 fez-se um esforço de construir discursivamente uma celebração abolicionista e marcar o dia com o simbolismo da liberdade, por ser o dia que se aboliu a escravidão no Ceará. O ano de 1884 foi bastante movimentado e tenso com mais dois eventos que se relacionam às lutas antiescravistas: o congresso dos produtores de cana escravistas realizado em julho do referido ano e as eleições de 1884 ocorridas entre os meses de outubro e dezembro, conhecida como a campanha abolicionista do Recife.9 Os dois eventos foram aguçados pelo episódio da Abolição da escravidão do Ceará e dinamizaram o ativismo antiescravista e pró-escravismo no Recife de meados do século XIX. As celebrações do 25 de março de 1884 foram um divisor de águas no engajamento abolicionista reunindo na capital pernambucana homens e mulheres que participaram de passeatas e assistiram a recitais, discursos, entregas de cartas de alforrias e atrações musicais. Esses eventos públicos abriram espaço para ampliar o perfil das pessoas envolvidas no movimento abolicionista que assumiu um caráter mais popular com operários, trabalhadores do comércio, libertos e com destacada adesão feminina. Segundo Celso Castilho,10 a inclusão das mulheres nas manifestações políticas e de opinião pública foi uma novidade que fomentou e expressou uma agenda ali9 10

CASTILHO, 2011. CASTILHO, 2016.

nhada ao pensamento democrático.

MULHERES E SOCIABILIDADES ABOLICIONISTAS NO RECIFE Durante a segunda metade do século XIX e, fundamentalmente nas últimas décadas da centúria, a participação política das mulheres no espaço público ficou mais evidente. A construção dos espaços modernos de sociabilidade política foi sendo forjado no Recife junto as jornadas abolicionistas do começo da década de 1880. O voto só mais a frente incluiu a participação das mulheres nas esferas formais do estado, entretanto, não implicou na ausência delas no campo das ações políticas que tomaram as sociedades femininas privadas o espaço, por excelência, da atuação pública junto ou substituindo o estado na resolução de problemas sociais. O protagonismo de mulheres na campanha abolicionista foi notório em várias cidades do país, contudo, esse ativismo não se configurou nos termos dos movimentos feministas do século XX. Segundo Angela Alonso a participação das militantes abolicionistas se deu com: “A hierarquia de gênero, marcadíssima na sociedade imperial, irrompia no movimento com juízos moralistas de certos ativistas. Porém, ao envolver mulheres e crianças, o movimento atacou a escravidão onde ela era tão forte quanto silenciosa, em casa. Politizou a vida privada .”11

A participação nos debates nacionais por parte das mulheres se deu pela atuação em espaços formais e informais, alguns de caALONSO, Angela. A teatralização da política: a propaganda abolicionista. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, v. 24, n. 2, 2012, p.117. 11

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GNARUS - 52 ráter popular e outros voltados aos grupos burgueses como confrarias religiosas, sociedades literárias e entidades filantrópicas. As 100 mulheres encontradas no livro “Pernambuco ao Ceará” adotaram diferentes formas de inserção nos assuntos ligados ao fim do escravismo no país como: alforriar seus cativos, produzir panfletos para sessões literárias, elaborar desenhos, escrever saudações ao dia 25 de março e poemas em homenagem ao Ceará Livre. Tais ações exigiam acesso à propriedade e a instrução, ou seja, são formas de atuar politicamente relacionadas às vivências dos grupos abastados. Já outras atividades como bazares, peças de teatro, passeatas a “primeira do tipo a realizar-se na capital da província de Pernambuco” foi organizada para comemorar a abolição no Ceará e uma “celebração ao ar livre na praça central”. Tais atividades franqueavam às mulheres de diversas classes sociais uma participação mais ampla em espaços de sociabilidades políticas e na arena pública.12 Partimos então para a investigação das mulheres a partir dos seus nomes, como indicado no método biográfico, para nos permitir ir em busca de mais informações sobre a vida dessas mulheres. Para Ginzburg, buscar nas fontes o nome de alguém possibilita-nos reconstruir trajetórias sociais em que os indivíduos estiveram inseridos.13 Localizamos mães e filhas como Julia Apollinaria Pereira da Costa, Senhorinha Pereira da Costa, Maria José Pereira da Costa; modistas como Leonor Porto, professoras como Maria Amélia de Queiroz e a tradutora Esmeraldina Espiuca filha do ator e abolicionista Thomaz Espiuca; as quais a partir de suas práticas e colocações fomentaram a discussão sobre o pa12

CASTILHO, 2011, p.3.

13

GINZBURG, 1989.

pel das mulheres para o progresso da nação.14 As suas identidades estavam atravessadas, maiormente, por marcadores da religiosidade católica, da honra, da escolarização, da honra e da domesticidade. Para fazer política acabaram por ocupar espaços segmentados de poder como, a tarefa de assumir o cuidado com os setores considerados menos favorecidos – em nosso caso específico de análise a atenção aos libertos, ingênuos e com a libertação dos escravizados – norteando suas ações pela simbologia de esposa e de mãe. Ainda que a identidade de gênero lhes imputasse o papel de guardiãs do lar, algumas delas romperam as barreiras do mundo político e tiveram participação ativa no movimento abolicionista, chegando a ocupar o posto de presidente de sociedades abolicionistas e de proferir conferências públicas. Segundo Angela Alonso as três principais portas de entrada das mulheres no abolicionismo ocorreu pelo exercício da filantropia e das causas beneméritas; pelos vínculos familiares a homens notáveis – marido, pai, irmão, cunhado abolicionista ou na condição de artistas – atrizes, cantoras ou escritoras.15 De posse de alguns nomes de mulheres engajadas na causa abolicionista pesquisamos no acervo digital da Biblioteca nacional, que tem um mecanismo de busca que nos permite através de palavras-chave percorrer diversos periódicos, separados por décadas e locais. As buscas foram realizadas entre os anos de 1880 e 1889, em todos os periódicos pernambucanos que apresentassem ocorrências para o nome pesquisado. Conseguimos encontrar muitas matérias com os nomes das senhoras, 14 PEREIRA DA COSTA, F. A. Pernambuco ao Ceará: O dia 25 de Março de 1884. Recife, Typographia Central, 1884. Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco Obras Raras. 15

ALONSO, 2012, p.116.

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GNARUS - 53 a maioria com dezenas de ocorrências por jornal. Os periódicos que mais apresentaram informações foram: Jornal de Recife e Diário de Pernambuco, além do folheto Ave Libertas que apesar de ter apenas uma edição, em 1885, é bem direcionado ao nosso tema. Uma das personagens que se sobressaiu na pesquisa, foi a Dona Leonor Porto, a qual aparece em centenas de registros. Foi uma mulher muito influente na cidade do Recife 16 onde exerceu o ofício de modista além de, abolicionista.17 Fez parte do Clube do Cupim, do qual foi a primeira presidente, junto à João Ramos, José Mariano e Joaquim Nabuco. Foi uma das fundadoras da sociedade de mulheres abolicionistas Ave Libertas, fundada em 20 de abril de 1884. Essa sociedade utilizou de meios legais para promover o fim da escravidão: realizaram bazares, campanha de coleta de fundos para alforriar cativos e conferências que eram canais de propaganda de suas ideias e serviram de estímulo para algumas mulheres atuarem junto ao movimento abolicionista. Outro importante nome encontrado em nosso primeiro levantamento é, o da senhora Maria Albertina Pereira do Rego, que leu o discurso inicial da reunião da Ave Libertas. Ela VAINSENCHER, Samira Adler. Leonor Porto, 2019. http://www.caestamosnos.org/sebo/Semirapesquisas/pesquisa_semira_adler_Leonor_Porto.htm Diário de Pernambuco, 15 de maio de 1988. CERQUEIRA, Jacques. Abolição: 100 anos - Festejos abolicionistas resgatam luta da incansável Leonor Porto.

16

O reconhecimento da atuação da fundadora da Ave Libertas era tamanho que um clube formado por senhoras adotou a designação “Leonor Porto”. A referida associação desfilou, no dia 19 de maio de 1888, pelas principais ruas de Cachoeira e São Félix no Recôncavo baiano, portando um “retrato da heroína pernambucana”. COSTA, Manuela Areias. O “Maestro da Abolição” no Recôncavo baiano: abolicionismo e memória nas músicas e crônicas de Manuel Tranquilino Bastos (Cachoeira - BA, 1884-1920). 2016. Tese (Doutorado em História Comparada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016, p.173 17

também aparece diversas vezes nos jornais consultados. Nas ocorrências encontradas, a referida senhora estava sempre engajada em divulgar as reuniões da sociedade, a qual foi 1ª secretaria. Encontramos apenas 2 matérias de cunho pessoal, uma anunciando a celebração de aniversário de morte de sua mãe D. Maria Jorge de Menezes, o anúncio foi assinado junto com seu irmão Jacintho Pereira do Rego e seu pai que era engenheiro, Ricardo de Menezes.18 A outra publicação pessoal de M. Albertina P. do Rego foi sobre sua proclama de Casamento com o Bacharel Francisco Phaelante da Camara Lima que fora associado ao Club Ceará Livre.19 Outra senhora abolicionista que esteve entre as mulheres da diretoria da Ave Libertas, foi D. Odila Pompilio, que foi interinamente presidente da associação20 e posteriormente foi eleita 1ª secretaria, as dezenas de ocorrências que apresentam o nome desta senhora, estavam na maioria das vezes relacionados à Ave Libertas, e outras versam sobre suas participações em Assembleias provinciais. D. Odila Pompilio se mostrou bastante engajada na política, participando inclusive de outros Clubes. A breve passagem pela trajetória de algumas militantes nos revela que essas mulheres colaboraram de diversas e importantes maneiras nos rumos da causa abolicionista. Odila Pompilio é uma das senhoras que escreveu e discursou, em verso e prosa, em publicações e reuniões, como podemos ver este texto do folheto da Ave libertas: Diário de Pernambuco, Quarta-feira, 29 de Junho de 1887, p.6. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital. 18

Jornal do Recife, Terça-feira, 24 de Janeiro de 1888, p.2. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.

19

Jornal do Recife, Sábado 26 de Abril de 1884. Publicações Solicitadas, 1884, p.2. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital. 20

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GNARUS - 54 sobre o abolicionismo foi resumida aos líderes homens de maior projeção, que foram homenageados com nomes de ruas e de passeios públicos. Entretanto, não se pode negar que as ações femininas ajudaram a popularizar o abolicionismo e a acelerar a marcha pelo fim da escravidão. Nos registros dos jornais, até agora consultados, sinalizam como eram vigorosas as mobilizações do movimento abolicionista capitaneadas por mulheres na província pernambucana.

Figura 1 – Poema de Odila Pompilio21 O folheto em questão, que apresenta apenas 4 páginas, é constituído por textos assinados exclusivamente por mulheres (ou pelo menos assinados com nomes femininos), documento importante para nossa pesquisa, pois mostra as ideias dessas mulheres escritas por elas mesmas. O texto de Odila Pompilio, mostra que essas mulheres buscavam atuar para além do espaço doméstico e o faziam utilizando premissas que refletiam concepções de feminilidade dominantes à época, como a de “mães de família”. Como observou Fabiana Francisca Macena em sua tese, muitas das mulheres que atuaram na luta antiescravista e participaram do espaço público, seja sob signos da domesticidade ou não, como as associadas à Ave Libertas, são, infelizmente, ignoradas na escrita da história. A memória que se perpetuou 22

A historiografia da abolição começou a ser escrita pelos próprios abolicionistas, e assim como a imprensa foi terreno, por excelência, masculino. Segundo Fabiana Francisca Macena essa escrita da história “reafirma o afastamento das mulheres da cena pública, desautorizando e ignorando suas ações políticas, silenciando sobre suas presenças e protagonismos históricos”.23 Nossa busca por evidências concretas das ações femininas na luta antiescravista, é para justamente colocar nas interpretações do abolicionismo a presença efetiva das mulheres. Desse modo, esperamos com nosso trabalho contribuir para a construção de narrativas históricas em que às mulheres que lutaram nos movimentos abolicionistas sejam reconhecidas e tenham as suas experiências de engajamento político visibilizadas.

Maria Emilia Vasconcelos dos Santos é Doutora em História Social da Cultura, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. Jacilene de Lima Leandro é Graduanda em História, aluna da Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE.

Fonte: AVE LIBERTAS, 08 de Setembro de 1885, Ed. 1, p. 3. Biblioteca Nacional – Hemeroteca Digital.

21

22

MACENA, 2015.

23

MACENA, 2015. p.16.

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GNARUS - 55 REFERÊNCIAS ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo, Companhia das Letras, 2015. ALONSO, Angela. O abolicionismo como movimento social. Novos Estudos – CEBRAP, São Paulo, n. 100, p. 115-137, nov. 2014. ALONSO, Angela. A teatralização da política: a propaganda abolicionista. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, v. 24, n. 2, 2012. ALONSO, Angela. Associativismo avant la lettre – as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista. Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 166-169, set./dez, 2011. AZEVEDO, Elciene. Orfeu da carapinha – a trajetória de Luís Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas, SP: Unicamp/CECULT, 1999. BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François. Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravidão e Abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro, 1988. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O Quinto Século. André Rebouças e a Construção do Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ/UCAM/Revan, 1988. CASTILHO, Celso. O ’25 de março’ e a radicalização dos embates abolicionistas no Recife. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011. CASTILHO, Celso.; COWLING, Camillia. Bancando a liberdade, popularizando a política: abolicionismo e fundos locais de emancipação na década de 1880 no Brasil. Afro-Ásia, Bahia, n. 47, p. 161-197, 2013. CASTILHO, Celso Thomas. Slave Emancipation and Transformations in Brazilian Political Citizenship. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2016.

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Artigo

A VISÃO DA CABANAGEM NO BOI-BUMBÁ DE PARINTINS: UMA ANÁLISE DAS TOADAS TEMPO DE CABANAGEM E TESOUROS DA CABANAGEM Por Gabriel Augusto Nogueira dos Santos

RESUMO: Considerada a maior revolta regional da história do Brasil, a Cabanagem foi por muitos anos considerada com diversas vertentes em um único momento da mesma. A partir disso, o resgate historiográfico se tornou de suma importância na compreensão de seus autores e dos fatos ocorridos durante a revolução. O objetivo desse trabalho é o explorar no âmbito do imaginário caboclo a revolta, partindo do contexto a abordagem da arte dramática explorada no Festival Folclórico de Parintins. A pesquisa é pautada em aspectos qualitativos, a partir de uma revisão bibliográfica e da análise das toadas “Tempos de Cabanagem”, composta pelo Boi Garantido e “Tesouros da Cabanagem”, composta pelo Boi Caprichoso. Nota-se a representatividade dos diversos grupos sociais existentes no período na composição da toada (1998 e 2017), além da apresentação na arena, a partir da encenação teatral e da parte coreografada. Portanto, o Festival de Parintins traz em sua conjuntura o descrever e o valorizar da história da região, a partir das adaptações e do olhar do artista na elaboração da temática. Palavras Chaves: Cabanagem, Parintins, Boi-Bumbá

Introdução

P

ensar sobre a questão da Cabanagem (1835-1840), é remeter uma boa parte da história da Amazônia no período imperial. Considerada como a maior revolta regional do Brasil, o movimento de características sociais, que lutavam contra os desmandos na época do período Regencial e se denominavam também como “patriotas”, a partir das questões de etnicidade e resistência presente na Amazônia, conforme analisa Ricci (2007). A partir dessa questão, é importante des-

tacar a magnitude da revolta, principalmente em um contexto amazônico com tantas insurreições e conflitos, ainda oriundos do período colonial e posteriormente, expandido ao período imperial. Pinheiro (1999), destaca os aspectos políticos propostos pelos cabanos, principalmente em aspectos voltados ao republicanismo, além do furor das tropas imperiais em controlar a revolta, culminando em cerca de 40 mil mortos, uma boa parte da população do Grão-Pará, a época com uma massa de miseráveis em níveis alarmantes. Bezerra Neto (2001), destaca em seus escritos, a fuga de escravos dos locais em que a revolta se fazia presente, principalmente na

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GNARUS - 57 questão que a abolição da escravatura não fazia parte do diálogo de muitos cabanos. Nesse quesito, alguns integravam as forças cabanas ou até mesmo montavam levantes, como chegaram a ocorrer na região durante a explosão da revolta. A partir disso, as presenças das mais variadas camadas da revolta, faz pensar sobre o movimento cabano um dos mais abrangentes na história. Ao longo dos anos, a historiografia se fez presente em alguns momentos com as diversas vertentes, em que Ricci (2007), destaca o trabalho de Caio Prado Junior, ainda em fins dos anos 1930, referenciando os cabanos como libertários e também, mostrando que de um único contexto, há várias vertentes, principalmente contra um anticolonialismo e um patriotismo já dito anteriormente. O objetivo desse artigo é explorar a temática da Cabanagem a partir das toadas de Boi-Bumbá, dando ênfase as composições desenvolvidas nos anos de 1998 e 2017. A partir disso, será percebido o compreender, o identificar dos elementos presentes e também, o analisar histórico a partir a encenação na arena.

Desenvolvimento O trabalho será efetuado a partir das análises qualitativas, baseado na revisão de literatura envolvendo a Antropologia, Ciências Sociais, Geografia e História da Amazônia. Com isso, será efetuado as relações entre as áreas para a compreensão e a análise do espetáculo de Parintins com a temática da Cabanagem desenvolvida ao longo dos anos.

-Complexidades, Sociedade e Cultura amazônica Entender a Amazônia, é compreender em primeiro momento, os diversos processos de colonização e povoamento da região. Almeida (2016), destaca a visão eurocêntrica sobre a região, como um local de colonização dos brancos e exploração da região. Batista (2006), destaca que a formação da cultura amazônica se baseou principalmente no colonizar dessas terras e seu formato econômico, conforme figura abaixo.

Figura 1 – Colonização e Trabalhadores Indígenas Créditos: Reprodução/USP

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GNARUS - 58 No formato de colonização e aspectos econômicos, a colonização dessas terras se deu principalmente na criação de fortificações e aldeamentos missionários, como forma de deter o controle das terras. Destaca-se nessa conjuntura, o surgimento das primeiras cidades e dos primeiros formatos relacionados a uma rede urbana na Amazônia, analisada por Corrêa (1987), principalmente em seu primeiro formato, uma ligação predominantemente fluvial. Em “O Complexo da Amazônia”,1 Batista (2007), ressalta a catequização dos índios na região como a principal contribuição destacada do homem branco. Isso ressalta principalmente, em muitos casos, o extermínio das populações nativas e o fortalecimento da influência europeia na região Amazônica. Bittencourt (2001), destaca que nesse contexto, as diferenças inter-regionais e intraregionais vigentes.

No âmbito da Cabanagem, Batista (2006 e 2007), ressalta em ambas as literaturas, as inspirações das insurreições indígenas, ao movimento que eclodiu entre os anos de 1835 a 1840, a partir das diversas discussões. Nos aspectos estudados, destaca o movimento, com uma amplitude efetiva que engloba a participação das massas na revolta (figura 2), além de uma percepção nativista do movimento contra os desmandos do Império do Brasil, já que a integração do Grão-Pará ao recém-independente, ocorreu de forma forçada.

Além disso, é destacado a Miscigenação, principalmente na região, o contato do homem branco com o índio, assim nascendo o caboclo amazônida. Com isso, a população da região ganha novos aspectos, principalmente pela adaptação dessas populações ao meio amazônida, tal como destaca Batista (2007). Tocantins (1971 apud MOURA, 2005), destaca a seguinte conjuntura: os valores existenciais, pautadas nos seus autores e os valores da natureza, assim formando um conjunto de valores que tornam o povo amazônico de aspectos singulares, principalmente, influenciados pelas suas histórias e também pelo meio vivido.

A primeira edição, publicada pela Editora Contexto, é do ano de 1976, considerada de suma importância a qualquer pensamento sobre a Região Amazônica e seus habitantes. 1

Figura 2 – O Cabano Paraense, por Alfredo Norfini Créditos: Câmara Federal/Reprodução

Dentro de todos esses contextos, Batista (2007), também destaca sobre o genocídio das diversas populações indígenas existentes. É destacado o contexto do país ter cometido diversos crimes contra essa população, desde o período colonial, até mesmo em sua conjun-

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GNARUS - 59 tura mais contemporânea, tal como o século XX. Analisar as conjunturas do que é a Amazônia e seus complexos, retratados pelos diversos autores, é compreender a forma do inspirar do artista parintinense. A partir desses complexos, entende os diversos formatos do que será a arte e a realidade, além dos seus formatos de representação na arena durante o Festival.

da temática também analisava o processo de colonização das terras e do extermínio dos ameríndios.

- A Arte Cabocla e a Representação da Cabanagem

Falar sobre o Festival Folclórico de Parintins e sua representatividade, é compreender as diversas abordagens sobre a temática cabocla. Dividida nas concepções do Cênico, Musical e Artístico, a elaboração de uma temática e de sua representatividade é analisada nessas três óticas. Silva e Nakanome (2019), destaca a dinâmica da identidade e identificação que contribui para o pensamento, além do discurso apresentado sobre si e o outro, incorporando a arte como produtora do discurso. Braga (2002), destaca a contribuição em um dos Festivais de Parintins, a temática da Civilização Cabocla da Amazônia, cuja abordagem é explicada tanto do colonizador, quanto das populações escravizadas, como o negro e o índio. Isso é perceptível principalmente com a tragicomédia apresentada na arena, a partir dos contextos históricos e dos diversos rituais. Em primeiro momento, a toada analisada é “Tempos de Cabanagem”, datada de 1998. Composta por Tadeu Garcia e Paulinho Du Sagrado, a mesma fez parte do tema intitulado “500 Anos do Passado para Construir o Futuro”, do Boi Garantido (figura 3). O contexto

Figura 2 – O Cabano Paraense, por Alfredo Norfini Créditos: Câmara Federal/Reprodução

Oliveira (2018), destaca o contexto de re-existência dos povos indígenas, principalmente no que destaca o contato com o europeu e suas mazelas sociais. A partir disso, a toada exerce além de uma consciência pela violência da Cabanagem, procura enfatizar também os agentes sociais envolvidos, visto seu contexto e suas definições históricas, conforme visto abaixo. A história nos conta O mundo dos índios e negros, Vivendo o tempo e o lugar de escravizar Amazônia colônia dos brancos, Vieram em degredo explorar os segredos Da flora e do rio mar Impuseram aos índios deixar sua Taba, (Morada geral), Isolado o nativo perdia o sentido E o estilo da vida tribal “Descimentos”2 no alto dos rios Essa prática contava com a participação dos missionários e consistia no aliciamento e recrutamento para leva-los aos aldeamentos missionários e realizar a sua conversão ao cristianismo.

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GNARUS - 60 Levavam os gentios Prisioneiros em “resgates”3 Lograram os perdidos menos oprimidos Seguiam a chorar Negro veio pela corrente Suor e dor inclementes Que o poder bruto do branco é o fogo E não pode parar

tência dos povos, a toada foi trazida na arena, principalmente para o “cantar das raças”, englobando o índio, negro e caboclo, como ocorrido em 1998 e visto na figura abaixo.

Erguem a força da cabanagem Lutam pela liberdade Pra que num futuro4

Nessa toada, além dos agentes, é destacado os processos de descimentos e resgates. Isso é perceptível como um dos formatos de colonização da região, a partir da participação dos missionários católicos e o surgimento dos aldeamentos, que posteriormente se transformaram em cidades. Almeida (2016), destaca a mão-de-obra indígena e negra presente com uma maior magnitude no Grão-Pará. Além disso, é destacado na toada, a privação da liberdade de ambas as populações, em primeiro pelo processo de aculturação e invasão das suas terras. A composição procurou resgatar as conjunturas e posteriormente, os motivos para a ocorrência da Cabanagem. No Festival de Parintins, a mesma é tratada como um aspecto da dança dramática e de um aspecto trágico, tal mostra Braga (2002). Após a temática ser desenvolvida em 1998, a toada novamente foi trazida em 2018, cuja temática do Boi Garantido era “Auto da Resistência Cultural”. O tema de 2018 procurou enfatizar as diversas vertentes culturais e históricas da região, a partir da brincadeira de boi e também, das diversas populações existentes na região. Novamente, se tratando da resisCaracterizava-se como “resgate”, a compra ou o “salvamento” dos mesmos do cativeiro causadas pelas guerras tribais ou guerras justas.

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Vivamos em paz (Tempos de Cabanagem – Tadeu Garcia e Paulinho Du Sagrado – Garantido 1998) 4

Figura 3 – Apresentação da temática da Cabanagem em 2018 pelo Garantido Créditos: Amazonas em Tempo

No contexto do Garantido, a toada trouxe uma característica do valorizar os diversos agentes sociais na revolução ocorrida na Amazônia e seus impactos trazidos para a região. Posteriormente, a Cabanagem contribuiu com a criação da então Província do Amazonas e seus diversos significados quanto as populações nativas e decretos governamentais sobre os escravos na região do Grão-Pará. No âmbito do Boi Caprichoso, a Cabanagem foi contada em anos mais recentes. Em 2017, a temática era “A Poética do Imaginário Caboclo”, onde contou com diversos elementos presentes, principalmente o exaltar do caboclo amazônida e do seu imaginário. A toada, intitulada “Tesouros da Cabanagem”, composta por Guto Kawakami, retrata principalmente, as fugas ocasionadas pela revolta, tanto dos proprietários, quanto dos escravos da região. Teu é o tesouro, só tu acharás Sozinho na noite, riqueza terás Espíritos da Cabanagem te dão,

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GNARUS - 61 A coragem Em sonhos senhores irão te mostrar O tesouro enterrado na mata Perdido no tempo Escondido na fuga Joias e pratarias sem fim A ganância dos nobres, enfim Que ficaram para trás Ainda esperam pelo caboclo audaz A noite é a senda, silêncio é a senha É fogo, é fogo, é fogo azul Clareia o lugar, Velas acesas, reza forte é o segredo, A paz da alma, do enredo Cabanos É preciso procurar sozinho E não falar a ninguém Do contrário a morte espreita Te encontrará Cordões de ouro são filhos de cobras Diamantes são escorpiões Prataria centopeias Maldito serás...

vimento cabano. Nota-se também nessa conjuntura, as experiências anteriores de luta, principalmente pelas fugas e insurreições de escravos nos anos anteriores e o ideal de liberdade. A construção da composição Tesouros da Cabanagem (figura 4), é pautada principalmente nessa conjuntura dos avanços da revolução na região do Grão-Pará e de seus combates. Além disso, o surgimento dos Mocambos e Quilombos, acabaram por favorecer o surgimento de tropas e constantes diferenciações entre os diversos agentes sociais, assim causando também radicalismo e moderação, principalmente em divisões dentro do movimento.

Cordões de ouro são filhos de cobras Diamantes são escorpiões Prataria centopeias Maldito serás...5

Na toada em questão, são destacados os tesouros existentes e as lendas enfatizadas sobre a revolução cabana. Nota-se também, as fugas ocasionadas principalmente pelo avanço das forças cabanas. Bezerra Neto (2001), destaca nesse contexto as fugas de escravos, principalmente para o interior da província e os surgimentos dos Mocambos e Quilombos. Posteriormente, os senhores emitiam notas de caça e captura desses trabalhadores para o seu retorno imediato as propriedades. Além disso, Ricci (2008), destaca os pontos em comum das lutas cabanas, pautadas principalmente por índios e negros, na qual esse processo de identidade existente entre ambos, se caracterizou exclusivamente no moSem um vintém! (Tesouros da Cabanagem – Guto Kawakami – Caprichoso 2017)

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Figura 4 – Ilustração sobre a temática envolvida na toada “Tesouros da Cabanagem” Créditos: JIO Folia/Boi Caprichoso

A construção da identidade cabana nas toadas ao longo dos anos, obedeceu basicamente ao critério da historiografia, mas também procurou dar voz ao papel do artista na sua concepção. Tanto do compositor, quanto do ritual, a questão da toada enfatizou a vertente histórica e também os agentes sociais envolvidos no contexto.

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GNARUS - 62 Considerações finais Nota-se em primeiro momento, a relação da Cabanagem com os processos de territorialização e colonização das terras Amazônicas. Em primeiro momento, o conceituar sobre o complexo a Amazônia, é de suma importância para a compreensão dos fatos e culturas acerca da região, influenciados principalmente pela colonização e formatos da economia vigentes. Em segundo momento, a criação estética e posteriormente, o olhar do artista, favoreceu a composição a partir das variáveis históricas existentes. Tanto na toada, quanto na cênica e no artístico, a concepção dos bumbás se baseou como momento tribal e lenda indígena, além do englobar como uma das subtemáticas a serem abordadas durante as apresentações. Portanto, o englobar da História da Amazônia nos bumbás de Parintins, é valorizar e compreender as diferentes faces da cultura cabocla amazônica, em que suas influências são oriundas das populações nativas e históricas que foram englobadas na região. Influenciados pela questão Eurocêntrica, as adaptações ao meio favorecem o surgimento de uma identidade própria e um “patriotismo” voltado as questões locais.

Gabriel Augusto Nogueira dos Santos é bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas, membro do grupo de pesquisa ‘’Geografia da Amazônia: Ambiente e Cultura’’, do ‘’Grupo de Estudos em Transportes e Logística’’ e Tem como linhas de pesquisa, os seguintes temas: Geografia Urbana, Geografia dos Transportes, Economia e Planejamento dos Transportes, Sistemas de Transportes, Políticas Públicas, Folclore e Cultura, com ênfase nos aspectos da Amazônia Brasileira.

Referenciais bibliográficos ALMEIDA, Cristina Barbosa. Ensino e Música: as toadas amazônicas como instrumentos didático-pedagógicos nas aulas de história. 2016. 44 f. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Licenciatura Plena em História) - Universidade do Estado do Amazonas, Tefé. BATISTA, Djalma. Amazônia: Cultura e Sociedade. 3.ed. Manaus: Editora Valer, 2006, 179 p. BATISTA, Djalma. O Complexo da Amazônia – Análise do processo de desenvolvimento. 3.ed. Manaus: Editora Valer/INPA, 2007, 408 p. BEZERRA NETO, José Maia. Ousados e insubordinados: protesto e fugas de escravos na Província do Grão-Pará - 1840/1860. Topoi (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro -RJ, v. 02, p. 73-112, 2001. BITTENCOURT, Agnello Uchoa. Aspectos sociais e políticos do Desenvolvimento Regional. 2.ed. Manaus: Editora Valer, 2002, 86 p. BOI CAPRICHOSO. Tesouros da Cabanagem. Disponível em: http://boicaprichoso.com/player.asp?t=560 – Acesso em: 05/08/2019. BOI GARANTIDO. Tempo de Cabanagem. Disponível em: https://www.letras.mus.br/garantido/tempo-dacabanagem/ - Acesso em: 05/08/2019 BRAGA, Sergio Ivan Gil. Os bois-bumbás de Parintins. 1. ed. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2002, 480p MOURA, Blenda Cunha. Amazônia cabocla de alma indígena: o festival de Parintins contemporâneo e as imagens da identidade amazônica no século XX. 2005, 71 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba. NAKANOME, Ericky; SILVA, Adan Renê Pereira. O indígena no imaginário alegórico dos bumbás de Parintins. MORINGA - ARTES DO ESPETÁCULO (UFPB), v. 10, p. 49-66, 2019. OLIVEIRA, Cila Mariá Ferreira Fonseca de. Narrativas, cosmogonia e re-existência indígena em toadas do festival folclórico de Parintins/AM. 2018. 159f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Rondônia, Programa de Pós-Graduação em Letras, Porto Velho. PINHEIRO, Luis Balkar de Sá Peixoto. A Revolta Popular Revisitada: apontamentos para uma história e historiografia da Cabanagem. Projeto História (PUCSP), São Paulo, v. 19, p. 227-241, 1999. RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo, Niterói, v. 11, n. 22, p. 5-30, 2007. RICCI, Magda. Fronteiras da nação e da revolução: identidades locais e a experiência de ser brasileiro na Amazônia (1820-1840). Boletin Americanista, v. 58, p. 77-96, 2008.

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Artigo

O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO CÂNONE NEOTESTAMENTÁRIO (SÉCULO I AO IV D.C.) Por Flávio Henrique Santos de Souza

RESUMO: O propósito desta pesquisa será evidenciar as relações de poder que se encontram por trás dos escritos da Bíblia, isto é, o objetivo será investigar o processo que culminou com a criação do chamado Novo Testamento. Historicamente, nos primeiros séculos das comunidades cristãs, não havia nenhuma referência de leitura obrigatória e universal de apenas 27 livros tidos como sagrados entre os fiéis em seus cultos. Isso ocorreu apenas na segunda metade do século IV. Assim, convém levantar as seguintes indagações: quais teriam sido os critérios gerais para a inclusão dos livros no que, doravante, se chamaria Novo Testamento? Como foi definido que as comunidades cristãs da Antiguidade deveriam ler/ouvir apenas esses 27 livros como “regra de fé”? E, será que todos os grupos cristãos do mundo antigo aceitaram essa compilação de livros? Palavras Chaves: Bíblia, Novo Testamento, Cânone, Acanônico, Cristianismos

Introdução

O

tema deste artigo, num campo geral, é sobre a Bíblia, num campo específico, é relativo ao chamado Novo Testamento.1 A Bíblia é uma

“[...] O termo ‘testamento’ tanto no hebraico como no grego significa ‘acordo’, ‘tratado’ ou ‘aliança’ [...]” (SANTOS, 2006, p. 68-69). Os cristãos que “editaram” a Bíblia cunharam essa divisão entre Antigo e Novo Testamento como se ambos fizessem parte de um processo linear e monolítico pertencentes ao mesmo contexto da fé cristã. De modo que, segundo estes, a primeira “aliança” Deus fez por intermédio de Moisés e a segunda “aliança” foi feita pelo ministério de Jesus. Ambas as partes foram unidas fazendo com que os autores da Bíblia tivessem o mesmo propósito e mensagem nos seus respectivos livros, mas isso faz parte de uma construção teológica. Pois cada autor bíblico 1

das obras literárias mais importantes do mundo que, por sua vez, de certa forma, é uma das mais incompreendidas. Com isso não se quer dizer que apenas os especialistas podem compreendê-la, mas é preciso fazer um grande esforço intelectual para buscar compreender o intuito de cada autor bíblico quando se tem em vista o comprometimento acadêmico na pesquisa e o não comprometimento desta com visões confessionais da Bíblia. Como sublinha o biólogo britânico Richard Dawkins: tem sua própria voz em sua própria conjuntura. Às vezes alguns temas se parecem, porém, cada qual teve seu desígnio subjetivo ao escrever. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral-Catequética. São Paulo: Ave-Maria, 2009, p. 8.

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GNARUS - 64 [...] O principal motivo de a Bíblia ter de fazer parte de nossa educação é o fato de ela ser uma importante fonte de cultura literária. A mesma coisa aplica-se às lendas dos deuses gregos e romanos, e aprendemos sobre eles sem que ninguém peça que acreditemos ne-

buído. Ambos os pressupostos se assentam na fé, não na História. Para quem tem fé, que eles sejam vividos na sua plenitude. Mas, em se tratando de pesquisa histórica, eles precisam sair de cena, de modo que cada livro bíblico possa ser lido e pensado no interior de um tempo e espaço específicos” (CHEVITARE-

les (DAWKINS, 2007, p. 347-348).

Desse modo, quando a Bíblia é tida como uma grande fonte literária, pode-se até extrair uma gama de exemplos salutares e inspiradores em certas narrativas, tais como: o exercício do perdão (Mateus 5:43-44), o amor a humanidade (1 Coríntios 13), a prática da humildade (Filipenses 2:3), etc. Contudo, na pesquisa histórica, a Bíblia deve ser utilizada sem filtros de leituras fundamentalistas2 para atestar “teologias subjetivas”. Porque cada texto bíblico precisa ser tratado como documento passível de ser analisado e escrutinado como qualquer outra fonte produzida por seres humanos. De acordo com o historiador André Leonardo Chevitarese, existem dois pressupostos teológicos que pervadem o dia a dia de muitos brasileiros: “De que a Bíblia se constitui como uma obra a parte de todas, tendo por qualidade especial e única, o fato de ter sido entregue por Deus à humanidade. Soma-se a isso, o recente critério da inerrância que lhe foi atriO fundamentalismo teológico “acredita que a verdade revelada por Deus na Bíblia não evolui, não cresce e nem muda” (LOPES, 2008, p. 185). Portanto, segundo os fundamentalistas, a Bíblia tem que ser analisada como uma “revelação progressiva” desde o Antigo Testamento até a chegada de Jesus, onde se têm o cumprimento de muitas “profecias” veterotestamentárias em sua pessoa e novos “vaticínios” proferidos em relação ao fim dos tempos (escatologia). Pois cada escritor bíblico foi divinamente inspirado, de sorte que a mensagem de cada qual pode ser aplicada na vida pessoal não importando o tempo ou espaço históricos. Expedições bélicas do século XI que tinham um caráter político-religioso. As Cruzadas ou “guerras santas” foram defendidas pelo Papa e a Igreja, e, um dos objetivos das guerras era recuperar a cidade de Jerusalém que foi conquistada pelos muçulmanos. Além disso, as guerras visavam “defender” a cristandade dos inimigos internos e externos (LOYN, 1997, p. 272-274). 2

SE, 2016, p. 11).

Ao longo da história, muitas pessoas utilizaram a Bíblia como anuência para criar guerras, dominações e perseguições em nome de Deus (Cruzadas,3 Inquisição,4 colonizações,5 imperialismos,6 etc.). Ações essas que acarretaram na morte de milhares de pessoas. Entretanto, pode-se visualizar também que ao longo do tempo, pensadores cristãos surgiram com perspectivas mais humanitárias justificando suas ações com textos bíblicos. A saber: no século XVI, alguns reformadores buscaram alfabetizar a população europeia Expedições bélicas do século XI que tinham um caráter político-religioso. As Cruzadas ou “guerras santas” foram defendidas pelo Papa e a Igreja, e, um dos objetivos das guerras era recuperar a cidade de Jerusalém que foi conquistada pelos muçulmanos. Além disso, as guerras visavam “defender” a cristandade dos inimigos internos e externos (LOYN, 1997, p. 272-274).

3

Sacra Congregação da Inquisição Universal. A Inquisição foi um instrumento de investigação e reprimenda aos chamados hereges. Sendo utilizado pela Igreja Católica durante a Idade Média, no século XIII, e após a Reforma Católica no século XVI (SILVA, 2009, p. 234-238). 4

Colonizações dos séculos XV e XVI, onde “novas” regiões na América foram ocupadas e povoadas por europeus. Alguns colonizadores (portugueses, espanhóis, etc.) conquistaram e dominaram os nativos desses “novos” territórios. Portanto, estas colonizações foram dominações políticas, culturais, sociais, entre outras (Ibid., p. 67-68). Mas no discurso dos colonizadores era proferido que os mesmos estavam levando a “Palavra de Deus” aos povos indígenas.

5

“Entre 1870 e 1914, a Europa ocidental e os Estados Unidos arquitetaram a conquista política, econômica e cultural da África, Ásia, Oceania e América Latina. Repartiram o mundo entre si e organizaram poderosos impérios coloniais que só tinham em comum o desenvolvimento da acumulação capitalista” (BRUIT, 1994, P. 5). Como justificativa ideológica, os países imperialistas diziam que levariam a “civilização”, a cultura e o cristianismo aos países “atrasados”. 6

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GNARUS - 65 que era predominantemente analfabeta, pois tendo a Bíblia impressa7 em idioma local facilitou bastante na tarefa de proselitismo; no século XX, teólogos cristãos criaram a chamada Teologia da Libertação,8 por meio desta, os seus correligionários tinham o objetivo de acudir aos necessitados da América Latina, lutar por mais justiça social no continente etc. Assim, pode-se dizer que a Bíblia (e todos os livros tidos como sacros) é um livro muito humano interpretado por meros mortais. A Bíblia foi escrita por dezenas de autores que viveram em épocas e lugares diferentes. Como pontua o teólogo estadunidense Bart Ehrman: “Enquanto o Novo Testamento, composto de 27 livros, foi escrito por talvez 16 ou 17 autores ao longo de setenta anos, o Antigo Testamento, as Escrituras judaicas, consiste em 39 livros escritos por dezenas de autores ao longo de pelo menos seiscentos anos” (EHRMAN, 2010, p. 38).9

Destarte, cada autor bíblico ao escrever continuou com suas próprias predileções (1 Coríntios 7:1-7), culturas (2 Pedro 3:15-16) etc. Portanto, ao se fazer uma leitura bíblica mais

atenta, nas entrelinhas ou de forma clara e categórica pode ser visto os preconceitos (Marcos 16:16), ódios (João 8:44) e “ideologias” (Mateus 27:24-25) que foram sendo transmitidos por alguns de seus autores.

Faz-se necessário salientar que o escopo desta pesquisa não é de fazer investidas históricas à fé. Haja vista que o cristianismo é a maior religião do mundo (tem aproximadamente 2,18 bilhões de adeptos)10 e muitos dos seus seguidores veneram a Bíblia como a “Palavra de Deus”. Assim, para muitos cristãos a Bíblia é divinamente inspirada, pois, segundo estes, Deus esteve no controle do processo de formação do cânon.11 Nesse sentido, todos os livros que se encontram na Bíblia foram “selecionados pelo próprio Deus”, mas enxertados no cânone pelos clérigos a fim de preservar a “revelação da pessoa de Deus e seus desígnios” aos seus filhos. Nesta pesquisa histórica a Bíblia é um documento e assim será analisada como tal. Em consonância a isso, o autor britânico Paul Johnson que é um historiador cristão católico ressalta: “Um cristão com fé nada tem a temer dos fatos; um historiador cristão que estabelece limites para o campo de investigação, em qualquer ponto que seja, está admitindo os limites de sua fé. E, naturalmente, também destruindo a natureza de sua religião [...]”

Na década de 1450, o alemão Johannes Gutenberg desenvolveu um método de impressão de livros. A primeira obra impressa foi a Bíblia. 7

8 Vertente teológica nascida em 1968, na América Latina, onde se notabilizou pela fusão que os teólogos latino-americanos fizeram de alguns aspectos das ciências modernas e, especificamente, do marxismo com elementos dos Evangelhos. Para esses teólogos “a religião, que até então estava do lado da ‘aceitação’ do mundo tal como Deus o permite, passou para o lado da ‘revolução’, visando superar a dominação e instaurar um mundo de justiça e de paz, assim como Deus o quer” (CATÃO, 1986, p. 8).

Isso no caso da Bíblia protestante, pois para os católicos, o Antigo Testamento é composto de 46 livros. Portanto, sete a mais além dos 39 da Bíblia protestante. A saber: Livro de Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc. Além disso, os livros de Ester e Daniel estão com algumas adições. Já o Novo Testamento é igual ao dos protestantes. 9

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Disponível em: http://www.cnbb.org.br/cristaos-no-mundo-7-bilhoes-de-pessoa-dizem-professar-a-fe-cristasegundo-instituto-de-pesquisa-pew-research/. Acesso em: 1 de agosto de 2018.

10

Cânon ou cânone podem ser entendidos como a “coleção estabelecida de livros sagrados”, de forma específica, quando se tratar do Antigo ou Novo Testamento. O termo significa “margem estreita” ou “instrumento de medição”. Mas no âmbito cristão se tornou um paradigma e uma espécie de regra a ser seguida em relação aos livros aceitos pelos clérigos que se fizeram “ortodoxos” (SANTOS, 2006, p. 84-85). Durante esta pesquisa, os dois termos serão utilizados de forma aleatória mantendo o mesmo significado. 11

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GNARUS - 66 (JOHNSON, 2001, p. 8).

O intento deste artigo tem como ponto alto as discussões do longo processo que culminou com a feitura do chamado Novo Testamento enfocando as relações de poder, as ambiguidades e as indefinições que estão presentes nessa conjuntura. O interesse por este tema se dá pela constatação que o mesmo ainda tem sido pouco estudado pela historiografia brasileira, de modo que as instituições religiosas e os seminários teológicos ainda detêm o “monopólio” sobre o assunto. A Bíblia é o baluarte cultural da civilização ocidental. Dito isso, Dawkins, que é um “fervoroso” ateu, declara: “[...] Uma visão de mundo ateísta não é justificativa para excluir a Bíblia, e outros livros sagrados, de nossa educação. E é claro que podemos manter uma lealdade sentimental às tradições culturais e literárias, por exemplo, do judaísmo, do anglicanismo ou do islã, e até participar de rituais religiosos como casamentos e enterros, sem aderir às crenças sobrenaturais que historicamente acompanham essas tradições. Podemos abrir mão de acreditar em Deus sem perder contato com uma história valiosa” (DAWKINS, 2007, p. 350).

Desse modo, acredita-se que os estudos sobre o Novo Testamento (e a Bíblia como um todo) têm mais sentido quando são feitos à luz das culturas da Antiguidade.

2. Muitos livros: Apenas 27 são “pemitidos” Nas comunidades cristãs antigas, existiam diversas formas de organização em relação à liturgia, à doutrina etc. Como também uma grande diversidade no aspecto relacionado aos textos considerados sagrados por cada comunidade, porquanto

Atanásio de Alexandria “[...] numerosos evangelhos circulavam entre diversos grupos cristãos, além daqueles que compõem hoje o NT, como o Evangelho de Tiago, o Evangelho de Filipe, o Evangelho de Pedro, o Evangelho da Verdade e muitos outros poemas e hinos secretos atribuídos a Jesus ou a alguns de seus discípulos” (FRANGIOTTI, 1995, p. 32).

Com efeito, antes da primeira metade do século IV, era inconcebível se ter uma compilação rígida de vinte e sete livros autorizados para todas as comunidades cristãs. Porque além dos muitos Evangelhos que circulavam na Antiguidade ainda existiam Apocalipses, Epístolas, Atos dos Apóstolos e toda sorte de documentos que eram atribuídos aos apóstolos, aos discípulos de apóstolos, entre outros. “Os livros já existiam, mas eram rolos que eram desenrolados para que pudessem ser lidos” (CHEVITARESE; FUNARI, 2016, p. 10). A partir do segundo século, uma gama de “teólogos” e grupos cristãos apareceram postulando seus livros tidos como sagrados.

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GNARUS - 67 Porém, o processo de elaboração do cânone neotestamentário foi lento, gradual e contínuo. Pois apenas no século IV, como aludido anteriormente, é que houve a enumeração dos “textos sacros”, isto é, dos vinte e sete que seriam “permitidos”. Essa lista foi sugerida pelo bispo Atanásio de Alexandria, no Egito. Mas, quais teriam sido os critérios para a escolha dos livros “autorizados” ou “proibitivos”?

nota daquilo que teria sido ensinado por ele. Aliás, a maior parte dos discípulos era analfabeta e falava aramaico. Sendo que os Evangelhos foram escritos em grego. Como que pescadores e camponeses rústicos poderiam aprender grego, visto que só os nobres tinham uma educação elevada? Os autores dos Evangelhos tinham alto nível de letramento e escreveram em grego comum (koiné) que era uma forma popular.

Como ponto de partida, os livros que deveriam fazer parte do cânon do chamado Novo Testamento teriam que ser atribuídos a apóstolos ou seguidores de apóstolos. Logo, foi criado uma tradição de apostolicidade dos textos. Assim, os textos que deveriam ser inclusos tinham que pertencer a essa primeira categoria, pois

No século II, muitas propostas de cânone começam a aparecer e, mais tarde, por conta disso, os cristãos que se fizeram “ortodoxos” elaboraram os possíveis critérios para a inclusão dos livros aceitos, a saber: a apostolicidade, a antiguidade, a “ortodoxia” e o uso predominante dos textos entre as comunidades cristãs.

“[...] em parte de modo a garantir aos leitores que eles foram escritos por testemunhas oculares. Uma testemunha ocular merecia confiança de que iria contar a verdade sobre o que realmente aconteceu na vida de Jesus” (EHRMAN, 2010, p. 137).

Em 140 d.C., os marcionistas, grupo cristão formado pelos seguidores de um “teólogo” da Ásia Menor chamado Marcião (85-160 d.C.), tinham seu cânone próprio. A teologia de Marcião, em resumo, dizia que existia um Deus no Antigo Testamento e um Deus no Novo Testamento. O veterotestamentário era julgador e iracundo. Já o neotestamentário, era o Deus de Jesus que veio salvar os pecadores da punição eterna e do Deus do Antigo Testamento. Assim, a relação de livros desse grupo era a seguinte: uma versão do Evangelho de Lucas, Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Flipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses e Filêmon. Marcião excluiu todo o Antigo Testamento dessa relação devido ter referências ao Deus colérico dos judeus.

Porém, os quatro Evangelhos canônicos são anônimos, mas que foram colocados sob autoria de apóstolos12 e seguidores de apóstolos. Com efeito, os clérigos para chancelar autoridade aos textos neotestamentários nomearam alguns como sendo de apóstolos que, por sua vez, viveram nos tempos de Jesus ou acompanharam seu ministério público. Como também nomearam outros como sendo de companheiros de apóstolos, pois segundo essa tradição cristã, Lucas teria acompanhado Paulo em suas viagens missionárias e Marcos teria certa proximidade com Pedro. Mas em nenhum momento enquanto Jesus perambulava com seus discípulos pela Palestina antiga, existiram pessoas tomando “Historicamente, apóstolo é alguém enviado a uma missão por Jesus [...]” (SANTOS, 2006, p. 38).

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No século XVIII, foi publicado o chamado Cânone Muratori que recebeu esse nome por conta da sua descoberta feita pelo pesquisador italiano Ludovico Antonio Muratori. A descoberta desse documento se deu em 1740

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GNARUS - 68 numa biblioteca em Milão. Não há consenso sobre a sua datação, pois alguns especialistas o datam como sendo do século VIII. Mas para alguns pesquisadores a lista de livros “sagrados” contida no fragmento, pode remontar ao século II, mais especificamente em 170 d.C. A relação de livros coligidos nesse canône ficou assim: o Pastor de Hermas,13 quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João) Atos dos Apóstolos, duas cartas joaninas (não são mencionadas quais), as “treze”14 cartas paulinas, Apocalipse de Pedro15 e Sabedoria de Salomão.16

Ainda no ano de 180 d.C., o bispo grego Irineu de Lion (130-202 d.C.) estabeleceu que seu cânone seria o seguinte: quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), 1 João, 1 Pedro, cartas paulinas (não listadas), Sabedoria de Salomão e o Pastor de Hermas.

Em 180 d.C., o “teólogo” grego Clemente de Alexandria (150-217 d.C.), elencou também seu cânon que teria ficado desta forma: quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), cartas paulinas (que não foram listadas), Atos dos Apóstolos, Hebreus, Judas, Epístola de Barnabé17 e Apocalipse de Pedro.

É notório que dentre todas essas propostas de cânones os quatro Evangelhos foram aderidos por todos, exceto por Marcião que só aderiu o Evangelho de Lucas com algumas alterações, pois tudo que fazia menção ao Antigo Testamento foi retirado desse Evangelho também por ele.

Sua data provável é de meados do século II, em resumo, é um “livro proto-ortodoxo que registra visões reveladas ao Hermas, interpretadas por figuras angelicais, incluindo uma na forma de um pastor” (EHRMAN, 2012, p. 16).

13

Muitos estudiosos do Novo Testamento concordam que Paulo escreveu apenas sete epístolas legítimas. Dentre as quais estão: Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filêmon (Ibid., 2013, p. 98). 14

Sua data provável é de meados do século II, em resumo, o livro mostra “uma visão proto-ortodoxa das habitações dos abençoados e dos condenados, narrado pelo apóstolo Pedro” (Ibid., 2012, p. 15). 15

O “teólogo” e filósofo egípcio Orígenes (185-284 d.C.), em 185 d.C., propôs um cânon organizado-o assim: quatro Evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), 1 e 2 Pedro, 1 João, cartas paulinas (não mencionadas), Hebreus e Apocalipse.

Além dessas propostas canônicas supracitadas, existiam também diversos grupos de cristãos chamados de gnósticos. Para alguns desses grupos, o indivíduo seria salvo da danação eterna pelo conhecimento secreto e não pela fé. Portanto, Jesus veio transmitir conhecimentos secretos para a salvação, com isso, os gnósticos iam de encontro aos “ortodoxos” que diziam que a crença na morte e “ressurreição” de Jesus viabilizaria a vida eterna. Alguns grupos de gnósticos utilizavam como texto sagrado o Evangelho Copta de Tomé,18 o Evangelho da Verdade,19 entre outros. Segundo o professor de religião Ja-

Sua data provável remonta às últimas décadas do século I a.C., em resumo, “o conteúdo deste livro é um louvor à sabedoria divina [...]. A finalidade do autor, que se dirige aos judeus moradores no Egito, é acautelá-los contra um duplo perigo, a saber: serem desencaminhados pela filosofia grega, e serem tentados a abandonar o culto de um Deus único”. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral-Catequética. São Paulo: Ave-Maria, 2009, p. 25.

18 Sua data provável é da primeira metade do século II, em resumo, é uma espécie de “coleção de ditos de Jesus, alguns possivelmente de Tomé autênticos, outros incorporando preocupações gnósticas; descoberta em Nag Hammadi” (EHRMAN, 2012, p. 12).

Sua data provável é 135 d.C., em resumo, é uma “carta proto-ortodoxa supostamente escrita por Barnabé, companheiro de Paulo, que argumentava que o judaísmo é uma falsa religião e que o Velho Testamento é um livro cristão” (EHRMAN, 2012, p. 14).

Sua data provável é de meados do século II, em resumo, é uma “celebração gnóstica das alegrias da salvação trazidas pela revelação por Cristo do conhecimento verdadeiro; descoberta em Nag Hammadi” (Ibid., p. 12).

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GNARUS - 69 mes M. Robinson: “O Gnosticismo cristão, consequentemente, emergiu como uma reafirmação, ainda que em termos diferentes, da postura original de transcedência que nos remete aos primórdios do Cristianismo. Esses cristãos gnósticos, certamente, consideravam-se a continuação fiel, sob circuntâncias variáveis, daquela postura que fez dos cristãos. Entretanto, o que chamamos “ainda que em termos diferentes” e “sob circunstâncias variáveis” implica divergências autênticas, sob as quais outros cristãos, de forma clara, consideravam o Gnosticismo uma traição à postura cristã original. Essa era a convicção não apenas daqueles que haviam se acomodado ao status quo, mas, sem dúvida alguma, também àqueles que conservaram todo o vigor do protesto original e da esperança eterna. O afastamento da linguagem original poderia ter sido explorado como união opositora dentro do raio de alcance da Igreja. Consequentemente, os gnósticos foram banidos da Igreja como hereges” (ROBINSON, 2007, p. 19).

Outro grupo de cristãos da Antiguidade que também tinha livros considerados sagrados era o dos ebionitas. Este, era formado por judeus que se converteram à fé cristã e viam em Jesus alguém enviado por Deus. Todavia, em matéria de conversão de gentios aos preceitos cristãos, era preciso seguir os ritos e costumes judaicos para ser aceito na comunidade ebionita. Dessa forma, os livros “sagrados” para os ebionitas eram todos os do Antigo Testamento, o Evangelho dos Ebionitas20 e uma adaptação do Evangelho de Mateus, “mas sem os dois primeiros capítulos, que narram o nascimento virginal” (EHRMAN, 2010, p. 243). Isso porque só poderia haver um Deus, por isso, Jesus para eles era o filho de José e Maria e não de Deus. Além disso, era também o Messias,21 que para muitos judeus 20

Sua data provável é da primeira metade de século II, em resumo, é “um evangelho usado por cristãos judeus ebionitas, incorporando suas preocupações antissacrificiais; possivelmente uma compilação de relatos canônicos” (Ibid., p. 11).

Messias é um termo hebraico cujo seu equivalente em grego é Cristo, ou seja, significa “o ungido”. No âm-

21

era uma pessoa enviada por Deus para trazer uma consciência espiritual aos indivíduos, para “aplainar” os caminhos dos fiéis os direcionando ao “verdadeiro” Deus e para tomar o poder “terreno” pela força. Com todos esses livros considerados sacros por grupos cristãos, não se havia ainda algo “oficial” e fixo a ser seguido de maneira universal no âmbito dos cristãos do mundo antigo, porquanto “[...] a primeira relação indicando precisamente os 27 livros que conhecemos hoje como Novo Testamento é de autoria do bispo de Alexandria, Atanásio, em uma carta para seu rebanho, em 367 d.C. Atanásio considerou úteis outros livros [...], mas não como parte do cânon. Sua relação foi aprovada pelo Concílio de Hipona, em 393 d.C., e de Cartago, em 397 d.C., e foi a partir dessa época que o cânon do Novo Testamento tornou-se “oficial” (HILL, 2008, p. 69).

Interessante notar que o bispo egípcio Atanásio (296-373 d.C.)22 tinha uma certa predileção por outros livros, os quais serão vistos a seguir, mas vetava a inclusão deles no cânon. Isso se deu devido a vários embates com outros textos tidos como sagrados. Contudo, para alguns grupos minoritários de cristãos que foram proibidos de ler/ouvir os textos para além dos vinte e sete “oficiais”, essa postura dos “ortodoxos” foi um ataque às suas crenças. Pois esses textos que, mais tarde, não entraram no cânon, faziam parte do conjunto de textos que compunham a “Palavra de Deus”. De modo que mesmo com a bito judaico, para muitos grupos religiosos, o Messias nunca foi considerado como Deus propriamente dito. Porém, era visto como um mediador entre Deus e os homens para que a vontade de Deus grassasse na Terra (EHRMAN, 2010, p. 316). Em 325 d.C., Atanásio participou do Concílio de Niceia como diácono e foi ao concílio conjuntamente com a comitiva do bispo Alexandre de Alexandria, no Egito. Em 328 d.C., Atanásio se tornou bispo de Alexandria (HILL, 2008, p. 82). 22

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GNARUS - 70 proibição de tê-los em elevada estima, estes continuaram com suas reverências e os utilizavam como “regra de fé”.

3. Relações de poder com os livros “Sacros” Tertuliano (160-220 d.C.), “teólogo” africano nascido na província de Cartago, é considerado pelos cristãos como um dos Pais da Igreja.23 Tertuliano combateu os livros tidos como “heréticos”, pois asseverava que “[...] os hereges não apenas interpretam incorretamente as Escrituras – de fato não tinham, absolutamente, o direito de lê-las porque não as liam de acordo com os preceitos das igrejas. As Escrituras, concluiu obstinadamente Tertuliano, eram propriedade das igrejas e dos cristãos ortodoxos, como ele próprio, e os hereges estavam transgredindo esse fato” (apud HILL, 2008, p. 69).

Assim, mais tarde, para os cristãos autonomeados de “ortodoxos” os textos neotestamentários deveriam ser apenas os vinte e sete24 que só deveriam ser manuseados pelos “sacerdotes oficiais”, pois estes saberiam interpretá-los devidamente à luz das tradições e normas da Igreja. Os Pais da Igreja debateram acerca de mais ou menos trezentos anos para decidir quais livros seriam aceitos como a “Palavra de Deus”. Mas não houve unanimidade entre os grupos cristãos existentes, pois existiam cristãos a favor do Apocalipse de Pedro, do Evangelho de Pedro,25 do Apocalipse Copta “Teólogos” dos séculos II ao VIII. Seus escritos e reflexões teológicas são nomeados como Patrística. 23

Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos dos Apóstolos, Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filêmon, Hebreus, Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2, e 3 João, Judas e Apocalipse.

24

Sua data provável é da primeira metade do século II, em resumo, é uma “narrativa fragmentada do julgamento, morte e ressurreição de Jesus, com um re25

de Pedro,26 do Evangelho (da infância) de Tomé,27 da Epístola de Barnabé, de 3 Coríntios,28 dos Atos de Paulo,29 entre outros. Todos esses não entraram no cânone. Mas por que não entraram? Pelo simples fato de contrariar a “teologia” que os Pais da Igreja tinham criado como a “verdadeira” a ser seguida e alguns por serem falsificações. Mesmo assim, alguns grupos de cristãos continuaram a utilizar esses textos. Os cristãos dos séculos II e III podem ser chamados de proto-ortodoxos (EHRMAN, 2010, p. 248) e entre seus correligionários existiam algumas diferenças muito pequenas, contudo, foi o grupo que venceu todos os outros e se impôs como o “verdadeiro” legatário da mensagem de Jesus e dos apóstolos após o Concílio de Niceia (325 d.C.):30 As principais doutrinas ortodoxas são aquelas que acabaram se tornando os credos cristãos: há um só Deus, ele é o criador de tudo o que há; portanto a criação é inerentemente boa, mesmo que conspurcada pelo pecado. Jesus, seu filho, é ao mesmo tempo lato de seu surgimento da tumba; provavelmente o Evangelho proscrito pelo bispo Serapião no século II” (EHRMAN, 2012, p. 12). Sua data provável é do século III, em resumo, é “uma revelação gnóstica tida por Pedro que mostra o erro da crença proto-ortodoxa de que a salvação vem por meio da morte física real de Jesus” (Ibid., p. 15). 26

Sua data provável é da primeira metade do século II, em resumo, é um “divertido relato dos atos milagrosos de Jesus entre os 5 e os 12 anos de idade” (Ibid., p. 12). 27

Sua data provável é da segunda metade do século II, em resumo, ela é “escrita por ‘Paulo’ aos coríntios para opor-se às alegações de dois professores gnósticos e para enfatizar doutrinas proto-ortodoxas de Deus, da criação e da carne” (Ibid., p. 14).

28

29 Sua data provável é do fim do século II, em resumo, é “um texto composto das atividades missionárias e feitos milagrosos do apóstolo Paulo, que inclui os Atos de Tecla e 3 Coríntios” (Ibid., p. 13).

Para um aprofundamento sobre o Concílio de Niceia, ver: SOUZA, F. H. S. O Arianismo No Concílio De Niceia (325 d.C.). GNARUS REVISTA DE HISTÓRIA, v. 9, p. 7687, 2018. Disponível em: https://issuu.com/fernandogralha/docs/9-gnarus9-artigo-o_arianismo_no_con. Acesso em: 23 de setembro de 2018. 30

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GNARUS - 71 humano e divino, e não é dois seres [...], mas um só; ele trouxe a salvação não por intermédio de conhecimento secreto, mas ao derramar seu sangue verdadeiro (EHRMAN, 2010, p. 249).

Entre 300 e 325 d.C., foi escrito em grego um dos mais antigos manuscritos chamado de Códice Vaticano, pois pertence à Biblioteca do Vaticano desde 1481. Neste, contém os quatro Evangelhos canônicos, os Atos dos Apóstolos, Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e 2 Tessalonicenses, Hebreus, Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2, e 3 João e Judas. Porém, nesse códice, “faltam alguns fragmentos do Novo Testamento” (HALLEY, 2001, p. 848). Além disso, não contém o Apocalipse. Em 1844, foi encontrado pelo pesquisador alemão L. F. K. von Tischendorf, (Ibid.,: 848) no sopé do monte Sinai, um manuscrito chamado por conta disso de Códice Sináitico. Acredita-se que a sua datação remonta ao século IV, entre 330 e 360 d.C. Nesse documento, foram encontrados os vinte e sete livos “tradicionais” do Novo Testamento completos e ainda um acréscimo com o Pastor de Hermas, a Epístola de Barnabé, o Proto-Evangelho de Tiago,31 3 Coríntios, entre outros. Com essa descoberta arqueológica do século XIX, pode-se atestar que entre o início e a metade do quarto século, o cânone neotestamentário ainda não estava “globalmente” fixado com apenas seus vinte e sete livros. O bispo Eusébio de Cesareia (270-329 d.C.),32 em sua História Eclesiástica, decidiu Sua data provável é de meados do século II, em resumo, é “uma narrativa influente do nascimento, juventude e noivado de Maria, a mãe de Jesus, e do próprio nascimento milagroso de Cristo” (EHRMAN, 2012, p. 13).

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Sacerdote cristão que foi bispo de Cesareia (atual litoral mediterrâneo de Israel) a partir de 313 d.C. Eusébio é considerado por alguns teólogos como o “Pai da História da Igreja”, pois entre seus escritos cons32

discutir também sobre as chamadas “Escrituras divinamente inspiradas” e as demais que não poderiam ser consideradas como tais. Esta discussão se tornaria a base para a visão tida como “ortodoxa” na formulação do “cânone oficial” que, posteriormente, sofreu algumas alterações. Eusébio escreveu: 1. [...] É hora de recapitular os escritos do Novo Testamento já mencionados. Em primeiro lugar temos que colocar a tétrade santa dos Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos Apóstolos. 2. Depois deste há que se colocar a lista das Cartas de Paulo. Depois deve-se dar por certa a chamada Primeira de João, assim como a de Pedro. Depois destas, se está bem, pode-se colocar o Apocalipse de João, sobre o qual exporemos oportunamente o que dele se pensa. 3. Estes são os ditos admitidos. Dos livros discutidos, por outro lado, mas que são conhecidos da grande maioria, temos a Carta dita de Tiago, a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem segunda e terceira de João, sejam do próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome. 4. Entre os espúrios sejam listados: o escrito dos Atos de Paulo, o chamado Pastor e o Apocalipse de Pedro, e além destes, a que se diz Carta de Barnabé e a obra chamada Ensinamento dos Apóstolos, e ainda, como já disse, talvez, o Apocalipse de João: alguns, como disse, rechaçam-no, enquanto outros o contam entre os livros admitidos. 5. Alguns ainda catalogam entre estes inclusive o Evangelho dos hebreus, no qual são muito contemplados os hebreus que aceitaram Cristo. Todos estes são livros discutidos. 6. Mas creio ser necessário que exista um catálogo destes também, distinguindo os escritos que, segundo a tradição da Igreja, são verdadeiros, genuínos e admitidos, daqueles que diferentes destes por não serem testamentários, mas discutidos, ainda assim são conhecidos pela grande maioria dos autores eclesiásticos, de modo que possamos conhecer estes livros e os que com o nome dos apóstolos foram divulgados pelos hereges, alegando que se tratem seja dos Evangelhos de Pedro, de Tomás, de Matias ou mesmo de algum outro, ou ainda dos Atos de André, tam relatos sobre os paleocristianismos, onde o autor começou a discorrer desde os tempos apostólicos até o século IV (CESAREIA, 2002, p. 4).

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GNARUS - 72 de João e de outros apóstolos. Jamais um só dentre os escritores ortodoxos julgou digno mencionar estes livros em seus escritos.

(ou Tomás) e Matias,35 e, os Atos de André36 e João.37

7. Mas ocorre que a própria índole do fraseado difere enormemente do estilo dos apóstolos, o pensamento e a intenção do que neles está contido destoa ainda mais da verdadeira ortodoxia: claramente demonstram ser invenções de hereges. Por isso não devem ser incluídos nem mesmo entre os espúrios, mas devemos rechaçá-los como inteiramente absurdos e ímpios [...] (CESAREIA, 2002, p. 66).

Com todos esses livros, os clérigos buscaram métodos para “reconhecer” quais textos eram adequados e quais seriam descartados da composição do “cânone oficial”. O primeiro critério para “reconhecer” o texto “sagrado”, como referido anteriormente, era sua apostolicidade, ou seja, era defendido que o texto tinha que ser advindo dos apóstolos ou pessoas que teriam convivido com os mesmos; o segundo critério seria a antiguidade, isto é, deveria ter sido escrito nos primórdios da Igreja; o terceiro critério para “identificar” o texto “sacro” foi, logicamente, pelo viés teológico, isto é, o texto deveria corroborar com os ensinamentos da maioria tida como “ortodoxa”; o quarto e último critério era constatar-se de que a utilização do texto era feita por grupos predominantes de cristãos.

Para Eusébio, as Epístolas de Tiago, Judas, 2 Pedro e 2 e 3 João despertaram muitos debates acalorados quanto à inclusão no cânon e foram colocadas em uma espécie de segunda categoria, pois ainda havia muitas contestações e discussões sobre elas. Mas a maior parte dos cristãos as conhecia. Na terceira categoria estavam os livros considerados por Eusébio como espúrios, porém, para outros cristãos eram a “Palavra de Deus”, portanto, legítimos. Dentre os quais se encontravam: os Atos de Paulo, o Pastor de Hermas, o Apocalipse de Pedro, a Epístola de Barnabé, a Didaqué,33 Apocalipse de João (talvez) e o Evangelho Segundo os Hebreus.34 Na quarta e última categoria, para Eusébio de Cesareia, constava os livros abomináveis, portanto, tidos como textos “heréticos”. São eles: os Evangelhos de Pedro, Copta de Tomé

Sua data provável é de 100 d.C., em resumo, é um “manual proto-ortodoxo da igreja que discute ética cristã (os “dois caminhos”), rituais como batismo, Eucaristia e vida em comunidade” (EHRMAN, 2012, p. 14).

33

34

Sua data provável é da primeira metade do século II, em resumo, é “um evangelho que registra os eventos da vida de Jesus, possivelmente incorporando ideias gnósticas, utilizado por cristãos judeus no Egito” (Ibid., p. 11).

Em 367 d.C., o bispo Atanásio de Alexandria escreveu a sua 39ª Carta Pascoal. Esta evidenciava quando ocorreria a comemoração da Páscoa naquele ano, listava os livros do Antigo Testamento e, sobretudo, salientava o que se tornaria a consolidação do cânone neotestamentário. Atanásio escreveu: 5. Again it is not tedious to speak of the [books] of the New Testament. These are, Atribuído ao apóstolo Matias que foi o sucessor de Judas Iscariotes (Atos 1:15-26). É um Evangelho perdido que não se sabe a sua datação e conteúdo. De modo que ele é conhecido [...] “apenas através de umas poucas citações de Clemente de Alexandria” (150-215 d.C.) (EHRMAN, 2012, p. 34). 35

36 Sua data provável é do século II, em resumo, o livro “apresenta uma série de eventos e situações domésticas que supostamente ocorreram durante o ministério do apóstolo André na cidade de Patras”, na Grécia (NETO; SILVA; ANTONIO, 2017, p. 221).

Sua data provável é da segunda metade do século II, em resumo, é “um relato episódico das atividades missionárias e dos feitos milagrosos do discípulo João, filho de Zebedeu, missionário em Éfeso” (EHRMAN, 2012, p. 13). 37

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GNARUS - 73 the four Gospels, according to Matthew, Mark, Luke, and John. Afterwards, the Acts of the Apostles and Epistles (called Catholic), seven, viz. of James, one; of Peter, two; of John, three; after these, one of Jude. In addition, there are fourteen Epistles of Paul, written in this order. The first, to the Romans; then two to the Corinthians; after these, to the Galatians; next, to the Ephesians; then to the Philippians; then to the Colossians; after these, two to the Thessalonians, and that to the Hebrews; and again, two to Timothy; one to Titus; and lastly, that to Philemon. And besides, the Revelation of John. 6. These are fountains of salvation, that they who thirst may be satisfied with the living words they contain. In these alone is proclaimed the doctrine of godliness. Let no man add to these, neither let him take ought from these. For concerning these the Lord put to shame the Sadducees, and said, ‘Ye do err, not knowing the Scriptures.’ And He reproved the Jews, saying, ‘Search the Scriptures, for these are they that testify of Me.’

paulino. Além disso, os livros de Sabedoria de Salomão, Sabedoria de Siraque (Eclesiástico),39 Ester, Judite,40 Tobias,41 Ensinamento dos Apóstolos (Didaqué) e o Pastor (de Hermas), poderiam ser utilizados em instruções aos fiéis sendo permitidas as devidas leituras, mas não sendo considerados canônicos. Agora, quanto aos demais livros que existiram no período,42 todos foram considerados como “apócrifos”.43 Porquanto, para Atanásio, estes eram invenções de hereges que queriam imputar certa antiguidade aos textos. Porém, tinham o escopo de desviar os fiéis mais sim39

Sua data provável é de 200 a.C., em resumo, “baseia-se inteiramente nos mandamentos de Deus contidos na Lei mosaica e aplicados a todas as manifestações da vida cotidiana”. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral-Catequética. São Paulo: Ave-Maria, 2009, p. 26. Sua data provável é de meados do século II a.C., em resumo, o “livro de Judite leva os leitores espontaneamente a pensar nas lutas que os judeus tiveram que sustentar pela sua fé, lutas essas que se tornaram particularmente agudas dois séculos antes da era cristã”. Ibid., p. 19.

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7. But for greater exactness I add this also, writing of necessity; that there are other books besides these not indeed included in the Canon, but appointed by the Fathers to be read by those who newly join us, and who wish for instruction in the word of godliness. The Wisdom of Solomon, and the Wisdom of Sirach, and Esther, and Judith, and Tobit, and that which is called the Teaching of the Apostles, and the Shepherd. But the former, my brethren, are included in the Canon, the latter being [merely] read; nor is there in any place a mention of apocryphal writings. But they are an invention of heretics, who write them when they choose, bestowing upon them their approbation, and assigning to them a date, that so, using them as ancient writings, they may find occasion to lead astray the simple.38

A partir dessa carta pascal, os vinte e sete livros “tradicionais” do chamado Novo Testamento foram demarcados. Para o bispo Atanásio, Paulo teria escrito catorze epístolas, pois foi atribuída à autoria da Epístola aos Hebreus ao apóstolo, logo, esta foi inclusa no corpus 39ª Carta Pascal de Atanásio. Fonte: Christian Classics Ethereal Library (CCEL). Disponível em: http://www. ccel.org/ccel/schaff/npnf204.xxv.iii.iii.xxv.html. Acesso em: 1 de agosto de 2018. Neste site consta a carta na íntegra.

38

Sua data provável é de meados do século II a.C., em resumo, “o livro de Tobias é um verdadeiro espelho de um judeu justo, espelho esse que se pode aplicar a um cristão quase sem nenhuma transposição”. Ibid., p.19. 41

Tanto os que já foram mencionados nesta pesquisa, como estes: Epístola dos Apóstolos (séc. II), Evangelho dos Egípcios (séc. II), Evangelho de Maria (séc. II), Evangelho dos Nazarenos (séc. II), Evangelho de Filipe (séc. III), Evangelho do Salvador (séc. II), Papiro Egerton 2 (séc. II), Atos de Pedro (séc. II), Atos de Pilatos (séc. II), Atos de Tecla (séc. II), Atos de Tomé (séc. III), 1 Clemente (séc. I), 2 Clemente (séc. II), Correspondência de Paulo e Sêneca (séc. IV), Carta aos Laodicenses (séc. II), Carta de Pedro a Tiago escrita por Pedro, e sua Resposta (séc. III), Carta de Ptolomeu a Flora (séc. II), A Pregação de Pedro (séc. II), Literatura Pseudo-clementina – Reconhecimentos (séc. III), Tratado sobre a Ressurreição (séc. II), Apocalipse de Paulo (séc. IV), Primeiro Pensamento em Três Formas (séc. II), Hino da Pérola (séc. II), A Origem do Mundo (séc. III), O segundo Tratado do Grande Set (séc. III), O livro secreto de João (séc. II), etc. (EHRMAN, 2012, p. 11-16).

42

Convém ressaltar que este termo aplicado por alguns teólogos aos livros que não entraram na Bíblia tem uma carga pejorativa do tipo ilegítimo, inautêntico, etc. Portanto, é preferível utilizar-se dos vocábulos acanônicos, não canônicos e extrabíblicos para o referido assunto.

43

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GNARUS - 74 ples com falsificações textuais. Mais tarde, aconteceram dois concílios44 no norte da África, o Concílio de Hipona em 393 d.C. e o de Cartago em 397 d.C. Nestes, não houve uma oficialização do cânon, contudo, ocorreu uma certa predileção pela lista dos vinte e sete livros (e também do Antigo Testamento) mencionados por Atanásio na sua 39ª Carta Pascoal. Porém, a Igreja de Roma ainda daria seu aval sobre essa compilação. No entanto, grupos cristãos menores continuaram com seus livros tidos como “sagrados” em suas regiões. Apenas no século XVI, no Concílio de Trento,45 houve uma declaração oficial acerca da fixação dos vinte e sete livros do Novo Testamento e da legitimidade da Bíblia como um todo. De sorte que: “[...] O concílio procurou manter a visão tradicional de que a Igreja e a Bíblia formam um todo, um corpo de ensinamento indivisível. Isso significa que as Escrituras são, de fato, oficiais, mas somente quando interpretadas pela Igreja e, em particular, pelo papado” (HILL, 2008, p. 261).

Com isso, além de confirmar os livros selecionados do Novo Testamento, a Igreja (no século XVI) controlou ainda mais a interpretação para que não perdesse mais fiéis com o advento de novos grupos cristãos (além dos reformadores46) que contivessem suas próprias interpretações da Bíblia dentro ou fora da Igreja Católica. Contudo, nos dias atuais, a pluralidade interpretativa ainda é uma constante na religião cristã. Pois, assim como exis“Junta de eclesiásticos, esp. bispos, presidida ou aprovada pelo papa” (HOUAISS, 2010, p. 184). 44

Concílio ecumênico da Igreja Católica que ocorreu entre 1545 e 1563 em várias reuniões na província italiana de Trento. “O Concílio de Trento reforçou o poder do papa, criou o Index, relação de livros proibidos à leitura dos cristãos, [...] afirmou que somente a Igreja podia interpretar a Escritura [...]” (SEFFNER, 1993, p. 63).

45

Cristãos protestantes que surgiram após a Reforma Luterana de 1517, tais como: luteranos, calvinistas, anabatistas, entre outros. 46

A folha de P46, um das primeiras coleções do século III das epístolas paulinas.

tiram diversos grupos cristãos na Antiguidade, atualmente, existem tantos outros grupos “novos” que são herdeiros, conscientes ou inconscientemente, das ideias desses cristãos do mundo antigo.

4. Considerações finais O cânon neotestamentário foi imposto pelo grupo tido como “ortodoxo” que venceu grupos menores alcunhados como “heterodoxos”. Estes assim foram chamados, pois tinham suas próprias perspectivas cúlticas, recepções de fé, livros ditos sagrados, etc. Mesmo com a vitória do grupo maior, esses grupos minoritários continuaram com seus costumes e suas “Escrituras”: [...] Na primeira metade do século V a igreja na Síria finalizou seu cânone do Novo Testamento e excluiu dele 2 de Pedro, 2 e 3 João, Judas e Revelação (Apocalipse), fazendo um

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GNARUS - 75 cânone de 22 livros em vez de 27. A igreja na Etiópia finalmente aceitou os 27 livros nomeados por Atanásio, mas adicionou outros quatro desconhecidos, de outras fontes – Sínodos, O Livro de Clemente (que não é 1 ou 2 Clemente), o Livro do Pacto e a Didascália – obtendo um cânone de 31 livros (EHRMAN, 2012, p. 333).

Além das comunidades cristãs da Síria e da Etiópia, pode-se visualizar também essa permanência de livros acanônicos no manuscrito Códice Alexandrino que “foi escrito no século V, em Alexandria, no Egito. Contém a Bíblia inteira (faltando alguns fragmentos) e as obras extracanônicas Epístolas de Clemente e Salmos de Salomão. Está no Museu Britânico desde 1627” (HALLEY, 2001, p. 848). Hoje, o Novo Testamento, continua sendo composto pelos vinte e sete livros que foram arrolados na segunda metade do século IV. Portanto, ele é aceito de forma unânime entre as inúmeras concepções de fé cristã que existem. Todavia, existem grupos cristãos que têm outros livros ou textos de pessoas tidas como “profetas”, de fundadores de uma nova vertente cristã, de “servos exemplares e iluminados por Deus”, de “mensageiros especiais”, etc. Na perspectiva desses grupos, esses documentos extrabíblicos servem como subsídios ao Novo Testamento e a Bíblia como um todo. Ainda assim, estes não têm a pretensão de “canonizá-los”, mas esses livros e textos são utilizados como um instrumento para despertar a fé e para complementá-la, de modo que os mesmos têm elevada estima conjuntamente com a Bíblia que não é, de certa forma, suficiente para determinados assuntos.47 O fundamento da fé tanto para a Igreja Católica como para a Igreja Ortodoxa, se encontra na Bíblia e na Tradição das mesmas. Já para a Igreja Luterana, o fundamento está só na Bíblia. Para a Igreja Metodista Wesleyana, a base da fé está na Bíblia, no Credo apostólico e nos 35 artigos de John Wesley (1703-1791). A Igreja Adventista do Sétimo Dia tem como sua base de fé e orientação, a Bíblia e os Escritos de Ellen G. White

47

Em síntese, ao se estudar todo esse processo de construção de um cânone dito “oficial” em detrimento de outras formas de “Escrituras” que foram alijadas, percebe-se que a natureza da religião, numa esfera geral, e dos cristianismos numa esfera específica, sempre será a diversidade de pensamentos: “Por cristianismos, afirma-se que uma dada experiência religiosa sempre é plural, com a sua base formativa sendo ampla demais para caber em categorias como certo e errado, ortodoxo e heterodoxo. O reducionismo de uma experiência religiosa, seja ela qual for, costuma produzir um tipo de análise “histórica” bastante previsível, com seus resultados parciais e militantes” (CHEVITARESE, 2016, p. 9).

Entendendo isso, pode-se dizer que é possível que o indivíduo seja capaz de se tornar mais tolerante com as recepções de fé variantes dentro da esfera cristã. Destarte, pode-se dizer também que o “cânone oficial” foi elaborado tendo em vista a extinção de perspectivas divergentes da “fé tradicional” na tentativa de homogeneizar a religião cristã. Porém, tal intento não logrou êxito como pode ser visualizado nas inúmeras ramificações cristãs existentes.

Flávio Henrique Santos de Souza é Licenciado em História pela Universidade Castelo Branco (UCB), pós-graduado em História Antiga e Medieval pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEA-UERJ) e Pós-graduado em História do Cristianismo pelo Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM). (1827-1915), tais como: Passos até Cristo, entre outros. Em relação à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, o alicerce da fé se encontra na Bíblia, no Livro de Mórmon, entre outros. Agora, para o sistema filosófico-religioso cristão do Espiritismo Kardecista, o suporte para fé está na Bíblia, no Livro dos Espíritos, etc. Foram citadas apenas algumas vertentes cristãs para salientar a heterogeneidade do “mundo cristão” (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2005, p. 197, 205, 211, 217, 220, 224, 231 e 309).

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Artigo

A ECONOMIA COMO FATOR DECISIVO PARA A QUEDA DO GOVERNO DE SALVADOR ALLENDE Por Bernardo Farias Lima

RESUMO: Este artigo busca compreender, a partir da perspectiva econômica, o golpe no governo da “via pacifica para socialismo”, de Allende e da Unidade Popular. Golpe esse respaldado e patrocinado pelo governo norte-americano, através do financiamento de greves e locautes do empresariado nacional, entender a participação das multinacionais e da oposição política. Palavras Chaves: Allende; Socialismo; Golpe; Economia; EUA; Cobre.

Introdução

E

m 1964, ano marcante na história brasileira por se tratar do ano do golpe civil-militar que desembocou em uma ditadura cuja duração teve 21 anos, os Estados Unidos tomavam as rédeas de ações que tinham por objetivo impedir a vitória de Salvador Allende à presidência da república no Chile. Allende, marxista declarado do PS chileno, buscava chegar pela terceira vez ao poder e mudar o regime capitalista através da “via pacifica para o socialismo”, inédito na história do socialismo, era candidato da FRAP (Frente de Acción Popular), um grupo formado pelo Partido Socialista, Partido Comunista e partidos menores. Acabou derrotado pelo can-

didato da Democracia Cristã, Eduardo Frei, contudo deixou um alerta aos Estados Unidos que desde então se preocupava com a possível eleição de um marxista declarado, cujo objetivo era o socialismo e não apenas a social democracia sem a mudança do status quo. O interesse dos Estados Unidos no Chile se devia ao principal produto exportado pelo país: o cobre, cujo país andino era responsável por 80% da produção no mercado mundial e os principais responsáveis por essas produções eram empresas americanas que representavam cerca de 75% da exportação total do país.1 KEVINSON E DE ONÍS, 1972 apud BANDEIRA, 2008, p.99. 1

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Salvador Allende em comício

Durante seu governo, Eduardo Frei, para acalmar os ânimos, tanto de chilenos que cobravam a nacionalização do cobre quanto dos investidores estrangeiros, resolve realizar o que denominou de “chilenização do cobre”. Por meio da companhia estatal Corporação Nacional do Cobre do Chile o governo começou a adquirir ações de empresas produtoras do Cobre, O governo de Frei, segundo Moniz Bandeira “comprou por US$ 80 milhões 51% de participação na Kennecot na sua subsidiaria Braden Copper” também “comprou 25% da Anaconda”.2 Na prática essa chilenização não se mostrou benéfica para o Chile e sim para as companhias que continuavam a exportar e produzir e tinham seus lucros maiores a cada ano. As políticas econômicas tomadas por Frei ao 2

Ibid., p.110

contrário de diminuir a dependência estrangeira fez a mesma aumentar, no fim de seu mandato cerca de 100 empresas estrangeiras faziam investimentos no Chile.3 Dessa forma o capital estrangeiro se tornou mais presente no mercado chileno. Com o fracasso econômico, a dependência de capital estrangeiro, a alta inflação e o crescimento da dívida externa o governo Frei abriu margem para o crescimento e chegada ao poder da UP (Unidade Popular) que tinha como seu candidato, pela quarta vez, Salvador Allende. Em 1970 o governo da “via pacífica para o socialismo” triunfara e obtivera 36%, dependendo assim do parlamento para aprovar e aceitar o novo governo, já que não chegara à maioria absoluta. A partir desse momento, em que a dúvida pairava, sobre a 3

LOVEMAN, Brian, 2001 apud BANDEIRA, 2008, p.119.

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GNARUS - 79 aclamação ou não do nome de Allende à presidência, surge o terror econômico causado pelos Estados Unidos que busco nesse artigo elucidar.

A queda de Allende causada pelo deterioramento econômico. A vitória de Allende anunciava de maneira “privada” as intensificações das ações do governo americano para desestabilizar a administração que ainda nem começara. O terror econômico causado pelos EUA e pelos adversários internos de Allende causou uma corrida aos bancos, um candidato socialista cuja tendência econômica se opunha às tendências de potências capitalistas causou pânico no mercado. O ministro da Fazenda e Economia de Frei foi um dos responsáveis pelo pânico causado, indo à televisão anunciar o “retrocesso” econômico que a eleição de Allende causaria.4 A situação de terror financeiro que preocupava as classes média e alta estava formada. A campanha inicial da CIA funcionou, segundo Bandeira, “a bolsa de valores caiu 60%. A bolsa de comércio não abriu suas portas, os valores em escudo de propriedades e casas caíram. Passagens para países da América e da Europa esgotaram-se”.5 Contudo, Allende conseguiu contornar a situação obrigando Frei a criar uma série de medidas que freassem o problema criado pelas ações do governo americano. Após o fracasso dessas ações iniciais o presidente americano, Richard Nixon e o assessor de segurança de Segurança Nacional,

Henry Kissinger, através do Comitê 40,6 concordam que deviam intervir no Chile, no dia 16 de setembro, através do projeto FUBELT, esse projeto consistia em planos que tinham como objetivo criar a desordem econômica que culminasse em um golpe de estado desferido pelas forças armadas. As ações seriam realizadas através de duas “Tracks” e contavam com a participação de empresas multinacionais como a ITT. As tracks foram dividas em duas, a primeira era a “Track One” dirigida pelo embaixador dos Estados Unidos no Chile, Edward Korry. Essa buscava impedir a chegada de Allende ao poder de forma “constitucional” realizando “operações políticas, econômicas e de propaganda, que visavam induzir opositores de Allende a impedir sua ascensão ao poder por métodos políticos”.7 Ou seja, queria impedir através do parlamento, que decidia se Allende assumiria ou não tendo em vista a não obtenção de maioria absoluta de votos, a chegada do socialista ao poder. Já a “Track Two” era dirigida pela própria CIA, essa tinha por objetivo o golpe militar (e civil já que havia participação do empresariado). A Track One tinha como objetivo o retorno de Frei ao governo e contava com a sua conivência para um “golpe”, pois este representava melhor os interesses americanos, através de manobras. Dessa forma a CIA influenciou jornais para assim mostrar que o Chile estava no caminho do caos econômico.8 O objetivo da Track One segundo Bandeira, foi o de

O Comitê 40 servia para a realização de ações encobertas cujo objetivo era interferir na política interna de alguns países, como foi o caso do chile. Kissinger era o presidente do comitê. 6

4

Ibid., p. 163

7

VERDUGO, 2003, p. 45

5

Ibid., p.164

8

Ibid., p. 46

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“alarmar a população e o meio empresarial, demonstrando a reação que a eleição de Allende provocaria no estrangeiro e as graves consequências para a economia do chile, de forma a provocar um pânico financeiro, um crash, a instabilidade política, forçando os militares a intervirem para impedir a investidura de Allende na presidência do Chile. O 40 Committee decidiu determinar que os organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial, cortassem todos os créditos e pressionar as empresas americanas e de outros países no sentido de que reduzissem seus investimentos no Chile”.9

Essas operações, porém, fracassaram momentaneamente e não atingem o objetivo esperado: impedir a chegada de Allende ao poder. E o socialista através de acordos com a DC teve a eleição referendada pelo parlamento em 4 de novembro 1970, mas nem por isso as ações encobertas cessaram, o terrorismo econômico continuava e o governo socialista herdara todos os problemas econômicos do governo anterior, como uma alta dívida externa (em torno de US$ 4 bilhões sendo essa mais da metade adquirida dos EUA),10 dependência estrangeira afinal como foi dito anteriormente ao contrário do que pretendia o governo Frei acabara incentivando o investimento de capital estrangeiro, sobretudo americano, no Chile. Após apenas 5 dias de governo socialista, os EUA preparam outras intervenções econômicas a fim de arruinar a administração que mal começara. Em um memorando, Henry Kissinger trata das “políticas para o Chile”. Tal documento discute posições políticas que pudessem suscitar um fracasso e justificar uma intervenção militar no governo da Unidade Popular. Dentre os tópicos abordados estão questões econômicas como a influência sobre instituições financeiras internacionais impedido assim qualquer ajuda ao Chile, e de que “o 9

BANDEIRA, 2008, p.169.

10

Idem, p.188.

presidente decidiu que o diretor de Preparação de Emergências fará estudo acerca das possíveis condutas do mercado do cobre, os estoques disponíveis e outros fatores que possam afetar o mercado de cobre do Chile”.11 Com as expropriações o governo Allende irritou mais ainda as multinacionais e o governo americano, ainda mais pelo fato de Allende não querer pagar indenização pela nacionalização do cobre chileno, justificando que as empresas americanas tinham lucrado excessivamente com a mineração do cobre ao acumular lucros acima da média do mercado internacional.12 Apesar de ser uma decisão que estava dentro de leis estabelecidas pela Organização das Nações Unidas, as empresas e os EUA reclamaram a falta de indenização e então intensificaram a campanha contra o governo da Unidade Popular. O governo americano, a partir de instituições financeiras internacionais das quais passou a fazer parte, estabeleceu medidas que privassem à países que fizessem expropriações e nacionalizações sem pagamento de indenizações, empréstimos. Agindo assim para arruinar a economia chilena. No primeiro ano de governo, Allende conseguiu contornar a crise financeira gestada por seus opositores e pelo governo americano: No primeiro ano de governo, o desemprego baixou 4%, o Produto Interno Bruto cresceu 8,5% e – mais importante – melhorou a distribuição de renda. Quer dizer, os trabalhadores aumentaram em 51% a 63%, a sua participação na renda nacional. Traduziu-se no aumento do apoio eleitoral da Unidade Popular. Obteve 50,2% dos votos nas eleições municipais de 1971.13

11

VERDUGO, 2003, p. 70

12

SADER, 1992. p. 45.

13

VERDUGO, 2003, p. 79

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GNARUS - 81 Assim concluía-se o primeiro ano do governo socialista de Allende. Todavia, diante de tal sucesso as políticas estadunidenses de boicote econômico em relação ao Chile recrudesceram, a oposição, aliada aos americanos, também intensificou as suas ações a fim de desestabilizar o governo da Unidade Popular. Os empresários chilenos viram seus privilégios e riquezas ameaçados e resolveram agir para a derrocada do governo socialista. Organizaram-se através de movimentos do empresariado como a Sociedade de Fomento Fabril (SOFOFA). A partir daí entraram em contato com empresários brasileiros que apoiavam a ditadura civil-militar no Brasil e para derrubar Allende eles deviam “criar o caos econômico e político, fomentar o descontentamento e aprofundar o medo do comunismo entre os empregados e empregadores, bloquear os esforços legislativos de esquerda, organizar manifestações e concentrações, e mesmo atos de terrorismo, se necessário.”14 Entrementes, os empresários também reagiram através da queda no grau das produções, fazendo com que diminuíssem, gerando assim um déficit na produção de bens, o que não atendeu às demandas. Produtos de primeira necessidade (alimentícios principalmente) começaram a sumir e reaparecer no mercado negro onde chegavam a preços exorbitantes. Criaram-se então órgãos de fiscalização, tais órgãos encontravam por vezes sacas de alimentos em depósitos e através das JAP (Juntas de Abastecimento e Preços) distribuíam às camadas mais pobres da população. Em 1972 os conflitos, ao passo que as dificuldades econômicas se tornavam mais agudas, aguçaram-se os conflitos de classes. Os anseios do governo americano, da oposição e 14 BANDEIRA, 2008, p. 287.

da ala militarista que apoiavam um golpe civilmilitar estavam sendo atendidas. Criava-se assim, aos poucos, um ambiente de tensão que pudesse justificar um golpe civil-militar. A CIA financiara também os donos de transportes, cuja greve dos caminhões foi de extrema importância para o desgaste econômico no Chile, Orlando Sáenz, presidente da SOFOFA comentou sobre tais pagamentos: “Depositava-se, em dólares, em cinco contas que tínhamos na Europa, Estados Unidos e América Latina. Dinheiro da CIA? Da ITT ou de outras empresas multinacionais? Esse não era nosso problema. Só sabíamos que era preciso dispor de muito dinheiro, para criar as condições de um golpe militar”.15 Tendo em vista os diversos problemas econômicos existentes no governo de Allende os militares conspiracionistas começaram a movimentar-se, segundo o embaixador brasileiro no Chile, Câmara Canto. Devido aos problemas econômicos os militares “teriam chegado à conclusão de que, à vista da atual situação econômica, social e política do país, as Forças Armadas deveriam tomar uma atitude, a fim de evitar a dêbácle total da nação”.16 Dessa forma a conspiração suscitada pelos atores já conhecidos ganha seus contornos. Segundo Moniz Bandeira, os conflitos sociais entre as classes refletiam-se na economia chilena, impedindo assim que qualquer medida econômica tomada pelo governo diminuísse tais problemas. A CIA e seus subordinados tinha total conhecimento acerca disso. Allende também tinha plena consciência disso e sabia que a responsabilidade se devia ao bloqueio “virtual” que sofria por parte de instituições internacionais de créditos.17 15

VERDUGO, 2003, p. 80.

16

BANDEIRA, 2008, p. 341.

17

Ibid., p.345.

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Trabalhadores chilenos marcham em apoio a Salvador Allende, em 1964

Nesse período, “[...] a taxa de inflação no mês de agosto foi da ordem de 22,7%, contra apenas 12,7%, em 1971, o que elevou o custo de vida, referente aos oito primeiro meses do ano, em 63,5%, afetando principalmente os gêneros alimentícios – verduras, frutas, carnes, aves, peixes, ovos, produtos lácteos, farinha etc.”18

Outro meio encontrando pelos empresários para boicotar a economia do país andino foi o locaute, ou seja, os empregadores não cediam aos trabalhadores seus meios de trabalho, uma forma de manifestação dos empregadores com o objetivo de diminuir ainda mais a produção. O comércio fechava suas portas durante manifestações da oposição, manifestações essas que buscavam animar os ânimos a fim de criar ainda mais um ambiente hostil já existente. E em 13 de setembro de 1972 é denunciado pelo MIR, um plano que contava com membros do Partido Nacional, 18

Ibid., p.346

Democracia Cristã, membros da SOFOFA e do grupo neofascista Patria y Liberdad. “o plano consistia na paralisação do país, por meio de um conflito com a Confederação Nacional de Transporte Terrestre, que cortaria o território nacional em oito partes, acumulando veículos em distintos lugares, o que impediria consequentemente, o abastecimento da população”.19 A crise em 1972, mostrara-se mais evidente, o preço do cobre chileno no mercado mundial diminuíra, houve falta de peças para veículos como caminhões que eram de extrema necessidade dentro do país devido ao transporte de bens, sendo dos estados unidos a origem de maior parte dessas peças. A maquinaria usada nas industrias também necessitava de peças estadunidenses, porém os trabalhadores chilenos conseguiram contornar a situação na indústria criando peças que substituíssem as 19

BANDEIRA, 2008, p. 350.

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GNARUS - 83 norte-americanas. Entrementes, o descontentamento do empresariado dos transportes fez com que o clima se acirrasse ainda mais. Estouraram-se greves em 10 de outubro, greves essas que foram financiadas pelo Comitê 40. O setor de transportes tinha função vital dentro do sistema econômico chileno, afetando assim toda a cadeia produtiva, acabaram-se juntando a eles outros setores. “Cerca de 100% do transporte, 97% do comércio, 80% dos profissionais, 85% das cooperativas camponesas se juntaram à greve, que envolvem entre 6.000 e 7.000 chilenos”.20 Contudo segundo o embaixador Câmara Canto e o próprio Allende, a greve se fez sentir muito mais nos bairros de classe média, já que para a população mais pobre as JAP abria os comércios e distribuía os alimentos, enquanto nos bairros de classe média a especulação crescia devido a procura de produtos, o que fez com que houvesse até mesmo leilões. Foi o preço a ser pago por se juntarem aos grevistas usados pelo governo americano e pela oposição. Esse novo capítulo da crise chilena conseguiu ser driblada a partir da mobilização dos trabalhadores e da conciliação feita entre governo e militares que desistiram de um golpe que estava em andamento. A crise econômica gestada pelo governo americano e suas empresas que impediam praticamente qualquer forma de comércio chileno no mercado internacional do cobre e cujo país o Chile era dependente de produtos, fez com que o Allende pedisse ajuda aos soviéticos em dezembro de 1972, esses porém tinham receio e acreditavam não poder subsidiar outro país latino-americano como fize20

Ibid., KISSINGER, 1982 apud BANDEIRA, 2008. p. 361

ra com Cuba. Allende, porém, conseguiu uma ajuda econômica do país de US$ 100 milhões o que era pouco diante da necessidade. A crise levou o valor das exportações a um nível mais baixo. “[...] da ordem aproximadamente de US$ 1,3 bilhão em 1970, caíra para US$ 1,1 bilhão em 1971 e US$ 956 milhões em 1972. A inflação de cerca de 163,4% em 1972 havia anulado a distribuição de renda ocorrida em 1971 e tornara-se incontrolável, concorrendo para o brutal encarecimento do custo de vida”.21

As eleições de 4 de março de 1973 poderiam deixar ainda mais acirrados os ânimos e o confronto entre executivo e legislativo tornar-se-ia dessa forma mais constante. A burguesia esperava atingir 60% de opositores a fim de derrubar Allende e o enfrentamento entre classes se acentuou, fazendo com que a tensão atingisse o seu ápice até então. A oposição, porém, atingiu 54,70% não atingindo, portanto, o número de representantes esperado. Fazendo com que o legislativo continuasse dificultando a vida do governo, esperando qualquer passo em falso que fizesse com que o governo extrapolasse a constituição para desferir o golpe. O congresso em junho ainda tentou forçar o governo a mudar sua política econômica, ameaçado derrubar todos os ministros da economia do governo Allende. Produções de produtos básicos consumidos no dia-a-dia foram paradas devido a falta de produtos primários, a oposição obviamente responsabilizava o governo a fim de incitar ainda mais os militares para o desfecho do golpe. Um diplomata americano define as perspectivas em relação ao futuro do Chile, dentre elas

21

BANDEIRA, 2008, p. 395.

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GNARUS - 84 “[...]na área econômica e financeira, as previsões eram no sentido de que o país passaria “do péssimo para o desastroso”, devido à premente necessidade de importar combustível e alimentos, bem como acessórios para transportes, comunicações, indústrias, e por não ter os recursos necessários para fazê-lo”.22

A obra da CIA estava em andamento e obtendo sucesso, a economia chilena estava em frangalhos, destruída com uma alta inflação, escassez de alimento e sem perspectiva de melhores, o golpe gestado desde sua eleição estava nos últimos momentos antes do golpe que culminaria na tomada de poder pelos militares. Novamente no dia de 2 de agosto de 1973 os transportadores entram em greve. Mais uma vez a crise foi acentuada pela falta de abastecimento de gêneros alimentícios. “A CIA incrementava o mercado negro de bens e de dólares, financiando os pequenos comerciantes e distribuidores, e as greves, através de um sistema bancário clandestino, criado em fins de 1972, com o objetivo de sustentar suas próprias atividades”.23

Esses movimentos coordenados pela oposição chilena, sobretudo, pela Democracia Cristã, impuseram a Allende a derrota final. Em agosto os militares chilenos já conspiravam pela conclusão do que começara em 1964 através do temor causado pela CIA, sem que Allende tivesse sequer ganho. E em 11 de setembro de 1973, bombardearam o La Moneda, onde Allende, democrata convicto, resistiu até quando pôde e se matara com um fuzil que recebera de presente de Fidel Castro.

22

Ibid., p. 452.

23

SCHESCH e GARRET apud BANDEIRA, 2008, p. 489.

Considerações Finais O governo da Unidade Popular e seu líder, Allende, fizeram os socialistas e comunistas do mundo crerem numa revolução cuja necessidade de violência não se fizesse presente. Não levaram, talvez, em conta as forças internas e externas que poderiam interromper tais anseios, os EUA em seu imperialismo interviu de forma direta e indireta na sociedade chilena nos anos 1960 e 70. Nixon dissera que faria a economia daquele país gritar de dor e o fez. A democracia liberal burguesa, pregada pelos americanos, não permite qualquer forma de pensamento socialista ou comunista que leve um país à quebra do status quo e consequentemente a destruição da economia capitalista deste. Configura-se assim uma forma ditatorial do mercado, cujo os interesses se pautam em lucros e quando ameaçados agem de forma a inibir quaisquer movimentos que interrompam tais ganhos. Essa ditadura existe na dependência de países subdesenvolvidos cuja a industrialização se deu tardiamente e as multinacionais, sobretudo dos EUA, se apropriaram de um mercado interno. O imperialismo que como no caso cubano era constituído através de ações militares até a primeira metade do século XX, dá lugar a um imperialismo que funciona através da dependência financeira afinal o mercado mundial está diretamente ligado ao país norte- americano. A democracia liberal burguesa impõe uma aceitação do mercado de regimes que não mexam com a estrutura econômica do país, se tais regimes nadarem em sentido contrário, eles são destruídos economicamente fazendo com que se percam empregos, com que preços de produtos básicos extrapolem os preços tradicionais, etc, criando assim um detonante pra um golpe.

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GNARUS - 85 Na segunda metade do século XX, em meio à guerra fria, países latino-americanos buscam romper os lanços de dependência com os EUA e demais países, porém a “ditadura” imposta pelo mercado, cujo principal interessado é o governo norte-americano, não permite que isso aconteça. No caso do Chile, o cobre, manejado por multinacionais estadunidenses, tem seu valor reduzido no mercado internacional após a nacionalização, levando assim o país a quebrar. Assim configura-se a ditadura do mercado, uma falsa democracia cujas eleições, por vezes financiada por corporações, tem como claro objetivo a manutenção do mercado capitalista e acumulação de mais capital por parte das empresas. Se a escolha feita pela população é considerada “errada” por essas corporações ou pelo governo norte-americano, como foi o caso do Chile, as intervenções “necessárias” são feitas. Não importa se isso signifique desmantelar um regime eleito democraticamente dentro da legalidade pregada pelo próprio governo americano e instaurar um governo ditatorial com características fascistas.

democrata de democracia burguesa que se guiava de acordo com o mercado, mas que até o ultimo momento defendeu o direito do povo de escolher seu representante, fato é que um dia antes de sua morte e, consequentemente, do golpe convocaria um plebiscito, para decidir a continuidade ou não do seu governo. Bernardo Farias Lima é Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM.

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Assim como no Leste europeu, o governo americano se aliou a forças neofascistas da América Latina para frear o avanço do socialismo, forças essas que se encontravam dentro das Forças Armadas. Não importava se isso representava o assassinato de milhares de pessoas, os americanos, que tanto se vangloriavam por uma vitória contra forças do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial, se aliou a grupos com ideais semelhantes apenas para manter as amarras com que segurava os países latino-americanos a fim de explorá-los objetivando o crescimento e hegêmonia econômica. Allende era um democrata legitimo, não o

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Artigo

CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS E INTELECTUAIS DE ANTÔNIO GRAMSCI (1891-1937): UMA REFLEXÃO SOBRE O RACISMO E O ANTIRRACISMO. Por João Paulo Carneiro

RESUMO: O presente texto problematiza a questão racial sob a lente gramsciana, preferencialmente sobre o conceito de hegemonia, que visa auxiliar no debate a respeito da população negra no âmbito de uma sociedade capitalista. Lançamos mão de inúmeros especialistas e de diversas áreas das ciências sociais para respaldar a relevância teórica de Gramsci na dimensão histórica, social, cultural, política e econômica na compreensão vivenciada pelos afro-brasileiros. Palavras Chaves: Racismo; Antirracismo; Hegemonia; Ideologia

Introdução

A

relevância da produção teórica de Antônio Gramsci (1891-1937) na dimensão das ciências sociais brasileiras desfruta de um enorme consenso entre os mais diversos especialistas. Gramsci é “o pensador italiano mais lido e traduzido em todo o mundo, tornou-se também um dos intelectuais estrangeiros mais influentes no pensamento social brasileiro” (COUTINHO, 2011 p.13). Não tencionamos neste texto uma exposição biográfica, mas torna-se fundamental ainda que, de maneira breve uma síntese do pensamento gramsciano e sua importância para os cientistas sociais.

As obras de Gramsci uma vez que é recepcionada no Brasil, principalmente no campo das ciências sociais nos anos de 1960, despertou o interesse de um lastro abrangente, ou seja, de inúmeros campos científicos (COUTINHO, 2011). Do contrário que possamos imaginar as produções teóricas de Gramsci não se limitaram aos estudiosos marxistas, mas também na trajetória de diversos pensadores liberais. E isso se justifica devido à presença de Gramsci no Brasil através de seus conceitos “(...) Estado ampliado, sociedade civil, hegemonia, guerra de posição, revolução passiva, nacional popular, etc. (...)” (COUTINHO, 2011

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GNARUS - 87 correm influências diversas e contraditórias” (p.67). Para Gramsci a consciência do homem se relaciona e é uma relação social (GRUPPI, 1980). A linguagem não se desliga da relação social (ROCHA & DEUSDARÁ, 2005). Sendo assim, necessitamos discorrer e refletir sobre hegemonia, mas não podemos deixar de lado conceitos que estão extremamente interligados, ou seja, a questão da estrutura e superestrutura, sociedade civil, sociedade política e ideologia. O processo e a perspectiva da hegemonia gramsciana

Antonio Gramsci

p.13). Aqui privilegiamos o conceito de hegemonia. Não houve uma inclinação específica de Gramsci na temática da questão racial, no entanto, sua produção teórica nos ajuda na elucidação da situação vivenciada pela população de negros e negras, sobretudo na dimensão conceitual da hegemonia e como esse processo se estabelece no âmbito do capitalismo. Assim, corrobora com esta argumentação Hall (2013) “Portanto, embora Gramsci não tenha escrito diretamente sobre o problema do racismo, os temas recorrentes de sua obra fornecem linhas teóricas e intelectuais de ligação mais profundas com essas questões (...)” (p.335). A concepção defendida por Stuart Hall também é explicitada por Gruppi (1980) referente à linguagem “(...) está presente uma consciência imposta pelo ambiente em que ele vive, e para a qual, portanto, con-

O presente artigo passa de largo na pretensão de esgotamento a respeito do debate sobre as categorias e conceitos presentes na produção teórica de Gramsci. Nosso principal foco se estabelece na discussão teórica para a reflexão da questão racial. Como dito anteriormente, elegemos o conceito de hegemonia por se tratar relevante para os estudos culturais, discursivos, das relações de poder construídas na sociedade capitalista, sobretudo no que tange a questão racial. Os veios no gradiente de pesquisas nos Cadernos do Cárcere1 são diversos. Dentre inúmeras discussões, as problematizações teorizadas são oriundas de análises de processos históricos e sociais. A questão da hegemonia sobressalta perpassando nas diversas discussões teóricas de Gramsci (GRUPPI, 1980). Em assentimento com esta análise Fernandes (2014) aponta em seu artigo que a hegemonia é um conceito-chave de Gramsci nos Cadernos do Cárcere. Atesta também Barrett (2013) que a hegemonia “(...) é o centro organizador do pensamento de Gramsci sobre a política e a ideologia e o seu uso característico transformou-o no marco da abordagem gramsciana

Conjunto de 29 cadernos do tipo escolar escritos por Antônio Gramsci no período em que foi prisioneiro na Itália entre 1926 e 1937. 1

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GNARUS - 88 em geral” (p.238). A compreensão do conceito de hegemonia dar-se-á melhor no sentido da “organização do consentimento”, isto é, “(...) os processos pelos quais se constroem formas subordinadas de consciência, sem recurso à violência ou à coerção. O bloco dominante, segundo Gramsci, atua não apenas na esfera política, mas em toda a sociedade” (BARRETT, 2013 p.238). É de suma importância expor que o termo hegemonia não fora cunhado por Gramsci, mas por Lenin (PORTELLI, 1977; HALL, 2013; BIAGIO, 2010; HALL, LUMLEY, MECLENNAM, 1983). Entretanto, como bem explicado por Fernandes (2014) o conceito foi reconceitualizado por Gramsci, de modo que, para o pensador italiano a concepção é de oposição aos pareceres “mecanicistas e fatalistas do economicismo” (PORTELLI, 1977 p.74). Em vista disto, o conceito de hegemonia segundo Gramsci nos auxilia na compreensão e no entendimento no que abarca o processo de dominação da classe dominante que se materializa numa pilha de ideias, de valores e crenças. Coutinho (2003) afirma que há uma leitura equivocada sobre o conceito de hegemonia por Perry Anderson “(...) que fala da hegemonia como síntese de coerção e consenso”, porém, o autor defende que “parece-me clara a distinção que Gramsci faz entre, por um lado, hegemonia/direção/consenso, e, por outro, dominação/ditadura/coerção”. Assim, vamos entender como expõe o especialista que Gramsci no primeiro exemplo entende como “base material da sociedade civil, nos aparelhos ‘privados’ de hegemonia, enquanto a base material do segundo seria o Estado em sentido restrito, ou seja, os aparelhos burocráticos e repressivos” (p.249). A principal divergência entre Gramsci e Lenin no que tange o quesito hegemonia, trata-se sobre a prima-

zia da direção cultural e ideológica. Para Lenin o foco está na sociedade política e Gramsci concentra-se na sociedade civil. “A hegemonia gramsciana é a primazia da sociedade civil sobre a sociedade política” (PORTELLI, 1977 p.78). Mesmo diante dessa divergência Alves (2010) registra que “(...) Gramsci tenta dar continuidade à noção de hegemonia leninista a partir do princípio teórico-prático que, segundo ele, foi a grande contribuição de Lenin à filosofia da práxis, na medida em que fez progredir a doutrina e a prática política.2 O ponto de confluência entre Lenin e Gramsci se dá pelo conceito de hegemonia (GRUPPI, 1980). Entretanto, para Gramsci a dominação não se limita somente a “direção política, mas também como direção moral, cultural, ideológica” (GRUPPI, 1980 p.11). Precisamos refletir sobre algumas armadilhas no sentido metodológico que possam limitar a abrangência do conceito de hegemonia na contribuição da análise dos estudos do processo de submissão da burguesia na sociedade capitalista da contemporaniedade (SOUZA, 2010). Dentre essas armadilhas podemos vislumbrar quando o conceito de hegemonia é situado somente na dimensão política, negligenciando o âmbito econômico (SOUZA, 2010). De acordo com Gramsci “(...) uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica; mas, precisamente, o programa de que é exatamente o modo concreto através da qual se apresenta toda reforma intelectual e moral” (GRAMSCI, 2000 p.19). Portanto, quando uma classe social ou uma fração de classe consegue transformar seus interesses particulares em universais, ou seja, que seja apropriado pelo conjunto da sociedade, prinDisponível em: www.scielo.br/pdf/In/n80/04/.pdf ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, São Paulo, 80: 71-96, 2010. Acesso em: 20 de abril de 2016.

2

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GNARUS - 89 cipalmente pelos setores dominados, como algo bom para todos ou único caminho para a sociedade se realizar, constitui-se o efeito do pensamento hegemônico. Por exemplo, quando a burguesia consegue passar uma determinada visão de mundo que está mais de acordo com os seus interesses particulares como algo fundamental para toda sociedade, fazendo com que a classe trabalhadora assuma essas ideias, crenças e valores (visão de mundo) como algo determinante para ela, consiste em uma vontade coletiva. Também atentamos quando uma classe ou uma fração de classe consegue colocar os seus valores éticos e suas propostas políticas como elementos que vão ordenar a sociedade. Ao colocar isso como vontade coletiva essa classe, ou fração de classe passa a ocupar a liderança moral e intelectual da sociedade, podendo ter uma dominação mais baseada na hegemonia do que na coerção. Perspectiva gramsciana: estrutura e superestrutura, sociedade civil e ideologia A estrutura e a superestrutura são elementos fundamentais na base metodológica do marxismo para a compreensão da realidade de uma determinada sociedade. De maneira simplificada podemos afirmar que a estrutura se constitui da base econômica e a superestrutura é o espaço das ideologias, aspectos educacionais, cultura, Estado, Leis. A grande celeuma para alguns marxistas e críticos ao marxismo se dá na questão que abarca a superestrutura ser dirigida em última instância pela estrutura, proporcionando numa relação mecanicista e economicista dessa relação. Esse debate ainda encontra-se acalorado nos dias atuais. Segundo Barrett (2013) Gramsci figurou como aquele que sustentou com primor uma teoria não determinista na abordagem marxista da relação entre estrutura e superestrutura. Barrett (2013) aponta que Hall

interpreta Gramsci “[...] como alguém que desenvolve uma ‘polêmica contra a explicação reducionista da superestrutura’ e afirma que Gramsci nos mostrou que o capitalismo não é apenas um sistema de produção, mas de toda uma forma de vida social” (BARRETT, 2013 p.239). Para Gramsci há uma relação dialógica entre a estrutura e a superestrutura que formam o bloco histórico. Segundo Gramsci: A estrutura e as superestruturas formam um “bloco histórico”, isto é, um conjunto complexo – contraditório e discordante – das superestruturas é o reflexo do conjunto das relações sociais de produção. Disto decorre: só um sistema totalitário de ideologias reflete racionalmente a contradição da estrutura e representa a existência das condições objetivas para a inversão da práxis. Se forma um grupo social 100% homogêneo ideologicamente, isto significa que existem em 100% as premissas para esta inversão da práxis, isto é, que o “racional” é real ativa e atualmente o raciocínio se baseia sobre a necessária reciprocidade entre estrutura e superestrutura [reciprocidade que é precisamente o processo dialética real] (GRAMSCI, 1978 p.52,53).

Percebemos que no aporte teórico gramsciano o bloco histórico compreende a superestrutura e estrutura como esferas que não se apartam. Essa relação complexa explicitada acima por Gramsci traz ainda duas esferas, ou seja, a sociedade civil e a sociedade política. “[...] a da sociedade política, que agrupa o aparelho de Estado, e a sociedade civil, isto é, a maior parte da superestrutura” (PORTELLI, 1977 p.17). Assim dito, precisamos pontuar o papel da sociedade civil, dos aparelhos privados de hegemonia, dos intelectuais orgânicos e a questão da ideologia no processo de hegemonia. Conforme orientações de Portelli (1977) esses dois elementos “encontram-se no seio da superestrutura”, porém de acordo com o especialista francês “convém estudá-lo separado” (PORTELLI, 1977 p.17). Comecemos pelo conceito de sociedade ci-

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vil em Gramsci. Para entender como funciona a sociedade civil, é de vital importância apontar que tanto esta quanto a sociedade política são oriundas de um conjunto complexo formados pela superestrutura do bloco histórico como já explicitamos acima através de Portelli (1977) e Coutinho (2003). Sendo que cada uma detém uma função, como se vê nesse trecho extraído do “Cadernos do Cárcere”: Por enquanto, pode-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: o que se pode chamar de “sociedade civil” (isto é o conjunto de organismo comumente chamados de “privados”) e o da “sociedade política ou Estado”, que correspondem à função de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de “domínio direto” ou de comando, que se expressa no Estado ou no governo “jurídico”. Essas funções são precisamente organizativas e conectivas. Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para os exercícios das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante da vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e portanto da confiança) que o grupo dominante obtém por causa de sua posição e função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura “legal-

mente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, 2007 p.28,29).

Essa divisão entre sociedade civil e sociedade política não é orgânica segundo os autores citados anteriormente, mas metodológica. Para Coutinho (2003) o conceito de sociedade civil possui uma função de “portadora material da figura social da hegemonia, como esfera de mediação entre a infraestrutura econômica e o Estado em sentido restrito” (COUTINHO, 2003 p.121). De acordo com Hall, Lumley e McLennam (1983) uma forma de aplicação para conceber o conceito de sociedade civil “[...] é vê-la como um conceito que designa a esfera intermediária que inclui aspectos da estrutura e da superestrutura. É a área do conjunto de organismos comumente chamados de privados [...]” (HALL; LUMLEY; MCLENNAM, 1983 p.63). Isto é, além de organizações políticas, também incluem a família que mescla atividades econômicas e ideológicas. É nesse campo, ou seja, sociedade civil, que as classes disputam o poder, sobretudo,

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GNARUS - 91 o ideológico, político e econômico de maneira que é nesse clímax que se exerce a hegemonia no complexo da estrutura e superestrutura (HALL; LUMLEY; MCLENNAM, 1983). Na esfera da sociedade civil operam as direções e materialidades ideológicas, ou seja, a instrumentalidade técnica propagadora tais como sistema escolar, mídia, livros, jornais, bibliotecas, etc. Schlesener (2007) situa a organização da sociedade civil pontuando alguns processos históricos da seguinte maneira: Estas organizações da sociedade civil, chamadas “privadas” porque são relativamente autônomas em relação à sociedade política, só surgem ou assumem esta função com as revoluções democrático-burguesas, pela organização dos Estados modernos e a intensificação das lutas sociais. São instituições que nasceram a partir da correlação de forças sociais e que geraram estes novos Estados, da ampliação da participação política dos cidadãos, dos novos conflitos sociais ligados aos desenvolvimento do modo de produção capitalista: sindicatos, partidos políticos, meios de comunicação de massa (jornais, revistas, editoras e todas as instituições ligadas à organização da cultura), bem como o sistema escolar, as igrejas e universidades, organizações antigas que se adaptaram à nova situação (SCHLESENER, 2007 p 28,29).

Como bem exposto no excerto acima analisamos a relevância conceitual gramsciana no sentido do processo histórico na trajetória da construção de discursos antirracistas em diversos espaços, sobretudo na escola que se constitui como instrumental e aparato na elaboração de intelectuais de diversos graus (GRAMSCI, 1989). Para Gramsci a hegemonia constitui-se no movimento que materializa a ideologia. Disto se conclui que, as concepções de mundo pela lente gramsciana são oriundas não de uma individualidade, mas de inflexões da vida comunitária. É necessário, por conseguinte, distinguir entre ideologias historicamente orgânicas,

isto é, que são necessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, racionalísticas, “voluntaristas”. Enquanto são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é validade “psicológica”: elas “organizam” as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam etc. Enquanto que são “arbitrárias”, não criam mais do que movimentos individuais, polêmicas, etc. (GRAMSCI, 2011, p.147, 148).

No trecho acima poder-se-á mais uma vez verificar como Gramsci descreve a validação da ideologia tanto no sentido de conduzir o consenso como para se opor ao mesmo. “A ‘verdade’ de uma ideologia, para Gramsci, está em sua capacidade de mobilização política e, finalmente, em sua realização histórica” (HALL; LUMLEY; MCLENNAM, 1983, p.64).

Contribuições gramscianas no âmbito da questão racial De certo muitas conquistas foram alcançadas, especialmente na dimensão das políticas públicas. E nesse processo de disputas, relações de poder, embates ideológicos, temos a materialização das seguintes leis: 10.639/033 ; 11.645/08;4 12.711/12. 5Gramsci não entende a ideologia como mera abstração, mas é materializada nas práticas sociais e políticas. “(...) uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações da vida individual e coletiva” (PORTELLI, 1977 Regulamenta a obrigatoriedade do Ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira. 4 Regulamenta a obrigatoriedade do Ensino da História Indígena. 5 Regulamenta a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência. Por auto declarados pretos, pardos e indígenas. 3

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GNARUS - 92 p.22 Apud GRAMSCI, 1978 p.16). Portanto, na perspectiva gramsciana, preferencialmente no que diz respeito à escola como uma das instâncias da sociedade civil. E muito além no sentido de educação para Brandão (2007), ou seja, um processo de humanização que se constrói ao longo de toda a vida, ocorrendo no trabalho, na rua, na igreja, em casa e em outros espaços. Espaços que no âmbito da sociedade civil podem reverberar ideologias racistas. Observamos como as representações sociais sobre a imagem do negro na sociedade brasileira partem de pensamentos de determinados grupos, ou seja, grupos dominantes brancos ou dito de outra maneira, elite simbólica branca como é colocado por Van Dijk (2013) e, é enraizado no social. E diante das disputas e conflitos sociais pontuados anteriormente, necessitamos ponderar que assim como o discurso racista não é inato, mas fruto de uma construção social, assim também poder-se-á sofrer uma desconstrução, dito de outra maneira, antirracista ou contrapoder, como é defendido por Pereira (2013). A Lei 10.639/03 é uma construção materializada que demandou um processo de antigas reivindicações do movimento negro brasileiro, oriunda de uma série de manifestações, pressões, organizações realizadas a partir de articulações dos movimentos sociais e de militantes (PEREIRA, 2013). Sendo assim, o instrumental teórico gramsciano nos possibilita na construção de práticas emancipatórias no processo de desconstrução dos discursos dominantes. Nesse movimento anti-hegemônico segundo Gramsci (1891- 1937) e asseverado por Hall (2013) vislumbra-se a possibilidade de novas visões de mundo, o que permite as

massas resistirem e se contraporem ao sistema dominante. A questão do movimento negro no processo histórico de resistência e luta é um bom exemplo. A produção de um novo discurso poderá permitir um novo plano de debate, e essa é a tarefa essência dos movimentos negros. A sociedade brasileira, especialmente a camada subjugada pelo discurso racista necessita de construções antirracistas. Percebemos que pelo viés gramsciano podemos obter suporte teórico como potência anti-hegemônica da construção ideológica do racismo. Considerações finais Disto concluímos que, pelo olhar teórico gramsciano, o conceito de hegemonia no sentido que aqui tratamos como suporte teórico para entender como o pensamento racista perfaz e penetra nos indivíduos e na coletividade. Pois, enquanto uma ideologia, o racismo só tem força visto que percorre do campo das ideias para uma forma de visão de mundo que discursivamente se materializa na sociedade. Ainda nos possibilita agregar contribuições teóricas para a construção antirracista.

João Paulo Carneiro é Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo CEFET/RJ e Professor da Educação Básica na Firjan SESI Jacarepaguá.

Bibliografia ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. O conceito de hegemonia: Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, São Paulo, 80: 71-96, 2010. Disponível em: www.scielo.br/pdf/In/n80/04/.pdf. Acesso em: 20 de abril de 2016. BARRETT, Michelè. Ideologia, política e hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. In: ZI-

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Artigo

A FISICATURA-MOR DO BRASIL Por Germano Martins Vieira

RESUMO: A Fisicatura-mor, instituição criada em Portugal para, dentre outras atribuições, regulamentar e fiscalizar as práticas médicas e cirúrgicas e seus terapeutas, foi recriada no Brasil por D. João quando da transmigração da Família Real para os trópicos, extinguindo de vez a Junta do Protomedicato instaurada por D. Maria I. Após instalar-se no Rio de Janeiro, o Príncipe Regente adotou uma série de medidas para tornar a nova capital uma área mais sadia, limpa, habitável, objetivando oferecer condições mais adequadas de vida para a Corte e para a população e favorecer a modernização e o desenvolvimento da nova sede do Império luso-brasileiro, pois as questões relacionadas à saúde pública foi uma das grandes preocupações do governo joanino, visto o seu histórico insalubre e epidêmico. Assim sendo, o presente texto tem por finalidade demonstrar como foi recriada, de que forma estava organizada e como funcionava essa instituição que atuou na sede da nova metrópole portuguesa no período compreendido entre os anos de 1808 a 1828. Palavras Chaves: Fisicatura-mor; Físico-mor e cirurgião-mor; Artes de Curar.

Introdução

A

Fisicatura-mor foi fundada em Portugal em 1260pelo rei D. Afonso III, o Bolonhês (1210-1279),com sede em Lisboa1 em um processo de organização sanitária, mas foi apenas no reinado do Mestre de Avis, D. João I, o de Boa Memória (1357-1433), que o cargo de Físico-mor do Reino foi criado para administrar os assuntos relacionados à higiene e saúde públicas. Neste momento, ainda não estavam regulamentadas as suas áreas de influência, o que só veio a ocorrer em 25 de fevereiro de 1521, com o Regimento2 do Físico-mor, no 1

ARAUJO, 1952, p. 40.

Estatuto; regulamento; lei; conjunto de normas que regiam o funcionamento de uma instituição.

2

qual foram estabelecidas as delimitações das suas áreas de competência e responsabilidade em relação às do Cirurgião-mor dos Exércitos do Reino de Portugal. Ou seja, a esfera de atuação do físico-mor estava diretamente ligada aos assuntos referentes aos médicos (físicos), aos boticários e aos curadores que, nas regiões onde não houvesse a presença de médicos formados, recebiam licença para curar de medicina; e os limites dos poderes concedidos ao cirurgião-mor diziam respeito às práticas concernentes aos cirurgiões, aos sangradores, aos dentistas e às parteiras, ou seja, de todos aqueles que exerciam manualmente a sua arte. Podemos perceber, já neste momento, uma distinta separação das chamadas artes liberais3 para as ditas artes 3

Termo utilizado para designar as sete disciplinas (ar-

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GNARUS - 95 mecânicas.4 Com o Regimento de 1521 em vigor, aqueles que adotaram como profissão as práticas terapêuticas, de agora em diante somente poderiam exercê-las legalmente se possuíssem as licenças – mesmo que provisórias – e as cartas que fossem expedidas diretamente pela Fisicatura-mor, através de seus representantes, subordinando-se às normas que foram estabelecidas e que deveriam ser seguidas, observando, ainda, os limites a que estavam submetidas as diferentes Artes de Curar, estando sujeitos à aplicação de multas e suspensão do direito à prática caso infringissem tais normas.5

Fig. 2: D. João I, o de Boa Memória

A organização e o funcionamento da Fisicatura-mor

Fig. 1: D. Afonso III, o Bolonhês

tes) próprias para a formação de um homem livre, conhecidas como trivium (gramática, retórica e lógica) e quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia).

Termo utilizado para designar as artes executadas manualmente, tidas como menores, desvalorizadas socialmente e desprezadas por estarem associadas às “impurezas” do mundo do trabalho. 4

5

ABREU, , 1900, p. 174.

A Fisicatura-mor do Brasil, até 1872 - ano em que foi extinta por D. Maria I, a Piedosa, a Louca (1734-1816) -, foi representada pelos oficiais comissários e juízes do físico-mor e do cirurgião-mor do Reino, tendo em vista a impossibilidade da presença destes em todos os domínios portugueses. A esses oficiais foram delegados todos os poderes para exercerem as funções de visitadores6 e examinadores,7 assim como a fiscalização dos limites impostos e fixados pelo Regimento a cada Atividade pela qual deveriam inspecionar, a intervalos regulares, as boticas (farmácias) e as lojas onde eram vendidas as drogas para o preparo dos medicamentos, as alfândegas, além de vistoriar os navios que faziam o carregamento desses itens, de Portugal para o Brasil e vice-versa.

6

Atividade pela qual deveriam avaliar os pretendentes às cartas de licença para o exercício de cada arte. 7

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GNARUS - 96 ofício, investigação sobre a posse ou não de licenças para as atividades de sangria e partejamento ou cartas que permitiam o exercício dos físicos e dos cirurgiões, além da instauração de processos na forma de correições8 e devassas.9 Quando uma devassa era instaurada, os oficiais delegados da Fisicatura-mor convocavam - através de editais previamente publicados e afixados em locais onde fossem de domínio público - os interessados a comparecerem à presença de seus representantes para comprovarem com a sua documentação a legalidade de suas práticas, como exemplificado no trecho de um edital publicado em 1809, na cidade de Porto Alegre: “Toda pessoa que nesta Vila e seu termo curar de Cirurgião, Sangrador e Algebrista, tirar dentes e usar do ofício de Parteira, e fazer curas particulares apresentem (ao delegado) as suas Cartas ou Títulos, que para isso tiverem com a pena de se proceder contra elas como se não tivessem ditas Cartas, ou Títulos” .10

Os oficiais delegados da Fisicatura-mor contavam ainda com a ajuda de quatro outros funcionários: um escrivão, responsável pelo registro de toda a documentação: provisões,11 cartas, licenças, ordens e quaisquer outras declarações oficiais escritas que comprovassem as habilitações ou não dos envolvidos;

um meirinho,12 um escrivão de meirinho e um tesoureiro.13 Toda a documentação produzida antes da instalação da sede da Fisicaturamor na cidade do Rio de Janeiro era enviada para Portugal para que lá fossem analisadas e expedidas – ou negadas – as cartas e licenças que, até 1782, eram controladas pela Real Junta do Protomedicato. Diante das diversas reclamações que chegaram ao conhecimento de Sua Majestade, tornou-se necessária uma intervenção. Sendo assim, em 16 de maio de 1744, a mando do rei D. João V, o Magnânimo (1689-1750), entrou em vigor um Regimento preparado exclusivamente para ser aplicado na Colônia do Brasil, o chamado “Regimento, que devem observar os Comissarios delegados, do Fízico mór do Reyno no Estado do Brazil”.14 É perceptível, já no início das especificações deste Regimento, que o seu principal objetivo era coibir as ações dos agentes inescrupulosos que atuavam nos cargos de delegados da Fisicatura-mor e que se aproveitavam da sua posição privilegiada para obterem lucros em cima daqueles que procuravam legalizar a sua prática terapêutica. “Por ser do Real serviço de S. Magestade, e Ordem sua de 27. de Mayo de 1742. que no principio deste vay copiada nas costas da Provizaõ do mesmo Senhor, para que se faça particular Regimento para se regularem em os Estados da America, assim os Comissarios do Fisico mór, como tambem os seus Officiaes, que naõ tinhaõ Regimento, e sem elle levavaõ emolumentos, e só por arbitrio dos mesmos Comissarios que os faziaõ excessivos, de que resultavaõ queixas dos Vassallos do ditto Se-

Visitas dos oficiais corregedores aos cartórios de sua alçada com o objetivo de fazer valer a observância das leis estipuladas pelo Regimento. 8

Sindicância, investigação a um determinado ato criminoso para apuração das irregularidades cometidas pelos diversos agentes da cura. Eram feitas anualmente ou quando alguma denúncia fosse apresentada aos oficiais. 9

Caixas 1212 (cx. 580, pc. 3) e 1204 (cx. 474, pc. 3), Fisicatura-mor. Arquivo Nacional (AN). Apud PIMENTA, 1997, p. 32.

10

Documentos oficiais que expediam quaisquer ordens (cargos ou funções) ou providências (alimentos, reservas, provimentos). Neste caso, relacionava-se a medicamentos provenientes do Reino para o abastecimento das boticas. 11

Antigo cargo judicial com funções idênticas às dos corregedores que hoje em dia corresponde ao de oficial de justiça.

12

Aquele que guarda o tesouro ou está encarregado de efetuar as operações monetárias de alguém, de uma associação ou de uma instituição.

13

Ministério do Império. Fisicatura-mor. Códice 314, vol. 1. (AN). 14

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GNARUS - 97 nhor, ao que se devia dar providencia, para que a ambição naõ cauzasse prejuizo, nem também o experimentassem os mesmos Officiaes (...)”

Desta forma, além de detalhar pormenorizadamente suas funções e obrigações para com a Fisicatura-mor, o mesmo Regimento estipula os salários a que esses delegados teriam direito, na tentativa de impedir que estes pudessem usufruir de qualquer vantagem ou benefício indevido por força de seus deveres além do devido, principalmente ao tratar do funcionamento das lojas de boticas e a situação legal dos boticários. “§.19. O Comissario do Fizico mòr, e seus Officiaes, teraõ de sallario em cada huma das Vizitas que devem fazer de tres em tres annos, e nas que fazem quando os medicamentos chegaõ aos portos do Mar, como tambem o Fizico mòr do Reyno, dez mil e outo centos reis por cada Botica, ou loge de drogas que vizitarem; a saber quatro mil e outocentos reis para a Fizico mòr do Reyno, dous mil e quatrocentos reis para o dito Comissario delegado, e novecentos e sessenta reis para cada hum dos Boticarios Examinadores, quatrocentos, e sincoenta reis para o Escrivaõ do dito Comissario, e trezentos, e sincoenta reis para o seu Meirinho. §. 20. Terá o mesmo Comissario do Fizico mor de cada Exame que fizer de Boticario mil e seis centos reis, e cada hum dos tres Boticarios Examinadores outo centos reis, ainda que o Examinado naõ saya com approvaçaõ, porque deve depozitar antes do acto do Exame, naõ só estes, e molumentos, mas tambem os do Fizico mòr do Reyno, e dos seus Officiaes, que importaõ nove mil cento e vinte reis, a saber quatro mil, e outo centos para o Fizicomòr, quatro centos e outenta reis para cada hum dos sinco Examinadores da Corte, quatrocentos e outenta reis para o Escrivaõ do Juizo, e cargo do dito Fizicomòr do Reyno, quatrocentos e outenta o Meirinho do Juizo, e quatrocentos, e outenta de esmolla para os Santos Cosme e Damiaõ, por ser este o estilo praticado sempre em semelhantes Exames.”

Devido à vastidão territorial do Brasil e à ínfima quantidade dos delegados do Físico-mor e do Cirurgião-mor do Reino, suas ações ficavam restritas às áreas urbanas das cidades. E como se fazia necessário estender o alcance da sua atuação nos lugares mais remotos – onde havia uma prática generalizada que não respeitava os limites de cada ofício da cura, misturando as funções de médicos, cirurgiões e boticários –, estes delegados conferiam poderes aos chamados subdelegados, os quais deveriam exercer as mesmas atividades de fiscalização nas freguesias mais afastadas, onde não era possível a presença destes oficiais. Mesmo quando as práticas da cura foram “controladas” pelos deputados da Junta do Protomedicato (1782-1808), através da Lei de 17 de junho de 178215– em substituição à Fisicatura-mor quando D. Maria I extinguiu o lugar de Físico-mor e de Cirurgião-mor -, esta não foi capaz de evitar a proliferação da variedade de agentes curadores em todo o território colonial e, para se ter uma idéia de como não havia um controle eficaz por parte desta fiscalização, permitindo esta liberdade de práticas que não reconheciam as normas estabelecidas para cada “especialidade” ou não eram por ela pressionados pelo restrito alcance dos fiscais, torna-se interessante a apresentação de um dos relatos contidos no livro do viajante inglês Thomas Lindley (1769-1825), um comerciante que foi preso como contrabandista na Bahia no início do século XIX e que foi confundido com um médico por carregar uma maleta de remédios juntamente com sua bagagem. Assim sendo, atuou como tal, diagLei de 17 de junho de 1782. Criando a Junta do Proto-Medicato, e extinguindo o Lugar de Físico Mor, e de Cirurgião Mor. Legislação de 1775 a 1790. Ius Lusitane. Fontes Históricas de Direito Português. Disponível em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_ parte=109&id_obra=73.

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GNARUS - 98 nosticando e tratando dos doentes daquela região da Colônia, sem que para isso procurassem comprovar se o mesmo era portador de diploma que lhe conferisse esse exercício. “Quando meu brigue16 aportou pela primeira vez em Porto Seguro, fui visitado pela quase totalidade dos moradores do local, ignorantes que pareciam macacos a espiar tudo. E mal deram com a minha caixa de remédios, indagaram de que era, e julgaram, certa ou erradamente, que eu deveria ser médico, e, sendo estrangeiro, sem dúvida médico famoso”.

de que existia um órgão regulador que previa sanções àqueles que administravam medicamentos, faziam cirurgias e curavam doentes sem que para isso tivessem licença reconhecida por alguma instituição, além de demonstrar o quanto eram desqualificados os terapeutas populares daquelas localidades mais afastadas do centro do poder governamental.

“(...) os clientes de novo, numerosos como nunca, não obstante estar eu proibido de falar com qualquer pessoa. Cada sentinela sofre de algum mal ou traz-me parente, vizinho ou amigo enfermo, além de outras criaturas que obtêm permissão do comandante para esse fim Em resumo: multiplicaram-se tão rapidamente as consultas, reduzindo o conteúdo da minha pobre caixa, que o Senhor Tomás (nome que me dão) gostaria de nunca ter-se atribuído o ofício de curar ou, pelo menos, havê-lo exercido de modo mais profissional, sendo bem pago pelos seus remédios”.17

Desta forma, ao conseguir fazer-se passar por médico, o comerciante e charlatão18 inglês – mesmo preso –, além de nos revelar como era fácil ludibriar a população carente de recursos e de facultativos, nos permite constatar ainda a inexistência de observação às leis estabelecidas. Ao menos nesta localidade, percebe-se a despreocupação quanto a uma possível punição que poderia recair sobre aquele que vivia na ilegalidade de seus atos, caso fosse descoberta ou que fosse denunciada a sua prática. Este episódio permite ainda pensar se havia realmente a consciência

Fig. 3: Caixa de botica do início do século XIX em madeira

Navio de dois mastros, com verga (peça de madeira horizontal para fixação das velas) e mastaréu (pequeno mastro suplementar).

16

17

LINDLEY, 2004, pp. 13-31.

Neste contexto, todo aquele que aplica ou recomenda o uso de drogas, elixires e remédios a pessoas ingênuas, explorando-lhes a boa-fé. 18

Fig. 4: Boticário no preparo das drogas

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GNARUS - 99 A (re)criação da Fisicatura-mor no Brasil Com a chegada da Corte no Brasil, o Príncipe Regente D. João, através do Decreto de 7 de fevereiro de 1808,19 recria os cargos de Físico-mor do Reino e Cirurgião-mor dos Exércitos. Para exercer o cargo de Cirurgião-mor dos Exércitos do Reino de Portugal, Estados do Brasil, Domínios Ultramarinos e Conquistas, foi nomeado o doutor José Correia Picanço (1745-1823), posteriormente primeiro e único barão de Goiana. A partir de então, era através dele que deveriam passar todos os assuntos relacionados, entre outros, aos exames de cirurgia, às concessões de carta de cirurgião aprovado, às cartas de confirmação de cirurgião, de confirmação de licença de barbeiros, de sangradores e de parteiras. Este documento estabeleceu o exercício de toda a sua autoridade em todo território pertencente ao Estado português, expresso nos seguintes termos: “Por justos motivos que foram prezentes, sou servido determinar que o Dr. José Correia Picanço, primeiro Médico da Minha Real Caza e Primeiro Cirurgião della, do nosso Conselho; a quem havia confiada a Carta de Cirurgião Mor dos Exércitos do Reino e igualmente o Deputado nato da Real Junta do ProtoMedicato, passa a exercer toda a jurisdição que sempre competiu a todos os Cirurgiões-Móres do Reino em todos os Estados e Domínios Ultramarinos(grifo meu). Os Governadores e Capitães Generaes dos mesmos Domínios Ultramarinos o tenham assim entendido e facão executar. Príncipe Regente”.

Da mesma forma como fez com o dr. Picanço, D. João, através de outro Decreto assinado em 8 de fevereiro de 1808, mandou publicar o Alvará20 que nomeava o doutor. Manoel Alvará de 7 de fevereiro de 1808. Caixa 464, pc. 1. Fisicatura-mor. (AN).

19

20

Alvará de 8 de fevereiro de 1808. Idem.

Vieira da Silva, posteriormente primeiro barão de Alvaiázere (1753-1826), para Físico-mor do Reino, com as mesmas prerrogativas conferidas ao Cirurgião-mor, devendo este responder por todos os assuntos que se relacionassem aos físicos, aos boticários e, entre outros, ao comércio de drogas para a confecção dos medicamentos. Sua nomeação ficou estabelecida com a destituição do seu predecessor pelo Príncipe Regente, assim explicitado em seu texto: “Tendo attendido às razões em que no seu requerimento expõe o Dr. Francisco Tavares, Médico da Real Câmara e 1º Cirurgião, Physico Mor do Reino de Portugal, Domínios e Conquistas Ultramarinas, em que supplica: Hei por bem exoneral-o nomeando para substituil-o o Dr. Manoel Vieira da Silva, a quem confio as mesmas honras, privilégios, e inscripções conferidas ao Cirurgião dos Exércitos. (ass.) P. Regente”.

O doutor José Correia Picanço e o doutor Manoel Vieira da Silva – outrora deputados integrantes da Junta do Protomedicato –, assim que souberam dos planos de D. João para a transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil, imediatamente renunciaram às funções que exerciam em Lisboa para acompanharem o monarca na aventura transmarina. Sendo assim, com o claro objetivo de demonstrar toda a gratidão em relação à devoção com que o serviram, o Príncipe Regente, “em remuneração aos seus serviços e no pensamento de promover a instalação do serviço sanitário na nova metrópole, tão essencial para a saúde de seus povos”21 decidiu recriar os cargos de Cirurgião-mor dos Exércitos e de Físico-mor do Reino através dos Alvarás de 7 e 8 de fevereiro de 1808, passado e assinado no Palácio do Governo quando este ainda se encontrava na Bahia. 21

ABREU, Eduardo de. Op. cit., p. 213.

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GNARUS - 100 Através do Alvará de 7 de janeiro de 1809 é considerada extinta a Real Junta do Protomedicato - que até esta data ainda vigorava na colônia -, o qual o próprio doutor José Correia Picanço encarregou-se de mandar registrá-lo. Assim se caracterizava: “Eu o Principe Regente: Faço saber aos que o prezente Alvará com força de Lei virem, que Tendo nomeado o Fízico Mór, e Cirurgião mor do Reino, Estados e Domínios Ultramarinos por Decreto de sete de Fevereiro de mil oito centos e oito aos doutores Manoel Vieira da Silva e Jozé Correa Picanço do meu Concelho: e Havendo declarado a Jurisdição que lhes compete no Alvará de treze de Novembro do mesmo anno: não he coherente com esta nova creação a existencia da Real Junta do Proto=Medicato não só porque foi (...) para substituir os referidos empregos de Fízico mor e Cirurgião mor, como tão bem porque erão estes os Deputados Natos daquelle Tribunal, cuja falta torna impraticável, que elle prossiga em suas funções sem detrimento do Meu Real Serviço. Para (...) este, e outros inconvenientes, Sou Servido, abolir, extinguir a sobredita Junta do ProtoMedicato, e Ordenar que os mesmos Fízico Mór, e Cirurgião Mor exercitem a sua competente Jurisdição nos Reinos de Portugal, e Algarve por meio de seus Dellegados, e pela maneira, que se acha deccretado no mencionado Alvará de treze de Novembro de mil oito centos e oito”.22

Deve-se ainda registrar a criação, também por Decreto, do cargo de Provedor-mor, em 28 de julho de 1809. A Provedoria-mor foi um órgão criado com o objetivo de fiscalizar os assuntos referentes à saúde pública, pois quando os portos do Brasil foram abertos ao comércio internacional, havia a preocupação em adotar em todos eles as normas sanitárias que eram observadas na Europa, tomando providências específicas no sentido de que fosse expressamente evitado o “contágio comunicado por embarcações, passageiros e mercadorias” que porventura estivessem “contaminados de peste, e de moléstias conAlvará de 7 de janeiro de 1809. Códice 528, vol. 1. Fisicatura-mor. (AN). 22

Fig. 5: D. Maria I, a Piedosa, a Louca tagiosas” ou “mantimentos e víveres”23 que se encontrassem comprometidos pela deterioração em virtude da má conservação durante a viagem. Como já foi dito anteriormente, um dos principais fatores que dificultava a ação dos oficiais e delegados da Fisicatura-mor era, sem dúvida, a vasta extensão territorial do Brasil, a qual não permitia o desenvolvimento de uma fiscalização homogênea e rigorosa que lhes permitisse fazer cumprir as leis impostas à não observância aos limites das práticas médicas e cirúrgicas adotadas nas mais diferentes localidades, ficando essa tentativa de controle restrito às áreas mais populosas, ou seja, aos centros urbanos como a Corte do Rio de Janeiro, onde estava sediada a instituição. Isto propiciava o exercício da medicina ser largamente praticada por pessoas que não possuíam a devida licença, isto é, por práticos que se utilizavam das diferentes artes Regimento da Provedoria-mor da Saúde de 22 de janeiro de 1822. Códice 528, vol. 1. Fisicatura-mor. (AN). 23

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GNARUS - 101 de curar “sem que estas sejam examinadas, ou autorizadas para isso seguindo-se das suas aplicações continuados males aos povos, até a morte de alguns que observam o que eles lhes aplicam”.24

Fisicatura-mor, onde reclamavam diretamente ao físico-mor, barão de Alvaiázere, sobre as “irregularidades e extorsão, e vexame dos Povos arrogando-se a fazerem condenações por sua autoridade, e executá-las sem precederem a autos sumários com audiência dos delinqüentes, e que devem remeter a este Juízo o só competente para impôr tais condenações na forma da Lei (...)”.26

Certamente, a contribuição destas práticas inescrupulosas empregadas pelos agentes das delegacias e subdelegacias, contribuiu imensamente para a proliferação do exercício irregular da medicina e da cirurgia em todo o Brasil. E até mesmo justifica, nestas regiões, o não reconhecimento da autoridade do físicomor e do próprio órgão que ele representava.

Fig. 6: D. João VI, o Clemente Como forma de pressioná-los a regularizar suas práticas de acordo com as leis do Regimento, os oficiais da Fisicatura-mor promoviam devassas e acatavam as denúncias que a eles chegavam, cassando ou punindo os transgressores. Contudo, havia um grande descontentamento por parte dos suplicantes25 quanto ao abuso de poder exercido pelos subdelegados de regiões mais distantes das áreas urbanas, gerando um clima de insatisfação que motivou diversas denúncias em relação aos subordinados dos oficiais da Caixa 1210 (cx. 479, pc. 2). Fisicatura-mor. (AN), Apud PIMENTA, Tânia Salgado. Op. cit., p. 32.

24

Nome pelo qual ficaram conhecidos aqueles que se dirigiam à Fisicatura-mor com o objetivo de solicitar algum tipo de exame que lhes permitissem obter licença para as suas práticas. 25

Sobre as “especialidades” das Artes de Curar existentes no Brasil à época estudada (1808-1828), pode-se dizer que aos cirurgiões e boticários era exigida uma carta que lhes conferisse tal direito. Os diplomas e as cartas 27 que eram conferidas aos médicos, cirurgiões e boticários eram assinados pelo próprio soberano, demonstrando assim a importância atribuída às tais práticas terapêuticas, enquanto as licenças que eram dadas aos práticos – cirurgiões-barbeiros, barbeiros, sangradores, curadores e parteiras – eram assinadas pelo físico-mor e cirurgião-mor.28 Estas pessoas, geralmente, não tinham muitas posses, ou seja, eram constituídas por brancos pobres, por mulheres, pretos forros e escravos. A atuação dos pretos forros e dos escravos, segundo observado nos códices, estava restrita às funções de sangradores e curandeiros, não Caixa 1212 (cx. 480, pc. 4). Fisicatura-mor. (AN). Idem, ibidem. 26

27 As cartas conferiam àqueles que a detinham, o exercício da sua arte de forma definitiva, enquanto que as licenças – obtidas pelos práticos da cura em geral – eram sempre provisórias, devendo ser renovadas de acordo como havia sido especificada na anterior. 28

PIMENTA, Tânia Salgado. Op. cit., p. 34.

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GNARUS - 102 constando nos registros outra atividade diferente. De qualquer forma, este grupo procurava obter permissão para atuarem como agentes legalizados pela Fisicatura-mor, seja por medo de que fossem denunciados por outros práticos que já estavam em ordem com a instituição e que viam nestes uma concorrência desleal, ou mesmo para alcançar uma posição social mais privilegiada frente àqueles do seu grupo ou daqueles que exerciam a cura de forma ilegal. Era comum que escravos exercessem a prática da sangria, uma vez que diversos senhores os adquiriam com a finalidade empregá-los na arte de sangrar, colocando-os como negros de ganho, oferecendo seus serviços nos centros urbanos em troca de dinheiro. No entanto, como bem frisa Pimenta,29 “durante os vinte anos de atuação da Fisicatura no Brasil os terapeutas populares foram reconhecidos como detentores de um saber legítimo e autorizados a exercer as suas atividades”. Desta forma, pode-se dizer que havia uma intensa concorrência entre estes dois grupos, pois estes práticos populares “contavam com grande prestígio entre as comunidades nas quais exerciam sua arte”, já que estes eram os curadores que estavam mais ao seu alcance nos momentos em que mais necessitavam. Através do contexto apresentado, o que se deseja demonstrar é que a Fisicatura-mor possuía bem mais do que apenas ações burocráticas no trato com os suplicantes que recorriam a ela para solicitar algum tipo de serviço. Partindo em sentido contrário ao que diz Roberto Machado,30 que afirma ser a instituição apenas “um órgão de tipo corporativo encarregado de fiscalizar o exercício das profissões médicas. Órgão de tipo burocrático-administrativo para quem regularizar era legalizar”, 29

Idem, op. cit., p. 4.

30

MACHADO, 1978, p. 37.

pode-se dizer que a Fisicatura-mor, mesmo apresentando características corporativistas, era uma organização que estava inserida na sociedade de tal forma que envolvia atitudes que privilegiavam um grupo em especial, que se situava em uma camada social mais elevada e que possuía uma formação acadêmica em detrimento de outro que não tinha instrução superior e que era mais voltada a atender uma população menos favorecida. Mas justamente por serem estes últimos os práticos mais acessíveis economicamente, estes eram os mais solicitados no momento em que se precisava recorrer a um atendimento médico ou a um ato cirúrgico. Sendo assim, mesmo beneficiando determinado grupo, afrouxava a mão em favor de outro pela necessidade maior de atendimento médico a todos os necessitados. Tentava exercer o controle sem, contudo, restringir-lhes a ação. Existia, como nos demais órgãos burocráticos da Corte, uma política paternalista de favorecimento, de proteção aos componentes daquele primeiro grupo social que se refletia através da louvação31 – processo pelo qual se defendia o direito daqueles profissionais de receberem por seus trabalhos prestados a algum doente já falecido ou ainda por aqueles que não concordassem em pagar pelo benefício – e ainda de troca de favores entre aqueles que comungavam das mesmas diretrizes traçadas pelos agentes que integravam a Fisicatura-mor, com o evidente interesse de manter o monopólio nas questões que se referissem à medicina e cirurgia aplicadas no Brasil. Como não existia uma quantidade de profissionais que permitisse preencher satisfatoriamente o deficiente quadro de profissionais da área de saúde, esta instituição viu-se pratiNome pelo qual era conhecida a perícia que os oficiais da Fisicatura-mor executavam ao testamenteiro do paciente a quem os facultativos haviam tratado.

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GNARUS - 103 camente obrigada a aceitar aqueles práticos que não tinham uma formação superior. Mas estes precisavam submeter-se à instituição e a ela dirigir suas súplicas para que fossem aceitos seus pedidos para a realização de exames para os quais os habilitavam, ou seja, os licenciavam para exercer as artes de cirurgia e demais formas de cura onde houvesse a necessidade de seu auxílio. Para que pudesse ser aceito o pedido de exame, o pretendente deveria estar munido de um atestado obtido de um mestre na arte que queria seguir, o qual deveria comprovar que o solicitante possuía as qualidades, isto é, a destreza e a experiência necessárias pela quantidade de tempo determinado pelo Regimento da Fisicatura-mor32 . Para os que desejassem atuar como cirurgiões ou boticários, por exemplo, estes deveriam comprovar quatro anos de experiência prática, enquanto aqueles que almejassem as funções de sangradores e parteiras deveriam comprovar dois anos de exercício prático.33 Houve também solicitações que foram feitas através de abaixo-assinados, os quais mostravam a importância e a necessidade daquele prático em determinadas regiões onde muitas vezes a população não tinha a quem recorrer, o que se verifica em um trecho de uma carta anexa a um auto de exame de medicina prática realizado em setembro de 1811, de José Ignácio da Silva, cirurgião proveniente de Extremos, Província de Alentejo, em Portugal. Dizia ela o seguinte: “Recentemente se examinaram para curar de medicina dois cirurgiões um Luiz (?) e outro Jorge Inácio da Silva (...) este cirurgião é quem me tem assistido na minha longa 32 Regimento da Fisicatura-mor de 1810. Códice 528, vol. 1. Fisicatura-mor. (AN).

Este fato evidencia que o grupo formado pelos físicos, cirurgiões e boticários estava situado em uma posição mais privilegiada pela Fisicatura-mor por estes comprovarem maior tempo de experiência em suas práticas, ou seja, o dobro da que era requerida para as atividades exercidas pelos demais curadores em geral. 33

e penosa moléstia (...) por isto desejo dar lhe uma demonstração pública da minha gratidão (...)” .34

Outro exemplo interessante é o atestado passado por Vicente José Coelho ao preto liberto Manoel José Coelho. Vicente, também preto forro, era sangrador e dentista aprovado pela Fisicatura-mor. Muito provavelmente, foi um dos escravos de ganho que habitavam o centro urbano do Rio de Janeiro que, após conquistarem a liberdade, investiram na aquisição de outros negros na condição de escravos para ensinar-lhes sua arte, para que pudessem auxiliá-los na sua prática terapêutica. Assim estava escrito: “(...) Atesto que Manoel José Coelho, preto liberto, de nação Cabinda, tem praticado comigo a arte de sangria e tenho visto praticar com inteligencia a dita arte aplicando ventosas e sanguessugas no espaço de mais de oito anos (...)” .35

Segundo Pimenta,36 os exames comuns aconteciam, muitas vezes, nas residências particulares do físico-mor e do cirurgião-mor, outras vezes ainda, nas casas dos escrivães, dos delegados ou dos subdelegados, pois não havia um lugar específico onde os examinadores da Fisicatura-mor efetuavam os autos e, quando se tratava de exames médicos, estes se davam na Santa Casa de Misericórdia, onde os examinados praticavam nas enfermarias do hospital. Isso denota o quão íntimo se tornavam esses exames, sendo fácil para esses oficiais aprovarem aqueles que porventura fossem do seu agrado ou em atendimento a algum pedido feito por alguém importante ou influente da cidade, ou ainda reprovarem aqueles que não apresentassem atuação satisfatória ou se tinham interesse em que a reCaixa 1197 (cx. 469, pc. 3). Apud PIMENTA, Tânia Salgado. Op. cit., p. 6.

34

35

Caixa 467, pacote 1. Fisicatura-mor. (AN).

36

PIMENTA, Tânia Salgado. Op. cit., p. 6.

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GNARUS - 104 provação fosse efetuada em favorecimento de outro.

ou afeição”,39 diante daqueles que se submetiam aos exames.

Ainda recorrendo à importante contribuição de Pimenta, esta revela alguns pedidos em forma de bilhetes que foram encaminhados aos examinadores. Juntamente com os requerimentos de cirurgia e de sangria de Joaquim Dias Fernandes, examinado em Minas Gerais, e ainda outro com o auto de exame de Francisco de Paula de Carvalho. O primeiro, de Joaquim Dias Fernandes, dizia assim:

O número restrito de representantes da Fisicatura-mor contrastava com a vastidão territorial do Brasil, fato que dificultava a fiscalização e aplicação do seu Regimento, permitindo a proliferação e a diversificação de agentes da cura em situação irregular perante a instituição nas regiões mais afastadas dos centros urbanos, onde extrapolavam os limites de atuação de tratamento de cada especialidade. Ou seja, atuavam tanto como médicos e cirurgiões quanto sangradores e curandeiros, além de prescrever e aviar receitas.

“o portador desta é pessoa a quem muito desejo servir por isso espero que V. Sa. Por obséquio me queira [?] e prestar-lhe todo o favor, a fim de que ele fique servido com a possível brevidade na pretensão da Confirmação da carta de cirurgia de Joaquim Dias Fernandes, filho legítimo do Sr. Cap. Manoel Dias de Freitas portador desta. Ouro Preto, 4 de agosto de 1825. De seu muito fiel amigo e obrigado, Menezes” .37

Já o de Francisco de Paula de Carvalho, examinado em 1813 se apresentava desta forma: “Pela carta que remeto inclusa verá V. Sa. a obrigação que tenho de servir a quem me pede, no caso do afilhado estar nas circunstâncias que suplica estimarei muito que V. Sa. o atenda, por cujo obséquio me deixará um (?) obrigado o qual juntarei aos muitos de que sou devedor a V. Sa. de quem sou toda a consideração e estima” .38

Considerações finais Observando o conteúdo destes bilhetes é possível perceber que as relações mantidas entre a Fisicatura-mor e os práticos da medicina e cirurgia se faziam de forma bastante pessoal, totalmente contrária ao que se obrigavam os examinadores no ato de juramento dos Santos Evangelhos, onde estes deveriam exercer o seu ofício “sem dolo, malícia, ódio 37

Caixa 1197 (cx. 469, pc. 3). Idem, ibidem.

38

Idem, ibidem.

Aqueles que necessitavam da ajuda de facultativos não se interessavam em procurar saber se estavam na presença de um conhecedor da Arte de Curar licenciado ou nas mãos de um curioso charlatão. Importava mais se conseguissem ser curados, mesmo que estivessem conscientes da sua pouca experiência. Alguns práticos, por temerem ser denunciados, procuravam legalizar-se, e outros, para tentarem ascender socialmente. Este fato possibilitou certa mobilidade social, pois permitiram, por exemplo, aos escravos de ganho experientes nas artes de sangria e arrancamento de dentes, adquirissem pecúlio para a compra da sua liberdade ou mesmo a posse de escravos próprios para ajudarem no seu trabalho. Uma característica marcante na atuação dos representantes da Fisicatura-mor para com os terapeutas legalizados pela instituição era a política paternalista exercida no favorecimento desses profissionais que possuíam maior nível social, notadamente os físicos e os cirurgiões, em detrimento daqueles de posição social menos favorecida como os sangradores e as parteiras, representados, 39

Idem, ibidem, p. 14.

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GNARUS - 105 principalmente, por escravos, pretos forros ou brancos empobrecidos. Contudo, mesmo discriminados, estes eram tolerados e seus conhecimentos reconhecidos pela instituição, que permitia -quando aprovados nos exames -, a atuação de suas práticas pela necessidade que havia de atender a população carente de recursos e de profissionais capacitados.

Bibliografia ABREU, Eduardo de. “A Physicatura Mor e o Cirurgião Mor dos Exércitos do Reino de Portugal e Algarve e dos Estados do Brasil”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Tomo I. Imprensa Nacional, 1900. AGRA DO Ó, Alarcon. “Thomas Lindley: um viajante fala de doenças e de seus enfrentamentos, no início do século XIX”. História, Ciência, Saúde – Manguinhos. Volume XI (1). Rio de Janeiro: janeiro-abril de 2004. ARAUJO, Carlos da Silva. Matéria Médica no Brasil do século XVIII. Editora Noite: Rio de Janeiro, 1952. MACHADO, Roberto et al. Danação da norma – medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

Fig. 7: Exemplar de uma Carta de confirmação de sangria40

PIMENTA, Tânia Salgado. Artes de Curar: um estudo a partir dos documentos da Fisicatura-mor no Brasil do começo do século XIX”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas, 1997 (versão consultada em formato PDF – Acrobat Reader).

Germano Martins Vieira é graduado em História (Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade Gama Filho (UGF) e Pós-graduado em História do Rio de Janeiro pelas Faculdades Integradas Simonsen (FIS).

Carta de confirmação do conselheiro, físico-mor e barão de Goiana Dr. José Correia Picanço, concedendo licença ao escravo angolano Vicente para que pudesse realizar sangrias e arrancar dentes, 2 de setembro de 1820. BR_RJANRIO_20_COD_0_145, v. 08/146 v. Fisicatura-mor. (AN).

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Artigo

A PADRONIZAÇÃO E REGRAMENTO DE NORMAS E CONDUTAS ATRAVÉS DO MANUAL DO SERVIÇO SAGRADO Por Marcos Vinícius da Silva Ramos

RESUMO: Este breve artigo analisa algumas informações contidas no Manual do Serviço Sagrado – guia destinado aos obreiros da Igreja Universal do Reino de Deus. Essa obra estabelece as normas e as práticas consideradas como ideais para um obreiro dessa instituição. Além disso, este documento traz informações sobre as concepções teológicas empregadas por esta Igreja e sustenta que, subjacente a um ideal de vida ascética, existe um regramento de normas e condutas, interferindo em questões como indumentária, maquiagem, corte de cabelo e unhas, enfim, em assuntos que, a priori, não parecem tão sujeitos à vida espiritual, mas que, na lógica iurdiana fazem todo sentido, pois o obreiro não é um indivíduo, mas a personificação tanto da Igreja quanto da obra de Deus. O obreiro iurdiano é, grosso modo, reflexo do perfil ideal tanto do homem quanto da mulher de Deus. Palavras Chaves: neopentecostalismo; teologia; obreiro.

Introdução

S

endo uma igreja oriunda de um dos ramos do protestantismo, a Igreja Universal do Reino de Deus1 afasta-se do protestantismo histórico no quesito estritamente teológico. Há, predominantemente, nas igrejas reformadas históricas, uma clara delimitação das questões confessionais e doutrinárias, além de uma tradição de produção intelectual que busca legitimar suas posições; já na Universal, esta Ora será usado o nome completo da Igreja, ora será usada a sigla IURD, para se referir às práticas institucionais e/ou de seus membros, o termo iurdiano(a) também será utilizado. 1

linha é tênue e apresenta uma tendência de se transformar constantemente devido aos seus inúmeros processos de reelaborações e ressignificações. Enquanto o protestantismo histórico, numericamente, estagna-se, a Igreja Universal do Reino de Deus não para de crescer. Desde sua fundação, o boom foi uma questão de tempo. Clara Mafra traz-nos o dado de que, em 1994, entre os evangélicos do estado do Rio de Janeiro, a IURD era a terceira maior denominação evangélica (MAFRA, 2001, p. 69). O historiador Wander de Lara Proença também aponta para a crescente iurdiana em um curto espaço cronológico.

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GNARUS - 107 os católicos e protestantes históricos – através de tratados, concílios – mas está sempre produzindo de outras maneiras. Assim como todas as instituições, a Igreja Universal é produto de seu tempo. Esta, ao “ignorar” a cultura letrada e se articular através de rádios, jornais e programas de televisão, cria uma ponte entre a cultura oral suburbana e a cultura virtual (MAFRA, 2001, p. 49). Cabe a nós saber lidar com tais formas de documentação e, sem dúvidas, o Manual do Obreiro2 é um documento em que as concepções teológicas e doutrinárias da Igreja são expostas.

Manual: não para o homem, mas para Deus

Três anos após sua fundação, a denominação contava com 21 templos espalhados por cinco estados. Sete anos depois, esse número pula para 195 igrejas em 14 unidades federativas (PROENÇA, 2011, p. 156). O crescimento da IURD é inegável, porém, estudar este movimento não é tão simples quanto pode parecer. Como um historiador atento aos discursos, fico impedido de fazer algumas análises que seriam mais “fáceis”, por exemplo, tendo como objeto a Igreja Católica. Por se afirmar como uma tradição intelectual e doutrinária, esta Igreja acumula documentos, atas, bulas e outras formas que ‘facilitam’ o trabalho historiográfico, definindo o sagrado e o herético. Ao estudar tal instituição, o historiador sabe por quais caminhos pode trilhar e seguir; porém, o historiador que tem a IURD como objeto de estudo não pode calcar-se destes aparatos. Isso não quer dizer que a Universal não produza teologia. Não produz, talvez, nos “moldes clássicos”, como

O título do manual do obreiro iurdiano não deixa dúvidas de que, ao se moldar àqueles padrões, o homem ou mulher não estarão prestando um serviço à Universal, mas a Deus. Qualquer tipo de resistência às normas não é uma desobediência à instituição, mas ao Deus de Israel. É certa, aqui, a pretensão em tirar a ênfase de qualquer tipo de interferência humana, interesses ou questões ideológicas sobre a composição de tal manual; ou seja, tudo que está contido ali é, grosso modo, revelado pelo Senhor aos seus servos. Conforme cremos, o Espírito Santo dirige toda a Obra e escolhe Seus servos para cumprirem Seus propósitos. Sabedores disso, não há necessidade de questionar algumas limitações colocadas aqui como normas, porque a obediência a elas trata resultados satisfatórios e, principalmente, agradará a Deus, de forma que o obreiro será capacitado para a realização do Serviço Sagrado. 3

Há, subjacente a este discurso, uma lógica de troca. Ao se adequar a tais padrões, a Disponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/. Acesso em: 19 de set. 2018 3 Disponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/ Acesso em 19set. 2018. 2

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GNARUS - 108 pessoa estará apta a ser uma representante do ‘reino de Deus’ na Terra, o qual é mediado pela Igreja. Isso se dá devido ao capital de autoridade propriamente religiosa que a instituição tem (BOURDIEU, 2007, p. 58). Ao cumprir tais normas, o obreiro é vestido de uma unção, estando pronto para lidar com as adversidades que certamente chegar-lhe-ão. O cargo de obreiro na Universal tem um valor simbólico demasiadamente prestigioso, pois eles são fundamentais no funcionamento da Igreja e de suas missões. Mais que isso, é um trabalho honroso, pois ao mesmo tempo em que há uma troca de autoridade religiosa, não há compensação monetária; o obreiro exerce tal cargo porque foi escolhido, pois ajudar a salvar almas, na economia da salvação, vale mais do que qualquer coisa. A experiência de ser um obreiro ou uma obreira na Iurd, onde se luta diariamente com os demônios, é a base para que esse trabalho evangelístico, feito com muito amor, cresça cada vez mais em todo o mundo. Os obreiros têm uma atuação indispensável, porque são os cartões de visita da Igreja e desempenham as mais variadas funções. Fazem tudo isso por amor a Jesus. Não recebem salário; é um trabalho voluntário. Para os que são convertidos, ser obreiro é considerado um privilégio, porque compreendem que são escolhidos por Deus para esta missão.4

A transformação de vida pós-conversão é fundamental na mensagem iurdiana. O Deus que opera na Universal não é o “Cristo morto” (MARIANO, 1999, p. 69), apresentado pelo catolicismo, nem o Cristo do “evangelho mamão com açúcar”, pregado pelos protestantes tradicionais; quem age por intermédio da Universal é o Deus vivo, sempre capaz de realizar milagres. Por mais que o ascetismo seja algo inerente ao obreiro, as especificações feitas no manual não condizem especialmente à sua vida espiritual, mas às questões, como, por exemplo, indumentária, forma de Disponível em: http://www.igrejauniversal.org.br Acesso em 19 set. 2018. 4

tratamento e de comportamento, higiene pessoal e outras coisas. Obviamente, todos estes cumprimentos resultarão no “perfil” do obreiro perfeito e a vida espiritual está intrínseca a isto, mas, o que chama atenção, é a forma como estes “valores ascéticos” são deixados de lado e sobrepostos a questões que, despercebidamente, podem parecer banais, mas são fundamentais à construção da imagem que a Universal cria sobre si e transmite. Para isso, a supervalorização da roupa, por exemplo, é uma forma de controle e padronização de seus obreiros. As vestes têm, para a Universal, “um valor espiritual dado pelo próprio Deus”,5 pois, segundo informações contidas no documento, “não há nenhuma outra roupa, por mais cara que seja no mundo da moda, que se compare ao valor espiritual que o uniforme de obreiro tem. Por isso, não devemos tratar um tesouro inestimável como este de forma relaxada, mas com zelo e reverência”.6 Seguindo tal lógica é possível perceber, como dito, que as roupas não são apenas objetos indumentários, mas, há santidade nela. No protestantismo histórico, por exemplo, as roupas não possuem nenhum tipo de valor espiritual. Obviamente, há uma ideia implícita que a forma de se vestir e de se portar deve ser condizente com os padrões cristãos,7 e, nesta questão, está implícita a ideia de “consciência” e do “amadurecimento” que cada indivíduo tem, principalmente porque, após a conversão e o “batismo do Espírito Santo”, alguns assuntos não precisam de regras e nem Disponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/ Acesso em 19 set. 2018. 6 Ibdem. 7 Poderia ser feita, aqui, uma discussão do que seriam tais “padrões cristãos”, porém, opto por não me aprofundar nisto. Outrora, fico com a ideia de que tais padrões se parecem muito nas diversas denominações históricas e estão ligados à vida ascética, baseada na exegese bíblica e principalmente na leitura do Novo Testamento, dando ênfase aos escritos paulinos. 5

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GNARUS - 109 de normas, pois há um constrangimento – por parte do Espírito Santo – que dá capacidade à pessoa para discernir sobre aquilo. Mesmo depois disso, não há, explicitamente, como no caso da IURD, manuais ou folhetos que coíbam ou estimulem determinados tipos de roupas, maquiagens, formas de comportamento etc. O valor dado à roupa pela IURD pode ser, também, ligado à cultura judaica, presente no Antigo Testamento, no qual, determinadas peças eram proibidas ou permitidas em detrimento de outros itens. Os sacerdotes, juízes e pessoas que tinham cargos importantes, mantinham um padrão que deviam seguir para cumprir determinados ritos e funções. Os maiores choques entre cristãos e judeus, por exemplo, dão-se também por tais fatores, pois há a defesa – por parte dos cristãos – que com o sacrifício de Cristo, estes padrões e tradições não faziam mais sentido devido à justificação. Além de uma forte apropriação da cultura judaica, a teologia neopentecostal caracteriza-se pela interpretação literal do Antigo Testamento, não fazendo a exegese e a diferenciação de contextos históricos, como neste caso (AMARAL, 2019 [prelo]). Mesmo se apropriando culturalmente do judaísmo sobre a questão indumentária, no fim das contas, tais releituras literais do Antigo Testamento não cessam aí; nos cultos, atualmente, o bispo Macedo tem usado constantemente o quipá, além das campanhas e festas que remetem ao Israel antigo.8 A imagem do obreiro perfeito não está unicamente ligada à sua vida espiritual, mas também pela forma em que este se comporta, se veste, se higieniza e se, de fato – após encaixar-se em tais normas – representa a Universal, pois, segundo o bispo Edir Macedo, “se Sobre a apropriação que a IURD faz do judaísmo em relação às festas e campanhas, o historiador Wander de Lara Proença traz-nos melhores detalhes e reflexões em sua tese de doutorado. 8

Deus não é visível na pessoa, então não houve batismo com Espírito Santo”.9 Novamente, em um vídeo, ao decorrer sobre a “santidade do uniforme”, bispo Macedo afirma: Eu estava falando com o rapaz, responsável pelos uniformes, eu falei: os uniformes que você faz é algo sagrado, santo. Você está servindo a Deus! Por favor, não pense em dinheiro; o dinheiro vem como uma coisa natural, mas não é o objetivo. O que você está fazendo tem que ser com santidade, com temor. Porque essas pessoas vão vestir um uniforme que vão espelhar a glória de Deus. Que vão espelhar a mão de Deus para as pessoas aflitas, necessitadas. Então, esse uniforme tem que ter a maior santidade. Tem que fazer com carinho, tem que ser o melhor. Não pode ser mal feito. Não pode ser considerado mais uma roupa. Tem que ter todo carinho. E as obreiras, por sua vez, tem que ter um carinho para com seu uniforme. Porque quando alguém de fora ver você uniformizado, ela irá respeitá-la como uma pessoa de Deus.10

Há, na concepção de Macedo, supra, a ideia de que há um trânsito do poder de Deus através do uniforme do obreiro iurdiano. O uniforme não é mais uma roupa, mas “a roupa”, aquela em que é espelhada a glória de Deus. Estas roupas são a forma do “pagão” identificar o servo do Senhor, onde este estiver. Tal uniforme é, sobretudo, uma “armadura espiritual”.

O perfil do homem de Deus: do cabelo à barba A figura do homem,11 no cristianismo, é esDisponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/. Acesso em 19 set. 2018. 10 A redação manteve o texto em formato original, mesmo contendo erros de concordância. Disponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/ blog/2017/06/11/santidade-ao-uniforme/ Acesso em 19 set. 2018 11 Refiro-me a homem no quesito puramente biológico, optando por não entrar em uma possível discussão de gênero e sexualidade. 9

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GNARUS - 110 sencial, desde sua criação, passando pela queda adâmica à redenção. Historicamente e culturalmente, os homens têm uma posição de maior destaque, sendo estes representados como “cabeças” da casa, dos relacionamentos, etc. Segundo Macedo, “hoje, o homem de Deus simboliza o rei em Israel” (MACEDO, 2002, p. 85), ou seja, o homem está, hierarquicamente, apenas abaixo de Deus. Referindose ao uniforme masculino, o Manual esclarece a especificidade do tipo de roupa e do tipo de reunião. Os uniformes e as peças que o compõem variam de acordo com a época do ano ou com o tipo de reunião. Para ajudar nas reuniões, é imprescindível que os obreiros (as) utilizem o uniforme. Existem diversas composições do uniforme que atendem às necessidades específicas de cada situação. Por isso, é preciso seguir fielmente o modelo adequado, de acordo com a reunião em que ele será utilizado.12

Há, novamente, remetendo-se à antiguidade, a ideal dos ritos hebraicos, nos quais existiam peças, roupas e ornamentos específicos para determinadas pessoas e para determinados momentos. A Universal tenta passar determinada imagem através de seus obreiros. Além da composição do uniforme, seguem-se recomendações de como lavá-lo, como conservá-lo e qual é o tom de cor ideal para que este seja usado. Doravante, há uma série de normas de higiene sobre as quais o obreiro deve segui-las: as unhas devem estar sempre limpas e cortadas, os cabelos sempre cortados, e a barba sempre bem-feita, observando “o comprimento simétrico dos fios”,13 para “não transmitir uma imagem de descuido ou falta de higiene”.14 Mesmo sendo bem claras, as normas Disponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/ Acesso em 19 set. 2018. 13 Disponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/ Acesso em 19 set. 2018. 14 Ibdem. 12

recomendadas aos homens não são tão específicas quanto às das mulheres. Mesmo recomendando os cabelos sempre cortados, o Manual não exige um corte específico, como nos casos femininos. Por ora, é explícita a tentativa e a intenção de construção do tipo ideal de homem, na qual, esse, após o cumprimento de tais normas e aconselhamentos, estaria apto para representar a glória de Deus, mediada pela IURD. Esse, após se encaixar no padrão proposto, poderia ser, como diz Macedo, identificado no meio da rua até mesmo por um “pagão”. O uniforme, a barba feita, as unhas e cabelos cortados, constituem o poder simbólico (BOURDIEU, 2007) que o obreiro iurdiano representa.

O Perfil da Mulher de Deus: do cabelo à maquiagem A figura da mulher, na Igreja Universal do Reino de Deus, não é deixada de lado. Devido ao machismo estrutural na sociedade brasileira, a figura da mulher, por muito tempo, fora reduzida às “questões da casa”,15 mas, na IURD, a figura feminina é essencial principalmente na construção da espiritualidade do homem. Segundo Macedo, “a mulher faz e desfaz de um homem, mas uma mulher de Deus faz homens de Deus” (MACEDO, 2009, p. 4). Mas, ao mesmo tempo em que a muExistem inúmeros trabalhos sobre questões de gênero em diferentes períodos históricos da sociedade brasileira. Entretanto, ao abordar a história social da prostituição no início da república e sobretudo lógica dicotômica entre mulher da casa versus mulher da rua, Cristiana Schettini nos presenteia com um belíssimo trabalho e nos mostra como relações de poder e gênero exerceram influência sobre mulheres e como estas, de alguma forma, foram agentes de suas próprias histórias. Para mais informações, consultar SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2006. 264 p. 15

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lher é de suma importância, também pode ser “perigosa”: O sucesso de um homem, não importando a profissão que ele exerça, depende muito da mulher que faz parte da sua vida. Ela é, na verdade, co-responsável tanto pelo seu sucesso quanto pela sua desgraça. O rei Salomão, com toda a sua sabedoria e poder, não pôde resistir aos caprichos e envolvimentos das mulheres. Acabou perdendo toda a sua glória justamente por causa delas. (ibdem, p. 10).

O poder que a mulher tem, benéfico ou maléfico, é imenso, segundo a teologia iurdiana. Deve haver, portanto, um tipo de policiamento, para que a mesma se encaixe no “perfil ideal”. Para Macedo, não há problema no fato da mulher ser vaidosa, usar maquiagem ou determinados tipos de roupas, mas há um limite para que tais cuidados não se tornem pecaminosos. No livro O Perfil da Mulher de Deus, no capítulo quatro, intitulado de “as vestes da mulher virtuosa”, ele afirma: [...] É dever de toda mulher, especialmente se ela é de Deus, procurar ter a melhor aparência possível, para se apresentar na igreja

ou em qualquer outro lugar. Isto, entretanto, não deve exceder os limites, para que não se vista e se maquie de tal forma que atraia a atenção de todos. Todo o zelo que tiver com o seu exterior deve ser observado com a máxima discrição e simplicidade. As vestimentas sensuais e eróticas são condenáveis pela Palavra de Deus, uma vez que excedem o bom senso, além de fazerem transparecer um caráter totalmente inverso ao de Deus. As mulheres que deixam extravasar sua sensualidade, quer através do seu comportamento, quer de suas vestimentas, agem desta forma porque têm um espírito demoníaco, chamado pomba-gira. Por acaso não procedem assim as prostitutas, quando querem atrair clientes?” (ibdem, p. 37).

Ao fazer tais afirmativas, Macedo deixa claro que existe, sim, um padrão que deve ser seguido, para que a mulher seja uma ‘representante’ de Deus na Terra. Ele trabalha, de forma dicotômica, a ideia de mulher cristã x mulher pagã, e a forma de conhecer tais, exteriormente, é através das vestes; por isso, a obreira da Universal, além de ser reconhecida como mulher de Deus pelos pagãos, deve se

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GNARUS - 112 encaixar em determinados padrões para que possa fazer a diferença, pois, como supracitado, Macedo acredita que a conversão da pessoa deve ser atestada devido à sua postura perante a sociedade e isso inclui, nessa lógica, padrões indumentários.

lo, tudo deve ser escolhido de acordo com a concepção de vida cristã. Tudo, no corpo do obreiro da Igreja Universal, dos pés à cabeça, literalmente, é para ser diferenciado e representar a glória de Deus e a IURD, respectivamente. No manual, isto fica explícito:

No Manual do Serviço Sagrado, a parte destinada às mulheres é bastante clara quanto às regras e normas que devem ser seguidas. O uniforme das mulheres, assim como o dos homens, obedece a premissa de ser específico para determinadas reuniões ou estações do ano. Além do uniforme tradicional, segue-se, doravante, recomendações como o tamanho e cor do brinco ideal e também, respectivamente, das peças íntimas (calcinha e sutiã). Além do uniforme e dos adornos, a maquiagem e a forma como deve ser feita também é indicada. A maquiagem deve ser bem natural e neutra, sendo útil a todas as ocasiões (cultos, reuniões, campanhas). Sobre as unhas, as cores permitidas de esmalte são os tons avermelhados, discretos – como marrom, bege – e transparentes; cores mais chamativas, como alaranjado, são proibidas. Unhas descascadas aparentam desleixo, então se recomenda estar com as mesmas sempre feitas ou então “limpas” – sem esmalte; desenhos ou decorações nas unhas não são permitidas, pois não combinam com os uniformes, a única permitida é a francesinha tradicional. Sobre os cabelos, o manual traz a seguinte indicação:

Vale lembrar que não representamos uma empresa ou um produto, mas o nosso Deus. Sendo assim, preze pela discrição dos seus cabelos, observando com bom senso o que não condiz com um uniforme. Cabelos presos dão excelente aspecto de uniformidade e higiene.17

Mulheres amam mudanças, e por esta razão surgem novas tendências todos os anos para mudar os cabelos, tanto nas cores, quanto no corte. Porém, é fundamental ter o cuidado para escolher algo que combine com a cor de sua pele, o formato de seu rosto e principalmente com o seu estilo de vida cristã.16

Desde o formato do corte à cor de cabeDisponível em: https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/ Acesso em 19set. 2018. 16

Seguindo a mesma lógica sobre a maquiagem e unhas, somente alguns cortes de cabelo são permitidos – cores também. Os objetos permitidos no cabelo são a presilha e as tiaras. As primeiras devem ser pequenas, nas cores azul-marinho, preto ou dourado; as segundas devem ser discretas e sem detalhes – como penas, pedras, brilhos etc. No dia de santa ceia, as obreiras devem usar o penteado “rabo de cavalo” sem trança e com presilha dourada. Doravante, seguem-se orientações sobre higiene, que vale tanto para os homens quanto para mulheres. Nesta parte, são dados conselhos sobre como escovar corretamente os dentes, sobre quais tipos de desodorante usar e sobre qual tipo de perfume ideal, além de especificar as partes do corpo – fragrâncias suaves que devem ser aplicadas à “nuca, atrás das orelhas, pulsos, dobras dos cotovelos e atrás dos joelhos”.18 Como tratado ao decorrer deste artigo, o obreiro é, sobretudo, a personificação da glória de Deus que é mediada pela Igreja Universal do Reino de Deus e este é um importante agente que trabalha e luta contra o mal a todo momento. Há, principalmente durante o uso 17 18

Ibdem. Ibdem.

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GNARUS - 113 do uniforme, uma ideia de trânsito de autoridade religiosa, por meio do qual, o obreiro, além de poder ser reconhecido por um “pagão” como um representante de Deus, está apto para lidar com qualquer problema que possa ocorrer nas reuniões da Igreja. Durante o manual fica explícita a ideia de padronizar o perfil do obreiro, baseado nas concepções de mulher e homem ideal criados tanto pela Igreja quanto pelo seu líder máximo Edir Macedo.

Vinícius da Silva Ramos é graduando em História na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e bolsista de Iniciação Científica do CNPQ, sob orientação do prof. Clínio de Oliveira Amaral, Integrante do Laboratório de Estudos dos Protestantismos (LABEP).

Rerefências biliográficas: AMARAL, Clinio de Oliveira. Neopentecostal santification through Medievalism: a study of the Valdemiro Santiago’s hagiography. In: ALSCCHUL, Nadia; RUHLMANN, Maria (orgs.). Ibero-American Medievalisms. Glasgow, UofG [prelo]. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. MACEDO, Edir. O Perfil do Homem de Deus. Rio de Janeiro: Editora Gráfica Universal LTDA, 2002. MACEDO, Edir. O Perfil da Mulher de Deus. Rio de Janeiro: Unipro Editor, 2009. MAFRA, Clara. Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2001. MARIANO, R. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999. PROENÇA, Wander de Lara. Sindicato dos mágicos: Uma história cultural da Igreja Universal do Reino de Deus. 1. ed. São Paulo: UNESP, 2011. Fontes digitais: https://www.igrejauniversal.org.br https://sites.universal.org/obreirosuniversal/manual/ https://sites.universal.org/obreirosuniversal/ blog/2017/06/11/santidade-ao-uniforme/

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Artigo

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA TERRA DE SANTA CRUZ: AMERÍNDIOS, EUROPEUS E AFRICANOS Por Vitor Arantes

RESUMO: A escravidão tem acontecido nas mais diferentes culturas humanas desde os primórdios da humanidade até os dias atuais, todavia, será destacado neste artigo a escravidão na idade moderna na Terra de Santa Cruz, local que mais tarde, se tornaria o Brasil. Muitos grupos humanos compartilham o mesmo continente, mas não o mesmo modo de vida, cultura, língua e costumes, sendo assim, percebe-se o modo simplório o qual caracteriza-se diferentes grupos como se fossem unidades homogêneas, como foi feito ao longo da história, tratando-se, europeus, ameríndios e africanos como se fossem grandes grupo de pessoas. Essa classificação, desconfigura as diferentes etnias que são divididas em vastos continentes. Abordasse-a neste artigo, as relações entre os “subgrupos” de europeus, ameríndios e africanos que moldaram uma nova identidade nacional no cenário mundial, um povo novo, que ao longo do tempo se tornou único, o brasileiro. Palavras Chaves: Escravidão. Ameríndios. Europeus. Africanos

Introdução

O

presente artigo tem como objetivo reafirmar sobre as origens dos brasileiros e como as mais diversas etnias advindas dos continentes Europeu e Africano, formaram a identidade nacional do povo que viria à se tornar o brasileiro contemporâneo. Cabendo a este propagar a ideia central deste estudo metodológico que são as relações entre os ameríndios, africanos e europeus. Entende-se Américas, África e Europa, como continentes vastos, de enorme diversi-

dade e culturas muito distintas. Regiões como América do Sul, Central e Ásia, foram colonizadas por europeus, na África não foi diferente, e por toda parte onde houve colonização, ocorreram baixas e prejuízos enormes para os nativos de cada região. Houve intervenções por parte destes colonizadores em suas culturas, alguns grupos africanos foram levados ao território que se tornaria o Brasil, e com eles seus costumes, língua, e religião – o qual não demoraria para serem adaptadas às circunstâncias e dar origem as religiões “afro-brasileiras” cujas influências vieram do Cristianismo, Hinduísmo e

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GNARUS - 115 principalmente do Islamismo - que em contato com a cultura dos próprios europeus e ameríndios que habitavam o local, deram origem a uma nova cultura, uma nova sociedade, cujo legado se espalhou pelos Estados do Brasil, através das relações entre ameríndios, brancos, negros, que originaram pardos, cafuzos e caboclos, criando assim o povo brasileiro. Quais os eventos deram origem a mestiçagem no Brasil? Que tipo de relações entre povos de etnias diferentes, gerariam uma nova sociedade? O Tema proposto - ainda que com a notável dificuldade de mostrar a visão indígena sobre a chegada dos europeus, principalmente na perspectiva e ponto de vista de cada etnia ameríndia da época, o que seria impossível, até pelo fato de determinados grupos já não existirem – Foi o choque cultural entre povos, que moldaram as diversas opiniões, vinda de visões de ambos os lados, tanto dos africanos que chegaria mais tarde, quanto dos ameríndios que já viviam na região.

No princípio Acredita-se que o território brasileiro tenha sido ocupado há cerca de 14 mil anos, por grupos humanos que seriam oriundos da Ásia e que chegaram através do estreito de Bering, localizado no extremo nordeste da Ásia. Aquele grupo teria dado origem as mais variadas etnias ameríndias que habitavam o território. “O etnólogo Curt Nimuendaju assinalou no seu mapa etno-histórico a existência de cerca de 1400 povos indígenas no território que correspondia ao Brasil do descobrimento. Eram povos de grandes famílias linguísticas – tupi-guarani, jê, karib, aruák, xirianá, tucano etc. – com diversidade geográfica e de organização social. ” OLIVEIRA, FREIRE

(2006)1

Sabe-se que a primeira relação étnica-racial entre ameríndios e europeus se deu de forma pacífica, onde interesses distintos de ambas as partes aconteceu em um misto de interesse e curiosidade naquele encontro de culturas, o qual mais tarde teria presença africana. Segundo os livros didáticos, portugueses “descobriram” o Brasil e tão logo outros europeus aportaram em busca de recursos naturais e iniciar processos de colonização como foi o caso dos franceses e holandeses. Todavia, grupos menores apareceram também em busca de recursos naturais como o pau-brasil. “A armadores, normandos e bretões, em sua maioria, coube organizar o tráfico de pau de tinta, principalmente na faixa costeira entre o Cabo de Santo Agostinho e o Rio Real, desenvolvendo-se entre eles e os índios um contacto muitas vezes cordial que chegaria a ameaçar a colonização lusitana nestas terras. ” KEATING, MARANHÃO, 2011. 2

Percebe-se aqui neste exemplo uma clara relação de pacificidade e de cooperação entre ameríndios e europeus, estes como: normandos e bretões. Isso sugere que as nacionalidades europeias que chegaram durante o século XVI, não foram exclusivamente de portugueses, franceses e holandeses, outros grupos se mostraram presentes, tanto quanto outros podem ter atravessado o mar até o “novo mundo” e a história não registrou?!. Os portugueses ao chegar em solo ameríndio, encontraram inúmeras etnias vivendo no território, mais tarde, em meados do século XVI, teve o início da diáspora africana que levou diferentes grupos étnicos, oriundos do continente africano. Em maior ou menor escala, o povo brasileiro vem dessa grande mistura entre povos e isso vai muito além da simplória denominação que classifica as etnias ape1 2

OLIVEIRA, FREIRE, 2006. KEATING, MARANHÃO, 2011.

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GNARUS - 116 nas como três grandes grupos de Ameríndios, europeus e africanos”, como se fossem uma unidade homogênea. O objetivo geral deste artigo, consiste em reafirmar que tipo de relações corroboraram em originar o povo brasileiro, através da miscigenação.

Relações de guerra e paz Para entender o surgimento do povo brasileiro, é preciso entender os eventos anteriores o qual os levaram até sua formação, os mestiços, denominados como: caboclo, cafuzo e pardo, assim, chega-se a um conceito de mestiçagem. Segundo Pero Vaz em sua carta para El Rei, a primeira visão sobre os nativos foi a de pessoas pacíficas, inocentes e sem qualquer crença ou fé, percebe-se uma clara intenção de disseminar o cristianismo meio a estes grupos: “Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença”. CAMINHA (1500)3 Futuramente, a catequização indígena, viria a ser feita por padres jesuítas, função esta que daria início ao processo de aldeamento, que será melhor analisado à frente. Ainda, segundo o pastor missionário e escritor Jean de Léry, em sua visita ao território das índias ocidentais ou ainda Terra do Brasil, seu primeiro contato se deu com os índios Margaiá, aliados dos portugueses e consequentemente, inimigos dos franceses. Esse primeiro contato a primeira vista, embora temeroso por ambas as partes, se deu de forma pacífica, com alguns nativos indos ter com eles no navio, onde bugigangas como esCAMINHA, Pero Vaz. Carta enviada a Portugal. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ bv000292.pdf Acessado em 08/09/2016.

pelhos, facas, anzóis, e camisas, foram usadas como moeda de troca por víveres, além dos nativos argumentarem ter em seu território o melhor pau-brasil, e que ajudaria cortar e carregar para o navio. Ao pedirem retorno a terra, Léry narra que os nativos foram levados, sem ser de alguma forma molestados – O escritor ainda, conta que o motivo de não os molestarem e nem os reter seria o fato de se preocuparem com qualquer francês que por acaso caísse em suas mãos e conclui dizendo que os visitantes do navio se comportaram como bons embaixadores. LÉRY (1961).4 Obviamente, inúmeros europeus, tiveram seu primeiro contato com os povos ameríndios, e percebe-se neste diálogo entre testemunhas oculares - no caso Pero Vaz e Jean de Léry - que a experiência de primeiro contato que ambos obtiveram, foram de forma pacífica, no caso de Léry, deu-se um caso ainda mais inusitado, pois os nativos contatados por ele e sua tripulação, fora de índios aliados dos portugueses, o que fariam deles inimigos naturais, apesar disso, o encontro deu se em total harmonia segundo a narração de Léry. Com o passar do tempo, as relações entre europeus e ameríndios vão deixando de ser pacíficas, e os nativos vão se posicionando como pessoas de personalidade e que nem sempre estariam dispostas às indagações dos europeus. Conflitos e revoltas aconteceram em inúmeras ocasiões. Em sua trajetória pelo território, o alemão Hans Staden relata um cerco em Pernambuco: “A localidade onde estávamos sitiados era cercada de mata. Nessa mata os selvagens construíram duas fortificações com espessas toras de madeira. Recolhiam-se para lá à noite e esperavam por eventuais investidas nossas. Durante o dia ficavam em buracos na terra que cavaram em torno do povoado e avançavam quando buscavam escaramuças. Ao atirarmos

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LÉRY, 1961.

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GNARUS - 117 neles, jogavam-se ao chão de modo a escapar das balas. Mantinham-nos de tal forma sitiados, que do nosso lado ninguém podia entrar ou sair. Chegavam perto do povoado, atiravam numerosas flechas para o alto, que deviam nos atingir ao cair e às quais tinham amarrado algodão embebido de cera. Com essas flechas incendiárias queriam colocar fogo nos telhados das casas. Ameaçavam também nos comer caso nos pegassem”. STADEN (2011).5

Neste relato, Hans retrata um tumulto eclodido na região dos Caetés em uma região até então tranquila. Durante o sítio que durou cerca de um mês, os sitiados ficaram sem mantimentos e organizaram uma pequena embarcação para ir até o povoado de Itamaracá, porém os nativos colocaram obstáculos para impedir a passagem, Staden relata que o mesmo se deu durante o retorno, explica que os nativos tentaram quebrar as embarcações com uma armadilha que consistia de cortar um pouco da parte inferior do tronco de duas árvores e puxar, usando cipós como cordas, para que caísse sobre as embarcações, porém, sem sucesso, conseguiram passar pela emboscada e mesmo estando próximos ao local de retorno, começaram a gritar pela ajuda dos companheiros que ficaram aguardando seu retorno, porém, os nativos começaram a gritar ao mesmo tempo, tentando impedir que ouvissem seus apelos de socorro, além de darem a entender que os comeriam, caso os capturassem. Percebem-se neste pequeno relato de Hans Staden, algumas coisas interessantes: Primeiro, como citado anteriormente, nem sempre às relações entre ameríndios e europeus foram de paz, isso é mais do que óbvio. Segundo, os nativos de fato, não foram inocentes e passivos das indagações brancas, eles eram estrategistas, guerreiros e com opinião própria no que diz respeito a tornar-se inimigo ou aliado de alguém. Staden menciona sobre uma prática muito comum, a antropofagia, que consistia no ritual que fazia 5

STADEN, 2011.

alguns nativos de comer os inimigos capturados com o intuito de absorver características como força e coragem do inimigo para si próprio.

Relações de trabalho Nos primeiros contatos entre ameríndios e europeus, sabe-se que uma relação de interesse mútuo, aconteceu. Os ameríndios, interessados nas mercadorias oferecidas pelos europeus, principalmente anzóis, ferramentas de metal, assim como, armas de fogo - que ao que se sabe era fornecida apenas pelos franceses- por outro lado interesses diferentes motivaram os europeus que tinham as mais variadas intenções de exploração, a principal delas a extração de pau de tinta, ou ainda o chamado, pau Brasil, os quais existiam em abundância no litoral e que se encontrava facilmente, além de animais exóticos, o qual eram retirados do ecossistema para a comercialização, entretanto com o passar dos anos, motivações diferentes foram surgindo, os portugueses em sua tentativa de efetivar a colonização voltava-se agora para atividades agrícolas como o cultivo da cana de açúcar, o que iria requerer mão de obra em massa. A coroa portuguesa tivera em mente tornar os índios aliados e cidadãos integrantes desta nova sociedade colonial, com a intenção de protegê-los das incursões estrangeiras e também dos nativos hostis, assim como facilitar a conversão para o cristianismo, os índios passaram a ser aldeados próximos aos polos de estabelecimento português. Segundo a visão dos religiosos católicos essa prática de aldeia fixa facilitaria a remoção de “vícios” e práticas culturais indígenas consideradas diabólicas, sem contar que as incursões de pregação pelos sertões mostravam-se ineficazes e peri-

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GNARUS - 118 gosas. Essa conversão deixou de ser de forma afetuosa para tornar-se uma conversão pelo medo. Essa prática seria mais tarde facilitada com as campanhas violentas de Mem de Sá. Para os colonos esta prática colaborava para garantir mão de obra para o trabalho agrícola, além de outras atividades. O trabalho indígena era feito através de um sistema de rodízio e pagamento de salário regulamentado por lei. A colonização portuguesa se ergueu com braços indígenas apesar da recusa dos nativos ao trabalho agrícola, que por uma questão cultural, as atividades de plantio eram tarefas delegada as mulheres, ao homem cabia um papel diferente que consistia em caçar, pescar, confeccionar arcos e canoas, encarregarse das queimadas entre outros. “[...]Os homens ocupavam-se com derrubada e a preparação da terra para a horticultura, entregando-as prontas para o plantio às mulheres (encarregavam-se, pois, da queimada e da primeira limpa), praticavam a caça e a pesca, fabricavam as canoas, os arcos, as flechas os tacapes e os adornos, obtinham o fogo por processo rudimentar, construíam as malocas, cortavam lenha, fabricavam redes lavradas e, como manifestação de carinho, podiam tatuar a mulher, auxiliá-la no parto etc. É claro que a proteção das crianças e velhos era atividade masculina, bem como a realização de expedições guerreiras e o sacrifício de inimigos ou animais...” HOLANDA (1960).6

Na visão indígena, segundo a historiadora Maria Regina Celestino de Almeida, as aldeias fixadas próxima aos portugueses tinham significados e funções bem distintas: Terra e proteção. Esse era o objetivo dos nativos ao buscar aliança com os portugueses, diante de cada vez maior, concentração de colonos estabelecendo-se no território o qual os nativos já viviam anteriormente e tudo isso somado a escravização em massa, diminuição de territórios de caça e recursos naturais nos sertões, submeter-se ao aldeamento fixo como 6

HOLANDA ,1997.

aliado dos portugueses teria sido uma das poucas saídas, para garantir a sobrevivência. Porém durante a década de 1530, a acentuação do trabalho agrícola nos engenhos da colônia agravou as relações de trabalho, pois a crescente demanda por mão de obra indígena demandava um trabalho cada vez mais acentuado, assim, aumentaram os conflitos e resistências ao trabalho por parte dos ameríndios, visto que esses eram movidos por seus próprios interesses e quando a quantidade de trabalho começou a ultrapassar suas motivações, começaram a abandonar as atividades. ALMEIDA (2010). 7 Percebe-se que as relações de trabalho entre os povos ameríndios e europeus se deram de formas distintas, não sendo em sua totalidade um regime de escravidão, mas, considera-se também a existência do trabalho assalariado e de escambo, o qual foi uma realidade no período, todavia, entre índios aliados. As relações de trabalho criaram estreitamento dos laços, garantindo o surgimento dos primeiros caboclos, filhos de brancos e ameríndios, estes seriam a primeira remessa de mestiços surgidos em terras brasis à partir dos primeiros contatos. Quando os problemas com a mão de obra ameríndia foram acentuados, o tráfico negreiro se expandiu de forma colossal. “Em 1526, Afonso
,rei do Congo,um aliado próximo dos portugueses e um cristão devoto, reclamava: ‘Há muitos traficantes em todos os cantos do país. Eles trazem ruína ao país. Todo dia, pessoas são escravizadas e sequestradas, mesmo nobres, mesmo membros da própria família do rei’”.HALL(2005)8

Entre o século XVI e o século XVIII foram enviados para as Américas uma estimativa em milhões de pessoas escravizadas, esse 7 8

ALMEIDA, 2010. HALL, 2017.

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GNARUS - 119 fenômeno foi caracterizado como: Diáspora Africana. Sabe-se que ao longo da história humana, pessoas foram escravizadas em diversas partes do mundo, todavia, a transferência de africanos escravizados para o “Novo Mundo”, foi , sem dúvida, o mais brutal. Na África o comércio de escravos naquele território já acontecia há séculos, mas não em escala tão grande e intensa. Diferentemente do trabalho nas Américas, mais propriamente dito na região que hoje corresponde ao Brasil, o africano não era anexado à sociedade como acontecia na África, pois, ainda que na condição de escravo, a pessoa tinha algum direito, o que não acontecia nas américas, onde o negro fora tratado como mercadoria e fora levado a fazer os mais variados tipos de trabalhos forçados. A princípio em processo de substituição da mão de obra ameríndia no Brasil, o africano foi levado à trabalhar na agricultura, normalmente nas plantações de cana de açúcar, mais tarde esse trabalho seria expandido para outros setores. Darcy Ribeiro em sua obra “O Povo Brasileiro: Formação e o sentido do Brasil”, comenta sobre a África como marginalizada e tendo sua identidade negada. O autor chama de contribuição a cultura negra, devido as suas crenças, músicas, culinária, língua, e dança, tudo como parte de traços culturais. O autor relata um povo arrancado de suas culturas sendo forçados ao trabalho escravo. Para o antropólogo, a contribuição da cultura negra para a identidade brasileira estaria principalmente no plano ideológico, na força física, nas crenças religiosas, na música e na gastronomia. A África passou por um fenômeno “sócio cultural’ deixando-a livre para pensarmos nela como uma região possuidora de grandes variedades de informações, reinos e etnias, que sofreram com a diáspora, cujo período compreendeu ao início da idade moderna ao

final do século XVIII. Ao contrário da tentativa de desvalorização da cultura afro que vem coexistindo, porém, escondida, desde sempre. No Brasil, as etnias africanas e ameríndias, tiveram uma grande parte de influência na formação cultural brasileira e a diversidade dos africanos escravizados no Brasil repercutem diretamente na pluralidade de povos existentes na África. Relações entre os diversos grupos étnicos, inseridos entre os chamados: “Ameríndios, Africanos e Europeus.

Relações de mestiçagem – Os Primeiros Caboclos. Para Darcy Ribeiro, o modelo tradicional familiar indígena, fora caracterizado como cunhadismo e foi o fator determinante para o início da mestiçagem. Segundo Darcy Ribeiro, a antiga prática indígena de incorporar estranhos aos seus, deu início ao primeiro grupo de mestiços. “A
 função do cunhadismo na sua nova inserção civilizatória foi fazer surgir à numerosa camada de gente mestiça que efetivamente ocupou o Brasil. É crível até que a colonização pudesse ser feita através do desenvolvimento dessa prática. Tinha o defeito, porém, de ser acessível a qualquer europeu desembarcado junto as aldeias indígenas. Isso efetivamente ocorreu, pondo em movimento um número crescente de navios e incorporando a indiada ao sistema mercantil de produção. Para Portugal é que representara uma ameaça, já que estava perdendo sua conquista para Armadores franceses, holandeses, ingleses, e alemães, cujos navios já sabiam aonde buscar sua carga”. RIBEIRO (1995).9

Nota-se que o cunhadismo fora mesmo fundamental no processo de miscigenação, e que este novo grupo de mestiços não seria necessariamente, apenas os filhos de portugueses com ameríndios, mas, de outras na9

RIBEIIRO, 1995.

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GNARUS - 120 cionalidades, os caboclos, foram formados também através das relações entre franceses, holandeses, ingleses e alemães, tornando esse novo grupo ainda mais diverso. “Sem a pratica do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil” RIBEIRO (1995). Um dos locais de destaque da prática do cunhadismo aconteceu na região de Piratininga, hoje São Paulo, a partir de João Ramalho. Segundo o padre Manuel da Nóbrega, João Ramalho foi um português casado com a filha de um chefe indígena, chamado Tibiriçá, chamada de Potira ou Bartira. João Ramalho teve muitos outros filhos e filhas, tiveram também filhos com outras índias, esses filhos casaram com outros índios e índias, criando assim, um dos primeiros grupos registrados de caboclos, a influência de João Ramalho cresceu tanto devido à prática do cunhadismo, que seus filhos e netos cresceram em números e sua influência com os parentes destes o tornou um homem forte e grande líder na captura de índios de etnias inimigas para o uso próprio ou o comércio de escravos aonde eram vendidos no litoral em Santos e São Vicente e também para os castelhanos que desciam o Rio da Prata. Em conformidade com Darcy Ribeiro a prática do cunhadismo aconteceu também em outras localidades, como na Bahia, Pernambuco, Maranhão e Rio de Janeiro. Na Bahia ele destaca Diogo Álvarez, também conhecido como Caramuru, que se fixou na Bahia na primeira década do século XVI, sendo um homem de numerosa família, este, fixou-se bem entre os nativos e conseguira conciliar a convivência entre os índios e portugueses. Darcy destaca também um núcleo onde desenvolvera um grande número de mamelucos em Pernambuco e no Maranhão, onde um homem com nome de Peró teria gerado numerosos filhos com as índias daquela localidade. No Rio de Janeiro os franceses implantaram seu prin-

cipal núcleo de cunhadismo entre os Tamoios, tendo entre eles mais de mil mamelucos que viviam nas margens dos rios que deságuam na baía e também aonde hoje se encontra a Ilha do Governador. RIBEIRO (1995) “As índias serviram de mães para boa parte dos primeiros cariocas, quase todos os mamelucos”. DORIA (2012). 10

Processo de mestiçagem continuada O processo de miscigenação que deu origem ao povo brasileiro foi iniciado ainda no início do século XVI e teve continuidade ao longo do século XVII e XVIII com a inserção das etnias negras em meio a um processo já em andamento de mestiçagem. Entre as nacionalidades europeias com as etnias ameríndias, segundo Paulo Fagundes Visentini, “Menor, mas não menos irrelevante, foi a mistura entre negros e índios, existente nas áreas dos quilombos (Pernambuco e Minas Gerais) e também, no final do século XVIII, em Mato Grosso, Goiás, Maranhão e Pará.” VISENTINI (2013). 11 Grupos distintos de etnias africanas chegaram à Terra de Santa Cruz. De acordo com Daarcy Ribeiro as mais variadas etnias africanas chegadas ao Brasil vieram da costa ocidental africana, derivavam de dois grandes grupos Étnicos e alguns menores que foram eles: “Sudaneses e Bantus, mas, não apenas aqueles”: “distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba ‐ chamados nagô ‐, pelos Dahomey – designados geralmente como gegê ‐ e pelos Fanti‐Ashanti – conhecidos como mircas ‐,além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim. 10 11

DORIA, 2012. VISENTINI, 2013.

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GNARUS - 121 O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo‐angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a “Contra Costa”, que corresponde ao atual território de Moçambique”. 12

Todavia, segundo Charles Boxer, em “O Império Colonial Português” (1969), “à princípio, a maior parte dos africanos vindos para o Brasil procedia da Guiné. Mas, é necessário registrar que isso representa uma diversidade de indivíduos e múltiplas referências culturais que não foram ainda mapeadas na sua totalidade. ” As relações entre os grupos foram as mais variadas possíveis, no entanto serão destacados apenas os mais relevantes.13 Os três grandes grupos, subdivididos em etnias distintas, originaram o brasileiro, o aldeamento entre ameríndios, africanos e europeus, deram origem há três novos grupos: caboclos, resultado da união de brancos e ameríndios. Mulatos, resultado da união entre brancos e negros e finalmente, o grupo de Cafuzos, que é o resultado da relação entre negros e ameríndios. A proposta deste artigo foi enfatizar um apanhado geral sobre as relações étnicas raciais ocorridas no Brasil desde suas origens, ocorridas precisamente no litoral e nos sertões na Terra de Vera Cruz, a partir do século XVI. Dentre aquelas relações, pode-se destacar algumas como o comércio informal, o escambo, casamento inter-racial e trabalho. Os ameríndios, europeus e africanos se relacionaram através do trabalho escravo e do contato com a união entre pessoas de outras etnias, o qual colaborou na origem do povo que formou o brasileiro. 12 13

RIBEIRO. São Paulo, 1995 BOXER, 1969.

Considerando as heranças culturais ameríndia e afro, como parte integrante da história brasileira, apontam-se a necessidade de interagir as questões populares, as ligações entre o brasileiro e a cultura africana e com os costumes dos nativos indígenas. Reconhecendo as diversidades culturais como produto intrínseco ao brasileiro. Percebe-se a história da miscigenação no Brasil ainda sendo escrita no mundo contemporâneo, visto que a inserção de povos de diferentes partes do mundo, continuam acontecendo. Isso permite fomentar que este trabalho de pesquisa possa ser continuado visto que o brasileiro ainda se encontra em processo de miscigenação, com a chegada cada vez mais frequente de novas etnias ao Brasil, entre elas, destacam-se: Libaneses, japoneses, sírios, bolivianos, haitianos entre tantos outros, que buscam vida nova nessa Terra. Vitor Arantes é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e pós graduado em História da Cultura Afro Brasileira pela Faculdade Futura.

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GNARUS - 123

Coluna:

CULTURA, POLÍTICA E COTIDIANO: PILARES DE SUSTENTAÇÃO DE UM CINEMA PERIFÉRICO Por Gustavo Souza

RESUMO: A partir do cinema realizado em periferias urbanas brasileiras, este trabalho discute a composição e as funções de três importantes pilares que o sustentam: cultura, política e cotidiano. A perspectiva aqui adotada é que cultura, política e cotidiano se entrelaçam de forma contígua e se articulam na promoção do debate sobre o potencial dos produtos culturais em meio, também, às novas configurações da esfera política, que recorre ao cotidiano como uma estratégia para rever ordenamentos de imagens, enunciados e pontos de vista. Palavras Chaves: Cultura, Política, Cotidiano, Cinema de periferia.

Introdução

A

produção cinematográfica brasileira que emergiu a partir da década de 90 foi fortemente marcada por novos itinerários para o documentário. Viu-se o crescimento de sua produção e sua posterior exibição, não somente em festivais

ou mostras específicas, mas também em salas do circuito comercial, conferindo-lhe uma visibilidade há tempos não vista. Enquanto o documentário ganhava expansão perante o público, a crítica e os profissionais, moradores de subúrbios, morros e periferias começavam

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GNARUS - 124 a experimentar uma outra forma de contar histórias: a partir de filmes realizados em oficinas de cinema e audiovisual espalhadas por diversas cidades brasileiras. Hoje, a necessidade de ter a clareza sobre o potencial de uma imagem e saber utilizá-lo é imprescindível, fazendo com que o periférico passe agora de personagem - que por décadas causou (e ainda causa, de certo modo) um intenso fascínio entre documentaristas - a realizador, a contador de sua própria história.

neste artigo sinalizar que cultura, política e cotidiano, como pilares que sustentam o cinema de periferia, atravessam mutuamente este tipo de produção – aspecto que merece ser debatido mais de perto. Atentar para esse triângulo não significa desmerecer outros pilares também importantes para a apreensão do cinema periférico. Fatores relacionados à tecnologia e à economia, por exemplo, também são importantes e serão discutidos, em menor proporção, nas páginas seguintes. Esta observação é necessária para que se evite o fechamento da reflexão em determinados aspectos, colocando-os como primordiais e únicos, desprezando as potencialidades de outros campos.

Assistir aos filmes dessa produção, em sua maioria documentários, conduz à necessidade de se apreender suas matrizes, isto é, perceber aspectos que a compõem, mas que muitas vezes são postos A perspectiva aqui de lado diante da necesadotada é de que cultusidade (ou preferência ra, política e cotidiano metodológica) de se dese entrelaçam de forma ter diretamente nos procontígua para construir dutos finais, ou seja, os imagens e discursos pofilmes. Não quero com líticos. Não se trata de isso desmerecer a anáprivilegiar nenhum dos lise fílmica, pois foi exaângulos do triângulo tamente o contato com assim definido, mas de um conjunto de documostrar a peculiaridade mentários, de diversas O Triunfo da Vontade de Leni Riefenstahl da relação que cada um oficinas, de várias partes deles estabelece com do país que me conduziu à reflexão aqui proo cinema realizado nas periferias brasileiras. posta. Faço esta ressalva porque o texto que Cultura, política e cotidiano são planos irresegue é resultado de uma visão panorâmica dutíveis, mas que podem ser investigados separa este tipo de cinema. Visão esta que desgundo uma mesma estratégia: às instâncias via o foco das análises mais localizadas para da instauração cultural corresponderão, mutentar assimilar tal cinematografia de maneituamente, às instâncias da política, e estas, ra global. Com base nessa orientação, quero por sua vez, às do cotidiano. Gnarus Revista de História - VOLUME X - Nº 10 - SETEMBRO - 2019


GNARUS - 125 Dito isso, o debate tratará inicialmente da questão da cultura, ao recorrer a autores de diferentes tradições teóricas – Sociologia, Estudos Culturais e Teoria Pós-Colonial –, para, na sequência, perceber as articulações dos artefatos culturais (especialmente o cinema, na sua modalidade documentário) com processos que esgarçam a noção de política na construção de imagens e enunciados políticos que vão buscar no cotidiano as gradações necessárias para tais processos de constituição. Mesmo em searas acadêmicas distintas, e às vezes travando posicionamentos discordantes, os autores aqui escolhidos atravessam as fronteiras das áreas do saber e estabelecem uma teia em que prevalece o pensamento sobre as funções e os usos da cultura, da política e do cotidiano no cenário contemporâneo, e que aqui será de grande valia para o debate que segue.

especificamente a artística - literatura, pintura, teatro, música, dança, cinema. Tal postulado surgiu num momento em que predominava a circulação dos produtos culturais nos meios de comunicação de massa, bem como a efervescência da cultura popular, especialmente no contexto inglês. Logo, corroborar uma perspectiva que estabelecia níveis hierárquicos para a cultura, bem como enxergá -la unicamente pelo viés da antropologia, solapava toda e qualquer possibilidade de situar a cultura num horizonte dialógico. Isso fez o autor destacar de que maneira o mesmo objeto pode receber diferentes tratamentos em função da disciplina que o acolhe: “na arqueologia e na antropologia cultural, a referência à cultura ou a uma cultura aponta para primordialmente a produção material, enquanto na história e nos estudos culturais a referência indica fundamentalmente os sistemas de significação ou simbólicos”. (WILLIAMS, 2007, p. 122, grifos do autor).

Cultura: usos e efeitos

Com base em tais definições, a cultura, em sua constituição e ação, transita entre as esferas do individual e do coletivo. Na primeira definição – cultura como um modo de vida –, predomina um expoente que estabelece as diretrizes culturais para uma comunidade, para uma nação ou uma coletividade. A segunda concepção preza pelo aprimoramento das possibilidades intelectuais e estéticas do indivíduo. E para que se diga o quão “culto” pode ser alguém, é necessário considerar a produção, a circulação e o acesso a ideias e materiais teóricos ou artísticos, por exemplo, num determinado contexto social e histórico. Isso nos leva à terceira forma de cultura – a produção artística –, que pode surgir como uma iniciativa individual, mas que visa, em sua maioria, uma coletividade. Portanto, as definições de cultura propostas por Williams não são estanques, e sim conectadas entre si. A

Os estudos que já se dedicaram ao tema cultura não são recentes. Eles estão localizados em inúmeras disciplinas e constituem um extenso arsenal bibliográfico. Não me interessa aqui traçar uma espécie de revisão bibliográfica, que revisitaria o tema em seus diferentes momentos, campos do saber e resultados. Mas perceber, a partir da perspectiva apresentada pelo corpus deste trabalho, como as reflexões empreendidas pelos autores selecionados contribuem para o debate. Dessa forma, as definições de cultura propostas por Raymond Williams tornam-se um importante ponto de partida. Em sua classificação, Williams (2007) definiu cultura como um modo de vida compartilhado, como um desenvolvimento intelectual e estético particular e como as produções da atividade intelectual,

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GNARUS - 126 que me interessa mais de perto é a terceira, porque é nela em que se situa o cinema. Logo um detalhamento de sua composição se faz necessário. Se a produção artística sofre as conseqüências diretas do seu tempo histórico e social, esse tempo é atravessado hoje por uma série de fatores que se relacionam entre si de forma complexa, intensificados pela globalização. Por essa via, não se pode perder de vista que os processos culturais em tempos globalizados são o resultado de uma articulação entre diversos “panoramas” (APPADURAI, 1994), como os fluxos migratórios, a tecnologia, a economia e as finanças, bem como as mídias e ideologias que nelas circulam. Embora a discussão sobre as “disjunções e diferenças na economia cultural global”1 selecione para o debate esses cinco aspectos, a questão não se finda em identificá-los e esclarecer como eles operam individualmente, mas compreender suas influências mútuas. Num momento em que pessoas, dinheiro, tecnologia, imagens e ideias podem se deslocar constantemente num itinerário pouco definido, rever o papel que a cultura exerce neste horizonte torna-se uma tarefa particularmente importante, pois a questão do território e da etnia deixam de ser o epicentro do debate para se tornarem pontos de partida. Este diagrama exige uma reelaboração da noção de cultura, em que é preciso pensá-la não mais como um sistema de significados ou uma propriedade que cada grupo ou indivíduo carrega consigo, mas como um recurso que conduz à descoberta e à invenção, permitindo pensar a diferença. Daí, a importância de se pensar no cultural, em vez da cultura, esclarece Appadurai: “Se cultura como substantivo parece suscitar a associação com uma qualquer substância de um modo que esconde mais do que revela, cultu1

Este é o título, inclusive, do artigo de Appadurai.

ral, o adjetivo, transporta-nos para o reino de diferenças, contrastes e comparações bem mais útil” (2005, p. 26, grifos do autor). Esta perspectiva é importante porque evita a fetichização da cultura ou de qualquer outro “panorama”. Num primeiro momento, pode-se reconhecer que as coisas partam inicialmente de um desses pólos, mas restringir o debate a esta constatação e “comemorá-la” como uma chegada ao topo mais alto do pódio das discussões acadêmicas pouco contribui para o debate. Uma compreensão mais aprofundada dos desígnios da cultura só será possível num momento em que se abandonam perspectivas normativas e redutoras para perceber que articulações são possíveis apreender a partir daí, e como elas transformam os contextos históricos ou o nosso cotidiano. Como se vê, a globalização desenha novos cenários para a cultura. A diversidade de abordagens sobre a relação entre cultura e globalização é uma realidade, e tentar apreendê-la neste momento me conduziria a um exercício digressivo. Tomando como horizonte o tema que impulsiona este trabalho – o cinema realizado em comunidades urbanas de baixa renda –, o debate se encaminha para a observação da cultura como recurso (YÚDICE, 2006). Para isso, é necessário considerar dois momentos cruciais para o redimensionamento do papel e do lugar na cultura nas últimas décadas: as correntes migratórias impulsionadas pela globalização e o fim da Guerra Fria, e com ela o término de um intenso patrocínio estatal da arte, uma vez que a produção artística também é uma forma de demarcação de espaço e poder. 2 A partir desses dois processos, notase que a globalização impulsionou a transforYúdice ressalta apenas a questão no lado norte-americano, mas esta observação também serve para o lado soviético, que, antes da Guerra Fria, já utilizava o cinema, por exemplo, como uma ferramenta de difusão de ideias.

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GNARUS - 127 mação de uma série de vetores e artefatos em recurso, e, neste processo, a cultura também passou por tais mudanças, estabelecendo novas relações entre pensamentos que não se reduzem a uma “mera política”. Dito de outra forma, a cultura estabelece agora novas relações com a economia e a política, sendo uma importante ferramenta para a melhoria social, para o aumento na participação política - uma vez que os partidos políticos, argumenta Yúdice, evidenciam explicitamente sua ineficácia frente aos problemas do cotidiano - e para o aprimoramento econômico. Este argumento percorre diversas partes do planeta e apresenta projetos e iniciativas das mais diferentes naturezas que apostaram na cultura como vetor de transformação.3 É preciso estar atento apenas para não se tomar a parte pelo todo, pois uma iniciativa com artesanato na cidade de Lima pode não ser tão bem sucedida quanto em Ouro Preto, por exemplo, e os fatores que determinam o sucesso ou o fracasso estão atrelados a uma variável (ou ao cruzamento de variáveis) que pode não passar necessariamente pela cultura, pois, como alertou Canclini (2005, p.45), “todas as práticas sociais contêm uma dimensão cultural, mas nestas práticas nem tudo é cultura”. Isto é uma possibilidade. Dessa proposta, interessa reter que o potencial da cultura como recurso torna o debate atual e pertinente, uma vez que projetos culturais, dos mais diferentes tipos e formatos, integram hoje a pauta dos administradores públicos, do mercado e da sociedade civil, que enxergam a cultura como ativos gerentes do social, de Sobre o caso norte-americano, por exemplo, Yúdice aponta que o setor das artes e da cultura pode “melhorar a educação, abrandar a rixa racial, ajudar a reverter a deterioração urbana através do turismo cultural, criar empregos, diminuir a criminalidade, e talvez tirar algum lucro” (2006, p. 29). Este é apenas um exemplo entre tantos descritos, e que vem a reforçar seu argumento inicial sobre o potencial transformador da cultura.

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modo que este aspecto não pode ser negligenciado. Logo, tal discussão é importante, porque traz a cultura para o centro de um debate em que não se pode mais negligenciar seus usos políticos, materiais e concretos, pois é exatamente na esfera do uso, em vez de elaborações conceituais abstratas, que a reflexão se torna relevante. Situado também nos estudos que investigam os usos da cultura, Teixeira Coelho (2008) se debruça sobre as políticas públicas que apostam na cultura como uma importante peça no cenário da atualidade. Sua perspectiva questiona se a cultura deve, de fato, ser vista como garantidora do bem-estar social. Para isso, duas materializações culturais antagônicas, mas não desconexas, são identificadas: de um lado, a cultura objetiva, aquela que “o hábito e as regras reconhecem como tal” (COELHO, 2008, p.94), ou seja, uma cultura da ordem do oficial, do grandioso, que se mostra representativa de uma comunidade, mas que, apesar de sua existência evidente, não acessa os sujeitos, não os toca, tornando-se, segundo o autor, um inerte cultural; de outro, existe uma cultura que instiga a capacidade de criação dos indivíduos, que é da ordem do subjetivo, daí a denominação de cultura subjetiva.4 Esta perspectiva identifica um descompasso na evolução desses dois estratos culturais, pois, enquanto o primeiro se situa no campo das idéias, o segundo se localiza no âmbito Elas não estão em campos isolados, mas travam conexões entre si: A cultura subjetiva é aquilo que a cultura objetivada será mais tarde, modificada: é a parte da cultura objetiva que penetra na subjetividade e com ela se funde e é, igualmente, por outro lado, aquilo que eventualmente jamais será reconhecido como cultura objetivada ou objetiva (2008, p. 94) ou ainda: “a cultura surge do eterno conflito entre a cultura da vida, a cultura subjetiva, produtora de formas culturais ativas postas em prática aqui-e-agora pelos indivíduos criadores (...) e as formas culturais reificadas, relativamente congeladas, que constituem a cultura objetivada”. (2008, p. 97) 4

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GNARUS - 128 da prática. Se o inerte cultural, como entende o autor, é uma realidade, exige uma releitura da concepção já intocada de cultura como positividade, pois são diferentes os objetivos e necessidades que cada um desses tipos de cultura empreende. Logo, o autor chama a atenção para o reconhecimento da negatividade da cultura ao argumentar que: “Todas as formas constitutivas da sociedade e do imaginário humano, e entre elas sobretudo a cultura e a arte, devem contribuir para a reforma do homem e da sociedade. Eu disse devem e não podem porque isso se trata: da elaboração de uma agenda impositiva que designa funções e papéis para a cultura e a arte sem saber se a natureza ou a constituição de uma e outra se presta ou em que condições e graus se presta ao que delas assim se espera, em especial quando comparadas ao direito e à ciência, por exemplo.” (COELHO, 2008, p.91, grifos do autor)

Assim como a proposta da cultura como recurso, esta também direciona seu enfoque para os usos culturais, num momento em que as políticas públicas pautadas na cultura enxergam-na como uma importante composição capaz também de gerenciar o social. Embora os posicionamentos sejam divergentes, eles encaminham a discussão para o entendimento da cultura como práxis. Corroborar a negatividade da cultura ou sua capacidade de agente transformador das esferas políticas e econômicas pode ser visto, inicialmente, como algo para não se perder de vista, para ser pensado e debatido, mas que não se apresenta como uma questão crucial para este trabalho. Mais do que se filiar a posicionamentos que se pretendem categóricos, interessa apreender das discussões aquilo que contribui para o desenvolvimento do argumento aqui apresentado. As ideias apresentadas até então, em suas diferentes abordagens e posicionamentos,

constituem-se como um rico painel para se pensar a cultura e seus usos hoje: o reconhecimento de sua importância como campo da produção artística (WILLIAMS, 2007) se vincula às propostas posteriores descritas, tais como a de Yúdice (2006) e Coelho (2008), que debatem as funções que a cultura são capazes ou não de exercer. Da produção artística, que é sempre reflexo de condições históricas e sociais do seu tempo (WILLIAMS, 2007), dos impactos deste tempo na cultura (APPADURAI, 1994), e quais são os seus usos (YÚDICE, 2006; COELHO, 2008), voltamos novamente à reflexão elaborada por Williams. Este cruzamento de posições prepara o terreno para o próximo ponto da discussão deste texto: a simbiose que se estabelece entre cultura, política e cotidiano a partir de um olhar global para a produção de documentários das periferias brasileiras. Para tanto, é necessário debater os outros dois pilares deste tripé.

Arte, cinema e política Debater as configurações da cultura acena para a necessidade de se checar que usos são possíveis apreender daí. Para tal, uma delimitação é necessária. Seria inviável discutir quais usos são perceptíveis sem antes tomar como eixo norteador o objeto de estudo em questão. Sendo assim, um olhar mais próximo para esta produção audiovisual indica um acentuado caráter político tanto no discurso dos realizadores quanto nos filmes. Mas não o uso político em seus sentidos consagrados – a cultura a serviço de regimes de direita ou esquerda, ou a cultura como ferramenta de luta contra regimes ditatoriais –, e sim um político provocador de contradições pessoais e coletivas, que instiga a consciência e a imaginação transformadora dos aspectos mais cotidia-

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GNARUS - 129 nos, que produz interlocutores, e não apenas espectadores; que frutifica ações eficazes, e não somente gozo ou alienação. Em suma, pensar o uso político da arte como uma práxis que se elabora e reelabora nas experiências diárias. Vejamos de forma mais detalhada como se arquiteta este debate. Em um texto de 1968, intitulado Arte y compromisso, o documentarista Santiago Álvarez (2003) ressalta a importância da arte como uma ferramenta para se denunciar injustiças e fissuras sociais. Escrito num momento em que América Latina vivia ditaduras militares em diversos de seus países, não é estranho perceber o tom de manifesto e convocatória diante da situação política da época. A defesa do cineasta é de que as artes, e em especial o cinema, devem ser utilizadas como “armas de combate” (ÁLVAREZ, 2003, p. 458, tradução nossa) frente às “misérias do mundo” (BOURDIEU, 2003). Álvarez não enfoca suas atenções apenas neste potencial, mas destaca a necessidade de engajamento por parte do artista, que deve “contribuir para o desenvolvimento cultural do seu povo” (ÁLVAREZ, 2003, p. 458, tradução nossa). E, ao mesmo tempo, ter a clareza do que sua obra representa para a realidade em que se insere.5 Vê-se, neste caso, a defesa de um cinema que deve ser realizado em consonância com os acontecimentos políticos e sociais da época, ou seja, um cinema que reage frente à instalação de regimes ditatoriais, conectando-se a um dos usos “consagrados” referidos anteriormente. Um outro uso pode ser discutido a partir de um estudo que toma como corpus um con-

Daí sua ressalva: “Não creio em cinema pré-concebido. Não creio em cinema para a posteridade. A natureza social do cinema demanda uma maior responsabilidade por parte do cineasta. Esta urgência do terceiro mundo, esta impaciência criadora no artista produzirá a arte desta época, a arte da vida de dois terços da população mundial” (ÁLVAREZ, 2003, p. 460, tradução nossa). 5

junto de filmes realizados principalmente na primeira metade do século XX, em sua grande maioria de propaganda política, para se verificar os vínculos entre cinema e política (FURHAMMAR; ISAKSSON, 1976). Não pretendo aqui descrever exaustivamente ou parafrasear o trabalho, mas sim perceber que o político entra no debate muito mais por uma via temática do que discursiva. É inegável que tal abordagem se situa dentro de uma proposta que verifica as relações entre cinema e política, pois os filmes abordados6 foram confeccionados para atender a uma demanda de regimes políticos. Mais do que enxergar um cinema político pela chave da revolução ou do atendimento aos ideais de um tipo de regime, interessa-me tomar como ponto de partida o questionamento ainda atual presente no final da obra: “[...] são as intenções ou os efeitos que fazem de um filme ato político, e até que ponto isso depende de fatores externos como o modo da platéia encará-lo, as análises dos críticos ou julgamento da posteridade. Como, então, descobrir que implicações podem ser autenticamente encontradas num filme?” (FURHAMMAR E ISAKSSON, 1976, p. 222).

Responder a essa indagação, sem dúvida, não é uma tarefa das mais simples. Ela sinaliza para o reconhecimento da importância do contexto histórico e da análise fílmica para se avaliar uma determinada produção cinematográfica, pois ambos os aspectos se completam e enriquecem o debate pautado nessa perspectiva. Como salientei anteriormente, a necessidade de se discutir o cinema de periferia observando as relações entre cultura, política e cotidiano favorece o surgimento de uma seara múltipla cuja reflexão está envolta pelos mitos, ambigüidades e dissonâncias O triunfo da vontade (Leni Riefenstahl, 1934), A terra espanhola (Joris Ivens, 1937), A rosa da esperança (William Wyler, 1942), entre outros. 6

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GNARUS - 130 presentes na vida dos homens. Uma resposta ao questionamento proposto por Furhammar e Isaksson (1976), que aqui se configura muito mais como uma provocação do que como o epicentro do debate, deve reconhecer as interfaces entre política e outros campos. Aliás, é numa perspectiva horizontal que a reflexão se torna, de fato, possível, pois a política não é um objeto localizado num pedestal isolado. A multiplicidade de “triângulos” analíticos é possível, assim como as combinações dos “ângulos”. A relação que a política trava com outros “campos” oxigena o diálogo em seus diversos pontos de conexão com a realidade em que emerge. Ao situar o debate no âmbito do documentário, pode-se percebê-lo como um espaço privilegiado, por exemplo, para as articulações entre política, ética e ideologia (NICHOLS, 1991). Esses três aspectos operam uma organização social, bem como o tecido e a textura de uma determinada economia cultural, de modo que uma política da ética e uma ética da política podem se materializar em discursos ideológicos.7 Este posicionamento evidencia que ética, política e ideologia podem ser cambiantes, capazes de dividir a mesma arena. Esta pequena digressão ressalta a necessidade de se debater a relação entre arte e política, bem como o que se denomina arte política. Apontei anteriormente duas possibilidades de materializações para a relação entre arte, cinema e política – atender às necessidades de regimes totalitários, atender às necessidades da revolução. Não quero aqui desmerecê-las Nichlols (1991, p. 103, tradução nossa) ressalta: “em vez de conceber a ética como um meio através do qual podemos avaliar e hierarquizar as práticas do cinema documentário, um enfoque alternativo seria desfamiliarizar esta prática e colocá-la dentro de outra. A tentativa de que questionar e subverter a ideologia dominante de oposições e hierarquia e a ética que a respalda. Para além do bem e do mal é a dialética de uma prática social baseada em diferenças que não se reduzem a eles e outros, eu e outro.” 7

ou sugerir que sua importância reside apenas no passado, afinal ainda vivemos sob a égide de regimes totalitários e diversos grupos ainda lutam contra tais regimes, mesmo que em menor proporção em relação aos últimos 40 anos. Porém, diante do cenário contemporâneo atual, para avançar no debate, é preciso visualizar outras materializações para essa relação. A coexistência e interferência entre si de diversos “panoramas”, para retomar o termo proposto por Appadurai (1994), reforça também a necessidade de um olhar mais detalhado para a relação que se estabelece entre arte, cinema e política. A arte revela o seu potencial político a partir do momento em que investe e problematiza a esfera das relações para criar apresentações, e não necessariamente representações. Quando balizada no relacional, ela é capaz de elaborar experiências que são levadas adiante, em diferentes graus, níveis e contextos, produzindo resultados artísticos concretos de uma realidade existente, apresentando-se como um “interstício social” (BOURRIAUD, 2009, p.19), em que suas variáveis culturais, políticas e estéticas gravitam em torno de um objetivo comum: compartilhar o espaço público a partir de estratégias, interesses e sentimentos comuns, bem como, numa chave oposta, abalar as estruturas de tal proximidade comumente vivenciadas, produzindo erosões e crises.8 A arte evidencia seu caráter político quando reforça as relações humanistas, e não simplesmente as humanitárias. Quando instiga o debate ao tornar a palavra um ato revolucionário atento agora às artimanhas das redes e da globalização, algo feito muito mais pelo documentário fotográfico ou Frodon (2007, p. 436) esclarece a relação: “Lembro que nenhum desses dois ‘campos’ considera o estado do mundo e das relações humanas como algo adquirido indiscutivelmente nem como algo óbvio: ambas as abordagens pressupõem uma insatisfação com a realidade”. 8

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GNARUS - 131 cinematográfico, como testemunha, do que pelo jornalismo, que se tornou uma espécie de “cão de guarda dos acontecimentos” (BAQUÉ, 2004, p. 177, tradução nossa). Atenta ao fato de que o mundo não é mais clivado por dualismos do tipo opressor/oprimido, patrão/ empregado, a arte política apresenta a possibilidade de pensamento e ação, e, diante das agruras do mundo, convoca o artista, o cineasta ou o documentarista a reagir, de alguma forma, frente a essas adversidades, pois estimular a reflexão reativa o político. Se ontem havia a arte política pautada nas lutas contra os regimes ditatoriais, hoje há uma arte que não aceita passivamente os desígnios da globalização, e se articula em torno de movimentos anti-globalização, pois os momentos de crise forçam a criatividade e a necessidade de se aproximar do público, de travar uma interlocução que não toma como baliza somente uma historização política da arte, uma filosofia política dogmática ou uma restrição às obras de artistas engajados, mas, acima de tudo, um cruzamento dessas possibilidades. A arte se torna política quando reflete sobre sua importância, impacto e alcance diante das perdas de sentido e do colapso da política. Enfim, a envergadura política da arte se revela quando ela não apresenta intenções políticas explícitas para ser política. No esteio dessa discussão entre política e sua relações com as formas artísticas, recorro aqui ao pensamento de Baqué (2006), Bourriaud (2009) e Frodon (2007). Cada um deles, voltado para aquilo que lhe é mais caro - arte contemporânea e documentário, especialmente -, ressalta a importância de se pensar os afluentes políticos da arte, sinalizando para a necessidade de tomar a política em consonância com a arte como uma práxis. As capacidades destacadas anteriormente, sem dúvida, sinalizam para um papel transfor-

mador e, ao mesmo tempo, desafiador para arte em tempos atuais. Mas uma vez ressaltada a importância do uso da cultura e da arte - e vimos até que ela revela um intenso potencial político -, resta saber que efeitos tais manifestações artísticas são capazes de empreender. Não quero com isso afirmar que a arte política só faça sentido e só mereça atenção a partir do momento em que se constatam claramente suas eficazes conseqüências, até porque as intenções são diversas e as opiniões sobre seu impacto podem variar com o referencial adotado. Dependendo do tipo de arte que se ponha em prática, um resultado plausível pode demorar para vir à tona, não somente para o realizador, como também para o público. A questão é que os aspectos que pontuam a relação entre arte e política solicitam mudanças – seja em relação às ações ou às formas de pensamento. Diante disso, torna-se válido, então, checar esse desdobramento da arte política. Pensar a arte política requer também pensar o seu raio de alcance e, quiçá, possíveis mudanças por ela proporcionadas. Reconhecer que, apesar de bem intencionada, a arte não pode tudo é um primeiro passo para a discussão sobre sua práxis. Sem perder de vista que ela emerge em contextos históricos pontuais e reflete as variáveis de sua época, seria ingênuo, então, pensar que por si só ela seja capaz de mudar o mundo. O cenário descrito por Baqué (2006) apresenta uma crise da informação e da imagem, que delega cada vez menos espaço para o intelectual e gerencia uma espécie de pânico generalizado diante das imagens. Mas situando suas análises das obras de artes e filmes, na compreensão do contexto em que elas se estabelecem, a autora destaca a mutabilidade estética que os momentos de crise proporcionam, e chama a atenção para a “impossibilidade de se falar de arte política, sem mirar o olhar para

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GNARUS - 132 as fraturas sociais, para os imaginários sobre a guerra e para a recondução da problemática do verdadeiro e do falso, presente na Grécia Antiga que hoje encontra singulares ecos” (BAQUÉ, 2004, p. 196, tradução nossa).9 Seguindo as trilhas de Baqué, concentrarei as atenções no documentário, por ser o objeto de estudo deste trabalho, e também para não abrir demais a discussão e querer passar por todo tipo de projeto artístico. Pois o documentário há bastante tempo traz para si a tarefa de debater questões espinhosas mundo afora. O documentário é político mesmo quando não tem a intenção de ser (Baqué, 2004, p. 260). Pensar o documentário dentro dessa conjuntura passa inevitavelmente por enxergá-lo como uma materialização de um engajamento político, aspecto que emergiu com força nos anos 60 e que até os dias de hoje impulsiona a confecção do “documentário engajado”, ou seja, um documentário cuja fidelidade política aparece em primeiro plano para lidar com os problemas sociais. A discussão em torno do documentário como uma ferramenta de mudança remete novamente o debate para a pergunta apresentada anteriormente: é possível mensurar as conseqüências e o alcance de um filme? No artigo Political Mimesis, Jane M. Ganes (1999) reflete sobre a questão ao salientar um aspecto ao mesmo tempo antagônico e complementar: os documentários não têm o poder de modificar situações políticas, a mudança social empreendida pelo documentário é uma utopia sustentada pela esquerda. Tal instância, segundo a autora, não deixa de interferir inclusive na forma como se encaA autora ainda segue: “Nem a arte pela arte, nem somente a auto-reflexividade modernista, mas sim uma vocação da arte: eminentemente frágil, jamais assegurada em sua recepção, nem, menos ainda de sua eficácia, ela se condena de uma certa maneira à ‘consciência infeliz’ hegeliana”. (Baqué, 2004, 196-197, tradução nossa). 9

ram as mudanças: “em paralelo ao desenvolvimento da produção de documentários, na teoria política ocidental, ‘mudanças sociais’ são vistas como ‘revolução’, desconectada de uma forma que nos conduz a vê-la como algo não realizável, oposto às possibilidades cotidianas” (GANES, 1999, p.87, tradução nossa). Mas, por outro lado, Ganes chama a atenção, como faz também Baqué (2006), para a necessidade do novo vídeo de guerrilha urbana priorizar em suas discussões uma estética política do documentário, e este movimento não pode ser negligenciado pela crítica e pela academia, pois os documentários usam cópias de imagens do mundo para influenciar o mundo (GANES, 1999, p.100). Se documentários são cópias do mundo em imagens, é necessário reconhecer que - diante da pluralidade de rotas para a arte e o documentário, mas cujo ponto de chegada único é a necessidade de empreender discussões para reativar o político - pensar esta possibilidade a partir do cotidiano, então, torna-se uma estratégia política particularmente importante, pois a imaginação e a reflexão transformadoras que os artefatos artísticos podem proporcionar atingem desde o “mundo”, como dito anteriormente, até as esferas da vida cotidiana.

O cotidiano como estratégia política No entanto, destacar a importância do cotidiano como uma estratégia para produzir imagens políticas não implica recorrer aos pormenores, às pequenas coisas da vida, ao sem importância, e ressaltar, a partir daí, uma beleza, leveza ou delicadeza que somente a experiência cotidiana é capaz de revelar. Se o cotidiano, pois, estabelece as articulações entre a política e a história (MARTINS, 2008), é imprescindível reconhecer que ele também

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GNARUS - 133 pode ser opressor e produtor de agruras, que cotidiano não se restringe ao ambiente privado, interno e particular. Tampouco se pode enxergá-lo como lugar privilegiado do marasmo, do banal, da repetição, pois o cotidiano não escapa às ações humanas. Aliás, são elas que engendram o cotidiano, sendo ele desta forma constantemente atravessado por conflitos, guerras, violência, desigualdades, desastres, acidentes, separações, enfim, a lista pode ir ao infinito. Ressalto aqui este aspecto, para que não se veja o cotidiano como um refúgio do “mundo terrível lá fora”, e para que se evitem visões restritas e idealizações. Mas também não quero com isto me situar na chave oposta do debate, ou seja, enxergar o cotidiano apenas a partir das adversidades da vida, mas sim atentar para as múltiplas facetas que ele pode apresentar. A ressalva anterior, de certa forma, já anuncia o terreno no qual me situo acerca da forma como o cotidiano pode ser encarado. Nos ciências sociais, o cotidiano vem sendo tratado de forma mais estreita, relevando uma abundância de referências, perspectivas e correntes. Diante desse aspecto, para que se evite um detalhamento exaustivo sobre esta diversidade, recorro a trabalhos (PAIS, 2003; MARTINS, 2008) cujo enfoque se encaminha para a apreensão do cotidiano em suas materialidades (não no sentido marxista literal e restrito) no contexto social, político e histórico, distanciando-se de perspectivas abstratas e subjetivas, muitas vezes pautadas em impressões meramente pessoais.10 Sendo Diante deste tema são inúmeros os trabalhos de fôlego e reconheço aqui o débito com eles, tais como o de Heller (2008), Certeau (2008), Goffman (2008) e Lefebvre (1991). Recorro às reflexões de Pais, por este autor reunir em única obra as mais variadas linhas de pensamento e uma diversidade de autores que se dedicaram tenazmente à questão. Por outro lado, o trabalho de Martins, a partir de um diálogo direto com a obra de Henri Lefebvre, que, traduzido para as especificidades brasileiras, enriquece também este trabalho.

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assim, deve-se destacar inicialmente o cotidiano como o local da produção e circulação de conhecimentos e significados comuns, que, pautado em “situações de interação” (PAIS, 2003, p. 15), permite o “surgimento de contradições” (MARTINS, 2008, p. 56), exigindo dos indivíduos saber lidar com tensões e instabilidades em constantes processos de negociação e mediação. Este conhecimento comum, por vezes visto como algo não merecedor de atenção nas ciências sociais,11 é a fonte primária para as experiências que possibilitam os modos de ser, estar e fazer na vida cotidiana, e por ser sempre um processo em que o “vivido” (PAIS, 2003, p. 47; MARTINS, 2008, p.95), como um momento de compartilhamento de sentidos e informações, torna-se imprescindível para a compreensão mais apurada do cotidiano. Com base nessa orientação, a materialização referida anteriormente se torna mais nítida, palpável, pois, como salienta Pais, não se pode tomar o cotidiano como uma categoria distanciada das experiências sociais. O desafio que se coloca ao pesquisador diante deste tema “é o de conseguir abrir brechas num debate social polimorfo” (PAIS, 2003, p. 75), já que um dos pilares que sustentam os estudos com foco no cotidiano é exatamente a dificuldade em apreender “o imprevisível, o aleatório, o imprevisto” (PAIS, 2003, p. 81) presente nas experiências cotidianas.12 Nesta direção, Martins (2008, p. 52) lança o questionamento: “ (...) na perspectiva erudita, o senso comum é desqualificado porque banal, destituído de verdade, fonte de equívocos e distorções. E com ele o mundo de que faz parte o da vida cotidiana. Não era assim que pensava Émile Durkheim em As regras do método sociológico e também em Sociologia e Filosofia?” 12 Martins (2008, p. 89) ainda completa: “o cotidiano tende a ser confundido com o banal, com o indefinido, com o que não tem qualidade própria, que não se define a si mesmo como momento histórico qualitativamente único e diferente. E também como o doméstico e o íntimo, como rotineiro e sem história. No entanto, os historiadores querem capturá-lo, fazê-lo objeto de História, para isso, no fundo, destituindo-o de sua historicidade”. 11

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GNARUS - 134 Aderindo à proposta de Pais, ou seja, do cotidiano como “revelador dos processos sociais de transformação da sociedade e de seus conflitos” (PAIS, 2003, p. 72), pode-se seguir no debate ressaltando um aspecto mais específico do quadro geral apresentado até então. Se o cotidiano, como insiste o autor, é fonte de interação, contradição, produção e troca de conhecimento, torna-se importante lançar o olhar para as materialidades desta composição, para, a partir daí, poder afirmar que no cotidiano o homem descobre a eficácia das ações políticas (MARTINS, 2008, p. 52), pondo-se em prática as condições de transformação da política e da história. Este aspecto reforça a necessidade de se olhar para o cotidiano a partir da chave que preza pelo “histórico-original-significativo”, em vez de “quotidiano-banal-insignificante”, para utilizar os termos de Pais (2003, p. 74). No contexto da produção audiovisual debatida neste trabalho, para continuar a discussão é necessário atentar para a primeira tríade apontada por Pais. Não interessa, aqui, verificar seus componentes em separado, mas observar que efeitos as intersecções entre eles são capazes de produzir. Para tanto, a idéia de que o tempo histórico se manifesta na vida cotidiana (MARTINS, 2008) sinaliza para a percepção do cotidiano como uma negociação de inserção social, política e histórica, tornando-se a base para a implementação de ações, sistemas de pensamento e construções de significados. Se, por um lado, Martins, apoiado em Lefebvre, sustenta que “divorciado do processo histórico que o produz o cotidiano não faz sentido”(MARTINS, 2008, p. 52); por outro, mas de forma complementar, Pais sublinha que não se deve enxergar a vida cotidiana distanciada do social, pois este pressuposto leva em conta que o tempo e o espaço, como alicerces da história, são preenchidos por experiências concretas que atravessam as esfe-

ras do político, do social, do cultural. Logo, o tempo histórico das ações cotidianas, como destaca Martins, só pode ser pensado quando se posiciona uma lupa sobre tais modulações. Debater os pilares de sustentação desse tipo de cinema é uma maneira de reconhecer seus potenciais enunciativos, talvez pelo fato de não se situarem fixamente num campo, mas também pela força desestabilizadora que o encontro de tantas possibilidades pode gerar. Este cruzamento de possibilidades pode soar desafiador, por ser um terreno inesgotável, em que sua apreensão tácita reside apenas no desejo de se apreender algo que não se apreende por completo, porque, em sua essência, já está fadado às infindáveis possibilidades comunicativas da vida cotidiana. Gustavo Souza é Doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

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Coluna:

3% - A DISTOPIA COMO CRÍTICA DO BRASIL Por Rafael Garcia Madalen Eiras

RESUMO: RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar o seriado distópico intitulado 3%, uma produção de ficção científica brasileira produzida pelo serviço de streaming da Netflix. Atualmente o cinema e seus derivados são usados cada vez mais para se entender a sociedade em que eles são produzidos, como uma importante ferramenta, que pode perceber e discursar com o processo histórico presente. Assim o espetáculo em questão tem na sua narrativa fantástica uma relação direta com a realidade do país. Sua primeira temporada foi exibida no ano de 2017 causando uma imensa agitação na indústria cultural brasileira. Primeiro por ter tido duras críticas da imprensa nacional, mas ao mesmo tempo tendo sido o seriado de língua não inglesa mais assistido naquele ano, e recebido uma incrível aceitação da crítica internacional. Este produto audiovisual é uma das primeiras séries brasileira neste formato, e há no conceito desta distopia, que o enredo aborda, diversos aspectos da cultura nacional que fazem o seriado, em diversos momentos, dialogar com o presente que o Brasil vivencia. Palavras Chaves: Cinema; Distopia; Crítica

Introdução

O

seriado 3% é uma produção de ficção científica brasileira produzida pelo serviço de streaming da Netflix, e arquitetada por Pedro Aguilera, o showrunner do seriado - responsável

por controlar as escolhas estéticas de todos os episódios. Este produto audiovisual se afirma como uma das primeiras séries brasileira deste formato. No entanto, e o que é mais curioso, é que apesar de ser uma ficção cien-

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GNARUS - 137 tífica nos moldes produzidos pela grande indústria de entretenimento hollywoodiana, há no conceito de distopia, que o enredo aborda, diversos aspectos da cultura nacional, que fazem o seriado, em diversos momentos, dialogar com o presente que o Brasil vivencia. Perceber o cinema e seus derivados como ferramentas para se entender a sociedade em que ele é produzido não é uma novidade, no entanto, uma tendência positivista sempre limitou essa análise que na maioria das vezes é regida por um esforço de aproximar os fatos apresentados com a veracidade das fontes e dos documentos escritos. Marc Ferro (1992), já na década de 70, percebeu o cinema como uma importante fonte, uma nova história associada a película com a sociedade que a produz. “O filme, imagem ou não da realidade, documento ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História” (FERRO, 1992, p.86). Assim Ferro permite entender a sociedade em que o filme foi produzido. Mais recentemente Robert A. Rosenstone (2010), inserido numa perspectiva pós-moderna de história, apresenta os cineastas como historiadores, que devido às características específicas das narrativas visuais, no momento em que se propõem mostrar algum fato de uma suposta realidade, seguem regras diferentes das que governam a história escrita. “A comédia, por exemplo, é um comentário crítico sobre um assunto, ou fato, acrescenta algo àquela tradição historiográfica” (ROSESTONE, 2010, p.

22), ou seja, a comédia é também História, da mesma forma como a ficção científica, ao pensar numa sociedade futura possível baseada nos acontecimentos políticos e sociais do presente, faz uma leitura crítica do passado. Como respondeu Pedro Aguilera para a revista Superinteressante - em pleno estopim da corrida presidencial do ano de 2018, quando a segunda temporada estreava - a curiosa pergunta: “É ano de eleição, o Brasil está vivendo um momento de polarização. Como a segunda temporada conversa com nosso cenário político?” (GERMANO, 2018) O Showrunner responde afirmando as características da série de elaborar um quadro crítico da realidade brasileira. “Ela com certeza conversa, porque a gente estava muito envolvido nisso tudo, enquanto escrevia. Então a gente tenta lincar com problemas brasileiros, principalmente a desigualdade, que é uma coisa muito peculiar. Agora, eu não sei te citar exemplos diretos. A série começou a ser escrita há anos, quando vivíamos outro tipo de caos: o lance das ocupações nas escolas dos secundaristas, por exemplo, entrou de forma indireta” (AQUILERA apud GERMANO, 2018)

O seriado se apresenta, assim, como uma distopia futura, onde a realidade é discutida na forma como essa sociedade se desenvolveu a partir do passado e do seu presente, momento no qual a produção do espetáculo está acontecendo. O conceito de distopia não está estritamente vinculado com o da ficção científica, mas sim a uma previsão do que seria preciso combater no presente. “Ela busca fazer soar o alarme que consiste em avisar que se as forças opressoras que compõem o

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GNARUS - 138 presente continuarem vencendo, nosso futuro se direcionará a catástrofe e barbárie.” (HILÁRIO, 2013, p.207) E para tal, usa de traços caricaturais sublinhando e exagerando as características que devem ser questionadas para deixar claro todos os mecanismos sociais de dominação. “Em suma, a narrativa distópica busca chamar nossa atenção para as relações heterônomas entre subjetividade, sociedade, cultura e poder.” (HILÁRIO, 2013, p.203) Por tratar o futuro de forma pessimista as distopias facilmente podem ser confundidas como sendo o oposto de utopia, “que consiste na narrativa sobre a sociedade perfeita e feliz e um discurso político que procura expor a cidade justa.” No entanto elas continuam sendo uma espécie de utopias sem uma visão positiva de uma sociedade futura, “mas como uma capacidade analítica ou mesmo uma disposição reflexiva para usar conceitos com a finalidade de visualizar criticamente a realidade e suas possibilidades.” (HILÁRIO, 2013, p.206) “As distopias problematizam os danos prováveis caso determinadas tendências do presente vençam. É por isso que elas enfatizam os processos de indiferenciação subjetiva, massificação cultural, vigilância total dos indivíduos, controle da subjetividade a partir de dispositivos de saber etc. A narrativa distópica é antiautoritária, insubmissa e radicalmente crítica.” (HILÁRIO, 2013, p.206)

São estas as características estilísticas que se percebe no desenrolar da narrativa em questão, uma análise de nossa sociedade atual. Interessante é que o gênero, que começa como literatura e invade o cinema com força total, está sempre ligado a sociedades ditas desenvolvidas, como a norte-americana, pois é dela que se produzem os grandes filmes distópicos. Poucos produtos deste nicho procuram mostrar outro ponto de vista, como por exemplo, o filme Distrito 9 (2005) dirigido pelo Sul africano Neill Blomkamp, que

procura dialogar diretamente com o conceito do Apartheid, importante para entender a sociedade atual sul-africana. No caso de 3% a realidade brasileira dá diferentes contornos a um enredo que poderia ser já muito batido, devido à enxurrada de filmes e seriados que tratam de um futuro pessimista e distópico. Sua primeira temporada foi exibida no ano de 2017 causando uma imensa agitação na indústria cultural brasileira. Primeiro por ter tido duras críticas da imprensa nacional, mas ao mesmo tempo tendo sido o seriado de língua não inglêsa mais assistido naquele ano, e recebido uma incrível aceitação da crítica internacional, relembrando em muitos aspectos o tão famoso complexo de vira-lata do brasileiro. O incrível sucesso do espetáculo permitiu que no ano de 2018 fosse lançada a segunda temporada no serviço de streaming e em 2019 uma terceira temporada. Por outro lado, o seriado também é um marco cultural para as produções nacionais, onde temas como os futuristas, presente de forma crível no seriado, geralmente, como já apontado acima, são vistos em produtos norte americanas e não gerados de um reflexo político e social da sociedade brasileira. O enredo, que se desenvolveu até o momento em três temporadas, se passa em um futuro pós-apocalíptico não muito distante, onde o Brasil é um lugar devastado dividido basicamente entre o chamado Continente, lugar miserável, decadente e escasso de recursos, e o Maralto, contraponto do primeiro e localizado no meio do oceano. Lugar onde tudo é abundante e as oportunidades de vida são extensas. No entanto, o acesso a esta terra de privilégios se baseia num processo seletivo meritocrático, onde somente 3% conseguem o êxito. Este processo se mostra como

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GNARUS - 139 um ritual quase religioso para essa sociedade, onde todo o cidadão recebe a chance de passar por essa rigorosa seleção de provas físicas, morais e psicológicas, ao completar seus vinte anos. Idade que representa um marco importante para todo o jovem do Continente e momento importante para a manutenção desta sociedade na esperança de garantir um futuro privilegiado. É em volta desta possibilidade que as mães criam seus filhos, que os jovens buscam fugir da miséria, e os não selecionados assumem seu papel de inferiores, aceitando a situação política e social imposta por uma elite distante e inalcançável. A segunda e a terceira temporada são bastante diferentes da primeira, tanto por motivos de orçamento, que aumentou, permitindo o enredo explorar mais cenários e efeitos especiais, mas basicamente por estar mais focada em expandir os mundos que orbitam ao redor desse processo, e não somente nas contradições e desdobramentos de uma seleção que mesmo desumana é buscada e almejada por todos. Ou seja, o Processo passa a ser um elemento secundário dando evidência a oposição entre os dois mundos, que agora podem ser mais ricamente apresentados. Deixando mais forte ainda a imagem das injustiças e crueldades deste sistema, que em muitos aspectos lembra o Brasil contemporâneo. Uma conclusão evidenciada no fim da segunda temporada, e que vai conectar toda a serie, é a constatação de que o Processo sempre vai ser um mecanismo injusto, pois ele é feito por humanos, que em algum momento vão fazer escolhas. A meritocracia, tão falada e discutida na realidade atual, é a base, o pilar de todo o sistema social e político nesta visão futurista, onde todo esse mecanismo seletivo tem muitas semelhanças com os inúmeros e con-

corridos concursos públicos espalhados por todo o Brasil. Afinal a meritocracia se baseia nas conquistas individuais, onde o indivíduo com seu esforço e inteligência conquistam prêmios que os permitem melhorar sua condição de vida. Uma frase que ilustra essa ideia está presente no primeiro capítulo do seriado, quando Ezequiel (João Miguel) responsável por todo o Processo, fala para um público de participantes: “Aconteça o que acontecer você merece, você é o criador do seu próprio mérito.” Frase que vai ser dita em diversos momentos no decorrer dos episódios. No entanto, todo o desenrolar da narrativa, vai mostrar o contrário. Mostrar que nem todos partem do mesmo lugar, e neste sentido a meritocracia é injusta e cruel. A principal crítica a esse sistema seria exatamente esta ideia de que os indivíduos não são iguais. Uns têm condições de se prepararem melhor, outros nascem em famílias influentes e vão conseguir vantagens, neste sentido, como se apresenta no filme, e como também é flagrante na sociedade brasileira, esse sistema só beneficia uma elite que pretende manter as estruturas hierárquicas vigentes sem que haja uma mudança radical no quadro social. Toda a formação de uma ideia de nação brasileira, ao longo da trajetória histórica do país, foi constantemente remodelada e reinventada: Havia um projeto de Brasil como colônia que foi repensado com o advento do império, que, por conseguinte também é remodelado pelos ideais republicanos, que por fim são também reelaborados pelo Estado Novo. Processo sempre vinculado paradoxalmente com uma permanência de ideias absolutistas ibéricas que fazem do “outro”, do ponto de vista externo, as noções latinas republicanas, e internamente cria uma hierarquia excludente onde a civilização só seria acessível ao branco.

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GNARUS - 140 (GUIMARÃES, 1988) Uma curiosa permanência “a se observar ao longo da história essa tentativa de integrar “o velho” e “o novo”, de forma a que as rupturas sejam evitadas.” (GUIMARÃES,1988, p.7) Uma conjectura arcaica perceptível até os dias de hoje e que ficou mais evidente, por exemplo, com o golpe de 64, uma das claras referências que o seriado traz. Principalmente nas cenas de torturas, onde os supostos rebeldes são forçados a delatar seus companheiros, da mesma forma como aconteceu com os participantes da esquerda armada durante a ditadura, e como ainda acontece em muitos momentos como uma estratégia herdada dos militares. O golpe de 64 não deixa de ser mais uma forma da continuidade desta mesma hierarquia social se manter num momento em que diversas rupturas eram eminentes no Brasil dos anos 60. Indo mais além, o próprio processo do fim da ditadura, que dá início a uma nova fase de democracia no país, está repleto de continuidades. Característica percebida por autores como Daniel Aarão Reis (2000) assinalando que apesar da ditadura ter sido vista de forma negativa pelas gerações posteriores, “atitudes que tendem a estabelecer uma ruptura drástica entre o passado e o presente” (REIS, 200, p.6), há a permanência de mecanismos de poder preservados ou construídos no período. Desta forma, nunca houve uma mudança radical social, cultural e política no Brasil, e sim muito mais a manutenção de privilégios. Da mesma forma como este mundo ficcional, onde o Processo é à base da sociedade, que movimenta e mantém o sistema, os personagens não buscam revoluções, e sim privilégios. A importância deste sistema é tão complexa que até a contagem dos anos se baseia neste mecanismo.

O seriado começa, então, a apresentar este mundo no ano 104 do Processo, um ano atípico, pois pela primeira vez em 100 anos aconteceu um assassinato no Maralto, e evidentemente, há uma preocupação com a forma como os indivíduos são selecionados. Uma ala de dirigentes busca uma seleção mais branda e simples, e usa de artifícios duvidosos para obter seus objetivos, como espionagem, chantagens, negociatas políticas e tudo o mais que já se conhece na política brasileira. Outro fator importante para o enredo, e o que realmente vai fazer avançar a narrativa, é a eminente presença de um grupo revolucionário que se denomina A causa, que tem o objetivo de acabar com todo esse sistema. Ação com características semelhantes às de guerrilha facilmente relacionadas às estratégias desesperadas da esquerda radical no período de ditadura. O historiador Raphael Silva Fagundes (2018) em um artigo intitulado “A série 3%: uma crítica para a esquerda”, afirma que o seriado é o que melhor retrata o Brasil em aspectos políticos. (FAGUNDES, 2018) A grande crítica do artigo, no entanto, é que a esquerda não percebeu essas qualidades do seriado ao tentar discursar sobre a realidade do Brasil, tendo preferido, por sua vez, atacar outro seriado brasileiro, O Mecanismo (2018), também da Netflix. Talvez pelo fato desse outro tiver sido diretamente inspirado em uma realidade mais objetiva do que envolto pelas características incríveis da ficção científica. “Essa esquerda parece ter cansado de pensar no sistema, na luta de classes, na lógica de funcionamento da estrutura, passando a se dedicar apenas a Lula e seu legado. Sei que Lula é a única liderança capaz de impedir o avanço da direita, o que mostra o motivo pelo qual a mídia, atrelada às corporações liberais, fez dele o inimigo público número um. Mas, contudo, mostra, também, que o povo não está pronto para ver uma transformação

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GNARUS - 141 radical em sua vida. Ele espera apenas que um sistema que foi feito para não funcionar funcione.” (FAGUNDES, 2018)

Há no seriado duas cenas que ilustra essa ideia, no meio da segunda temporada uma pequena multidão cerca um personagem cadeirante para linchá-lo pelo motivo dele estar tentando denunciar as ilusões que viviam. Já no fim desta mesma temporada uma multidão de insatisfeitos se dirige a sede do Processo revoltados pelo motivo do sistema não estar funcionando como deveria, pois este seria o único caminho visível que melhoraria a condição de vida dos selecionados. Esses pequenos momentos de manifestações, apresentadas no filme, remetem em muito as manifestações ocorridas em todo o Brasil em Junho de 2013. Onde diversas pessoas, que afirmavam não terem um partido, foram para as ruas, inicialmente devido ao aumento da passagem de ônibus, contra diversos aspectos importantes na vida do cidadão, mas que não apontavam para um objetivo, ou uma ideologia. Essas manifestações se deram não para mudar o sistema, mas para expressar a insatisfação da população com seu mau funcionamento. E na série vemos tanto imagens parecidas dos revoltosos, dos confrontos com a polícia, por exemplo, como também outra importante característica presente em ambos, à falta de um sentido revolucionário, de progresso. Esses jovens não tinham uma causa, um objetivo em sua luta. Uma perspectiva que propõe uma importante reflexão de um relevante e complexo processo no qual passa a contemporaneidade, que o historiador francês François Hartog (2003) vai denominar de Presentismo. Processo que evidencia a quebra com um regime historiográfico moderno onde o ponto de vista do futuro predomina-

va através de uma crença no progresso. ”O fim deste regime moderno significa que não é mais possível escrever história do ponto de vista do futuro e que o passado mesmo, não apenas o futuro se torna imprevisível ou mesmo opaco. Deve ser aberto” (HARTOG, 2003. p.11) E alguns exemplos desta ideia estariam evidenciados, segundo o autor, em algumas atitudes na contemporaneidade. Como a extrema valorização da juventude e todas as técnicas que tendem a suprir o tempo, ou estendê-lo, através do computadores e novas mídias que fazem do presente um espetáculo à parte. Neste sentido a série parece tentar ilustrar um momento crucial para entender o contemporâneo, onde a ideia de progresso cada vez mais se perde no imediatismo do espetáculo presente, mas há também um exercício de deixar claro importantes processos sociais presentes neste Brasil atual, mesmo que sejam de continuidades e não rupturas. A narrativa faz isso ao esgarçar as distâncias entre os moradores de uma comunidade bem pobre as de uma pequena parcela da sociedade que vive em uma bolha de privilégios. Onde a ficção científica e a distopia propõem acabarem com as graduações sociais entre ambas as classes, ao mesmo tempo em que desenham com mais exatidão as fronteiras entre estes dois mundos. Sem a classe média, que seria o meio, e que o seriado em seu futuro apocalíptico exclui dessa equação social, fica óbvia a crítica que o enredo faz ao sistema hierárquico da sociedade brasileira. Onde mais uma vez o que se está mostrando é a velha ideia de disputa de classes, uma tendência quase unânime da esquerda brasileira, de dialogar com um ponto de vista marxista. Desta forma, Raphael Silva Fagundes percebe muito diferente de O Mecanismo, que

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GNARUS - 142 sofre a crítica de apoiar uma suposta narrativa golpista, que 3% não deixa de ser uma análise crítica, de tendências de esquerda. Mas ao mesmo tempo não foi exaltado por essa mesma esquerda, pelo contrário, o seriado sofreu duras críticas muito mais preocupadas com elementos estéticos como o excesso de falas explicativas ou a duvidosa complexidade dos personagens, e se deixou escapar a poderosa imagem de uma sociedade dividida entre dois mundos, onde a meritocracia existente no filme não deixa de ser a mesma que existe no mundo ordinário. Uma ideologia já proclamada em pleno Império do Brasil, onde vigorava a escravidão como o principal motor da economia. (...) ideia que ainda é predominante em muitos círculos sociais, inclusive, sendo possível ouvi-la em cultos religiosos, principalmente os que pregam a teologia da prosperidade. E é justamente essa ideologia que a série brasileira 3%, (...) traz para a discussão. (FAGUNDES, 2018)

Karl Marx (2007) já havia evidenciado em sua clássica obra “A ideologia Alemã” – ao iniciar sua percepção materialista da história, onde não se explicaria mais “a prática partindo da ideia, mas explica as formações ideológicas sobre bases da prática material” (MARX; ENGELS, 2007, p.61) – que o que manteria uma superestrutura idealista coesa, ou seja, as forças produtivas, o estado social e as consciências individuais, que deveriam entrar naturalmente em contradição, suprimidos em uma sociedade civil, seria a elaboração de diferentes produtos teóricos e formas da consciência como a religião, a filosofia, a moral etc. (...) e a possibilidade de que não entrem em disputa reside somente no fato de que se volte a suprassumir a divisão de trabalho. Se compreende por si mesmo, ademais, que os “fantasmas”, os “nexos”, os “seres superiores”, os “conceitos”, as “duvidas” não são mais do que a expressão espiritual puramente idealista, e a ideia do indivíduo imaginaria-

mente isolado, a representação de grilhões e limites assaz empíricos, dentro dos quais se move o modo de produção da vida e forma de intercâmbio a ele adequado. (MARX; ENGELS, 2007, p 55)

Já no primeiro capítulo do seriado, na peregrinação feita pelos participantes para chegarem ao Processo, estas características estão presentes nas imagens que se sucedem do Continente. Apresentando essa realidade para o espectador, de forma a se poder relacionar, não só a situação degradante que se vive, mas também a forma como os indivíduos se comportam diante da possível passagem para o “outro lado”, de uma aura quase que divina que o sistema mantém. Arrumação ideológica que garante a manutenção das estruturas aparentemente injustas, mas que não são contestadas pela maioria dos cidadãos. Evidente, desta forma, que também há na elaboração dos personagens um diálogo direto com esse Brasil contemporâneo. Há na figura de Ezequiel responsável por todo o Processo a imagem de um dirigente duvidoso, que mistura a vida pessoal com a profissional, do público com o privado. A heroína Michele (Bianca Comparato), uma mulher movida basicamente pela vingança do suposto e impune assassinato de seu irmão, que a faz se tornar uma membra da Causa para atingir seus objetivos pessoais. O cadeirante e negro Fernando (Michel Gomes), excluído ainda mais por sua deficiência e regido pelas vontades de um pai religioso, que prega as maravilhas do sistema. O mau-caratismo de Rafael (Rodolfo Valente) indivíduo que fraudou sua entrada e que usa de ações duvidosas, mas que são permitidas pelo próprio sistema. A negra e durona Joana (Vanessa Oliveira), que nem um nome tinha, nem registro - ela era um fantasma social e entrar no Processo com um registro falso para fugir da morte pelas mãos de uma milícia

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GNARUS - 143 local. E finalmente a imagem do privilegiado Marco Álvares (Rafael Lozano) homem branco, único que se escuta o sobrenome em todo a seriado, membro de uma família que tradicionalmente sempre passa no processo sem muitos problemas. Deste grupo, ao fim da primeira temporada, só dois personagens conseguem o êxito: Michele, após descobrir que seu irmão estava vivo no Maralto e delatar o chefe da Causa, passando um período em um centro de reabilitação; e Rafael, que mesmo tendo uma conduta duvidosa acaba mostrando um lado mais humano durante a história - na verdade ele também é um militante da Causa com uma estratégia ousada de se infiltrar na sociedade perfeita. Joana a negra valente e rebelde apesar de passar, depois de muitos boicotes do próprio sistema, resolve não ir para o Maralto, pois não consegue apertar um botão que mataria um dos homens que a perseguia no Continente. O cadeirante Fernando, apesar de ser o mais inteligente, não vai adiante devido a uma inesperada e duvidosa última prova, pois desiste do Processo por achar que Michele, seu envolvimento amoroso, havia sido eliminada. Por amor ele vai à procura dela, percebendo em seguida que foi uma armadilha do sistema. Já Marcus Álvares, depois de mostrar sua verdadeira personalidade egoísta, acaba não indo ao encontro de sua família na terra dos privilegiados, depois de ser esmagado por uma porta e ser eliminado em uma prova de sobrevivência (Fazendo pela primeira vez um membro da família Álvares não passar). Acontecimento inesperado que junto ao fato de se ter dois infiltrados no Maralto, Michele mesmo sob a vigilância de Ezequiel, e o Rafael ainda nas sombras, pode ser lido como uma deixa para umas possíveis mudanças na segunda temporada.

No entanto esses personagens, como outros tantos que aparecem no decorrer da narrativa, e formam um mosaico representativo do Brasil exagerado pela narrativa futurista, são tudo menos revolucionários. Pelo menos da forma como analisa Albert Camus no seu livro O Homem revoltado (1997), ao perceber este indivíduo como aquele que não aceita o mundo como ele é, vendo nas relações humanas um absurdo que se transforma em revolta. Sacrificando, assim, tudo para que um novo devir, menos absurdo, se concretize. Para Camus, a Revolução é uma degradação da revolta por amar uma humanidade futura, que ainda não existe. Por isso percebe certas características negativas nesta postura que para triunfar teria que tornar a sociedade um regime totalitário justificando os meios pelos fins, como aconteceu com a URSS transformando-se em império e legitimando o assassinato em massa. Claro que destes indivíduos existem os que demonstram uma sanha revolucionária, mas eles nunca vão levar a narrativa para uma mudança dos aspectos sociais que formam essa sociedade. Estas características, por exemplo, estão presentes, já na segunda temporada, na figura de Silas, um médico do Continente, que leva seu plano de jogar uma bomba no prédio do Processo até às últimas consequências, e tem uma trágica morte antes de conseguir completar sua missão. Ele é um personagem secundário onde sua principal função para o enredo não é a revolução, mas sim servir como uma escada dramática para a personagem da Joana. Que vê no médico um motivo para entrar na Causa, depois de perceber as injustiças do sistema. No entanto Joana não vai concordar com seus métodos e vai buscar soluções de confronto com o sistema de forma mais amenas, sem mortes.

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GNARUS - 144 É essa a premissa da segunda temporada, o de enfrentar o sistema que se conheceu nos primeiros episódios, de uma forma a dialogar com ele, e não uma completa ruptura, onde as reviravoltas, mortes importantes, mudanças de lado, são muito mais um fator dinâmico da narrativa. É neste momento que se descobre com mais riqueza como é essa sociedade privilegiada e a real história em torno do Casal Fundador, permitindo aos personagens acabarem com as ilusões do sistema. Porém essa vantagem aparente não passa de artifícios do enredo que deixam a história em uma constante iminência de mudança, mas não se põe fim ao sistema vigente. Michele, enganando seus companheiros acaba por trocar o fim desta sociedade pela possibilidade de fundar outra, auxiliada pela tecnologia do Maralto, obtida através de chantagem. Ou seja, toda a dinâmica do seriado, como já assinalado, não tem um aspecto revolucionário. A crença religiosa na lenda de um casal fundador, que inaugurou essa sociedade com o intuito de salvar a humanidade, e que na segunda temporada mostra ser uma lenda inventada, é um dos pontos importantes para se perceber a coesão social e a não ruptura com o antigo. No fim da primeira temporada, por exemplo, se descobre um dos principais segredos do Processo: Instantes antes dos aprovados saírem do Continente, eles passam por uma purificação e recebem uma vacina que os esteriliza. Criando a ideia de que só se pode fazer parte da sociedade perfeita os que ganham o direito pelo mérito e não por hereditariedade. Uma lógica criada pelo casal fundador que mantém uma estreita ligação com a “fé” em todo esse mecanismo meritocrático, que ao mesmo tempo em que se mostra científico, não deixa de ter também um caráter místico e sagrado.

O filósofo John Gray (2005) em seu polêmico livro Cachorros de palha percebe que a ideia de progresso seria “uma versão secular da crença cristã da providência.” (GRAY, 2005, p.13) E o que se percebe no seriado não deixa de ser uma versão deste ponto de vista, onde um sistema totalitário é mantido por uma logica religiosa guiada pela tecnologia, unindo duas formas de se perceber o mundo, que a principio seriam opostas. Tanto religiosidade como cientificismo habitando o mesmo imaginário social para o brasileiro, e o seriado deixa isso evidente ao elevar a tecnologia ao um local sagrado e inalcançado para o cidadão do Continente. Esta dominação tecnológica está geralmente presente de forma universal em toda a ficção científica dos moldes apresentadas, uma percepção de que a tecnologia que acaba controlando o indivíduo. John Gray ainda percebe em seu texto que seria impossível o controle da tecnologia, sendo essa um elemento que transcende a vontade do homem. No entanto, o fim da segunda temporada, apesar de não mudar o Status quo da sociedade apresentada, não é, de forma alguma, tão pessimista como a inevitabilidade do fim que propaga John Gray em sua percepção de mundo. O que acontece é o vislumbre de uma nova possível sociedade que vai juntar os dois mundos. Da mesma forma como as tecnologias atuais estão transformando a realidade concreta do mundo onde a cibercultura se apresenta de forma a mudar a realidade que se vivencia. E o Brasil é um país onde isso ocorre de forma rápida, mas ao mesmo tempo, devido a falta de uma cultura intelectual mais crítica do cidadão comum, essa mudança passa a ser mais uma vez uma continuidade, e não uma ruptura.

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GNARUS - 145 O mundo virtual parece redefinir como o ser humano se apresenta no mundo e transforma as relações de poder já estabelecidas pela sociedade ocidental na sua trajetória, como foi pensado por Michel Foucault, por exemplo, como uma “sociedade disciplinar”, para um novo regime de poder: o de uma “sociedade do controle”, conceito elaborado por Gilles Deleuze como um regime apoiado nas tecnologias eletrônicas e digitais, “uma organização social capaz de fertilizar o capitalismo mais ágil e voraz da atualidade.” (SIBILA, 2016, p. 28) “Não se trata apenas da internet e seus palcos virtuais destinados à tão loquaz interação multimídia. São inúmeros os indícios de que estamos vivenciando uma época limítrofe que prenunciaria um corte na história: uma passagem de certo “regime de poder” para um outro projeto político, sociocultural e econômico. Em suma, uma transição de um universo para outro: daquela formação histórica ancorada no capitalismo industrial, que vigorou entre o final do século XVIII e meados do XX – e que foi analisada por Michel Foucault sob a denominação de “sociedade disciplinar” –, para outro tipo de organização social, que começou a se delinear nas últimas décadas. Neste novo contexto, certas características do panorama histórico precedente se intensificam e ganham renovada sofisticação. Enquanto outras mudam radicalmente. Neste movimento, transformam-se também os tipos de corpos cuja produção é estimulada no dia a dia, bem como as formas de ser e estar no mundo que são compatíveis com cada um desses mundos.” (SIBILA, 2016, p. 25)

Todas as comunidades têm seus parâmetros de controle, as sociedades tradicionais, por exemplo, regidas pela prática religiosa, tinham suas formas de controle direcionadas para o exemplo a ser seguidos, seu controle se dava de “forma direta sob um conjunto de atitudes” (PAIVA, 1998, p.61) Como se percebe que seriam as formas de controle exercidas pelos cidadãos no Continente, vivenciando uma experiência semelhante ao que se tem nas religiões, pois é no exemplo,

na performance, que se estaria o controle da sociedade, onde as dinâmicas do poder estariam inscritas nos corpos e falas, ao mesmo tempo que também estariam sendo vigiados por um poder divinizado do olhar mecânicos das câmeras de vídeo espalhadas por todos os cantos, mas que não exercem um controle direto sobre a vida do indivíduo, e sim quase uma presença mística, rondando a imaginação do habitante local. Assim se pode traçar um paralelo interessante entre o Continente e Maralto sendo duas eras distintas vivendo o mesmo presente e que se chocam no fim da segunda temporada nas escolhas de Michele. O Maralto, por exemplo, o lugar de uma prosperidade asséptica, possui como principal característica a disciplina que é controlada por instituições que delimitam e organizam os espaços, exatamente como a genealogia foucaultiana do poder, quando pensa o mundo moderno como o momento onde se desenvolve determinado dispositivo, a disciplina, atuando como produtor de subjetividades: “A disciplina fabrica indivíduos, ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (FOUCAULT, 2009, p. 164) É no Maralto que existe um centro de reabilitação e tratamento (CRT), criado justamente para cuidar destes casos indesejados e impuros, dos loucos, dos delinquentes, dos que devem ser escondido do resto da sociedade e são colocados em locais separados. Para Foucault (1979) a experiência manicomial, por exemplo, também é uma forma de poder, pensada no mundo moderno para disciplinar e evitar os escândalos. Uma instituição que, diferente de momentos anteriores, passa a esconder o louco. “Até o século XVII, o mal, em tudo aquilo que pode ter de

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GNARUS - 146 mais violento e mais inumano, só pode ser compensado e castigado se for trazido a luz do dia.” A partir do século XIX a loucura passa a ser escondida, onde há um pudor diante do desatino, diferente, por exemplo, da Idade Média que tinha o hábito de mostrar os insanos como forma de exemplo, os loucos eram monstros que deveriam ser vistos na rua. “O internato, pelo contrário, trai uma forma e consciência para qual o inumano só pode provocar vergonha.” (FOUCAULT, 1979, p.145) Como o caso de Aline (Viviane Porto) que tem, ainda na primeira temporada, o trabalho de fiscalizar o Processo, e acaba chantageando o diretor para assumir o seu lugar. Em uma engenhosa manobra estratégica por parte do próprio Ezequiel, ela acaba sendo acusada de um assassinato cometido na verdade por Michele, e aparece na segunda temporada vivendo no CRT, onde suas memórias foram retiradas e ela vive uma vida sem sentido, separada do resto da sociedade neste local disciplinador. Outro personagem que é excluída da sociedade é a falecida e suicida esposa de Ezequiel, que anos antes tentava se recuperar do trauma de ter deixado um filho no Continente. Ela então se suicida. Ainda há outros exemplos, como o da própria Michele, que vai para esse mesmo centro de tratamento para ser reajustada a sociedade, garantindo não ser mais uma militante da Causa. E ainda o de seu irmão, que cometeu o único assassinato no Maralto, e vive numa cubo de vidro espelhado enlouquecendo aos poucos. No Continente já não existem instituições para os indesejados, e os loucos, como na Idade Média. vivem soltos como parte da vida comum. Lugar sem um saneamento básico, onde as sujeiras se espalham pelas ruas, e as roupas são farrapos. O mais interessante é perceber o paralelo deste local com a realidade das

favelas brasileiras. Como se esse continente fosse, em vários aspectos, um reflexo destas. Locais que no filme seguem outros padrões de controle social, e que às vezes parecem ser o de uma “Idade Média atualizada”, onde as regras são muito mais erguidas pelas relações de um poder local, onde se está sempre vigiado pelo olhar onipresente de uma autoridade quase que divina possível pela tecnologia dos drones e de supercâmaras. Uma sociedade de 97% de perdedores, que vivenciam um mundo esperando e buscando outro, um que habita no interior do Processo e mantém a sociedade funcionando. Talvez por isso, haja a necessidade do sistema de seleção ter um carácter também disciplinador, pois os habitantes do Maralto são todos originados do Continente. No entanto essa duas eras, mundos que vivem realidades completamente diferentes, são dependentes, mesmo que um domine ideologicamente o outro, pois todo cidadão ao entrar para o mundo dos privilegiados se torna estéril. Sendo obrigado a tomar uma injeção purificadora, que ao mesmo tempo marca sua pele o diferenciando dos outros, mas também fazendo com que este não possa mais perpetuar descendentes. Mantendo, assim, um mundo onde não habitam crianças e que deve ser sempre abastecido por mais indivíduos aptos, que por passarem pelas duras provas de uma injusta seleção, merecem estar lá. Essa relação de interdependência se equipara em muitos sentidos com as das importantes metrópoles brasileiras, onde se pode perceber um aglomerado de favelas localizadas no interior destas cidades, locais onde a mão de obra da elite e da classe média é retirada. Outra relação importante de se assinalar na tentativa do seriado de apresentar uma suposta realidade brasileira, está relaciona-

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GNARUS - 147 da ao campo cultural, e por isso presente em toda a estética do espetáculo. Perceptível principalmente na escolha das músicas que compõem a trilha incidental dos episódios, marcadamente brasileiras, como o samba de Cartola, ou a voz icônica de Elza Soares, mas que perpassa vários outros momentos da narrativa apresentada, e que parece em muitos sentidos uma retomada de um ideário nacional-popular, reconfigurado para a temática da ficção científica. A concepção de nacional -popular permeou todo o imaginário artístico brasileiro moderno, percebendo a identidade do povo e sua cultura nacional como um componente anti-imperialista que deveria ser usado como imagem do Brasil de forma a quebrar os paradigmas da cultura exterior. Como, por exemplo, contra o cinema clássico norte -americano. É nesse contexto que surge um cinema brasileiro moderno, já no fim dos anos 50, momento importante de ruptura com os padrões clássicos narrativos dominados pela estética hollywoodiana. Momento em que “inúmeras propostas culturais, de caráter nitidamente inovador e vanguardista, desenvolviam-se como uma resposta, ou adequação, da cultura brasileira aos novos tempos.” (MALAFAIA, 2005, p. 20). O CPC, centro popular de cultura, era um braço da UNE, e foi criado no fim dos anos 50 para se discutir e produzir arte com um viés político de esquerda. Tendo como ponto comum entre os integrantes do centro e os estudantes, a defesa do nacional-popular. A instituição valorizava a cultura brasileira na medida em que se propusesse uma linguagem onde a arte estivesse a serviço da conscientização do povo, formulando assim um projeto voltado para o desenvolvimento econômico e cultural brasileiro capaz de criar mecanismos e instrumentos para a transformação de “uma cultura ‘inautêntica’ – fruto da domina-

ção econômica e ideológica da metrópole – para uma cultura ‘autêntica’ – cuja autonomia permite pensar a própria realidade do país”. (GARCIA, 2004, p.9) O Cinema Novo é fruto deste processo, mas não comungavam de uma mesma visão do CPC. Cineastas como Carlos Diegues e Glauber Rocha acabaram por elaborar outra visão de cinema nacional, mais ligada com questões poéticas do que uma necessidade didática e revolucionária. “Entretanto, esse movimento cinematográfico é tal como o CPC, um projeto nacional-popular, produtos das contradições econômicas e políticas da sociedade brasileira daquele período, e também, produtores de toda essa efervescência social.” (BARBEDO, 2011, p.4) Desta forma, algumas gerações de cineastas brasileiros vão ter como exemplo, e necessidade, esta forma de se perceber a cultura brasileira, pois os anos 60 e 70, além de serem os anos de chumbo, é o momento mais produtivo do mercado audiovisual, que vai gradativamente passar por transformações importantes, que evidenciam cada vez mais a invasão dos produtos norte americanos. Realidade que vai ser impactante nos anos 80. Para Ismail Xavier (2016) os filmes brasileiros pós-modernos “começaram a surgir no acaso do cinema brasileiro moderno, ou seja, quando ‘a constelação moderna se desvitaliza’ e o novo cinema dos anos oitenta rejeita a estética da fome” (Xavier, 2006, p.40). Resultando em um cinema que a princípio não teria um sentido político de espírito modernista como foi o Cinema Novo, mas que age politicamente nas escolhas estéticas que faz através das suas mais marcantes características pós-modernas, onde não existiria um tipo fechado de linguagem, mas um exercício estético. Características como a fragmentação, o pastiche, o hibridismo, a hipertextualidade,

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e principalmente, a releitura de códigos já utilizados em vários momentos da história do cinema, como a utilização da narrativa clássica hollywoodiana. Neste momento o nacional -popular acaba dando lugar para um cinema mais urbano, mais cosmopolita, que vai estar mais preocupado com assuntos universais. E a ficção científica, principalmente as distopias, como Blade Runner ( 1982 ) exemplo icônico deste processo, estão envoltos por este ar da pós-modernidade, que fragmenta e desarticula as identidades. Paradoxalmente, o seriado 3%, retoma estes aspectos identitários, característica de um cinema nacional mais político, ao repensar a própria cultura brasileira sob o ponto de vista do futuro. Momento imaginado em que as músicas, as relações sociais, os tipos humanos, estão formando um mosaico e identificando de um nacional-popular futurista, por mais estranho que esta imagem possa ser. Por exemplo, quando na segunda temporada um bloco de carnaval toca um samba de Cartola misturado com uma batida africana - presente nos dias de hoje nas casas de Candomblé – ao comemorar a chegada de um novo Processo, o que se vê é uma escola de samba, onde seus participantes se vestem com fantasias que se assemelham com as que existem no presente, e Orixás dançam o toque dos tambores. É nestes momentos, em que o seriado retoma uma tradição cinematográfica importantíssima para um conceito moderno de identida-

de nacional, que ele se diferencia de muitas outras séries e filmes ao redor do mundo que buscam no futuro um lugar sem identidade. Assim, em 3%, não só se critica uma sociedade presente, mas evidencia que sempre haverá continuidades, como todo o processo histórico da formação da nação brasileira, onde a permanência sempre está presente. Quando Michele propõe um novo mundo, ela abre espaço para uma nova realidade que não deixa de ser também um reflexo do choque atual em que se vivencia o transpassar de uma nova era digital, de mudanças que não estão necessariamente vinculadas à revolução, no sentido clássico, desta sociedade, mas sim a remodelagem da realidade. E mais uma vez é importante salientar que essa dinâmica acontece de forma aterradora na sociedade brasileira, onde a enxurrada de Fake News pode fazer a diferença em uma eleição presidencial, ou mesmo o fato das redes sociais se tornarem ferramentas para seleção de trabalho. Ou seja, o mundo virtual que se vislumbra da realidade brasileira não é nada agradável. É claro que essa trajetória apresentada está marcada por metáforas e distorções, afinal uma obra de ficção científica não está preocupado em ser verídica, mas em ser um possível futuro de um desenrolar plausível da sociedade atual, pois ele necessita ser crível. Dessa forma o seriado 3%, é no mínimo uma importante narrativa para se debruçar tanto

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GNARUS - 149 como puro entretenimento, como também uma distopia que faz uma versão crítica não só do Brasil, como da identidade do brasileiro.

Rafael Garcia Madalen Eiras é Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Humanidades, Culturas e Artes da UNIGRANRIO e Bacharel em Cinema pela Faculdade Estácio de Sá.

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Coluna:

ENSAIO EM QUADRINHOS: A CIDADE DAS HQ’S, OU HQ’S NA CIDADE? RELAÇÕES POSSÍVEIS Por Elbert de Oliveira Agostinho

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GNARUS - 157 urbanas. Revista de Ciências Sociais – Fortaleza. // DOSSIÊ: ARTE, CIDADE E NARRATIVAS VISUAIS . Artigo disponível em: http://www.periodicos.ufc. br/index.php/revcienso/article/view/5677/4073 e Revista disponível em: http://www.periodicos.ufc. br/index.php/revcienso/issue/view/386 COMOLLI, Jean-Louis. A Cidade Filmada. In.: CADERNOS DE ANTROPOLOGIA E IMAGEM. Rio de Janeiro, Volume 4 – A Cidade em Imagens, 1997. D’SALETE, Marcelo. Encruzilhada. Ed.1. 2016. MCCLOUD, Scott. Desvendando os Quadrinhos. Ed 1. M. Books. 2004. PINHEIRO, João; BARBOSA, Sirlene. Carolina. Ed 1. Veneta, 2016. SANTOS, Roberto Elísio dos; Wergueiro Valdomiro. A linguagem dos Quadrinhos. 1ª ed. São Paulo: Criativo, 2015. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas. Super-Heróis, cultura e sociedade. Ed 1. Idéias e Letras, 2011. VERGUEIRO, Valdomiro; RAMOS, Paulo. (org.) Muito Além dos Quadrinhos: análise e reflexões sobre a 9ª arte. São Paulo: Devir, 2009.

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Coluna

Fotografias da História FOTÓGRAFO OFICIAL, AUGUSTO MALTA REGISTROU COMO SER UM CARIOCA MODERNO, ELEGANTE E “FRANCÊS” NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA Por Fernando Gralha

N

o início do século XX, na cidade do Rio de Janeiro, o mais importante era se livrar do aspecto provinciano, assumir uma mentalidade e aparência européias, trazer a civilização aos trópicos. Nesse projeto, a fotografia se tornou uma arma capaz de engendrar e refletir um novo pensamento do que se deveria ser, através dela buscou-se criar um espelho desta nova mentalidade, almejou-se mostrar as mudanças, o índice civilizatório europeu que possuíamos e aquele poderíamos obter. Nas imagens construídas pelo fotógrafo oficial da prefeitura, Augusto Malta (1864-1957), se encenava e se concebia uma aguda vontade

de assumir um futuro que estava logo ali ao nosso alcance. Com o estabelecimento da República em 1889, o Brasil e sua capital encheram-se de esperanças e expectativas, gerando um clima de mudanças iminentes na cidade de São Sebastião. Para além das transformações no espaço físico, ambicionava-se reformular também a imagem dos habitantes da cidade, dando-lhes uma nova face, orientando condutas e implementando uma visão modernizante na cidade que, naquele momento era o “cartão -postal” do país. Tal imagem, imediatamente, estabelece uma relação com a fotografia. São

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Presidente Epitácio Pessoa na inauguração do Jockey Club do Rio de Janeiro- 1922 Foto acervo do Museu da Imagem e do Som/RJ

precisamente as chapas de Augusto Malta, configurando uma mensagem, um verdadeiro discurso visual que, cruzado com o discurso de jornais e periódicos cariocas da época, nos brindam com uma visão dos modos de ser e agir da alta sociedade carioca na belle époque.

banização da cidade realizado pelo Prefeito. Mas ele extrapolou, durante seu expediente e fora dele, fotografou tudo, obras públicas, o dia-a-dia do prefeito, tipos humanos, festividades, cerimônias, enfim, registrou a vida da cidade e tornou-se o maior cronista visual da primeira metade do século XX.

O alagoano Augusto César Malta de Campos chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1889, e até 1902 exerceu vários ofícios (guarda municipal, vendedor ambulante, guarda-livros entre outros) antes de descobrir a fotografia ao trocar sua bicicleta por uma máquina fotográfica. Começou seu trabalho na prefeitura do então Distrito Federal em 1903, convidado pelo próprio prefeito Pereira Passos (18361913), para o recém criado cargo de fotógrafo documentarista. O fotógrafo, inicialmente, tinha por função registrar o processo de reur-

O Rio de Janeiro mimetizava a belle époque parisiense, festejavam-se as atrizes francesas, a vida mundana das confeitarias e cafés e a elegância francesa comprada em lojas como a “Parc Royal”, templo da moda carioca. A cultura predominante era a da modernidade, eminentemente urbana, tornando a cidade um arquétipo de uma nova ordem mundial. Esse processo transformaria a Capital não só arquitetonicamente, mas também todo o modo de vida da população, a urbe converteu-se em um palco de disseminação dos no-

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GNARUS - 160 vos ideais de país, cidade e cidadão. Esta nova sociedade se re-inventou através de manifestações públicas; era essencial, por exemplo, ir ao cinema, mais do que ver o filme; andar de automóvel era mais relevante que o destino do trajeto, melhor dizendo, aparentar e representar era mais importante do que ser. Malta e sua obra contribuíram no empenho de legitimar e naturalizar a aparência e comportamentos considerados fundamentais ao cidadão modelo, seus registros da elite carioca funcionavam como arquétipo de um exemplo a ser seguido, tornando a imagem pública ícone de um modo de vida vencedor, onde várias instâncias do cotidiano do carioca foram sendo ajustadas ao novo tipo de comportamento que visavam moldar o Rio de Janeiro às cidades européias. Neste contexto, a recém inaugurada Ave-

nida Central aparece como principal índice simbólico da cidade naquele período. A mais famosa alameda da belle époque carioca irradiava através de suas fachadas de mármore, de suas vitrines de cristal cintilante, da moderna iluminação pública, de seus inéditos espaços abertos e do suntuoso vestuário dos transeuntes, a mais legítima ambiência moderna que o carioca poderia desejar. As elites tinham fé que, aliadas às reformas urbanas, atendendo aos requisitos estéticos e de etiqueta da moda, elaborados e propagados através de textos e imagens, embarcariam na tão almejada modernidade. A estratégia de inserção na nova ordem passava pela absorção e utilização de símbolos carregados de sentidos de pertencimento a uma determinada classe social. Era necessário fazer desaparecer a cidade de ares coloniais, transformar o carioca real no carioca ideal e como

Almoço oferecido a Pereira Passos - 1906 Foto acervo do Museu da Imagem e do Som/RJ

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Evento social na Quinta da Boa Vista – 1920 Foto acervo do Museu da Imagem e do Som/RJ

conseqüência, alcançar o futuro desejado: ser francês nos trópicos. Malta fazia com imagens o que a coluna “Binóculo” e revistas como a “Fon-Fon” e a “Careta”, entre outras, faziam com as palavras, isto é, determinava os conceitos de elegância e de como se vestir “corretamente” na Capital. Conceitos seguidos fielmente pelos praticantes do “flanar com elegância” na Avenida Central. Sua obra configurou um conjunto de valores e práticas que o carioca idealizado deveria portar, marcou pontos e contrapontos bem delimitados que condicionavam e legitimavam o cidadão inserido no contexto da belle époque, onde não bastava ser moderno, era preciso aparentar modernidade.

No jogo das aparências a indumentária é item de relevância fundamental na construção de qualquer personagem, e a elaboração do carioca ideal não fugiu à regra, compor o vestuário fazia parte de um ritual que ultrapassava a premissa básica de cobrir o corpo para um modo de informar e legitimar uma determinada posição social. Era um jogo entre a condição financeira que possibilitava a aquisição do vestuário e o dito “bom gosto” para a montagem do enxoval que garantia o “flanar com elegância”. Este “bom gosto” nada tinha a ver com a lógica, por exemplo, do clima da cidade, ou de uma tendência da moda surgida os trópicos, muito ao contrário, a ideia era justamente negar essas e outras características da cidade e do país, era ir contra o atraso, a falta de higiene e as doenças (não

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GNARUS - 162 por acaso, as frentes atacadas pelo governo a partir da administração de Pereira Passos), era a experiência de vestir-se de beleza e modernidade, era adotar, mais precisamente, a aura e aparência da capital francesa.

Avenida como passarela para o desfile dessa nova sociedade. Nessa conjuntura, adquiriu ainda mais importância o culto da aparência exterior, que qualificava previamente cada indivíduo.

A série de fotos da Avenida Central apresenta um cenário em que esta elite respirava a tão ansiada atmosfera cosmopolita. As monumentais reformas arquitetônicas implementadas na Capital Federal, sem dúvida, elevaram a cidade a outro patamar de beleza e modernidade, estas qualidades transcenderam a si mesmas e impregnaram os freqüentadores dos novos espaços. As fotografias mostram “cariocas novos”, que assumem a cena a partir de determinadas regras de estilo, beleza e elegância, são grupos favorecidos que não delongaram em tomar a recém-inaugurada

O consumo dos produtos expostos nas vitrines da Avenida, via de regra franceses, qualificavam, aparelhavam e animavam o ostensivo desfile da nova sociedade. Aliados a esta prática elegante, estavam o gestual, as roupas e os modos adequados dos consumidores, fechando um círculo de relações entre o consumo em si e a circulação que exigia esse consumo, ou seja, o “desfile” para se chegar às lojas e a aquisição dos produtos desta se auto justificavam. Uma verdadeira febre de consumo tomou

Quarteto de senhoritas e outros transeuntes em pleno exercício do flanar com elegância pelo centro da cidade. Foto acervo do Museu da Imagem e do Som/RJ

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GNARUS - 163 mercadorias da alta moda européia, dependia menos do gosto e praticidade do que de um padrão estético importado, dada a preocupação em se distinguir e se distanciar dos menos afortunados e despossuídos, de se assemelhar a um ideal desenhado nos trópicos mas pintado com tintas europeias.

Augusto Malta o fotógrafo oficial da cidade. Foto acervo do Museu da Imagem e do Som/RJ

conta da cidade, toda ela voltada para a “novidade”, para os artigos de “última moda”, casas de comércio como a Parc Royal e a Casa Colombo garantiam em seus anúncios “tudo que se faz mister para que elas (as mulheres) possam, de plena conformidade com a sua conveniência, cumprir os decretos imperativos da moda”. Definitivamente o Rio de Janeiro virou outro depois da Avenida Central, a via tornou-se um pedaço marcante, definidor de uma Metrópole que buscava ser mais um “pedaço” da Europa. As imagens saídas da câmera de Malta não apenas registram, mas também universalizam modos de vestir, de olhar e enxergar, de valorizar e desvalorizar, mostram uma alta sociedade cuja aparência e acesso às

Sob prisma adotado aqui, Malta apresenta quase um discurso civilizador, uma orientação de conduta de como o carioca deveria ser, mas com certeza apresenta um carioca e uma cidade apenas imaginados. Pois, se ampliarmos o olhar, o nosso e o de Malta, encontraremos não apenas o carioca ideal, mas o carioca real, que é o que está na obra de Malta em sua totalidade. É ao mesmo tempo o freqüentador dos cafés chiques assim como o dos botequins, é o carioca moderno da Avenida Rio Branco e o “favelado” da Gamboa. Portanto, na volumosa obra de Malta, distribuída em vários arquivos e museus da cidade, ainda cabem vários olhares buscando os vários cariocas da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Fernando Gralha é Mestre em História pela UFJF e autor da dissertação “Imagens da modernidade na obra de Augusto Malta – 1900/1920” (UFJF- 2008).

Para saiber mais: BENCHIMOL, Jaime L. Pereira Passos: um Hausmann tropical. Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, prefeitura do Rio de Janeiro, 1990. CAMPOS, Fernando F. Um fotógrafo, uma cidade: Augusto Malta. RJ, 1987. CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a fotografia como fonte histórica (Rio de Janeiro, 1900-1930). Rio de Janeiro, DP&A, 2002. KOK, Glória. Rio de Janeiro na época da Av. Central . São Paulo: Bei. Comunicação, 2005. http://portalaugustomalta.rio.rj.gov.br/

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Resenha

UM CONVITE À LEITURA DE “Introdução à teoria do cinema” Por Renato Lopes Pessanha

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução: Fernando Mascarello – 5º ed. – Campinas, SP: Papirus, 2013 – (Coleção Campo Imagético)

R

obert Stam, professor do departamento de Cinema Studies da Tisch School of the Arts da Universidade de Nova York é um nome muito conhecido dos brasileiros que estudam teorias do cinema, da comunicação e da literatura. Stam também é muito conhecido dos historiadores, principalmente no âmbito dos Estudos Culturais e do Multiculturalismo, do qual é uma das grandes referências. A prova disso está em trabalhos como Crítica da Imagem Eurocêntria: Multiculturalismo e Representação (escrito em parceria com Ella Shohat e lançado no Brasil pela Cosac Naify), Multiculturalismo Tropical: Uma Historia Comparativa Da Raça Na Cultura (lançado pela EDUSP); O espetáculo interrompido: Literatura e cinema de desmistificação (lançado pela Paz e Terra) e A Literatura Através Do Cinema, Realismo, Magia E Arte Da Adaptação (lançado pela editora da UFMG). Não faltam predi-

cados para as boras referências a relevância da bibliografia de Stam. Em seu livro Introdução à teoria do cinema, o autor procura fazer uma ampla e ao mesmo tempo pormenorizada historiografia das principais teorias do cinema do século XX. Pesa e muito nesse trabalho a própria voz do autor que se faz sentir na densidade de cada capítulo. É perceptível que obra é não só o balanço sobre tudo o que se discutiu intensamente sobre o cinema (principalmente as discussões encampadas a partir dos anos 60 e 70), como também é o balanço de uma bem sucedida carreira acadêmica. Stam impõe ao seu trabalho um ritmo expositivo e analítico de como quem ministra uma aula, erudito mas ao mesmo tempo conciso, e aqui se faz presente a sua larga experiência em análise e compilação das teorias da comunicação nos mais diversos âmbitos, principalmente na tríade cinema, his-

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GNARUS - 165 tória e literatura. O texto de Stam pode despertar uma grande identificação dos leitores e estudiosos brasileiros, pois o autor conhece como pouco os códigos culturais e o cinema brasileiro, e esse é um assunto recorrente nas páginas do seu livro. Mas é algo que emerge com naturalidade e propriedade. Justamente por deter esse conhecimento Stam disserta com facilidade e pertinência sobre o a influência cultural e política do Terceiro Mundismo na produção cinematográfica do período anos 60 e 70. Se o autor abrange todos os cânones do cinema clássico, em uma perspectiva universalista, a análise ganha uma dose salutar de particularidade a partir da inserção de sua própria experiência, como um pesquisador que teve contato com povos e culturas muito distantes do eixo eurocêntrico. Então, mais do que tratar as demais manifestações culturais como meras reações ou variações das manifestações europeias ou estadunidenses, Robert Stam se movimenta de modo a detalhar as particularidades de cada caso, sem promover uma falsa homogeneização cultural. Ou seja, Stam não cria blocos uniformes de análise, preferindo partir das próprias idiossincrasias internas de cada movimento. Introdução à teoria do cinema, promove um frescor teórico por deslocar muitas análises do seu lugar comum. Robert Stam cria uma interessante relação histórica a partir dos temas abordados, mas sem nunca fecha -los em abordagens restritivas. Basta ver o

conjunto de análises parte dos teóricos da montagem soviética, passando pela influência teórica de Mikhail Bakthin, chegando a Escola de Frankfurt. Em comum nessa abordagem está uma interessante abordagem narrativa que nos diz o quanto o cinema incorporou e foi incorporado, no sentido de forma e conteúdo, por diversos movimentos culturais ao longo da história. Não se trata de um tour de force, como pode parecer em um primeiro momento, mas o reflexo de um autor cuja larga experiência prática e teórica sedimentou uma leitura que tanto quanto buscar recorrência está calcada em construir um panorama onde as contraposições, rupturas e continuidades dizem tanto quanto a uniformidade teórica de análises mais fechadas em si mesmo. Com essa interessante estratégia narrativa Stam compõe uma obra que fala, de diversos modos, a públicos distintos, porém com o mesmo interesse comum: a teoria cinematográfica. Em cada capítulo de seu livro Robert Stam procura também exprimir como diferentes matrizes teóricas culturais são lidas por seus vetores. Ao abordar o cinema Terceiro Mundista o autor constrói uma abordagem calcada não só nas mensagens que os filmes do período vinculavam, como também calcada na alteridade de concepções que existiam no interior do movimento, revelando fissuras e abordagens que traziam diferentes matizes na própria concepção pretensamente homogênea como recorrentemente o movimento

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GNARUS - 166 terceiro mundista era abordado. Ao discutir o cinema militante que emerge nos movimentos sociais de 1968 Stam ressalta a função do cinema em disseminar o elemento político na sociedade do período, incluindo as fissões da Esquerda revolucionária e crava seu veredito: foi uma luta entre a politização e a pretensa homogeneização das subjetividades. Para tal o autor faz até mesmo uma breve revisão das próprias visões históricas construídas a respeito do movimento de Maio de 68, na Franca.

para um ética onde o cinema surge como um agente histórico fundamental para o entendimento, respeito e valorização da diversidade cultural.

Renato Lopes Pessanha é Colunista da Gnarus, Mestre em História Social e Doutorando em História Social - PPGH/UNIRIO.

O trabalho de Robert Stam é fruto da própria dinâmica pela qual passaram os estudos referentes as teorias do cinema, principalmente a partir dos anos 70. Ao longo de toda a obra Stam tira as teorias que se expandiram e consolidaram nos anos 70 de seu “altar” para atualizá-las e rediscuti-las em novos princípios metodológicos. Essa abordagem que são fruto das novas guinadas pelas quais passou a cultura de massas, principalmente após o fim da Guerra Fria e o fim da URSS e as narrativas sobre “o fim da História”. A validade dessas teorias jamais deve ser descartada, porém Stam as atualizada a partir de sua própria experiência prática e teórica. Introdução a teoria do cinema ao mesmo tempo em que atualiza as mais importantes teorias do cinema a partir do prisma da filosofia analítica, do estruturalismo e das novas concepções identitárias que ascendem juntamente com os Estudos Culturais, Robert Stam tem seu pensamento voltado para a historicização que envolve a formação desses pressupostos teóricos ao mesmo tempo em que constrói formas de saber baseados na unidade a partir das contraposições da diversidade cultural. O presente é o ponto de apoio de Stam para pensar uma historiografia que de certa forma é a do próprio cinema, voltada

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Resenha

O LUTO COMO CHAVE DE SUPERAÇÃO. UM CONVITE À LEITURA DE: “Melancolia de Esquerda” Por Pedro Gabriel Torres de Assis

TRAVERSO, Enzo. Melancolia de esquerda – Marxismo, História e Memória. Tradução de André Bezamat. Editora Âyiné, 2018. 495 páginas.

N

o filme 8 Mile – A rua das ilusões o personagem interpretado por Eminem é um jovem de periferia que tenta crescer no mundo das batalhas de rap ao mesmo tempo em que toca sua vida instável em um lar repleto de conflitos. Sua mãe é viciada em drogas, portanto cabe ao personagem principal assumir o papel de pai para sua irmã mais nova, uma vez que não há a figura do patriarca na casa – possivelmente mais um dos milhares de casos de abandono paterno. Em uma inversão da esfera social, ele, um jovem branco, é quem corresponde a minoria no gueto em que vive, de formação majoritariamente negra. Na última cena, onde finalmente o protagonista consegue o tão sonhado duelo final com Papa Doc (seu antagonista), Eminem subverte toda a lógica do embate. Sabendo

se tratar de um alvo fácil de ataques para seu oponente, o rapper promove uma busca em todo o seu passado, uma perfeita aplicação de sua “memória”, para, então elencar em seus versos todas as amarguras e derrotas na vida. Fala sobre o quão falho ele é para a sociedade do self made man. Em resumo, seus versos cumprem uma verdadeira função de destruição de sua própria imagem. Seu efeito é arrasador, diante de uma plateia catatônica, que se vê sem reação diante da apresentação. E, claro, de seu próprio oponente, que uma vez sem “armas” para atacá-lo, não produz sequer um verso e é derrotado. Traverso certamente não viu o filme do rapper norte-americano ou o considerou para produzir a sua obra, no entanto, poucas produções poderiam apreender uma melhor representação daquilo que o livro do historiador italiano trata: a capacidade de transformar

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GNARUS - 168 um cenário de sucessivas derrotas em um triunfo final. A obra Melancolia de esquerda: Marxismo, História e Memória do historiador italiano Enzo Traverso(1957) foi traduzida pela editora Ayné, na coleção Aut-Aut, dedicada a pensadores de Esquerda. Traverso, um historiador italiano com passagens pela Universidade de Picardie, e atualmente lecionando na Universidade de Cornell, se propõe justamente a debater as relações travadas da “memória” com a Esquerda e seu passado. Contando com aproximadamente 500 páginas, é, sobretudo, uma forma de aprender a lidar com as sucessivas derrotas impostas aos movimentos revolucionários. A introdução da obra de Traverso faz um interessante link com a Memória – termo que atualmente se aborda de uma maneira banal na historiografia, o que contribui para sua queda em ambiguidades que mais dificultam a comunicação do que propriamente ajudam. A tradição marxista sempre teve o seu respaldo e a crença na consequente vitória sobre a opressão e a sociedade de classes, utilizandose do passado. Contudo, já não haveria mais um projeto para o futuro, uma vez que a queda do Muro de Berlim, o fim da URSS e o triunfo do capitalismo fechavam as cortinas do turbulento século XX. O que há, a partir de agora, é um passado a ser rememorado, com ares nostálgicos. E lamentado. Ela, a Memória, está lá, mas, somente de maneira fragmentada e des-

figurada. O leitor em seu primeiro contato, porém, pode se indagar o que seria a Melancolia de Esquerda, que dá título ao livro do historiador italiano. Esta pergunta é logo respondida em alguns trechos introdutórios: “Essa passagem de uma época de fogo e sangue — que, apesar de todas as derrotas, se mantinha decifrável — para um novo tempo de ameaças globais sem um resultado previsível tem um sabor melancólico. Essa melancolia, no entanto, não significa retirar-se para um universo fechado de sofrimento e lembrança; trata-se mais de uma constelação de emoções e sentimentos que envolvem uma transição histórica (…) É a melancolia de uma esquerda que, mesmo aberta às lutas no presente, não foge à autocrítica em relação a seus fracassos do passado; que não se resigna à ordem mundial estabelecida pelo neoliberalismo, mas não pode renovar seu arsenal crítico sem antes se identificar e se irmanar com os derrotados da história” (TRAVERSO; 2018) Para que sustente sua tese, Traverso remonta a pensamentos correntes na tradicional historiografia. A possibilidade de se resgatar a história dos vencidos – remontando a Benjamin – se vê em xeque uma vez que o “horizonte” se reduz em expectativas – um diálogo com Koselleck. Somente há trevas, aonde antes residia esperança no movimento revolucionário de esquerda. Em seguida a tais constatações, Traverso

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GNARUS - 169 dedica-se a elencar uma série de manifestações das potencialidades emancipatórias de sua Melancolia de Esquerda. Passando pelo cinema – Wolfgang Becker e Theo Angelopoulos, como exemplo – e a literatura, onde resgata a figura da boêmia em Baudelaire e Benjamin, Traverso trata também das antigas estátuas dantescas erguidas em homenagem ao regime soviético. Posteriormente depostas, seriam símbolos daquilo que não mais existe. O autor inquire nestes longos trechos de sua obra as potencialidades de um luto revolucionário. No capítulo Adorno e Benjamin: Cartas na meia-noite do século, o autor expõe as trocas de correspondências entre um pessimista Theodor Adorno – com a perda da aura na obra de arte – e um entusiasmado Benjamin – que enxerga possibilidades de emancipação na massificação da cultura. É, porém, no último capítulo, dedicado a uma hipotética aproximação entre Daniel Bensaid e Walter Benjamin que Traverso expõe uma de suas mais interessantes perspectivas: a possibilidade de resistência ao desaparecimento de um diálogo entre passado e futuro. Há aqui uma forte crítica às ideias quase apocalípticas na marcha da História, e, neste caso é quase impossível não relembrar de Fukuyama e suas teorias, bem como as noções de um presente fragmentado, alargado, tão em voga com os pensadores pós-modernos. A noção rebatida por Traverso partiria do princípio de que com o fim da utopia comunista, seria como a História fosse resumida a memórias, tratando-se de um emaranhado de vítimas e catástrofes. Traverso possui uma vasta erudição, uma capacidade rara de conciliar a escrita histórica com a clareza de suas palavras, tornando o ato

da leitura agradável e fluido. Habilidade que não é rara aos historiadores italianos, que parecem ter a consciência de que a inteligibilidade é fundamental em nosso campo. Percebemos a enraizada noção que forma e conteúdo estão plenamente associados e são essenciais no ofício do historiador, tanto quanto se faz necessária a interdisciplinaridade. Traverso tem forte apreço por Walter Benjamin. Isto é facilmente perceptível quando dedica um capítulo inteiro ao intelectual alemão. Está presente na sua escrita a intenção da dor como motor para a superação, e não como estado de inércia. No entanto, sua escrita se mostra mais inclinada à derrota do que a de Benjamin poderia um dia sugerir. E este aspecto, ao avançar da obra, acaba por se tornar um pouco incômodo ao leitor. A forma lânguida com que transmite sua mensagem parece contradizer seu objetivo final de unir luta ao luto. Ainda que sua obra remonte especialmente – mas não somente – ao cenário da esquerda no cenário europeu, Traverso enxerga no Terceiro Mundo um potencial campo de repensar e gerar novas formas de atuação da esquerda. Para o autor, as “políticas de memória” aqui praticadas se afastam da vitimização dos que se foram. Em seu lugar, escrevem uma grande exclamação para recordar que a discussão sobre o passado não deve simplesmente se encerrar. O caso da Argentina pós-ditadura é clássico exemplo.

Pedro Gabriel Torres de Assis é mestrando no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Agência de Fomento CAPES.

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Educação

A EDUCAÇÃO TRADICIONALISTA E DISCIPLINAR TORNANDO A FRAGMENTAÇÃO DO SABER CADA VEZ MAIOR Por Miriam de Souza Oliveira Machado e Adílio Jorge Marques

RESUMO: Que nosso contexto educacional atual precisa de muitas alterações e de ideias de trabalhos e projetos inovadores nós já sabemos. Reproduzimos uma educação que vem de nossos antepassados, como já mencionamos anteriormente, e a busca de algo diferente e inovador precisa ser levada em consideração para ser concretizada o mais rápido possível. Nossa clientela é de alunos completamente envolvidos com as novas tecnologias e a era digital. Porém, a maioria das nossas escolas ainda possui a famosa forma de trabalho com “cuspe e giz”. Uma educação criativa é, sem dúvida, a melhor alternativa para superar todas as rápidas mudanças enfrentadas pela sociedade onde a tecnologia, a realidade virtual e o desenvolvimento digital são predominantes. Existe sim uma preocupação por parte de alguns estudiosos e sociólogos com o processo educativo e com o desenvolvimento de práticas educativas transformadoras, porém, a aplicação ativa e direta em nossas escolas não acontece como deveria. É necessário um desenvolvimento educativo que leve em consideração o contexto social de nossos alunos, aproveitando sua identidade cultural e seus olhares individuais sobre o mundo que os cerca. E é aí que vem como intervenção a proposta educacional, que precisa ser inovadora, levando em consideração tudo que o aluno traz em sua história de vida, em sua bagagem social e cultural. Palavras Chaves: educação, disciplinar, práticas educativas, novas tecnologias

Desenvolvimento

“Neste começo de um novo milênio, a educação apresenta-se numa dupla encruzilhada: de um lado, o desempenho do sistema escolar não tem dado conta da universalização da educação básica de qualidade; de outro, as novas matrizes teóricas não apresentam ainda a consistência global necessária para indicar caminhos realmente seguros numa época de profundas e rápidas transformações.” (GADOTTI, p. 6, 2000).

C

omo nos apresenta Gadotti em sua citação anterior, podemos analisar os obstáculos enfrentados por nossa educação atual, onde as inúmeras transformações sociais, digitais e culturais precisam ser levadas em consideração. A proposta de uma educação igualitária se faz imensamente necessária, mas, para que isso aconteça de forma efetiva, muito ainda precisa ser feito e repensado antes de ser colocado em prática na escola. Espaços abertos e tempos diversos levariam, assim, a escola a repensar suas metas

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GNARUS - 171 e a enfatizar a produção divergente dos alunos, respeitando crenças, mitos, motivações e poderes, mas sempre sabendo usar oportunidades oferecidas pelo contexto para o domínio do conhecimento e da informação, sem a devida dispersão. Explorar e descobrir cenários, pois nunca se sabe o quão longe podemos ir; a interdisciplinaridade já é uma realidade que favorece a descoberta de novas interpretações e múltiplos significados. A questão é como “rearrumar” os conhecimentos de modo diferente, como comunicar de forma mais autêntica e como experiências novas emoções e sonhos, distinguindo o que é para mudar, não mudando nada daquilo que muda sem querer até o mudar realmente. Comunicar, expressar, interpretar e simbolizar, além de pensar, sentir e conhecer são inevitáveis no mundo atual. (NOVAES, p. 155156, 2003).

A educação tradicionalista e compartimentalizada não tem mais sentido em nossa sociedade. Precisamos de novas representações educacionais, novas ideias, novas perspectivas. Levar nossos alunos a ter interesse, a ter sede de busca pelo conhecimento. O contato com o novo, com a aprendizagem, precisa ser significativo, diferente, inovador. Só assim conseguiremos desenvolver um processo educativo mais permeável para nossos alunos. Sabemos, no entanto, que é uma luta constante. Ideias de trabalho multidisciplinar, interdisciplinar e até mesmo transdisciplinar são analisadas e apontadas como propostas que precisam ser levadas em consideração para serem aplicadas em nossas unidades escolares. É importante o envolvimento de toda a comunidade escolar, corpo docente e discente, diretores e orientadores pedagógicos, pessoal de apoio e coordenadores de turno. Observamos nas palavras de Novaes (2003), e não podemos deixar de considerar, a importância da preocupação constante com o desenvolvimento educacional:

A preocupação da sociedade com essa escola deveria ser constante e aguda, ajudando a descobrir novos caminhos, procedimentos e estratégias do ensinar e aprender. Pais, alunos, professores, diretores, orientadores, supervisores, enfim todos aqueles que trabalham em educação podem, cada um na sua área, colaborar para que isto aconteça, pensando juntos num país de progresso e de justiça social, conscientes do papel que desempenha tal escola no futuro. (NOVAES, p. 160, 2003).

Analisando as ideias de Gadotti (2000), através de suas concepções sobre a escola, fica clara a necessidade de inovar, planejando sempre, com o intuito de desenvolver atividades interessantes e diferenciadas para que consigamos reestruturar nosso currículo para que uma transformação profunda e expressiva aconteça. A escola precisa ter projeto, precisa de dados, precisa fazer sua própria inovação, planejar-se a médio e em longo prazo, fazer sua própria reestruturação curricular, elaborar seus parâmetros curriculares, enfim, ser cidadã. As mudanças que vêm de dentro das escolas são mais duradouras. Da sua capacidade de inovar, registrar, sistematizar a sua prática/experiência, dependerá o seu futuro. Nesse contexto, o educador é um mediador do conhecimento, diante do aluno que é o sujeito da sua própria formação. Ele precisa construir conhecimento a partir do que faz e, para isso, também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o que fazer dos seus alunos. (GADOTTI, p. 8-9, 2000).

Gadotti (2000) apresenta em seu texto “Perspectivas Atuais da Educação” a importância do papel efetivo da escola em avançar e inovar com propostas de trabalho importantes, e o professor é peça chave para que todo esse desenvolvimento aconteça, sendo o mediador na elaboração de temáticas e ideias inovadoras para evolução do conhecimento. O autor também apresenta a ideia de “conhecimento” e como este é importante para a evolução da humanidade num todo. Para

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GNARUS - 172 ele, o conhecimento é um “grande capital da humanidade” (GADOTTI, p. 8, 2000) e deve ser disponibilizado a todos os cidadãos, igualmente, sem discriminação. A função das instituições educacionais seria disponibilizar esse conhecimento pautado na evolução humana e tecnológica. “Espera-se que a educação do futuro seja mais democrática, menos excludente” (GADOTTI, p. 8, 2000). No entanto, devido à falta de organização de políticas públicas, a evolução das propostas de desenvolvimento do conhecimento se esbarra na burocracia fazendo com que surjam as “indústrias do conhecimento”, como apresenta o autor, fazendo com que a visão humanista seja deixada de lado, fazendo com que algumas linhas do conhecimento fiquem diretamente amarradas aos lucros e também ao desenvolvimento do poder econômico. A educação, (...) é um bem coletivo e, por isso, não deve ser regulada pelo jogo do mercado, nem pelos interesses políticos ou pelo furor legiferante de regulamentar, credenciar, autorizar, reconhecer, avaliar, etc. de muitos tecnoburocratas. Quem deve decidir sobre a qualidade dos seus certificados não é nem o Estado e nem o mercado, mas sim a sociedade e o sujeito aprendente. (GADOTTI, p.8, 2000).

Na sociedade em que vivemos, a educação precisa funcionar como uma “bússola”, como diz o autor. Ela deve ter como principal objetivo indicar o caminho mais significativo nesse “mar do conhecimento”. Devem ser úteis, crítica e criativa, levando para a sociedade aquilo que realmente pode ser utilizado para a competitividade, obtendo, assim, bons resultados. Neste contexto de impregnação do conhecimento, cabe à escola: amar o conhecimento como espaço de realização humana, de alegria e de contentamento cultural; selecionar e rever criticamente a informação; formular hipóteses; ser criativa e inventiva (inovar); ser provocadora de mensagens e não pura receptora; produzir, construir e reconstruir

conhecimento elaborado. E mais: numa perspectiva emancipadora da educação, a escola tem que fazer tudo isso em favor dos excluídos, não discriminando o pobre. Ela não pode distribuir poder, mas pode construir e reconstruir conhecimentos, saber, que é poder. Numa perspectiva emancipadora da educação, a tecnologia contribui muito pouco para a emancipação dos excluídos se não for associada ao exercício da cidadania. (GADOTTI, p.8, 2000).

Quando falamos no decorrer de nossa pesquisa sobre o distanciamento entre as “Duas Culturas”,1 a preocupação é com o rumo que nosso sistema educacional tem tomado nas ultimas décadas. Observamos que nosso contexto escolar da atualidade já não faz mais sentido, nossos alunos não conseguem estar completamente presentes em nossas salas de aula, tudo é muito sintetizado e compartimentalizado, isso faz com que o interesse dos mesmos diminua cada dia mais. Quando trabalhos integradores são realizados na escola, observamos um maior envolvimento por parte dos alunos, mas infelizmente, na maioria das escolas isso acontece muito esporadicamente, quando projetos são desenvolvidos e concluídos com algumas culminâncias. Precisamos entender a importância de um trabalho integrador, que tenha como proposta o desenvolvimento crítico, ativo e participativo de nossos alunos, envolvendo, ciência, tecnologia, formação social e cultural. Porque então continuar com esse sistema tão fragmentado e excludente? É necessário entender que separar humanas e exatas faz com que nossos alunos, tão desenvolvidos tecnologicamente, não recebam todas as informações necessárias para que seu progresso pessoal e intelectual aconteça de forma considerável. O termo “Duas Culturas” foi formulado por C.P. Snow (1905 – 1980) em Cambridge, no artigo “The Two Cultures”, da revista “New Statement” de 6 de outubro de 1956, p. 413. Desde então, o termo tem sido utilizado para mostrar diferenças e oposições entre as áreas do conhecimento, principalmente humanas e exatas. (SNOW, 1995). 1

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GNARUS - 173 Com isso, observamos que as políticas curriculares não têm funcionado efetivamente nos sistemas de ensino nem municipais, nem estaduais das escolas brasileiras. No Brasil, apesar da importância que os governos dão ao planejamento curricular, a história tem demonstrado que, sucessivamente, as reformas “fracassam”. É o que demonstra a maioria dos estudos acerca, por exemplo, das reformas de 1960 (lei n. 4.024/61) e 1970 (lei n. 5.692/71). Por que elas fracassaram? Será que os mesmos equívocos se repetem na atual reforma do Ensino Médio? Naquelas, o insucesso se deveu, basicamente, à ausência de financiamento do processo de manutenção e investimento e à falta de uma política “agressiva” de formação de professores e de recursos humanos em geral. Deveu-se também à ausência de uma política de adequação do espaço e da infraestrutura pedagógica, além da inexistência de uma política editorial que superasse o passado. (DOMINGUES et al., p. 64, 2000).

Domingues (2000) comenta ainda que mesmo que o trabalho de planejamento curricular aconteça, observamos sempre um fracasso quanto às suas expectativas. Se isso vem acontecendo e nada tem sido feito a respeito, algo está errado. Se insistirmos em seguir por um caminho que não apresenta resultados significativos, porque não mudamos de direção? Isaiah Berlin (1909-1997) é considerado um dos pensadores mais reflexivos sobre a relação entre ciência e humanidade, um pensador liberal do século XX. Foi um teórico, filósofo, historiador e político, de origem letão-britânica. Entendemos os seus pensamentos relacionados ao distanciamento entre as “Duas Culturas” quando analisamos seu ensaio “The Divorce Between the Sciences and the Humanities”, texto que o autor apresentou em forma de palestra na Universidade de Illinois em 1974. E Santos (2017) comenta que ele: Defendeu que a separação entre as Ciências e as Humanidades nasceu, em grande

parte, da agenda do Iluminismo. Para Berlin, o Iluminismo tem por principal ambição a aceitação das ciências como sendo o paradigma mais importante para o desenvolvimento do conhecimento humano, que procura unificar o conhecimento humano tendo por base uma metodologia unificada. Tal agenda não é unânime, pode ser compreendida de múltiplas formas, e deve, segundo Berlin, ser discutida e criticada em todos os seus aspetos polêmicos. Enquanto engenheiro de formação base, e fruto de uma educação positivista e racionalista, paradoxalmente, não posso estar mais de acordo! Na verdade, a influência iluminista que, no século passado, Berlin refere estar na base da tensão entre as Ciências e as Humanidades, tem sido o foco da reflexão de ilustres pensadores e continua atual! Por exemplo, Karl Popper, considerado, por muitos, como o filósofo de ciência mais influente do século XX, no seu livro de ensaios de 1987, Mito do Contexto, desenvolve a defesa da ciência e da racionalidade. Em Portugal, Boaventura Sousa Santos, no seu célebre discurso proferido na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra no ano letivo de 1985/86, “Um Discurso sobre as Ciências”, caracteriza e critica o paradigma dominante da ciência moderna e defende que vivemos num período de crise do paradigma atual com transição para um novo paradigma desejado pelos próprios cientistas “chegamos a finais do século XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas com […] o conhecimento de nós próprios”. (SANTOS, p. 98, 2017).

Antes mesmo de Berlin apresentar esse “divórcio” entre humanas e exatas, Snow já o havia feitos em 1959 na sua famosa palestra de rede na Universidade de Cambridge. Snow iniciou uma discussão que virou polêmica, e que dura até os dias de hoje, tema principal desta discussão. Pensar em educação integralizadora, é pensar em concepções pedagógicas que tem por finalidade uma maior preocupação com o desenvolvimento total do aluno, seja social, cultural, crítico e criativo. É necessário que seja inserido no contexto escolar práticas de ensino inovadoras que serão utilizadas com o intuito de tentar resolver o problema que enfrentamos atualmente, uma educação dis-

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ciplinar, tradicional que favorece a fragmentação de conhecimentos.

muito fragmentado e corrido, com provas e trabalhos disciplinares.

Observamos no desenvolvimento histórico da humanidade, como já mencionamos anteriormente em discussões apresentadas no Capítulo I, que estudos diversos foram e são apresentados por filósofos e sociólogos. Discussões sobre interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e, atualmente, sobre a transdisciplinaridade acontecem com o intuito de apresentar as estratégias que esperamos para que o ensino em nossas escolas alcance novo patamares e se desenvolvam ativamente.

Para que o processo de evolução na educação aconteça, ela precisa estar em todos os níveis educacionais, desde a educação infantil até a universidade. Apesar da necessidade de mudanças urgentes em nosso sistema educacional brasileiro, em todos os níveis, conviver com uma organização curricular fragmentada e desarticulada, onde os programas de ensino são elaborados por compartimentos guardados em “gavetinhas” que somente são utilizados em aulas afins, estabelecem uma formação humana e profissional onde alunos e professores não conseguem se expressar criticamente quando são submetidos a situações mais complexas. As técnicas de produção capitalista fizeram com que as instituições educacionais (escola, família e outros) se preocupassem unicamente com a formação para o trabalho. Com a Revolução Industrial, a escola continuava se desenvolvendo para a formação do trabalho, dessa maneira, a formação social, cultural e idealista ia sendo

Nosso campo educacional é muito disciplinar e trabalhar de forma diferente e criativa demanda muito trabalho e envolvimento. Como cobrar que um trabalho integralizador seja realizado por nossos professores, se os mesmo não sabem como agir, afinal, também foram educados no sistema tradicionalista, até mesmo quando chegam à Universidade. A preocupação sempre é dar conta de todas as disciplinas da grade naquele semestre, tudo

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GNARUS - 175 deixada de lado. A maior preocupação era o crescimento de mão de obra para o trabalho industrial. Consequentemente, a preocupação com a divisão do saber em áreas, que até o século XIX ou estava diretamente ligada a uma metodologia para ligar teoria e prática, ou uma composição educacional funcionando unicamente como retransmissão do saber. Como resultado, vemos na pesquisa acadêmica uma preocupação com a formação de “‘ilhas’ epistemológicas, dogmática e teoricamente ensinadas, sem portas nem janelas, sejam mantidas pelas instituições, ainda às voltas com o problema da distribuição de suas ‘fatias’ do saber” (JAPIASSU, p. 80, 1991). No que diz respeito à pesquisa acadêmica, começaram a reaparecer na metade do século XX propostas que buscavam compensar a hiperespecialização disciplinar e propunham diferentes níveis de cooperação entre as disciplinas, com a finalidade de ajudar a resolver os problemas causados pelo desenvolvimento tecnológico e pela falta de diálogo entre os saberes decorrentes dessa hiperespecialização. Essas propostas foram chamadas, primeiro, de multidisciplinares e de pluridisciplinares, depois de interdisciplinares e de transdisciplinares, e elas só começaram a ter algum espaço nas universidades com a criação de alguns institutos ou núcleos de pesquisa interdisciplinares, a partir da década de 70, e o estabelecimento de alguns institutos e núcleos transdisciplinares, a partir das décadas de 80 e 90. Surgiram também, nessa mesma época e nos primeiros anos da década seguinte vários núcleos e centros transdisciplinares e voltados para o pensamento complexo tanto nas universidades como fora das universidades, mas com uma interação forte com o ambiente acadêmico. (SOMMERMAN, p.100, 2006).

Atualmente a preocupação ainda está em torno da formação fragmentada, cada especialista em sua área e com a modificação do mundo do trabalho, a qualificação exigida está ainda maior. Os meios de produção querem agora trabalhadores mais qualificados, especialistas e acima de tudo desenvolvidos digitalmente. Como podemos apresentar

ideias e propostas significativas, de envolvimento entre as disciplinas escolares, se a cada momento nos deparamos com uma preocupação cada vez maior de formar especialistas em áreas a fins? Aqui que vemos a necessidade de envolvimento entre as disciplinas, o currículo integralizado trará para a sociedade cidadãos críticos, ativos em suas áreas, porém que saberão apresentar ideias e sugestões importantes para o progresso num todo. Assim como as formas vigentes até então, de trabalho parcializado e mecânico, influenciaram a organização de toda vida social, inclusive da escola e dos currículos escolares, esta nova situação traz uma tendência de maior flexibilidade na formação dos indivíduos. No entanto, estas modificações nas condições materiais de produção ainda estão muito longe de superar a alienação e a desumanização no campo do trabalho. O desenvolvimento completo, pleno, consciente e universal do ser humano exige muito mais do que modificações nas formas de exploração do trabalho; exige, de forma radical, a superação da própria exploração. De forma semelhante, a multidisciplinaridade, reflexo da multifuncionalidade, também é insuficiente para superar os problemas de fragmentação e desarticulação dos currículos nas escolas. Considerando que a divisão do trabalho industrial nos últimos tempos influenciou a organização curricular, podemos entender que a reorganização do trabalho atual, com sua flexibilidade e exigência de multifuncionalidade, estão influenciando a reorganização dos currículos. (PIRES, p. 175, 1998).

Ouvimos muito sobre o trabalho multidisciplinar, o interdisciplinar e atualmente, um novo conceito, a transdisciplinaridade, apresentando essa última um distanciamento bem grande das duas primeiras. No entanto, quando buscamos informações sobre o andamento de práticas educativas, a multidisciplinaridade acaba sendo a mais discutida e utilizada. O que colocaremos a seguir em discussão serão as diferenças entre os conceitos de disciplinar, multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, para que possamos entender a importância de pontuar as características de

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GNARUS - 176 cada um deles e assim, nos conscientizarmos sobre qual o melhor caminho para desenvolver propostas importantes no campo educacional, buscando uma melhor qualidade de ensino e aprendizagem. As ideias e concepções sobre cada um desses conceitos apresentados acima são discutidos por educadores, sociólogos e filósofos importantes como Bauman (1925-2017), Japiassu (1934-2015), Paulo Freire (1921-1997), Santomé (1951), Serres (1930), entre outros, que apresentam sugestões de trabalho que precisam ser levadas em consideração. Quando analisamos as propostas de cada conceito, vemos que o multidisciplinar é diferente do interdisciplinar que é completamente diferente e distante do transdisciplinar. E ainda, cabe citar que a ideia de educação disciplinar é a utilizada por uma grande maioria de instituições escolares nacionais. Paulo Freire (1969) apresenta em um de seus textos com título: Papel da Educação na Humanização a importância educacional de preocupar-se com a formação de cidadãos reflexivos e participativos na sociedade e comenta que “Não se pode encarar a educação a não ser como um quefazer humano” (FREIRE, p. 123, 1969). Segundo o autor, a preocupação principal do processo educativo formativo é sobre como o homem será formado e qual será sua posição no mundo. O mesmo discute sobre o processo formativo, onde a busca é a valorização para com determinadas situações no contexto escolar e apresenta a educação humanista como característica importante. Nesse sentido, entendemos que nosso campo educacional atual preocupa-se efetivamente em formar profissionais especialistas em suas áreas, deixando em segundo plano as reflexões sobre a importância do desenvolvimento humanista para a sociedade.

Freire comenta Ora, uma educação só é verdadeiramente humanista se, ao invés de reforçar os muitos com os quais se pretende manter o homem desumanizado, esforça-se no sentido da de ocultação da realidade. De ocultação na qual o homem existencialem sua real vocação: a de transformar a realidade. Se, ao contrário, a educação enfatiza os mitos e desemboca no caminho da adaptação do homem à realidade, não pode esconder seu caráter desumanizador. (FREIRE, p. 128, 1969).

O educador pernambucano ainda faz uma comparação entre duas posições educativas “uma que respeita o homem como pessoa; outra, que o transforma em ‘coisa’”. (FREIRE, p. 128, 1969). Nesse sentido, partindo do segundo conceito, a formação humana acontece dentro das escolas com o intuito de formar o homem em “coisa”, na qual ele chama de “concepção bancária”, onde o educador deposita informação no educando e esse serve apenas de “depositário”, guarda todas as informações e conteúdos aprendidos sem, na maioria das vezes, saber onde e quando poderá utilizá-lo. Para Freire, esse tipo de processo formativo faz com que o educador seja o único a transmitir conhecimento e o educando fica unicamente disponível para receber informações, funcionando com uma “caixa” que armazena informações. O autor apresenta alguns pontos sobre esse tipo de trabalho formativo: a) que o educador é sempre quem educa; o educando, o que é educado; b) que o educador é quem disciplina; o educando, o disciplinado; c) que o educador prescreve; o educando segue a prescrição; d) que o educador é que fala; o educando, o que escuta; e) que o educador escolhe o conteúdo dos programas; o educando o recebe na forma de “depósito”; f) que o educador é sempre quem sabe; o

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GNARUS - 177 educando, o que não sabe; g) que o educador é o sujeito do processo; o educando, seu objeto. (FREIRE, p. 128, 1969).

No entanto, o autor apresenta outro conceito para a formação educacional na qual ele chama de “concepção humanista e libertadora”, o contrário da apresentada anteriormente. Segundo essa perspectiva, a processo formativo acontecerá ativa, propondo trabalhos significativos com objetivos importantes para o desenvolvimento do ser humano. Essa concepção apresentada por Paulo Freire nos mostra que “Estimula a criatividade humana”. Segundo ele, “A concepção humanista, que recusa os depósitos, a mera dissertação ou narração dos fragmentos isolados da realidade, realiza-se através de uma constante problematização do homem-mundo”. Seu quefazer é problematizador, jamais dissertador ou depositador. (FREIRE, p. 130, 1969). Nesse sentido, entendemos essa segunda concepção como formativa e reflexiva do conhecimento, onde a participação dos educandos precisa ser levada em consideração para que todo o processo desenvolva-se ativamente. Se na “concepção bancária” o educador é o único capaz de oferecer conhecimento, Freire também nos apresenta a “concepção humanista” seguindo por um caminho completamente diferente. E faz surgir: “a) não mais um educador do educando; b) não mais um educando do educador; c), mas um educador-educando com um educando-educador” (FREIRE, p. 130-131, 1969). Sendo assim, verificamos a importância do trabalho exercido pelo educador, que seria o mediador do conhecimento nesse sentido, chegamos ao ponto apresentado pelo autor, “que ninguém educa a ninguém; que ninguém se educa sozinha; que os homens se educam

entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, p. 131, 1969). Nessa perspectiva, verificamos a importância de atividades integralizadas no contexto escolar, seguindo o conceito da “concepção humanista” apresentada por Paulo Freire e consequentemente o desenvolvimento ativo, crítico e reflexivo de nossos alunos.

Conclusão No decorrer de nossa pesquisa, nos deparamos primeiramente com as variadas formas de manifestações educacionais na história, com o desenvolvimento das primeiras civilizações até as mais variadas perspectivas formativas do cenário educacional da atualidade. Contudo, percebemos que até os dias de hoje não possuímos uma educação básica de qualidade sendo aplicada efetivamente no campo educacional de todos os nossos alunos, independente de classe social e cultural. Os estudos e discussões que apresentamos nesse trabalho mostram nosso descontentamento com o cenário educacional brasileiro. Mesmo vivendo em um país dito de terceiro mundo, enfrentando uma das maiores crises econô-

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GNARUS - 178 micas de sua história, passando por uma situação política crítica, ainda temos otimismo e esperança de que nós brasileiros conseguiremos superar tudo isso e ainda lutaremos pela melhoria do nosso contexto educacional. Precisamos de educadores que amem sua profissão, para que assim possam lutar por seus ideais, buscando um futuro melhor para seus educandos. E será somente através de atitudes e lutas que conseguiremos superar todas as dificuldades. A proposta de entender o trabalho interdisciplinar e o processo de integração disciplinar é de suma importância para uma mudança significativa no nosso campo educacional. Temos, portanto, a emergência de um diálogo entre humanas e exatas. Interligar um conhecimento fragmentado nos proporciona a compreensão do método de desenvolvimento do saber durante seu processo de formação histórica. É necessário entender que cada área do conhecimento traz inúmeras contribuições para a formação da sociedade e é no contexto escolar que tudo se inicia. Precisamos entender que nosso sistema educacional nacional é diversificado, e imaginar uma base curricular nacional comum é bem complicado. Estaríamos desenvolvimento significativamente um currículo que seria capaz de integralizar de forma efetiva toda a diversidade que possuímos? Educadores e estudiosos precisam se unir para que algo seja feito com o intuito de que essa nova base seja revista novamente, ou até mesmo, reconsiderar e elaborar novas propostas. Nossos educadores e educandos precisam estar inseridos em seu contexto social e cultural onde, com a inserção da base nacional, não acontecerá como deve ser.

que desconsidera a realidade que insiste em ser não linear e desigual? Diante de todos os cuidados em se tomar a diferença como elemento central nas proposições sobre currículo, respeitando a multiplicidade de formas de se viver a infância e a juventude, a proposta de Base Nacional Comum Curricular vai justamente a sentido oposto ao entendimento de que enfrentar as desigualdades passa por respeitar e atentar para a diferença e diversidade de todos os tipos, desde a condição social até as diferenças étnico-raciais, de gênero, sexo etc. A padronização é contrária ao exercício da liberdade e da autonomia, seja das escolas, seja dos educadores, seja dos estudantes em definirem juntosos projetos formativos que alicerçam a proposta curricular da escola. (SILVA, p. 375, 2016).

O desafio de transformar nossa educação é grande. Vimos à importância do desenvolvimento de atividades, propostas interativas e diversificadas no contexto escolar, fazendo com que o processo de integração disciplinar aconteça efetivamente, sem hipocrisia e máscaras. No entanto, sabemos também da infinidade de obstáculos encontrados, sendo assim, é claro, a necessidade de não desistirmos de lutar.

Miriam de Souza Oliveira Machado, é Mestre em Ensino pelo PPGEn do INFES/UFF (Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior da Universidade Federal Fluminense), pós-graduada em Ensino das Artes pela Centro Universitário Barão de Mauá, Licenciada em Matemática pela UFF (Universidade Federal Fluminense), Licenciada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Claretiano e Professora Docente I do Estado do Rio de Janeiro. Adílio Jorge Marques, é Doutor em História e Epistemologia das Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na área de História da Ciência Luso-Brasileira e Professor da UFVJM (Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri).

É possível falar em um “currículo nacional” sem recair na ideia de uma determinação

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DOMINGUES, José L. et al. A reforma do ensino médio: a nova formulação curricular e a realidade da escola pública. Educação & Sociedade. Campinas: UNICAMP; Campinas: CEDES, v.21, n. 70, p. 63-79, abr. 2000. FREIRE, Paulo. Papel da educação na humanização. Obra de Paulo Freire; Série Artigos, 1969. GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. São Paulo em perspectiva, v. 14, n. 2, p. 03-11, 2000. JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. NOVAES, Maria Helena. O que se espera de uma educação criativa no futuro. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional. Campinas/SP, v. 7, n. 2, p. 155.160. jul./dez. 2003.

PIRES, Marília Freitas de Campos. Multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade no ensino. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 2, p. 173-182, 1998. SANTOS, Maria Emanuela Esteves. Filosofia da educação e pensamento das multiplicidades em Michel Serres. Revista Filosofia e Educação. Campinas/SP: v. 9, n. 2, Jun.-set. de 2017. p. 98-124. DA SILVA, Mônica Ribeiro. Currículo, ensino médio e BNCC-Um cenário de disputas. Retratos da Escola, v. 9, n. 17, 2016. SNOW, CP. As duas culturas e uma segunda leitura: Uma Versão Ampliada das Duas Culturas e a Revolução Científica. Trad. por Geraldo Gerson de Souza / Renato de Azevedo Rezende Neto. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. SOMMERMAN, Américo. Inter ou transdisciplinaridade. São Paulo: Paulus, v. 21, p. 98-118, 2006.

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Interdisciplinar

O ESPÍRITO ZEN E A EPISTEMOLOGIA Por Lincoln Mansur Coelho e Adílio Jorge Marques

RESUMO: O presente trabalho surgiu como uma observação da proximidade de muitos conceitos epistemológicos com a filosofia do Zen budismo. Embora a comunidade zen tenha se iniciado muito anteriormente nos EUA, somente a partir da década de 50 que há o interesse pela sua filosofia, ampliando as publicações e pesquisas universitárias. Esse interesse, em parte foi devido ao impacto da publicação do livro do Professor Suzuki, em 1949, ensaios do Zen budismo. A partir dessa publicação, o interesse pela filosofia zen deixou os campos acadêmicos e passou a interessar a cada vez mais pessoas. Objetivamos discutir no presente trabalho alguns aspectos dos fundamentos e características que determinam o que é a filosofia zen e o seu espírito1 perante a epistemologia. Palavras Chaves: Epistemologia; Zen; Filosofia Espírito no sentido fenomenológico, advindo do termo alemão geist que pode ser entendido como uma autoconsciência que se revela a si mesma nas produções como a arte, a religião e a filosofia. 1

Introdução

O

interesse do ocidente pela filosofia oriental, em especial o pensamento japonês, se iniciou após a segunda grande guerra. Antes, haviam poucos livros publicados, destacando o “Religion of the samurai”, de Kaiten Nukariya, que traça as bases do desenvolvimento da filosofia1 zen e

Optamos por utilizar o termo filosofia zen, embora essa escolha possa gerar certo desconforto entre os estudantes de filosofia e em filósofos mais ortodoxos. Se a disciplina Filosofia pretende explicar a realidade por meio do pensamento racional, o zen o faz dentro de sua própria racionalidade. Até a racionalidade que os filósofos clássicos defendiam são atualmente discordantes frente as descobertas científicas. Isso nos parece fazer entender que somente considerar a filosofia grega como paradigma seria nada mais do que 1

sua chegada até o Japão, publicado em 1913, e o livro “O crisântemo e a espada”, fruto de uma pesquisa antropológica. Basicamente o intuito da autora era investigar a cultura que permeava o pensamento dos japoneses que negavam se render no pós-guerra, sendo que foi escrito em 1946. Quais são os fundamentos e características que determinam o que é essa filosofia zen? O Zen budismo é uma corrente que busca transcender a realidade objetiva. De acordo com o Budismo, o mundo material é uma ilusão. A realidade está além da materialidade das coisas. O que seria responsável pela construção uma questão de pré-conceito com outros povos e outras origens.

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dessa realidade aparente e ilusória é a falsa crença do individualismo humano. O estado de iluminação, ou o Satori, ocorre quando o ser humano transcende a realidade objetiva e se vê não mais como indivíduo, mas sua consciência se funde com a realidade definitiva do universo. Esse estado de iluminação é muito difícil de ser descrito, pois descrevê-lo é criar uma ilusão sobre essa realidade. O zen é uma atitude mental de constante busca pela iluminação. Muitos monges zen budistas teriam alcançado a iluminação enquanto entregues nas práticas mundanas, como por exemplo, lavando banheiros. Watts (2008) diz que enquanto muitos seguidores de Buda procuraram a iluminação no dedo de Buda que aponta o caminho da iluminação, o Zen busca percorrer o caminho, indo em direção ao silêncio. Somente com esse breve relato já poderíamos fazer alguns paralelos da Filosofia Zen com a Filosofia clássica.2 A crença em um munPara efeitos didáticos, foram selecionados autores e textos que foram mais debatidos dentro das aulas de

2

do ideal, perfeito, real, constante, onde reina a verdade absoluta e de onde se originam as ideias, ou seja, o mundo inteligível; e outro mundo ilusório, das realidades aparentes, de sofrimento, ou seja, o mundo sensível, constituem a base do pensamento platônico e são observadas também no zen. Enquanto para Platão o mundo sensível é responsável por aprisionar os homens nessa realidade aparente, para o zen, é a falsa percepção de individualismo que aprisiona o homem nesse mundo de ilusões. O que permitiria o homem escapar dessa realidade aparente? Para Platão, a filosofia, para o zen, a experimentação desse estado de união, que só é possível atingi-la por meio da meditação. Essa meditação exige um estado de profundo autoconhecimento. Essa Epistemologia, no curso de mestrado em Ensino, no Instituto Federal de Ensino Superior – Universidade Federal Fluminense, Campus Santo Antônio de Pádua, base da discussão deste artigo. Por isso, optamos por não incluir alguns autores que, com certeza, teriam muito a contribuir ao debate, como alguns filósofos Pré-Socráticos, bem como Schopenhauer e Nietzsche, dentre outros.

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GNARUS - 182 meditação é transcender a realidade aparente, é alcançar uma realidade metafísica. Watts (2008, p.14) resume a finalidade do zen é “focalizar a atenção na própria realidade, em vez de dirigi-la para as reações intelectuais e emocionais à realidade”. Essa realidade, ainda segundo este autor, seria dinâmica, vive em mudança, e, portanto, é impossível de ser encaixada em um rígido sistema de classificação e ideia. As teorias epistemológicas buscam formas de alcançar a verdade. Oliva (2011) afirma a dificuldade de se alcançar a verdade a partir da metafísica: É difícil reivindicar conhecimento de um objeto se pairar dúvida quanto ao que nossas representações conseguem dele captar: se seus traços distintivos ou apenas suas propriedades aparentes. Não tem como considerar o conhecimento possível aquele que endossa a visão metafísica de que nossas representações nunca são fidedignas, nunca apreendem os objetos em sua realidade própria. Sustentar que todas as aparências são sempre enganosas torna imperioso tentar passar para outro plano ontológico – o das essências – ou reconhecer que o conhecimento não é possível. Se as aparências nos enganam em alguns casos e circunstâncias, é inevitável a suspeita de que podem estar, na falta de um critério confiável de discernimento, nos enganando mesmo quando não estão. E depois que nos percebemos vítimas de uma ilusão, não há como afastar a possibilidade de outras ocorrerem sem ser notadas. Se não se conta com um eficiente dispositivo epistêmico capaz de identificar como, quando e onde as aparências podem enganar, há sempre o risco de se tomar por realidade (a conhecer) o que não é. Se nossos sentidos ficam presos às aparências, se há um hiato entre o registro perceptual e o ser das coisas, por que meios chegar à realidade? E como afastar a desconfiança de que o novo meio pode estar apenas trocando uma aparência por outra? Se as aparências não são guias seguros de acesso à realidade, com base em que acreditar que a razão que as renega é? Não pode ela se envolver com outros tipos de ilusão representacional?

E para alcançar a verdade é preciso entender como se forma o conhecimento. Moser (2008) considera a crença como condição necessária para o conhecimento. Logo, en-

tender a crença é entender o conhecimento. A crença é vista como relativa, e essa relatividade é apoiada pela forma como essa crença representa o mundo: se o bem representa, a crença é considerada verdadeira, se mal, é considerada falsa. Dessa forma, a realidade da crença é posta em xeque. Como podemos considerar algo verdadeiro se não podemos afirmar que essa representação é totalmente correta? A crença é assim uma representação mental da realidade, que pode ser justificada ou não. Esse estado representacional é, conforme visto no início do presente texto, observado na filosofia zen. Moser (2008, p.50) ainda afirma que “as crenças são intrinsecamente propositivas, pois exigem um objeto propositivo”. Ainda afirma que “são estados de representação psicológicos que podem ou não se manifestar no comportamento”. O caminho para o satori, parte da crença de que se focarmos nossa atenção no aqui e no agora, sem nos preocuparmos com o amanhã, ou com o ontem, alcançaríamos esse estado de iluminação. Para isso, é necessário moldar nossas ações a partir dessa crença, procurando eliminar tudo o que for desnecessário. É uma premissa minimalista das ações. Um outro ponto que Moser (2008, p.54) afirma sobre a crença, faz referência ao autoconhecimento, considerando-o como um dos pontos importantes da epistemologia. Ele afirma que “quando as crenças que atribuímos a nós mesmos têm o caráter de conhecimento, é porque são (aproximadamente) verdadeiras e justificadas”. Ainda cita que muitos filósofos propuseram que nossos estados mentais, ou seja, nossas crenças, podem ser acessadas pela introspecção, ou seja, pela interiorização de nossa atenção. É essa interiorização da atenção que fundamenta a base

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GNARUS - 183 da meditação no zen. Watts (2008, p.18) coloca como “objetivo da Escola Zen do budismo é ir além das palavras e ideias a fim de que a introspecção original do Buda possa ser trazida de volta à vida”. Moser (2008, p.55), contudo, enumera algumas críticas a essa possibilidade de introspecção. A primeira crítica é a possibilidade de termos estados mentais inconscientes. Esses estados mentais seriam responsáveis por algumas atitudes nossas, de forma inconsciente. Se eu não gosto de determinada pessoa, eu me colocaria de forma fechada às ideias dela, porém, o Zen busca trazer a luz exatamente esses pontos de nosso inconsciente. Buscar entender nossas ações, se concentrando no agora. É ter uma atitude questionadora constante sobre nossas ações, pois somente assim teríamos consciência de todas as nossas ações. Por isso a prática Zen exige uma atitude mental constante, uma análise constante de nossas ações. Essa valorização do aqui e do agora, do tempo presente, em detrimento do passado e futuro, é a base do chamado “sociologia das ausências” de Boaventura de Souza Santos (2002). Em seu texto, esse pensador procura na valorização do tempo presente como uma forma de valorizar as experiências do aqui e do agora, diferente da chamada “razão indolente”, em especial a “razão metonímica”, que afirma ser a única forma de racionalidade, desfazendo de outras formas de racionalidade, e que encara o tempo presente como o instante fugaz entre o que já não é e o que ainda está por vir. O Zen critica essa racionalidade exagerada do mundo ocidental. Essa “razão indolente” que Santos nos fala é ponto de crítica e buscase afastá-la dela. Um exemplo prático são os Koan Zen, uma espécie de charada que busca afastar a razão e focar no aqui e agora. A

resposta é sempre dada de forma irracional (FRANCO JUNIOR, p. 61, 2010). Como exemplos podemos citar: “Qual é o som do silêncio?”; ou “Não siga o passado; não se perca no futuro. O passado não existe mais; o futuro ainda não chegou. Observando profundamente a vida como ela é, aqui e agora, é que permanecemos equilibrados e livres”. Esse último podemos verificar a valorização do tempo presente como sendo o único possível onde se realizam as experiências. Um outro Koan que nos coloca no tempo presente e demonstra a importância das atividades mundanas é o seguinte: “Terminaste a refeição? Então, vai lavar tuas tigelas!”. Essa valorização do aqui e do agora é a forma que Santos verificou como alternativa à razão metonímica. Mas como essa razão se tornou hegemônica no ocidente? Boaventura de Souza Santos (2002) nos afirma que essa racionalidade é fruto da sociedade pós-industrial, e que procurou valorizar as ciências naturais em detrimento das sociais. O pensamento ocidental passou a excluir outras formas de pensamento – a multiplicidade do pensamento oriental e fundadora do pensamento ocidental – as considerando marginais, só mantendo o que favorece a expansão do pensamento ocidental. Essa multiplicidade é reduzida em tempo e espaço: pela secularização e laicização, a multiplicidade de mundos – ou vivências – passa a ser reduzida somente ao mundo terreno; e a multiplicidade de tempos é reduzida ao tempo linear, e, assim, instaura-se um conceito de progresso. Nessa transição aparece o ceticismo filosófico, resultante da transição da modernidade para a contemporaneidade, fruto de uma sociedade industrializada que valoriza os sa-

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GNARUS - 184 beres exatos, em detrimento aos sociais e filosóficos. A filosofia entra em uma recessão perante as disciplinas da razão e as ciências naturais passaram a justificar epistemologicamente as teorias da razão. Boaventura de Souza Santos (2002, p.243), com a crítica da razão indolente, vem exatamente apontar essa questão: “A razão metonímica é, juntamente com a razão proléptica, a resposta do Ocidente, apostado na transformação capitalista do mundo, à sua marginalidade cultural e filosófica em relação ao Oriente”. Santos (2002, p. 240) encara que a razão indolente desperdiça experiências, ao instalar dicotomias de saberes. “A razão indolente subjaz, nas suas várias formas, ao conhecimento hegemônico, tanto filosófico como científico, produzido no Ocidente nos últimos duzentos anos”. Alberto Oliva (2009), em sua “Crítica da Arrogância pura” também tece críticas a essa razão indolente, embora ele não a nomeie assim. Edmund Husserl (2000) entende que a compreensão naturalista aliena a humanidade em função de aspectos que retiram do homem a condição própria da cultura racional, que é a reflexão.

Se levarmos em conta que o pensamento Zen busca a essência do presente, do aqui e do agora, e encara o mundo como sendo um reflexo de nossa mente, de nossa consciência, podemos também estabelecer alguns paralelos com a fenomenologia de Husserl. A fenomenologia é uma teoria filosófica que busca a essência das experiências. Ele ainda busca transcender a fenomenologia, formando uma fenomenologia da consciência, dirigindo para a consciência enquanto consciência, indo para os fenômenos em um duplo sentido: da aparência onde a objetividade aparece, e no sentido de objetividade só considerada pelas aparências, na desconexão de todas as posições empíricas (HUSSERL, 2000, p.14). Nesse ponto, podemos observar uma análise da realidade próxima ao que o zen prega: a realidade aparente e a realidade propriamente dita, só acessada pela interiorização da consciência. Ele ainda nos mostra que as possibilidades de conhecimento não se dão somente na senda da ciência objetiva, a partir da crítica da cogitatio cartesiana. Sobre a questão da realidade, Husserl (2000, p.32-33) afirma:

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GNARUS - 185 (…) não tem sentido algum falar de coisas que simplesmente existem e apenas precisam de ser vistas; mas que esse “meramente existir” são certas vivências da estrutura específica e mutável; que existem a percepção, a fantasia, a recordação, a predicação, etc., e que as coisas não estão nelas como num invólucro ou num recipiente, mas se constituem nelas as coisas, as quais não podem de modo algum encontrar-se como ingredientes naquelas vivências. O “estar dado das coisas” é exibir-se (ser representadas) de tal e tal modo em tais fenômenos. E aí que as coisas não existem para si mesmas e “enviam para dentro da consciência” os seus representantes.

Ou seja, quando por exemplo eu vejo um objeto, não o vejo isolado, mas sim carregando as minhas memórias, fantasias, percepções, etc. Dificilmente é possível tomar o objeto por si só, mas sempre carregado de nossas experiências. Na perspectiva Zen, a realidade objetiva apresenta-se como representações mentais de uma realidade maior, dita verdadeira. O nosso self, ou ego, ou ainda o nosso eu individual, é responsável pela nossa interpretação da realidade, segundo Husserl. A fenomenologia encara como essa representação o fenômeno, e a interpretação da realidade fica a cargo da consciência. Portanto, a nossa consciência interioriza os aspectos do mundo externo, sem necessariamente ser a realidade. Essa realidade metafísica do Zen não interessa à fenomenologia, mas somente como as representações do fenômeno se dão em nossa consciência. Para tal, entende-se que a verdade aceita nas ciências nada mais é do que uma construção social, que pode ser alterada, ou até mesmo substituída, por outra que seja mais conveniente. Watts (2008, p. 14) assim define a finalidade do zen: Em resumo, a finalidade do Zen é focalizar a atenção na própria realidade, em vez de dirigi-la para as reações intelectuais e emocionais à realidade – essa realidade é aquilo que está sempre mudando, que está sempre crescendo, algo indefinível chamado “vida”, que não cessará por um momento que seja para nós, a fim de que a encaixemos satisfatoria-

mente num rígido sistema de classificação e de ideia.

A fenomenologia surge como uma alternativa do mundo contemporâneo ao modelo até então demasiado racional das ciências naturais. Como vimos, esse modelo foi o único aceito no período pós industrialização. A sociedade passou a encarar a racionalidade como única alternativa possível para alcançar a verdade. As ciências humanas foram relegadas para segundo plano, principalmente pelo seu caráter mais subjetivo de análise do mundo. Esse pensamento ainda é muito visto nos dias de hoje. Em maio de 2011, em uma palestra para o Google Zeitgeist, em Hertfordshire, na Inglaterra, o renomado físico Stephen Hawking declarou que a filosofia estaria morta, que os principais dilemas filosóficos só poderiam ser respondidos, com o auxílio da física e da tecnologia: Muitos de nós não nos preocupamos mais com essas perguntas, entretanto, questões como ‘de onde viemos?’ ou ‘para onde vamos’, que eram tradicionalmente questões filosóficas, hoje são recorrentes exclusivamente para a ciência. Os filósofos atuais não têm estudado de acordo com as descobertas mais recentes da física, e por isso, a filosofia está morta hoje.

Essa visão racional de mundo é costumeira no ocidente, especialmente em períodos da contemporaneidade, porém, o Zen critica essa posição demasiada racional de analisar o mundo. Watts (2008, p.14) afirma que o “método do Zen é o de desconcertar, excitar, confundir e exaurir o intelecto” sobrando somente que a compreensão é pensar sobre algo, fará o mesmo com as emoções, até que sobre somente o entendimento de que emoções são sentimentos de algo. Mas esse algo não é a realidade, é somente a interpretação do seu Eu inferior (ou consciência), acerca da realidade. De acordo com Silva e Homenko,

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GNARUS - 186 No Budismo, a mente perceptiva é apenas um órgão dos sentidos, ao qual acrescentamse os outros cinco (visão, audição, olfato, paladar e tato) que poluem a nossa noção da verdade, conceito bem expresso por Gautama Buda no Surangama Sutra*11 (consciência), quando comparou a mente perceptiva (consciência) a um lenço de seda com seis nós. O empenho do Budismo consiste em eliminar essa mente perceptiva contaminada e condicionada, com todo o seu acervo de recordações, sensações, e conquistar a plena Liberdade. As citações, resumidas, possibilitam uma compreensão mais clara do idealismo budista e por conseguinte, da doutrina budista exposta pelo Zen.

A meditação, ou Zazen, é a forma de acesso da realidade, e a partir dessa realidade, a consciência muda, transcende: deixa de ser individual e passamos a encarar o mundo com novos olhos, entendendo que todos somos parte de um todo, e nesse sentido, não há individualidade. A individualidade é como gotas de chuva, que enquanto caem acreditam que são partes independentes. Porém, quando cai no lago, e esse cair no lago é tomar a consciência búdica, ela se vê como parte de um algo muito maior, e não se vê mais separado do todo (CARINI, 2009). O interesse pela meditação está alcançando também a academia: há estudos que comprovam não só os benefícios da meditação, mas também a alteração na fisiologia e anatomia cerebral (KOZASA et al, 2012). E ganha também o ambiente escolar, onde a prática tem sido inserida com sucesso em várias escolas do Brasil. Porém, para efeito de ilustração, utilizamos o estudo desenvolvido por Gomes (2015) por se tratar de um estudo mais próximo de nossa realidade escolar. Ele inseriu a meditação “laica” na escola Pedro II na cidade de Petrópolis, em uma turma de ensino noturno de Educação de Jovens e adultos. Os resultados encontrados foram uma maior percepção de bem-estar, e principalmente ajudou na percepção da relação entre corpo e mente.

Simas (2015), em um estudo com crianças do 6º e 7º ano do ensino fundamental de uma escola de São Gonçalo, observou, inicialmente, mesmo sem ter concluído o estudo, que um dos benefícios da meditação foi o estabelecimento de afetividades entre os alunos e entre aluno x professor. Ao observar os resultados desses e de outros trabalhos, podemos verificar que os alunos têm, em sua maioria, uma percepção da meditação como sendo algo que relaxa, promove a paz e a tranquilidade. E essas experiências aguçaram a curiosidade dos alunos, o que poderia ser uma sugestão de trabalhos futuros abordando esta temática. Em tempos de total inversão de valores, falta de respeito com o próximo, bem como com os professores, quem sabe esta prática não seria uma alternativa para ao menos melhorar um pouco mais o ambiente escolar?

Conclusão O pensamento ocidental nunca está no momento presente, o agora se torna um pequeno lapso entre o que já foi e não mais o é e o que está porvir. Estamos a todo momento ou concentrado no futuro, pensando nas possibilidades futuras, numa idealização de um tempo que não existe ainda, e que poderá nunca existir; ou no passado, nos arrependimentos das ações que tomamos ou das medidas que deveriam ser tomadas e que nunca foram feitas. A base do pensamento Zen é concentrar-se no agora: a única realidade que existe é esse momento. Portanto viver no passado, ou no futuro é desperdício de experiência, desperdício de vida, desperdício de existência. O único momento em que eu sou dono do meu destino é o agora. Porém esse agora não é querer trazer o futuro para agora, mas sim concentrar na existência, na vivência

Gnarus Revista de História - VOLUME X - Nº 10 - SETEMBRO - 2019


GNARUS - 187 imediata. Procuramos traçar um paralelo entre algumas linhas de pensamento que procuram dar sentido para a vivência do homem, cada uma dentro de sua racionalidade e com suas peculiaridades. Longe de esgotar o tema, pelo contrário, há um todo acadêmico grandioso para ser explorado, e uma semente de estudos talvez possa florescer ainda mais a partir desta análise.

KOZASA, Elisa Harumi et al. Pesquisas em cérebro e Práticas Contemplativas. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, v. 7, n. 1, p. 17, 2012. MOSER, Paul K. A Teoria do Conhecimento: uma introdução temática. São Paulo: Martins Fontes, 2008. OLIVA, Alberto. Crítica da arrogância pura: a filosofia mais perto da pura retórica que da ciência dura. Prometeus Filosofia, v. 2, n. 3, 2013. OLIVA, Alberto. Teoria do conhecimento. Zahar, 2011.

Lincoln Mansur Coelho é professor de História e Filosofia, mestre em Ensino pela Universidade Federal Fluminense, docente no Ensino Médio em escolas Públicas e Particulares no Estado do Rio de Janeiro.

PARREIRA, Walter Andrade. Fenomenologia e espiritualidade: consciência e meditação. Memorandum: Memória e História em Psicologia, v. 27, p. 61-72, 2014.

Adílio Jorge Marques é Prof. Adjunto do INFES/Universidade Federal Fluminense. Possui doutorado em História e Epistemologia das Ciências e Pós-Doutorado na mesma área.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista crítica de ciências sociais, v. 63, p. 237-280, 2002. _____________________. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Epistemologias do Sul. Portugal, Coimbra: Almedina, p.71-94, 2009. SILVA, Georges da; HOMENKO, Rita. Budismo: psicologia do autoconhecimento. São Paulo: Pensamento, 1998.

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SIMAS, Debora Cristina Vieira de. A Meditação Laica Educacional e a afetividade nas relações escolares. Meditação Laica Educacional, n. 1, 2015. SUZUKI, Shunryu. Mente Zen, mente de principiante (Zen Mind, Beginner’s Mind): Charlas informales sobre la Meditaci¢ ny la Practica del Zen. Shambhala Publications, 2015. WATTS, Alan Wilson. O Zen E a Experiência Mística. São Paulo: Cultrix, 1960. WATTS, Alan. O espírito do Zen. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008.

HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Tradução Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 2000.

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