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EXÉRCITO


Ano V - Volume VIII - Nº 8 – set. - 2017

Equipe de Redação: Editores:

Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS)

Pesquisa:

Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Profª Cindye Esquivel (FIS) Prof. Renato Lopes (UNIRIO) Prof. Rafael Eiras (UCAM)

Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Prof. Dr. Júlio Gralha (UFF) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Adílio Jorge Marques (UFF) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS) Profª. Martha Souza (MEC) Revista Eletrônica Acadêmica/Gnarus Revista de História. Vol.8, n.8 (Set/Dez 2017). Rio de Janeiro, 2017 [on-line]. Semestral. Gnarus Revista de História Disponível em: www.gnarusrevistadehistoria.com.br ISSN 2317-2002 1. Ciências Humanas; História; Ensino de História

https://www.facebook.com/gnarusrevistadehistoria/


GNARUS |3

Sumário Ao leitor .................................................................................................................................................................................................................. 4 Fernando GralhaErro! Indicador não definido.

ARTIGOS:

Giuseppe Cambiano e o tornar-se homem no mundo grego....................................................................................................................... 6 Danielle Guedes dos Santos e Manoela de Gusmão Boareto Erro! Indicador não definido. A higienização social no Brasil e o papel do manicômio (1964-1980) ...................................................................................................... 13 Glaucia de Souza Dias Entre uma história mundial e múltiplas histórias: a importância das histórias conectadas para um mundo de histórias plurais .... 23 Fernanda Chamarelli de Oliveira Tradição ou invenção: a relação dos maracatus de “nação” com os xangôs de Pernambuco ............................................................... 31 Rafael Eiras Breve discussão sobre a fenomenologia em Kant e Husserl ........................................................................................................................ 38 Adílio Jorge Marques, André Vinícius Dias Senra e Leonardo Vaicberg Cristianismo primitivo: sua emancipação da tutela judaica e sua difusão (século I D.C.) ...................................................................... 43 Flávio Henrique Santos de Souza Drummond: um poeta político em uma militância apartidária .................................................................................................................. 55 Cindye Esquivel Vieira Exército brasileiro: um convidado autoritário – 1900/1955........................................................................................................................ 63 Ronaldo Rodrigues Coelho Francisco: o poverello de Assis ......................................................................................................................................................................... 73 Tadeu Góes Mão-de-obra indígena na Amazônia colonial ............................................................................................................................................... 86 James O. Sousa Mulher negra no Brasil: Um estudo do quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus (1955-1960)................................................103 Rebeca de Oliveira Santana Cerqueira e Carlos Alberto Pereira Silva Tecelagem e Métis: subterfúgios da rainha micênica Penélope ..............................................................................................................121 Cely Nathany Evangelista Teoria e História: o olhar de Karl Marx para as lutas e ideologias na França de Luís Bonaparte (1848 – 1870) ..............................127 Leonardo Mello Silva

COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA

O cinema soviético: História, teoria, realismo socialista............................................................................................................................137 Renato Lopes História e cinema: uma análise do filme “Calígula” ....................................................................................................................................153 Danielle Guedes dos Santos O cinema de Serguei Eisenstein – uma escrita histórica ............................................................................................................................159 Rafael Eiras

COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA

Arte e política na fotografia de Tina Modotti. ............................................................................................................................................166 Fernando Gralha

COLUNA: A HISTÓRIA NOS QUADRINHOS

Joe Sacco: algumas considerações sobre a reportagem em quadrinhos................................................................................................173 Renato Lopes

ENSAIO

Diálogo entre as duas culturas.......................................................................................................................................................................179 Adílio Jorge Marques

MONOGRAFIA

Teatro experimental do Guayra: tentativas de popularização do teatro em Curitiba entre 1956 a 1961. ......................................185 Maybel Sulamita de Oliveira

INTERDISCIPLINARIDADE:

Ensino de física e de História da ciência com jogo de tabuleiro. ............................................................................................................216 Adílio Jorge Marques e Samantha de Lemos Souza Erro! Indicador não definido. Saúde e segurança na indústria extrativa brasileira: uma breve análise de resultados entre Brasil e Austrália ..............................225 Romeu Ferreira Emydio e Luiza Helena Pernambuco de Fraga Rodrigues

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


GNARUS |4

AO LEITOR

A

História, desde os Annales1, tem como algumas de

A História é constituída, então, em um procedimento de

suas propriedades basilares o debate, a discussão, a

reflexão que nos induz a procura das respostas às questões

polêmica, a argumentação. A História move-se no

que nos deparamos no transcorrer da nossa própria

questionamento das ideias e dos conceitos, em sua formulação e reformulação. Move-se na linguagem e pela linguagem, no logos.

experiência. Desta forma, incitamos o incremento do nosso próprio pensamento crítico. O estudo da História, de seus conceitos e

É imperativo enxergar a História não como um saber

argumentos nos equipa de pontos de partida consistentes,

completo, pronto, e sim como uma procura. Lidar com

além de instrumentos intelectuais com os quais poderemos

História é uma atitude questionadora, e não ter monopólio da

desenvolver nossas próprias reflexões.

verdade ou do conhecimento. O inquirir nos transforma, nos

Neste sentido, a Gnarus chega ao seu oitavo número

provoca mudanças de atitude em relação a nós mesmos, nos

priorizando a grande questão: Como sair do próprio

impelindo a apreender uma nova visão dos acontecimentos.

pensamento e recuperar o mundo? Longe da pretensão de

Possivelmente essa procura seja infindável, mas é a própria

responder a todas perguntas, a Gnarus deste semestre

busca que nos torna amantes do saber (sophoí).

ambiciona, novamente, fomentar o cogito, o pensamento

Advertimos que a vida não refletida, a vida do senso

reflexivo tão necessário em períodos de crise, é nestes em que

comum, como nos disse Platão, é a vida que não vale a pena

se constitui o momento de olhar para trás, reconquistar e

ser vivida. Essa vida não refletida precisa dar lugar à

repensar nosso caminhar. Almejamos ser um dos pontos de

consciência crítica, ao questionamento de nossos valores e

encontro desta reflexão.

crenças, à interpelação do que nos é transmitido como

Para tanto, nós que somos antes de tudo um ponto de

verdadeiro, à análise do que nos é transmitido para que

encontro de História, apresentamos, mais uma vez, através de

possamos proceder à interrogação ou à discussão e à busca da

nossos pensantes colaboradores um menu bem variado das

justificativa daquilo que nos é oferecido.

práticas e ideais humanos, aqui, juntos, caminharemos por

1

de atividades humanas até então pouco investigadas, rompendo com a compartimentação das Ciências Sociais (História, Sociologia, Psicologia, Economia, Geografia humana e assim por diante) e privilegiando os métodos pluridisciplinares.

A chamada escola dos Annales é um movimento historiográfico que se constitui em torno do periódico acadêmico francês Annales d'histoire économique et sociale, tendo se destacado por incorporar métodos das Ciências Sociais à História; renovou e ampliou o quadro das pesquisas históricas ao abrir o campo da História para o estudo

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


GNARUS |5 gregos e romanos, loucura e poesia, maracatus e cristianismos, escravidão e liberdade, teoria e prática, filosofia e teatro,

e acrescentando às intenções e pretensões

reflexivas, trazemos neste número uma novidade, a seção “Interdisciplinaridade” na qual recebemos trabalhos para além da área da História, as já tradicionais discussões sobre cinema, fotografia e quadrinhos também continuam presentes, sempre dentro da máxima reflexão cartesiana, “cogito, ergo sun”, o fundamento racional, o ponto de partida para a construção de todo o pensamento. É nesta miríade de possibilidades de trabalhos, escritas e discursos que flutuam no pequeno universo deste número, que tornamos a fazer o mesmo convite que fizemos nos números anteriores, venham ler nossos narradores. E só para lembrar, narrar nos remete para narro (fazer conhecer, contar) um verbo derivado de gnarus, que significa ‘que conhece’, ‘que sabe’. O conhecimento é um nascer, um surgir algo que não havia, o conhecer é um gerador de nascimentos. É esta nossa ambição em mais uma empreitada, narrar a História, fazer conhecer, dar voz a pesquisadores, professores e alunos, divulgar a produção acadêmica historiográfica e estimular a produção do fazer conhecer, da construção da memória, que nos livra do esquecimento, do não ser. Para que este objetivo seja alcançado é preciso que você também, caro leitor, cumpra a sua parte tornando-se consumidor da literatura aqui editada, divulgando e utilizando estes conteúdos para um número maior possível de colegas e alunos porque, afinal, a utilização do conhecimento é dever de todos, é o que nos leva enfim ao humano em toda sua humanidade e desumanidade e a nossa inexorável condição, a de viver e construir nossas memórias na fuga da morte da alma, o esquecimento. Esperamos que nos acompanhem em mais uma viagem pelo rio da A-Letheia.2

Fernando Gralha

2

Sobre o A-Letheia ver “Ao Leitor” Gnarus, nº 1.

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GNARUS |6

Artigo

GIUSEPPE CAMBIANO E O TORNAR-SE HOMEM NO MUNDO GREGO Por Danielle Guedes dos Santos e Manoela de Gusmão Boareto

RESUMO: Os gregos antigos conceberam sua visão de mundo pautada nas crenças simbólicas que expressavam as representações dos desejos dos deuses e da herança de seus ancestrais. Como fatores necessários a inserção dos jovens em sociedade, os ritos de passagem e as etapas para se tornar homem na Grécia Antiga, diferiam para homens e mulheres. A primeira questão a ser superada é a sobrevivência ao parto e os primeiros anos de vida do recém-nascido, visto que as condições precárias de higiene e péssima alimentação proporcionavam altas taxas de mortalidade infantil. A partir disso, o presente artigo versa em analisar o discurso do autor Giuseppe Cambiano, na obra de Jean-Pierre Vernant intitulada “O HOMEM GREGO”, estabelecendo que suas considerações sobre “tornar-se Homem” para os gregos, requeriam uma intensa preparação do corpo e da intelectualidade como formas de encontrar e ocupar seu espaço dentro do grande oikos social pré-estabelecido pelo toque dos deuses em seu destino. Palavras-Chave: Atenas – Esparta – Ritos de Passagem – Vida Adulta – Mundo Grego – Grécia.

Introdução:

de formação física e intelectual, visto que, como em

“Um homem que, desde a infância até à idade adulta, segue um percurso obrigatório de provas e de etapas para se tornar homem no sentido pleno do termo, em conformidade com o ideal grego da realização do ser humano.”1

T

qualquer outra sociedade antiga a mortalidade infantil era preocupante, “não rara na Grécia antiga, devido a partos prematuros ou irregulares e depois a doenças derivadas da alimentação inadequada ou da falta de higiene” 2.

ornar-se

Homem

no

mundo

grego,

“Nascer em boas condições físicas permitia escapar à eliminação, a que não se hesitava em recorrer no caso de deformidades, que eram sentidas pelos pais e por toda a comunidade como uma espécie de castigo divino de mau augúrio.”3

correspondia a percorrer etapas em sua caminhada ao amadurecimento. De fato,

sobreviver ao parto e aos primeiros anos de vida, era condição necessária para alcançar esse objetivo

CAMBIANO, Giuseppe. TORNAR-SE HOMEM. IN: VERNANT, Jean-Pierre. O HOMEM GREGO. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 7. 1

2 3

Ibid, idem, p. 77. Ibid, idem, p. 77.

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GNARUS |7 Em alguns casos, nem mesmo

a

de

física

conhecimentos dava-se

saudável era garantia para

de pai para filho ou do

que o pequeno indivíduo

mestre para o discípulo.

fosse eliminado. Segundo

As

Cambiano, em Esparta as

aprendizagens

crianças recém chegadas

fundamentais para a

ao mundo que tinham

separação

deformidades,

filhos dos pobres e dos

eliminadas

forma

transmissão

após

eram uma

decisão dos membros mais

Giuseppe Cambiano

práticas

entre

ou eram os

ricos. Enquanto os filhos de

membros

da

velhos da família ao qual o pai da criança

aristocracia “entravam mais cedo para a escola e

pertencia4. Em Atenas, essa eliminação poderia ser

saíam mais tarde”9, recebendo uma alta gama de

utilizada através da exposição dos “indesejáveis”,

instruções voltadas para as ciências e filosofia, a fim

cabendo ao pai optar por esse ato, podendo ocorrer

de exercer funções do magistrado e participação

“num vaso de barro ou noutro recipiente, longe de

corrente na vida política, tornar-se homem para os

casa, muitas vezes em locais áridos, fora da cidade,

cidadãos mais pobres consistia no “desempenho de

onde podia morrer de fome ou dilacerado pelas

actividades artesanais ou com o trabalho no

bestas” 5 , sendo lançada a sua própria sorte por

campo”10, tendo como oficina o espaço de sua casa

trazer uma “marca”, um sinal de insatisfação dos

onde “se procedia a transmissão dos segredos do

deuses para com aquela família. Ou até mesmo por

oficio”11.

representar um risco para o patriarca, como ocorre no mito6 de Édipo7 presente na tragédia grega de Sófocles8, onde este seria o responsável pela morte de seu pai Laio.

A diferenciação entre os sexos, também marcam as concepções acerca do determinante da vida adulta. Para as mulheres “de uma forma geral e, sobretudo, em Atenas, uma mulher estava

Como estabelecimento de parte dos ritos de

integrada na cidade não como cidadã, mas como

passagem para inserção na vida grega, a

filha ou mulher de um cidadão”12, tendo em vista

4

acabou por se casar com a rainha viúva Jocasta, que era sua mãe. 7 MULROY, David. Entre Deuses e Heróis: as origens da mitologia. Tradução de Marcello Borges. São Paulo, Cultrix Editora, 2015, p. 102. 8 Sófocles (c.497 -405 a.C), filho de Sofilos, nascido em Colono nas proximidades de Atenas. Fez grande sucesso ao longo do século V, representando em suas peças trágicas o universo que rodeava a Atenas desse período. Dentre suas 115/130 obras, restaram apenas 7 obras trágicas completas: Ajax (a mais antiga conservada), Antígona (c. 442 a.C), As Tranquinianas, Édipo Rei (c. 427 a.C), Electra (c. 427 a.C), Filoctetes (c. 409 a.C) e Édipo em Colono (representação póstuma 401 a.C), das demais obras e peças restam somente fragmentos. THIERCY, Pascal. Tragédias Gregas. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre:L&PM, 2011, p.20. 9 CAMBIANO, 1994, p. 80. 10 Ibid , idem, p. 80. 11 Ibid, idem, p. 80. 12 Ibid, idem, p. 81.

Ibid , idem, p. 77. Ibid, idem, p.78 6 Fonte: Sófocles, Édipo Rei (Tragédia Grega Clássica). Filho do rei Laio e da rainha Jocasta de Tebas. Ao saber pelo oráculo que seu filho Édipo o mataria quando crescesse, Laio ordenou que o pequeno Édipo fosse abandonado à própria sorte em uma montanha com um prego fixado em seus tornozelos. O servo de Laio designado para isso acabou entregando o bebê para um pastor corinto, que levou Édipo até o casal real de Corinto, Políbio e Mérope, criando Édipo como seu filho legitimo. Édipo ao crescer, consultou o oráculo de Delfos, dizendo a Édipo que o mesmo estaria destinado a desposar sua mãe, gerando filhos profanos e matar seu pai. Édipo confuso foge de Corinto. Resolveu ir para Tebas, mas na verdade, Édipo não sabia que ali se concretizaria sua profecia. Em uma briga na entrada da cidade, Édipo mata um idoso que tentará goleá-lo, bem como seus servos, sobrevivendo apenas um, que avisou a cidade sobre a morte do rei Laio pelo viajante. Após enfrentar a Esfinge e seu enigma, Édipo saiu vencedor e a Esfinge se matou. Os cidadãos de Tebas proclamaram Édipo seu novo rei e ele 5

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GNARUS |8 que “a passagem à idade adulta era marcada pela

especificamente o capítulo III intitulado “Tornar-se

etapa decisiva do matrimonio”

Homem”, que leva a assinatura do Historiador e

13

, apenas

transferindo a tutela feminina do pai para o marido.

Filósofo Giuseppe Cambiano

Em Atenas do período clássico, a educação das

estudo da História Antiga no campo cultural, na

jovens ficou restrita as mães ou parentes mais

filologia e literatura antiga.

18

especialista no

velhas do mesmo sexo, ficando responsáveis para transmitir os ensinamentos da vida diária, as histórias do seu povo e as práticas religiosas, pois

A preparação para a vida adulta: “Entre finais do século VIII e início do século VII a. C. a distância entre a criança e o adulto era também realçada pelo facto de os mortos, até aos dezesseis anos, serem inumados, e os adultos serem incinerados, sujeitando-se portanto a um processo que marcava a sua passagem da natureza para a cultura.”19

não existiam escolas para crianças e adolescente do sexo feminino14. “Esparta tinha assumido para vários intelectuais o papel de modelo de cidade capaz de preparar melhor os jovens para a guerra”.15 Para os jovens do sexo masculino em Esparta, tornar-se homem se configurava na preparação de sua consciência para a guerra, bem como na sua resistência física e desligamento de sua família. “Eram as armas e não as mães que os educavam, não os enfaixando e habituando-os a uma alimentação austera, a não terem caprichos e a não temerem a escuridão e a solidão” 16, desta forma podemos notar a rigidez e frieza ao qual os jovens espartanos eram acondicionados, destacando a entrada na fase adulta ainda muito novos, acerca dos 7 anos de idade, quando ocorria a viagem

17

que os

estabeleceria como homens de fato, colocando os rapazes agrupados para que pudessem provar sua

Revelando as diferentes formas de trato com a morte diante da idade do falecido, deixando informações sobre os diferentes tipos de passagem da vida para a morte na Grécia Antiga, Giuseppe Cambiano historiador italiano fala da passagem que marcava o fim da vida. Desta forma podemos perceber a diferença de tratamento para aqueles que não passaram por rituais de transição comuns na época, entre a infância e a fase adulta. “Na Grécia antiga, tornar-se homem não equivalia apenas a tornar-se adulto” 20 , ocorriam rituais de passagem que por vezes estavam ligados a origem do jovem. “Em Atenas, isso tinha sido sancionado por uma lei

força, habilidades em combate e sobrevivência. Partindo

das

análises

estabelecidas

anteriormente, o presente trabalho pretende analisar as diferentes formas de estabelecimento do principio grego de tornar-se homem de fato na antiguidade, tendo como base de análise o livro “O

Homem Grego” de autoria de Jean-Pierre Vernant,

proposta por Péricles, em 451-450 a. C., segundo a qual só os filhos de pais atenienses é que podiam usufruir do direito de cidadania” 21 . Os rituais de passagem tinham grande importância para a visibilidade social e aceitação do jovem no meio em que o mesmo vivia. Os jovens que não tinham

13

18

14

http://www.accademiadellescienze.it/accademia/soci/giusep pe-cambiano Consultado em 29 de julho de 2016. 19 Ibid, idem, p. 77. 20Ibid, idem. p. 78. 21Ibid, idem. p. 78.

Ibid, idem, p.81. Ibid, idem, p. 83. 15 Ibid, idem, p. 85. 16 Ibid, idem, p.85 17 Ibid, idem, p.85.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


GNARUS |9 origem cidadã eram excluídos dos locais de acesso

afazeres domésticos, cuja participação no meio

dos ritos e aos escravos a iniciação era erradicada.

adulto das jovens e da própria mulher enquanto

“Nas cidades gregas, ser escravo significava serse excluído da participação na vida política, privado de muitos direitos civis, de uma grande parte das festas religiosas da cidade, e também das palestras e dos ginásios, onde se procedia a educação dos futuros jovens cidadãos. Para um escravo tornar-se adulto não implicava um salto qualitativo ou uma preparação gradual, como acontecia com os filhos dos cidadãos livres.”22

O

estabelecimento

da

educação

e

adulta pode ser analisado na seguinte passagem: “Desde o nascimento que as jovens passavam grande parte da sua vida em casa, entregues aos cuidados da mãe ou das escravas. A urbanização crescente, a partir da criação da polis – (...) –, tinha provocado uma transferência sensível das actividades da mulher para o interior da casa, reservando para os homens a possibilidade de se movimentar livremente no espaço exterior. Só as mulheres mais pobres é que eram obrigadas a sair de casa para irem trabalhar nos campos ou como vendeiras. Em casa, as jovens aprendiam desde muito cedo a fiar e a cozinhar. As festas religiosas da cidade eram a única oportunidade de saída, dado que os simpósios eram proibidos a mulher que não fossem cortesãs, bailarinas ou flautistas.”

o

acompanhamento do desenvolvimento do efebo só era permitido aos cidadãos. Para os cidadãos mais

25

pobres a iniciação em um oficio era uma forma de ritual de passagem. Essa atividade era por vezes a profissão que o mesmo iria desenvolver ao longo de

A mulher mesmo livre era dependente e tutelada

sua vida. “As atividades artesanais não estavam

por um homem, desta forma os rituais de passagem

exclusivamente nas mãos dos escravos; muitos

femininos estão ligados ao casamento e a religião.

estrangeiros e também cidadãos, sobretudo menos

“Assim, todos os anos, durante as Arreforias, duas raparigas de família nobre, entre os sete e os onze anos, começavam, cerca de nove meses antes das Panateneias, a tecer o peplo, que nessa ocasião, seria oferecido a Atena” 26.

abastados, que se dedicavam a essas actividades” 23. Entre os escravos e metecos o trabalho era uma forma de entrada no universo dos adultos. “Como acontecia com os escravos e os metecos a aprendizagem precoce tendia a separar os filhos dos cidadãos pobres das crianças da sua idade para os inserir de imediato num mundo adulto, sem percorrer ou percorrendo apenas limitadamente um itinerário gradual de integração no tecido social, político e militar.” 24

As Arreforias eram festas religiosas realizadas em honra da deusa Atena, nas quais as jovens serviam durante um certo período no templo da deusa e teciam sua túnica chamada peplo. Antes das

Panateneias, festas que tinham como objetivo também honrar Atena e nesse evento era comum

Em Esparta o trabalho laboral ficava com os

atividades voltadas para o atletismo. Esses eventos

hilotas (servos) e com os periecos (estrangeiros). O

são ligados as rituais de passagem comuns as jovens

ensino em alguma atividade laboral era uma forma

atenienses.

de educação para os menos abastados, além de ser um acesso como adulto.

O casamento era outro grande ritual de passagem no mundo grego para a mulher, em Atenas a jovem

Os rituais de passagem entre os sexos eram bem

passava da casa do pai para a casa do esposo.

distintos, no caso da mulher, o desenvolvimento dos

Tornar-se adulta, deixar de ser parthenos,

ritos pode ser observado dentro de uma esfera de

significava converter-se em esposa e mãe potencial de futuros cidadãos do sexo masculino, o

22Ibid,

25Ibid,

23Ibid,

26Ibid,

idem. p.79. idem. p. 80. 24Ibid, idem. p. 81.

idem, p. 82. idem, p. 82.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 10 homossexualidade desempenhava uma função essencial na passagem para a idade adulta. “30

matrimonio era algo esperado na vida das mulheres, casando-se cedo e com homens mais velhos. A falta de educação é algo levantado pelo autor no texto segundo Xenofonte27 como justifica para o casamento precoce entre as meninas. Em Esparta, as jovens recebiam uma educação semelhante à educação ofertada aos meninos: “(...) as crianças do sexo feminino, tão bem alimentadas como as do sexo masculino, mais do que serem ensinadas a tecer e a cozinhar, que seriam sempre ocupações de escravas, não de mulher, eram desde muito cedo ensinadas a exercitar-se, nuas e na presença dos homens, na corrida, na luta, no arremesso do disco e do dardo” 28.

A

atividade

denominada

syssition,

está

relacionada com a iniciação do jovem por um homem mais velho nas práticas sexuais, essa pratica também é chamada de Pederastia e era praticada em toda a Grécia. A relação homossexual tinha um importante papel na vida social dos homens gregos

O casamento em Esparta era imposto na sociedade, deveriam ter filhos e a convivência entre o casal tinha como único propósito a geração de filhos, seguem no texto algumas informações sobre o casamento espartano. “O matrimônio era algo considerado obrigatório, como condição essencial para a reprodução dos futuros soldados (...) mesmo após as núpcias, e até cerca dos trinta anos, o marido não convivia com a mulher, mas como também acontecia em Creta, fazia a vida com membros de sua classe etária e só tinha com a esposa encontros casuais com fins procriativos”. 29

O homem espartano não mantinha muito contato com a sua esposa, as suas relações sociais eram entre homens, ou seja, com os iguais e as relações sócias espartanas eram praticas comum no mundo grego. Incluindo o processo de iniciação na vida adulta. “A prática dos syssition era corrente no mundo grego; está também documentada em Mileto, Turis, Mégara, Tebas e noutras cidades, entre as quais, e em especial, Creta, onde a

Xenofonte (em grego antigo: Ξενοφῶν, transl.:Xenophō̃n; ca. 430 a.C. — 355 a.C.) foi soldado, mercenário e discípulo de Sócrates. Ele foi autor de inúmeros tratados práticos sobre assuntos que vão desde equitação a tributação, ficou 27

EFEBO de Kritios, h. 480 a.C

“a dimensão pedagógica da relação homossexual conhecido pelos seus escritos sobre a história do seu próprio tempo e pelos seus discursos de Sócrates. 28Ibid, idem, p. 83. 29Ibid, idem, p. 86. 30Ibid, idem, p.87.

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G N A R U S | 11 contribuía para a sua formação

moral e

intelectual.”31

educador traz a figura de Platão 39 , que fala da diferente forma de educação de acordo com o sexo. “(...) homens e mulheres percorriam um itinerário educativo comum, para desempenharem, como adultos, as mesmas funções: isso era valido não só para a música e a ginastica, mas também para o treino militar e para a preparação filosófica. Nas Leis, a diferença mais salientar entre os dois sexos parecia consistir no facto de as mulheres se casarem pelo menos dez anos mais cedo do que os homens e ascenderem aos cargos públicos dez anos mais tarde, por volta dos quarenta anos.” 40

Em Atenas e em outros lugares da Grécia além de centros de formação como ginásios os filhos dos cidadãos livres frequentavam “o didaskaleion, a escola, onde aprendiam a ler e a escrever”32, desta forma a educação como hoje conhecemos teve seu início na Grécia antiga onde as podiam ir à escola. O órfão tinha os seus estudos custeados por um tutor, órfão na Grécia antiga é aquele que não tem pai33 e no caso das crianças que perdiam seus pais

Embora a filosofia tenha permanecido como

em guerra a cidade de Atenas os mantinha até a

pratica masculina existem documentos que

fase adulta, “os únicos órfãos privilegiados eram os

informam a presença feminina em alguns centros

filhos dos que tinha morrido na guerra, para os

filosóficos como na escola de Epicuro e na escola

quais Atenas tinha determinado a partir de meados

dos Cínicos. A paideiaque tem como pergorrativa

do século V a. C., que fossem mantidos e

formar o homem adulto, “caracterizado pela plena

educados”.34

racionalidade e pela estatura erecta” 41 , logo o

O serviço militar era a forma de dar início ao “ingresso de pleno direito na cidadania” 35 , mas o ginásio ainda era o principal centro de vida dos efebos. “Nesses ginásios, porém, não se praticava apenas a ginástica; havia também aulas e conferencia de filósofos, mestres de retórica, e por vezes também de médicos”.36

processo de maturação de corpo e mente era necessario para o desenvolvimento do homem. Diferentes escolas filosoficas e praticas educativas ao longo do tempo na Grécia Antiga influenciaram o tornar-se homem do jovem grego. A filosofia e a retorica foram praticas educativas de grande influência no mundo grego chegando até os romanos.

No século V a. C., os sofistas surgem como um novo modelo de instrutor. “Não se dedicavam a um

cidadão e com o hoplita. Esse novo modelo de

Danielle Guedes dos Santos é Pós-Graduanda em História Antiga e Medieval pela UERJ. Graduada em História pelas Faculdades Integradas Simonsen. Pesquisadora pelo Centro de Memória Realengo Padre Miguel (2015-2016). Manoela de Gusmão Boareto é PósGraduanda em História Antiga e Medieval pela UERJ. Pós-Graduada em História da Igreja pela São Bento do Rio de Janeiro. Graduada em História pela Universidade Gama Filho. Graduada em Teologia pelo Instituto de Teologia e Pesquisa Solo Cristo.

31Ibid,

38Ibid,

32Ibid,

39Foi

ensino regular e continuo” 37 , os sofistas tinham como pratica dar aulas em público visitando cidades ao longo de suas atividades. Entre o século IV e III a. C. surge o filosofo como um “novo modelo de homem” 38 , fazendo uma comparação com o

idem, p. 91. idem, p. 91. 33Ibid, idem, p. 88. 34Ibid. idem, p. 91. 35Ibid, idem, p. 93. 36Ibid, idem, p. 94. 37Ibid, idem, p. 95.

idem, p. 97. um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. 40Ibid, idem, p. 98. 41Ibid, idem, p. 99.

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Bibliografia: CAMBIANO, Giuseppe. TORNAR-SE HOMEM. IN: VERNANT, Jean-Pierre. O HOMEM GREGO. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa, Editorial Presença, 1994. MULROY, David. Entre Deuses e Heróis: as origens da mitologia. Tradução de Marcello Borges. São Paulo, Cultrix Editora, 2015. THIERCY, Pascal. Tragédias Gregas. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre:L&PM, 2011.

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Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 13

Artigo

A HIGIENIZAÇÃO SOCIAL NO BRASIL E O PAPEL DO MANICÔMIO (1964-1980) Por: Glaucia de Souza Dias

Resumo: Este trabalho tem por objetivo estudar as relações de poder envolvidas na determinação do que é normal e do que é o louco na sociedade, para tanto delimitamos a história do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais como espaço de estudo e o período de 1964-1980, pois é a partir deste período que começa o regime autoritário brasileiro e em 1979 foi quando as primeiras denúncias começam a aparecer e evidenciar o caso. Palavras Chave: Higienização, loucura, poder

Introdução

determinada construção da moral2 que rege o

“O gênio, o crime e a loucura, provêm, por igual, de uma anormalidade; representam de diferentes maneiras, uma inadaptabilidade ao meio.” (Fernando Pessoa)1

grupo social, e é esse meio que determina, condena, exclui e pune o “louco”. O louco geralmente não tem a percepção de desencaixe com o mundo, mas o mundo tem a necessidade de

O

conceito de loucura é moldado por diversos campos sociais tais como: religiosos, médicos, familiares, políticos

entre outros. A loucura pode ser descrita como uma relação desajustada com o meio, normas e relações sociais. As relações sociais tendem a ser

segrega-lo do meio, o motivo é que a loucura causa um desajuste, é o “outro”3 que torna insuportável, impossível a convivência, não é ela que separa, que segrega, é a sociedade que tem por costume a auto regulação e, assim, tudo aquilo que é diferente não pode estar inserido.

normatizadas pelo próprio meio em função de uma

1

Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. - 133. 2 Princípios adquiridos através da cultura, da educação, da tradição e do cotidiano, e que norteiam comportamentos e valores dentro de determinadas sociedades e comunidades.

3

Na antropologia o outro é “aquele social” que não sou o “eu social” que não atua na mesma linha moral e ética daquele que avalia, observa e julga o observado. (SANTOS, 2004)

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G N A R U S | 14 Desde os primórdios a

não haver uma ciência

loucura ganhou diversos

especifica

significados e definições

assunto

ao longo dos tempos,

comportamental abria

entre as várias formas de

um leque para uma

ser vista, Foucault4 mostra

série de interpretações,

que no século XVII a visão

para Foucault a loucura

sobre a loucura é a que

não era uma doença

mais

pré-existente,

a

tempos de hoje, tanto na

sociedade

a

parte jurídica quanto nas

loucura

práticas

comportamento

parece

com

os

sociais,

principalmente

para a

o

questão

definia através

do do

nesta

indivíduo e então o

última, a loucura era vista

tratamento psiquiátrico

como um comportamento

era

desviante do sujeito na

desqualificar a conduta

sociedade, ao contrário

social, ética e moral do

da visão que se tinha na

louco do que tratá-lo

idade

média

onde

a

mais

de

terapeuticamente,

loucura era divina, agora o portador da loucura era

como na medicina tradicional. “O louco tinha que

visto alguém fora da razão e deveria ser excluído.

ser vigiado nos seus gestos, rebaixado nas suas

Mesmo com a variação de olhares sobre a loucura ao longo dos anos a pratica é sempre a mesma: a exclusão, o internato. No séc. XIX a loucura passa a ser vista como uma patologia e lhe é criada uma ciência para que fosse estudada e a loucura passa a ser objeto de pesquisa e como dito anteriormente o

pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado nos seus erros”,5 ou seja, ser “louco” era de certa forma uma contraposição necessária à normalidade garantidora dos costumes e morais vigentes, elaborados

e

“naturalizados”

pelas

classes

dominantes.

seu tratamento continua sendo por meio da internação. Foucault vê o comportamento humano como uma questão de construção social, nessa visão a loucura seria um comportamento atípico e o internato seria uma forma de corrigir a conduta e a moralidade do indivíduo. A questão da loucura era muito subjetiva, como não tinha um diagnóstico claro de doença era difícil separar o que era loucura

Loucura, eugenia e controle O poder sempre esteve presente nas relações louco/sociedade e louco/tratamento manicomial, esse poder fortemente empregado sobre o outro esteve presente desde a prática de exclusão até a manutenção da internação. “O poder não é essencialmente repressivo (já que “incita, suscita, produz”); ele se exerce antes de se

e o que era apenas um “desajuste” social, pois por

4

FOUCALT, 1982.

5

FOUCALT, 1975.p.57

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G N A R U S | 15 possuir (já que só se possui sob uma forma determinável – classe – e determinado – Estado); passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes (já que passa por todas as forças em relação) um profundo nietzscheísmo”6

“reconstituiu em torno deles todo um encadeamento moral, que transformava o asilo numa espécie de instância perpétua de julgamento (...) a sanção tinha que seguir imediatamente qualquer desvio em relação a uma conduta normal. E isto sob a direção do médico que está encarregado mais de um controle ético que de uma intervenção terapêutica. Ele é, no asilo, o agente das sínteses morais”.7

O poder se estabelece nas relações, ele se impõe sobre aquele que é rebaixado. Para ele sobrepor sobre o outro este precisa ser fragilizado e diminuído.

Nem todo o castigo psicológico, como a reclusão,

Os manicômios segundo o senso comum são

a identidade que lhes eram roubadas, e a

locais para onde são levados os loucos e onde são

individualidade que não tinham como manter nos

oferecidos a eles um tratamento. Foucault relata

manicômios, eram suficientes para castigar aqueles

em sua obra “A História da loucura” que desde a

que não queriam estar ali, então a partir do séc.XX

idade média se excluíam pessoas do convívio social,

os castigos físicos passaram a fazer parte do

como no caso de leprosos, por exemplo. Após

cotidiano daqueles que viviam no internato,

incorporarem à cultura da exclusão, a loucura

sempre embasados no conhecimento científico que

passou a ser um motivo para excluir indivíduos da

a psiquiatria trouxe. Neste viés foram incorporados

sociedade, por um tempo entre os séculos XIV e

à prática manicomial: duchas frias, choque térmico,

XVII por não conhecer os mistérios da loucura e

sangrias e máquinas giratórias, uma verdadeira

suas razões, eles eram vistos como diferentes,

sessão de tortura.

intocáveis. No século XVIII as pessoas que tinham um comportamento diferente dos demais já eram excluídos, entre eles os portadores de doenças venéreas,

deficientes

físicos,

libertinos

Higienismo e a psiquiatria: um caminho ao manicômio.

e

A prática higienista fortemente defendida da

prostitutas, neste mesmo período surgem os

Escola de Munique por renomados psiquiatras

manicômios. A partir do século XIX, a loucura é vista

alemães influenciou diretamente a psiquiatria no

como doença mental que deve ser tratada, porém

Brasil e serviu de base para o movimento de higiene

esse tratamento em regime de internato passou a

mental ocorrido no Brasil, esse movimento, que era

ser usado não somente para tratar enfermos, mas

amplo, visava não somente a doença mental, mas

sim num processo mais amplo de normatização

também todo o comportamento na vida social,

social. Os manicômios foram criados a partir da

educação

necessidade de haver um espaço especializado

fundamentada no higienismo passa a interferir nas

para receber esses loucos, antes tratados em alas

relações sociais cotidianas, a psiquiatria com todo o

específicas em hospitais e cadeias públicas quando

respeito que a qualidade de ciências lhe dava era

aparentemente representam um perigo iminente à

usada agora para nortear as relações sociais e o

sociedade, assim se...

comportamento da sociedade. Esse movimento

e

trabalho.

A

psiquiatria

agora

estudava e analisava clinicamente os costumes do 6

DELEUZE, 1991.p. 79

7

FOUCAULT, 1975.p.57

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Foto de alojamento do Hospital Colônia exibida no documentário Holocausto Brasileiro - Reprodução/HBO determinadas doenças e a banição de certos comportamentos, tidos como sinais do comprometimento vital. Grandes alvos destas medidas foram, entre outros, os homossexuais, os alcoolistas e os esquizofrênicos” 8

cotidiano, como o alcoolismo, homossexualismo, vadiagem e outros comportamentos que iam contra a moral e aos bons costumes, estes passaram a ser vistos como uma doença, uma doença mental. “Os problemas sociais são identificados como doentios e sua solução passa pela terapêutica, que na medicina tem como principal representação a medicalização. Tudo na sociedade, sob a ótica da higiene mental e sua lógica clinica, pode ser objeto do olhar diagnóstico, da perspectiva prognóstica e da intervenção terapêutica. Submetem-se ao escrutínio clinico as maneiras de viver, de vestirse, de falar, de caminhar, de relacionarem-se, as formas humanas de existir e veem-se estas como passíveis de medicalização quando consideradas inadequadas ou anormais. Trata-se da classificação do anormal como doente e da submissão da existência ao olhar do clínico, agora sob os auspícios da Higiene Mental.” (...) A eugenia, motor epistemológico do higienismo, preconizava que para atingir uma humanidade mais pura havia que se livrar dos vícios naturais, das doenças desabilitantes, dos problemas que se contrapõem ao desenvolvimento civilizatório conforme almejado no ideário do capitalismo moderno. Na prática, medidas preventivas passam a fazer parte do repertório psiquiátrico, tais como o aconselhamento genético, a esterilização de certas pessoas capazes de transmitir 8

OLIVEIRA, 2009 p.53 e 56

Os doentes mentais já não possuíam mais a sua característica fundamental, a razão, por isso eram usados sem nenhuma humanização, eram agora cobaias perfeitas para o estudo dessas novas teorias que o higienismo trazia. “Estas intervenções e experimentos incluiriam, em diferentes momentos, a inoculação de malária, a indução de comas insulínicos, a provocação de convulsões que lesavam tanto estruturas ósseas como cerebrais, as cirurgias lobotômicas, todo um conjunto de medidas com fins terapêuticos e que se aplicava com pouca preocupação sobre as seqüelas incapacitantes ou letais que afligiam os indivíduos que eram objetos destas experiências.” 9

Ser cobaia era para esta sociedade uma forma “normal de contribuição” à sociedade, uma forma de dar utilidade a um grupo que dentro daquela 9

Idem, p. 56.

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contribuidora à nação. O manicômio era para a

para quase 56 mil, ao mesmo tempo que os investimentos no setor público começavam a diminuir.”11

teoria higienista um local de depósito para essas

Desta forma podemos perceber uma clara

pessoas que, seja por alguma deficiência ou por

sintonia entre os métodos de todo regime

desvio comportamental, acabavam passando o

autoritário e o controle da loucura, neles atitudes

resto de suas vidas lá. O local se encaixava

como exclusão, confinamento, condenação e

perfeitamente com esses ideais, pois era um local

punição justificadas em função de um “bem maior”,

isolado que distanciava o problema da população,

a normalidade, a segurança e o tratamento dos

que parecia não querer saber o que acontecia lá

desajustados se enquadravam também dentro de

dentro.10

uma lógica do capital, na qual o tratamento e o

sociedade estava fora de uma participação ativa,

confinamento geraram um “produto” a ser

O higienismo durante a ditadura

consumido

e

financiado

pelo

governo,

o

“tratamento” da loucura.12

Após o Golpe militar esses ideais higienistas ganharam ainda mais força, havia uma necessidade de esconder pessoas que de alguma forma não

A fundação do hospital

faziam parte dos ideais higienistas, se por um lado

Antes da Lei Estadual nº 290, de 16 de agosto de

esse isolamento cruel foi de responsabilidade do

1900 - Minas Gerais, que determinou a fundação de

Estado, isso só foi possível com a aceitação da

um local específico para assistência de alienados, os

população, dos funcionários e de todos que faziam

loucos não tinham um local especifico para o seu

a máquina funcionar, a desumanização dos internos

tratamento, eram levados para as santas casas de

legitimava toda aquela barbárie.

misericórdia

Venda de corpos, venda de serviços precários

apresentavam

ou um

cadeias grau

públicas de

quando

periculosidade,

garantidos pela falta de fiscalização e interesse

localizado na antiga Fazenda Caveira de baixo,

público pela qualidade de vida dos internos,

local que antes funcionava um hospital de

descarte de indesejáveis, a indústria da loucura foi

tratamento de doenças pulmonares devido às

um negócio vantajoso em todos os sentidos.

baixas temperaturas, o local era adequado ao

“No início dos anos 40 havia 24 mil leitos psiquiátricos no Brasil, dos quais 21 mil eram públicos e 3 mil privados. Depois do golpe militar de 64, o setor da saúde viveu o mais radical processo de privatização do mundo. A psiquiatria foi a área mais explorada e preferida pelas empresas privadas, na medida em que a falta de direitos dos usuários, somada à baixa exigência de qualidade no setor, facilitava a construção ou transformação de velhos galpões em ‘enfermarias’. A ‘indústria da loucura’, como ficou conhecida, fez o número de leitos saltar de 3 mil

tratamento da tuberculose. O hospital colônia de Barbacena foi fundado em 1903 e foi o primeiro Hospital Psiquiátrico Público de Minas Gerais, criado com capacidade de 200 leitos. Costumava funcionar nos primeiros anos com a capacidade controlada entre 150 e 200 internos. Havia duas classes no hospital: a de pagantes

10 Aqui reconhecemos que ainda são imprecisos os dados sobre

11

este aparente descaso da população, nos baseamos até aqui nas informações obtidas na pesquisa da jornalista Daniela Arbex (ver bibliografia).

12

AMARANTE. 2006, p. 33. Ver também neste texto o item As práticas e o comércio de corpos na pág. 10

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G N A R U S | 18 (pensionistas) e de indigentes. No local, apesar de

situação que se não levavam à morte rapidamente,

criado para o acolhimento de doentes mentais não

levavam a uma situação pior, a morte lenta nos

havia um tratamento específico para eles, a

calabouços do hospital.

atividade terapêutica praticada por eles eram a laborterapia.13

Dentre

as

“Ninguém morre de loucura. Era morte natural combinada com desnutrição: a comida, às vezes, era única e exclusivamente água com fubá, ou uma sopa rala de canjiquinha, sem nenhuma gordura ou proteína. Ficavam nus e chegavam a perder os movimentos. Barbacena faz um frio terrível. Uma vez despidos, já desnutridos, sem nenhuma defesa, pegavam uma gripe, que depois virava pneumonia, porque eles também não eram medicados. E assim, todas às manhãs, eram recolhidos cadáveres nas enfermarias.”15

atividades

desempenhadas destacavam-se a conservação do local, a confecção de tijolos e o cultivo de hortas. O hospital então passou a ser o local oficial para o recebimento de alienados, principalmente aqueles que tinham um motivo maior para estar ali. O hospital durante os seus primeiros anos funcionava de acordo com o planejado e com a sua estrutura, o

As práticas e o comércio de corpos

hospital ajudou a desafogar a os hospitais da região, Na década de 50 com a popularização do hospital começaram a chegar pacientes de vários hospitais da região, geralmente pacientes que já haviam passado por um tratamento inicial, mas que não haviam conseguido se recuperar a ponto de ir para casa e que não possuíam familiares e condições de voltar a vida social e precisariam de um confinamento mais longo ou até mesmo perpétuo, era uma espécie de 2ª etapa do acolhimento desses doentes. Assim ainda na década de 50 o hospital já contava com mais de 1500 internos. “O ano de 1966 foi um dos que contabilizaram maior número de mortes, 1.253. Média de quase quatro por dia. Naquele ano, morreram 800 homens e 453 mulheres. Os meses de março, maio, julho e dezembro foram os mais terríveis, com, respectivamente, 120, 121, 119 e 123 óbitos. O ano seguinte seria menos terrível, mas ainda com um número assustador: 657 mortos. Há registros, cadernos e mais cadernos, com a contagem dos cadáveres, pessoas “sem lenço nem documento, hoje lembradas apenas nas páginas amarelas, quase tomadas pelas traças.”14

Mesmo os que entravam naquele lugar sãos não permaneciam assim por muito tempo, a situação enlouquecia mesmo aqueles não tinham qualquer distúrbio mental. A identidade, a individualidade e o pudor lhes eram arrancados, eram transformados em animais, e tendo se transformado em animais ainda lhes restavam o instinto, instinto de sobrevivência. Armados deste instinto, quando eram lançados à fria madrugada de Barbacena, completamente nus, eles se agrupavam, formavam rodas e alternavam entre ficar dentro e fora da roda de forma que todos recebessem calor, porém nem sempre conseguiam sobreviver a estas frias noites e o balanço pela manhã chegava muitas vezes a mais de uma dúzia de corpos.16 “Fome e sede eram sensações permanentes no local onde o esgoto que cortava os pavilhões era fonte de água. Nem todos tinham estômago para se alimentarem de bichos, mas os anos no Colônia consumiam os últimos vestígios de humanidade. Além da alimentação racionada, no intervalo entre o almoço e o jantar, servidos ao meio-dia e às 5 horas da tarde, os pacientes não comiam nada. O dia começava com café, pão e manteiga distribuídos somente para os que estivessem em fila. A alimentação empobrecida não era a única a debilitar o organismo. Apesar de o café da manhã ser fornecido às 8 horas, três horas antes

Com a superlotação, já não havia mais leitos, não havia mais uniformes, não havia mais dignidade,

13 14

Terapia através de atividades de trabalho. ARBEX, 2013, p. 114.

15 16

Idem, p. 118. Ibdem.

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G N A R U S | 19 os pacientes já tinham que estar de pé. Eles seguiam para o pátio de madrugada, inclusive nos dias de chuva” 17

utilidade de se transformarem em peças para aulas de anatomia — alguns corpos eram cozidos em caldeirões, muitas vezes na frente de outros

Com um número cada vez mais alto de mortes, em média 16 mortes diárias como consta nos registros do próprio hospital (podendo ser este número algo muito maior), em consequência das péssimas condições de vida no local. Os meses mais frios eram os que ocorriam mais mortes e que era comum que os

corpos,

universidades

ao

para

serem onde

dissecados eram

internos, para o aproveitamento dos ossos.”19 Percebe-se que não havia nenhuma humanização no trato com os pacientes, com a venda dos corpos fica ainda mais claro que eles não passavam de objetos sem nenhum aproveitamento em vida e talvez algum após suas mortes. “Os corpos dos transformados em indigentes foram negociados por cerca de cinquenta cruzeiros cada um. O valor atualizado, corrigido pelo Índice Geral de Preços (IGP- DI) da Fundação Getúlio Vargas, é equivalente a R$ 200 por peça. Entre 4 e 19 de novembro de 1970, foram enviados para a Faculdade de Medicina de Valença quarenta e cinco cadáveres negociados por 2.250 cruzeiros o lote. Corrigido pelo IGP-DI, o lote saiu a R$ 8.338,59. Em uma década, a venda de cadáveres atingiu quase R$ 600 mil, fora o

nas

vendidos,

apresentassem sinais de tuberculose causados pelas noites de exposição ao frio. Logo essas mortes começaram a dar um lucro financeiro ao hospital. Esses corpos abandonados por suas famílias, que viraram indigentes.18 “Encontravam após a morte a

Corpos humanos sendo desossados para o comércio, vendidos inteiros para estudos nas Universidades ou desossados com ácido para a construção de esqueletos didáticos. Processo realizado diuturnamente no pátio do manicômio ao lado de urubus e internos. 17 18

Ibdem, 42 Ibdem, p. 59

19

ARBEX, 2006, p. 27

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G N A R U S | 20 valor faturado com o comércio de ossos e órgãos.”20

“Os olhos acostumados a tantas tragédias não puderam acreditar na cena que se desenhava. Milhares de mulheres e homens sujos, de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas.(...) Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio e inundava o chão do pavilhão feminino. Nas banheiras coletivas havia fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente, pois os urubus espreitavam a todo instante. Dentro da cozinha, a ração do dia era feita em caldeirões industriais. Antes de entrar nos pavilhões, o fotógrafo avistou um cômodo fechado apenas com um pedaço de arame. Entrou com facilidade no lugar usado como necrotério. Deparou-se com três cadáveres em avançado estado de putrefação e dezenas de caixões feitos de madeira barata. (...) Dentro dos pavilhões, promiscuidade. Crianças e adultos misturados, mulheres nuas à mercê da violência sexual. Nos alojamentos, trapos humanos deitados em camas de trapos. Moscas pousavam em cima dos mortos-vivos. O mau cheiro provocava náuseas. Em outro pavilhão, a surpresa: capim no lugar de camas. Feno, aliás, usado para encher colchões, abrigar baratas, atrair roedores. Viu muitos doentes esquecidos nos leitos, deixados ali para morrer”21

Depois de algum tempo, as universidades diminuíram a compra de corpos, pois haviam feito um grande estoque e a grande quantidade de mortos a cada dia não parava de subir e aí o hospital passou a derreter esses corpos com ácido para poder ainda ter lucro com a venda posterior dessas ossadas. Além disso, complementando o processo da “indústria da loucura” e segregação foi construído junto com o Hospital Colônia, no início do século XX, o Cemitério da Paz, cuja função, além da natural necessidade de dar fim aos corpos, tratava também de livrar o cemitério da cidade de uma última possível contaminação à normalidade, já que havia um preconceito na cidade de não se misturar mortos “normais” com os “loucos”. A área pertence à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, está desativado desde o final da década de 80. Este processo apresenta claramente

Quando a reportagem foi publicada a tragédia

o “sucesso” da indústria da loucura na lógica do

teve grande repercussão, foi uma comoção

capital vigente a época.

nacional, porém foi rapidamente esquecida pela mídia por vários anos. Em 1973 o respeitado

O descobrimento de irregularidades e declínio

psiquiatra Ronaldo Simões Coelho adepto da desospitalização dos loucos e influenciado pelos

Em 1961, a visita do fotógrafo Luiz Alfredo e do

ideais de Foucault denunciou o Hospital colônia de

repórter José Franco do jornal Cruzeiro ao Hospital

Barbacena e todas as suas práticas abomináveis, a

Colônia de Barbacena para uma reportagem seria o

denúncia lhe custou o emprego na Fhemig, mas a

começo de uma grande mudança, a reportagem só

situação covarde não ficaria intocável por muito

foi possível porque se tratava de um momento de

tempo, Ronaldo aliado a outros profissionais

transição de governos e qualquer conduta ilícita

militantes pelas causas humanistas não desistiriam,

vista ali não seria creditada ao atual governo.

assim

Mesmo assim o fotógrafo mostrou ao mundo a

continuaram lutando e denunciando os maus tratos

triste realidade daqueles internos.

do lugar, porém, somente anos mais tarde essas

20

21

Idem, p. 68

do

hospital

Colônia

de

Barbacena

ARBEX, 2013. p. 152.

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G N A R U S | 21 denúncias começariam a surtir algum efeitos, em

consequência disto é quase sempre a ocorrência de

1979 o conselho regional de medicina abriu

processos injustos, desumanizados e naturalizados

sindicância contra o manicômio, entre as denúncias

como uma “solução” para o problema daqueles que

estavam as envolvendo a relação de interesses

não se adequam ou comportam como desejam ou

entre o hospital e as universidades na venda de

impõem os altos grupos sociais.

corpos.

Nesse

mesmo

ano

as

denúncias

desencadearam uma série de outras denúncias e estimularam cada vez mais a luta pela reforma psiquiátrica. A divulgação do trabalho do psiquiatra italiano Franco Bessaglia22 e a comparação do manicômio aos campos de concentração nazista fomentou ainda mais as lutas do período.

Além da questão histórica temos também a pretensão de que esse nosso caso em estudo mostra a importância discutir os direitos daqueles que não podem lutar por si, essa conquista veio somente em 1988 com direitos humanos garantidos pela constituição brasileira, que tem em um dos principais artigos, o 5º, que garante o direito a vida,

O documentário “Em Nome da Razão” de

a privacidade, a igualdade, a liberdade e outros24...

Helvécio Ratton23 levou a população a realidade da

Isso é importante, pois assegura os direitos dessas

colônia. Em 1989 o então deputado federal Paulo

classes de indesejados, antes desta lei muitos

Delgado apresentou um projeto de lei onde ele

denúncias relativas às praticas manicomiais foram

propunha a extinção progressiva dos Manicômios e

feitas, mas nenhuma providência foi tomada a

das práticas manicomiais desumanas, em 1990

respeito. Além de tudo, é importante criar na

mesmo com a classe dominante sendo contra, o

sociedade uma noção de igualdade e um olhar mais

projeto foi aprovado, mas somente em 2001 foi

humano sobre o outro, reforçando os direitos dos

promulgada a lei.

homossexuais, das mulheres, dos idosos e todo esse grupo que até hoje sofre com a descriminação e

Conclusão

segregação. Sempre vai haver um local e uma forma de segregar e isolar um grupo que não se adequa

Nosso breve estudo nos leva à conclusão de que a

aos ideais da classe dominante. Combater isso é

História às vezes, dentro de cada especificidade, se

conscientizar a sociedade e derrubar paradigmas. A

repete, sistemas autoritários se impõem à força

intolerância social é a grande responsável por

sobre grupos dissonantes dos valores arbitrados por

massacres desse tipo e a omissão da população

esta classe dominante. O caso do Hospital Colônia

contribui para a continuidade desse tipo de prática

de Barbacena se encaixa perfeitamente neste viés,

de exclusão. Ainda hoje podemos ver questões

no qual exclusão, confinamento e controle são

desse tipo, como no caso do debate em torno da

exercidos sobre os discursos de ordem e

internação compulsória dos usuários de drogas, o

normalidade proferidos por um ou mais grupos que

que devemos refletir é se essa internação é boa

se encontram em um lugar privilegiado do poder. A

para eles ou para nós? Primeiramente devemos

22

24

Franco Bessaglia fez no período diversas palestras no Brasil sobre o tema. 23 Disponível em www.dailymotion.com/video/x1hjp4b_emnome-da-razao-os-poroes-da-loucura-1979-barbacena_news (acesso em 07/05/2016)

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...), Constituição brasileira, 1988.

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G N A R U S | 22 garantir um tratamento sério, adequado e acima de tudo humanizado e com a aceitação desse grupo ou abriremos novamente uma brecha para que possamos varrer a sujeira para baixo do tapete e não propiciar uma oportunidade de melhorar condição de vida desse grupo. Glaucia de Souza Dias é licenciada em História pela Universidade Cândido Mendes e professora da rede Municipal de Nova Iguaçu-RJ.

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Libertar: Os Caminhos do Cosmopolitismo Multicultural, Afrontamento, Porto, 2004. FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1975. _________________. História da loucura. São Paulo: Perspectiva. 1982. _________________. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. OLIVEIRA, Walter Ferreira de. Éticas em conflito:

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2009 ISSN 1984-21476.6.6.6.6. SILVA, Marcos Virgílio da. Detritos da civilização: eugenia e as cidades no Brasil. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitext os/04.048/589 acessado em 09/06/2016.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 23

Artigo

ENTRE UMA HISTÓRIA MUNDIAL E MÚLTIPLAS HISTÓRIAS: A IMPORTÂNCIA DAS HISTÓRIAS CONECTADAS PARA UM MUNDO DE HISTÓRIAS PLURAIS Por Fernanda Chamarelli de Oliveira

Resumo: A partir de meados do século XVIII, desenvolve-se um conceito de história mundial e uniformizadora, a partir do movimento da ilustração e da revolução francesa. Caracteriza-se por ser uma história eurocêntrica, que vivencia um novo desenvolvimento do ser humano. Uma história que passa a designar como um todo a soma de todas as histórias individuais, que passa a representar a condição prévia de toda a experiência. O sentido desta história começa a se perder a partir dos desdobramentos das guerras mundiais, com o avanço da globalização e aumento de circulação de tecnologias, informações e pessoas ao redor do globo. Os estudos historiográficos passam a considerar uma multiplicidade de histórias e a analisar criticamente o sentido das histórias nacionais. Dentro deste processo de mudança está inserido o modelo de análise de histórias conectadas proposto por Sanjay Subrahmanyam, buscando um olhar alternativo para a história, desnaturalizando conceitos e reconhecendo as contribuições de uma pluralidade de práticas, valores e ideias que passaram a circular por diferentes regiões do mundo a partir do século XV. Palavras-chave: Histórias conectadas; Modernidade; Desnacionalização da história; História local; História global

S

anjay

Subrahmanyam

atualmente

Califórnia (UCLA), em Los Angeles, desde 2004,

considerando um dos grandes historiadores

onde ensina sobre história da Índia, história dos

indianos, sendo especialista em estudos

impérios ibéricos, da expansão e europeia e

sobre a presença portuguesa na Índia e tendo vários

histórias conectadas dos primeiros impérios

livros

em

modernos. Foi editor da Revista de História

Concorrência: Histórias Conectadas nos Séculos

Econômica e Social indiana há mais de uma década

XVI e XVII” e “Europe's India: Words, People,

e eleito em 2013 presidente da História Global

Empires, 1500-1800”. Leciona na Universidade de

Moderna Inicial no Collège de France, em Paris,

publicados,

como

é

“Impérios

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 24 onde realizou uma série de

de contextos históricos,

palestras entre 2013 e

compreendendo

2014.

para a reconstrução de eventos,

Estudou na Universidade

parte

economia, onde também

de

processos

históricos a partir da

lecionou sobre história

época

e

moderna

necessário

desenvolvimento

Professor

de

contato entre diferentes mundos.

História

econômica

ter

as conexões e zonas de

Em 1993 foi nomeado na Universidade

é

conhecimento e entender

econômico comparativo. mesma

e

características que fazem

de Dheli, na escola de

econômica

histórias

que

e

Entendendo a época

posteriormente, em 1995,

moderna como tendo seu

passou a lecionar em Paris,

início em meados do

na Ecole dês Hautes Etudes

século XIV e estendendo-

em

se até meados do século

Sciences

Sociales,

sobre história econômica e

XVIII,

período

que

social no início da Índia

denomina early modern,

moderna e do mundo do Oceano Índico. Em 2002 é

Subrahmanyam debate a questão de que os

nomeado na Universidade de Oxford o primeiro

elementos constitutivos da modernidade não

titular da cadeira de história e cultura indiana,

estavam presentes apenas no espaço da Europa

permanecendo nela por dois anos, até assumir uma

Ocidental, mas sim em diferentes partes do mundo,

cadeira na UCLA, onde atuou como Diretor do

adquirindo diferentes conceitos e significados. Para

Centro de estudos para Índia e Ásia do Sul.

o autor, diversas sociedades passaram por

Em seu artigo "Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia", Subrahmanyam apresenta uma crítica ao modelo de história universal e ao modelo comparativo de análise da história, que seria responsável pela produção de grandes sínteses, além da produção de obras com uma ambição global que fomentam a escrita e a visão de uma história com uma perspectiva monocasual. A partir da proposta do modelo de histórias conectadas, frente

ao

modelo

de história

comparada,

Subrahmanyam busca repensar leituras tradicionais

processos semelhantes nesse período, porém conceberam diferentes ideias sobre os elementos que o compunham, como por exemplo, o conceito de império, sendo desta forma a experiência da modernidade uma transformação global. O reconhecimento deste período e de que nele fenômenos similares ocorriam de variadas formas em diferentes partes do globo contribui para romper com uma trajetória europeia imposta na história, com o desenvolvimento das civilizações grega e romana, seguidas pelo período medieval, Renascença e somente após esta, a chamada modernidade. Esse novo olhar contribui para que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 25 haja a compreensão de que na verdade ocorreu um

escravo, inovação agrícola, urbanização, entre

fenômeno mais global.

outros.

Para delimitação do período da early modern o

Com

o

modelo

de

histórias

conectadas

autor identifica a ocorrência de uma série de

Subrahmanyam busca demonstrar a importância de

transformações que também são acompanhadas

se conhecer as variadas concepções e ideias que se

por mudanças políticas, sendo a mais importante a

formaram em diferentes sociedades neste período,

construção de impérios universais. No entanto, na

que passam por semelhantes processos de

África, Ásia e América já existiam diferentes noções

mudança,

de império, não sendo esta introduzida a partir do

conhecimento apagado por um modelo de história

contato com civilizações europeias, mas sim sendo

baseado em categorias nacionais e de história

modificada.

universal que foi estabelecido como modelo

As noções de humanismo e universalismo também emergem em vários vocabulários, e nesse período podem ser observadas como intensificadoras de hierarquia e dominação. No entanto, para se reconhecer a influência e o significado dessas noções, é necessário recorrer à análise de diferentes documentos, que não sejam apenas os da renascença e pós- renascença europeia. Mais uma vez, Subrahmanyam nos aponta a necessidade de

processos

esses

que

tem

seu

canônico de história pelas sociedades europeias a partir de meados do século XVIII. A partir da análise de histórias partilhadas entre diferentes sociedades e sua conectividade busca uma alternativa para a nacionalização da história, que na verdade contribuiu para propagar formas de dominação e hierarquia e para acentuar as diferenças e estabelecer

relações

de

superioridade

e

inferioridade.

entendimento e representação de uma história

Para Subrahmanyam a maior parte da dinâmica

global, e não uma história universal e uniformizada

para se compreender o período por ele

como a definida pelos saberes europeus no século

denominado de early modern está na relação entre

XVIII.

o local e o regional, que corresponderiam ao micro

Segundo Subrahmanyam, neste período que tem início em meados do século XIV, acontecem mudanças em relação às concepções de espaço e na etnografia, que se estabelecem a partir das viagens marítimas. É um período de descobertas e de uma redefinição geográfica, e por isso passa a ser desenvolvido um novo senso de limite do mundo. Com o avanço estabelecido pelas viagens marítimas europeias na conquista de territórios e contato com variadas sociedades e civilizações, aumentam os conflitos

em

relação

às

sociedades

pré-

estabelecidas e emergem questões como as que dizem respeito à colonização, uso do trabalho

e o global, macro. Portanto, o estudo de uma sociedade asiática não poderia ser realizado a partir de um estudo especializado sobre a região, mas sim considerando suas conexões com as diversas regiões e com outras sociedades, estabelecendo desta forma uma abordagem que transborda a realizada pelas histórias nacionais. Não é possível realizar uma macro-história sem que se atente para os detalhes que estão presentes na micro-história, pois as consequências para cada fenômeno ocorrido são diferentes em cada região. É como se fosse necessário pensar, como mencionado pelo autor, a partir de uma noção de encruzilhada, onde as diferentes regiões e culturas Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 26 se influenciam umas às outras, por isso a

Entre as críticas tecidas em relação ao trabalho de

importância de pensar não apenas em dimensões

Lieberman estão a de que o autor teria partido das

locais e regionais, mas também globais.

fronteiras geográficas estabelecidas pelos Estados

Com o objetivo de traçar suas considerações em relação ao modelo de análise da história comparada, Subrahmanyam discute o trabalho de Victor Lieberman, onde este autor busca comparar seis países: França, Rússia, Japão, Vietnã, Burma e Sião, selecionando doze fatores de possíveis integrações entre eles. Segundo Subrahmanyam, o trabalho

de

Lieberman

não

se

atenta

especificamente à região do sul da Ásia, assim como não faz referências à região ibérica, cujas análises seriam de grande importância no período pesquisado.

nacionais para realizar sua análise e estabelecer as comparações entre os países e o uso de generalizações. As fronteiras territoriais, para Subrahmanyam, são na verdade construções formais para delimitar um espaço de atuação política, porém as conexões e trocas culturais são estabelecidas entre diferentes regiões para muito além dessas fronteiras, fazendo com que essas demarcações não sejam de fato uma barreira nessa relação. Quanto ao uso de generalizações, ocorreria devido a aplicação, feita nos trabalhos de comparação, de hipóteses à toda área trabalhada e muitas vezes também a outras áreas. Lieberman teria

escolhido

áreas

para

pesquisa

que

comprovariam argumentos pré-estabelecidos para sua pesquisa, entre os quais estava a caracterização do período da early modern como o de um momento onde ocorre um forte movimento de consolidação política, ligada diretamente à centralização do poder, o estabelecimento e organização de uma cultura nacional e também uma interação destas transformações com uma crescente comercialização e com uma revolução militar. A contestação de Subrahmanyam está no fato de que se as áreas escolhidas fossem consideradas separadamente, por exemplo, ou se outras áreas compusessem a pesquisa, os resultados da análise seriam diferentes e não se poderiam apontar as exatas mesmas características para o período. Além disto, em seu trabalho, Lieberman teria valorizado as áreas do sul da Ásia a partir de sua comparação com os que seriam denominados como grandes países do período da early modern, em Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 27 uma tentativa de mostrar que os países asiáticos

A proposta do modelo de histórias conectadas,

seriam tão importantes quanto os países europeus.

que surge em meados da década de 1990,

Isso na verdade se apresenta como mais uma

realizando uma oposição ao modelo de história

contribuição para ratificar o modelo de história

comparada, busca uma nova visão sobre a história e

universal e eurocentrado, onde a história europeia

seu conceito, procurando deslocar o olhar de um

permanece como base de análise e comparações.

ponto de vista da história eurocêntrica e universal

Dois pontos presentes neste artigo nos parecem relevantes e importantes para nossa reflexão. Além de apontar a necessidade de observar a relação entre a micro-história, o local, o regional, com o global, a macro-história, Subrahmanyam nos leva a pensar que as consequências dos fenômenos que ocorrem não apresentam variações somente de acordo com as regiões, mas que existem diferentes subunidades dentro de uma mesma sociedade, e que por isso as variantes seriam não apenas regionais, mas também sociais. Não apenas um mesmo fenômeno pode ser experimentado de diferentes formas de acordo com a região, como dependendo do grupo social e de sua organização essa variação também pode existir dentro de um mesmo local, pois as diversidades e as diferentes representações de um mesmo fenômeno não estabelecem uma relação estritamente ligada a fronteiras

regionais

e

geográficas

pré-

estabelecidas. O outro ponto está diretamente relacionado à própria crítica que Subrahmanyam estabelece em relação ao nacionalismo e ao desenvolvimento de histórias nacionais, isoladas, que enfatizariam a diferença e as posições de superioridade pela crença em diferentes graus de civilização. O autor aponta que esta base não ocorre apenas com a expansão europeia no período da early modern, mas que todos os impérios nacionais se construíram em um processo baseado na identificação da diferença.

para a possibilidade de uma história cujo ponto de análise parta de uma percepção da existência de múltiplas

histórias,

da

desnaturalização

de

conceitos que vem sendo utilizados desde o século XVIII e de uma desnacionalização da história. Um ponto de vista de análise onde os saberes e as práticas culturais de variadas regiões não sejam identificados apenas pelas diferenças que marcam sua superioridade ou inferioridade, estabelecidas pela razão moderna europeia ocidental, mas onde se possam reconhecer as conexões entre estas regiões e diferentes locais e onde o saber dos povos que até então foram considerados “outros” dentro dessa perspectiva possa ser conhecida através de suas próprias produções e realizações e não contado pela visão canônica da modernidade europeia. Essa proposta de uma nova visão sobre a história e seu conceito está inserida em um processo maior, que tem início em decorrência das duas guerras mundiais, que se associa diretamente a uma queda do otimismo europeu e da crença no progresso, estabelecidos pelo conceito moderno de história e pela filosofia da história em meados do século XVIII. Inicia-se assim um processo de ruptura com a história tradicional, que envolvia uma crença de uma excepcionalidade europeia, que perpassava pelos fatores econômico, político, social, cultural e religioso. Um marco nesta ruptura é a produção da Escola dos Annales com a corrente da história das mentalidades e a proposta de trabalho de história comparada de March Bloch, que já buscava

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 28 ultrapassar a fronteira estabelecida pelo nacional

história global?”, busca compreender de que

para a análise histórica.

formas a proposta de histórias conectadas pode

O teórico Reinhart Koselleck já apontava críticas a uma visão de totalidade de uma história geral, que foi formulada pelo conceito moderno de história do século XVIII. Para o autor, o que existe é uma pluralidade de histórias e essas histórias plurais não

auxiliar na substituição do modelo de histórias unívocas e desiguais, para uma visão onde não exista apenas um único ponto de vista sobre a história. Hartog analisa como o sentido de uma história

se integram em uma

universal se perde a

história única, pois são

partir

reciprocamente

desdobramentos

contraditórias, isto é, não

segunda guerra mundial

há um fim ou uma

e como o avanço da

finalidade. Essas histórias

globalização traz à vista

se

as

sustentem

em

dos

diferenças,

da

que

determinações inerentes

buscam por afirmação e

ao ser humano, de onde

reconhecimento. Para o

derivam

situações

autor, com o avanço da

conflitivas. Portanto não

globalização ocorre uma

existe

final

reivindicação por mais

harmonioso como antes

memória e identidade e

determinado

uma desterritorialização,

um

pela

filosofia da história, mas

representando

sim a abertura de novos

identidade e os valores

conflitos. Sendo assim,

culturais

não existe um modelo de

ligados a uma região

civilização

determinada por uma

nem

universal,

tampouco

modelo

de

um

fronteira

história

universal. Com o avanço do processo de globalização, saberes e lógicas não ocidentais passam a ser amplamente conhecidos, e com isso surgem novas correntes historiográficas na tentativa de lidar com

que

não

a

estão

territorial,

podendo estar presente em diferentes elementos que integram várias partes do globo. Sendo assim, com a globalização não se pode mais fazer referência a uma cultura unicamente regional ou a uma originalidade de cultura.

essa ideia. Os conceitos de história global e

Serge Gruzinski, em “Os mundos misturados da

histórias conectadas passam a ser discutidos por

monarquia católica e outras connected histories”,

diferentes autores, dentre os quais podemos

também discute a temática da história global e das

destacar François Hartog, que em seu artigo

histórias conectadas. O autor aponta a monarquia

“Experiências do tempo: da história universal à

católica como o berço de uma primeira forma de Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 29 economia-mundo e como a conquista da América

católicas, que existe uma transnacionalização, onde

obrigou a uma redefinição da ideia de local tanto

pessoas, conceitos e ideias passam a circular por

pelos invasores quanto pelos vencidos. Na verdade,

diferentes territórios, onde ocorre um intenso

o autor discute a dificuldade de definição do global

movimento de religiões, tecnologias e práticas

e do local neste período, apesar destes conceitos

culturais que eram até então desconhecidas.

não existirem na época. Gruzinski

trabalha

Como diferença, este primeiro período de com

os

conceitos

de

modernidade, como apontado por Mbembe, foi um

reterritorialização e relocalização, mostrando

período em que o Ocidente se apresentava como o

como havia uma circularidade de pessoas dentro da

único a conseguir edificar uma civilização, onde

monarquia católica e um intercâmbio de saberes,

apesar do grande afluxo de africanos à Península

pois terras dos continentes europeu, americano,

Ibérica e sua participação na reconstrução de

asiático e africano estavam ligadas entre si e sob

Espanha e Portugal após a grande peste, sua

uma mesma dominação.

presença em campanhas militares e na integração

Esses autores que apresentam estudos que buscam tratar de uma história não como uma projeção da história europeia ocidental, mas com uma visão de multiplicidade de histórias, e que debatem conceitos como o da modernidade e da colonialidade, se inserem no grupo de estudos póscoloniais e decoloniais, e vem apresentando relevantes contribuições para que se possa pensar em uma história além dos muros impostos pela razão ocidental. Pensar em histórias plurais, em histórias conectadas, histórias globais, exige não apenas o reconhecimento do outro, de sua história, de seus saberes e suas contribuições dentro de diferentes culturas. Exige um olhar diferenciado, um entendimento de que se faz necessário assumir perspectivas diferentes das hegemônicas para que sejam compreendidas as matrizes culturais de diferentes povos e também sua visão de mundo e a forma como interpretam e utilizam conceitos e

de tripulações marítimas na conquista da América, estes assumiram uma condição de inferioridade frente aos europeus, como corpos submissos e passíveis de exploração. Hoje, com a proposta das histórias

conectadas,

buscamos

uma

visão

diferenciada desta transnacionalização, onde se possa reconhecer as trocas culturais e tecnológicas, onde se possa reconhecer que o pertencimento a um grupo ou a uma cultura não está relacionado meramente a questões territoriais, onde essas trocas e esse processo de globalização já não mais nos permita tratar de histórias nacionais. Acima de tudo, essa proposta deve trazer em si a perspectiva de analisar as histórias sob diferentes olhares, e não sob uma visão única e uniformizadora. Pensar em histórias conectadas deve nos fazer pensar fora do lugar comum, deve nos fazer pensar, de fato, quem é o “outro”. Fernanda Chamarelli de Oliveira é mestranda no programa de História Social da Cultura na instituição PUC- RJ

ideias comuns a um mundo global. É compreender, como o filósofo africano pós-colonial Achille Mbembe, em “Crítica da razão negra”, que existe, a partir de uma primeira modernidade, iniciada com as conquistas marítimas das monarquias ibéricas

Bibliografia Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras connected histories.

GRUZINSKI,

Revista Topoi. Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 175195. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 30 HARTOG, François. Experiências do tempo: da história universal à história global? Revista história, histórias. Brasília, vol. 1, n. 1, 2013. KOSELLECK, Reinhart. História(s) Geschichte(n) e Teoria da História (Historik). Tradução de Luiz Costa Lima. Do original “Geschichte(n) und Historik”, in Erfahrene Geschichte. Zwei Gesprache, Universitatsverlag, Heidelberg, 2013. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Editora Antígona, 2014.

SUBRAHMANYAN, Sanjay. Connected Histories: Notes

towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia.

Modern Asian Studies, Vol. 31, n. 3, Special Issue: The Eurasian Context of the Early Modern History of Mainland South East Asia, 1400-1800. Julho, 1997, PP. 735-762. ______________________ Impérios em concorrência: histórias conectadas nos séculos XVI e XVII. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2012.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 31

Artigo

TRADIÇÃO OU INVENÇÃO: A RELAÇÃO DOS MARACATUS DE “NAÇÃO” COM OS XANGÔS DE PERNAMBUCO Por Rafael Eiras

O

maracatu denominado de “nação” ou de baque virado é, de acordo com a obra de

Guerra

Peixe(1980),

uma

manifestação da cultura popular pernambucana que tem suas origens no séc. XVII. Ele nasce das cerimônias de coroações dos reis negros no momento em que a Coroa Portuguesa autorizava os negros, escravos ou libertos, a elegerem seus reis e rainhas de acordo com as diferentes etnias africanas trazidas ao Brasil, como forma de comemoração. Estas coroações, que eram um conjunto de atividades, acabam por se manter somente como um cortejo. Este cortejo dá origem ao maracatu, onde uma orquestra formada de elementos de percussão toca “toadas” e dança a coroação do rei de congo. O que a principio parecia ser uma completa dominação cultural dos valores europeus e também uma submissão à fé católica pode ser lido como um ato de resistência cultural.

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G N A R U S | 32 Nos dias de hoje, no Maracatu “nação”, a côrte

pespctiva o Maracatu se torna uma tradição onde

ainda é paramentada com vestimentas que

grande parte de seus elementos principais não

remetem ao estilo da época de Luís XV. Ali se

teriam a origem restrita ao Brasil, mas sim na África.

percebe

muitos

elementos

de

importante

simbologia e singularidade visual. Além do rei e rainha,

existem

ainda

outros

personagens

importantes na côrte como os príncipes e princesas, barões e baronesas, embaixador e embaixatriz, as catirinas, assim como os lanceiros, representando os vassalos que, com seu bailado, circulam a côrte real, protegendo-a.

Os xangôs de Pernambuco, nome dado às manifestações religiosas, que cultua os orixás africanos nesse contexto, tem origem semelhante à do Candomblé baiano, como uma forma de reinvenção desta África mítica por meio de uma suposta “nação”, de uma tradição reinventada e remodelada pelo contexto brasileiro. (OLIVEIRA, 2010) As religiões afrodescendente surgem no

Esses são alguns dos elementos mais tradicionais.

Brasil também como uma adaptação à realidade em

Além destes, existem outros que vêm sendo

que estes indivíduos se encontravam. É uma ideia

introduzidos mais recentemente, como é o caso da

de “África pura” que perpassa todas essas

ala que representa os orixás e da ala ‘afro’ que

manifestações. É uma ideia que pode ser vista tanto

dança passos marcados.

como uma qualidade, como também uma forma de

É importante perceber que foi necessário por parte

desta

escravisada,

comunidade desenvolver

afro-brasileira, alternativas

desvalorização, quando esta almejada pureza não é comprovada.

de

Há ainda outro tipo de maracatu observado por

sobrevivência como indivíduos. A reelaboração de

Guerra Peixe (1980) nas décadas de 1930 e 1940,

suas tradicões étno-culturais foi um esforço de

que é denominado de maracatu de orquestra ou

resistência à situação em que estes viviam. “Tais

baque-solto. Este se diferencia do de “nação” pela

alternativas envolveram processos políticos e

composição do seu conjunto musical, constituído

culturais, que representaram, em seu conjunto, uma

de um terno1 e de instrumentos de sopro. “Além

resistência contínua e que assumiu as formas mais

disso, é emblemática, do maracatu de orquestra, a

díspares, indo desde às adaptações e negociações

presença do caboclo de lança, muito conhecido na

necessárias à sobrevivência até os confrontos

atualidade e tido como um dos símbolos da cultura

diretos” (OLIVEIRA, 2010, p2)

popular pernambucana.” (GUILLEN, 2007, p237).

Todos os sistemas sócio-culturais que orientavam a vida dos africanos e seus grupos de origem ficaram para trás, numa África mítica que sobreviveu apenas nas memórias coletivas. No entanto, diversas outras formas de se notar a relação com a África foram sendo forjardas e posteriormente revigoradas por uma ideia de identidade nacional já na década de 1930. Nesta

Nesta modalidade a cultura indígena ganhava mais visibilidade. “A não-diferenciação entre as manifestações existentes denota que o significado de maracatu era polissêmico, não se referindo exclusivamente a um tipo específico, visto que algumas “troças”, como o Timbu Coroado, formado de esportistas do clube Náutico, designavam-se igualmente como maracatu. Estou denominando de troças esses grupos porque portavam cartazes de crítica, fossem elas sociais ou críticas de costumes. A

1

Gonguê de duas campânulas, porca( espécie de cuíca), ganzá e bombo.

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G N A R U S | 33 imprensa recifense do período não fazia a mínima distinção entre os maracatus nação, como o Elefante ou o Leão Coroado, os maracatus de orquestra, como o Pavão Dourado ou o Estrela da Tarde, e as “troças”, como o Timbu Coroado e o Cata Lixo. Todos os três tipos eram tratados como maracatus. GUILLEN, 2007, p237)

são registros sobre o maracatu como folguedo. Estes registros nos permitem chegar a conclusões como as de Katarina Real (1990) que, entre as principais

características

deste

folguedo

carnavalesco, é a de ter uma ligação estreita com os cultos de xangô, especialmente os de influência

Destarte, é percepitivel que a ideia de o que seria

nagô. Peixe (1980) também aponta e realça que os

o maracatu é elaborada com a necessidade de

integrantes do maracatu tradicional – “Nagô”, no

estudos sobre o folclore nacional, e não é um

sentido de “Africano” – é constituída na maioria,

conceito pronto. Surge assim uma percepção de

por iniciados nos xangôs.

que haveria um maracatu mais puro, africanizado, entendido como de “nação”, e o outro relegado a segundo plano, como uma expressão cultural de menor valor, que seria o maracatu de Orquestra.

No entanto, o que parece ser mais marcante nessa concepção de união entre ambas as práticas, seria a situação política do período, onde alguns textos importantes são produzidos acerca do maracatu.

Há nessessariamente nesta construção, de um

Havia nos anos de 1930 a 1950 em Pernambuco,

maracatu puro, uma ligação com os xângos, como

uma imensa repressão aos maracatus e às religiões

se estivessem ligados desde a gênesis. Essa é uma

afrodescendentes. Essa repressão foi desencadeada

linha de raciocínio que é sugerida desde os

pelo governo de Agamenon Magalhães. Foi um

primeiros folcloristas preocupados com a cultura

movimento que relegou aos maracatus de “nação”

nordestina. Autores como Guerra Peixe encontram

o lugar de “coisas de negro”. Mas paradoxalmente

nesta ligação uma ampla forma de perceber um

também havia um movimento intelectual que

conjunto sólido, integro de africanidade.

buscava

“O enfoque destes estudiosos nas roupas festivas, cetros reais, presença de reis e rainhas, dentre outros aspectos, segundo Maccord, gerou a concepção de que praticamente não ocorreram mudanças em aproximadamente cem anos, contribuindo para se firmar a idéia dos Maracatus como ícones da tradição na cultura popular e eles não serem percebidos em sua historicidade. (...) além de esparsa documentação referente aos anos de 1900 a 1930, afirmamos que é necessário levar em conta as constantes adaptações dos maracatuzeiros às transformações da vida cotidiana, sem imobilizar o maracatu em uma tradição na qual as pessoas são desprovidas da capacidade humana de criar e reinventar” (LIMA,2006. P. 4)

elevá-lo

à

condição

de

cultura

autenticamente pernambucana, buscando explicar a identidade nacional por intermédio das singularidades regionais. (GUILLEN, 2007) Podemos dar como exemplo os ideais de Mário de Andrade que, em 1938, mandou para Recife uma missão folclórica. Esse grupo percorreu o Norte e o Nordeste gravando, filmando e fotografando diversas manifestações da cultura popular. Dirigida por Luis Saia, a missão teve enorme dificuldade em conseguir um terreiro para gravar o Xangô devido à repressão política.

A ideia da relação entre os maracatus e os xangôs pode ter sua origem pela falta de documentação ou registro

do

século

XVII

ao

século

XIX

(BRANDÃO,1988) sobre a prática da religiosidade afro-descedente. O que se encontra neste período

“(...)É importante destacar que esse movimento foi perpassado por uma forte tensão social e política entre duas grandes tendências, quais sejam, as que viam na cultura popular as bases para se firmar a identidade regional — e Gilberto Freyre é seu grande representante — e aqueles que, atuando no governo de Agamenon, promoveram a repressão à cultura afro-descendente com o Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


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Oficina de Maracatu - Mestre Walter do Estrela Brilhante de Recife intuito preciso e explícito de lançar as bases para a civilização e modernização da cidade. Tensão social evidentemente também presente entre os populares, aqueles que precisavam tocar para os orixás, que desfilavam no carnaval com seus maracatus e que procuravam se inserir nessa discussão e disputa política, buscando legitimidade e aliados para manter suas práticas e crenças (GUILLEN, 2007, p.241)

Esta tensão criou e reforçou a necessidade de se juntar essas práticas. Servia tanto como proteção, onde os adeptos do xângo pudessem se aproximar dos maracatus como forma de esconder sua prática, como também pela necessidade de através desse conceito de unidade de uma África mítica, se moldar uma resistência baseada numa suposta tradição herdada e quase inalterada. Sob pretexto de que se tratava de casas de maracatus, os macumbeiros podiam ali exercer suas atividades ritualísticas, reunindo grande número de adeptos aos cultos afros.

às sedes dos maracatus e ali, sob os auspícios da Federação Carnavalesca, realizavam matanças e outros sacrifícios em holocausto aos deuses negros, e no dia seguinte, sempre aos domingos, à guisa de ensaio do batuque, promoviam na parte externa um discreto toque para os ‘orixás’. Homens e mulheres da seita tomavam parte na roda e, quando alguém se manifestava, era imediatamente levado para o interior, onde se fazia o despacho do invisível.” (REAL, 2002, p. 33)

Com isso, é possível perceber a existência de fortes indícios de que a relação entre as religiões afrodescendentes e os maracatus “nação” ganhou força com o período de repressão que se sucedeu aos anos da década de 1930. Mesmo que isso não significasse haver elos entre os dois tipos de manifestação

cultura-religiosa,

anteriores

ao

período citado. Tal concepção pode sugerir que esta ligação tenha sido uma “tradição inventada” aos moldes do conceito elaborado por Eric Hobsbawm (1984). Conceito este, que mesmo pensado no decorrer de um contexto histórico específico, da formação dos

“Assim, às vésperas das grandes datas da seita, determinadas figuras do culto africano acorriam Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 35 estados nacionais europeus, pode ser de extrema

“velho” e o “novo”, de forma que as rupturas sejam

utilidade.

evitadas.”( GUIMARÃES,1988 p. 7)

Segundo seu ponto de vista, as “tradições

No entanto esta proposta elitista esbarra em um

inventadas” seriam um conjunto de novas práticas

grande problema que é o de como garantir um

de natureza simbólica ou ritual vinculadas à normas

projeto historiográfico num país repleto de

e

inplicando

diversidade e extremas contradições. É no discurso

inevitavelmente numa visão de continuidade com o

de Carl Von Martius (GUIMARÃES,1988) que se dá

passado para serem validadas. Hobsbawm tenta

início à concepção de uma nação elaborada por

explicar como, devido a constante mudanças, as

três raças: a branca, a negra e a indígena. Ideia

sociedades tentam estruturar e organizar as rápidas

fundadora do mito de democracia racial brasileira.

valores

de

comportamentos

dinâmicas sociais advindas do mundo moderno. “Os historiadores ainda não estudaram adequadamente o processo exato pelo qual tais complexos simbólicos e rituais são criados. Ele é ainda em grande parte relativamente desconhecido. (...) Talvez seja mais fácil determinar a origem do processo no caso de cerimoniais oficialmente instituídos e planejados, uma vez que provavelmente eles estarão bem documentados, como, por exemplo, a construção do simbolismo nazista e os comícios do partido em Nuremberg. É mais difícil descobrir essa origem quando as tradições tenham sido em parte inventadas, em parte desenvolvidas em grupos fechados (onde é menos provável que o processo tenha sido registrado em documentos) ou de maneira informal durante um certo período…” (HOBSBAWM, 1984, p13)

O processo da formação de uma nação que se percebe no Brasil, acaba por ser sempre remodelado e reinventado. Havia um projeto de Brasil, como colônia, que foi descartado com o advento do império, que por conseguinte também é remodelado pelos ideais republicanos, que finalmente são redefinidos pelo Estado Novo. Este processo de formação de uma nação está vinculado paradoxalmente com uma permanência de ideias absolutistas ibéricas que fazem do “outro”, do ponto de vista externo, as noções latinas republicanas, e internamente cria uma hierarquia excludente onde a civilização só seria acessível ao branco. Uma curiosa permanência a se observar ao longo da história que é a tentativa de integrar o

É evidente perceber a extrema contradição, em todos

os

momentos

da

formação

desse

conhecimento histórico que adquiriu um sentido garantidor e legitimador para decisões de natureza política. Num momento em que o mundo deixava de lado a monarquia absolutista, o Brasil criava formas de explicá-la; no momento em que a escravidão era abolida, o Brasil criava formas de a manter por mais tempo e num momento em que as ideias liberais ganhavam espaço na prática, o Brasil a remodelava para justificar sua hierarquia social excludente. É nesse cenário, entre a República Velha e o Estado Novo, antecipados pelas ideias modernistas de nacionalidade, que parece surgir um conceito de maracatu como identidade e símbolo nacional, por trás de uma trajetória de repressão policial, que forçou uma assimilação entre as práticas dos xângos como folguedo. Simbiose que não necessariamente era natural, mas que molda uma identidade que apela para características do popular, e também tenta manter a hierarquia social excludente do país, onde o maracatu apesar de ser reconhecido como uma prática que representa o nordestino, também é demarcado como local de culto religioso de “negros”. “Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de elementos antigos na elaboração de Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 36 novas tradições inventadas para fins bastante originais. Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem elaborada, composta de práticas e comunicações simbólicas. As vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais - religião e pompa principesca, folclore e maçonaria”. (HOBSBAWM, 1984, p14)

existência do próprio maracatu chamado de “nação”. Na obra de Guerra Peixe(1980), maracatu “nação” se constituía no começo, em sua maioria, por iniciados nos xangôs pernambucanos, tanto que ele também já foi chamado de Afox - termo que dá, hoje, nome a um ritmo baiano - também de origem negra dos candomblés e que perpetua o imaginário

O que ocorre com o maracatu parece sequir o

e movimenta o mercado cultural Pernambucano.

padrão que Hobsbawm sugere. O que se percebe é

É possível escutar nos terreiros de santo o ritmo do

uma adaptação necessária, convertendo velhos

maracatu, mesmo que alterado pela diferença

costumes em condições novas, ou usando velhos

entre as potentes alfaias e caixas e os sagrados

modelos para novos fins em pleno século XX,

atabaques tocados por finas baquetas de madeira

distante do momento histórico percorrido pelo

ou pelas mãos. No terreiro se toca num lugar

autor, mas entendido pelo complexo e tardio

fechado, onde os santos dançam ao redor da coroa

processo de ideário de nação ocorrido no Brasil.

do rei Xangô. Enquanto que no maracatu se toca ao

No entanto, por mais que tenha sido criada pala situação política e por uma remodelagem da ideia de nação, as relações dos maracatus com os xangôs em Pernambuco existem no contexto atual. O que se vê hoje é que os maracatuzeiros e os seus maracatus se relacionam com o xangô, mas também existem os que estão ligados à Jurema e à umbanda. “Não podemos ter como ponto de partida o velho jargão que os maracatus-nação são espaços do xangô, ao passo que os maracatus de orquestra constituem manifestações ligadas a

ar livre, bem alto, onde todos acompanham o rei coroado do congo e sua corte. Guerra Peixe(1980) ainda afirma que nos velhos maracatus de recife, onde as tradições negras permanecem bastante evidentes, o canto se denomina “toada” e tem similaridades com a música sagrada dos orixás nos xangôs. Pode-se notar no maracatu traços melódicos característicos da música brasileira de origem negra, principalmente pelo fato da melodia ser interpretada por pessoas habituadas a cantar nos terreiros afro-brasileiros.

Jurema, como se tais relações fossem naturais, e

Em algumas toadas se favorece a ideia de

não historicamente constituídas “. (CANCLINI,

incorporação dos orixás. Como a toada “ôlé-lé-óu”

1998)

que é cantada para louvar os terreiros. Diante de

Mesmo sendo uma construção, este universo africano está como recriação de valores trazidos pelo negro escravisado, onde as idéias de origem, de identidade inseparáveis, entre o maracatu e as religiões afro, podem ser verdades construídas, mas que também passam a ser fundamental para a

qualquer culto afro-recifense constitui ”obrigação” cantá-la em execução excepcionalmente realizada por todos os participantes. Além destas toadas especiais que geram a incorporação, há também algumas consagradas a Exu e geralmente são cantadas ao serem estabelecidas dificuldades à caminhada do cortejo ou ao ser criada alguma confusão. O ritmo destas toadas se chama “Luanda” Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 37 e é usada só para saldar Exu e os eguns.

Católica, que no processo histórico também deixou

Diferentemente do ritmo habitual do maracatu: o

fortes marcas no folguedo.

baque virado. Outra evidente ligação são as denominadas

Rafael Eiras é licenciado em História pela Universidade Cândido Mendes

“Calungas”, bonecas usualmente feitas de cera e madeira que representam, nos seus axés, a força

Bibliografia

dos antepassados do grupo, sendo também

CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas. São Paulo, Edusp, 1998, 2ª edição. CRUZ, Anna tereza de Carvalho. As irmandades religiosas de africanos e afro descendentes. In: Percursos, Florianópolis, V.8, N.1 p.03-17, jan/jun. 2007. GUIMARÃES, M. L. S. Nação e civilização nos tópicos: O

associadas à proteção espiritual. Estas bonecas são carregadas por uma importante figura da corte chamada ‘Dama-do-paço’. Em sua honra são cantadas, ainda dentro da sede, as primeiras loas, quando a Calunga é retirada do altar pela damado-paço e passa às mãos da rainha, que a entrega à baiana mais próxima e assim se sucede. Em canções oferecidas a Calunga Dona Emília, por exemplo, os músicos executam o ritmo de Luanda, o toque para salvar os mortos ou eguns. (PEIXE, 1980) A Calunga "Dom Luís" representa um rei africano, denominado como "Rei do Congo" pelos membros do grupo, numa clara referência aos primórdios do folguedo e coincide com a crença de que os poderes da Calunga estariam ligados aos seus ancestrais africanos. Assim a Calunga é um elemento mágico que protege, e mais do que isso, dá uma unidade de identidade ao grupo. É

relevante

destacar

que

mesmo

como

construção, a ligação entre a religiosidade afrobrasileira e o maracatu, existe. Nota-se também a extrema necessidade de se afirmar o africano puro nas duas tradições. O termo “nação” denota isso, como se o maracatu “nação” fosse naturalmente uma tradição trazida pelos negros da África, sem que quase não houvesse mudança. Temos

também

a

evidência

de

outras

religiosidades ditas menos puras como a Umbanda

Instituto Hitórico e Geográfico e o projeto de uma Historia Nacional. In: Estudos Históricos 1. Caminhos

da Historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 1988. (5-27). PEIXE, Guerra. Maracatus do Recife. Recife, Prefeitura da Cidade do Recife/ Irmãos Vitale, 1980, 2ªedição. REAL, Katarina. O folclore no carnaval do Recife. Recife, Ed. Massangana, 1990, 2ª edição. REAL. Katarina. Eudes, o rei negro do maracatu. Recife, Ed. Massangana, 2002. GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Guerra Peixe e os

maracatus no Recife: trânsitos entre gêneros musicais (1930–1950). ArtCultura, Uberlândia, v. 9,

n. 14, p. 235-251, jan.-jun. 2007. LIMA, Ivanildo Marciano de França, MARACATUS-

NAÇÃO E RELIGIÕES AFRO- DESCENDENTES: UMA RELAÇÃO MUITO ALÉM DO CARNAVAL. Diálogos -

Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de Maringa, vol. 10, núm. 3, 2006, pp. 167183. Eric Hobsbawm & Terence Ranger (orgs.). A invenção das tradições. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. Págs. 9-23. n. 11 (1988). BRANDÃO, Maria do Carmo. A LOCALIZAÇÃO DE XÂNGOS NA CIDADE DE RECIFE. CLIO - Revista de Pesquisa Histórica, n. 11 (1988). Em: http://www.revista.ufpe.br/revistaclio/index.php/re vista/article/viewFile/459/248 Acesso: 01/23/2016 OLIVEIRA, Marília Flores Seixas de, OLIVEIRA, Orlando José Ribeiro de, OLIVEIRA, Clara Flores Seixas de, PINHEIRO, Gabriel Souto. CANDOMBLÉ,

NATUREZA E SOCIEDADE: REINVENÇÃO DA ÁFRICA MÍTICA NO BRASIL. II Encontro da

Sociedade Brasileira de Sociologia da Região Norte 13 a 15 de setembro de 2010 - Belém (PA). Em : http://sbsnorte2010.ufpa.br/site/anais/ARQUIVOS/ GT15-358-376-20100831211944.pdf Acesso: 01/20/2016

e a Jurema, que fazem parte deste universo, mas que são deixados de lado por não serem considerados “puros”: É a inegável força da igreja Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 38

Artigo

BREVE DISCUSSÃO SOBRE A FENOMENOLOGIA EM KANT E HUSSERL Por Adílio Jorge Marques, André Vinícius Dias Senra e Leonardo Vaicberg

Introdução

K

O conceito de Fenomenologia pode ser entendido

ant pode ser considerado como o pensador que fundou as bases para o estudo de uma fenomenologia

enquanto

disciplina

acadêmica, na medida em que cunhou a expressão ‘fenômeno’ para designar os objetos que podem ser conhecidos pela razão humana. O kantismo tornou-se referência para análise dos aspectos relacionados à teoria do conhecimento. E a característica específica da

filosofia

kantiana

é

ser

uma

filosofia

transcendental, ou seja, buscar a fundação do conhecimento a partir do que pode ser representado

como a indicação para se constituir uma ciência filosófica. Etimologicamente, phainomenon (objeto fenomênico) deve ser assunto de um saber do conhecimento em geral (wissenschaft). O termo

Wissenschaft tem o sentido de uma ciência da razão e não se restringe à pesquisa científico-natural meramente objetivista. Assim sendo, o conceito de Fenomenologia implica em um estudo que não leva em conta apenas o mundo objetivo, mas também como o sujeito representa o objeto de tal modo que este não seja reduzido ao solipsismo subjetivista.

fenomenicamente. De acordo com Husserl, o método

Segundo Husserl, este é o problema kantiano na

fenomenológico é o método filosófico por excelência,

tarefa para constituir uma fundação do conhecimento

contudo, ele considera que o projeto filosófico de

a

Kant se encontra incapaz de cumprir o que promete

fenomenológico. Husserl acusa Kant de ter fracassado

em teoria. Husserl entende que o conceito kantiano

no projeto de uma Fenomenologia porque sua

de fenômeno se sustenta na ideia da condição de

filosofia era muito fisicalista, o que tornou impossível

possibilidade para uma experiência cognoscitiva. Isto

abordar a ideia do fenômeno sem que esta não

significa que tal conceito fundamenta-se em uma

estivesse reduzida aos aspectos sensíveis. De acordo

restrição de caráter empírico, não lógico.1

com o método de Husserl, a superação do

1

partir

do

que

deveria

ser

um

projeto

Husserl, E. A Ideia da Fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 1986.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 39 psicologismo torna-se necessária não somente em

analogamente, que a apreensão intuitiva deste

função do reconhecimento da esfera ideal da

objeto, só podia ser efetuada pelo sujeito empírico.

objetividade na condição de independente da sensibilidade,

mas

principalmente

porque

a

fenomenologia pretende ser o método filosófico que estabelece a fundação objetiva para o conhecimento em

geral.

O objetivo do trabalho, ao mostrar esta diferença sugerida

pelo

torna

doutrina a

redução

da

objetividade,

da

relação

de

conhecimento, aspectos tanto

Por

subjetivismo,

se

entende

qualquer

doutrina

que

psicológico. Se os pensamentos,

husserliana, referem-

Husserl

se propriamente à indagação sobre a

tem

expressão

como pressuposto a

objetividade,

que ao apoiar-se na

obviamente,

da

representação subjetiva do objeto, disputas

envolvendo

o o

aparecimento

da

apreensão

dos pela

consciência, refereCapa da obra Crítica da Razão Pura, 1781.

se a uma exigência de ordem lógica. Ainda

dualismo entre sujeito e objeto, que teve como conseqüência,

o

problema pensamentos

permitiu a existência de

que

melhor se ajusta à

metafísica,

ideia

na

definição

considera que a tese

tradição

dos problema

Desse

psicologista

a

pensamentos seja um

aos

idealista quanto no modo,

que

apreensão

sentido

empirista.

uma

subjetivista.

defenda

subjetivos,

no

mostrar

fenomenologia husserliana como uma concepção

O

possível

pretende

concepção que afasta a hipótese que associa a

psicologismo enquanto

título,

do

ceticismo,

precisamente por conta da ausência de um rigoroso fundamento filosófico para a questão. Esta é a herança do kantismo segundo Husserl. Desse modo, Husserl entendeu que o problema era que a base de argumentação cognitiva mantinha seu foco, até então, no objeto transcendente, do mesmo modo, e

que o conceito husserliano de fenômeno envolva a relação com um sujeito, contudo, não se trata de uma investigação acerca do objeto contido internamente na consciência. A proposta aqui esboçada em torno da ‘intencionalidade’, em sentido husserliano, não remete a nenhum aspecto relacionado às imagens sensíveis formadas com base na atividade psíquica, nem se refere a objetos privados da mente e, principalmente, não pretende propor nada em termos Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 40 do que se entende por estados mentais. A

intencionalidade não permite que as objetividades lógico-ideais dependam, em algum aspecto, da atividade psíquica do sujeito. Para tanto, a intencionalidade recorrer

aos

fenomenológica jogos

esquematismos

das

de

não

linguagem,

faculdades

da

precisa ou

aos

razão.

A

consciência intencional cumpre a função cognoscitiva de ser responsável pela apreensão dos pensamentos, sobretudo, porque as análises de sua atividade explicitam, para o sujeito do conhecimento, a origem do ser-objeto. O subjetivismo a que Husserl pretendia se opor nos Prolegômenos à Lógica Pura das

Investigações Lógicas, é o subjetivismo do positivismo psicológico,

que

predominava

nessa

época

(denominado psicologismo), que anexava à psicologia toda a filosofia e toda a teoria do conhecimento, interpretando as leis ideais do pensamento em nível

Edmund Gustav Albrecht Husserl

das atividades psíquicas, para finalmente reduzir todo

aparece não deve ser tomado como pertencente ao

o processo do ato consciente aos elementos sensoriais

mundo interno, solipsista ou privado.

associados à percepção. Ter consciência era para o

O que aparece é a apresentação da verdade sobre a

psicologismo o resultado da associação de conteúdos

coisa mesma. Não há algo oculto, ou melhor,

de consciência, todos reduzíveis à sua base orgânica,

enigmático no modo de apresentação do fenômeno.

de modo que, tal concepção tratava o objeto a partir

Em Husserl, a apresentação não esconde um sentido

de uma gênese psicofísica.

oculto, limitado racionalmente (tal como o noumen,

A noção de intencionalidade, a partir da

para Kant). As coisas aparecem porque são reais. E isto

caráter

se refere à ontologia e não aos assuntos psicológicos.

psicológico, porque deve ser compreendida como

Assim, o modo como as coisas aparecem, é parte do

modo de relação da consciência com um objeto. A

ser das coisas. Se as coisas podem ser objetivadas de

intencionalidade trata de uma abertura cognoscitiva

modos distintos, isto se deve a que cada região do ser,

‘para’ algo diferente da própria consciência e não de

tem um modo de tornar-se objeto para um sujeito.

um fechamento egológico ‘em si’. A intencionalidade

Cada ato intencional passa a efetuar a respectiva

é apresentada como abertura para os fenômenos em

experiência mediante o modo de apresentação do seu

um sentido realista em relação à manifestação das

objeto correlato. A fundação fenomenológica da

coisas. A fenomenologia reconhece a realidade das

objetividade indica que o critério da relação de

coisas que aparecem, e com isto reivindica um sentido

conhecimento deve levar em conta a intuição como

público para o pensamento, pois, funda os atos

abertura para a experiência cognoscitiva. Porém, esta

cognoscitivos na descrição do que aparece nos modos

fundação não se refere ao aspecto real da

intencionais de a consciência objetivar o ente. O que

representação mental, mas ao objeto intencional

reapropriação

husserliana,

perde

seu

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 41 fundado sobre o objeto real. Por esta razão, não cabe

está sempre ‘fundada’ sobre a evidência sensível. O

mencionar nada em termos de uma suposta dualidade

conceito de ‘fundação’ evita a confusão entre os

em relação ao objeto, e isto porque o objeto

domínios. Não se trata de derivar o inteligível a partir

intencional é o mesmo ente que se apresenta em um

do sensível, mas que o inteligível se engendra sobre o

modo de doação a ser conhecido judicativamente.

plano sensível, sem reduzir-se a ele.

Se a intencionalidade é propriedade da consciência,

Logo, de acordo com Husserl, o que aparece como

isto é, se um ato perceptivo, ao visar ou dirigir-se ao

objeto da percepção sensível não é concebido como

percebido, pretende apreendê-lo como seu modo

aparência de uma coisa em si, isto é, como se houvesse

próprio de ser objeto para a consciência, então, o ato

algo escondido atrás das aparências, tal como numa

do

conhecimento

é

perspectiva kantiana,

desvelamento do modo

mas

é

o

específico de ser, a

objeto em ‘carne-e-

partir do qual um modo

osso’

na

próprio sua

de apresentação do

corporeidade.2

objeto é intuído na

Parece que a filosofia

forma

uma

crítica de Kant trata o

idealidade. Portanto, a

título

de

fenomenologia

tem

‘fenomenologia’ em

como seu fundamento

um

a

do

duplamente limitado,

conhecimento que não

pois, não apenas ao

pode ser pressuposta

que há de intuição

em nenhuma das suas

sensível

partes constitutivas, de

objetividade, mas é

tal modo que sobre o

igualmente limitado

dado cognoscitivo não

em relação ao limite

esteja pairando alguma

dessa

evidência

relação enigmática.

Immanuel Kant

domínio

na

experiência

possível.

As teorias tradicionais do conhecimento se

Em Kant, o que aparece pode ser considerado como

debatiam em dificuldades acerca do problema sobre

um dado da sensibilidade, de modo que esta atua

as relações entre o sensível e o inteligível. A

decisivamente na formação do conhecimento, como

possibilidade de um acordo entre intuição e conceito

receptividade da representação do objeto, isto é, sem

se origina, para Husserl, da análise das evidências

a intuição sensível, não há ‘matéria’ para o conhecer,

correlativas. Significa que a evidência deve ser

pois, nenhum objeto nos seria dado (Kant, Crítica da

fundada. Para tanto, o sensível e o inteligível não se

Razão Pura, 1989, Lógica Transcendental, §1, A 50/51

encontram separados, pois, a evidência categorial

– B 74/75). Husserl, não trata a intuição sensível como

2 O adjetivo leibhaft tem vinculação com o substantivo Leib (corpo

modo, Husserl pretende destacar o caráter da presença do percebido (e assim, com o mesmo critério, pode-se pensar o substantivo Leibhaftigkeit como presencialidade).

orgânico) e se usa especialmente para indicar a presença in corpore, “em pessoa”, ou como se diz em carne-e-osso. Desse

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 42 irrelevante, contudo, sua censura a Kant se deve ao fato de que este não teria percebido que o ‘dado cognoscitivo’ não tem o caráter de uma experiência possível. O problema é que as sínteses kantianas, formadas a partir da intuição, não depuram o caráter real do objeto. Para Husserl, Kant não tematiza a Lógica Pura, e por esta mesma razão, não entende que o objeto do entendimento é de outra ordem. Assim sendo, o dado cognoscitivo da fenomenologia husserliana, só pode alcançar objetividade, se for fundado a partir da tematização do objeto que aparece como modo de apresentação em uma vivência intencional. Se, em Kant, o fenômeno é o objeto de uma experiência possível, isto quer dizer que as formas puras de espaço e tempo, na condição de determinarem o acesso ao fenômeno, estão referidas à realidade do objeto, logo, a justificativa do conhecimento ainda não está fundada na lógica. A censura de Husserl a Kant se deve precisamente ao fato deste não ter reconhecido um autêntico conceito

Conclusão Husserl não considera a filosofia kantiana como falsa, mas certamente insuficiente para estabelecer os parâmetros do autêntico método filosófico. Ao propor uma crítica da razão pura, Kant acertou ao perceber que o embate entre idealistas e empiristas era infrutífero e estéril para a Filosofia. Contudo, o fato é que este dualismo ainda se mantém no criticismo kantiano, de tal modo que Kant não garantiu as bases para que a Filosofia não pudesse ser superada pela Ciência. Muito pelo contrário, em sua resposta Kant nega a possibilidade da Filosofia como ciência. Para Husserl a resposta de Kant e dos kantianos mostra falta de compreensão sobre o que deve ser uma ciência filosófica. Adílio Jorge Marques é Doutor e Pós-Doutor em História e Epistemologia das Ciências. Professor da Universidade Federal Fluminense/INFES; André Vinícius Dias Senra é Doutor em História e Epistemologia das Ciências. Professor do IF de Volta Redonda; Leonardo Vaicberg é Doutor em História e Epistemologia das Ciências.

de a priori, sobretudo porque Kant não pôde conceber a função do entendimento a partir da intencionalidade. A investigação fenomenológica, ao procurar determinar como pode ser efetuada uma fundação cognoscitiva, termina por indicar o caminho de uma gênese da lógica. Isto quer dizer que, de acordo com Husserl, a determinação predicativa atua, precisamente, neste dado originário a ser conhecido, que é antepredicativo.3 A crítica de Husserl em relação a Kant indica que o critério para a ciência filosófica, denominada como fenomenologia, não possui o mesmo estatuto que a ciência da natureza, pois, os objetos da teoria filosófica não podem ser reduzidos ao realismo objetivista.

3 Kant, I. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 43

Artigo

CRISTIANISMO PRIMITIVO: SUA EMANCIPAÇÃO DA TUTELA JUDAICA E SUA DIFUSÃO (SÉCULO I D.C.) Por Flávio Henrique Santos de Souza

RESUMO: O cristianismo primitivo não foi algo monolítico em seu sistema de crenças, pois existiram várias comunidades cristãs no mundo antigo que tinham recepções e perspectivas diversas em relação à pessoa e aos ensinamentos arrogados a Jesus de Nazaré. Hoje, essa pluralidade ainda pode ser vista nas denominações cristãs contemporâneas. Pode-se dizer que existiram cristianismos na Antiguidade (como ainda existem hoje), de sorte que é sobre a versão inicial da fé cristã (que se tornou majoritária) que privilegiaremos neste artigo. PALAVRAS-CHAVE: Judaísmo, Cristianismo, Jesus de Nazaré, Paulo de Tarso.

Introdução

Posteriormente,

A

discípulos, companheiros de discípulos e anônimos

religião cristã surgiu após um grupo de discípulos

na

Palestina

antiga

ter

começado a propagar os ensinamentos

arrogados ao judeu Jesus de Nazaré, por volta do ano 30 d.C. (após a morte de Jesus), em seu território. Ainda no século I, entre 35 a 65 anos após a morte de Jesus, textos que receberam o nome de Evangelhos foram escritos (Mateus, Marcos, Lucas e João). Mais tarde, a nova geração de discípulos de Jesus, achou por bem compilar em um livro (que doravante se chamaria Novo Testamento) e

outros

livros

atribuídos

a

também compuseram o Novo Testamento. Sendo que, como é sabido, Jesus nunca escreveu nada acerca de seus pensamentos e pregações, como também, não se encontra no Novo Testamento nenhuma ordem de Jesus pedindo para que seus seguidores assim o fizessem. Caso houvesse, esse pedido seria estranho, pois a maior parte dos discípulos era analfabeta. Como podemos ver, segundo Atos dos Apóstolos, o caso dos pescadores Pedro e João, ambos os discípulos de Jesus:

interpretar os possíveis discursos de Jesus à luz das suas próprias experiências teológicas e subjetivas. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 44 Vendo eles a coragem de Pedro e João, e considerando que eram homens sem estudo e sem instrução, admiravam-se. Reconheciam-nos como companheiros de Jesus.1 E não só os seguidores de Jesus, majoritariamente, eram analfabetos. Mas a maior parte da população na Antiguidade também o era, e, sobretudo, na Palestina no século I. Existe uma hipótese que salienta que apenas 10% da população do Império Romano era alfabetizada.2 Assim, dá para imaginarmos qual seria a situação da Palestina rural antiga. Jesus nunca demonstrou o intuito de criar uma nova religião, porquanto o mesmo era judeu (para muitos teólogos católicos e protestantes Jesus disse que edificaria a sua Igreja. Assim, isso denotaria a criação de uma nova confraria religiosa.3 Contudo, só no Evangelho de Mateus se encontra essa assertiva. Pois, Marcos, Lucas e João não tocam no assunto). Os discípulos de Jesus fizeram com que uma religião

“nova”

nascesse, mas essa “nova”

espiritualidade adveio de uma miscelânea de crenças antigas de antepassados judaicos. No século I, muitos grupos de judeus viviam em

Pedro em ícone do século VI

nasceram vários prismas da fé cristã no mundo antigo entre judeus e gentios,4 porém, a religião cristã teve seu germe com judeus conversos a essa “nova filosofia”.

embates religiosos no que tangia às interpretações “corretas” da Lei mosaica. Assim como existiram cristianismos, também existiram judaísmos (e ainda

O nascimento do cristianismo Através

existem). De um modo geral, todas as experiências

dos

documentos

que

estão

nos

religiosas são plurais. Logo, assim como a religião

Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos,5 é possível

cristã herdou do judaísmo boa parte do seu sistema

visualizar que a religião cristã foi sendo engendrada

de crenças, podemos dizer que a “herança” das

após apropriações e interpretações dos ensinos

contradições

atribuídos ao profeta apocalíptico Jesus. Assim

interpretativas

das

Escrituras

perpassou também para a seara cristã. Destarte,

1

Atos, 4: 13. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus Foi? Quem Jesus Não Foi? Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 140-141. 3 Mateus, 16: 13-23. 2

4

Forma de denominação dada pelos judeus a todos aqueles que não fossem judeus. 5 Atos, 2.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 45 como pode ser visto nesse fragmento do Evangelho

posteriormente. Nos primeiros decênios, no

de Lucas:

governo de Herodes, o Grande, existia um bom

Muitos empreenderam compor uma história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como no-los transmitiram aqueles que foram desde o princípio testemunhas oculares e que tornaram ministros da palavra. Também a mim me pareceu bem, depois de haver diligentemente investigado

relacionamento entre Roma e os judeus, pois o império proporcionou aos judeus igualdade de oportunidades

econômicas

e

liberdade

de

movimento para bens e pessoas. Constituiram ricas comunidades onde quer que os romanos tivessem imposto a estabilidade.7

tudo desde o princípio, escrevê-los para ti segundo

A Judeia pode ser considerada como o “berço do

a ordem, excelentíssimo Teófilo, para que conheças

cristianismo”, lá, os romanos agiram com a mesma

a solidez daqueles ensinamentos que tens

política que aplicaram anteriormente em outras

recebido.6

regiões anexadas pelo Império. Os povos que eram

A fé cristã encetou a sua propagação inicialmente a partir de Jerusalém, e mais tarde se imiscuiu em todo Oriente Médio. De sorte que, doravante, a crença nas doutrinas cristãs tornou-se corriqueira em toda a Europa durante a Idade Média. Com o tempo, o cristianismo deixou de ser uma intrincada

subjugados e conquistados tinham liberdade de culto se não desafiassem as autoridades imperiais. Os aristocratas e sacerdotes judaicos aceitavam a subserviência a Roma, porque prerrogativas comerciais contemplavam os primeiros, e, os segundos mantinham o monopólio da religião.

“seita” judaica do século I, para se tornar uma

Como falamos anteriormente, existiam vários

religião de caráter universal e expansionista, com

grupos religiosos judaicos que coexistiam na

suas bases fincadas e, posteriormente, desdobradas

região. Dentre os principais estava o dos fariseus,

no Ocidente.

que

A Judeia no século I era uma das províncias controladas por Roma no Oriente. Esta se transformou em província romana a partir do ano 6 d.C., ficando sobre a jurisdição do governador da Síria. Lá houve grande disputa de grupos que se digladiavam pela liderança religiosa, pois os mesmos tinham diferentes interpretações da Lei

O território foi administrado pelos governadores romanos da chamada Ordem Equestre, e teve uma

6

tidos

como

“legalistas”

e

se

fundamentavam no estudo da Torá e nas tradições rabínicas; o dos essênios, que eram tidos como “puristas declarados” e viviam de forma ascética em comunidades isoladas; o dos herodianos, que eram reconhecidos por serem os “leais defensores do

status quo” do povo judeu; o dos saduceus, que representavam a “elite urbana” e estribavam-se somente na Lei de Moisés; e o dos zelotes, que eram

mosaica.

sucessão

eram

de

procuradores

que

“revolucionários” e esperavam uma oportunidade para se rebelarem contra Roma.

governaram

Lucas, 1: 1-4. Há mais de um século, os estudiosos do Novo Testamento tanto da América do Norte como da Europa, são unânimes em pontuar que todos os Evangelhos são anônimos. Pois nenhum dos seus autores diz ser uma testemunha e os nomes ligados aos títulos dos Evangelhos foram acréscimos posteriores feitos por escribas e editores. Além disso, os seguidores de Jesus falavam aramaico e os Evangelhos foram

escritos em grego. Entretanto, usaremos a nomeação tradicional dos Evangelhos por mera convenção. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus Foi? Quem Jesus Não Foi? Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 135-139. 7 JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 20.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 46 Todos esses grupos eram monoteístas, mas cada qual continha sua interpretação própria dos preceitos judaicos.8 Nessa ambiência de ebulição, durante o governo de

Otávio,9

Jesus de Nazaré

nasceu na Palestina.

aos doze anos de idade no Templo no meio dos doutores.12 Depois desses relatos discordantes e discrepantes supracitados sobre a menoridade de Jesus, segundo Mateus e Lucas, não há mais nenhuma evidência da

Quando se estuda sobre os cristianismos

sua meninice nos Evangelhos canônicos. Pois logo a

primitivos, nos deparamos com um problema muito

seguir, Jesus aparece com trinta anos (segundo a

comum a estudos feitos sobre a Antiguidade, isto é,

tradição cristã) recebendo o batismo pelas mãos de

a escassez de fontes. No caso da vida de Jesus e das

João Batista nas águas do Rio Jordão, e principia a

bases que formaram o cristianismo, poderíamos

pregação das suas ideias logo após esse ato.13 Na

citar que as principais fontes são os textos

perspectiva desta pregação, Jesus teria proclamado

conhecidos como Evangelhos e o Novo Testamento

a vinda do “Reino de Deus”. Para muitos Judeus,

como um todo.

Jesus foi mais um dentre vários curandeiros que quis

Em relação a Jesus, tido como o líder judeu que inspirou seus seguidores a fundar o cristianismo, existe um período nos textos dos Evangelhos canônicos10 sobre o qual praticamente não há informações

sobre

sua

pessoa,

mais

especificamente, sobre a sua infância e juventude. Percebe-se um hiato entre esses dois momentos da sua vida. Nos Evangelhos de Marcos e João, não há referência alguma sobre a menoridade de Jesus. Já no Evangelho de Mateus, as narrativas descrevem o nascimento de Jesus, a visita dos magos do Oriente ao menino, a fuga de José, Maria e Jesus para o Egito e a volta da África.11 Agora, no Evangelho de Lucas, as narrativas mencionam o nascimento de Jesus, a visita dos pastores de Belém ao menino na

assumir o cerne da condição messiânica do judaísmo,

correlacionando

sua

vida

ao

cumprimento das profecias das Escrituras judaicas (sendo que o legítimo Messias para muitos judeus era tido como um guerreiro que subjugaria Roma e instauraria um novo reino em Israel, ou seja, seria um líder político-espiritual e não apenas espiritual). No Evangelho de João, o último a ser escrito (entre 90-95 d.C.), há vários momentos da vida de Jesus que foram construções teológicas forjadas pelo autor para asseverar que ele teria se declarado Deus. E um desses momentos é quando Jesus teria falado: “Eu e o Pai somos um”.14 Essa atitude foi um diferencial dentre os profetas que já tinham passado pela Palestina anunciando um novo paradigma de sociedade, porquanto

manjedoura, a circuncisão do menino Jesus e Jesus

(...) nenhum profeta se permitiria tal audácia porque, a seu ver, essa era uma prerrogativa de Deus; eles somente aconselhavam aos que os

JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 25. 9 Em 31 a.C., Otávio venceu seus opositores e tornou-se general. O Senado o legitimou como “o principal, sendo chamado, por isso, de Príncipe. Recebeu, ainda, o título de Augusto, o venerável”. Assim, iniciou-se o regime imperial romano e Otávio foi o primeiro imperador. FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011, p. 89. 10 Os Evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) foram os únicos incluídos na compilação do Novo Testamento. De modo que o auge desse processo aconteceu no século IV,

assim, outros Evangelhos existentes no período não foram inclusos na Bíblia por decisão dos clérigos. Não tem como saber quantos Evangelhos existiram, mas o que se pode ter informação chega a duas dezenas. EHRMAN, Bart D. A Verdade e a Ficção Em O Código Da Vinci. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 81. 11 Mateus, 1: 18-24; 2: 1-23. 12 Lucas, 2: 1-52; Mateus 3: 13-17. 13 Lucas, 3: 21-22. 14 João, 10: 30.

8

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 47 ouviam que fizessem penitência para receber o perdão de Deus.15

deu a partir de seus supostos ensinos e da interpretação dos mesmos, bem como da interpretação de sua vida. É notório que em

Este teria sido mais um dos contextos que, mais

nenhum momento Jesus projetou a fundação de

tarde, gerou a ideia da identificação entre Deus e

uma nova religião, mas seus seguidores fizeram

Jesus de Nazaré pelos seus seguidores. Porém, nos

com que a institucionalização da fé cristã

três primeiros Evangelhos escritos (Marcos, Mateus

acontecesse. Agora, analisaremos o embrião da

e Lucas) essa identificação era inexistente.

formação dessa instituição segundo o relato do

Logo, Jesus foi considerado um dissidente e,

livro de Atos dos Apóstolos. Nesta análise,

doravante, foi perseguido por judeus que

privilegiaremos o propagar das crenças cristãs

remeteram ao governo romano a ideia de julgá-lo e

pelos discípulos e a separação entre a fé cristã e a

condená-lo. Nesse processo, o governo romano

religião judaica.

decidiu impetrar uma pena de castigos físicos, mas diante da renitência dos sumos sacerdotes e de boa parte da sociedade judaica, não houve outra saída

Cisma entre o judaísmo e o cristianismo

senão a condenação de Jesus.16 No ano 30 d.C.,

Os relatos dos Evangelhos mostram que Jesus de

Jesus foi condenado à morte por crucificação17 que

Nazaré antes da crucificação, teria asseverado que

foi implementada pelos romanos. No prisma das

ressuscitaria no terceiro dia após a sua morte e

autoridades romanas, Jesus era um rebelde político

outorgaria aos seus discípulos a missão de

que teria sido condenado por se autointitular rei

continuarem o trabalho que ele principiou. Os

dos judeus.18 Sendo que Jesus nunca se declarou rei

evangelistas canônicos que tinham objetivos

durante seu ministério, isso apenas poderia ser

teológicos afiançaram que Jesus teria realmente

deduzido em alguns episódios de sua vida.19 Logo,

“ressuscitado”, bem como teria “encontrado” com

só César (imperador de Roma) era considerado o

os discípulos na Galileia (apenas Mateus e Marcos

rei, destarte, os romanos executaram a pena, pois

dizem isso, mas de forma diferente e contraditória).

tinham o controle da província. Mas em questões

E também teria “prescrito” aos discípulos o

de cunho religioso dos judeus os romanos não se

seguinte:

intrometiam. Afora, se as autoridades imperiais romanas fossem desrespeitadas e aviltadas. Para que pudéssemos compreender a origem da

“Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo.”20

fé cristã, foi preciso fazer esse panorama no personagem Jesus de Nazaré. Pois o cristianismo se

DUQUESNE, Jacques. Jesus, a Verdadeira História. São Paulo: Geração, 1995, p. 132. 16 João, 19: 7. 17 “Crucificação ou crucifixão foi um método de execução cruel utilizado na Antiguidade e comum tanto em Roma quanto em Cartago. Abolido no século IV, por Constantino, consistia em torturar o condenado e obrigá-lo a levar até o local do suplício a barra horizontal da cruz, onde já se encontrava a parte vertical cravada no chão. De braços abertos, o condenado era 15

pregado na madeira pelos pulsos e pelos pés e morria, depois de horas de exaustão, por asfixia e parada cardíaca (a cabeça pendida sobre o peito dificultava sobremodo a respiração)”. Enciclopédia Barsa. Editora Encyclopaedia Britannica Consultoria Editorial Ltda. São Paulo, 1994, p. 111. 18 Marcos, 15: 2. 19 Mateus, 19: 28; 21: 1-10. 20 Mateus, 28: 19-20.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 48 Já no Evangelho de Lucas, os discípulos não saíram

(antes de sua morte). Esse movimento dos apóstolos

de Jerusalém.21 Nos Atos dos Apóstolos, após a

(agora os discípulos são chamados de apóstolos,

“ressurreição”, Jesus falou para que os discípulos

termo que no grego significa enviado, no intuito de

não se ausentassem de Jerusalém, enquanto não

dar mais visibilidade e coerência à missão de

recebessem a virtude do Espírito Santo. Esta,

cristianização) causou um agravamento na relação

segundo Jesus, daria “poderes sobrenaturais” aos

entre judeus ortodoxos e cristãos judeus.

discípulos, capacitando-os de testemunhar a seu respeito tanto em Jerusalém quanto em diversas outras regiões, tais qual a Judeia, a Samaria e regiões fora do horizonte hebraico.

Querela esta que não era nova, pois antes mesmo de Jesus de Nazaré ser crucificado, já havia travado inúmeros debates com os fariseus e outros religiosos judeus. A despeito de ser da religião

Algum tempo depois das supostas “ordens” de

judaica, Jesus afirmara um número considerável de

Jesus, na festa chamada Pentecostes (onde o

novas interpretações acerca das leis e preceitos do

discipulado de Jesus estaria reunido no cenáculo22)

judaísmo. Como por exemplo: o fato de não

os discípulos teriam recebido as ditas “virtudes

precisar “idolatrar” o sábado24 (para Jesus as

sobrenaturais” e, uma vez capacitados, se

pessoas eram mais importantes do que um dia tido

afirmaram na tarefa de pregar o evangelho de Jesus

como sacro25), o não apedrejamento da mulher

e realizar conversões aos seus ensinos.

pega em adultério26 (ambos os adúlteros deveriam

Conforme o autor de Atos dos Apóstolos, as conversões teriam acontecido inicialmente de forma intensa, pois depois do discurso proferido por Pedro no Dia de Pentecostes (cinquenta dias após a Páscoa), quase três mil pessoas teriam recebido o evangelho e sido batizadas em Jerusalém,23 porém, no que diz respeito ao mundo antigo é muito difícil saber quantas pessoas de fato

ser mortos27), o descumprimento das abluções rituais antes das refeições28 (segundo a tradição dos anciãos), declarou que todos os alimentos eram limpos29 (para os judeus a “pureza” no preparo e nos alimentos em si eram imprescindíveis30), privilegiou o amor aos seres humanos em detrimento à prática vazia e mecânica de sacrifícios religiosos pessoais31, etc.

se tornaram adeptas da fé cristã nessa conjuntura.

Jesus afirmava que não tinha o intuito de anular a

Isso porque não tinha nenhuma espécie de “censo”

lei judaica, mas cumpri-la.32 Os Evangelhos

para quantificar essa suposta conversão em massa.

apontam para aquilo que seria na visão dos líderes

O autor estava mais preocupado com questões

judaicos

proselitistas e teológicas, de modo que não se

descumprimentos de especificidades do judaísmo,

preocupou com a exatidão do número de pessoas.

o que nos leva a crer que o “não anular” de Jesus

Inicialmente, os discípulos se circunscreveram a Jerusalém e se reuniam nas casas para ensinar o que Jesus lhes havia determinado que fosse ensinado

época,

um

conjunto

de

possivelmente se referisse à continuidade das referidas leis na condição de uma verdadeira atualização das mesmas, pois o seu discurso aponta

21

27

22

28

Lucas, 24: 13-35. Atos, 2: 1-13. 23 Atos, 2: 14-41. 24 Marcos, 2: 27. 25 Êxodo, 20: 8-11. 26 João, 8: 1-11.

da

Levítico, 20: 10. Mateus, 15: 1-9. 29 Marcos, 7: 19. 30 Êxodo, 22: 31; Levítico, 11. 31 Mateus, 9: 13. 32 Ibid., 5: 17-18.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 49 para uma superação de diversos aspectos do

cristã).

judaísmo (superação esta necessária segundo Jesus

“transcendental” e logo começou a pregar sobre

e seus seguidores):

aquilo que anteriormente antagonizava nas

Com os fariseus Jesus poderia dialogar, mas, na verdade, estava lhes pedindo que abandonassem suas profissões de advogados do cânon, aceitassem uma teoria que permitia que os homens se justificassem sem a lei e uma doutrina de graça e fé que inviabiliza o legalismo.33

o senso histórico do discurso de Jesus no contexto do século I. Porque o judaísmo, para Jesus, aparece efetivamente como uma religião atrelada ao

teria

tido

uma

experiência

sinagogas judaicas em Damasco.37 A princípio os proponentes da fé cristã não acreditavam que Saulo se tornara uma espécie de judeu cristão e diziam: “(...) Este não é aquele que perseguia em Jerusalém os que invocam o nome de Jesus? Não veio cá só para levá-los presos aos sumos sacerdotes?”.38 Saulo era um fariseu fervoroso e zeloso pelas

É necessário, em nível de pesquisa histórica propriamente dita, que se compreenda até mesmo

Saulo

tradições

rabínicas,

como

afirmamos

anteriormente, chegava a entrar (caso achasse necessário) pelas casas e prendia homens e mulheres que contrariassem a lei.39

passado e do mesmo devia se livrar, superando

Saulo teria ido a Damasco, na Síria, com cartas

muitos preceitos antiquados e legalismos inférteis.

dadas pelo sumo sacerdote de Jerusalém para levá-

O senso histórico a que nos referimos sobre o qual nós já discutimos, é importante na pesquisa histórica até no sentido do não comprometimento desta pesquisa com segmentos religiosos cristãos, visto que o cristianismo é a religião que predomina no Ocidente.

las as outras sinagogas40 a fim de que viesse encontrar alguns cristãos, pudesse levá-los presos para Jerusalém41 (como o sumo sacerdote de Jerusalém

teria

autoridade

sobre

cristãos

espalhados em vários territórios? Nas Epístolas paulinas, não há nada que corrobore com essa narrativa de Atos. A não ser, Paulo como perseguidor de cristãos42).

Paulo de tarso: o arauto do cristianismo A religião cristã começou a se propagar de forma universal por ocasião da conversão de Saulo (ou Paulo), um judeu que era zeloso pelas leis judaicas.34 Ao analisar o livro de Atos dos Apóstolos,35 vemos Saulo que era fariseu, adepto do judaísmo e teria estado no julgamento e morte de Estêvão36 (considerado o primeiro mártir da fé

JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 44. 34 Filipenses 3: 4-6. 35 Atos, 9. 36 Ibid., 7: 54-60; 22: 20. 37 Ibid., 9: 1-25. 38 Ibid., 9: 21. 39 Ibid., 8: 3. 33

Na posse dos documentos legais que Saulo precisava para esta missão, ele tinha autoridade para lançar pessoas nas prisões, desde que estas fossem ao encontro dos preceitos judaicos. O pensamento dos cristãos judaicos daquela cidade era que a conversão de Saulo se tratava de um estratagema, pois ele teria começado a pregar que Jesus era Filho de Deus.43 E com isso, os cristãos

40

Assembleias judaicas que começaram a se desenvolver por volta de 225 a.C. As reuniões serviam para instruir o povo na Torá e manutenir a sua cultura como um todo. Com o tempo, o termo sinagoga tornou-se o nome do próprio edifício onde a assembleia se reunia. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p. 480. 41 Atos, 9: 1-2. 42 Gálatas, 1: 13-14; 1 Coríntios, 15: 9. 43 Atos, 9: 19-29.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 50

ressuscitou e apareceu para muitas pessoas, inclusive ele mesmo.”45

desconfiavam que fosse uma possível armadilha preparada pelo Sinédrio44 para levá-los à prisão, já

Agora discutiremos a

que um dos principais

respeito

defensores do judaísmo passado

por

cristãos judeus e aos

uma

gentios

experiência

porquanto

“transcendental” que o

cristã eram judeus. Com

dar

Saulo, esta fé foi levada

ao

trabalho por ele iniciado e

até a cidade cosmopolita

São Paulo por El Greco

que também eram os líderes da missão de cristianização local, temiam a pessoa de Saulo e não

de Roma. E os novos adeptos que a abraçavam eram de diversas “nacionalidades”.

criam na sua conversão. As crenças cristãs estavam arraigadas com normas do judaísmo. E antes mesmo de Saulo travar essas disputas com os judeus ortodoxos e judeus cristianizados, Jesus de Nazaré durante sua atuação pública, já teria travado discussões com líderes religiosos judaicos. Segundo o historiador Paul Johnson, Saulo não foi

O cristianismo começou a cindir-se do judaísmo quando questões capciosas foram levantadas pelos fariseus que zelavam renhidamente por aspectos da ortodoxia

“Paulo não pode apresentar-se como discípulo do Jesus histórico. Pelo contrário, foi investido apóstolo pelo Senhor ressuscitado. Seu Jesus é o filho de Deus, preexistente e supernatural, que aceitou a forma de “servo” para poder identificar-se como homem e estar disponível para seu papel sacrificial. Os únicos detalhes da vida de Jesus que importam, para os objetivos estritamente teológicos de Paulo, são a prova de humanidade e a crucificação. Ele também tem de mostrar, e fá-lo com detalhes impressionantes, que Cristo

Supremo tribunal dos Judeus em Jerusalém durante o século I. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p. 481.

judaica.

Nessa

conjuntura,

Saulo

escolheu usar o nome latino de Paulo para facilitar seu trabalho de divulgação da fé cristã entre os gentios.

considerado discípulo por que:

44

da

tornando adeptos da fé

Jesus de Nazaré tinha prosseguimento

antes

Tarso os que iam se

Até os apóstolos que para

cristãos,

conversão de Saulo de

converteria a fé cristã.

deixado

questões

internas referentes aos

ortodoxo era o que dizia ter

das

Paulo teria empreendido viagens missionárias e feito cristãos nas cidades que visitava.46 Mas não apenas

isso,

Paulo

deixava

verdadeiras

comunidades cristãs em cada lugar por onde passava e nas mesmas, deixava representantes e intendentes das doutrinas cristãs (investidura esta que é questionada por alguns historiadores), para administrar as práticas que, segundo ele, Jesus o teria “ensinado” e “dado” como missão, por ocasião

JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 35. 46 Atos, 13 e 14. 45

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 51 dos

processos

“sobrenaturais”

ocorridos

no

caminho para a cidade de Damasco.47

porque era o líder da Igreja de Jerusalém. A definição foi a seguinte: “Com efeito, pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do seguinte indispensável: que vos abstenhais das carnes sacrificadas aos ídolos, do sangue, da carne sufocada e da impureza. Dessas coisas fareis bem de vos guardar conscienciosamente. Adeus!” 51

Por volta de 47 d.C., ainda na primeira viagem missionária de Paulo, ele teve um embate de maior envergadura com judeus cristianizados e fariseus. Assim como pode ser visto no livro de Atos dos Apóstolos, alguns mestres judeus ensinavam que os gentios precisavam se circuncidar, de acordo com a prescrição de Moisés.48

Os líderes do cristianismo judaico deliberaram sobre essa questão e nesse contexto houve o

Paulo nos seus ensinos afiançava que todos

“divisor de águas”, os gentios não precisariam se

poderiam ter “acesso” a Deus por meio da fé. Os

submeter à circuncisão. Em contrapartida, teriam

fariseus tinham um prisma diferenciado, e

que observar outros preceitos da lei judaica, no que

postulavam que para ter “acesso” a Deus, era

tangia ao regramento alimentar e a conduta sexual.

preciso observar a Lei de Moisés e as tradições

Aqui ocorreu a cisão entre judaísmo e a fé cristã.

rabínicas.49 A perseguição contra Paulo teria

Johnson salienta que:

começado a ser mais intensa dentro do judaísmo a

“Essa Conferência Apostólica, ou Concílio de Jerusalém, foi o primeiro ato político na história do cristianismo e o ponto inicial a partir de que podemos procurar reconstruir a natureza da doutrina de Jesus, bem como as origens da religião e da igreja que ele trouxe à luz.”52

partir do atrito oriundo dessas discussões. Segundo Johnson: “Com efeito, ao chegar para o Concílio de Jerusalém, em 49 d.C., para defender sua completa liberdade de ação em sua missão gentílica, sua doutrina estava assumindo a forma madura. Baseava-se não apenas na comunicação direta por parte de Deus, mas na esclarecedora experiência em campo.”50

Por ocasião dessas querelas surgiu o Concílio de Jerusalém ocorrido em 49 d.C., à questão foi levada aos líderes judeus para a assembleia de Jerusalém e a tônica do concílio foi se os gentios adeptos da fé cristã precisariam atentar para o rito mosaico ou se não era preciso tal observância. A resolução dessa questão foi declarada por Tiago o irmão de Jesus,

A despeito dessa cisão, Paulo ainda teria encontrado muita resistência entre os fariseus e outros judeus religiosos quanto à aceitação dos gentios em abraçarem a fé em Deus. Apesar dessas intempéries, por volta de 50 d.C., Paulo

deu

início

a

sua

segunda

viagem

missionária.53 Foi nessa empresa que Paulo teria chegado à Grécia. Nas sinagogas gregas, ele disputava com os judeus ortodoxos e religiosos que se apresentavam para o debate. Apareceram filósofos de epicureus54 e estoicos55 que teriam

47

Ibid., 9: 1-18 Ibid., 15: 1 49 Ibid., 15: 5-6 50 JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 50. 51 Atos, 15: 28-29 52 JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 11. 53 Atos, 16,17 e 18. 48

54 Discípulos da escola filosófica

fundada por Epicuro (342-270 a.C.). Esta filosofia tinha por escopo insuflar nos cidadãos gregos que cada qual deveria almejar o prazer subjetivo em detrimento da vida pública e dos deuses. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p. 146. 55 Discípulos da escola filosófica fundada por Zenão (336-263 a.C.) e Cleantes (331-232 a.C.). Esta escola se opunha a do epicurismo, pois para os estoicos o sentido da vida estava na

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 52 debatido ideias metafísicas com ele, estes

três meses. Pronto para regressar a Síria, Paulo

afirmaram que Paulo era um pregador de deuses

mudou de ideia, porquanto soube de um plano que

estranhos. Pois Paulo discorria sobre Jesus e a

os judeus ortodoxos orquestravam contra sua vida,

“ressurreição” dos mortos.56 Assim, levaram Paulo

voltou então para a Macedônia e desfechou seu

ao

Areópago,57

porque a nova doutrina gerou

périplo em Cesareia.59

grande curiosidade nos atenienses. Em Atenas, Paulo pregou contra os deuses dos

Por volta de 60 d.C., Roma foi o destino de Paulo e

seus

companheiros,

viagem

esta

que

atenienses e os chamou de ídolos. De acordo com

provavelmente foi a última de suas viagens

Atos dos Apóstolos, Paulo conseguiu converter

missionárias. O início da viagem se deu em

Dionísio, o Areopagita, e depois se foi.58 Porém,

Jerusalém, onde foram recebidos com grande júbilo

essa suposta visita de Paulo à Grécia não teve tanto

e festejo pelos gentios cristianizados. Estando em

sucesso como teria tido em outras cidades, pois

Jerusalém, Paulo enfrentou mais uma vez os judeus

toda a construção do pensamento grego estava

ortodoxos. Pois eles o acusaram de profanar o

solidificado e isso engendrou dificuldades para ele

Templo de Jerusalém60 colocando um gentio

obter um bom resultado na sua missão de

cristianizado no recinto religioso dos judeus.

cristianização.

Porquanto os gentios só poderiam ficar no átrio exterior do Templo e não

Por volta de 53 d.C., na terceira

na seção dos judeus:

viagem

“(...) O adro dos gentios, ao qual tinham acesso os pagãos, era bem situado no Templo, antes da barreira, do cercado que separava o puro do impuro.61 Mas nada comprovava que Paulo teria feito isso.”62

missionária, Paulo teria percorrido toda a região da Galácia e da Frígia, com o objetivo de tornar mais forte a fé dos cristãos

através

dourinações

de feitas.

Depois do discurso de

Quando ele chegou em

Paulo em sua defesa e

Éfeso, ficou ali por três anos. seguiu

Depois para

seu

disso,

Sinédrio.63

a

permaneceu cerca de

foi

em Cesareia por dois

passar novamente por onde

Ele

no

colocado sob custódia

Macedônia, e teve de Corinto,

discurso

anos, pois os judeus Imagem de Maria com Jesus e um dos profetas, presente nas Catacumbas de Santa Priscila em Roma, datada entre o século II e III

busca racional e ética. E não no prazer individual acima de todas as coisas. Ibid., p. 156. 56 Atos, 17: 16-21. 57 Conselho composto de anciãos nobres. Foi criado por Sólon em torno de 640-558 a.C. e tinha responsabilidades judiciais e políticas. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p. 43.

ortodoxos conspiravam

58

Atos, 17: 22-33. Ibid., 19 e 20. 60 Ibid., 21: 26-34. 61 DUQUESNE, Jacques. Jesus, a Verdadeira História. São Paulo: Geração, 1995, p. 156. 62 Atos, 21. 63 Ibid., 22 e 23: 1-11. 59

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 53 contra a sua vida.64 Paulo ainda teria se apresentado

faziam com qualquer manifestação religiosa. Para

perante o tribunal do governador Félix, perante

os cristãos, havia uma única verdade que se

Festo (onde apelou para ser julgado por César) e

estribava no seu líder: Jesus de Nazaré. Este é um

diante do rei Agripa.65 Paulo pediu transferência

dos motivos da intensa perseguição dos cristãos

para Roma e o comandante tomou ciência que ele

pelos romanos. Essa postura radical por parte dos

era cidadão romano66 (apenas no livro de Atos

adeptos do cristianismo mexeu com alguns

consta essa afirmação) e o soltou, pois ele apelou

imperadores romanos que se colocaram contra os

para ser julgado por César e foi enviado de navio a

cristãos.

Roma.67

Com a “infiltração” da fé cristã nas cidades do

Acredita-se que Paulo de Tarso teria sido solto

Império Romano aos poucos aconteceu conversões

dois anos depois de chegar a Roma. Onde ficou

ao Deus monoteísta, com isso a natureza divina da

prisoneiro nesse período, podendo escolher a

autoridade imperial e o panteão de deuses romanos

residência de sua estadia.68 Com isso, pôde realizar

foram caindo em obsolescência e descrédito.

pregações na capital do Império Romano. Pode-se dizer que Paulo deu status universal à mensagem de Jesus e ao cristianismo nascente.

Ao analisar as ações de Paulo no que concerne ao surgimento e expansão da fé cristã, parece coerente afirmarmos que ele teria sido o grande arauto desta religião e um dos responsáveis da não

Considerações finais Com Paulo, o cristianismo deixou de ser uma “seita” do judaísmo para se tornar uma religião “nova”, mas que ainda em seu âmago existem elementos judaicos. A historiografia e as fontes sugerem que Paulo teria uma missão de caráter cosmopolita no que se refere ao processo de cristianização, enquanto aos demais apóstolos essa missão não estaria incumbida (exceto o apóstolo Pedro que teria sido o primeiro a pregar para alguns gentios na casa de Cornélio,69 mas Paulo afiançava que essa missão era dele e não de Pedro70).

extinção e da não “nacionalização” da mesma, ou seja, com Paulo os pressupostos da fé cristã não ficaram cerceados a Palestina. Isso porque Paulo teria empreendido várias viagens missionárias que conseguiram mais adeptos e em cada lugar visitado, teriam sido deixados líderes locais para administrar a prática religiosa cristã (para alguns historiadores, Paulo não deixou anciãos ou ninguém como líder, de sorte que as igrejas-casas fundadas por Paulo não tinham estruturas rígidas ou hierárquicas.71 Isso porque, parecia que Paulo acreditava no iminente “retorno” de Jesus para instaurar o “Reino de Deus” e que os seus seguidores estavam vivendo os

Em Roma, os convertidos a religião cristã tiveram

últimos dias da humanidade ainda no século I,72 de

uma relação com outras religiões fundamentada na

sorte que até nos discursos atribuídos a Jesus têm

intolerância, pois os cristãos não aceitavam, por

esse

exemplo, a divindade imperial romana. Assim o

conjuntura73). Assim, Paulo foi para o polo

64

69

65

70

Ibid., 23: 12-35. Ibid., 24, 25 e 26. 66 Ibid., 22: 25. 67 Ibid., 27. 68 Atos, 28: 16.

espectro

de

fim

iminente

naquela

Ibid., 10. Gálatas, 2: 7-8. 71 1 Coríntios, 14: 26-39. 72 1 Tessalonicenses, 4: 13-18. 73 Marcos, 9: 1; 13: 30.

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G N A R U S | 54 antagônico da religiosidade, de perseguidor dos cristãos passou a ser um grande divulgador e perseguido pela sua fé. Ainda no século I, no Império Romano, as perseguições aos cristãos tornaram-se coisa de Estado, o culto divino ao imperador foi instaurado por Augusto, mas a sua formalização aconteceu antes com Domiciano. Monoteístas como os judeus, os cristãos não prestavam o culto divino ao imperador, isso desencadeou reações intensas do Império contra os cristãos. Em curtos períodos de extrema violência, ocorreram várias perseguições. A aplicação das sanções era executada tanto na capital, como nas províncias. A perseguição acometeu a muitos e os romanos utilizaram diversos métodos, a saber: crucificação, purificação pelo fogo (queimar a pessoa viva), jogos no Coliseu ou outras arenas romanas, onde os cristãos eram objeto de escárnio e serviam de alimento a animais ferozes.74 Mas um paradoxo ocorria ao mesmo tempo em que os cristãos eram assassinados, cada vez mais pessoas se convertiam ao cristianismo, sobretudo pobres e escravos. O cristianismo foi crescendo entre as camadas desfavorecidas e não podia mais ser ignorado. Contudo, a partir do momento em que cidadãos abastados residentes no Império Romano também começaram a se converter a “nova” religião, o cristianismo passou a não mais representar para os romanos um perigo social durante um lapso de tempo. Flávio Henrique Santos de Souza é Licenciado em História pela Universidade Castelo Branco (UCB) e Pósgraduado em História Antiga e Medieval pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEA-UERJ). Pós-graduando em História do Cristianismo pela UNISUAM.

Mircea Eliade no verbete inquisition informa que a prática inquisitorial data do período romano e com o mesmo sentido, ou seja, o de purificação da alma da pessoa pelo fogo. Vários 74

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2003. DUQUESNE, Jacques. Jesus, a Verdadeira História. São Paulo: Geração, 1995. EHRMAN, Bart D. A Verdade e a Ficção Em O Código Da Vinci. Rio de Janeiro: Record, 2005. ____________. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014. ____________. Evangelhos Perdidos. Rio de Janeiro: Record, 2012. ____________. Jesus Existiu ou Não? Rio de Janeiro: Agir, 2014. ____________. O Problema Com Deus. Rio de Janeiro: Agir, 2008. ____________. O Que Jesus disse? O Que Jesus Não disse? Quem Mudou a Bíblia e Por quê? Rio de Janeiro: Agir, 2015. ____________. Pedro, Paulo e Maria Madalena. Rio de Janeiro: Record, 2008. ____________. Quem Escreveu a Bíblia? Por que os Autores da Bíblia Não São Quem Pensamos Que São? Rio de Janeiro: Agir, 2013. ____________. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? Rio de Janeiro: Ediouro, 2010. ELIADE, Mircea. Ed. The Encyclopedia of Religions. New York: Macmillan Publishers Co.,1990. Enciclopédia Barsa. Editora Encyclopaedia Britannica Consultoria Editorial Ltda: São Paulo, 1994. FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I-VII). São Paulo: Paulus, 1995. FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo: Companhia das Letras. Círculo do Livro, 1989. HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Rosari, 2008. JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. JOSHUA, Abraham Heschel. Deus em Busca do Homem. São Paulo: ARX, 2006. LLORCA, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica. Bac: Madrid, 1955. RADMACHER, Earl D.; ALLEN, Ronald B.; HOUSE, H. Wayne. O Novo Comentário Bíblico NT. Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2010. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006.

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G N A R U S | 55

Artigo

DRUMMOND: UM POETA POLÍTICO EM UMA MILITÂNCIA APARTIDÁRIA. Por Cindye Esquivel Vieira.

Esse país não é meu nem vosso ainda, poetas. Mas ele será um dia o país de todo homem (DRUMMOND, 1945)

O seu

presente trabalho pretende trazer

O Brasil que guardava Drummond em um de seus

contrastes entre Carlos Drummond de

gabinetes era um Brasil em efervescência.

Andrade, com sua posição política, e o

Tínhamos um Governo turbulento com vários

constante

envolvimento

em

ambientes

integrantes nesse imenso jogo de xadrez com peças

partidários que não o representavam. Para tal,

tendendo para todos lados, tentando jogar o jogo

usamos, principalmente, trechos de seu diário,

do “rei”, que não era tão esguio quanto ao do

possibilitando estar em contato com o poeta em

xadrez, ou tomar-lhe a coroa.

sintonia consigo mesmo. Como o intuito e situar o contexto vivido pelo autor em 1945, voltaremos em 1937 para clarear os motivos da escrita com toques de incredulidade que tanto caracterizaram-no naquele momento.

Ao longo dos anos 30 as organizações partidárias retomam o fôlego inspirados pelo clima de Revolução. O PCB, existente desde 1922, continua a reviver antigos fantasmas; a AIB, surgida em 1932, tinha uma faceta útil ao Governo e por isso teve a sua existência bem aceita até o Estado Novo; a ANL,

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 56

Drummond com Capanema em 1932

criada em 1935, caminhava à esquerda e conquanto

paternalista, elitista, autoritária e eivada do

Rodrigo Patto ressalte que “configurou-se no

voluntarismo golpista”3.

jargão comunista como uma ‘frente’ política”1, a Aliança não foi obra erguida em alicerces comunistas, muito embora não os desprezasse. É interessante frisar que no que tange “postura autoritária”,

e

ANL

possuem

que o ex-tenente iria se dirigir ao poeta anos mais tarde. É comum associar o nome de Luis Carlos Prestes à Coluna e chama-lo, quase de imediato, de

alguma

“comunista”, contudo, ele nem sempre vestiu o

familiaridade, mesmo que o cerne fosse para “lados

vermelho, na verdade, só veio a ter permissão da

opostos”. Enquanto que para a direita, a AIB, “o eixo

Internacional Comunista para filiar-se em 1934. O

da proposta era a formação de um Estado integral,

Partido Comunista vivia, em 1930/31, “a plena

uma organização estatal forte, centralizada e

euforia da proletarização”4 e Prestes representava

autoritária que se responsabilizaria pela renovação

o modelo burguês a ser combatido. O curioso é que

nacional e pelos combates às tendências negativas

para

da modernidade”2; na esquerda, a ANL, “os

militares o nome de Prestes integra mais o lado do

tenentes aliancistas mantiveram sua antiga visão

“Cavaleiro da Esperança” a que o de “comuna”.

MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. P. 71. 2 Idem, p. 73

3

1

AIB

O PC e Prestes merecem, aqui, uma atenção já

seus

devotos

seguidores/admiradores

VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de

1935. P. 128. 4

Idem, p. 70.

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G N A R U S | 57 Em 1937 temos o golpe de Estado que poria

Brigadeiro é sabido, mas esse intelectual engajado

Vargas na cadeira presidencial até 29 de Outubro

não acompanhava a favor da militância, como será

de 1945. De imediato as camadas autoritárias são

visto a seguir.

expostas, é decretada a lei 37 de 2 de Dezembro de 1937, que dissolvia (e punia transgressores) os partidos políticos. O cenário que se seguiria de 1937 a 1945 no campo político seria praticamente imóvel até os ventos de instabilidade voltarem a soprar depois da entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial. O

O poeta em 1945. “Eu mesmo não estarei dividido, no fundo? Deixei meu trabalho no Gabinete de Capanema para ter o gosto de militar contra Getúlio e seu continuísmo, e eis que sou empurrado para o lado que não quer combate-lo, a fim de colher dividendos políticos antigetulianos... Entenda-se. “9

autoritarismo de Vargas é posto em xeque. A escolha do lado “aliado” suscita o questionamento: como aliar-se ao lado democrata se o regime interno era fechado, autoritário, fascista e com requintes do nazismo? Em 43, já esgotada a possibilidade de sustentar o Governo, Getúlio alivia as rédeas: veio a anistia e logo viria a eleição. A nova brisa com sutis toques democráticos traz de volta as atividades políticas e com isso, os partidos retomam suas organizações. Os próximos passos foram as eleições depois de um longo jejum. E a partir deste momento, desejamos dar ensejo a próxima parte deste trabalho, mas antes, o seguinte trecho de Benevides se faz necessário: “Em linhas gerais, portanto, é possível afirmar que, excluindo-se os setores populares, todos os grupos representativos da sociedade civil, dos liberais-conservadores aos socialistas, passando pelos intelectuais “engajados”, apoiavam ou mesmo militavam na campanha do Brigadeiro.”5

Faz-se necessário traçar também uma breve trajetória de Carlos Drummond de Andrade, afinal, o intuito destas linhas é mostrar onde nossos agentes

se

esbarram

e

o

desdobramento

acarretado a partir de então. É importante salientar que a interação de Drummond com a política é morna desde o início, suas poesias se tornam mais afiadas mediante sua jornada, contudo, temos desde seus primeiros escritos um homem com um ceticismo sem estandartes. Drummond chega ao Rio de janeiro no início da década de 30. Trouxe na bagagem sua experiência nos jornais “Diário de Minas”, “Minas Gerais”,

“Estado de Minas”, “A Tribuna” e “Diário da Tarde”. Tendo atuado também em revistas10 e iniciado sua vida pública como auxiliar de gabinete do Secretário de Interior Cristiano Machado. Posto esse que se elevou quando Gustavo Capanema assumiu, passando para oficial do dito gabinete.

Dentre os “engajados” a autora cita6 os

Outrossim sua vida poética já havia começado; No

intelectuais da ABDE7 e da UTI8, ambos

meio do caminho já tinha-se achado uma pedra, do

frequentados por Carlos Drummond de Andrade.

mesmo modo que “Alguma Poesia”11 e “Brejo das

Que o voto à presidência dado pelo poeta foi no BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o Udenismo. P. 34. 6 Na página anterior. 7 Associação Brasileira de Escritores. 8 União dos trabalhadores intelectuais. 5

9 ANDRADE, Carlos Drummond de. O Observador no escritório.

P. 43. 10 Na Revista de Antropofagia e na Revista do Ensino da Secretaria de Educação, ambas em 1928. 11 Seu primeiro livro, lançado em 1930.

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G N A R U S | 58

Almas”12 já estavam publicados. Em 1934 chega ao

desenrola nos bastidores e com pouca luz. Que peut um homme?”17

Rio de Janeiro para chefiar o gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública, posto que só abdicaria em 14 de Março de 1945. Já

Ceticismo. Descrença. Receio. Para Drummond “a

no Rio de Janeiro, colabora na “Revista Acadêmica”

dificuldade de articular a esquerda com o

(1937), “Euclides” (1941), “A Manhã” (1941 e sua

movimento antigetulista dos políticos liberais e

produção poética se estende.13

descontentes”18 era latente e após a entrevista

Antes de conduzir-nos a 1945, onde gostaríamos de delegar uma maior atenção, deixamos um escrito de 1944 que possibilita desenevoar uma possível posição dúbia do poeta que era

coletiva de Getúlio à imprensa, estava convencido de que ele seria candidato à sucessão dele mesmo, faltava então a indicação de seu nome pelo partido de base governista que viria a ser criada. Como consequência do retorno das atividades

funcionário do governo autoritário de Getúlio: “Agosto, 23 – O Governo promoveu um comício para comemorar o segundo aniversário de entrada do Brasil na guerra [...] Na grande faixa de pano erguida junto ao Teatro Municipal, a inscrição “Ordem e Disciplina”, indicando que o Governo pensa menos em ganhar a guerra do que em salvar-se [...] Assim se comemora duplamente o aniversário de uma guerra sui generis, do fascismo interno contra o fascismo externo.”14

políticas no país, Carlos Drummond de Andrade de despede de seu posto no gabinete de Capanema em Março de 45. No fim deste mesmo mês o interesse de visitar Luís Carlos Prestes aumenta já que a censura foi suprimida e as visitas a presos políticos foram liberadas mediante os passos democráticos que o país tomava.19 O Brasil gritava

Estamos em 1945, logo no início de Janeiro

“ANISTIA” e o poeta também: Mal foi amanhecendo no subúrbio as paredes gritaram: anistia. Rápidos trens chamando os operários em suas portas cruéis também gritavam: anistia, anistia. [...] Anistia nos becos, nos quartéis, nas mesas burocráticas, nos fornos, na luz, na solidão: só anistia. [...] Esta é a voz dos mortos sob o mármore, é a voz dos vivos no batente. Ouço mil bocas em silêncio murmurando: anistia. [...] Vem pois, ó liberdade, com teu fogo, tua rosa rebelde nos cabelos, vem trazer os irmãos para o sol puro e incendiar de amor os brasileiros.20

intelectuais da ABDE15 recorrem a um telegrama ao presidente para suspender a censura. O ano mal começara e já trazia suplícios. Em Fevereiro, José Américo de Almeida dá o pontapé eleitoral que respingaria nas ações do Governo, a Constituição fascista de 37 é reformulada, a lei eleitoral logo sairia, “já começa a ferver o ambiente político, despertando da letargia de quase oito anos”16, contudo, os olhos melindrados do poeta não se convencem já que “[...] por maior que seja minha boa vontade em assumir comportamento político, espectador que sou e sempre fui de um espetáculo em que a ação verdadeira nunca é apresentada no palco, pois se 12

17

13

18

Lançado pela cooperativa Os Amigos do Livro em 1934. “Sentimento do Mundo” em 1940, “Poesias” em 1942 e “Confissões de Minas” em 1944. 14 ANDRADE, Carlos Drummond de. O Observador no escritório. P. 13. 15 Associação Brasileira dos Escritores. 16 ANDRADE, Carlos Drummond de. O Observador no escritório. P. 20.

Idem, p. 21. Ibdem, p.23. 19 Tal encontro viria a acontecer no mês seguinte, totalizando três encontros registrados pelo poeta em seu diário, posteriormente publicado. 20 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poema de março de 45, Correio da Manhã.

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G N A R U S | 59 guiar-se por si mesmo e estabelecer ressalvas à orientação partidária. Nunca pertencerei a um partido, isto eu já decidi. Resta o problema da ação política em bases individualistas, como pretende a minha natureza.”21

O clima político estava amenizando e Drummond recebe convites de atuação. “O Correio da Manhã” e o “Diretrizes” ostentavam-no no corpo editorial, jornais com tomadas políticas diferentes; Enquanto este pende para a esquerda, aquele caminha em tom

mais

conservador

e

Inevitavelmente, o homem com relutância precisa se posicionar no cenário político em que se aloja. Um homem com ideais mas apartidarismo, não seria esse o estandarte daqueles que caem na descrença política? “Sou um animal político ou apenas gostaria de ser? Esses anos todos alimentando o que julgava ideias políticas socialistas e eis que se abre o ensejo para defende-las. Estou preparado? Posso entrar na militância sem me engajar num partido? Minha suspeita é que o partido, como forma obrigatória de engajamento, anula a liberdade de movimentos, a faculdade que tem o espírito de

Andrade, Carlos Drummond de. O Observador no escritório. P. 33. 21

O tão esperado encontro com Prestes ocorre. Lá

antigetulista.

foram Drummond, Cecília Neves e Oswaldo Alves, “três intelectuais sem militância política mas desejosos de viver politicamente os novos tempos”22. O registro da conversa, pelo poeta, nos mostra que houve a preocupação por parte de Prestes de desenvolver a percepção do panorama político. “Em 1922 e 1924, eu e meus colgas, simples cadetes da Escola Militar, tomamos atitude política apenas por sentimento de coleguismo e brio militar, diante da carta falsa atribuída a Artur Bernardes e fabricada por esse mesmo Correio da

22

Idem, p. 35.

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G N A R U S | 60 Manhã. Naquela época não conhecia nada de política. Mas em 1926 comecei a analisar melhor o movimento político. Finalmente, o contato com os nossos políticos, no exílio em Buenos Aires, me convenceu de que nenhum deles tinha realmente preocupações patrióticas. Todos aspiravam, antes de mais nada, à sua própria proteção. Eles não evoluíram, conservam a mesma mentalidade. Fizeram uma revolução completamente errada, a de 1930, e agora querem perturbar de novo a vida do país. Foram esses mesmos homens que deram ao Governo, através de um Congresso capitulacionista, todas as leis de segurança e opressão solicitadas por ele.”23

registradas neste dia viriam a ser publicadas em Abril de 1980 no Jornal do Brasil divididas em três partes27. Tal publicação gerou resposta de Prestes e a consequente de Drummond, ambas registradas nas páginas do Jornal do Brasil no dia 19 de Abril de 1980. Um segundo encontro entre o poeta e o líder acontece. Em pauta, desta vez, estava a necessidade de um jornal democrático, na direção d’O Popular28 já estavam Pedro Mota Lima, Alvaro

A ANL também é assunto: “A Aliança Nacional Libertadora, esta sim, organização legitimamente democrata, sofreu ataque desses elementos que, em face do “espantalho comunista” criado pelo Governo, fizeram causa comum com este, ajudando a exterminá-la em 1935. O malogro aliancista não resultou de erro propriamente dito da sua direção. Faltou a esta a força necessária para anular as manobras fascistas dos que agora, no decorrer da Segunda Guerra Mundial, foram rotulados de quinta-colunas.”24

Moreyra, Delcídio Jurandir e Aydano de Couto Ferraz, a conversa foi um pedido para Carlos Drummond de Andrade viesse a ser o quinto membro. E foi. O terceiro encontro, este feito por Arruda Câmara falando em nome de Prestes, informa ao poeta que seu nome foi cotado para compor a chapa de candidatos a deputado pelo PC de Minas. “Respondo que me sinto muito honrado, etc., mas que não tenho a mínima vocação para parlamentar. Além do mais, não pertenço ao PC e não estou sujeito à sua disciplina, o que faria de mim um representante muito individualista.”29

O Brigadeiro, nome tão lembrado nos dados tempos, também apareceu na conversa: “É homem honesto, de boas intenções, mas ingênuo. Está cercado de políticos, com os quais não aprendeu a

A clara despretensão política de Drummond fica

lidar, pois fez carreira puramente profissional, em sua especialidade.”25 A conversa permeia ainda sobre o entreguismo da imprensa, motivos de abertura de visitar a presos políticos, atitudes do Governo Vargas, futuro posicionamento do PC, a não interferência Soviética na política, a culminância das esquerdas quando o PC se reorganizasse, o acalanto que a poesia traz em algumas horas ao “chefe legendário da Coluna”. A “metralhadora verbal de Prestes fala sempre, sem pausa, sem cansaço”26. As palavras

cada vez mais latente. Sua participação no Tribuna Popular esfria concomitantemente à sensação de impossibilidade de abordar temas políticos. O desconforto com o jornal atinge o ápice após a deposição de Getúlio e o manifesto publicado no dia 4 de Novembro de 1945 sob chamada de “O PARTIDO COMUNISTA DIRIGE-SE À NAÇÃO” na primeira página. Em tal carta à nação, Drummond entende que a posição tomada pelo jornal foi contrária ao afastamento de Vargas. Para ele, o que

23

26

24

27

Ibdem, p. 35. Ibdem, p.36. Há uma resposta de Drummond a essa fala: “Prestes não admite erro de direção propriamente dito, mas a superestimação da força não será um erro grave de direção?” 25 Ibdem, p. 39.

Ibidem, p. 38. Publicadas seguidamente nos dias 1, 3 e 5 de Abril de 1980. 28 Que viria a se tornar a Tribuna Popular. 29 Ibidem, p. 51.

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G N A R U S | 61 houve foi golpe contra golpe, não é algo a ser

o partidarismo, não se pode inferir que o poeta não

aclamado mas não é novidade já que o próprio

era político, tampouco que fosse apático, a sua

Vargas

da

atuação evidencia justamente a desconfiança de

maquinação do Plano Cohen. Drummond por não

um intelectual frente ao partidarismo. Os adventos

“chorar a queda de Getúlio nem aprovar a linha

políticos fizeram-no cair na descrença partidária e

política do jornal”30, desligou-se do Tribuna

a consequente segmentação política que a tal

Popular. No dia 7 de Novembro de 1945 seu nome

formação traz.

chegou

à

presidência

através

já não constava mais no cabeçalho do jornal, sua colaboração estava finda.

É importante lembrar que Drummond foi um homem de Vargas, foi a favor da criação da UTI33 a

No mês seguinte o jejum de votar para presidente

fim de aliviar o caráter militante da ABDE, abdicou

chegava ao fim depois de quinze anos. Suas

de falar de política para tratar de Literatura quando

escolhas: Brigadeiro Eduardo Gomes (presidente),

achou que suas palavras não mais serviam aquele

Prestes e Abel Chermont (senadores) e chapa de

propósito e etc. Trouxemos isto para ressaltar que a

Prestes (deputados). Acerca de suas considerações

preocupação política existia para o autor mesmo

referentes à eleição,

que seu individualismo partidário fosse assaz

“Seja o que for, entre Dutra, candidato do PSD conservador, e ledo Fiúza, candidato de última hora do PC, com sua biografia ruidosamente exposta no jornal de Carlos Lacerda, como escolher? Um voto a mais no Brigadeiro representa um a menos em qualquer dos outros dois – e isso me basta.”31

evidente. Sabemos a imensa adesão intelectual ao meio partidário, contudo, chamou-nos atenção para um destoante dessa tomada de posição; Aguçou também a curiosidade por ser um homem cético cercado de membros de partidos, muitos dos quais foram amigos pessoais, e mesmo assim não

O resultado e desdobramentos das eleições

houve interesse por parte do autor de se filiar

vemos aos montes nos livros. Dois anos mais tarde,

nenhum. Da mesma forma que ações de filiados

em carta a Milton Campos ressalta que a “curta

cativam, é interessante pensar no porquê de

passagem pelos arraiais políticos, naquele começo

alguém que é membro governista se põe em

alvoroçado

oposição e se comporta desprovido de interesses

de

1945,

operou

em

minha

sensibilidade um choque tão violento que me fez

dessa conjuntura.

perder o interesse pela vida pública”32.

A saída de Drummond da base do Governo e a sua aproximação com o Partido Comunista nos indica

Considerações Finais. Carlos Drummond de Andrade foi participante da

uma tendência democrática de esquerda, visão corroborada

pela

posicionamento

nos

sua

obra

poética

e

jornais. Entretanto,

ter

conjuntura política à qual estava inserido. Podemos

“tendência” não foi suficiente para fazê-lo filiado a

tirar dos trechos, fatos e documentos expostos que

esta ou aquela organização partidária. O que

houve alguma resistência intelectual no que tange

reforça o individualismo político que o pertencia.

30

32

Trecho extraído da carta enviada pelo poeta à Tribuna Popular. A carta na íntegra está registrada em seu diário. 31 ANDRADE, Carlos Drummond de. O Observador no escritório. P. 58.

33

Idem, p. 76. União dos Trabalhadores Intelectuais.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 62 “A tortuosidade, o emaranhado das linhas políticas que parecem negar-se a si mesmas e o entanto obedecem a uma lógica fria! Tudo isso é muito complicado e tira a minha naturalidade, a minha verdade pessoal, o meu compromisso comigo mesmo. Mas anda lá, quarentão inexperiente de política!”

Cindye Esquivel Vieira é licenciada em História e graduanda em Letras e Literatura pelas Faculdades Integradas Simonsen, mestranda em História pela UNIVERSO.

Fontes Bibliográficas: ANDRADE, Carlos Drummond de. O Observador no escritório. Rio de Janeiro: Record, 1985. BENEVIDES, Maria Vitória. A UDN e o udenismo. Ambiguidades do liberalismo brasileiro. 1945-1965. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. MOTTA, Rodrigo Patto de Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. Belo Horizonte: UFMG, 1999. VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 1935: sonho e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

Bibliografia Fontes primárias: ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro, 1940. COMO foi recebido o aparecimento de “Tribuna Popular”. Tribuna Popular. Rio de Janeiro, 25 mai. 1945, p.4. (http://memoria.bn.br/DocReader/154547/20) ENQUANTO a anistia não vem. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 3 abr. 1980, p.7. (http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/460 3) FINAL de conversa. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 5 abr. 1980, p.7. (http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/467 2) O prisioneiro tem licença de falar. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 abr. 1980, p.5 (http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/451 4) PRESTES contesta Drummond. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19 abr. 1945, p.1 (http://memoria.bn.br/DocReader/030015_10/539 6) TRIBUNA popular. Tribuna popular. Rio de Janeiro, 7 nov. 1945, p. 1. (http://memoria.bn.br/DocReader/154547/1216)

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 63

Artigo

EXÉRCITO BRASILEIRO: UM CONVIDADO AUTORITÁRIO – 1900/1955 Por Ronaldo Rodrigues Coelho

Introdução:

E

sse trabalho pretende usar como ponto de

Outro autor que expressou o significante papel da

partida para compreender as manifestações

interpretação ao nível da Cultura Política foi Jean

insurgentes do Exército brasileiro, ao longo

Sirinelli3, em obra de René Rémond, que asseverava

da primeira metade do século XX, os conceitos

ser ela como “uma espécie de código, um conjunto

apontados pelo ideário da visão historiográfica de

de referentes, formalizados no seio de um partido

Cultura Política1, prática que é adotada por vários

ou, mais largamente difundidos, no seio de uma

intelectuais como historiadores, sociólogos etc. Um

família ou de uma tradição política”.4 A importância

deles é Serge Berstein que define assim nessa

do papel das representações na definição de uma

abordagem:

Cultura Política, faz dela uma outra ocorrência, e

“Cultura Política se mostra como uma resposta mais satisfatória em relação à investigação que o historiador faz e para explicação dos comportamentos políticos através da história além de ser um fenômeno de múltiplos parâmetros, e por isso, é capaz de se adequar à complexidade que é o comportamento humano.”2

1 BERSTEIN, Serge. A cultura política. Para uma história cultural. Lisboa: ESTAMPA (1998). 2 BERSTEIN, Op. Cit., Pg. 361.

não uma ideologia ou conjunto de tradições: “Ela supera, ao mesmo tempo, com uma leitura comum do passado e uma projeção no futuro, vivida em conjunto, inseridas no quadro das normas e valores determinantes à representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado e do seu futuro”.5

3 Sirinelli, Jean, Os Intelectuais. Cap. 8, Pg. 331-369. In RÉMOND, Réne. Uma história presente. Por uma história política, v. 2, 1996. 4 Sirinelli, Jean, Op. Cit. Pg. 23. 5 Sirinelli, Jean, Op. Cit. Pg. 23.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 64 Sob esse conceito, pretendemos analisar o caráter

procura

de

adequações

para

modificações

reformador e insurgente do Exército brasileiro

pedagógicas e também àquelas ligadas a alteração

entre o início do século XX até meados da década

da mentalidade da Força, na busca por gerar uma

de

mais

unicidade no pensamento ideológico do Exército,

especificamente no final do Segundo Governo

por isso junto com essas alterações no seu próprio

Vargas. Período atravessado pela renovação na

metier, indiretamente foram alavancadas novas

formação acadêmica do oficialato, após as

elites políticas para partilhar o poder com os

adequações curriculares introduzidas pelo Alto

tradicionais grupos político-sociais, caminho que

Comando da Força, logo após a vitória do grupo

também vivenciou marchas e contramarchas,

reformador, que participara ao lado da Aliança

tornando difíceis as tais alterações.

cinquenta

do

mesmo

período,

Liberal, sob a direção de Góis Monteiro e Eurico Gaspar Dutra, ‘descendentes’ dos “Jovens

Turcos”.6

Negligenciando as influências sociais, políticas – internas e externas – que poderiam alinhar ou

Um longo processo mudanças fez perdurar por

separar ‘facções políticas diferenciadas’ entre os

mais ou menos três décadas a adoção das

elementos componentes das hostes militares, como

adaptações desejadas pelos “jovens turcos”,

afirmam Oliveiros S. Ferreira7, Alain Rouquié8 ou,

especialmente

à

ainda, Celso Castro9, as disputas, como por

profissionalização da Força, e, mesmo assim, essas

exemplo, as mobilizações tenentistas, estão mais

transformações se deram de forma irregular, na

relacionadas a um projeto de poder em uma

medida em que altos e baixos marcaram as

sociedade cuja formação é dominada pela relação

alterações na sociedade brasileira, levando a

entre ‘senhores’ e ‘servos’ e geravam uma

aquelas

que

visavam

Revolta dos 18 do Forte de Copacabana

6 Novos oficiais que, mandados estudar na Alemanha mais ou menos na primeira década do século, lutaram por introduzir métodos inovadores na formação dos cadetes do Exército. Ver: CASTRO, Celso, Vitor Izecksohn, e Hendrik Kraay, Eds. Nova história militar brasileira. FGV, 2004.

7 FERREIRA, Oliveiros S. Vida e morte do partido fardado. Vol. 3. SENAC, 2000. 8 ROUQUIÉ, Alain. Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). 9 CASTRO, Celso, Vitor Izecksohn, and Hendrik Kraay, Nova história militar brasileira. Eds. FGV, 2004.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 65 mentalidade bacharelesca, ligada a determinadas

O mundo é feito de trocas, especialmente trocas

áreas de formação acadêmicas, em detrimento ao

culturais, logo não é possível imaginar qualquer

desenvolvimento tecnológico, social e econômico.

estabelecimento ou instituição que não receba e

Tal desenvolvimento poderia ser alcançado por

promova alterações, ainda mais uma que recebe

uma formação educacional mais ampla e universal

elementos dos mais variados extratos sociais como

da sociedade brasileira como um todo. Coisa que

é o Exército. Assim, não se pode desconsiderar as

não é esperada pelas classes dominantes em todas

exposições, as influências ideológicas, as opiniões

as instâncias do poder, inclusive no Exército.

dos diferentes grupos sociais e políticos etc., que

E essa previsão veio a confirmar-se ao longo da Primeira República, período marcado por levantes variados10, principalmente de jovens oficiais,

permeiam o processo de existência de uma comunidade. Senão observemos as considerações de Norberto Bobbio ao classificar o ‘militarismo’:

inclusive pela forte influência que movimentos

“O Militarismo constitui um vasto conjunto de hábitos, interesses, ações e pensamentos associados com o uso das armas e com a guerra, mas que transcende os objetivos puramente militares. O Militarismo é tal que pode, até, chegar a dificultar e impedir a consecução dos próprios objetivos militares. Ele visa objetivos ilimitados; objetiva penetrar em toda a sociedade, impregnar a indústria e a arte, conferir às forças armadas superioridade sobre o Governo; rejeita a forma científica e racional de efetuar a tomada de decisões e ostenta atitudes de casta, de culto, de autoridade e de fé.” 12

como o Comunismo, o Integralismo e outros que

Ora, se Exército impregna os aspectos culturais é,

seduziam os cadetes, dentro da própria Academia,

obviamente, influído por eles e adapta-se e

durante os anos abarcados pelo nosso estudo.

fragmenta-se em seus próprios processos de

contestando os rumos dados à Força pelo Alto Comando, muito bem exposto por José Murilo de Carvalho.11 A partir de fins da década de dez até a Revolução de Trinta, entre o Tenentismo e a aquela revolução, desenvolveu-se um intenso processo de lutas entre diferentes forças políticas no interior do Exército, na busca de um modelo ideológico,

Demonstraremos, através da compreensão dessas

filtragem de ideologias. Isso fica claramente

disputas políticas e/ou ideológicas, que elas

apresentado nas diversas expressões políticas e

expressavam um caráter desconsiderado pela

ideológicas nos anos vinte e trinta, no Brasil do

própria Força, àquele em que os seus elementos

século XX. Tenentismo, Comunismo, Integralismo,

não são doutrinados ao nível da completa

Nacionalismo etc., são expressões da sociedade

submissão, pois para isso seria preciso o uso intenso

brasileira ao longo do início do século XX que

de lavagem cerebral, para o condicionamento

impregnaram as Forças Armadas, especialmente o

desse tipo de controle. Seja o Exército, uma

Exército, sendo nossa análise uma busca por

instituição religiosa ou qualquer outra organização

compreender como, após o fim do primeiro período

que expresse um caráter monolítico de seus

de governo de Getúlio Vargas essa Força manteve-

conceitos, a tendência a crer na sua imutabilidade

se atuante em busca de uma unidade ao mesmo

e na predominância de suas propostas sobre as

tempo em que transitou entre ser contra ou a favor

influências externas é presente, mas ilusório. 10 Proclamação da República, 1889; Manifesto dos Doze Generais, 1892; Revolta da Escola Militar, 1895; Revolta dos Sargentos, 1915, Revolta Tenentista, 1922, 1924 etc., In CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005.

11 CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005. 12 BOBBIO, Norberto, Nicola Matteucci, and Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política, vol. 2. Universidade de Brasília 42 (2016): 748.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 66 do regime vigente, buscando tornar-se o esteio do

Estado muito fraco cujas elites dominantes não

Estado.

necessitavam de uma energia que viesse a

Entre os anos de 1945 e 1954, as elites

atrapalhar seu controle político e social.

dominantes existentes no Brasil atuaram sobre a

As mudanças vieram por conta do despreparo

sociedade brasileira através dos grupos políticos

técnico e estratégico para um conflito de grandes

formados pelos agrupamentos legados pelo Estado

proporções representado, com muita razão, pela

Novo.13 PSD, PTB, UDN, PCB. E o Exército foi

Guerra do Paraguai e as crises sucedâneas que

cortejado, açulado por esses grupos influentes, em

desembocaram na ‘Queda Monarquia’ e apontaram

busca de apoio às suas pretensões de poder e

a necessidade de se atualizar a Força rapidamente.

aprofundando separações internas na Força,

Devido às frustações frente aos primeiros

expressas em frações políticas que evoluem nas

resultados negativos na Guerra frente aquilo que

suas condições de preponderância à medida que

acontecia nos melhores exércitos na Europa, a ânsia

essas dissenções sejam mais ou menos agregadoras

de novos processos foi quase angustiante.

de pontos convergentes ao interesse da tropa. A

Entretanto, foi preciso aguardar a Primeira

tentativa de golpe e o contragolpe liderado por

República, para os jovens oficiais que reivindicavam

Henrique Teixeira Lott14 em 1955, revelam essa

o papel de ‘defensores de Pátria’ terem as

proposição.

condições necessárias para isso.

As Ordenações Estrangeiristas: O fim do século XIX acelerou o processo de modernização do Exército, que era ambicionado pelos seus mais destacados membros desde meados

“Os poucos oficiais que frequentavam a Academia na Praia Vermelha ou, depois, em Realengo, quase não recebiam formação especializada, não eram produzidos programas para preparar as tropas, a ascensão hierárquica dependia de relações de compadrio de influentes políticos civis e o Comando não era exercido por um Estado-Maior, que não existia como confirma novamente Domingos Neto.”16

do mesmo período. Para isso, contribuíram vários conflitos, na Europa e América – Guerra da Criméia, Guerra Franco-Prussiana, Guerra da Secessão e a

Nova Metodologia Acadêmica:

Guerra do Paraguai –, que influíram na visão do que

As alterações em grandes proporções iniciaram-

era uma força militar modernizada, como bem

se a partir da chegada ao Ministério da Guerra do

exprime Manuel Domingos Neto: “Exército

Marechal Hermes da Fonseca, francamente

modernizado

poderoso,

favorável às reformas. Este enviou, de 1906 em

operacionalmente capaz, doutrinariamente unido,

diante, grupos de oficias para estagiar, durante

capaz de agir com força decisiva na cena política”.15

pelo menos dois anos, no Exército Alemão e que

O problema que se apresentou durante muito

voltavam extasiados com a máquina germânica,

tempo a dificultar as adequações das Forças

tentando de todas as formas introduzirem as

Armadas foi a fragilidade dos militares ante um

mudanças observadas, inclusive com a publicação

13 MELO FRANCO, Afonso Arinos de. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. Vol. 3. Editora Alfa-Ômega, 1980. 14 CARLONI, Karla Guilherme. Forças Armadas e Democracia no Brasil: o 11 de Novembro. 2005. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado em História). Niterói: ICHF-UFF.

15 DOMINGOS NETO, Manuel. Influência estrangeira e luta interna no Exército, 1889–1930. In Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). 16 DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 46-47.

é

exército

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 67 de revistas, como a “A Defesa Nacional”,

dificuldades orçamentárias, sob a direção do

demonstrando o valor das propostas e noticiando

Ministro da Guerra, João Pandiá Calógeras.

críticas reações contrárias, por parte de elementos da tropa contra o movimento, fato que gerou a punição de alguns participantes.

4)

Implantação

uma

Nova

Estrutura

Organizacional: Grandes unidades capazes de efetuar

A insistência sobre a presença da missão alemã na

de

rapidamente

importantes

manobras,

substituíram os pequenos e frágeis destacamentos,

reforma militar brasileira foi atrapalhada pela

com

Primeira Guerra Mundial e só retomada a partir de

obedecendo

1919, com a presença de uma missão francesa sob

Reestruturação do Estado-Maior para tornar-se um

o comando do General Maurice Gamelin, que

organismo de coordenação e comando de

acelerou as mudanças sintetizadas nas seguintes

atividades militares.

medidas:

a

distribuição a

um

geográfica

das

planejamento

tropas

nacional.

5) Reforma Completa do Ensino: Passar a

1) Adoção do serviço militar obrigatório (“o

aplicação de programas que objetivavam dar aos

Exército é uma escola na qual todos os cidadãos

oficias uma formação profissional, técnica, em

deveriam se educar no culto à Pátria”17). Era a

oposição

noção de apostolado patriótico, descrita por José

“tarimbeiros” formados na experiência do dia a dia

Murilo de Carvalho como uma consciência de

da tropa, do século XIX, com a introdução de cursos

“Nação Armada”18 que fora adotada por todas as

de especialização em práticas moldadas pela

nações europeias, durante o século XIX, e tomada

Primeira Guerra Mundial. Esses métodos foram

pelo Brasil a partir de 1916, permitindo o

adotados a partir de 1919, após a visita da missão

monopólio sobre o serviço armado a nível nacional.

francesa.

ao

‘bacharelado

fardado’

ou

os

2) Ampliação dos Efetivos: Até mais ou menos

6) Adoção de Novas Regras para Promoção: As

1930, os efetivos do Exército praticamente

promoções e avanços hierárquicos passaram a levar

triplicaram, garantindo a imposição do seu poder

em conta a formação profissional do oficial e a

sobre as forças regionais, em especial a força das

influência do apadrinhamento para a promoção de

polícias militares, melhor preparadas e sob o

postos de comando foi sensivelmente reduzida.

controle dos ‘Governadores’ (monopólio do poder armado).

Tais iniciativas sepultaram rapidamente o ‘velho Exército’, que em fins da década de vinte não era

3) Renovação dos Armamentos e Melhoria das

mais um condutor de passeatas, nem deixava mais

Instalações: Nesse aspecto os avanços foram

“bestializado o povo”.19 Entretanto, transformações

enormes – armas, adoção da aviação militar,

tão grandes no aparelhamento militar do Exército,

artilharia

de

não ocorreriam sem sofrer intensos confrontos com

comunicação modernos e construção de quartéis,

os interesses distintos de grupos e tendências, civis

escolas, stands de tiro etc. – mesmo com as

e militares. Quem melhor expressou esses choques

17 Cf. Boletim do Estado-Maior do Exército, 3(1), abril, 1912, pp. 23-31. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 48. 18 CARVALHO, José Murilo de. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. In História geral da civilização brasileira. V. 3 (1977): 1889-1930.

19 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a república que não foi. 1991.

de

tiro

rápido,

instrumentos

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 68 com a chegada da Missão Francesa, foi um civil,

O mesmo objetivo guiava todas as outras

Ministro da Guerra, Pandiá Calógeras: “Há uma

potências, seja a Alemanha, a Inglaterra ou os

crise de comando com a subversão dos princípios

Estados Unidos, por exemplo, premeditando passos

hierárquicos até então prevalecentes”.20

múltiplos e variados, com ações que iam de acordos

O resultado dessa evolução de conceitos e das modificações foi uma disputa interna entre oficiais, chamados ‘eruditos’, por sua formação na área de humanas – Filosofia, Sociologia, Literatura – e orgulhosos de sua formação bacharelesca, contra

secretos com políticos e autoridades até intensas campanhas na imprensa nacional junto aos militares. Um dos caminhos escolhidos passava pelo convite a oficiais para realizar estágios na tropa e/ou nos cursos de especialização.

aqueles de sólida formação técnica, especialmente

Em última análise, as atuações visavam aumentar

em relação às promoções e a autoridade

a admiração pelos exemplos e ações das forças

hierárquica e influenciados pelos interesses

militares estrangeiras, estendendo essa impressão

estrangeiros.

ao desenvolvimento dos aspectos econômicoindustriais dessas nações, induzindo ao interesse pela aquisição de seus produtos e pela introdução

Como o Mundo Pensa um Exército:

e modernização da infraestrutura nacional. E, para

As grandes potências, ao lado dos esforços

finalizar, a crença pelo grupo agrário exportador de

diplomáticos, às atividades de propaganda, à

que a modernização traria a disciplina e o

exploração de prestígio intelectual, as relações

afastamento da política de governo pelos militares

sobre a presença de contingentes de imigrantes

em geral.

etc., participavam também de um jogo político em busca

de

mercados

para

seus

produtos

industrializados (não só de armas). Essas relações estão expressas por Manuel Domingos Neto, inclusive nos relatórios dos adidos militares estrangeiros

no

Brasil.21

Observemos

O que parece não ter sido percebido, talvez até mesmo pelos próprios militares, era que a modernização

exigiria

uma

adequação

do

desenvolvimento industrial brasileiro, para que ele desse as condições técnicas propícias à afirmação

um

de um modelo mais apropriado. “A dependência

fragmento do relatório do adido militar francês, no

externa que a modernização do Exército causaria

Brasil, durante a Primeira Guerra, isto é, antes da

era vista com toda naturalidade. Ninguém

chegada da missão Gamelin:

levantava a necessidade da autonomia técnica e

“(...) a influência militar a se conquistar em um país ainda na infância, mas destinado ao mais belo futuro, e onde nós procuramos, por outro lado, conquistar posição na área econômica, vale alguns sacrifícios que nós podemos esperar produtivos futuramente”.22

industrial do país para se redarguir à modernização

20 Relatório do Ministro da Guerra João Pandiá Calógeras, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1919. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 49. 21 DOMINGOS NETO, Manuel. Presença Militar Francesa no Brasil 1889-1920, dissertação apresentada para obtenção do diploma do Institut des Hautes Études de l’Amerique Latine, Paris, 1976.

22 FANNEAU de la HORIE, Rapport ao Ministre de la Guerre, Rio de Janeiro, SHAT (Service Historique de l’Armée de Terre), Château de Vincennes, 11/09/1918. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 51. 23 DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 51.

do Exército”.23 Seria possível afirmar que aqui estaria nascendo à tendência da Força em apoiar o Nacionalismo Desenvolvimentista, apoiador da

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 69 industrialização e contrário as forças tradicionais do setor agrário exportador? Veremos a diante.

Partido Militar Moderno: Os seguidores do modelo germânico viram suas expectativas fenecerem com a Primeira Guerra e o advento dos ensinamentos franceses, por isso, a consequência imediata, foi o apoio incondicional ao modelo francófilo, pois o principal objetivo era a modernização da instituição e eles rapidamente tornaram-se os principais propagadores desses ideais. Em sua grande maioria tornaram-se os principais

estudantes

e

praticantes

dos

ensinamentos do General Gamelin, inclusive com a defesa propagandística intensa em ‘A Defesa Nacional’. São eles que propagaram as mudanças desejadas e ambicionadas pelos “jovens turcos”. A Coronel Benjamin Constant

principal delas o serviço militar obrigatório visto como a redenção à falta de civismo dos brasileiros. Seguindo à proposição do Coronel Benjamin Constant, inspirador do positivismo na Academia Militar, que afirmou num comunicado oficial, logo após a proclamação da República: “que o Exército brasileiro tinha uma missão altamente civilizadora, eminentemente moral e humanitária que, de futuro, estaria

destinada aos

Exércitos do

de uma ética quase missionário entre a oficialidade e que indicará dois rumos bem definidos a tropa: a transformação do exército e a transformação do país. Sem alterar as condições econômicas e, consequentemente, políticas do Brasil seriam impossíveis adequar às mudanças para a Força. É aqui que se torna importante abrir um parêntese. Quando

observamos

as

ideias,

conceitos,

continente sul-americano”.24, o General Caetano

propostas etc., dos jovens renovadores da

de Faria afirmou em 1912, em A Defesa Nacional25,

instituição militar, notamos como elas se dirigiam

que aos brasileiros, “faltava espírito cívico a

também para o ajuste do Brasil ao mundo que

população”, (...) “os brasileiros ignoravam o que era

emergira ao fim da Grande Guerra. A acomodação

patriotismo”, (...) “a tarefa de educar a população

das forças do liberalismo econômico, após as

caberia ao Exército”, “os oficiais deveriam agir

disputas entre Inglaterra, França e Alemanha,

como ‘apóstolos do patriotismo e do civismo”.26

principalmente, produziu um crescimento dos

É esse modelo de militar que será internado na sociedade e na caserna, promovendo o surgimento

24 Cf. Boletim do Estado-Maior do Exército, 3(1), abril, 1912, pp. 23-31. DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 64. 25 Ver especialmente os números de 1916.

ganhos dos países mais industrializados no mundo. Assim, adequar a modernização do Exército, pelo

26 Cf. Boletim do Estado-Maior do Exército, 3(1), abril, 1912, pp. 23-31. DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 64.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 70 ajustamento do país a esse projeto político-

Fato reproduzido até os dias de hoje nos meios de

econômico, imporia mudanças sólidas e profundas.

comunicação.

Tais mudanças foram expressas no modelo de

As reformas foram realizadas de maneira mais ou

formação dos reformadores, que procuravam

menos compassada, exigindo a aceitação de

estudar, analisar e produzir respostas claras e

retrocessos e acomodações aos roteiros políticos

eficientes, sobre o que o país precisava e não

das elites nacionais. Getúlio Vargas é o grande

demandar propostas políticas morais. O melhor

exemplo de acomodação às forças políticas em

exemplo dessa receita foi aludido por Góis

evolução, inclusive na culminância da derrubada do

Monteiro, aceito como líder reformador a partir da

ditador. Depois, chegou-se inclusive, a ameaçar a

vitória de 1930, que, pouco antes da Revolução,

ordem democrática coma tentativa de deposição

discursando à Força, afirmou:

de Vargas, em seu segundo governo, ou a tentativa

“Sem querer aprofundar a discussão sobre o sentido do movimento tenentista, estamos convencidos de que a atenção que lhe foi dada até o presente não é plenamente justificável. Não corresponde à importância política do movimento. Pelo menos se compararmos ao dos jovens reformadores do Exército durante o mesmo período. O grupo reformador não somente guardou, no essencial, sua coesão durante várias décadas, mas, o que é da maior importância, chegou ao poder e colocou em prática seus projetos concernentes ao futuro do país. Os tenentes não conseguiram sequer conceber projetos. Suas proposições, pouco explicitadas e fundamentadas, tinham acentuado teor de moralização dos costumes políticos. Jamais representaram propostas de política socioeconômica ou de reformas para o fortalecimento do Estado-Nação”.27

de golpe, seguida do contragolpe de Lott, em 1955, para garantir a posse de Juscelino Kubistchek, até chegar a 31 de março de 1964. Cabe aqui um questionamento sobre se esse modelo, constituído desde os anos trinta tenha talvez tenha incutido no Exército a perspectiva de que os destinos da nação e do Estado são os rumos da Força, cabendo a ele decidir, apoiar, referendar ou alterar, quando necessário, as disposições da sociedade

brasileira.

Tal

determinação

é

referendada pela disposição e imaturidade do povo, que despreparado em vários aspectos – educação, vivência democrática, organização

E o caminho escolhido para ‘”vender” seu ideário

política etc. –, não consegue dar vida as suas

valores

aspirações políticas e sociais. Esse fato é

pretendidos, através do uso propagandístico das

exemplificado pela ausência de representação

publicações da Força, com destaque para A Defesa

político-partidária durante grande parte de vida

Nacional, onde se difundiam frases como: “Se a

republicana, com uma exceção razoável durante os

publicidade nos jornais constitui um meio eficaz de

anos de 1945-1964, como abordam autores

persuasão

espíritos

preocupados com o significado do período:

suficientemente fortes para resistir ao poder da

Rodrigo Motta Patto Sá29, Afonso Arinos de Melo

repetição. Na maior parte dos homens a repetição

Franco30, Maria do Carmo Campello de Souza31.

foi

uma

repetição

é

porque

constante

dos

poucos

chega a criar rapidamente a certeza dos fatos”.28

É na análise de alguns momentos e/ou instituições representativas da Força (Revolução de 30, 11 de

27 DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 62. 28 Editorial de A Defesa Nacional, 37, 10/10/1916. In DOMINGOS NETO, Op. Cit., Pg. 65. 29 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. Editora UFMG, 1999.

30 MELO FRANCO, Afonso Arinos de. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. Vol. 3. Editora Alfa-Ômega, 1980. 31 SOUZA, Maria do Carmo Campello de. A democracia populista, 1945-1964: bases e limites. Como renascem as democracias. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 71 Novembro de 1955, O Clube Militar, a ESG etc.),

assim, que as aspirações do Exército se fundem as

que permitirá a nós compreender o significado das

aspirações dessa camada social, que podemos

ações do Exército como elemento constitutivo do

chamar ‘industrializante’.

Estado e seu aparato aramado mais atuante.

No século XVII, o Cardeal Richelieu ambicionava tornar a França a força dominante no Mundo, pois,

Conclusão:

em sua visão, os destinos da Europa eram os

Nossa análise tentou abranger alguns elementos representativos

das

transformações

que

fervilhavam na sociedade brasileira, num período significante da história do país, pela observação e compreensão do braço armado do Estado, onde foram considerados e tratados alguns elementos do processo de adequação da Força, por elementos renovadores, conectados com as mudanças que estavam

se manifestando

Exército, transformar a metodologia de formação dos cadetes, seria apenas um passo na direção da atuação mais profunda, modernizar a força e adaptá-la aos novos tempos e posições políticas e sociais. Seria correto afirmar que os anos que vão de 1900 até 1945 marcam a mudança e a consolidação de

liberalismo dominante. O predomínio na política e

um novo modelo de Força militar para o Estado, que

na economia nacionais, de elites retrógradas ainda

também mudou e consolidou um novo modelo. É

vinculadas

agrário-exportadores,

por isso que as ingerências realizadas pelo Exército

existente desde o Império e herdado do período

vão se amiudando até chegar à Crise de 1964.

colonial, marcou a República Velha, atrapalhando

Talvez seja atrevimento afirmar que o caráter

aspirações de vários seguimentos sociais e políticos,

interventor e de ser o mais capaz de fazer escolhas,

como o Exército.32

que aquela força assumiu tenha suas raízes nessa

modelo

mundo

proporções, na visão dos jovens renovadores do

do

ao

pelo

destinos da França.34 Guardadas as devidas

É possível fazer essa afirmação ao relacionarmos os objetivos dos defensores das adequações, as demandas da sociedade e as propostas políticas que ao longo dos anos dez e vinte manifestaram-se e produziram expressões ideológicas, algumas conflitantes, dentro da sociedade. A própria ‘disputa’ entre as influências germânica e francesa já aponta uma dúvida, mas essa foi resolvida pela Guerra. As aspirações sociais e o advento das

fusão de interesses e objetivos, sejam eles políticos econômicos e sociais. Obviamente estudos mais aprofundados e específicos garantiriam resultados mais seguros, impedindo considerações tão vagas, mas também atraentes. Ronaldo Rodrigues Coelho é licenciado em História pela UNISUAM (Universidade Sociedade Unificada Augusto Motta), Mestrando em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira (Universo) e Professor do Colégio Militar do Rio de Janeiro – CMRJ.

ideologias do Comunismo e do Integralismo, impuseram a busca por uma escolha mais profunda33, mudanças que expressassem as aspirações de uma fração da elite, mais adaptada ao que ocorria no Capitalismo do pós-Guerra. É 32 CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005. 33 MELO FRANCO, Op. Cit. Ver também, MOTTA, Op. Cit.

Bibliografia: BERSTEIN, Serge. A cultura política. Para uma história cultural. Lisboa: ESTAMPA (1998). BOBBIO, Norberto, Nicola Matteucci, e Gianfranco Pasquino. Dicionário de Política, vol. 2. Universidade de Brasília 42 (2016): 748. 34 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. Afrontamento, 1984.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 72 Karla Guilherme. Forças Armadas e Democracia no Brasil: o 11 de Novembro. 2005. Tese

CARLONI,

de Doutorado. Dissertação (Mestrado em História). Niterói: ICHF-UFF. CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e política no Brasil. Zahar, 2005. ___________, José Murilo de. As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador. In História geral da civilização brasileira. V. 3 (1977): 1889-1930. ___________, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a república que não foi. 1991. CASTRO, Celso, Vitor Izecksohn, e Hendrik Kraay, Eds. Nova história militar brasileira. FGV, 2004. DOMINGOS NETO, Manuel. Influência estrangeira e luta interna no Exército, 1889–1930. In Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). ________________, Manuel. Presença Militar Francesa no Brasil 1889-1920, dissertação apresentada para obtenção do diploma do Institut des Hautes Études de l’Amerique Latine, Paris, 1976. FERREIRA, Oliveiros S. Vida e morte do partido fardado. Vol. 3. SENAC, 2000. MELO FRANCO, Afonso Arinos de. História e teoria dos partidos políticos no Brasil. Vol. 3. Editora AlfaÔmega, 1980. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Introdução à história dos partidos políticos brasileiros. Editora UFMG, 1999. ROUQUIÉ, Alain. Os partidos militares no Brasil. Rio de Janeiro: RECORD (1980). SIRINELLI, Jean, Os Intelectuais. Cap. 8, Pg. 331-369. In RÉMOND, Réne. Uma história presente. Por uma história política, v. 2, 1996. SOUZA, Maria do Carmo Campello de. A democracia populista, 1945-1964: bases e limites. Como renascem as democracias. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Força Expedicionária Brasileira (FEB): regresso da II Guerra Mundial. Pracinhas do 6º

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 73

Artigo

FRANCISCO: O POVERELLO DE ASSIS Por Tadeu Góes

RESUMO: Francisco de Assis, o poverello de Deus, é um santo que facilmente fascina àquele que estuda sua biografia, por sua relação de amor para com o próximo e para com Deus e por seu amor com a natureza e toda a criação. Francisco foi um exemplo de cristão e de ser humano. Sua vida inspirou religiosos e intelectuais. O santo de Assis se dispôs a seguir nu o cristo nu, numa constante busca de viver o evangelho de Cristo em toda sua profundidade. Essa Imitatio Christi culminará nos estigmas de que São Francisco recebe as chagas de Cristo, tornando-se seu espelho. Palavras-chave: São Francisco. Imitatio christi. Cristianismo. Hagiografia.

Breve análise do contexto sócio religioso

O

período histórico em que Francisco se encontra é demasiado conturbado, principalmente no que se refere à

cristandade. É necessário descrever esse momento, pois Francisco, segundo sua hagiografia, veio dar novos rumos a essa cristandade medieval ocidental. É um momento determinante em sua vida, quando o crucifixo da Igreja de San Damian o chama, e a voz lhe diz: “Francisco, não vês que minha casa está desmoronando? Vai consertá-la! ” (Idem, 2011, p. 38). Para o jovem, que viria a ser o santo de Assis, a voz se referia à Igreja de San Damian, porém posteriormente deu-se conta de que se tratava da Igreja como o corpo da cristandade.

A Igreja católica passava por uma época difícil. Do século X até meados do século XI a Igreja se encontrava debilitada. A igreja desse período, recém-saída da era carolíngia, passava por diversas turbulências e crises. Ela ainda não se encontrava totalmente unificada através da figura do papa, apesar dessa figura já existir. Um dos problemas pelos quais passava a cristandade era a falta de limites entre o clero e o laical (secular). Não havia uma divisão clara do que cabia ao clero e do que cabia ao mundo secular. Temos como exemplo papas sendo entronados por imperadores; reis se intrometendo na seara de assuntos que diziam respeito tão somente à Igreja. Eram laicos que possuíam

igrejas

e

comercializavam

cargos

religiosos, dentre outras coisas. Além disso, outros

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 74 motivos também contribuíram com a crise

senhores laicos estavam se apropriando da

institucional da Igreja, como, por exemplo, o

instituição, nomeando párocos, recebendo dízimos

nicolaísmo e a simonia. Baschet conceitua simonia

e rendimentos das igrejas. A igreja neste período

como toda forma de intervenção dos laicos nos

encontrava-se totalmente dependente dos laicos

negócios da igreja, bem como a posse das igrejas e

(BASCHET, 2006, p. 184).

dos dízimos. É, segundo suas palavras, a aquisição ilícita de coisas sagradas. Já o nicolaísmo se caracteriza pelos clérigos casados ou que vivem com concubinas. O ápice deste confronto entre os laicos, na figura do imperador, contra a Igreja, na figura do papa, se deu com a querela das investiduras. Estado versus Igreja. O conflito se deu na nomeação de doze papas, pelo imperador germânico e na exclusão de cinco. Com isso, a abadia de (de onde?), começou a exigir maior autonomia da Igreja frente ao Estado Laico. Para

Vouchez a querela entre Estado versus Igreja não foi tão simplesmente um conflito, mas sim uma luta

Diante desse quadro de crise institucional da Igreja, surge a reforma gregoriana. Como resultado dessa reforma, temos, principalmente, a separação do que é da igreja e do que é do mundo secular. O Estado Laico não mais interfere nos assuntos eclesiásticos e o Papa alcança o título de autoridade máxima dessa igreja. Uma vez que o Estado Laico não interfere mais em assuntos eclesiásticos, funda-se o colégio de cardeais de modo que a própria igreja passa a eleger o seu pontífice.

Baschet ao se referir à reforma gregoriana nos diz: “(...)Visa a uma reestruturação global da sociedade cristã, sob a firme condução da instituição eclesial. Os seus eixos principais são a reforma da hierarquia secular sob a autoridade centralizadora do papado e o reforço da separação hierárquica entre laicos e clérigos. Trata-se de nada menos que reafirmar e consolidar a posição dominante da Igreja no seio do mundo feudal (Idem, 2006, p. 190).”

obstinada. “(...) a famosa querela das Investiduras, que opôs, no fim do século XI e no fim do VII, os papas aos soberanos germânicos, não foi - como se diz muitas vezes um conflito entre o poder espiritual e a autoridade leiga, mas uma luta ferrenha entre duas sacralidades rivais (VAUCHEZ, 1995, p. 44).”

Z. N. Brooke, medievalista britânico, deixa claro, assim como Vouchez, que a querela, o conflito entre imperador e Igreja era muito além das

A principal intenção dessa reforma foi a

investiduras, era um conflito pela supremacia de

reestruturação da cristandade, separando a Igreja

um dos lados.

de um lado e os laicos de outro, impedindo que

“(...) Era um conflito pela supremacia entre o regnum e o sacerdotium, entre as cabeças dos setores seculares e eclesiásticos, cada lado clamando que seu poder derivava de Deus e que era seu direito julgar e depor o outro (...) (BROOKE, 1939: p. 218).”

estes fizessem intervenções nos negócios da Igreja. Novamente citando Baschet: “O movimento de reforma só procede por separação”, ou seja, há neste

período

uma

sacralização

do

clero,

reforçando assim o seu poder espiritual, que a partir de então, fica reservado apenas à Igreja. (Idem,

Baschet ao se referir a este período explica que o poder do Papa estava frágil, submetido a todo o momento aos imprevistos da política imperial e aos conflitos entre as facções romanas. Os bispos estavam subjugados às pressões dessas facções. Os

2006, p. 193). Para Le Goff, além da libertação do mundo eclesiástico, que estava submetido ao regime feudal leigo, a reforma gregoriana também significou: Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 75 “A independência da Santa Sé em face do poder imperial e os progressos da liberdade eleitoral dos bispos e dos abades em relação aos leigos poderosos são fenômenos significativos. Os esforços de eliminação de todas as pressões econômicas e sociais reunidas sob a etiqueta de simonia não são menos importantes. É essencial, sobretudo, a luta contra o que se chama nicolaísmo (Idem, 2001, p.27).”

O momento histórico é oportuno para Francisco

Boff reflete sobre o período: “Francisco, como personagem social, emerge num momento particularmente privilegiado e, por isso, crítico; é tempo de rupturas; algo de velho começa a morrer e algo de novo a nascer. O modo de produção feudal conhece estremecimentos porque sua hegemonia se vê ameaçada pelo emergente modo de produção mercantil da burguesia comunal. Francisco por sua prática de vida reflete a crise do tempo e às saídas possíveis confere sua versão pessoal”. (Idem, 2012, p. 164)

pregar, bem como para atuação de sua ordem. É o período do surgimento das cidades que aos poucos deixam de ser centros militares e administrativos para se tornarem centros econômicos, políticos e culturais (Idem, 2001, p.24). À medida que a população dobra seu número de habitantes, é preciso alimentá-la material e espiritualmente e Francisco levou o alimento espiritual a essa população (Idem, 2001, p.23). Assis, a cidade de nascimento de Francisco, foi uma das cidades pioneiras no que se refere ao florescimento comercial, e a família de Francisco, mais precisamente na figura de seu pai, que foi um rico mercador de tecidos, a cidade obteve sucesso. Por volta do século XII, a Europa assistiu ao florescimento comercial. Com o surgimento das cidades, desfez-se aos poucos o processo que ficou conhecido como ruralização. Era o início da transição do sistema feudal para a sociedade burguesa. Para Vauchez, do fim do século XI ao início do XIII, houve um grande progresso cuja principal característica foi a expansão demográfica, o renascimento das cidades e o aparecimento de novos grupos sociais, como a burguesia. Ele

Para Celso Márcio Teixeira, do Instituto Teológico Franciscano, os leigos também foram influenciados por essa ebulição pela qual passava a sociedade, pois despertou no povo o anseio por uma maior participação na vida religiosa. Surgiram, na sociedade civil, as corporações de ofício, como expressão do desejo de participação da vida socioeconômica

e

o

fenômeno

acabou

repercutindo também no campo religioso. O povo então se unia em grupos que procuravam viver o cristianismo com mais profundidade. Deu-se origem, assim, a uma intensa movimentação religiosa e a uma forte busca do cristianismo primitivo, apostólico, do Cristo pobre (COSTA; SILVA e SILVA, Org., 2003, p. 53). Estes homens desejavam viver de acordo com o evangelho tal qual pregado pelos apóstolos, ou seja, viver de acordo com o cristianismo primitivo. Eles apontavam para o que seria a base da filosofia de Francisco: Uma vida baseada na pobreza, na simplicidade e na imitação de Cristo, a exemplo da vida dos apóstolos. Pregavam a penitência, o ideal

completa dizendo: “Depois de séculos de imobilismo e isolamento, o Ocidente, começando pela Itália e pelas regiões entre Seine e Escaut, eram o cenário de uma verdadeira ‘revolução comercial’”

(Idem,

1995,

p.

65).

Estas

transformações sociais influenciaram diretamente a vida religiosa da sociedade. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 76 desenvolve, nestes locais, uma atividade pastoral que procura evangelizar esse novo meio urbano.

Baschet cita Le Goff ao se referir a essa relação entre as ordens mendicantes e as cidades: Para ele, há um forte laço entre os mendicantes e o fenômeno urbano a ponto de se estabelecer uma correlação entre a importância das cidades medievais e o número de conventos mendicantes (Idem, 2006, p. 213). Os mendicantes inauguram um novo modelo de espiritualidade. Os mendicantes não aceitam doações feitas à ordem, de modo a dar sentido ao ideal de pobreza. Em especial a ordem dos frades menores. Outra característica fundamental dos mendicantes, é o ideal de vida ascética e comunitária. Eles optam por viver no mundo Bonaventura Berlinghieri: São Francisco e cenas de sua vida, 1235, uma das mais antigas pinturas representando São Francisco de Assis

de vida apostólica1 e a contestação. Para esses leigos, a contestação consistia numa crítica ao clero por não seguirem a vida baseada na pobreza apostólica e por descuidarem da pregação em prol da aquisição e da administração de riquezas. Essas

secular, no seio das cidades, junto aos fiéis, pregando “pela palavra e pelo exemplo”. Baschet diz que “as ordens mendicantes aportam, assim, uma contribuição decisiva à igreja de seu tempo, assumindo um enquadramento e uma atividade pastoral adaptados aos meios urbanos” (Idem, 2006, p. 213).

novas bases espirituais que surgem nos séculos XII e

Após essa breve análise do contexto sócio

XIII farão parte, também, da filosofia religiosa de

religioso no qual o santo estava inserido,

alguns grupos de hereges. Mas também, serão a

passaremos a discorrer sobre a sua vida.

base, principalmente, da filosofia das ordens mendicantes que nascem neste período (Idem, 2003, p. 54).

Do sonho Cavaleiresco ao Santo esposo da pobreza Francisco de Assis, o poverello2 de Deus, foi um

As ordens mendicantes, ordem dos frades

homem à frente de seu tempo, pois falou, num

menores, criada por Francisco de Assis, é uma

período conturbado da cristandade ocidental, em

vertente que se instala no seio dessas cidades e

respeito e amor à natureza, às mulheres3, em

1

Celso Márcio Teixeira explica que “de fato, a vida dos leigos não era considerada vida apostólica. A partir da reforma gregoriana, porém, começou-se a difundir a convicção de que a vida apostólica, exatamente por identificar-se com a vida cristã, deveria ser seguida por todos os fiéis” O contexto religioso do surgimento do Movimento de Francisco de Assis, Celso Márcio Teixeira, ITF, p. 54. 2 Em italiano significa pobrezinho, o coitado. Segundo Baschet, “os habitantes de Assis, que veem Francisco andar hirsuto e em

trapos, perguntam se não há nele alguma loucura e é um pouco isso que exprime o seu apelido poverello. ” Ver: BASCHET, Jerôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 208. 3 Francisco rompe com a misoginia da sociedade medieval. Segundo Leonardo Boff, Francisco entende a mulher como o caminho para o amor de Deus com os homens. Para ele, Francisco deixa claro que a mulher não deve ser motivo de fuga nem de obsessão (BOFF, 2012, p. 68).

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 77 atenção e amor para com os pobres e miseráveis e criou um ideal de fraternidade, onde todos são

forneçam detalhes de suas vidas ou de suas personalidades” (SPOTO, 2010, p. 31)

irmãos, longe de toda a hierarquia em que vivia a Igreja. Porém, o amor maior que Francisco nutriu foi

Pedro ao viajar para a França a negócios deixou

pelo Cristo crucificado e é neste ponto que o

sua esposa grávida. Pica deu a luz ao menino na

presente artigo irá se ater. O amor pelo Cristo que

ausência do seu marido. Em poucos dias, após o

o chamou, intimamente, foi tão grande, a ponto de

nascimento da criança, Pica o levou para ser

Francisco buscar ser o espelho do seu Senhor.

batizado na Igreja de Santa Maria, em Assis. De

“Havia na cidade de Assis um homem chamado Francisco...” Assim começa a narração de São

modo a fazer uma homenagem a São João Batista, Francisco foi batizado com o nome de João.

Boaventura, na obra Legenda Maior, sobre a vida de

Bernardone, ao regressar de sua viagem à França

São Francisco de Assis. “Deus, depois de tê-lo

e tomar conhecimento do nome escolhido por sua

enriquecido

preciosas,

esposa para a criança, ficou bastante transtornado,

misericordiosamente o retirou dos perigos deste

pois na Europa Medieval, bem como na tradição

mundo e o cumulou abundantemente de dons da

bíblica, a escolha do nome de uma pessoa

graça” (LM, prólogo, p. 7). No meio do conturbado

influenciaria no que aquela criança viria a ser. E

período pelo qual passava a cristandade ocidental

Pedro não queria que o nome de seu filho fizesse

e ao mesmo tempo num crescente período de

referência a um eremita do deserto que se trajava

desenvolvimento das cidades e consequentemente

apenas de pele de camelo. Daí em diante o pai do

do comércio, Francisco vem ao mundo. Para Le

menino passou a chamá-lo de Francisco, “O

Goff, Francisco irá alimentar espiritualmente essa

francês”. Era da França que Pedro Bernardone trazia

sociedade que cresce, se desenvolve e anseia por

seus tecidos e a prosperidade para os seus negócios

esse alimento:

(Idem, 2010, p. 32). Na visão de Pedro, Francisco

de

bênçãos

“Desde cerca do ano 1000, desigualmente de acordo com as regiões, mas de maneira regular e às vezes explosiva – como na Itália do norte e do centro -, o número de habitantes aumenta, dobra, sem dúvida. É preciso alimentar material e espiritualmente esses homens “. (Idem, 2013, p. 23)

Francisco nasceu entre os anos 1181-1282. Não se sabe com precisão. Filho de Pietro (Pedro) di Bernardone dei Moriconi, um bem sucedido comerciante de tecidos da região de Assis e de Pica Boulermont, uma nobre de origem francesa. Segundo Donald Spoto: “Praticamente tudo o que sabemos com segurança até 1182 sobre a família Bernardone se resume à atividade comercial de Pedro, seu nome e o de sua mulher, além da localização de sua loja. Não existem arquivos nem documentação que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 78 deveria ser o herdeiro dos seus negócios e levar adiante a prosperidade da família. Durante

a

infância,

Francisco frequentou um colégio anexo à Igreja de San

Giorgio

onde

aprendeu a ler e também recebeu

as

primeiras

instruções religiosas, visto que como livro de leitura usava-se

o

saltério

coletânea de orações e salmos em latim. Durante as viagens que fazia com o

O hábito de São Francisco, todo remendado de trapos, preservado na Basílica de Assis

pai à França e à Holanda para aprender os negócios

jovem Francisco como um pródigo. Ele gostava de

da família, Francisco aprendeu o francês, língua

cantar, se divertir com amigos durante dia e noite.

pela qual tinha um grande apreço (Idem, 2010, p.

Custeava os seus amigos e gastava altas quantias em

32). A língua dos poetas, das poesias e dos contos

banquetes, mulheres, bem como em roupas (Idem,

cavaleirescos despertava grande atenção do jovem

2011, p. 21). Gostava de ostentar tanto quanto um

de Assis. Le Goff ao se referir à grande admiração

príncipe. Francisco esbanjava tanto quanto a alta

de Francisco pela língua francesa cita Tomás de

nobreza. Durante a juventude seguiu buscando as

Celano que diz: “Quando ele estava cheio do ardor

virtudes da cortesia ao modo da ideologia

do Espírito Santo, falava em francês em voz alta”. O

cavaleiresca. Apesar de toda essa tendência para

medievalista francês conclui: “O francês o

banquetes com amigos e divertimentos, Francisco

mergulhava no êxtase e no júbilo” (Idem, 2013, p.

desde a mais tenra idade sempre se mostrou gentil:

59). No jovem Francisco é difícil identificar o santo que alguns anos mais tarde se tornaria. Francisco aprendeu a lidar com as armas, a montar e sonhava em ser cavaleiro. Além disso, se dedicava aos negócios da família trabalhando no comércio de tecidos com o pai, mas sempre aspirando uma vida

“(...) e, no entanto, era por natureza gentil nos modos e no conversar; tinha determinado a si mesmo jamais dirigir a ninguém injúrias ou palavras vulgares; mesmo sendo um jovem brilhante e que amava as mulheres, estabeleceu para si jamais responder a quem lhe falasse de modo grosseiro ou lascivo. Assim sua fama se difundiu dentro e fora de Assis, e de tal maneira se consolidou que muitos amigos ou conhecidos tinham certeza de que aguardava um grande futuro.” (Idem, 2011, p. 22)

mais nobre: O tal sonho de tornar-se um cavaleiro. Frugoni, de modo a construir para o leitor esse

As canções de gesta, a poesia, o amor cortês, tudo

Francisco avesso ao santo que se tornaria, recorre à

isso fazia parte da vida do futuro poverello.

obra Legenda dos três companheiros onde consta o

Entretanto, a arte da guerra também lhe despertava Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 79 grande admiração e não lhe faltou oportunidade de

voltar à batalha e que também era sinal de vitória.

ingressar como cavaleiro numa guerra. A partir daí,

Para Le Goff, Francisco interpretou este sonho de

sua vida começa a tomar novos rumos. Em 1198, os

maneira equivocada. Para ele, o sonho foi

membros da comuna de Assis resolvem atacar a

simbólico, e foi um primeiro chamado para um

torre do castelo imperial, pois a burguesia se

outro combate: o combate espiritual que travaria

revoltava contra os senhores feudais, ambicionada

logo a seguir (Idem, 2013, p. 61). No caminho, em

pelo sucesso e lucro em seus negócios. Segundo

Spoleto, ele se sente mal e resolve parar um pouco.

Spoto, a questão era meramente essa. Com isso,

No momento de descanso ouve uma voz

Francisco que sempre almejou a batalha, não se

perguntando-o para onde estava indo. Reproduzo

esquivou e se alistou nas fileiras da comuna. Num

nas linhas abaixo o diálogo, entre Francisco e a voz,

combate entre a cidade de Perúsia e a cidade de

reconstruído por Frugoni, logo após ele dizer para

Assis, no ano de 1202, Francisco acabou sendo feito

onde estava indo:

prisioneiro onde permaneceu pouco mais de um ano. Frugoni, em seu estudo sobre o santo de Assis, aponta que já durante a prisão Francisco assinalava ter atitudes que o diferenciariam dos outros companheiros. Eles, tristes, para baixo, por estarem na prisão, não compreendiam o porquê de

- Quem julgas que pode te fazer um bem maior, um senhor ou seu servo? - O senhor. - E por que deixas o senhor para seguir o servo, e o príncipe por seu subordinado? - Senhor o que quereis que eu faça? - Volta pra tua cidade e lá te será dito o que deves fazer, por que aquela visão deve ser interpretada de outra maneira (Idem, 2011, p.30).

Francisco externar alegria, não se deixando abater por aquela situação. A alegria sempre foi e será ao longo de toda sua vida um traço característico. Francisco a partir deste momento começava a demonstrar que algo estava por acontecer em sua vida:

Francisco, desde então, atende ao primeiro chamado de Deus em sua vida, monta em seu cavalo e volta pra Assis. Para não voltar fracassado e nem deixar que o julguem em virtude de não ter seguido em frente junto à batalha, Francisco junta

“Um dos prisioneiros, que evidentemente não aguentava mais passar os dias entre tantos desconfortos, perdeu as estribeiras e disse que ele era um louco e demente por exibir tal comportamento. Então Francisco lhe responde em tom vibrante: ‘O que achas que me tornarei na vida? Serei adorado no mundo todo!” (Idem, 2011, p.21)

seus amigos e promove os costumeiros banquetes da mesma maneira de sua já

conhecida

prodigalidade. Le Goff refere-se a ele, em relação aos seus amigos, como o chefe profano. Mas estes seriam

os

últimos

banquetes

e

exageros

promovidos por Francisco, pois aos poucos ele se Mesmo após ter sido libertado, Francisco continuou com o desejo de tornar-se um cavaleiro reconhecido. Então, em 1205, alista-se novamente,

afasta e se recolhe para meditações. Parece estar em busca de uma vida nova. Provavelmente nem ele sabia, naquele momento, o que estava almejando.

mas agora no exército papal que travava batalha

O jovem Francisco passou um período com

contra as tropas imperiais. Esta decisão de alistar-se

atitudes bem diferentes das que todos conheciam.

veio por meio de um sonho onde via sua casa cheia

Estava mais silencioso e pensativo, até que certo dia

de armas e uniformes militares. Francisco acreditou

resolveu entrar numa igrejinha dedicada a San

que este pensamento era um aviso de que deveria

Damiano e se pôs a rezar diante de um crucifixo, Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 80 onde havia Jesus, triunfante, pintado na madeira.

tinha o dinheiro para devolver ao pai. É daí que virá

Ao orar com mais fervor, Francisco sentiu que a

a grande separação entre o jovem Francisco e sua

imagem de Cristo pintada no crucifixo o observava.

família. Pedro Bernardone resolve procurar o bispo

Foi quando ouviu a voz novamente e dessa vez

da cidade, pois segundo os magistrados, ele estava

vinda do crucifixo: “Francisco, não vês que minha

sob a jurisdição da Igreja (Idem, 2010, p. 99). O caso

casa está desmoronando? Vá consertá-la! ”

foi parar nas mãos do bispo Guido. E uma audiência

De fato, a igrejinha estava em ruínas. Francisco então interpreta esse segundo chamado como uma

é marcada. Este foi um dos momentos mais emblemáticos da vida do santo de Assis.

intimação para restaurar a igreja física de San

Na hora acordada para o encontro com o bispo, lá

Damiano. Dali, sai imbuído da ideia de reconstruir

estava Pedro e seu filho. Guido aconselha Francisco

a igrejinha. Para Spoto, foi o início de um novo

a devolver a quantia: “A Igreja não quer que gastes

estágio na vida de Francisco, que:

com ela dinheiro que não é teu, dinheiro de teu pai,

“Já não se preocuparia em buscar a glória, privilégios ou nobreza; já não se dedicaria a encontrar-se a si mesmo ou aperfeiçoar sua autoestima. Mais suscintamente, ele havia ouvido e agora ansiava responder, para assim manter o diálogo”. (Idem, 2010, p. 89)

talvez fortuna mal adquirida” (Idem, 2011, p. 41). A atitude de Francisco foi despir-se por completo, E nu, com as roupas na mão, e sobre elas o dinheiro, chega à presença de seu pai e o entrega na frente de uma pequena multidão que acompanhava a

Para que pudesse atender ao pedido da voz do

audiência.

crucifixo, à maneira de sua interpretação, Francisco

São Boaventura, relata em seu livro “Legenda

se utilizou do comércio de seu pai. Pegou alguns

Maior”, que Francisco parecia estar embriagado

tecidos da loja de Pedro Bernardone, seu cavalo, e

pelo espírito de Deus e descreve sua atitude

foi até uma cidadezinha próxima, e vendeu tudo.

perante o pai. Francisco diz: “Até aqui, chamei-te

Chegando à igreja de San Damiano, entregou toda

meu pai aqui na terra; daqui para o futuro poderei

a quantia ao padre, para que este mantivesse a

dizer com segurança: ‘Pai nosso que estais no céu’,

lâmpada defronte ao crucifixo sempre acesa. O

pois a Ele confiei todo o meu tesouro e n’Ele

sacerdote que sabia do gênio de Pedro Bernardone,

depositei toda a minha confiança”. Ao presenciar

bem como da fama de pródigo de Francisco,

tal atitude de Francisco, o bispo “cheio de bondade

recusou a quantia. O jovem de Assis, então, jogou

e de admiração perante um gesto tão sublime, não

toda a quantia ao longe. Tempos depois, após

podendo reprimir as lágrimas, veio abraça-lo com

Francisco ficar um tempo sumido de casa, em

ternura e cobri-lo com a sua capa”. (LM, capítulo II,

virtude do episódio do dinheiro, seu pai o resgatou

p. 20). Para Frugoni, bem como para os demais

de seu esconderijo, o levou diante do pátio da

hagiógrafos de São Francisco, tal gesto do bispo

Igreja de San Giorgio e ali mesmo aplicou os

acolhendo Francisco, nu, sob o seu manto,

castigos diante de todos.

significou “o afastamento irreversível de Francisco,

Após nova fuga de Francisco, seu pai o reencontra novamente e dessa vez cobra o dinheiro dos tecidos e do cavalo, que havia vendido para dar para a restauração da igrejinha. Francisco, no entanto, não

que abandonava a família natural e passava para a família espiritual da Igreja” (Idem, 2011, p. 41). Donald Spoto, sintetiza o processo de conversão de Francisco: Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 81 “Sua conversão se iniciara com uma crise de sentido após o encarceramento, a enfermidade e uma longa convalescença. Em seguida, ele experimentara uma profunda falta de ligação com a vida e uma simultânea desilusão com as glórias e as riquezas do mundo. Depois disso, vira frustrado seu desejo de atingir o status de nobreza, e ao retornar a seus antigos hábitos de indolência e diversões ocas, encontrou a vida mais vazia e mais sem sentido do que nunca. Em outras palavras o despojamento espiritual precedeu o despojamento físico.” (Idem, 2010, p. 104)

onde São Francisco fundou a Ordem dos Frades Menores. Após o episódio com o bispo Guido, sua veste passou a ser uma túnica de saco, sandálias de couro e um cajado. Tal qual um eremita. Acrescentou ainda à indumentária humilde, uma tau, um “T”, que desenhou com uma pedra de calcário, marcando a sua túnica. Um símbolo de serviço ao próximo. Porém, ao contrário dos eremitas, Francisco não

Seguindo o conselho do bispo Guido, Francisco

estava interessado em viver afastado do mundo, se

seguiu em peregrinação a Roma. A partir de então,

abrigando em cavernas e cabanas distantes. Sua

segue solitário pelo mundo, porém sempre alegre e

solidão não significava se isolar do mundo, pois seu

seguro de si. Nas palavras de Spoto, “dali em diante

ideal era servir ao próximo, auxiliando-o em seus

tomaria lugar entre os excluídos, em companhia

problemas, ajudando-o nas suas necessidades e

dos pobres e do Cristo que vira no crucifixo de São

anunciando a palavra do amor de Deus (Idem, 2010,

Damião” (Idem, 2010, p. 103). No silêncio da sua

p.113). Para Francisco o local da vida religiosa era o

solidão buscava ouvir a voz de Deus a lhe dizer o

espaço livre, onde junto ao povo levaria o amor e a

caminho a seguir. Vivia por entre os leprosos,

palavra de Deus. Com as três igrejas restauradas

servindo-os com todo amor e dedicação. Segundo

com seu suor, com seu amor e dedicação, ele parte

a obra Legenda Maior, o amor que São Francisco

para a fundação de sua ordem: A Ordem dos Frades

começara a nutrir pelo próximo era tão grande que

Menores. Dessa forma, passa a viver na simples,

ele chegava a beijar as feridas dos leprosos. Mesmo

porém rígida, regra da Ordem fundada.

se dedicando ao leprosário, ele não se esqueceu da

Na igreja de Porciúncula, Deus fala novamente

igrejinha de São Damião e se empenhou em

com Francisco. Dessa vez, o interlocutor é um

restaurá-la.

padre, que durante a missa lê uma parte do

Ao voltar para a sua cidade, passou a mendigar

evangelho de Mateus, o capítulo dez: “Ide,

por entre os seus conterrâneos, com os quais

proclamai a boa nova: O reino de Deus está

outrora bancava pomposos banquetes. Com as

próximo”, “Não carregue nem ouro nem prata no

esmolas, arranjava pedras e o material necessários

teu cinto, nem saco para a estrada, nem duas

para a restauração da igreja, e, assim, Francisco

túnicas, nem calçado, nem bordão, porque o

restaurou-a. Após essa restauração, no seu modo de

operário tem dignidade para manter-se por si”.

pensar, para continuar a trabalhar e a servir, resolve

Após ouvir este trecho do evangelho, ele exclama:

restaurar, também, a igreja de São Pedro que um

“Eis o que quero, é isso que procuro, isso que desejo

pouco mais distante. Concluído este trabalho, passa

fazer do fundo do meu coração”. (Idem, 2013, p.

a frequentar a igreja de Santa Maria dos Anjos, que

68). A partir daí Francisco se desfaz de seu calçado,

segundo Boaventura “foi o lugar que ele mais amou,

seu cajado e ao invés de usar o cinto, como de

dentre todos os lugares do mundo” (LM, capítulo II,

costume, troca-o por uma corda e se desfaz ainda

p. 23). A igreja de Santa Maria dos Anjos foi o local

de uma de suas túnicas, ficando apenas com a que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 82 estava usando. Francisco também convida outras

alegação de que tal regra era “dura” demais e um

pessoas a abraçarem esta vida de humildade e

tanto inalcançável. O próprio Inocêncio achava a

penitência. Começa a pregar e anunciar aos seus

regra uma extravagância, uma loucura. No entanto,

ouvintes a saudação: “O senhor vos dê a paz! ”

um corajoso cardeal, D. João de São Paulo, bispo de

Ao ouvirem a pregação de São Francisco, arauto do evangelho que era, as pessoas começaram a segui-lo e, assim, compartilhar do estilo de vida apostólica do santo de Assis. Diferentemente do resto da Igreja, pregava em língua vernácula, de modo simples e envolvente. Assim surgiram os primeiros “menores” da ordem. Não tardou muito, para que sete homens simples resolvessem segui-lo. Esse número foi aumentando conforme Francisco

Sabina, interferiu junto ao Sumo Pontífice e em defesa da regra de Francisco. Segundo ele, tudo que o poverello queria era viver uma vida puramente evangélica, tal qual Jesus e seus apóstolos viveram. E se a Igreja rejeitasse tão simples regra, estaria indo contra o próprio evangelho de Cristo. Concluiu dizendo que afirmar que a perfeição evangélica é extravagante ou impossível de se seguir é blasfemar contra Cristo.

anunciava a palavra do Senhor com todo o seu

Inocêncio ficou abalado com a declaração do

amor, eloquência e humildade. Ao ver o aumento

cardeal, mas mesmo assim não se convenceu.

de seguidores, Francisco resolve escrever um

Mandou que Francisco rezasse para que Deus

pequeno e simples programa de vida e condutas

manifestasse a sua vontade e que aguardaria o sinal

fundadas no evangelho, mas devido ao seu respeito

dos céus. A decisão sobre a aprovação da simples

pela Igreja, quis que esta pequena regra fosse

regra é adiada. Porém ao que parece Deus

aprovada pelo Papa.

realmente manifestou sua vontade à Inocêncio. Le

Francisco escolhe viver tal como os apóstolos e parece saltar no tempo e se unir a estes enquanto caminhavam com o Mestre, livre de qualquer estrutura ou organização (Idem, 2011, p. 59). Ao contrário do que muitos imaginam, Francisco não fez parte do clero, continuou leigo por toda a vida.

Goff esclarece bem o ocorrido: “Inocêncio III teve um sonho: viu a basílica de Latrão inclinar-se como se fosse desabar. Um religioso ‘pequeno e feio’ a sustentou em suas costas e a impediu de ir abaixo. O homem de seu sonho só poderia ser Francisco. Ele salvaria a Igreja” (Idem, 2013, p. 74).

Não tornou-se padre, nem monge. Preferiu

Diante desse sonho Inocêncio aprovou a regra de

permanecer submisso à Igreja, sem fazer parte de

Francisco, mas com algumas observações, como a

fato dela. Se juntou aos mais humildes e aí pregou

de que os frades obedecessem Francisco e este à

a palavra de Deus, muito mais por exemplos,

Igreja na figura do Papa; que todos da ordem

através das suas atitudes.

fossem tonsurados (sacerdotes, clérigos), ainda que

Cumprindo

à vontade, de que

a regra

estabelecida por ele fosse aprovada pelo papa, que à época era Inocêncio III, ele se dirige, com um pequeno grupo de frades menores, à Roma. Humildemente pede ao Papa que aprove a sua Regra de vida e conduta. Alguns cardeais

leigos; e autorizou Francisco apenas a pregar ao povo, nada mais que isso. Abençoou Francisco e seus seguidores e os mandou pregar a todos sobre a penitência e o evangelho. No livro, Legenda Maior, São Boaventura diz que “transformado em arauto do evangelho, Francisco percorria cidades e

interferiram na decisão de Inocêncio sob a Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 83

Benozzo Gozzoli: Pregação de São Francisco aos animais e aos homens, 1452. Convento de São Fortunato, Montefalco.

aldeias a anunciar o reino de Deus, não em

apóstolos e a todos que o ouviam, era a máxima da

linguagem elegante de sabedoria humana, mas

sua espiritualidade. Assim, segue à frente de sua

com a força do Espírito” (LM, capítulo IV, p. 36). Os

ordem, sempre humilde, esposo da pobreza e

menores passaram a viver cuidando dos leprosos,

pregando, principalmente, com os seus exemplos

realizando trabalhos manuais, a mendicância e

de vida. De toda a parte vinham pessoas em busca

pregando o evangelho. Viver com a senhora

de Francisco, seja para conhecê-lo, ouvir suas

pobreza era o santo propósito do poverello.

palavras, seja para entrar na ordem e segui-lo.

Le Goff observa que Francisco vence a tentação

Spoto ao analisar os Franciscanos, defende que o

da solidão para ir para o meio da sociedade, do

êxito do grupo se deu em virtude da “capacidade

povo, não nos desertos ou florestas, mas nas

de pregar por meio do exemplo; quando falavam

cidades, rompendo assim com o monarquismo da

em público, eram alegres e positivos, e jamais

separação. Ele é aberto ao amor de todas as

sombrios e pessimistas. Nesse aspecto eram

criaturas e de toda a criação, amante da alegria

originais entre os pregadores medievais” (Idem,

(Idem, 2013, p. 114). Francisco vive com os pobres,

2010, p. 231). Os franciscanos pregavam pelas

o mundo é seu mosteiro e sua família. É assim que

cidades, na maioria das vezes, de dois em dois,

vivia com os menores: numa fraternidade. Amor ao

vivendo de esmola ou de seus trabalhos manuais. A

próximo, assim como Cristo pregava aos seus

vida religiosa de Francisco é no meio do povo, onde Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 84 comparando a um mosteiro, a cela é o mundo e os

prestaram depoimento em virtude da canonização

confrades são todos os homens, principalmente os

do santo. Até mesmo o cardeal Ugolino, que mais

pobres (Idem, 2012, p. 206). Le Goff entende que

tarde viera a se tornar o papa Gregório IX, e era

Francisco vence a ele mesmo, ao resistir à tentação

amigo de Francisco, se recusou a acreditar neste

da solidão indo para o meio da sociedade,

relato. Na proclamação de canonização em julho

rompendo assim com o monarquismo da separação

de 1228, não consta nada referente aos estigmas

(Idem, 2013, p. 114).

(Idem, 2010, p. 299). Estes estigmas foram

O poverello era puro amor e caridade. Sua fé era fervorosa. Francisco via Deus em tudo e em todos e comungava com essa presença divina na criação. Seguir a Cristo e buscar ser seu espelho era o modelo de vida que desejava. O Cristo que

valorizados pelos artistas que retrataram a vida de São Francisco, pois as hagiografias, a vida dos santos, serviam de inspiração, como modelos de santidade e de cristandade para a sociedade medieval.

Francisco seguia e se espelhava era o Cristo na cruz,

Spoto chama a atenção para o fato de que a partir

era a Sua paixão. A imagem do Cristo crucificado,

do ano de 1237, o mesmo Gregório IX, menciona os

desde os tempos do crucifixo de São Damião, não

estigmas em três proclamações referentes a São

lhe saía da cabeça. A partir de tal fervor e de tal

Francisco. Ele apresenta como explicação certa

desejo de seguir todos os passos do seu mestre,

concorrência

passou a desejar, também, o martírio. Desejava

dominicanos contra os franciscanos:

transformar-se no Cristo crucificado. Desde a epifania diante do crucifixo em São Damião, Francisco foi se sentindo mais atraído pela contemplação dos sofrimentos de Jesus. Dessa contemplação e dessa obsessão pelo martírio de

entre

a

ordem

dos

frades

“Os frades dominicanos, cuja Ordem se tornara em boa parte rival da dos franciscanos, negavam e até mesmo ridicularizavam os supostos estigmas de Francisco. Como Gregório precisava do prestígio e do apoio dos franciscanos na reforma da Igreja, tratou de acabar com a rivalidade e assegurar a lealdade do alegado milagre”. (Idem, 2010, p. 300)

Cristo, Francisco acaba por receber em seu próprio corpo as chagas do seu Mestre, fato um pouco contraditório para a historiografia.

Francisco, próximo de morrer, sentia um grande cansaço,

sentia-se

oprimido

pela

Igreja,

O poverello, certo dia, teve uma visão de um

incompreendido pelos frades. A sua Ordem

serafim e assim como o crucifixo de São Damião, a

crescera muito e nem todos os frades seguiam o

visão deixou Francisco em êxtase. Um anjo

modelo apostólico da regra de Francisco em sua

crucificado apareceu e o olhou com ternura, tal

essência. Eles se distanciavam cada vez mais dos

como confortou Jesus no jardim de Getsêmani na

ideais de pobreza e amor ao próximo do poverello.

noite anterior à Paixão. A partir de então, as chagas

Com isso, ele passa a ficar recluso, contemplando a

de Cristo começaram a cobrir seu corpo.

cruz, como era do seu costume, e com seletos

Perfurações nas mãos, nos pés e no flanco, assim

companheiros ao lado. Isolou-se numa cela

como os pregos que perfuraram Cristo na cruz. Esse

pequena e escura no convento de San Damiano,

episódio é um tanto contraditório na hagiografia de

visto que não suportava mais a luz, pois doía-lhe os

Francisco, visto que, segundo Spoto, a existência

olhos. O corpo ardia em febre, além das dores

dos estigmas foi negada pelas pessoas que

físicas. Sabendo-se fraco demais, compreende que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 85 a irmã morte corporal, como complementou no

vida. Ali, ao lado de Clara de Assis, da irmã Jacoba,

cântico do irmão sol, se aproximava.

uma querida amiga de Francisco, e de alguns

No final do verão de 1226. Francisco volta para sua terra natal, Assis. Alguns frades perceberam que assim que ele encontrasse com a irmã morte

frades, Francisco parte deste mundo. Tadeu Góes é formado em História pela Universidade Estácio de Sá e pós graduado em História Antiga e Medieval pela Faculdade de São Bento do RJ.

corporal, seu corpo iria se transformar numa valorosa relíquia, e essa relíquia deveria pertencer à cidade de Assis. Os próprios habitantes de Assis ficaram alertas quanto à morte de Francisco, pois temiam que os próprios frades levassem o corpo de Francisco para outra cidade. Com isso, ele ficou alojado no palácio do bispo, vigiado por guardas (Idem, 2011, p. 163). Isso demonstra o quão importante eram as relíquias para a sociedade medieval. Pois além de difundir a fé, através da vida do santo, o exemplo, a relíquia movimentava todo um aparato comercial na cidade em que estava, visto que passava ser local de peregrinação. Francisco estava em farrapos em seu leito de morte. A morte parecia chegar bem lentamente, quase

que

aliviando

sua

angústia

e

proporcionando-lhe coragem frente ao momento que estava por chegar. Ele pedia constantemente aos frades que lhes acompanhava que cantassem o

Cântico do irmão sol. Certa vez, frei Elias ficou incomodado com tanta cantoria num leito de morte de uma pessoa que já era venerada como santa pela população. Elias temia que as pessoas ficassem escandalizadas ao ouvir os cânticos. Foi quando Francisco, reunindo o pouco de força que ainda lhe restava, respondeu que o deixasse em paz, pois queria se regozijar no Senhor e cantar Seus louvores de modo a alegrá-lo em meio às dores (Idem, 2011, p. 164).

Referências Bibliográficas ASSELDONK, Van Optato, O.F.M.Cap. O Crucifixo de São Damião visto e vivido por São Francisco. Tradução: Danilo Biasi, O.F.M.Cap. CEFEPAL: Ed. Vozes, Petrópolis,1989. BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis: Ternura e Vigor; uma leitura a partir dos pobres. 9ºed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2002. BARROS, José D’Assunção. Considerações sobre a história do Franciscanismo na Idade Média. Estudos de Religião, v. 25, n. 40, 110-126, jan./jun. 2011. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BERLIOZ, J. et al. Monges e religiosos na Idade Média. Lisboa: Terramar, 1996. BÍBLIA, Português. Nova Bíblia pastoral. Tradução de Paulo Bazaglia. São Paulo: Paulus, 2014. BROOKE, Z. N. Lay Investiture and its relation to the conflict of Empire and Papacy. Proceedings of the British Academy, v. 25, 1939, p. 217-247. FALBEL, Nachman. Os Espirituais Franciscanos. São Paulo: Edusp, Fapesp, Perspectiva, 1995. FRUGONI, Chiara. Vida de um homem: Francisco de Assis. São Paulo : Companhia das Letras, 2011. LEGENDA MAIOR DE SÃO BOAVENTURA. Introdução: Frei David de Azevedo, OFM; Tradução: Frei José Maria da Fonseca Guimarães, OFM. Disponível em: http://www.editorialfranciscana.org/files/5707_1_S_Boav entura_Legenda_Maior_(LM)_4af84ffa4a4a6.pdf, acesso em 23/09/2016. LE GOFF, J. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro: Record, 2001. ___. O Homem Medieval. Lisboa: Editora Presença, 1989. OLIVEIRA, Thiago de Maerk de. Hagiografia e literatura: um estudo da Legenda Sancti Francisci de Boaventura de Bagnoregio. Dissertação de Mestrado. Campinas: 2013. MAZZUCO, V. Francisco de Assis e o modelo de amor cortês. Petrópolis: Vozes, 1994. MERLO, G. G. Em nome de São Francisco. História dos frades menores e do franciscanismo até inícios do século XVI. Petrópolis: Vozes – FFB, 2005. MOREIRA, A da S. “As Universidades e os Franciscanos no Século XIII”. Cadernos do IFAN, n. 11, p. 7-13, 1995. SILVEIRA, I. “Imagens de São Francisco”. Revista Franciscana, v. 2, n. 1, p. 5 - 29, 2002. ___. Senhora Pobreza. Petrópolis: Vozes, 1995. SPOTO, D. Francisco de Assis. O santo relutante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. VAUCHEZ, A. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental:

séculos VIII a XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

Sentido gradativamente mais próximo de sua última hora, pede humildemente aos frades que o acompanhavam que o levassem para a igreja de

Porziuncola, local de grande significado para sua Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 86

Artigo

MÃO-DE-OBRA INDÍGENA NA AMAZÔNIA COLONIAL Por James O. Sousa

A importância da mão-de-obra indígena

O

processo

de

conquista

Criou-se toda uma problemática na América da

Coroa

portuguesa na região amazônica só tornou-se possível, em grande medida,

devido à utilização da força de trabalho indígena, seja na construção de grande parte dos fortes, fortalezas, cidades e vilas; seja a oeste, ao sul e ao norte, através dos rios Tapajós, Madeira, Negro, Branco e Javari; seja na coleta do principal recurso econômico da Amazônia no período, o extrativismo das chamadas "drogas do sertão", o qual exigia a

portuguesa e em sua metrópole em torno da legitimidade ou não da posse do índio e de seu papel entre missionários e colonos. A Coroa portuguesa, responsável por intermediar o conflito, muitas vezes acabou criando leis oscilantes, expressivas de suas sucessivas mudanças de posição em relação ao assunto ao longo do tempo, dadas principalmente às pressões dos colonos. A posição oscilante da Coroa prejudicou a situação do índio e mesmo sua sobrevivência no projeto de conquista português.

penetração pela floresta e o seu profundo

O objetivo deste artigo é sistematizar algumas leis

conhecimento, constituindo um fator depreciativo

e regimentos que determinaram as formas de

em relação à utilização do escravo africano, já que

obtenção do trabalho indígena, e suas práticas,

só o índio poderia suprir tais requisitos.1

legais ou ilegais, por parte de colonos, missionários

Beozzo, José Oscar. Leis e regimentos das Missões - Política Indígenista no Brasil. São Paulo, Edições Loyola, 1984, p. 28. 1

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 87

"Índios soldados da província de Curitiba escoltando prisioneiros nativos", tela de Jean-Baptiste Debret

e do Estado; mostrar alguns exemplos do trato que

declarando por princípio a liberdade indígena e a

as ordens religiosas na Amazônia deram à força de

igualdade dos seus direitos políticos ao dos brancos.

trabalho indígena, seja no trabalho nas fazendas dos

Mas essas leis não puderam ser instauradas, devido

religiosos, seja na transferência dos índios para os

à pressão dos colonos, os quais alegavam falta de

colonos e Estado português que as mesmas em

mão-de-obra para continuar seus negócios. Já o

determinados momentos efetuaram.

decreto de 1611 estabeleceu que os índios aprisionados numa guerra aprovada pelas altas autoridades, civis ou eclesiásticas, promovida pelos

Leis, Regimentos e formas de escravidão indígena A lei de 1587 não considerava os índios escravos,

próprios indígenas, portanto, na perspectiva da coroa,

resgatados

“do

martírio

dos

seus

mas "jornaleiros livres", que podiam mudar de

compatriotas” - deviam ser escravizados. Essa lei

senhor a seu bel prazer, e, inclusive abandonar o

perdurou até 1649, quando foi novamente

trabalho. Já a lei de 1595 previa um único motivo

restaurado o direito de liberdade e igualdade dos

para escravizar o índio: somente a prisão, feita

índios, estabelecido pelo decreto de 1609. Mas,

durante alguma guerra, e efetuada por ordem direta

devido à sua posição totalmente contrária aos

da Coroa. Os decretos de 1605, 1608 e 1609

pressupostos estabelecidos em 1649, os colonos de

suprimiram inteiramente a escravidão do índio,

São Luís e de Belém pegaram em armas para impedir Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 88 a efetivação dessa última lei.2

prisioneiros de guerra ou resgatados. Este tribunal

Já a lei de 1655, profundamente influenciada por Antônio Vieira, exímio combatente da causa da liberdade

indígena

na

região

amazônica,

estabeleceu com grande moderação sérios esforços para acomodar, de um lado, as vantagens materiais dos colonos, e de outro, a proteção dos índios. Apesar disso, a escravidão particular continuou a existir; em se tratando de índios prisioneiros de guerra, ela devia, inclusive, ser vitalícia e hereditária. A escravidão dos índios resgatados, contudo, devia durar somente cinco anos. Com essa lei a situação

era composto pelo governador do Estado, ouvidorgeral, vigário do Maranhão ou Pará, e pelos prelados de

quatro

ordens

religiosas:

carmelitas,

franciscanos, mercedários e jesuítas. Segundo Alfredo Bosi5, como a avaliação final em relação à compra de índios por “guerra justa” era feita sempre pelas autoridades coloniais e das ordens religiosas, alguns defensores dos índios, como Vieira, contavam influenciar o tribunal e, dessa forma, impedir ou atenuar a compra desenfreada de índios por motivo de guerra justa, muito comum na região.

dos índios livres mudou, pois a fiscalização deles,

Mas deve-se ressaltar que quase todos membros

antes atribuída a funcionários civis, foi designada

do tribunal estavam comprometidos com o sistema

aos jesuítas. A atuação dos funcionários civis era

colonial e geralmente votavam pela escravidão

geralmente prejudicial aos “índios livres”, pois

vitalícia e hereditária por "guerra justa". Vieira e o

compactuavam com os colonos que os tinham sob

então governador, André Vidal - que apoiava os

guarda, fazendo os índios prestar serviços aos

preceitos do padre jesuíta quanto à proteção dos

portugueses

índios -, geralmente viam-se derrotados, em

por

prazos

maiores

que

os

estabelecidos.3 O padre Antonio Viera nos concede um exemplo do que ocorria com os “índios livres”:

particular, pelos mercedários e carmelitas. Vieira queixou-se ostensivamente do comportamento dos representantes dessas duas ordens: “O provincial do Carmo e o Comissário das Mercês votaram que todos esses índios fossem cativos. E o fundamento de seu voto foi porque todas as guerras que há entre esses índios do Maranhão eram justas, e sendo justas as guerras, todos os tomados nelas ficavam cativos, conforme a lei de sua Majestade. Em prova de serem justas todas as ditas guerras, acrescentou o comissário que ele o sabia por informação de religiosos da sua ordem e de outros dignos de fé.”6

“Os índios que moram em suas aldeias com o título de livres são muito mais cativos que os que moram nas casas particulares dos portugueses, [os índios chamados livres] ficam em uma pior condição que os escravos, pois ordinariamente ocupam as lavouras de tabaco, que é o mais cruel trabalho de quantos há no Brasil.”4

Pela lei de 1655 foi organizado um tribunal que tinha como função sentenciar os índios apanhados,

Handelmann, Heinrich. História do Brasil - Tomo I, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1931, p. 232-234. 3 Handelmann, Heinrich. Op. Cit., p. 235. 4 Vieira, Antônio. Cartas. São Paulo, Livraria Magalhães, 1912, p. 73. 2

Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo. Cia. das Letras, 1992, p.142. 6 Viera, Antônio. Escritos Instrumentais sobre os índios - São Paulo, Educ/Loyola/Giordano, 1992, p.28. 5

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 89 Segundo Nadia Farage,7 o exame da legitimidade

é que a aplicação do conceito de guerra justa variou,

dos cativeiros era, via de regra, uma falácia, não só

não só ao sabor da discussão empreendida entre

pela conivência dos missionários, como também

teólogos e juristas, mas também, e principalmente,

pelos falsos testemunhos de membros da tropa e,

devido a considerações econômicas e políticas

principalmente, pelas ameaças feitas aos índios

conjunturais.

apresados, para que respondessem às perguntas do missionário atribuindo a si mesmos uma condição escrava, sob pena de maus-tratos e morte. Assim, a guerra escravizadora contra os índios teria a plena cobertura da lei. Georg Thomas8 argumenta que a guerra justa era um conceito ao mesmo tempo teológico e jurídico, enraizado na luta entre cristãos e mouros e que, no bojo da expansão ultramarina

No que se refere às expedições de resgate dos "índios de corda", a legislação da Coroa reconhecia a legalidade da compra dos índios condenados pelas tribos ao sacrifício ritual. O Estado português apenas tentou coibir as fraudes dos colonos e garantir que o resgate constituísse uma prática efetivamente espontânea por parte dos vendedores indígenas.10

ibérica, suscitou intenso e controvertido debate. Duas parecem ter sido as questões centrais deste debate: quando e como seria justa a guerra, e, ainda, a esfera de competência para declará-la. Quanto ao primeiro ponto, uma posição seria a de que a guerra contra os infiéis era sempre justa, tendo por motivo a propagação da fé. Vozes discordantes, como, por exemplo, a do dominicano Francisco de Vitória, argumentavam que a não aceitação da conversão por parte do “selvagem” não era em si mesma justificativa para a guerra, mas anuíam com relação ao impedimento da propagação da fé e da circulação das gentes. O “desenfreio moral e, principalmente, o canibalismo dos índios sulamericanos também compareceu como pontos possíveis para uma guerra justa, mas em geral com sérias objeções. Havia unanimidade, no entanto, com relação à guerra justa defensiva, ou seja, em caso de ataques dos índios aos portugueses”.9 O fato 7 Farage, Nadia. As muralhas dos Sertões

– Os povos indígenas no rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra: ANPOCS, 1991, p. 30. 8 Thomas, Georg . A Política Indigenista dos portugueses no Brasil 1500 - 1640. São Paulo, Loyola, 1981, p. 27 e 54.

O conceito de resgate tem seu precedente no comércio português na África, já no século XV, sendo exercido no contato com os índios desde os primeiros anos da exploração da costa brasileira.11 Erigido ao longo do período colonial, o resgate referia-se

basicamente

à

compra,

pelos

portugueses, de prisioneiros de guerra entre as nações indígenas, entre os quais se incluíam os chamados “índios presos a corda”, ou “índios de corda”, referência à corda que os Tupi atavam aos pés de seus prisioneiros destinados a serem “devorados”. Assim “resgatados” das mãos de seus captores, esses índios deviam a vida a quem os comprava, e eram obrigados a pagar com trabalho por tempo determinado, de acordo com o preço de compra.12 Seriam legítimos escravos também, segundo parecer da Mesa de Consciência e Ordens datado de 1625, os filhos de cativos que, pela regra de descendência do grupo indígena, herdassem a

9

Farage, Nadia. Op. Cit., p 26. Gorender, Jacob. Op. Cit., p. 472. 11 Thomas, Georg. Op. Cit., p. 48. 12 Farage, Nadia. Op. Cit. p. 28. 10

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 90 condição escrava dos pais.

cobrar dízimos, enquanto o apresamento por

A compra dos escravos dos índios legitimamente havidos colocava, como se pode verificar, algum

particulares, no mais das vezes clandestino, deixava invariavelmente vazios os cofres régios.

embaraço adicional, pois havia que se julgar a

Estivemos tratando de aspectos formais de

legitimidade daqueles cativeiros. A lei de 9.4.1655,

arregimentação da mão-de-obra escrava, mas não

explicitamente,

procedimento,

podemos pecar por inocência, como aponta

designando os missionários e os cabos das escoltas

Sweet,15 pois a escravização clandestina na

para o “exame da justiça da guerra”. Esta mesma lei,

Amazônia como um todo foi de muito maior porte

no entanto, encarregava-se de fornecer a saída para

do que a escravização efetuada pelas tropas de

tal embaraço, declarando que, nos casos em que se

resgate oficiais e pelas tropas de guerra somadas.

constatasse que a guerra não fora justa, restaria a

Segundo David Sweet,16 quase todos os moradores

possibilidade de resgatar tais cativos.

que iam ao sertão voltavam trazendo escravos. Os

regulava

esse

Mas o passo decisivo na instituição das tropas de resgate, segundo Nadia Farage,veio a ser dado mais tarde, com a lei de 28-4-1688, em que: O próprio Estado tornava-se empresário dos resgates, que a partir de então seriam feitos pela Fazenda Real: duas tropas – uma para o Pará e outra para o Maranhão – deveriam ser anualmente enviadas ao sertão. A Fazenda Real forneceria 3000 réis para a compra de quinquilharias necessárias ao resgate de escravos, devendo ser empregados dois mil para o Pará e mil para o Maranhão. 13

funcionários das fortalezas, encarregados de controlar esse fluxo clandestino, em geral se deixavam subornar, quando não estavam eles próprios engajados no tráfico de escravos. E missionários assinavam registros em branco ou, cedendo às ameaças dos membros da tropa ou a seus próprios interesses, davam por escravos os que legalmente seriam livres. Já com referência ao pagamento de salários, associado

a

formas

diversas

de

trabalho

compulsório, a Coroa procurou legislar no sentido Cada índio escravizado seria taxado em 3000 réis, e a renda desses impostos formaria um fundo intitulado “Tesouro dos Resgates”, para ser aplicado em benefício das missões, de novas entradas, e de

de estipular os períodos de trabalho indígena compulsório a serviço de particulares. Dentre as formas que o sistema assumiu, prevaleceu a seguinte:

outros itens relativos à obtenção da mão-de-obra. O

“Os índios, agremiados nas aldeias, sob administração de seus principais ou dos missionários, eram obrigados a trabalhar em cada ano seis meses alternadamente de dois em dois anos; os outros seis lhes ficavam livres, para cuidarem de suas roças.”17

Estado intervinha, assim, como nota Sweet,14 em seu próprio benefício, desde que sobre a venda de escravos resgatados por tropas oficiais era possível 13

16

14

17

Idem, p. 29. Sweet, David. . Rich Realm of nature destroyed: The middle amazon valley. Wisconsin. University of Wisconsin, tese de PhD, 1974, Volume II, p.466. 15 Idem, p. 479.

Sweet, David, Op. Cit., p. 688. Azevedo, João Lúcio de. Os jesuítas no Grão - Pará - suas missões e a colonização. Lisboa, Tavares Cardoso e Irmão, 1901, p. 139.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 91

Florian Paucke: uma redução guarani, mostrando, ao centro da praça, um exercício da cavalaria, no século XVIII. Para defender-se de ataques, algumas reduções foram autorizadas a manter milícias armadas.

Contudo, em breve começaram a surgir abusos: nem os índios eram pagos, mesmo sendo seu salário baixo - duas varas de pano a cada mês - nem lhes era concedido o tempo de liberdade a que tinham direito. Retidos após o término legal do controle em poder dos patrões, passavam por escravos legítimos e, quando morria o chefe da família, o índio forro era enunciado em testamento como escravo legítimo.18 A forma incompleta representava apenas o prelúdio da forma completa de escravidão.

jesuíta, agora repartido entre as ordens. A escravidão desenfreada não tinha agora obstáculos, já que os membros escolhidos para a Câmara eram os mesmos interessados na escravidão. Totalmente contrária aos preceitos da lei anterior, a lei de 1680 suprimia quase que por completo a escravidão dos índios, declarava libertos todos os prisioneiros resgatados de tribos indígenas e ordenava que fossem agasalhados nos aldeamentos; somente os prisioneiros de guerra permaneciam escravos.19 A fiscalização temporal e das almas retornava assim ao

Continuando a tratar das leis vemos, aqui mais um

monopólio dos jesuítas. Poucos anos mais tarde o rei

exemplo do posicionamento ambíguo da Coroa:

voltou atrás e novamente concedeu o direito de

pela lei de 1663, a fiscalização sobre as reduções

escravizar os índios nos casos de “guerra justa”, com

indígenas voltava ás câmaras de Belém e São Luís, e

a justificativa que o plano de substituir o índio pelo

o cuidado das almas dos índios perdia o monopólio

escravo

18

19

Idem, p. 139.

negro

não

dera

certo,

devido

Cf.Handelmann, Heinrich, Op. Cit., pp. 240/1.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 92

Processo de colonização e situação econômica do Grão-Pará

principalmente ao preço.20 Em 1686 foi implementado o chamado Regimento

das missões. O Regimento fez crescer o poder das ordens religiosas, que passaram a ter não só importância no labor espiritual, mas também no político

e

temporal,

das

aldeias

sob

sua

administração. Segundo Hoornaert,21 a partir do

Regimento, os acontecimentos se precipitaram e os missionários de diversas ordens adquiriram uma liberdade maior, uma força de contestação que o sistema não pôde suportar.

Segundo Corcino

Medeiros,22 os religiosos puderam então obter a posse exclusiva das aldeias, com a exclusão dos moradores brancos e mestiços, e, além disso, o controle de toda a vida econômica e social das aldeias. Os missionários, portanto, passaram a funcionar como centro e articuladores de todas as atividades nas aldeias, e como intermediários entre as aldeias e o sistema colonial.

Em seu livro Economia e Sociedade em Áreas

Periféricas: Guiana Francesa e Pará, Ciro Flamarion Cardoso24 resume a história do povoamento do Pará, dividindo em três períodos sua época colonial. No primeiro período, desde a fundação de Belém (1616) a meados do século XVII, os fatos mais importantes foram a expulsão de franceses, holandeses e britânicos e as expedições de reconhecimento (em especial a de Pedro Teixeira, em 1637-39), sendo muito tênue o povoamento de europeus (e cafuzos nordestinos) e relativamente pequena a quantidade de índios postos a serviço da colonização. No segundo período, compreendido entre meados do século XVII a metade do século seguinte, assentou-se um estilo de economia e de povoamento

Regimento prescreveu-lhes e o tempo de serviço, nas aldeias do Pará, de seis meses, e, nas do Maranhão, de quatro meses. As atividades foram organizadas de maneira que um terço da população

O

Regimento

perdurou,

com

pequenas

modificações, até o ano de 1755, quando foi extinto pelo governo pombalino.

no

aldeamento

destes

pelos

missionários.

Finalmente, no terceiro período, segunda metade do século

XVIII, inaugurou-se, com a gradual

aplicação das reformas de Pombal, a intensificação do povoamento do Pará, enquanto se destruía ou se modificava o sistema montado pelos missionários.

indígena permanecia na aldeia, enquanto dois terços ficavam ao dispor das solicitações externas23.

principalmente

extrativismo vegetal, nos apresamentos de índios e no

Com relação basicamente ao trabalho indígena, o

baseado

A perseguição e a escravização desenfreada dos índios pelos colonos era justificada pelos últimos com a sua própria “incapacidade financeira”, que os impedia de comprar escravos negros, bem mais caros que os índios. Para Ciro Flamarion, o atraso e a situação de pobreza do Grão-Pará, até a metade do

20 Fragoso, Hugo – “A era missionária (1686 – 1759)” in Hoornaert

(org) História da Igreja na Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1992. p. 157. 21 CEHILA. “Os movimentos missionários” in Hoornaert, Eduardo. História da Igreja no Brasil. Tomo II/1, Petrópolis, Vozes, 1992, p. 88.

Santos, Corcino Medeiros dos. Amazônia: conquista e desequilíbrio do ecossistema. Brasília, Thesaurus, 1998 p.79. 22 23

Idem, p. 43. Cardoso, Flamarion S. Economia e Sociedade em Áreas Econômicas Periféricas. Rio de Janeiro, Graal, 1984, pp. 95/6. 24

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G N A R U S | 93 implantado justamente para isso.” 26

século XVIII, eram incontestáveis: “Tudo confirma a impressão de pobreza, marasmo e abandono, numa colônia onde a atividade principal - a extração silvestre de "drogas do sertão” como o cacau, a salsaparilha, a baunilha, o pau-cravo, etc. - era puramente predatória [...] Um bom exemplo do atraso econômico é que só em 1748 decidiu a metrópole introduzir no Pará a economia monetária, efetivando-se tal medida em 1752 quando o Estado português providenciou o envio de dois mil reis; antes corriam como moeda o cacau, o cravo, a salsaparrilha, o açúcar, novelos de algodão etc.” 25

Pombal e o Diretório Influenciado pelo pensamento ilustrado de outros países da Europa, Pombal promoveu um conjunto de transformações políticas na metrópole lusa e em suas colônias, tentando recuperar a economia portuguesa e modernizar as instituições nacionais, segundo

Leonardi27

até

então

dominadas

ideologicamente pelo clero. A expulsão dos jesuítas Com referência ao fluxo comercial ou ao

em 1759 inseriu-se nesse contexto.

rendimento, o que se pode notar é que, nesse período, da segunda metade do século XVII à

O Estado do Maranhão e Grão-Pará foi objeto

primeira do século XVIII, a Amazônia se encontrava

privilegiado de atenção por parte do ministério

em situação econômica diferente daquelas das

pombalino. Uma forte razão para tanto era o recém-

regiões do nordeste e sudeste da colônia brasileira

assinado Tratado de Madri, de 1750, que demarcou

onde se desenvolviam atividades de exportação.

as possessões luso-espanholas na América; por esse tratado, Portugal obtivera mais ganhos territoriais

No que se refere às relações de trabalho, o português colonizador na Amazônia manteve o mesmo posicionamento, em grande medida, do colonizador do Estado do Brasil: ambos se negaram ao trabalho braçal, transferido, em geral pela força, a outros grupos. Mesmo quando os recursos estiveram à mostra dos portugueses, a tendência destes foi a contínua negação ao labor: “Quando não podia contar com o trabalho indígena, o branco colonizador não encontrava solução a não ser a importação de escravos africanos. Trabalhar, com suas próprias mãos, a terra amazônica, ou dela extrair, com seus próprios braços, os produtos naturais - as drogas do sertão - isso era coisa que não passava pela cabeça da quase totalidade dos portugueses residentes no Brasil. Afinal, o regime colonial fora 25

Idem, p. 98. Leonardi, Victor. Os Historiadores e os Rios - natureza e ruína na Amazônia brasileira. Edunb/Paralelo 15, Bsb, 2000, p. 27. 27 Leonardi,Victor. Op. Cit., p. 237. 26

em seus limites na parte norte da colônia. Para assegurar os ganhos territoriais e incrementar o comércio - e, portanto, os ganhos da Coroa e dos setores mercantis -, foram postas em prática três medidas articuladas: a formação da Companhia Geral de Comércio do Maranhão e Grão-Pará, para a comercialização da produção amazônica e a introdução sistemática de escravos africanos na colônia: o fim da escravidão indígena e a retirada do poder

temporal

dos

missionários

sobre

os

aldeamentos indígenas, seguida da expulsão dos jesuítas.28 Para Corcino Medeiros, o período pombalino

28 Farage, Nidia. As muralhas dos Sertões – Os povos indígenas no

rio Branco e a colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra: ANPOCS, 1991, p.74.

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G N A R U S | 94 índios, casamento e, por fim, um delineamento do “diretor” - figura central neste novo procedimento que substituía os missionários.” 30

representou a primeira experiência em bases econômicas para o povoamento e consolidação do domínio português no vasto território amazônico, pois “organizou em novos moldes o movimento mercantil e estimulou a produção comercial em larga escala. Foi assim que, além da intensificação da exploração dos cacaus nativos e da extração das drogas do sertão, surgiram grandes plantações de arroz, algodão, café e cacau.” 29

Segundo a autora, o Diretório representou um plano de civilização dos índios e um programa de colonização. Dirigido inicialmente às povoações indígenas do norte do Brasil, seria logo aplicado às demais regiões onde já havia trabalho missionário.

Como uma das principais preocupações de Pombal

Foi, ao mesmo tempo, um plano de utilização de

foi a demarcação da Amazônia portuguesa, em

índios em atividades econômicas de colonos e

detrimento das pretensões francesas e espanholas

governos coloniais.31

sobre ela, o índio ganhou importância como elemento representativo do Estado português na

Kenneth Maxwell trata a implementação do

Amazônia. Ironicamente, era o mesmo elemento

Diretório como um meio mais eficaz de garantir a

que havia dois séculos e meio sofria uma intensa

posse territorial das áreas fronteiriças da América

pressão e era vítima de ações que levavam à perda

portuguesa:

de sua identidade socioeconômica, religiosa e

“Como não era humanamente possível obter o número de pessoas necessárias do próprio Portugal ou das ilhas adjacentes (Açores e Madeira) sem convertê-los completamente em desertos, era essência abolir todas as diferenças ente índios e portugueses [...] os índios, portanto, teriam que ser libertados da tutela religiosa para que se incentivasse a miscigenação entre portugueses e índios, para assegurar um crescimento continuo da população...”32

étnica. A lei pombalina de 1755 declarou extinta a escravidão do índio e aboliu o poder temporal dos missionários sobre eles, colocando os indígenas sob o comando de funcionários públicos, chamados de “diretores das aldeias”. Mas foi realmente com a lei que estabeleceu o Diretório, publicada em 1757, que se modificou consideravelmente a política

De acordo com Victor Leonardi, há uma tendência

indigenista portuguesa no Brasil. Segundo Rita

historiográfica no Brasil que considera progressista

Heloisa de Almeida,

a política pombalina, pelo fato de ela ter fortalecido

“o Diretório continha 95 parágrafos, tratando de variadas questões, como: a civilização dos índios, problemas para o cultivo de terras, produção agrícola e comercialização, expedições para coleta de espécies nativas, relações de trabalho dos índios com os moradores, edificação de vilas, povoamento e manutenção dos povoados por meio dos descimentos, presença de brancos entre 29

Santos, Corcino Medeiros dos. Op. cit., p. 154. Almeida, Rita Heloisa de. Op. Cit., p. 166. 31 Idem, p.14. 30

o Estado em detrimento, supostamente do clero. Mas, para o autor, essa apreciação está cheia de mal-entendidos. Segundo Leonardi: “No que diz respeito aos índios, é preciso perceber como a política pombalina não foi nada Maxwell, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do Iluminismo. Cia. das Letras, São Paulo, 1996, p. 53. 32

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G N A R U S | 95 progressista. Pelo contrário: o Diretório tornou obrigatório o uso da língua portuguesa nas escolas e proibiu não só o uso das línguas de cada povo indígena como do nheengatu, língua geral. A europeização dos índios também foi buscada pela proibição de habitações indígenas tradicionais[...]Essa legislação etnocêntrica permitiu o trabalho forçado, pois os diretores passaram a monopolizar os índios, concentrandoos em verdadeiras aldeias-currais, e fazendo-os trabalhar na extração de drogas do sertão.” 33

extrativistas, na caça, pesca, produção agrícola, etc. Mas, como o diretor retinha a sexta parte do produto das lavouras e do comércio dos índios, e sendo certo apenas o lucro da extração das drogas do sertão, o diretor empregava os indígenas quase que exclusivamente nessa última atividade, em detrimento das lavouras de sustento das mesmas povoações. Os resultados esperados pelo Diretório, no que se

Para Kenneth Maxwell,34 a implantação do Diretório e a substituição dos jesuítas por funcionários indicados pelo Estado - que tinham como objetivos abolir o isolacionismo religioso e impulsionar os índios à integração secular -, na realidade proporcionou os meios para justificar à desafortunada população indígena as formas mais

refere à integração indígena, não foram muito animadores. As contínuas revoltas e fugas para a floresta marcaram o período, numa demonstração da resistência dos povos indígenas contra o esforço de integrá-los à sociedade colonial e à economia internacional à maneira pombalina.

extremas de exploração e abuso. Segundo José Oscar

Beozzo,35

o Diretório tornou os índios

coletores de impostos, fazendo-os recolher dízimos sobre tudo quanto produzissem, vendessem ou comprassem, saindo da anterior isenção de que gozavam nas aldeias dos missionários. Corcino Medeiros dos Santos36 argumenta que os índios foram mantidos em um sistema de exploração, mesmo que dentro de uma lei que se propunha liberal. Segundo o historiador, os diretores, ao invés de tutores e protetores, constituíram-se em carrascos dos índios, mantendoos em troncos, em cárceres privados e castigando-os com açoites, além de muitas outras violências.

O parágrafo 69 trouxe uma determinação curiosa: os diretores somente estavam obrigados a pagar aos índios uma terça parte de seu salário, ficando o restante “depositado no cofre que deveria existir em toda povoação”. Tudo leva a crer que este restante era dificilmente pago. Além disso, o Diretório estabelecia como medida generalizada o prazo de seis meses para substituição de uma turma de trabalhadores índios por outra, a fim de que a primeira pudesse usufruir o descanso e o tempo livre para dedicar-se às suas roças particulares, mas o que geralmente acontecia, devido à falta de fiscalização, é que os índios trabalhavam mais do que seis meses sob responsabilidade dos diretores.37

Houve um esforço excepcional dos diretores em engajar os índios na produção de bens comerciáveis.

Foi devido a esses problemas em relação à exploração da mão-de-obra indígena sob o

Assim, tentou-se organizá-los nas expedições

33

36

34

37

Leonardi, Victor, pp. 237/8. Maxwell, Kenneth. Op. Cit., p. 60. 35 Beozzo, José Oscar. Op. Cit., p. 64.

Santos, Corcino Medeiros dos. Op. Cit., p. 169. Almeida, Rita Heloisa de. Op. Cit., p. 243.

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G N A R U S | 96 Diretório, que Victor Leonardi afirma: “A política indigenista dos missionários jesuítas havia sido de um etnocentrismo paternalista e (muitas vezes) autoritário. A do Diretório, fruto do racionalismo iluminista português, continuou sendo etnocentrista, mas, pior, foi ainda cinicamente sanguessuga... extinguiu o poder temporal dos missionários sobre os índios, no Brasil, mas instituiu um diretório laico que patrocinou explorações sem fim da mão-de-obra indígena durante quarenta anos.” 38

quatro décadas, período bem mais longo de que os 27 anos de participação direta de Pombal no governo. Independente das leis, a problemática dos direitos dos

índios

no

Brasil

sempre

movimentou

mecanismos burocráticos de grande proporção. Beatriz Perrone Moisés tenta expor como se dava esta organização: “O principal documento legal eram os regimentos dos governadores gerais. O rei os assinava, assim como as Cartas Régias, leis [etc] auxiliado por corpos consultivos dedicados a questões coloniais. Mesa de Consciência e Ordens, Conselho das Índias, Conselho Ultramarino. Estes emitiam pareceres que podiam, e costumavam ser, sancionados pelo rei, passando a ter valor legal ... Para o exame de questões específicas que exigiam conhecimentos locais de que a metrópole não dispunha, criaram-se as Juntas formadas por autoridades coloniais e religiosos. Entre as quais a mais importante, a Junta das Missões.” 41

Outro aspecto que poderíamos citar, dentre as consequências negativas do Diretório para a população indígena, foram as constantes epidemias que mataram uma quantidade considerável de índios. Somente entre os anos de 1779 e 1781, morreram cerca de quinze mil índios em decorrência de bexiga, sarampo e sarampo grande. Tais epidemias originaram-se do contato entre os brancos e os índios nas aldeias, imprescindível no projeto pombalino.39 Essas perdas populacionais acabaram tendo ressonância na produção das povoações, aumentando a demanda da mão-deobra. Tal fator reforçou o não cumprimento das intenções do Diretório, no sentido de iniciar os índios nas escolas públicas, fixar-lhes turnos de trabalho e assegurar-lhes horas destinadas a seus interesses particulares, fator somado, como já visto, à má vontade dos diretores das aldeias.40 Conforme todos os exemplos dados pelos autores, apesar de

O fato é que mesmo quando determinadas leis defendiam os índios de forma acentuada, os colonos e alguns religiosos não as cumpriam, e o Estado costumeiramente não tomava medidas eficazes para garantir a efetivação das leis. A burocracia construída por Portugal para tratar de assunto tão delicado parece não só ter sucumbido ante aos interesses imediatos dos colonizadores, como até, em certos momentos, reforçado estes últimos.

propor rupturas, o Diretório acabou reforçando as ações colonizadoras anteriores. Foi extinto no ano referente aos índios, que acabou se estendendo por

Mercedários e demais ordens religiosas na problemática da mão-de-obra indígena na Amazônia colonial

38

40

de 1798, encerrando a legislação pombalina

39

Leonardi, Victor. Op. Cit., p. 238. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 21. 1. 1, número 10.

Memória sobre as causas da diminuição dos Índios do Estado do Pará.

Almeida, Rita Heloisa de. Op. Cit., p. 326. Moises, Beatriz Perrone, “Os princípios da legislação indigenista do período colonial” in Da Cunha (org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1992, pp. 116-117. 41

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G N A R U S | 97 para a Coroa ou para os colonos. Convencendo os índios a irem para os chamados aldeamentos, os religiosos desenvolviam um importante papel para o projeto colonial, pois efetuavam a conversão do gentio, a ocupação e a defesa territorial e, mesmo que não o desejassem, criavam uma constante reserva de mão-de-obra para o desenvolvimento econômico da colônia. Mas o fato é que a posição ocupada pelos missionários, como pontes entre as autoridades civis e militares de um lado e a população indígena de outra, deu aos religiosos também poder de barganha e importância para muitas vezes contrariarem as pretensões estatais e dos colonos.44 O principal mecanismo de contato com os índios, que ficavam sob responsabilidade irrestrita dos Figura 1Padre Antônio Vieira em ação de convencimento.

missionários, no estabelecimento das comunicações

Na Amazônia, as ordens foram distribuídas pelo

iniciais, eram os chamados “descimentos”. Estes

Estado português da seguinte forma, no ano de

eram concebidos como

1693: os jesuítas espalharam-se pelas áreas

“Deslocamento de povos inteiros para novas aldeias próximas aos estabelecimentos portugueses. Devem resultar da persuasão exercida por tropas de descimento lideradas ou acompanhadas por um missionário, sem qualquer tipo de violência – trata-se de convencer os índios de “sertão” de que é de seu interesse aldear-se junto aos portugueses, para sua própria proteção e bem – estar ... A obrigatoriedade da presença de missionários junto ás tropas de descimento é expressa pela lei de 1587. [ o motivo ] o conhecimento da língua e o fato de o principal intento de descimento ser a conversão...”45

próximas ao Tapajós e ao Madeira, enquanto os carmelitas estabeleceram-se ao longo do Solimões, do rio Negro e do rio Branco e os mercedários, como já visto, fixaram-se nas imediações dos rios Urubu e Uatumã. A partir do ano de 1720, segundo fonte do Arquivo Público do Pará,42 o número de índios aldeados era de 54.264. Para Beatriz Perrone,43 as ordens religiosas acabaram detendo uma considerável concentração de índios em suas missões e, em alguns momentos,

Esse trabalho de convencimento efetuado pelos

seja por determinação da lei ou por pressão do

padres era considerado uma maneira menos

Estado português, acabavam cedendo alguns índios

traumática de conseguir mão-de-obra indígena do

42

43

Anais do Arquivo Público do Para. Códice 231, vol. II, p. 130.Relação dos Índios aldeados no Estado do Grão-Pará e

Maranhão efetuada pelo governo do Estado em 12 de março de 1720.Vol. II, p. 130.

Moises, Beatriz Perrone. Op. Cit. p. 120. Idem, p. 31. 45 Moisés, Beatriz Perrone - Op. Cit., p. 118. 44

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G N A R U S | 98 que a violência empregada pelos militares e

Os aldeamentos missionários obedeciam a uma

colonos. Mas, como demonstra Corcino Medeiros,

certa tipologia, que pode ser assim descrita: aldeias

nos aldeamentos ou reduções - locais para onde

do serviço das ordens religiosas, cuja renda revertia

eram levados os índios -, apesar de serem ele os

para as mesmas ordens, como complementação da

únicos produtores, não se tornavam donos dos bens

dotação que lhes fornecia o Estado; aldeias do

produzidos e nem de sua distribuição:

serviço real, onde os índios aldeados eram utilizados

“Os indígenas recolhiam as famosas drogas do sertão, realizavam as pescarias, produziam alimentos nas roças, essências medicinais, peças de artesanatos, construíam as igrejas e residências dos missionários, construíam e remavam as canoas, etc; e, em troca do seu trabalho, recebiam a mísera quantia de duas varas de pano por mês ou apenas a alimentação, que era péssima. Essa produção devia beneficiar e somente beneficiava os padres missionários ou a sua ordem.” 46

estritamente para o serviço do Estado; aldeias de

repartição, cuja mão-de-obra era destinada aos moradores; e finalmente as missões afastadas dos núcleos urbanos que, embora sofressem desfalque e população devido à demanda das expedições, eram unidades autônomas de produção.48 Como aponta João Lúcio Azevedo, os índios “trabalhavam para o sustento próprio e manutenção das aldeias; trabalhavam para os missionários; trabalhavam para o Estado e trabalhavam para os particulares, a quem se repartia. Assim, nas aldeias era disfarçada a mais dura escravidão com o título de falsa liberdade, já que não eram legalmente reconhecidos como escravos.” 49

Corcino Medeiros lembra que o trabalho de Serafim Leite na sua História da Companhia de Jesus

no Brasil, mais propriamente no volume 4 - onde o jesuíta descreve o

regulamento e governo das

aldeias, e, em minúcias, todas as atividades As

humanitárias e religiosas dos padres com os índios-,

ordens

religiosas

recebiam

constantes

silencia a respeito das atividades econômicas dos

determinações por parte do Estado português para

religiosos, como a utilização da mão-de-obra

que concentrassem índios em suas missões, devido

indígena, tratando o assunto com superficialidade,

principalmente ao grande interesse na mão-de-obra

e, assim, justificando a necessidade do trabalho

indígena. A atividade dos descimentos, portanto,

indígena nas propriedades dos religiosos, assim

para a Coroa, deveria ser uma constante entre os

como a legitimidade dessas mesmas propriedades.

missionários. Uma carta do rei de Portugal datada

Segundo o autor:47

do ano de 1713, enviada ao Comissário Geral das Mercês mostra tal obstinação por parte do Estado:

“Em nenhum momento Serafim Leite fornece informações quantitativas sobre o valor e volume da produção agro-industrial dos índios sob o comando dos padres e muito menos sobre o valor das drogas do sertão extraídas pelos índios sob as mesmas ordens.”

46 47

Santos, Corcino Medeiros dos. Op. Cit., pp. 81/2. Idem, p. 78/9.

“Faço saber a vós Superior das Missões de Nossa Senhora das Mercês, por ser informado que as Aldeias da repartição desse Estado se acham muito faltas de índios para acudirem as obrigações a que estão sujeitos, vos encomendo muito mandeis fazer descimentos pelos missionários da vossa administração todos os anos, para que nesta forma haja índios bastante para o meu serviço, e dos 48 49

Leite, Serafim. Op. Cit., p. 97. Azevedo, João Lúcio de. Op. Cit., p. 79.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 99 moradores, como são obrigados, o que é de grande utilidade.” 50

Devido algumas vezes à insistência da Coroa, particularmente em relação aos mercedários, na obtenção de índios em suas missões, o Comissário Geral da Ordem tinha que se justificar perante o rei, expondo os motivos de, muitas vezes, estarem as missões mercedárias com carência de índios. Em

mercedário, Antônio Nolasco: “Só com o Capitão João de Bettencur foi o padre Fr. Antônio Nolasco, o qual sendo religioso mercenário,52 cuja profissão reunir cativos, ia nesta tropa a fazer, como fez, grande quantidade de escravos; porque só a sua parte trouxe tinta e cinco, e os vendeu publicamente e outros jogou e ganhou aos oficiais e soldados da tropa, sobre que anda pleito em juízo [...] Além destas causas de nulidades, e outra de maior violência que se calam, o dito padre não sabe a língua geral da terra, a qual era necessária para entender os interpretes.” 53

resposta a uma carta do rei de Portugal, o Comissário Manoel Correa Pestana afirmou que a falta de índios nas missões devia-se ao fato das

Segundo o também padre jesuíta, Bethendorf54, na

muitas mortandades e também por “se extraviarem

missão do Urubu o religioso mercedário, padre

no serviço das tropas de sua Majestade”. O superior

Theodósio da Veiga, contava com 20 escravos

mercedário citou em sua carta o impressionante

comprados com a permissão do Comissário Geral, no

exemplo de que, em uma oportunidade, dos cento e

objetivo de “defendê-lo no trabalho das missões”.

quarenta e cinco índios levados de uma missão

Fato também curioso, na medida em que a ordem

mercedária, somente três acabaram retornando.51

das Mercês se apresentava “redentora de cativos”. Infelizmente, o cronista jesuíta não deixou claro o

As rivalidades entre as ordens religiosas sempre

papel destes escravos no trabalho catequético de

vinham à tona na Amazônia. O diferente

frei Theodósio, nem mesmos se eram negros ou

posicionamento das ordens, principalmente ao que

índios.

se refere à questão da mão-de-obra indígena, era um fato que acirrava a rivalidade e também estabelecia as singularidades de cada ordem.

David Sweet55 argumenta, em relação aos carmelitas, que desenvolveram missões no rio Negro e Solimões. Diferentemente dos jesuítas do período,

O posicionamento dos jesuítas, no período em que

os carmelitas, segundo o autor, não tinham um

Antônio Vieira esteve à sua frente no Maranhão, foi

projeto próprio quanto à administração da mão-de-

incisivo em relação às demais ordens. Com

obra indígena: ao contrário, suas missões tornaram-

referência aos descimentos, o padre Antônio Vieira

se centros de suprimento de mão-de-obra para os

também teceu considerável crítica ao religioso

moradores, no mais das vezes em franco

da Biblioteca Nacional, Livro Grosso do Maranhão. Vol. 66, p. 95. 51 Arquivo Nacional, Códice 231, Vol. 3, p. 28. Resposta do

Nossa Senhora das Mercês, daí mercenários-, não contendo tom pejorativo, como parece à primeira vista. 53 Vieira, Antônio. Op. Cit., p. 10 54 Betendorf, João Felipe. Chronica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão in: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Tomo LXXII, parte I. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1910, pp. 204/212. 55 Sweet, David Graham Op. Cit., pp. 626-680.

50Anais

Comissário Geral da Ordem de Nossa Senhora das Mercês ao rei de Portugal em 18 de agosto de 1723. 52

Usava-se também este termo para se referir aos mercedários. Provavelmente, o uso vinculava-se ao nome da ordem religiosa -

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 100 descumprimento das exigências legais. Além disso,

antigos auxiliares de Vieira: os padres Jorge Benci,

segundo o autor, os missionários individualmente se

autor da Economia Cristã dos Senhores no Governo

engajaram no comércio regional, inclusive no tráfico

dos Escravos, editado em 1705, e João Antônio

clandestino de índios escravos.

Andreoni, o Antonil de Cultura e Opulência do Brasil

Os mercedários também não parecem ter

por suas Drogas e Minas, 1711.57

desenvolvido esforços maiores para a permanência

Antonio Vieira teve a preocupação, como

ou proteção de índios em suas missões. Em carta, o

visitador, entre os anos de 1688 de 1691, de elaborar

comissário geral da ordem à missão do rio Urubu

um Regimento das Aldeias que vedava aos reitores

recomenda a seus religiosos que “se viessem colonos

dos colégios servirem-se do trabalho dos índios,

a procura de índios nas imediações da dita missão

ainda que remunerado, para prevenir abusos que

que os religiosos dessem permissão para procurarem

dessem margem a suspeitas sobre a lisura da ação

por cinco dias os índios requeridos. No caso de

catequética. Antonil, designado provincial (1698),

estarem a serviço do rei poderia ser concedido um

solicitou ao padre geral dos jesuítas que a lei fosse

tempo maior para a busca”.56 Mercedários e

revogada. Segundo o padre jesuíta, “se os senhores

carmelitas, portanto, quanto ao aspecto de proteção

de engenho se valiam do índio, por que só os

dos índios em suas aldeias, se comparados aos

religiosos não poderiam fazê-lo?”.58 Segundo

jesuítas, parecem ter apresentado outro tipo de

Moreira Neto,59 tratando em especial dos jesuítas,

postura frente às pretensões estatais e dos colonos,

foi sob a utilização da mão-de-obra indígena

muitas vezes os auxiliando.

indiscriminada em suas missões, conventos e

Quando encerrada a fase em que Antonio Vieira esteve à frente dos jesuítas, defendendo com profundo fervor a liberdade dos índios, instaurou-se um período que Moreira Neto intitula de “fase empresarial das missões jesuíticas”. O resultado final, segundo o autor, foi a missão jesuítica ter tomado

empresariais,

socialmente, como a mais prestigiosa instituição em operação nessa área até a crise final, no regime pombalino, que promoveu a expulsão definitiva de seus missionários, seguida da própria extinção da ordem.

tão

Com referência à utilização de índios como

comprometida com as operações de produção,

escravos nos conventos ou fazendas dos religiosos,

comércio e lucro de seus estabelecimentos quanto

carmelitas e mercedários, pelo que parece,

qualquer outra agência econômica colonial.

detinham a mesma concepção de Antonil. É o que

Ironicamente, os jesuítas passaram a ser liderados,

demonstra um documento datado de 1727, em que

nessa nova fase ou concepção no Brasil, por dois

o rei de Portugal concedeu a cada ordem de

Arquivo Nacional, Códice 231, Vol. 3, p. 26. Carta do Comissário da Ordem de Nossa Senhora das Mercês a missão do Urubu em 05 de janeiro de 1703.

57

56

características

fazendas que a ordem prosperou, material e

Moreira Neto, Carlo de Araújo. “Os principais grupos que atuaram na Amazônia Brasileira entre 1607 e 1759.” História da Igreja na Amazônia. Editora Vozes, Petrópolis, 1992. p. 69. 58 Bosi, Alfredo. Op. Cit., p.154. 59 Moreira Neto, Carlos de Araújo. Op. Cit., p. 86.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 101 religiosos mercedários e carmelitas quatrocentos

enfatizando o acúmulo patrimonial dos missionários,

casais de índios, dados como “resgatados” e,

em grande parte construído à custa do trabalho, da

portanto, “merecedores da escravidão”. A doação

exploração e da vida dos indígenas que deveriam

foi feita após petições elaboradas pelos vigários

proteger.

principais dos mercedários e carmelitas, que alegaram “a necessidade em que se acham os conventos de escravos, por conta do rigoroso estrago que se fez com o contágio de bexigas”.60

Com relação a historiografia, esta ainda não tomou a devida atenção ao estudo da região norte no período colonial, dando ênfase aos “ciclos econômicos”: nordeste e sudeste. A grande maioria de nossos clássicos quase não tomou conhecimento da existência do vasto território, renegando-o a

Considerações finais

posição de núcleo isolado e periférico.

Mesmo que em determinados momentos tenha havido uma preocupação por parte de alguns

James O. Sousa é Mestre em História pela Universidade de Brasília – UnB.

religiosos inseridos no projeto de colonização em “proteger o índio”, este teve que ingressar obrigatoriamente nas pretensões dos colonos.

Fontes Impressas

Restaram-lhe as opções do confronto, da fuga, ou da

Anais do Arquivo Público do Pará. Códice 231, vol. II, p. 130.Relação dos Índios aldeados no Estado do Grão-

conivência, todas prejudiciais a ele. A mão-de-obra indígena foi de fator elemento preponderante para expansão do império português

Pará e Maranhão efetuada pelo governo do Estado em 12 de março de 1720. Anais da Biblioteca Nacional. Livro Grosso do Maranhão. Vol. 66, parte 1, 1948.

na Amazônia, para o desenvolvimento comercial dos colonos, como também o das ordens religiosas, mercedários

incluídos,

conforme

se

tentou

comprovar neste capítulo. Estas, como visto, com o seu trabalho catequizador implementaram a atividade de trabalho do índio ao modelo mercantil, buscando o lucro e o acúmulo de capital, da mesma maneira que faziam os colonos. Os frutos econômicos que as ordens religiosas puderam usufruir

com

a

mão-de-obra

indígena,

particularmente os mercedários, meu objeto de estudo no mestrado, foram expostos no terceiro

Fontes Manuscritas Arquivo Nacional, Códice 231, Vol. 3, p. 28. Resposta do

Comissário Geral da Ordem de Nossa Senhora das Mercês ao rei de Portugal em 18 de agosto de 1723. Arquivo Nacional, Códice 231, Vol. 3, p. 26. Carta do Comissário da Ordem de Nossa Senhora das Mercês a missão do Urubu em 05 de janeiro de 1703. Arquivo Nacional, Códice 231, Vol. 3. p. 32. Resposta de uma carta do rei de Portugal feita pelo Comissário Geral da Ordem de Nossa Senhora das Mercês. Pará 18 de agosto de 1723. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Grão-Pará, 21. 1. 1, número 10. Memória sobre as causas da diminuição dos Índios do Estado do Pará. Arquivo Histórico Ultramarino. Pará, caixa 111 Relação das vilas do Estado do Grão-Pará (sem data)

capítulo de minha dissertação de mestrado61, Anais da Biblioteca Pública do Pará. Alvarás, cartas régias e decisões. Vol. II, p. 190. 60

James O. Religião, Estado e Escravidão na Amazônia Colonial(1640-1794). Brasília, UnB, 2000. 61Sousa,

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 102

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Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 103

Artigo

MULHER NEGRA NO BRASIL: UM ESTUDO DO QUARTO DE DESPEJO DE CAROLINA MARIA DE JESUS (1955-1960) Por Rebeca de Oliveira Santana Cerqueira e Carlos Alberto Pereira Silva

RESUMO: Durante a década de cinquenta o Brasil apresentou crescentes taxas de crescimento industrial, econômico e urbano. O objetivo dessa pesquisa é encontrar o lugar social ocupado por mulheres negras nesse novo contexto que surgiu no país. Para isso analisamos a obra Quarto de despejo de autoria de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, pobre e periférica, que viveu na cidade de São Paulo entre 1947 a 1977. Nessa obra, Carolina relata o seu cotidiano enquanto integrante de uma parcela da população historicamente oprimida, as mulheres negras. Foram realizadas atividades de leitura, fichamento e análise desse livro, com o propósito de promover um estudo de caso, e também de produções teóricas sobre desigualdades, discriminações e exclusão social e de documentos como censos demográficos e pertencentes à legislação federal brasileira, para posterior cotejamento com a obra. Consideramos que as mulheres negras brasileiras viviam uma condição de maior vulnerabilidade social em comparação com os outros segmentos, pois, esse grupo social apresentava menores níveis de escolaridade, emprego e renda. Palavras-chave: Mulheres negras. Desigualdade social. Modernização brasileira.

Introdução

D

urante a década de cinquenta o Brasil

fazer parte do cotidiano dos brasileiros, pelo

experimentou

menos para uma parte dessa população.

um

acelerado

crescimento industrial, econômico e

urbano.

Entretanto, esse crescimento econômico não foi condizente com a realidade da população negra

De acordo os historiadores João Manuel Cardoso

brasileira. Alguns estudos demonstraram que esse

de Mello e Fernando Antônio Novais (1998), os

contingente desfrutou de maneira desigual dos

sistemas públicos de saúde e educação foram

ganhos

expandidos para um número maior de cidades e a

modernização capitalista da sociedade. Citemos as

população urbana desenvolveu novos hábitos de

obras Discriminação e desigualdades raciais no

materiais

e

sociais

auferidos

pela

consumo, eletrodomésticos, alimentos e remédios industrializados e idas a restaurantes passaram a Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 104 Brasil, lançada em 1979, e Lugar de negro,1 que veio

pertença a um grupo social2, mesmo que

a público em 1982. A primeira tem como autor o

inconscientemente,

sociólogo argentino Carlos Halsenbalg e a segunda

envolvidos vivenciarem uma realidade semelhante

possui dupla autoria, sendo fruto do trabalho de

em diversos aspectos. Por isso, estudamos parte da

Halsenbalg e da antropóloga brasileira Lélia

trajetória de Carolina, contida em uma de suas

Gonzalez. Ambas as obras procuraram mostrar a

várias obras, para desenvolver esse trabalho.

situação social da população negra brasileira na segunda metade do século XX.

possibilita

aos

sujeitos

Durante as últimas décadas foram elaboradas várias pesquisas nas áreas das ciências humanas e

Pesquisadoras e pesquisadores nas últimas

sociais que colaboraram para as discussões sobre as

décadas seguem demonstrando em suas produções

desigualdades de raça/cor no Brasil. Essas pesquisas

a persistência do racismo no Brasil. A situação

possibilitaram a verificação do grau de eficiência de

apresenta-se ainda mais crítica quando levamos em

programas sociais e ações afirmativas empregados

consideração a situação das mulheres negras.

pelo Estado brasileiro, voltados para o combate e a

Segundo dados inclusos no Dossiê Mulheres negras:

diminuição de problemas sociais. Entretanto, essas

retrato das condições de vida das mulheres negras

análises, em sua maioria, enfocaram como recorte

no Brasil, publicado no ano de 2013, feito por

temporal a sociedade brasileira a partir da

investigadores vinculados ao Instituto de Pesquisa

redemocratização política do país, ocorrida na

Econômica Aplicada (IPEA), esse grupo social

década de 1980, até os dias atuais.

aparece como o mais atingido pela pobreza (SILVA, 2013, p.116) e pela violência física (ROMIO, 2013, pp.133-155).

Sendo assim, estudar a realidade das mulheres negras entre 1955 a 1960 permite um olhar mais específico sobre a situação vivida por esse grupo

Diante disso, o objetivo dessa pesquisa é

em um período marcado por significativas

encontrar o lugar social ocupado por essas

mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais

mulheres no Brasil na segunda metade do século

no Brasil. Possibilitando também, uma contribuição

XX, especificamente, entre o segundo quinquênio

a

da década de cinquenta.

permanências que se estabeleceram em nossa

Acreditamos que as mulheres negras enfrentaram uma condição de maior vulnerabilidade social, causada pela pobreza, o baixo nível educacional e o subemprego, derivados do longo período de existência

da

escravidão

negra

compreensão

histórica

das

rupturas

e

sociedade, desde a intensificação, de autoria política, do processo de modernização na década de 50 até o presente momento. O

corpus

documental

dessa

pesquisa

é

enquanto

constituído pelo livro Quarto de despejo: diário de

instituição social e da continuidade do racismo na

uma favelada, escrito por Carolina. Essa obra foi

sociedade brasileira mesmo após a abolição.

publicada no Brasil em 1960, sendo classificada

Consideramos que Carolina Maria de Jesus

como um diário autobiográfico. A autora relata o

integrava parte da população objeto desse estudo,

seu cotidiano enquanto mulher negra, pobre,

mulheres negras moradoras das áreas urbanas. A

coletora de matérias recicláveis e moradora de uma

1

2In:

GONZALEZ, Lélia; HALSENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero Limitada, 1982.

GOLDMANN, L. Sociologia do romance. 2ª ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1976, p. 19.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 105 favela,3 que tinha por nome Canindé, entre os anos de 1955 a 1960. Carolina nasceu em 1914 na zona rural da cidade de Sacramento, no Estado de Minas Gerais. Na condição de migrante passou a viver na grande São Paulo a partir de 1947. A infância em território mineiro foi marcada pela pobreza, fome e discriminação. Carolina retrata esse período em uma outra obra, que foi publicada no Brasil com o nome de Diário de Bitita4. A primeira versão de Quarto de despejo foi lançada em 1960, posteriormente, vieram outras edições. Carolina escreveu essa obra nos cadernos

Figura 1 - Capa de uma edição da obra Quarto de despejo lançada no Brasil em 1963. 5

velhos que achava no lixo enquanto coletava materiais recicláveis para vender. Durante uma

Para compor o quadro teórico dessa pesquisa

visita a Favela do Canindé, em 1960, o jornalista

adotamos as reflexões contidas nos artigos Raça e

Audálio Dantas interessou-se pelos escritos de

gênero no Brasil da socióloga estadunidense Peggy

Carolina e decidiu intermediar a publicação do seu

Lovell e A intersecionalidade na discriminação de

diário. Pouco tempo após o lançamento de Quarto

raça e gênero de autoria da jurista, também

de despejo, Carolina ganhou notoriedade no Brasil

estadunidense, Kimberlé Crenshaw, além, do livro

e no exterior. Seu livro foi traduzido para treze

Discriminação e desigualdades raciais no Brasi, e do

idiomas. Outras obras da autora também foram

texto

publicadas, inclusive, após a sua morte em 1977. A

desnecessários, de autorias, respectivamente, dos

fama repentina de Carolina foi passageira, apesar

também sociólogos, Carlos Halsenbalg e Elimar

de ter experimentado uma certa mobilidade social

Pinheiro do Nascimento. Procuramos dialogar com

nos primeiros anos após a publicação de sua

as considerações e conceitos desses pesquisadores

primeira obra, ela morreu pobre e no ostracismo.

e pesquisadoras com o intuito de atender o

Excluídos

necessários

e

excluídos

interesse inicial da pesquisa. Também, contamos com a presença de documentos feitos por instituições públicas, como é o caso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), e de componentes da legislação federal. Nessa pesquisa fizemos uso do termo raça/cor,

3

Área de povoamento urbano, formada por moradias populares, onde predominam pessoas socialmente desfavorecidas. Essa comunidade é o resultado de um processo histórico de exclusão social e de um modelo de má distribuição de renda. Em geral carece de saneamento básico. Muitas favelas já contam com urbanização. Existem nesse espaço urbano, assim como nos bairros das periferias, elevadas taxas de pobreza e desemprego [...]. Disponível em:

<http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=fa vela>. Acesso em: 27 abr 2017. 4 JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1986. 5 Fonte: Blog Anos dourados, Disponível em: < http://www.anosdourados.blog.br/2010/11/estante-delivros-quarto-de-despejo.html> Acesso em: 28 ago 2016.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 106 guiando-se pela perspectiva da pedagoga e

criminalidade, a sujeira e a representações

estudiosa das relações étnico-raciais no Brasil,

contrárias aos padrões de beleza da época, sendo

Nilma Lino Gomes (2005, p.45), que diz o seguinte:

assim, o contingente de pessoas negras que

“Ao usarmos o termo raça para falar sobre a complexidade existente nas relações entre negros e brancos no Brasil, não estamos nos referindo, de forma alguma, ao conceito biológico de raças humanas usado em contextos de dominação, como foi o caso do nazismo de Hitler, na Alemanha. [...] Usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na dimensão social e política do referido termo. E, ainda, usam-no porque a discriminação racial e o racismo existentes na sociedade brasileira se dão não apenas devido aos aspectos culturais dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos pertencentes às mesmas.”

É importante salientar, que ao usarmos os termos negro e/ou negra durante essa pesquisa estamos também em consonância com outra fala de Nilma (2005, p.39): “Negras são denominados aqui as

constituíam a população do país pode ter sido maior do que o apresentado pelo censo demográfico dessa década. Em 2009 (MARCONDES et al., 2013, p. 19), 50% das

mulheres

brasileiras

eram

negras,

em

comparação com 49,3% de brancas. Concordamos que: “Isso não significa que tenha havido uma mudança nas taxas de fecundidade ou de natalidade desses dois subconjuntos populacionais, mas que parece haver uma maior identidade, valorização e reconhecimento da população negra como tal. Ou seja, há uma mudança na forma como as pessoas percebem e declaram sua própria raça ou cor, e isto certamente tem sido influenciado pela inserção cada vez mais intensa na agenda pública – seja via movimentos sociais, seja via ação do Estado – dos temas de raça, etnia, discriminação e desigualdade.” (MARCONDES et al., 2013, p.20).

pessoas classificadas como pretas e pardas nos censos demográficos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).”

Os anos dourados A historiadora Marly Rodrigues afirma em seu

Segundo levantamentos do Instituto Brasileiro de

livro, A década de 50: Populismo e metas

Geografia e Estatística (2000), na década de 1950,

desenvolvimentistas no Brasil (1994), que o

11,0% da população brasileira se declarou preta e

governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-

outros 26,5% parda, contabilizando um total de

1961) colocou em prática uma política que visava

37,5% de negros. Ressaltamos que existe uma

acelerar o crescimento econômico do país, através

discussão em torno desses dados, pois, a forte

de um incentivo estatal mais enérgico para

presença do racismo na sociedade brasileira da

aumento da industrialização.

época, que nesse período ainda vivia escondido por

A classe política brasileira, na década de

detrás do mito da democracia racial, pode ter

cinquenta, parecia idealizar uma nova realidade

interferido nas respostas dos sujeitos entrevistados

para o Brasil, que pode ser definida pelo seguinte

ao serem questionados de qual grupo de cor

esquema: mais indústrias trariam mais empregos,

(brancos, pretos, pardos, amarelos, esse último

que trariam mais renda e consequentemente

adicionado pelo IBGE em 1940, devido à imigração

melhorias no nível de vida da população.

japonesa) fariam parte, já que, o preconceito racial

Entretanto, essa idealização não se restringia

estabelecia uma série de estereótipos negativos

apenas aos gabinetes políticos, contava com a

direcionados aos negros, relacionando-os à Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 107 participação de outros segmentos, como o

presidente, João Goulart, acusado por opositores

empresariado e militares.

de inclinação ao comunismo. (AGGIO, et al.,2002).

O controle da economia pelo Estado nesse

Quando JK assumiu o cargo presidencial trata de

período fica bem representado quando levamos em

fazer alianças com duas importantes forças políticas

conta a criação de organizações que tinham um

da época, seu partido de berço, o Partido Social

objetivo

o

Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista

desenvolvimento econômico e alçar o Brasil ao

Brasileiro (PTB), garantindo assim maioria no

status de nação moderna, como era o caso do Banco

congresso, o que assegurou a aprovação de seus

Nacional do desenvolvimento econômico (BNDE).

projetos políticos, além, de ter mantido um diálogo

Apesar da postura intervencionista, o governo de

frequente com a oposição. Essas estratégias

Kubitschek manteve as portas do país abertas ao

políticas

capital estrangeiro, fomentando o velho debate

estabilidade durante seu governo. (AGGIO, et al.,

entre nacionalistas versus entreguistas, que

2002, p. 61).

final

em

comum,

propiciar

outrora, tanto havia movimentado a Era Vargas (1930-1945).

proporcionaram

um

ambiente

de

Outra característica do governo de JK foi o atendimento de algumas reivindicações das forças

Para entender o cenário social brasileiro do

armadas. Era preciso garantir o apoio militar

segundo quinquênio da década de cinquenta é

enquanto se administrava o país com os olhos

necessário ter ciência do estado de convulsão

voltados

política que o país estava vivendo.

Entretanto, não deixaram de acontecer rebeliões

Com o suicídio do então Presidente da República Getúlio Vargas, no ano de 1954, seu vice, Café Filho, assumiu o cargo em seu lugar. Inicia-se então um período de instabilidade política entre o final

para

o

crescimento

econômico.

militares nesse período (AGGIO et al., 2002, p. 61). Citemos os dois episódios ocorridos nas cidades de Jacareacanga (1956) no Estado do Pará, e em Aragarças (1959) localizada em Goiás.

de 1954 até a posse de JK, no início de 1956. Esse

A economia brasileira dessa época vivia uma

período, de pouco mais de um ano, foi marcado por

mescla de investimentos oriundos tanto do capital

algumas sucessões na cadeira presidencial. As

nacional, quanto, do estrangeiro, ainda que essa

conquistas do nacional-desenvolvimentismo da Era

relação não tenha ocorrido de forma tão

Vargas pareciam está sob ameaça, houve tentativa

harmônica, pois, o capital estrangeiro veio a

de privatização da Petrobrás pouco tempo após o

predominar sobre o capital nacional. (AGGIO et al.,

fim do governo getulista (AGGIO et al., 2002, p.60).

2002).

Será que o petróleo já não seria tão nosso?

Para Mello e Novaes (1998), a década de

Após as eleições presidenciais de 1954, que

cinquenta no Brasil foi marcada pelas conquistas

alçaram Kubitschek ao poder, houve disputas no

materiais do capitalismo, como o carro, mas

seio militar. Conflitos entre militares favoráveis a

também,

posse de JK e a parte contrária. A explicação desse

exportações6 e pelas migrações internas com foco

estranhamento seria por causa do então vice do

para capitais e as regiões Sul e Sudeste do país.

6

internos, com o apoio do Estado.

Substituição das exportações pela produção e consumo

pela

política

de

substituição

de

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 108 Durante os Anos dourados7 o país tinha um novo

No ano de 1959, foi criada a Superintendência do

sonho dourado, o American way of life e seus

Desenvolvimento do Nordeste, a SUDENE, com

símbolos: tv, comida industrializada, refrigerante,

proposta

novos hábitos de higiene e beleza, entre outros.

econômico da região, numa tentativa de resolver o

Para a historiadora Anna Cristina Camargo Moraes

problema das disparidades sócio regionais do país.

Figueiredo (1998), a publicidade desenvolveu um

Mello e Novaes chamam atenção para as

papel bastante significativo no processo de

desigualdades entre os territórios do Brasil

modernização brasileiro:

estabelecendo a seguinte comparação:

“Portanto, entre 1954 e 1964, a publicidade espelhava a expectativa da modernização, colocada acima de tudo como ideal, cuja concretização dependia do progresso do país que, por sua vez, realizar-se ia pela passagem de uma etapa do desenvolvimento, sustentada pela economia agrária, para nova etapa caracterizada pelo crescimento industrial e urbano.” (FIGUEIREDO, 1998, p. 34).

A vida corrida e cronometrada das cidades exigiu da indústria farmacêutica o desenvolvimento e a comercialização de novos medicamentos para tratar as chamadas “doenças do progresso” ou “doenças da modernidade”, como o stress.

de

promover

o

desenvolvimento

“[...]O Brasil [...]Combinava dois quadros nosológicos distintos, o próprio aos países ricos e o peculiar a países pobres: de um lado, as “doenças do progresso”, as cardiovasculares, a hipertensão, o câncer e outras doenças crônicodegenerativas, as ùlceras de estômago e as gastrites, o stress etc.; antes de tudo as infecciosas, decorrentes, em boa medida, da má alimentação, como, por exemplo, a diarreia.” (MELLO; NOVAES, 1998, p.574).

As cidades maiores, como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e demais capitais, viram sua população aumentar substancialmente com a intensificação da industrialização no país durante a década de cinquenta, e, juntamente com isso, a

Para Aggio et al. (2002), de 1930 à 1960 a

desigualdade na distribuição de renda, fator que

população brasileira cresceu consideravelmente, os

estava diretamente ligado ao aumento no número

fatores explicativos para esse fenômeno seriam,

de favelas nesses municípios.

melhorias nas condições de vida (saúde e saneamento) e as migrações, com seus fluxos que saiam das zonas rurais com destino as cidades e do interior dos estados brasileiros em sentido às capitais, além, das migrações inter-regionais, onde milhares de pessoas saíram do Norte e Nordeste do país rumo ao Sul e o Sudeste em busca de novas oportunidades de vida. Essas duas últimas regiões apresentaram as maiores taxas de crescimento populacional

nesse

período.

Esses

lugares

Por outro lado, também cresce o número de brasileiros em instituições de ensino pelo país nos três níveis educacionais, fundamental, médio e superior. Isso se deu em decorrência da expansão do sistema de ensino para um número maior de cidades, que já ocorria desde a década de 1930 e se otimizou nas décadas seguintes. Também, a atividade agrícola passou a conviver com uma presença maior da atividade industrial na

concentravam a maior parte das indústrias.

nova realidade econômica brasileira.

7

life (estilo de vida americano), originado nos Estados Unidos da

O termo Anos Dourados refere-se ao período que sucedeu o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), especificamente, a década de 1950, onde a sociedade brasileira foi invadida de maneira inédita pela produção e pelo consumo em massa, baseados nos valores do American way of

América. In: KORNIS, Mônica A. Sociedade e cultura nos anos 1950. In: O Brasil de JK. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/artigos/Sociedade /Anos1950>. Acesso em: 28 abr 2017.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 109 numéricos, os objetivos ou as metas a serem atingidas no fim de 1960.” (BRASIL, 1958, p. 913).

O mais famoso projeto político de JK, segundo Rodrigues (1994), foi o Plano de metas ou Programa de metas. Representado pelo slogan político, “crescer

cinquenta

anos

em

cinco”,

esse

planejamento estratégico foi o elemento mais significativo

da

administração

de

caráter

desenvolvimentista adotada pelo presidente e tinha por finalidade promover a industrialização e a modernização brasileira em um ritmo acelerado. Uma das principais características do plano previa a substituição das exportações pela produção e consumo internos. Nas palavras de Mello e Novais: “O Plano de Metas de Juscelino, [...]objetivava implantar no Brasil os setores industriais mais avançados, como a Indústria elétrica pesada, a química pesada, a nova indústria farmacêutica, a de máquinas e equipamentos mais sofisticados, a automobilística, a indústria naval, ou levar adiante estratégicas, como a do aço, a do petróleo e a da energia elétrica.” (MELLO; NOVAES, 1998, p. 590).

O Plano de metas (BRASIL, 1958, p. 10) contava com financiamento do governo federal, que contribuiria com 39,7% do valor total dos investimentos; dos Estados da federação e de instituições públicas, como o Banco Nacional do Desenvolvimento

Econômico,

que

juntos

custeariam quase 25% dos recursos do plano; e do capital privado, que subsidiaria 35,4% do montante final. A descrição do programa continha 30 objetivos iniciais a serem atingidos, um último foi inserido posteriormente, a criação da cidade de Brasília no Centro-Oeste do Brasil. Entre eles, o aumento da produção de energia elétrica; de trigo e dos armazéns para manter as safras; de aço; cimento;

Em 1958 o Conselho do Desenvolvimento, instituição pública também criada no governo de Kubitschek, lançou um documento no qual detalhava o andamento do programa. Em um dos trechos deixava manifesto que: “A política de desenvolvimento econômico do Presidente Juscelino Kubitschek consubstanciase em seu programa de metas, que abrange projetos políticos a serem executados com recursos públicos e privados. O programa traduz um conjunto dinâmico e progressivo de obras e empreendimentos realizáveis em diversas etapas, algumas das quais deverão ser ultimadas até o fim do atual quinquênio de governo (1961) e outras de conclusão prevista de 5 a 10 anos, como é o caso da meta da energia elétrica, na qual cerca de 40% dos investimentos em curso só serão consumados entre 1961 e 1965. [...]O programa de metas do Presidente Juscelino Kubitschek, elaborado com os estudos e pareceres das maiores autoridades especializadas em cada assunto, constitui-se de uma série de programas setoriais de investimentos, destinados a orientar a execução de obras e a expandir ou implantar indústrias e serviços indispensáveis ao desenvolvimento econômico do País. Foram selecionados trinta setores, julgados prioritários, fixando-se, sempre que possível, em termos

celulose; borracha; entre outras coisas. Segundo o Conselho do Desenvolvimento (1958) o programa foi exitoso em relação à vários de seus objetivos, entre eles, a expansão da produção diária do Complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso localizado na Bahia, e de trechos de estradas pelo país. O crescimento econômico alcançado pelo ousado projeto político do Presidente JK não deixou de ter um preço para os trabalhadores. Em momentos com alta da inflação, a repressão às greves trabalhistas foi um mecanismo político de contenção da “desordem” e, de manutenção da coesão social “necessária” para a continuação das ações da política econômica desenvolvimentista do período. (RODRIGUES, 2002). Ainda segundo Marly Rodrigues (2002), o desenvolvimentismo

permite

alterações

na

sociedade, como, dinamização do consumo e certa mobilidade social, mas, sem alteração radical da

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 110 estrutura

econômica

e

social

vigente.

A

viveram no segundo quinquênio da década de

historiadora usa o termo “mudar dentro da ordem”

cinquenta, dentro do novo modelo de sociedade

para explicar esse fenômeno.

que passou a existir, outrora, já discutido nesse

Apesar de ter recebido acusações de ter sido o

capítulo.

responsável pelo endividamento do país nos anos que seguiram sua aplicação, devido aos crescentes gastos com obras públicas; como foi o caso de Brasília, e também, de ter facilitado o processo de desnacionalização das riquezas, o Plano de metas de JK foi considerado exitoso no que diz respeito a criação de um parque industrial maior e mais complexo no Brasil e na consolidação do processo de modernização da sociedade brasileira.

durante todo esse processo. Ao falar sobre a posição da população negra nesse momento histórico, Mello e Novaes (1998, p. 584) afirmam: “Os negros, em sua esmagadora maioria, ficaram confinados ao trabalho subalterno, rotineiro, [...].”

Esse

dado

demonstra

Para a socióloga Peggy Lovell (1995), os negros ainda estão concentrados no estrato econômico mais baixo e mesmo aqueles que apreciam uma certa mobilidade social ainda sofrem preconceito. Entretanto, as mulheres negras encontram-se numa situação ainda mais crítica possuindo rendas menores que o restante da população brasileira.

Entretanto, a desigualdade social esteve presente

mecânico

“A vera não tem sapatos”

as

contradições sociais desse período, já que, o novo modelo de sociedade que surgiu trazia consigo novas oportunidades educacionais e de emprego, conforme já dito anteriormente. Por que isso aconteceu? Quais as razões dessa desigualdade? São interessantes perguntas a serem feitas. Existem uma série de pesquisas que buscam responder as questões descritas acima, algumas elegeram como hipótese central o peso que a escravidão negra, que existiu no Brasil Colonial e Imperial, exerceu nas décadas posteriores à abolição na sociedade. Outras mais recentes apresentaram novos dados para explicar a situação atual da população negra no Brasil. Entretanto, essa pesquisa tem um objetivo mais peculiar se tratando do quesito populacional. Objetivamos analisar o lugar social de um grupo específico, as mulheres negras brasileiras, que

Carolina foi um exemplo dessa realidade, já que, apontou em vários momentos de sua escrita a sua baixa posição na estratificação social, oriunda em grande parte de seu trabalho subalterno e informal que lhe oportunizava uma renda baixa. “[...] Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender. ” (CAROLINA, 1963, p. 09). Nesse trecho Carolina narra sobre as dificuldades enquanto coletora de papel, trabalho considerado informal de onde ela tirava o seu sustento e o de sua família. Ainda de acordo Lovell (1995), as mulheres negras tinham menos acesso à instrução formal do que o restante da população do Brasil na segunda metade do século XX. Carolina também fala sobre a sua baixa escolaridade em seu diário: “Tenho apenas dois anos de grupo escolar. ” (CAROLINA, 1960, p. 13). A partir das primeiras décadas do século passado no Brasil as profissões passaram a ser hierarquizadas segundo a lógica capitalista, sendo assim, o grau de escolaridade de um sujeito estava intrinsecamente ligado com o tipo de trabalho que o mesmo iria desenvolver nessa hierarquia. Mello e Novais (1998) afirmam, que nas cidades brasileiras como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 111 Horizonte, Salvador, Recife, Porto Alegre e Fortaleza,

entre

outras,

o

desenvolvimento

industrial e o crescimento urbano e econômico na década

de

oportunidades

cinquenta de

trouxeram

trabalho

à

novas

população.

Entretanto, para Lovell (1995, p.60): “Com uma educação básica, as mulheres brancas tinham a

Acreditamos que o fato de terem baixa escolaridade relegava as mulheres negras a ocupação de trabalhos subalternos e/ou de caráter informal, como no caso de Carolina que era coletora de papel e de outros materiais recicláveis nas ruas de São Paulo: “Vendi as latas e os metais. Ganhei 31 cruzeiros. […]O meu sonho era andar bem limpinha, […]residir numa casa confortável. […] Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato

De acordo Kimberlé Crenshaw (2002), para compreender a realidade das mulheres negras é preciso adotar uma perspectiva intersecional. O conceito de intersecionalidade pode ser entendido pelo entrelaçamento de desigualdades sociais. Esse entrelaçamento pode acontecer entre marcadores sociais diversos8; raça/cor, gênero, classe ou condição física (portadores de necessidades especiais). Por exemplo, as mulheres negras lésbicas não sofrem apenas com o racismo, mas, também com a homofobia. O objetivo da pesquisa intersecional é analisar como a relação entre esses marcadores cria formas de discriminação e afetando

a

vida

de

determinados sujeitos e grupos sociais. Ainda de acordo Crenshaw (2004, p. 8): “A questão é reconhecer que as experiências das mulheres negras não podem ser enquadradas separadamente nas categorias da discriminação 8

os

pressupostos

teóricos

da

intersecionalidade, as mulheres negras podem ser envolvendo discriminação e violência de gênero, mas, também discriminação e preconceito racial. Acrescentamos a essa lista, o preconceito de classe, pois, a maioria dessa população integra as classes subalternas. Ou seja, as mulheres como Carolina vivem o que Crenshaw considera uma interseção de desigualdades, de cor/raça, classe e gênero, devido a isso são triplamente discriminadas dentro da sociedade. As consequências dessa interseção são: pobreza

papel.” (CAROLINA, 1963, p. 16-19).

específicas

Segundo

vítimas ao longo de suas vidas de situações

maior possibilidade de ter tais empregos.”

opressão

racial ou da discriminação de gênero. Ambas as categorias precisam ser ampliadas para que possamos abordar as questões de intersecionalidade que as mulheres negras enfrentam. ”

In: ZAMBONI, Marcio. Marcadores sociais. Disponível em: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-

elevada; menos anos de escolaridade, subemprego; violências (psicológica, física, patrimonial) maior dificuldade de mobilidade social; tripla jornada de atividades (trabalho formal ou informal, atividades envolvendo o ambiente doméstico e o cuidado dos filhos) e salários menores; entre outros fatores. A ausência dos pais dos seus três filhos na criação das crianças gerava dificuldades na vida de Carolina, segundo ela: “[…] Fui catar papel. […] Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos. […] Suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da Vera Eunice nos braços. […] Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.” (CAROLINA, 1963, p. 09). Em outro trecho do diário, Carolina segue narrando essa ausência. Nesse caso, sua filha encontrava-se doente: “Eu não posso contar com o pai dela. Ele não conhece a Vera. E nem a Vera conhece ele.

content/uploads/2015/07/ZAMBONI_MarcadoresSociais.pdf >. Acesso em 25 abr 2017.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 112 Tudo na minha vida é fantástico. Pai não conhece

Para Crenshaw (2002), a principal consequência

filho, filho não conhece pai. ” (CAROLINA, 1963, p.

causada pela interseção de desigualdades na vida

59).

de mulheres negras é a contração ou anulação de

Em um país com forte presença do machismo nas relações sociais, como era e continua sendo o Brasil, o abandono paterno era uma constante na vida de mulheres e filhos. Para Lovell (1995), boa parte das mulheres negras eram responsáveis por famílias monoparentais. Esse modelo de família é caracterizado quando apenas um dos pais participa da criação de um ou mais filhos.

quaisquer possibilidades de mobilidade social. Como no caso de Carolina, onde a dificuldade em manter uma família sem um emprego formal e uma renda fixa em um país onde as mulheres negras tinham menor instrução formal e em decorrência disso menos oportunidades de emprego, conforme já dito, somava-se com a realidade de uma sociedade machista que propiciava e facilitava a ausência de responsabilidade masculina em vários sentidos, como a manutenção de seus filhos, o que

Ser responsável por uma família monoparental trazia vários entraves à vida de Carolina. Em Quarto de despejo a preocupação em manter os seus três filhos está sempre presente, principalmente, no que se refere à alimentação. “...De manhã eu estou sempre nervosa. Com medo de não arranjar dinheiro para comprar o que comer. Mas hoje é segunda-feira e tem muito papel na rua.”

provocava uma intensificação da jornada de trabalho dessas mulheres: “Todos os dias é a mesma luta. Andar igual um judeu errante atraz de dinheiro. E o dinheiro que se ganha não dá pra nada. […] Catei mais um pouco de papel e recebi 10 cruzeiros. [...] Fui catar papel. (… Ganhei só 25 cruzeiros. […] Passei na fábrica e catei uns tomates. […] Quando cheguei na favela fiz uma salada para os meninos. [...]: Eu sou sosinha. Tenho três filhos.” (CAROLINA, 1963. P. 60-65).

(CAROLINA, 1963, p. 44). As dificuldades persistem em outros trechos da narrativa: “ [...] O José Carlos chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando eu vejo eles comendo as coisas do lixo penso: E se tiver veneno? É que as crianças não suporta a fome. […] 31 DE MAIO Sabado – o dia que quase fico louca porque preciso arranjar o que comer para sábado e o domingo. [...] Não ganhei bolacha e fui na feira, catar verduras. […] E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: - Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome. […] Passei o dia chingando os politicos, porque eu tambem quando não tenho nada para dar aos meus filhos fico quase louca. [...]: Estou nervosa com medo da Vera piorar, porque o dinheiro que eu tenho não dá para pagar medico. […] O José Carlos não quer ir na escola porque está fazendo frio e ele não tem sapato. […] O saco estava pesado. Eu devia carregar o papel em duas viagem. Mas carreguei de uma vez porque queria chegar em casa, porque a Vera estava doente e sosinha. […] O leite está sendo despesas extras e está prejudicando a minha minguada bolsa. […] Eu pensava nas roupas por lavar. Na Vera. E se a doença piorar? (CAROLINA, 1963. p. 44-56).

Segundo documento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil (2013), as mulheres negras compõem majoritariamente os números das estatísticas de mulheres vítimas de agressão física no Brasil. De acordo os escritos de Carolina, a realidade de mulheres negras e pobres que viveram na década de cinquenta não era muito diferente da representada pelos dados do dossiê. “[…] Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que eles me impunham eram horríveis. ” (CAROLINA, 1963, p. 14)

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 113 Em um outro momento Carolina escreve sobre um dado importante: “[…] Um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. ” (CAROLINA, 1963. p. 44). Conforme já dito anteriormente, as mulheres negras na segunda metade do século passado tinham menor tempo de escolaridade comparadas ao restante da população. Estaria essa situação relacionada com uma forte presença do machismo no pensamento social da época, que condicionava

conclusão é simples, a infraestrutura econômica deve ser acompanhada de uma infraestrutura educacional e, portanto, social. A meta constitui propriamente um Programa de Educação para o Desenvolvimento. [...] Em matéria de ensino médio, providencia-se o aparelhamento físico das escolas. [...] Construção de novas escolas, e seu equipamento, ampliação das Escolas existentes. [...] Em matéria de ensino superior: aumentar para mil novos alunos por ano a capacidade das escolas de Engenharia. [...] Para esse objetivo, o Govêrno instalará 14 institutos de Pesquisas, Ensino e Desenvolvimento nos principais centros do país, nos setores de química, economia, tecnologia rural, mecânica, eletrotécnica, mineração e metalurgia, mecânica agrícola, matemática, física, genética e geologia.” (BRASIL, 1958, p. 96).

às mulheres que viviam naquela sociedade ao ambiente

doméstico,

repelindo-as

de

frequentarem instituições de ensino? Ou, ao fato de que o grupo social em questão, mulheres negras, ao comporem majoritariamente a parte mais pobre da população necessitarem trabalhar desde a infância para contribuírem na renda mensal de suas famílias, o que acabava por prejudicar a sua frequência a instituições de ensino? Segundo Peggy Lovell (1995), esse último argumento era mais coerente com a realidade das mulheres negras brasileiras na segunda metade do século passado. Para o sociólogo Carlos Halsenbalg (2005), a expansão do sistema educacional de ensino entre as

décadas

de

1950

e

1970

De acordo o documento acima o aumento nos investimentos para o desenvolvimento da educação no país, com ênfase em algumas áreas específicas, possibilitou novas oportunidades de estudo e consequentemente de emprego. Acerca disso, Halsenbalg nos diz o seguinte (2005, p. 193): “Em 1950, os brancos – representando 63,5% da população total – detinham 97% dos diplomas universitários, 94% dos secundários e 84% dos diplomas da escola primárias. No Sudeste e no resto do país, a participação dos não-brancos nos níveis secundário e universitário foi desprezível, não só em 1940, mas também em 1950. Isto sugere que a discriminação educacional, juntamente com a discriminação racial exterior ao sistema educacional, atuou para produzir a exclusão virtual dos não-brancos das escolas secundárias e das universidades.”

beneficiou

consideravelmente toda a população urbana do

O sociólogo afirma que as desigualdades entre

país, entretanto, as desigualdades relacionadas ao

pessoas brancas e negras na sociedade pode ser

acesso à educação formal entre brancos e não

explicada pelo que o autor chama de desvantagem

brancos9 persistiu durante o período. Essa expansão

geracional: “[...]Como resultado da discriminação

fazia parte do trigésimo objetivo do plano de metas

racial do passado, cada nova geração de não-

de JK, que previa:

brancos está em posição de desvantagem porque se

“O plano de metas visa dotar o país de uma infra e superestrutura industrial e modificar sua conjuntura econômica; se não ocorrer interligação; se não ocorrer interligação dêsse plano com os demais fenômenos econômicos, sociais e políticos, o plano tornar-se à falho. A 9

O termo não-branco usado por Carlos Halsenbalg equivale a

origina desproporcionalmente de famílias de baixa posição social. [...]Os filhos de pais não-brancos acumularão menos recursos competitivos que os filhos de pais brancos – incluindo níveis de pessoas negras.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 114 habilidade,

educação

e

aspirações

[...].”(HALSENBALG, 2005, p. 208). Ainda

segundo

Halsenbalg

maneira uniforme sobre os gêneros ao estabelecer (2005),

as

desigualdades educacionais entre brancos e nãobrancos na sociedade brasileira também tem como fator explicativo as práticas discriminatórias contra esse segundo grupo, como a estereotipização negativa presente no imaginário social que idealiza as

pessoas

inferiores.

negras Essa

como

intelectualmente

representação

Para Crenshaw (2002), o racismo não atua de

acaba

sendo

internalizada pela estrutura mental do segmento social marginalizado, torna-se assim, um empecilho para o sucesso educacional dessa parte da

situações de discriminação e preconceito. Um exemplo disso, é que o discurso, baseado em estereótipos de gênero, de que as mulheres são frágeis é mais utilizado se tratando de mulheres brancas. No caso de mulheres negras, os estereótipos de cunho sexista são direcionados a ação de hipersexualizá-las (a ideia da mulata com grande apetite sexual) ou desumanizá-las (a representação da mulher negra em filmes, revistas em quadrinhos, desenhos animados e etc), ao invés de “fragilizá-las”10.

população. De acordo o pensamento social da época, pessoas negras não eram vistas como possíveis criadoras de produção letrada. Em uma passagem de Quarto de despejo nos deparamos com uma situação descrita

Elimar Pinheiro do Nascimento, em seu texto Dos excluídos necessários aos excluídos desnecessários, discute acerca dos conceitos de pobreza, exclusão e

desigualdade

social

numa

perspectiva

sociológica.

por Carolina e que envolvia preconceito racial:

Dialogando com o pensamento durkheimiano11,

“...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de

Nascimento (2000) considera que a exclusão social

circos. Eles respondia-me: - É pena você ser preta.”

pode ser definida como a rejeição sofrida por

(CAROLINA, 1963, p. 58).

alguns grupos pelo restante da sociedade, devido a

Carolina também relata ter sido vítima, em frequentes episódios, de ofensas racistas proferidas por alguns moradores da favela onde morava, o termo pejorativo “negra fedida” foi utilizado como insulto. Segundo ela, o motivo das agressões verbais seria por causa desses moradores estarem desgostosos com o fato da catadora apreciar ler e escrever. De acordo Carolina, isso não era um hábito comum entre as pessoas de sua comunidade, já que, boa parte delas, era analfabeta (CAROLINA, 1963).

características ou comportamentos próprios desses segmentos. Assim, toda discriminação, seja de cunho racial, sexual, religiosa ou econômica é também exclusão social. Nesse mesmo texto, o autor apresenta um outro prisma acerca do problema, no qual, grupos sociais que não estão integrados ao mundo do trabalho, como mendigos, moradores de rua, são excluídos por não terem as mínimas condições para viver dignamente, sem acesso

a

direitos

sociais

básicos,

outrora,

“assegurados” desde 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela

10

In: CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. In: Cadernos Pagu. Disponível em: < http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/arti cle/view/1860>. Acesso em: 24 abr 2017. In: NETO, Marcolino Gomes de Oliveira. Entre o grotesco e o risível: o lugar da mulher negra na história em quadrinhos no

Brasil. In: Geledés Instituto da mulher negra. Disponível em: < http://www.geledes.org.br/entre-o-grotesco-e-o-risivel-olugar-da-mulher-negra-na-historia-em-quadrinhos-nobrasil/#gs.QD8=7_8>. Acesso em: 24 abr 2017. 11 Refere-se nesse caso, aos conceitos teóricos do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917).

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 115 Organização das Nações Unidas (ONU), entre eles,

disso, alguns grupos são colocados em situação de

alimentação, moradia, educação, trabalho e etc.

pobreza absoluta, sem as mínimas condições para

Nascimento (2000) apresenta dois conceitos que podem ser utilizados para pensar o lugar social das mulheres negras no Brasil da década de cinquenta: excluídos necessários e excluídos desnecessários. Para determinadas economias é necessário que alguns grupos sociais sofram exclusão, garantindo assim, “um bom funcionamento da sociedade” em questão. Seriam exemplos, os povos originários da América Portuguesa durante sua fase extrativista e os africanos trazidos para o Brasil durante a vigência do sistema escravista. Esses grupos, durante

certos momentos

históricos,

foram

viver dignamente, apresentando chances quase nulas de mobilidade social e “colocando em risco” toda a dinâmica descrita acima, que seria um dos sustentáculos do ideário da sociedade moderna. Esses grupos seriam o que Nascimento denomina excluídos desnecessários. Os Estados modernos, dentro da lógica descrita acima, deveriam garantir as condições mínimas de sobrevivência, na forma de direitos básicos, para suas populações, assegurando o “direito” de todas as pessoas participarem dos processos de mobilidade social ascendente.

indispensáveis para a economia, garantindo através

Se olharmos através desses pressupostos, a

do seu trabalho a produção e manutenção de

situação das mulheres negras pode ser explicada da

riquezas e de privilégios sociais de outros grupos da

seguinte maneira; esse grupo social era composto

sociedade, como os senhores de engenho12.

pelos excluídos desnecessários da sociedade

Entretanto, para isso acontecer, era imprescindível

brasileira, porque, tinham menor instrução formal,

que eles fossem mantidos alijados de desfrutarem

devido a uma falha do Estado brasileiro que não

dos benefícios econômicos, sociais e políticos

proporcionava esse tipo de educação, no caso, um

gerados por sua função. Por isso, seriam, segundo

direito social básico, a toda a sua população. Sendo

Nascimento, excluídos necessários.

assim, esse contingente não tinha as condições

Outrora, para entender o conceito de excluídos desnecessários, é fundamental, seguindo os passos desse autor, entender, ainda que de forma mais geral, as funções que a desigualdade teria na sociedade moderna, uma positiva e outra negativa. De acordo a primeira função, a desigualdade entre as pessoas provoca concorrência em busca de ascensão social, o que, por sua vez, provoca inovação

tecnológica

e

desenvolvimento

econômico de determinada sociedade. Entretanto,

exigidas para competir com os demais segmentos na disputa por oportunidades de mobilidade social, restando assim, os postos de trabalho informais ou subalternos, que tinham menores benefícios sociais e econômicos, e/ou adentrar as estatísticas de pobreza absoluta (mendigos). A situação vivida pelas mulheres negras brasileiras, enquanto agrupamento social, representava um lapso no ideário das chamadas sociedades modernas, como era o caso do Brasil.

quando a desigualdade cresce consideravelmente

Segundo Lovell (1995), o lugar de residência deve

toma um aspecto negativo, porque, em decorrência

ser levado em conta quando estamos em busca da

12

em sua maioria, a burguesia do país no século XX. In: NOVAIS, Fernando Antônio. O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial. In: MOTA, Carlos G (ORG). Brasil em Perspectiva. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.

O trabalho escravo desenvolvido pelos africanos e seus descendentes no Brasil, entre os séculos XVII e XIX, de caráter não-remunerado, foi essencial para garantir a acumulação primitiva de capital pela antiga elite senhorial que se tornaria,

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 116 posição social de algum grupo populacional, sendo ele, um importante índice demonstrativo do nível de estratificação de uma sociedade. Carolina residia na Favela do Canindé, hoje extinta, na cidade de São Paulo. As péssimas condições de habitação desse local eram pautas frequentes nos relatos da coletora: “[…]...Havia pessoas que nos visitava e dizia: - Credo, para viver num lugar assim só os porcos. Isto aqui é o chiqueiro de São Paulo.” (CAROLINA, 1963, p. 30).

Ou seja, os “quartos de despejos” são os locais de habitação de parte da população urbana excluída das benesses sociais do crescimento econômico e da modernização da sociedade brasileira. Para Carolina, morar nesses lugares era fruto de um problema social, a má distribuição de renda: “[…] Na favela é a minoria quem toma café. [...] Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. [...]Somos obrigados a residir na favela.”

Apesar de o serviço público de saneamento de

(CAROLINA, 1963, p. 30-39). Eram nesses espaços

água e esgoto ter se expandido pelas cidades

onde existia a possibilidade de se construir

acompanhando o ritmo do crescimento urbano

barracões com os materiais que estivessem ao

(MELLO; NOVAIS,1998), as favelas continuaram

alcance, como madeira e papelão, e também onde

marginalizadas. Na narrativa de Carolina, residir em

os aluguéis eram mais baratos.

uma favela no Brasil significava conviver com inúmeras situações desgostosas: “...As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre; […] Tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo. […] E o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.” (CAROLINA, 1963, p. 33). O termo quarto de despejo, que dá título à obra fonte dessa pesquisa, mostra como Carolina via a favela do Canindé. Ela estabelece uma comparação entre as condições de vida em uma zona habitacional marginalizada e o restante da cidade. “Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. [...] Cheguei na favela: eu não acho jeito de dizer cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é barracão. […] O lixo podre exala mau cheiro. Só aos domingos que eu tenho tempo de limpar. [...] Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela.” (CAROLINA, 1963, p 35-76).

Nascimento (2000) considera que a exclusão social possui uma geografia própria. Ele diz que existem lugares estigmatizados, onde, o fato de se ter nascido e/ou viver nesses locais já confere a seus moradores um estigma social relacionado, por exemplo, a delinquência. Como no caso das favelas e zonas periféricas das cidades brasileiras. Em vários momentos de sua escrita Carolina também denuncia o abandono do Estado brasileiro em relação a comunidade onde morava: “De quatro em quatro anos muda-se os políticos e não soluciona a fome […]. Cheguei na favela os meus meninos estavam roendo um pedaço de pão duro. [...] Os politicos só aparece aqui no quarto de despejo, nas epocas eleitorais. [...] ...Ensaboei as roupas. Depois fui acabar de lavar na lagoa. O Serviço de Saude do Estado disse que a agua da lagoa transmite as doenças caramujo. […] Não soluciona a deficiência da água.” (CAROLINA, 1963, p. 36- 71).

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 117

Figura 2 - Carolina Maria de Jesus na favela do Canindé, onde residia, em São Paulo13. Durante essa análise percebemos a forte presença

demonstrar nitidamente essas dificuldades. O fato

das dificuldades materiais na vida de Carolina. A

de sua filha Vera não ter um calçado ilustra a

renda que obtinha enquanto catadora de

privação material vivida pela família de Carolina.

recicláveis era incompatível com as despejas

Enquanto as classes médias brasileiras desfrutavam

necessárias para manter a si e a seus filhos:

cada

“O dinheiro não deu para comprar carne. [...] Faz duas semanas que eu não lavo roupas por não ter sabão. […] Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago. […] Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. [...]O medico mandou-me comer oleo mas eu não posso comprar. [...]...Já faz seis meses que eu não pago a agua. 25 cruzeiros por mês. [...]Os preços aumentam igual as ondas do mar. [...]...Está chovendo. Eu não posso ir catar papel. […] Já uso o uniforme dos indigentes. […] Fui no frigorifico, ganhei uns ossos. Já serve. Faço uma sopa. […] Quando eu não tenho nada para comer, invejo os animais.” (CAROLINA, 1963, p. 37- 55).

vez

mais

do

acesso

ao

consumo,

principalmente da moda “Made in USA”, mulheres como Carolina vivenciavam uma outra realidade: “[…] Catei mais um pouco de papel e recebi 10 cruzeiros. Fiquei com 71 cruzeiros. Dei 30 para os sapatos, fiquei com 41. E não ia dar para comprar café, pão, açúcar e arroz e gordura.” (CAROLINA, 1963, p. 60). Ainda sobre a realidade social das mulheres negras brasileiras, Peggy Lovell (1995, p. 45) apoiase no trabalho de várias pesquisadoras para tecer

Um dos trechos lidos no diário acabou sendo escolhido para intitular esse capítulo da pesquisa, “A Vera não tem sapatos”, justamente por

sua consideração: “Estudos têm mostrado que as mulheres afrobrasileiras trabalham jornadas mais longas e ganham ainda menos que as mulheres brancas (Carneiro e Santos 1985). A categoria de

13

Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/programacaocultural/exposicoes/temporarias/detalhe?title=%22Carolina+em+N%C3%B3s%22 Acesso em: 28 ago 2016.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 118 emprego que é isoladamente a maior para as mulheres afro-brasileiras continua sendo a de empregada doméstica, 90% das quais são negras (Patai 1988). Além de terem empregos de menor status, as mulheres afro-brasileiras têm maior probabilidade de serem chefes únicas de famílias pobres.” (Oliveira, Porcaro e Araújo 1987).

sociedade brasileira viveu a experiência da modernização

capitalista,

com

ascendente

urbanização, acompanhada de outros fenômenos como metropolização e favelização, em seu território, alimentada pelo crescimento industrial, consequência da política desenvolvimentista do

Os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE),

desigualdades

demonstravam

ocupacionais

entre

as

mulheres

brancas e negras na década de 1950. O censo demográfico

(1956,

p.30-31)

dessa

década

apontava a quantia de 2.942 mulheres brancas atuando como empregadoras no ramo de comércio de mercadorias; enquanto que apenas 250 mulheres pretas e pardas ocupavam essa mesma função; também trazia os seguintes números: 6.842 mulheres brancas eram profissionais liberais (médicas, advogadas, farmacêuticas, engenheiras e etc), é importante salientar que para ocupar esses postos de trabalho era necessário possuir grau universitário nas respectivas áreas; outrora, 1,349 foi o total de mulheres negras em tais atividades;

então

Presidente

da

República

Juscelino

Kubitschek. Em decorrência disso o país passou a contar com novas oportunidades nos âmbitos do ensino e do mercado de trabalho. Entretanto, as mulheres negras aparecem como um dos grupos sociais menos

beneficiados

por

essas

mudanças.

Acreditamos que isso pode ser explicado pelo lugar social que elas ocupavam no Brasil, caracterizado pela dificuldade de acesso e continuação nas instituições de ensino e com menos chances de lograrem as novas oportunidades de emprego formal e de participarem dos processos de mobilidade social ascendente que surgiram na época.

36.533 mulheres brancas trabalhavam no setor

As mulheres negras constituíam a maioria das

público, em contrapartida, apenas 3.516 mulheres

empregadas domésticas do país, na segunda

negras eram funcionárias públicas.

metade do século XX. O trabalho doméstico é

Os dados apenas se invertem, nesse censo, quando levado em conta o percentual de mulheres ligadas a atividades domésticas não remuneradas14, onde as brancas somavam um total de 9.297. 296, já as mulheres negras, que possuem uma relação histórica com esse tipo de função, correspondiam a quantia de 5.469,282.

historicamente

ligado

a

subalternidade,

contemporaneamente, um dos mais propensos a situações de desrespeito a direitos trabalhistas e a remunerações menores que o salário mínimo estabelecido por lei. Esse tipo de trabalho só foi regulamentado no Brasil em 2015. A Lei Complementar Nº 150, de 1º de junho de 2015, estabeleceu direitos trabalhistas; como adicional noturno; férias anuais; teto salarial e jornada de

CONCLUSÃO O período abordado por essa pesquisa,1955-

trabalho, já garantidos a outras categorias, para os trabalhadores domésticos.

1960, fez parte de um processo histórico onde a

14 Nesse quesito também foram inclusas pelo IBGE a população

de mulheres que apenas estudavam.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 119 Em nossa sociedade, a renda de uma pessoa está

Esse lugar continuou sendo definido pela

intimamente ligada com a qualidade de vida que

subalternidade e pela vulnerabilidade social,

ela pode desfrutar. Isso explica a situação de

provocadas, pelos baixos índices de escolaridade;

pobreza vivida por muitas mulheres negras, já que

presença maior no mercado de trabalho informal;

esse grupo social possui rendimentos menores que

componentes majoritárias dos números totais de

o restante da população.

pessoas pobres no país; rendimentos menores que

Esse trabalho também reafirma a ideia de que o processo de modernização brasileiro se deu de forma desigual entre as regiões do país, onde o Sudeste, Sul e Centro-Oeste foram as regiões mais beneficiadas, em detrimento do Norte e Nordeste do país. Apesar de ter proporcionado crescimento econômico para o país, o plano de metas, representante-mor da política de governo de JK, não solucionou o problema das desigualdades sociais, não alterando significativamente o lugar social já ocupado pela maioria das mulheres negras,

o restante da população e pelo preconceito racial. Todas essas considerações demonstram o caráter contraditório da modernização da sociedade brasileira da segunda metade do século XX. Rebeca de Oliveira Santana Cerqueira é Graduanda em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Carlos Alberto Pereira Silva é Graduado em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Especialista em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília. Doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Professor titular do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Campus: Vitória da Conquista

como no caso de Carolina, antes do processo de modernização.

Figura 3 - Carolina em seu barracão na extinta favela do Canindé em São Paulo. Fonte: Arquivo público do Estado de São Paulo/Produção original dos fotógrafos do “Última Hora”15 15

Disponível em: http://brasileiros.com.br/2016/04/negraex-catadora-e-favelada-voce-conhece-escritora-mineira-

lida-em-14-linguas/ Acesso em: 28 ago 2016.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 120

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Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 121

Artigo

TECELAGEM E MÉTIS: SUBTERFÚGIOS DA RAINHA MICÊNICA PENÉLOPE Por Cely Nathany Evangelista

Resumo: As mulheres na Grécia antiga vão utilizar as atividades exclusivamente do universo feminino para subverter uma imposição masculina. Dentro desse contexto a rainha micênica Penélope de Homero, vai utilizar de seus afazeres e sua métis para subverter algumas convenções vigentes, como contrair um novo matrimônio. Em a Odisséia de Homero, a rainha Penélope se estaca como um dos personagens principais do Poema Homérico. Penélope se destaca como uma personagem de grande influência para o poema. Penélope está em meio de uma crise. Enquanto seu marido Odisseu, não volta da guerra de Troia, enquanto ele permeia por aventuras no caminho de volta. Ela precisa escolher um dos 108 pretendentes que estão no seu palácio em Ítaca para esposá-la. A rainha micênica é caracterizada como: fiel ao seu marido e a sua oikos, protetora da honra e da oikos de seu marido. Palavras-Chave: Tecer – Penélope – transgressão – Métis – Homero – Odisséia

A

través do poema Odisseia, podemos

A Idade das Trevas foi renomeada pelos

entender o que se passa na formação do

historiadores como a Idade do Ferro. Seguindo a

espaço grego na Idade do Ferro. Odisseia

tradição anglo-saxônica (Dark Ages) ou Séculos

é um poema que está inserido em uma Grécia que

Obscura, de acordo com historiografia francesa

está

(Siècles Obscurs).

passando

por

várias

importantes

transformações. No século VIII a.C. a Grécia está saindo afastamento, com a destruição dos palácios micênicos, há uma redução de material produzido e um importante crescimento e expansão demográfica. Nesse momento acontece a idade das Trevas, no qual a escrita vai “desaparecer”. Mas Homero será de intensa importância para

A Odisseia não é o retrato fiel do homem grego na antiguidade, para Malkin (2005, p.65) a nossa visão do homem grego na antiguidade está totalmente ligada e extremamente influenciada pelo momento histórico que vivemos. O espaço aonde a Odisseia emerge é bem amplo, que traz o mundo estrangeiro em seu tema, com as aventuras de Odisseu para

entendermos a sociedade helênica e sua formação. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 122 voltar para sua casa, passando por várias terras

contexto é inadmissível para a rainha contrair um

estrangeiras. A Odisséia conta a história do rei

novo matrimônio (Jean Bollack, 2001). A Odisséia

Odisseu, que após ir para Guerra de Tróia, passa por

traz um contexto da figura da mulher dentro de

várias aventuras para voltar para casa, passa por

uma sociedade patriarcal. Penélope utiliza-se da

terras que jamais ninguém ouviu dizer sobre sua

sua métis para idealização de um plano, para

existência, com sua demorada volta. Penélope

esgueirar-se e subverter uma imposição masculina.

esposa de Odisseu se vê em uma grande

Para VERNANT (1996, p.130), a métis é “um jogo de

dificuldade, pois diversos pretendentes queriam

práticas sociais e intelectuais”, que vão se misturar

esposá-la. Com a esperança que seu amado marido

ao faro, a sagacidade, a previsão, a sutileza de

regressar para Ítaca, na recusa de ter outro marido,

espírito, o fingimento, o desembaraço, a atenção

Penélope tece a mortalha de seu sogro,

vigilante, o senso de oportunidade dando a

prometendo escolher um pretendente assim que a

supremacia da métis. Penélope junto com sua métis

terminasse. Odisséia é uma obra em que o mundo

e a tecelagem transfere para si a escolha de um

dos deuses estará ligado totalmente com o mundo

novo cônjuge. Penélope escolherá um marido

terreno, pois tem Atena como protetora de

somente após acabar de tecer a mortalha de seu

Odisseu, o ajudando a regressar para a cidade, seu

sogro. As ações de Penélope em Odisséia de

reino Ítaca, sua pátria (oikos).

Homero podem ser entendidas como atitudes

Enquanto Odisseu passa por aventuras em terras estrangeiras tentando voltar à sua oikos, sua esposa a rainha Penélope, encontra-se em uma grande

transgressoras que contradizem uma ordem vigente (uma ordem palaciana). A atribuição feminina dentro da sociedade é

adversidade com a delonga do retorno de Odisseu.

geralmente

Muitos pretendentes vão ao palácio de Ítaca

patrimônio (o oikos), tecer confecções de vestes e a

pretendendo esposá-la. Penélope é uma rainha

preparação de alimentos, segundo Lessa (2004,

bem nascida da realeza palaciana de Micenas,

p.34). Pelas palavras de Damasceno (2001, p.364)

personagem chave do período homérico. Penélope

Penélope inicialmente tece com palavras a teia do

é traduzida como uma mulher virtuosa, fiel e sábia.

engano, esperando a volta de Odisseu. Quando fica

Para Pierre Brulé, (2001, p.89) Penélope é vista

difícil dominá-lo ela passa a tecer, no sentido do

como o próprio oikos. A atitude de Penélope, que

próprio termo, conferindo a si o direito e o poder

deixa seus pretendentes a cortejarem, é uma ação

de manter intacto o fio da vida e ao mesmo tempo

de não deixar seus pretendentes amadureçam para

administrando a vida daqueles pretendentes que ali

se tornarem grandes guerreiros, com isso eles não

estão. Para a obra “História dos Animais” de

estariam preparados quando Odisseu voltasse.

Aristóteles, a imagem da mulher tecelã é, portanto,

A rainha micênica só tinha duas alternativas: voltar para casa de seu pai ou ficar em Ítaca. Essas duas alternativas só levariam a um único destino: contrair um novo casamento. Penélope de Homero é um exemplo de fidelidade, dedicação, beleza, preocupação para com seu esposo, dentro desse

entendida

como

gerenciar

o

entrelaçada com a imagem da aranha tecendo seu destino. Nos estudos de Pomeroy (1999, p. 120), a educação feminina era iniciada na infância pela mãe e as amas, direcionando para a formação de uma esposa fiel e ideal e posteriormente, essa educação vai ser direcionada ao marido. Para Blundell (1998, p.60), a maior responsabilidade de Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 123 um chefe de família era oferecer à esposa uma educação cuidadosa. Para Platão (“Livro V” d’ A República) a tecelagem e a culinária como afazeres que são de destaque do mundo feminino, uma sabedoria que só as mulheres poderiam ter. Além do âmbito feminino a arte de tecer, vai ser valorizada pelo âmbito masculino, que vai transferir uma aparência de uma mulher dedicada ao seu oikos e com sua família. Independentemente do modelo de mulher reclusa no gineceu. As mulheres bem nascidas que é no caso de Penélope, Fabio Lessa (2004, p.18), expressa que a mulher da Grécia antiga vai usar a tática da tecelagem para subverter a dominação masculina, sem os rejeitar diretamente e criando alternativas para a relação de força. Como a tecelã no caso é Penélope, que é rainha de Ítaca, o grau de importância de tecer se eleva. A tecelagem era um meio de convívio e comunicação particularmente feminina. Lessa (2004, p.18), o ambiente de tecelagem do oikos que poderia ter participação das mulheres da casa, vizinhas escravas e amigas, teria um ambiente de cooperação e tinha a possibilidade de se informarem, trocarem análises e consolidarem um grupo como philia. Penélope é vista como a abelha (Semônides de Amorgos), a mulher abelha se casava bem jovem, permanecia sua vida praticamente toda em silêncio no interior da sua casa, regendo os bens da oikos, educando seus filhos e era especializada em fiar, tecer e bordar. Para MOSSÉ (1990), as mulheres bem-nascidas, que é o caso da personagem chave desse estudo. Recaía sobre elas um controle de assegurar a legitimidade da descendência da oikos. Por isso a preocupação de Penélope com os pretendentes que estavam em sua oikos, comendo, bebendo e usufruindo de suas escravas.

Fabio Lessa (2004, p.18) verifica que a mulher da Grécia antiga vai usar a tática da tecelagem para subverter a dominação masculina, sem os rejeitar diretamente e criando alternativas para a relação de força. Como a tecelã no caso é Penélope, que é rainha de Ítaca, o grau de importância de tecer se eleva. A tecelagem era um meio de convívio e comunicação particularmente feminina. Lessa (2004, 18), o ambiente de tecelagem das oikos que poderia ter participação das mulheres da casa, vizinhas escravas e amigas, teria um ambiente de cooperação e tinha a possibilidade de se informarem, trocarem analises e consolidarem um grupo como philia. Conforme Fábio Lessa (2004, p.23), as imagens em cerâmica funcionam como veículo de mensagem, que pode afirmar que não havia fronteira para essas imagens, pois alcançavam todas as camadas sociais. De acordo com Lissarrague (1987), as imagens foram mais divulgadas do que as documentações escritas. Elas estavam inseridas na vida e no cotidiano dos homens da antiguidade. A imagem contida no vaso grego que objetivamos em analisar possuía um contexto social de uso. A obra é social, pois o artista a cria para os outros, para ser vista. Vernant afirma que a obra não é feita para uma contemplação solitária, nem para o homem em geral. Precisa de um público que a entenda. Dirige-se para esse público; apoia-se sobre ele ao mesmo tempo em que o conquista e o transforma (VERNANT, 2001, p.146). Burke apresenta a atuação da expressão feminista que chamaram a atenção para o fato de que a língua comum, dominada pelo masculino, não só expressa o lugar subordinado das mulheres, mas também as mantém em uma posição de subordinação (BURKE, 1995). Penélope utilizara a tecelagem,

uma

expressão

particularmente

feminina para sair do silêncio. Penélope através do Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 124 uso de táticas conseguiu transgredir ao modelo

culturais, e não naturais, se “homem” e “mulher”

idealizado pela sociedade micênica, mas sem

forem papéis sociais, definidos e organizados de

romper definitivamente com este, alcançando

forma diversa em diferentes períodos, então os

assim certa autonomia. A utilização de táticas pelas

historiadores precisam explicitar o que quase

esposas para alcançar seus objetivos fazia parte do

sempre era deixado implícito na época, as regras ou

cotidiano

sentido,

convenções para ser mulher ou homem de

compartilhamos do mesmo pensamento de

determinada faixa etária ou grupo social em

Certeau quando ele afirma que o fraco deve tirar

determinada região e período. Mais precisamente

partido de forças que lhe são estranhas. Mas a sua

– visto que as regras às vezes eram contestadas – a

síntese intelectual tem por forma não um discurso,

ordem será contestada por Penélope, mas não

mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar

claramente e sim ardilosamente para iludir seus

a ocasião (CERTEAU, 1999, p.47).

pretendentes e enganar o homem que teria que

ateniense.

Neste

Para Certeau (1994, p.39), a mulher na Grécia

decidir sobre seu futuro.

antiga vai utilizar ferramentas do universo feminino

Segundo Viera (2008, p.2), “os animais, e não

para subverter uma dominação masculina, não

somente os homens, possuem uma métis, que lhes

rejeita diretamente a ordem patriarcal que é lhe

permite desvencilhar de uma armadilha, perceber

imposta, porém consegue subterfúgios para

que estão sendo perseguidos, enganar seu algoz e

modificar regras impostas a elas, que as mulheres

sair ileso, livre, enfim, vitorioso. E, dentre estes

não poderiam fugir. Essa influência, assim

animais, estão os marinhos”. Para Burkert, (1993, p.

concebemos, foi obtida a partir do uso de táticas. A

282), a métis pode ser incorporada no ato da

visão de tática como forma de infringir o esquema

sabedoria particular, incluindo desvios e truques. O

social, como arte do fraco, como única saída para as

conjunto semântico no valor da métis manteve-se

mulheres. Dessa forma, A invenção do cotidiano,

estável por séculos na história, sua essência não

desloca a atenção do consumo supostamente

mudou. Na proposta de Pucci, (1986), a métis dos

passivo dos produtos recebidos para a criação

deuses será diferente da métis dos homens. A métis

anônima, nascida da prática do desvio no uso desses

dos deuses está associada nos poderes divinos,

produtos (CERTEAU, 1999, 13).

como podemos observar na passagem do

A métis de Penélope não pode ser ignorada. Ao utilizar o conceito (Burke, 2012, p.86), tendo em ponto de vista que Penélope está inserida dentro de uma sociedade patriarcal, onde as mulheres não teriam “voz”, teria voz a partir de atribuições associadas ao mundo feminino. No Caso de Penélope ela utiliza a métis atrelado a atribuição de ações do espaço único feminino (o tecer), foi capaz de arquitetar um plano que mudaria a ordem da

documento textual, onde Athená utiliza de seus poderes divinais para enganar Odisseu, encobrindo Ítaca para que Odisseu não reconhecesse sua oikos. No âmbito da métis vinculado aos homens e heróis, podemos observar a métis de Odisseu, tentando enganar a deusa Athená, tentando demonstrar um homem vindo da cidade de Creta. Métis está relacionada a vencer, a ser superior, deter uma inteligência acima dos demais.

sociedade patriarcal, a qual ela está inserida. Se as

Para Détienne e Vernant (2008, p.17), a métis está

diferenças entre homens e mulheres forem

designada aos vários planos e diversidades Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 125

Skyphos de figuras vermelhas, utilizado para armazenar e misturar líquidos provenientes de Atenas, datado de 450-400 a.C. de autoria: Penélope Painter.

múltiplas, habilidades úteis a vida. Para os autores

claras, vestimentas que mostra que Penélope faz

a métis poderá ter conotações distintas ao seu

parte da aristocracia micênica, também sendo uma

êxito. Terá dois caminhos, um o resultado será

esposa bem-nascida, seus pés estão descalços e

através da fraude, do engano, não respeitando a

cabelos presos. Penélope está sentada em uma

regra do jogo, porém outra forma de observar o

cadeira baixa. A sua frente encontra-se Telêmaco,

jogo da métis será a capacidade do mais fraco em

usando

surpreender o opositor forte em algum momento

aristocracia, um himatio. Telêmaco está segurando

que ele esteve fragilizado. Homero utiliza em suas

um cajado que representa um símbolo de poder

epopéias as várias facetas da métis, em seus heróis

dentro da oikos, o cajado é símbolo de poder e

e também nos deuses. O conceito é vasto e ela pode

autoridade (ROBERTSON e BERD, 1993, p.26). A

ser definida como “uma potência de astúcia e

expressão do rosto de Telêmaco indica insatisfação

engano” seu possuidor vencerá sem o uso da força.

ao comportamento da mãe ao nunca terminar o

(DETIENNE, 2008, p.29).

tear, sua expressão facial é de irritação com a

A imagem da skyphos representa uma ilustração de uma passagem que está na documentação escrita. A cena descreve uma narrativa mítica, apresenta uma cena ambientada no gineceu, Penélope veste um chiton e um himation de cores

uma

vestimenta

tipicamente

da

situação. Ao fundo da cena podemos observar um tear, que é usado por Penélope no seu plano de tecelagem, para não contrair outro matrimonio, o tear era uma atividade exclusivamente feminina, então Penélope e Telêmaco estão no gineceu. O Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 126 tear demonstra que a cena desenrola-se no gineceu, segundo Brock (1994, p.338) a arte do tecer será feito dentro do ambiente doméstico. A métis da tecelã é de extrema importância para o desdobramento do poema homérico e para seu futuro, pois a rainha consegue transferir para si a escolha de um novo marido, não somente a escolha, mas também, quando ela iria escolher o seu novo cônjuge. Penélope agrega valores essenciais para a

métis, e a tecelã usa isso, a torna uma estrategista. Cely Nathany Evang é Graduada em História pela Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em História do Brasil Contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em História Antiga e Medieval pela UERJ. Pós-Graduanda em História da Arte e Arquitetura pela PUC-RIO.

Bibliografia e Fonte: Documentação Primária: Skyphos de figuras vermelhas – Atenas, datado de

DETIENNE, M. & VERNANT, J. P. Métis - As astúcias da inteligência. São Paulo: Odysseus Editora, 2008. HOMERO. Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. LESSA, Fábio de Souza. EXPRESSÕES DO FEMININO E A ARTE DE TECER TRAMAS NA ATENAS CLÁSSICA. Rio de Janeiro, UFRJ, 2011. LISSARRAGUE, F. Images du Gynécée . IN: VEYNE, P. e outros. Les Mystéres du Gynécéen. Paris: Gallimard, 1998 LIMA, Kelly. O ESPAÇO DE PENÉLOPE: MOVIMENTAÇÃO E PERMANÊNCIA EM A ODISSEIA DE PENÉLOPE, DE MARGARET ATWOOD. Paraná – UFPR, 2012. MALKIN, I. Myth and territory in the Spartan Mediterranean. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. MOSSÉ, Claude. La Mujer en la Grecia Clásica. Tradução Celia Maria Sanchez – Madrid, ed. NEREA, 1990. PLATÃO. A República (trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. POMEROY, S. Diosas, Rameras, Esposas y Esclavas: Mujeres en la Antigüidad Classica. Madrid: Akal, 1987.

450-400 a.C. de autoria: Penélope Painter.

Bibliografia Consultada: ARISTÓTELES. Arte poética. 2010. São Paulo: Martin Claret BOLLACK, Jean. Le jeu de Pénélope. Europe 865: Homère, 2001. BURKER, Peter. História e Teoria Social. Tradução de Klauss Brandini Gerhart, Roneide Venâncio Majer e Roberto Ferreira Leal - 2ª edição ampliada – São Paulo, Unesp, 2011. BRULÉ, Pierre. Las femmes grecques à l’époque classique. Paris: Hachette littératures, 2001. CANDIDO, Mª Regina. Mulheres na Antiguidade. Rio de Janeiro, NEA/UERJ, 2012. CERTEAU, M. de A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1999. COX, C.A. Hosehold Interrests: Property, Marriage, Stratégies and Family Dynamics in Ancient Athens. Princeton: Princeton University Press, 1998. DAMASCENO, S. A dimensão temporal na poesia grega . IN: Phoînix. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2001.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 127

Artigo

TEORIA E HISTÓRIA: O OLHAR DE KARL MARX PARA AS LUTAS E IDEOLOGIAS NA FRANÇA DE LUÍS BONAPARTE (1848 – 1870)

Por: Leonardo Mello Silva

RESUMO: Nos vinte três anos antecedentes à comuna de Paris a França saiu de uma monarquia para uma república que se transformara em um império. Em todo esse tempo Karl Marx observava o movimento histórico tecendo suas críticas a partir do método historiográfico que desenvolvera; legando-nos, não só relatos e textos jornalísticos, mas também a práxis da cosmovisão dialético-materialista da história. Em fevereiro de 1848, uma revolução popular destronou mais um rei da França e foi proclamada a república. Posteriormente, em junho, o proletariado foi massacrado ficando alheio ao verdadeiro exercício do poder político. Ainda neste ano, Luís Bonaparte foi eleito presidente; e, às vésperas das eleições de 1852, em que deixaria a presidência, fechou o congresso com a “aprovação” da população francesa tendo o poder de elaborar uma nova constituição. Bonaparte se torna Napoleão Terceiro e a França um império. O governo imperial dura o bastante para ver o desenvolvimento da economia capitalista, da indústria e para concorrer às investidas internacionais até seu fracasso militar na guerra franco-prussiana. São tempos de Lutas e ideologias na França de Luís Bonaparte. Palavras-chave: Karl Marx, Luís Bonaparte, materialismo histórico.

Introdução

essencialmente um movimento revolucionário do

A

proletariado.

França ainda era um reino quando Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido

Ao atravessar as guerras civis ocorrentes em 1848

Comunista, meses depois as revoluções

mergulharemos na literatura dialético-materialista

de 1848 estouraram. As influências do manifesto

de Marx que somada às contribuições de Eric

em todo esse período revolucionário continuam

Hobsbawm nos permitirá, com a rigorosidade do

incógnitas.

questionar,

método materialista, o conhecimento necessário

inclusive, se a revolução que destituiu do trono o rei

do período e das engrenagens políticas e

Luís Felipe, o último rei da França, foi

econômicas da máquina da história de 1848.

Ademais,

podemos

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 128 Adiante, veremos os mecanismos que fizeram de

ocorreram, foi em Paris que a guerra aberta e

Luís Bonaparte o imperador da França e de que

declarada entrincheirou-se, gerando mortes e

forma o sobrinho de Napoleão Bonaparte fora

destruição.1

eleito presidente em 1848 mantendo-se no poder até 1870 quando foi preso e humilhado pelas tropas prussianas. Este artigo busca a compreensão das forças classistas e ideológicas que compactuaram ou se opuseram a esse governo. O papel empenhado

por

republicanos,

socialistas

e

monarquistas, será também problematizado. Por fim, os questionamentos sobre o processo golpista que levou Luís Napoleão ao trono Imperial são abordados e discutidos por um inquérito proferido a Karl Marx e Victor Hugo. Tanto o comunista quanto o republicano dedicaram extensas linhas às questões pertinentes ao golpe de estado de Luís Bonaparte.

Nesse

paralelo

edificar-se-á

a

perspectiva marxista das transformações sociais, políticas e econômicas com suas próprias leis; e, na aplicação destas, mostram-se, objetivamente, as conjunturas históricas da França do período elencado.

Durante o reinado de Luís Felipe de Orléans (1830 – 1848) o governo francês seguiu as regras da aristocracia financeira, dos banqueiros, dos grandes proprietários de terra, dos donos das minas de carvão e dos donos de ferrovias. São esses os seguimentos burgueses que, segundo Marx, ditaram as regras durante os dezoito anos que perdurou a chamada “monarquia de Julho”.2 Manobravam

Levantes armados em Paris marcaram os anos de 1848 e 1871. Entre eles, houve um Império que deixou o proletariado alheio ao poder político. Para Friedrich Engels, que prefaciou a edição de 1895 do livro As lutas de classe na França, a revolução industrial inglesa fez emergir as relações e contradições entre as duas classes sociais necessárias ao capitalismo e à república burguesa: a burguesia e proletariado. Mas foi principalmente

o

parlamento,

controlavam a opinião pública pela imprensa, faziam leis e distribuíam os cargos políticos à sua vontade

pondo

minoritariamente

a

burguesia

representada

industrial no

poder

legislativo na posição de oposição. A burguesia estava dividida. A insatisfação dos industriais franceses somou-se ao colapso industrial e comercial Inglês e a escassez de alimentos provocada por uma crise agrícola que levou miséria ao campesinato e ao proletariado, criando as circunstâncias

O roteiro

efetivamente

para

que

os

trabalhadores

parisienses fossem as ruas de arma em punho e erguessem suas barricadas. Foi o povo francês entrincheirado que derrubou Luís Felipe em mais uma revolução, em fevereiro de 18483. O governo de fevereiro, que se erguera sobre os escombros das lutas que derrubou a monarquia, teve a reforma eleitoral como foco e agrupou em si (temporariamente) revolucionários

todos

inclusive

os

seguimentos

representantes

dos

trabalhadores urbanos4.

nas ruas de Paris que as grandes batalhas MARX, Karl. As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo, 2012, p.16. 2 Trata-se do período monárquico desencadeado pela revolução de julho de 1830 que empoderou o rei Luís Felipe da casa de Orléans. 1

3

Ibidem, p.37- 43. MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.32. 4

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 129 Ainda em fevereiro de 1848 o governo provisório

A revolução tomou proporções colossais e se

criou duas instituições onde se abrigaria então a

espalhou pela Europa. A república francesa

grande parcelada da população pobre que não

proclamada em 24 de fevereiro inspirou a

fazia parte do proletariado industrial organizado.

derrubada dos governos de diversos estados

Uma era a Guarda Móvel que, de acordo com Marx,

europeus e de acordo com Eric J. Hobsbawm

recrutou

jovens

chegou a influenciar, inclusive, uma insurreição em

influenciáveis categoricamente comprados. A outra

Pernambuco (nordeste brasileiro).9 Todas essas

eram os Ateliês Nacionais, onde os desempregados

revoluções tiveram características e desfechos

recebiam um salário por tarefas enfadonhas5.

similares, “(...) todas foram vitoriosas e derrotadas

um

exército

de

24

mil

Foi estabelecida a nova república. E antes mesmo

rapidamente (...)”.10

desta ser proclamada, os seus ministérios estavam

Voltemos à França.

Na assembleia nacional

divididos entre os elementos burgueses deixando

constituinte encontravam-se os partidários das

de fora quem respondesse aos interesses dos

duas

populares que a pouco tinham arriscado suas vidas6.

republicanismos, eram os Orleanistas (partidários

No mês de maio sai em marcha para o “Hotel de Ville”7

cerca

de

vinte

mil

trabalhadores

reivindicando um ministério específico para cuidar das causas trabalhistas. Cria-se então, pelo governo provisório,

uma

comissão

especial

para

a

representatividade das classes trabalhadoras, tendo

à

frente

representantes

diretos

do

operariado. Porém, o local destinado ficara fora da sede do governo, as suas reuniões deveriam ser efetuadas no Palácio Luxemburgo, também situado

dinastias

que

se

revestiram

de

da dinastia de Orléans que governou a França entre 1830 e 1848) e os Legitimistas (partidários da dinastia de Bourbon, que governou a França de 1589 a 1793 e de 1814 a 1830) que somavam-se aos efetivamente

republicanos.

Destarte,

os

trabalhadores que se uniram à burguesia contra o reinado de Luís Felipe, sentiam-se no direito de impor-lhes suas reivindicações. Invadiram a Assembleia Nacional, foram rechaçados e seus líderes foram presos.11

em Paris. Em fim, os trabalhadores foram colocados

A situação dos trabalhadores e pobres da França

em um ponto contrário aos republicanos e aos

ainda viria a piorar. A comissão executiva do

representantes da burguesia industrial espalhados

governo

pelos corredores do poder. Temos então o cenário

ajuntamento populares e criou dificuldades para o

mais puro e genuíno da luta de classes evidenciado

ingresso nos Ateliês Nacionais. Os trabalhadores se

assim por Marx: “A luta contra o capital em sua

viram novamente impelidos a lutar. 12

provisório

por

decreto

proibiu

forma moderna e desenvolvida – ou seja, em seu aspecto principal, que é a luta do trabalhador industrial assalariado contra o burguês industrial”.8

5 MARX, Karl. As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo,

2012, p.55,56. 6 Ibidem, p.43. 7 Sede municipal de Paris 8 Ibidem, p.48.

HOBSBAWM, Eric J. A era do capital. São Paulo: Paz e terra, 2012, p.33. 10 Ibidem, p.37. 11 MARX, Karl. As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo, 2012, p.59-61. 12 Ibidem, p.62. 9

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 130 Agora o proletariado estava

O governo provisório unira

sozinho na batalha, sem

em si todas as facções

nenhuma aliança e sem o

burguesas, tal como o antigo

apoio de outro seguimento

primeiro ministro de Luís

social, sua revolta esbarrara

Felipe

na

presidente francês Adolphe

contrarrevolução

e

mais

executada. Nas jornadas de

Thiers;

junho

parlamentar e romancista

“Mais

de

3

mil

bem

tarde

como

insurgentes foram trucidados

Victor

após a vitória, 15 mil foram

trabalhadores de Paris que

deportados

em junho buscaram sua

sem

julgamento”.13 Os

revoltosos

estereotipadas

os

foram

rechaçados ou mortos pela

foram

contrarrevolução.

reivindicações futuras além punidas

representatividade

demonizados e todas as de

Hugo.

o

Em dezembro de 1848, em

seriam

fim, a França teve um novo

como

presidente e com ele o

Luís Bonaparte

socialismo. Nesse momento,

como demonstrara Marx, contra a classe do

começo de novos tempos.

Foi eleito o sobrinho de Napoleão Bonaparte.

proletariado ergueu-se o partido da ordem:

Luís Bonaparte vencera o General Louis Eugene

“Durante o mês de junho, todas as classes e todos os partidos se uniriam no Partido da Ordem contra a classe proletária, considerada o partido da anarquia, do socialismo, do comunismo. (...) O lema repassado por eles às suas tropas consistia nas palavras-chave da antiga sociedade ‘propriedade, família, religião, ordem (...)’” .14

Cavaignac, (homem que como ministro da guerra reprimiu os insurgentes de junho) por seis milhões de votos contra um milhão. Representou os interesses dos camponeses, foi eleito praticamente com o voto destes. Porém, levou também votos das outras classes:

Com a constituição republicana instituída pela Assembleia

Nacional

Constituinte

“As demais classes contribuíram para completar a vitória eleitoral dos agricultores. Para o proletariado, a eleição de Napoleão representou a deposição de Cavaignac, a derrubada da constituinte (...). Para a pequena burguesia, Napoleão significou o domínio do devedor sobre o credor. Para a maioria da grande burguesia, a eleição de Napoleão foi uma ruptura com a facção da qual ela teve que valer-se por um momento contra a revolução (...). Napoleão no lugar de Cavaignac representou, para eles, a monarquia no lugar da república16.”

o

revolucionarismo proletário foi posto à ilegalidade, o sufrágio universal proclamado e o imposto progressivo abolido. Após as jornadas de junho, a Assembleia

Nacional

revestira-se

de

republicanismo burguês. Pela perspectiva de Karl Marx “(...) a burguesia não tem rei; a verdadeira forma de seu domínio é a república”.15

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.35. 14 Ibidem, p.36. 13

MARX, Karl. As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo, 2012, p.74. 16 Ibidem, p.79. 15

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 131 Em

1848

quem

revolucionou

não

milhões de votos, houve 7 500 000 votantes que responderam sim.18

foi

revolucionado. Como vimos, a revolução de 1848 mudou efetivamente as estruturas políticas e econômicas da França. Não obstante, (visto as

Deu-se o início da ditadura de Napoleão III.

insurreições de junho) a situação do proletariado

A França; aquela das revoluções, barricadas e

não melhorou. É desta forma que podemos

lutas operárias. Sim, aquela França berço das

compreendê-la,

românticas ideias de igualdade, liberdade e

como

mais

uma

revolução

burguesa que serviu aos interesses liberais. Esse cenário serviu de inspiração a Marx para por em prática suas analíticas teorias metodológicas

fraternidade acabaria por inventar um novo regime despótico, um novo império, um novo monarca, um novo Napoleão.

em torno de história, filosofia e economia política

O segundo Império francês findou na derrota da

no livro: as lutas de classes na França. “A geração

França pra Prússia na guerra franco-prussiana com

posterior a 1848 foi uma era de guerras e não de

Napoleão III sendo capturado e deposto em 1870.

revoluções”17.

Marx no início da década de 1850 já profetizara:

O sobrinho esforçou-se para que a lembrança das glórias

de

seu

tio

Napoleão

“(...) quando o manto imperial finalmente cair sobre

Bonaparte

os ombros de Luís Bonaparte, a estátua de bronze

permanecesse no imaginário dos franceses, para

de Napoleão desaparecerá do alto da coluna de

isso munia-se de discursos, viagens e repressão. A

Vêndome” 19. Em 1871 caiu a Coluna Vêndome, um

tradição bélica napoleônica impulsionou seu

grande símbolo do império; uma gigantesca coluna

governo cobrindo a república de investidas bélicas.

que sustentava a imagem de Napoleão, não do

Ao aproximar das eleições de 1852 a Assembleia

terceiro, mas de seu tio. Cai paralelo às bandeiras

Nacional foi invadida, alguns deputados foram

avermelhadas e as sangrentas lutas da comuna de

presos, os jornais passaram a ser vigiados e a Paris

Paris. O ato de derrubar um imperador, mesmo que

foi coberta por panfletos que traçavam os

este não fosse de carne e osso, foi cercado de

legisladores como conspiradores incitantes de

simbolismos aos já prostrados communards. 20

guerra civil. Ergue-se barricadas, novamente a população urbana armada foi às ruas e novamente a repressão foi mais forte. Foram deportados cerca de 10 mil insurgentes. O povo mais uma vez é chamado às urnas, agora deveria escolher entre o então presidente e a constituição. Fez-se a vontade do eleitorado francês:

Para nós, será importante a construção do movimento histórico por Karl Marx a partir, principalmente, do contraponto historiográfico com Victor Hugo sobre o golpe de Luís Bonaparte, que de acordo com Hobsbawm “Foi suficiente infeliz para unir contra si os mais poderosos talentos polêmicos de seu tempo, e as investidas

A França retomou então o caminho das urnas para responder a essa pergunta: queria o eleitor manter no poder Luís Bonaparte e confiar-lhe o cuidado de elaborar uma nova constituição? Em 8 HOBSBAWM, Eric J. A era do capital. São Paulo: Paz e terra, 2012, p.125. 18 GRIMBERG, Carl. Da guerra Franco-Prussiana à competição internacional. Lisboa: Europa-América. 1968, p.21. 17

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.154. 20 GONZÁLES, Horácio. A Comuna de Paris Os assaltantes do céu. São Paulo: brasiliense 1999, p.73 19

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 132 combinadas de Karl Marx e Victor Hugo são

é a história das lutas de classes”. 24 Assim, temos a

suficientes, sozinhas, para enterrar sua memória”. 21

luta de classes como o eixo que faz girar as engrenagens da máquina história. Os textos subsequentes sobre os acontecimentos

O método O livro A ideologia alemã, que nos traz o primeiro texto escrito a quatro mãos pela dupla que impactaria profundamente a teoria da história moderna, não foi um livro pensado para ser publicado. Nele, Marx e Engels esboçam os fundamentos da cosmovisão dialético-materialista da história, onde aparecem as concepções em que a “sociedade civil é a verdadeira fonte, o verdadeiro palco da história, e como é absurda a concepção histórica anterior que omitia as relações reais, limitando-se às ações grandiosas dos príncipes e dos estados” 22. Comumente as edições desse livro trazem as onze teses contra Feuerbach (publicadas em 1888 por Engels). Aqui, exporemos a décima primeira tese: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o .23

Daí,

na França e O 18 de brumário de Luís Bonaparte; denotam o ímpeto de Marx para a interpretação dos acontecimentos pela ótica do materialismo histórico na análise concreta da luta de classes. A perspectiva da análise histórica marxiana é exposta de forma latente no livro O 18 de brumário

de Luís Bonaparte. Adiante – para a análise das perspectivas de Marx sobre as engrenagens políticas e ideológicas que levaram Luís Napoleão de presidente a imperador da França – será aqui utilizado, além do livro O 18 de brumário de Luís

Bonaparte, o livro Napoleão o pequeno de Victor Hugo e o artigo escrito pela historiadora Izabel Andrade Marson publicado na revista Projeto

História da PUC de São Paulo, em que a historiadora examina as contraposições entre o

que importa é transformalo”

na França, condensados nos livros: As lutas de classe

livro de Marx e Hugo.

podemos

Sobre o: O 18 de

deduzir que o papel de construção da história é

brumário

prerrogativa dos agentes

Bonaparte,

históricos que assumem o

salienta:

protagonismo da história para transforma-la. Somase isso a autoexplicativa frase que abre o Manifesto

do

Partido

Comunista

(publicado em 1848): “A história

de

todas

as

Marx e Engels

sociedades até nossos dias

HOBSBAWM, Eric J. A era do capital. São Paulo: Paz e terra, 2012 p.163,164. 22 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2012, p. 63. 23 Ibidem, p. 120. 21

de

Luís

Marson

“o livro constitui ao mesmo tempo, um testemunho, uma peça argumentativa tecida na trama da luta política de seu tempo, e, especialmente, uma reflexão teórica e crítica sobre a política liberal, as concepções burguesas sobre a história e sua instrumentalização no jogo político 25.”

24

Idem. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Escala, 2007, p.7. 25 MARSON, Izabel Andrade. História e Revolução. O dezoito

brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, e Napoleão o pequeno, de Victor Hugo: Um Contraponto. Projeto História, Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 133 agradáveis O livro é uma edição de artigos escritos por Marx a partir de primeiro de Janeiro de 1852, ele está baseado

nos

acontecimentos

Fevereiro do mesmo ano. análise

desse

texto

26

históricos

até

Iremos por meio da

marxiano,

escrito

na

à

classe

média,

fez

emergir

reminiscências das glórias de seu tio a modo de que estas pairassem sore o imaginário da população camponesa

conservadora.

Assim,

de

modo

populista, o governo apostou no agrado às classes subalternas da população francesa.29

observância do método materialismo histórico,

No prefácio da segunda edição de 1869 do livro,

esclarecer os motivos que levaram Luís Bonaparte

Marx evidenciara que a sua intenção era de

ao trono imperial da França, nos prendendo a

comprovar que o Bonaparte sobe ao trono imperial

singular pergunta: Por que Napoleão?

devido

Como já vimos anteriormente, a partir das jornadas de Junho se constituíra a república burguesa e não qualquer república: “a república

burguesa representava o despotismo irrestrito de uma classe sobre outras classes”.

27

A burguesia

às

condições

estruturais

político-

econômicas das lutas de classes presentes: “(...) eu demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que permitiram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar o papel de herói”.30

triunfara.

Já ao indagar Victor Hugo, na busca do

A república parlamentar viu-se impelida a centralizar o governo a modo que as medidas repressoras fossem satisfatórias. Criou-se um império. Porém, o Bonaparte não caíra do céu em seu trono, para Marx as dinastias reais da França representavam facções distintas de burgueses enquanto “os Bonaparte” representavam os camponeses; e, foi mais além definindo o então Imperador também como “(...) um aventureiro vindo do exterior, posto no comando pela soldadesca embriagada que ele subornara com

esclarecimento dos “porquês” da população francesa se abdicar do presidencialismo e optar por um Império, deparamo-nos com a necessidade não só de “porquês?”, mas de “como?”, ou seja, por quais meios Luís Napoleão tornara-se Napoleão III. Assim o autor de Os miseráveis descreve o golpe: “na quinta feira 4 de dezembro de 1851 a população inofensiva de Paris, a população não engajada no combate, foi metralhada sem aviso prévio e massacrada com o simples objetivo de intimidação”31. Hugo expõe a matança usando testemunhas oculares da jornada de 4 de

cachaça e linguiça (...)”. 28 O “suborno” de seu exército e o apoio do campesinato responderia nossa questão?

dezembro, um grande massacre. Não cabe aqui aprofundarmo-nos nesses relatos, mas destaco estes, para termos noção de tamanho crime: “Os

Entre outras, o governo de Napoleão conseguira

soldados matavam por matar. Uma testemunha

unir em si os poderes do Estado e nele interesses

disse: ‘fuzilaram nos pátios das casas até os cavalos,

burgueses,

até os cachorros”. Outra disse “Os mortos (...) –

também

promulgou

decretos

São Paulo, V.30, Junho/2005, p.137-150. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/2258/ 1351 > Acesso em 31/05/2017, p.138. 26 MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.17. 27 Ibidem, p.36.

28

Ibidem, p.141. Ibidem, 2011, p.50-51. 30 Ibidem, p.18. 31 HUGO, Victor. Napoleão - O Pequeno. São Paulo: ensaio, 1996, p.83. 29

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 134 estavam empilhados em montes, uns sobre os

exército convocações insubordináveis, a imprensa

outros, velhos, crianças, blusas e paletós reunidos

oposicionista era inexistente, a burguesia temendo

(...) cabeças, braços, pernas, confundidos”.32 Hugo

um possível “conluio vermelho” foi também

continua sua denuncia incriminado Napoleão por

conduzida a votar sim, seus funcionários e

diversos outros crimes como roubos, deportações,

sacerdotes voluntariamente deram seu sim.35

trabalhos forçados e prisões33.

Logo, para encontrar em Hugo os porquês desse

Para Marson:

homem que chamado de “pequeno” conseguira o

“Desempenhando papel de historiador, o dramaturgo pretendeu, portanto, instituir um processo e demonstrar o quanto a nação estivera iludida ao conceder ao criminoso e seus cumplices 7.500.00 votos no plebiscito instaurado em 20 de dezembro de 1851, um procedimento que ignorara o crime e absolvera os réus34.”

apoio da grande maioria da população francesa votante, deparamo-nos com os meios que este chegara ao poder. Victor Hugo mostra, na verdade, que esse homem “pequeno” chegara aonde chegou, por meio de ilusões e força. Como chamar de pequeno o homem cujo sua

Marson foca na condição da nação como iludida ao “conceder” os votos, abstendo-se de colocar em pauta

os

imoralidade permite enganar, iludir, ameaçar, matar, subornar se eleger e subir ao tono imperial? Marx

também

quando

escreve sobre o livro

importantes de

de Hugo relativiza a

Hugo sobre os meios

obra quanto à suposta

coercivos de Napoleão

pequenez

de

para a população.

Napoleão:

“Victor

esclarecimentos

Hugo

contesta

liberdade

do

Hugo

a

invectivas amargas e

voto,

espirituosas contra o

explica que as cidades,

responsável

cidadezinhas e burgos

de estado. (...) Não se

população passava por

vigia,

que esse

diminuí-lo”.36

massa de camponeses

Hugo afirma: “ele

recebiam ainda mais o

de

indivíduo, em vez de

votassem não, a grande

Para

conta

engrandece

recebiam ameaças caso

ameaças.

pela

deflagração do golpe

tinham seus delatores, a permanente

se limita a

Victor Hugo

32

Ibidem, p.86, 87. Ibidem, p.100-109. 34 MARSON, Izabel Andrade. História e Revolução. O dezoito 33

brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, e Napoleão o pequeno, de Victor Hugo: Um Contraponto. Projeto História,

São Paulo, V.30, Junho/2005, p.137-150. Disponível em: <

sabe o que quer, e vai

https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/2258/ 1351 > Acesso em 31/05/2017, p.138. 35 HUGO, Victor. Napoleão - O Pequeno. São Paulo: ensaio, 1996, p.113, 134-140. 36 MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte . São Paulo: Boitempo, 2011, p.18.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 135 em frente. Contra a justiça, contra a lei, contra a

(...)”.40 É também importante compreender que o

razão, contra a honestidade, contra a humanidade

“lumpemproletariado”41

(...). Ele não é um idiota (...)”.37 Põe em pauta além

influenciável asilado nos Ateliês Nacionais e na

das peripécias napoleônicas um progresso (não

Guarda móvel; que os republicanos seriam os

muito bem explicado) produzido por consequência

advogados,

do golpe e sobre este se arrisca a dizer: “o ato é

burgueses e funcionários públicos; e, é claro, o

infame, mas é bom”.38

proletariado e suas demandas.

escritores

formava

(como

um

Victor

grupo

Hugo),

Em suma, Victor Hugo alarida em tons

A reinterpretação da história francesa, a partir do

denunciantes os crimes cometidos no golpe de

olhar de Karl Marx, história essa que também é

estado de Luís Napoleão. Enquanto ele tem a

analisada por ele, reflete às perspectivas das

explicita intenção de alardear a França não só

ciências humanas e sociais pertinentes aos séculos

quanto aos crimes, mas também ao implacável

subsequentes ao do filósofo-historiador, pois, como

escrutínio de 20 de dezembro de 1851;39 Marx

asseverou Cássio Starling Carlos: “Marx foi capaz de

deixou claro que as condições estruturais, político-

olhar um momento específico e tirar dele uma

econômicas das presentes lutas de classes na França

explicação consistente para o modo como a política

é que foram determinantes para o desdobramento

é feita no capitalismo”.42

de sua história e consequentemente para Luís Bonaparte receber o título de Imperador.

Pela perspectiva marxista, as transformações sociais, políticas e econômicas têm suas próprias leis, desse modo, é na aplicação destas que foram

Considerações finais Ao analisar as lutas políticas na França, Karl Marx submete-as às análises das lutas de classes, ou seja, entende que o motor da história são as lutas de classes e logicamente as classes relacionadas ao seu setor econômico, seja na divisão de trabalho ou em facções que detém capital e os meios de produção. Faz-se a ligação entre facções políticas e classes sociais. Para compreender as entrelinhas das lutas políticas na França teríamos que compreender que a “(...) dinastia de Bourbon constituíam a dinastia da grande propriedade fundiária e os Orleanistas a

observadas,

objetivamente,

as

conjunturas

históricas da França do período estudado. Foi verificada a relevância dessa reconstrução para o método em Marx; deixando, ainda, espaço para verificações sobre a França de 1848 a 1870 que se baseiem em outros mecanismos que não sejam calcados nas lutas de classe. Leonardo Mello Silva Possui especialização em Docência

e

Gestão

no

Ensino

Superior

(Universidade Estácio de Sá), Licenciatura em Pedagogia (UNINTER) e Licenciatura Plena em História (UCAM).

dinastia do dinheiro, os Bonapartistas a dinastia dos camponeses, isso é, da massa popular francesa

37

Ibidem, p.24. Ibidem, p.169. 39 Plebiscito posterior ao golpe de estado onde Luís Bonaparte se saiu vitorioso com larga vantagem. 40 MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte . São Paulo: Boitempo, 2011.p.142. 38

41

Termo marxista que designa o proletariado marginalizado, desprovido de trabalho formal e sem qualquer consciência de classe.

CARLOS, Cássio Starling. O 18 Brumário de Luís Bonaparte: A discreta farsa da burguesia. Aventuras na história para viajar no tempo. São Paulo: Abril, Edição 33, Maio/2006, p.57. 42

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G N A R U S | 136 Referências CARLOS, Cássio Starling. O 18 Brumário de Luís Bonaparte: A discreta farsa da burguesia. Aventuras na história para viajar no tempo. São Paulo: Abril, Edição 33, Maio/2006. GONZÁLES, Horácio. A Comuna de Paris Os assaltantes do céu. São Paulo: brasiliense 1999. GRIMBERG, Carl. Da guerra Franco-Prussiana à competição internacional. Lisboa: Europa-América. 1968. HOBSBAWM, Eric J. A era do capital. São Paulo: Paz e terra, 2012. HUGO, Victor. Napoleão - O Pequeno. São Paulo: ensaio, 1996. MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte . São Paulo: Boitempo, 2011. _________. As lutas de classe na França. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunista. São Paulo: Escala, 2007. ___________A ideologia alemã. São Paulo: Martin Claret, 2012. MARSON, Izabel Andrade. História e Revolução. O

dezoito brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, e Napoleão o pequeno, de Victor Hugo: Um Contraponto. Projeto História, São Paulo, V.30,

Junho/2005, p.137-150. Disponível em <https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/ view/2258/1351> Acesso em 31/05/2017.

A última fotografia feita de Napoleão III (1872).

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 137

Coluna:

O CINEMA SOVIÉTICO: HISTÓRIA, TEORIA, REALISMO SOCIALISTA Resumo: Passados quase 100 anos desde o seu surgimento, o cinema soviético, primeiro grande movimento cinematográfico da história, ainda hoje ocupa um proeminente lugar quando o assunto é o estudo dos primórdios da teoria cinematográfica e também da própria história do cinema. As atuais práticas e metodologias para se pensar o cinema deram seus primeiros e mais largos passos dentro da vanguarda cinematográfica soviética. O objetivo deste artigo é traçar um panorama do contexto político e social onde esse cinema e sua prática social se desenvolveram, ao mesmo tempo em que tece breves comentários acerca do significado histórico da relação entre cinema e política na URSS através da diretriz política e estética do Realismo Socialista.

Por Renato Lopes

Os anos de agitação política: Ensaio Geral de 1905, Revolução de 1917 e Guerra Civil.

O

s anos que precederam a Revolução Russa de 1917, episódio que entrou para a História como Revolução de Outubro

ou Revolução Bolchevique, foram de intensa 1 Guerra Russo-Japonesa (1904-1905): Disputa pelos territórios

da Manchúria e da Coréia, entre o Império Russo e o Império Japonês. A marinha russa sofre uma humilhante derrota, onde perde a Frota do Pacífico na batalha de Port Arthur e também

agitação política e social. Antes de sua entrada na Primeira Guerra Mundial, ao lado da Tríplice Entente, a Rússia vinha de um retumbante fracasso militar que fora a guerra Russo-Japonesa (19041905)1. A derrota no conflito desencadeou uma

a Frota do Báltico na batalha de Tsushima. A Rússia se entrega após a assinatura do Tratado de Portsmouth em setembro de 1905

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 138 processo de transição do feudalismo para o capitalismo. Essa transição, que viria a se consolidar tardiamente, apenas na segunda década do século XX, denotava o quanto as estruturas russas eram atrasadas e precárias em relação aos demais países da Europa. Sua base econômica ainda era majoritariamente agrária, tendo o campesinato como principal mantenedor das opulências de uma monarquia e nobreza parasitárias, através do pagamento de impostas cada vez mais aviltantes. Um país do século XX com uma forma de governo que remontava ao século XVII e XVIII, com Dziga Vertov com uma câmera kino pravda

governantes dotados de uma sanha expansionista, porém sem condições de sequer manter a ordem e

crise interna no país que em agosto de 1905

o desenvolvimento interno, e garantir o básico a

culminou

espontânea,

população. Apesar da falta de democracia,

posteriormente denominada como Ensaio Geral da

emprego, alimentos e condições de sobrevivência

Revolução2

(nota de rodapé). Embora fosse um

mínimas, o Czar Nicolau II joga a Rússia em outra

movimento de caráter pacifico, resultou em um

aventura bélica, a Primeira Guerra Mundial (FERRO,

massacre após a guarda real do Czar que disparou

1974, p.15 e 16).

em

uma

rebelião

contra manifestantes que foram protestar em frente ao Palácio de Inverno, tal episódio ficou conhecido como Domingo Sangrento. A intenção dos manifestantes que estavam as portas do Palácio de Inverno do Czar era de entregar um documento com uma série de reivindicações. Dentre elas estavam: melhorias na economia, igualdade de direitos perante a lei, as minorias nacionais cobravam liberdade cultural e o exército uma melhor estrutura e o direito de se manifestar politicamente.

A Rússia ingressa no conflito na formação de países conhecida como Tríplice Entente (Rússia, França e Reino Unido). No ano de 1917 a Rússia se retira do conflito, após um movimento político interno, encabeçado pelos Sovietes (conselhos de trabalhadores russos), que depõe a família real e coloca no poder Alexander Fyodorovich Kerensky, advogado e político russo. Em tese não ocorreram mudanças efetivas, o cenário ainda era pouco ou nada promissor. Entre em cena Vladimir Ilyich Ulyanov, popularmente conhecido como Lenin, que

Vale lembrar que estamos falando de um dos

propõe aprofunda a revolução e promover

poucos países que no raiar do século XX ainda era

mudanças efetivas nas estruturas políticas e sociais

uma monarquia absolutista, sem democracia ou

da Rússia. Tem início mais uma revolução, seguida

qualquer outro instrumento de representação

de uma guerra civil (1918-1921), entre o Exército

política. A Rússia teve um longo e conturbado

vermelho, os Bolcheviques e o Exército Branco,

2 Ensaio Geral da Revolução foi a forma como Lenin denominou

a série de eventos ocorridos após a derrota da Rússia para o Japão, na guerra russo japonesa. Os episódios que provocaram

um grande abalo no poder na figura do Czar foram: o Domingo Sangrento, Revolta do Potemkim, e a greve geral de São Petesburgo, Kiev e Moscou.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 139 formado por grupos de diversas tendências

intelectual dos materiais e do meio onde está

políticas, de apoiadores do czarismo, republicanos

inserido, irá ajudar a erguer uma nova sociedade a

liberais entre outros grupos de oposição. O Exército

partir do seu esforço enquanto um artista-

Vermelho se torna o único vencedor incontest. Tem

engenheiro/operário, manejando esses materiais

início a criação da URSS, comandado pelos

que já existem na natureza e no meio social para,

Bolcheviques (FERRO, 1974, p.24 e 25).

reorganizar, remontar, refazer, o novo mundo que

Devido ao espaço e também a proposta desse

se despontava (SARAIVA, 2012, p.114).

artigo, não nos deteremos nos pormenores e em

A formação de um Estado Operário, naquele

reflexões mais aprofundadas sobre o processo

momento, implicava uma mudança de paradigma

revolucionário russo. De modo que, ao final do

na forma com que esse trabalhador concebia sua

artigo,

bibliografia

relação com seu governo, com sua classe, com a sua

complementar básica para quem deseja saber mais

cultura. Esse novo paradigma político faz do artista

sobre esse que foi um dos episódios mais seminais

instrumento e meio através do qual se reorganiza a

século XX. Agora que expomos pontualmente

vida em uma sociedade. E como se dá essa

alguns dos principais episódios históricos da Russa

reorganização

pré-revolucionária, partiremos para a análise dos

Revolucionando a consciência do povo, do

elementos artísticos que floresceram nesse cenário

operário, do trabalhador, mostrando-lhe que no

de agitação política e social, e que também foram

meio social no qual está inserido estão ao seu

de vital importância para a formação teórica e

alcance todos os meios materiais para se modificar

artísticas dos principais nomes do cinema russo.

ou construir uma nova realidade. De modo que essa

indicaremos

uma

em

um

Estado

proletário?

nova concepção de arte da qual o Construtivismo é

Construtivismo: a vanguarda artística da revolução

timoneiro, irá influir na forma como o proletariado revolucionário irá organizar e construir suas

O processo de estatização implementado durante

experiências e visões de mundo. O Construtivismo

o tempestuoso e prolixo triênio de 1917-1920,

é marcado como o primeiro movimento artístico da

gestou e trouxe a luz um dos movimentos de

história a ser tributário de uma revolução política

vanguarda artística mais influentes da história das

concreta, ressaltando também o profundo caráter

artes: o construtivismo.

social da arte, ligado a um ideal político. Essa

O Construtivismo russo promoveu uma guinada estética, artística e principalmente social, onde a

socialização da arte irá criar um movimento engajado e fundante dessa nova mentalidade

arte era dessacralizada, ou seja, não existia arte

artística, tudo isso em meio as ebulições da Rússia

pura, hermética, permeada de simbolismos que em

revolucionária.

sua maioria só geravam alienação por parte

As artes plásticas, que nesse primeiro momento

daqueles que estavam alheios ao seu processo de

formavam o principal eixo do Construtivismo,

criação. O fazer arte no construtivismo tornou-se

tinham como expoentes Kazimir Malevich, Vladimir

um processo de intensa autorreflexão, um ato

Tatlin e Wassily Kandinsky. Esses artistas operavam

consciente, e não uma quase epifania ou mimese

em uma chave criativa que privilegiava um estilo de

por parte do artista. Este, com o pleno domínio

criação onde a arte deixava de ser uma Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 140 representação mimética da vida, para ser o agente

nova expressão teatral, calcada numa relação

construtor de uma nova realidade. Isso se dava a

conjunta de cenografia e texto. Abolindo

através do uso de materiais simples e que estavam

novamente a mimese e o hermetismo psicológico

largamente presentes no cotidiano, empregados na

presentes nas peças teatrais mais tradicionais, iriam

construção de instalações, pinturas, quadros. O uso

criar um teatro calcado na construção cênica, onde

de formas e relevos ressaltava também essa

predominaria a explicita ressignificação dos

premência de interferir concreta e artisticamente

convencionais códigos teatrais para uma exposição

na realidade. A racionalização dos materiais e da

que estivesse mais em consonância com realidade

forma

estavam

popular. Distante do psicologismo e do lirismo o

circunscritos em uma ideia que remonta a cadeia

emprego de diversos recursos cênicos estava a

produtiva, muito associada ao meio fabril, espaço

serviço de criar algo que desse conta de estar à

por excelência da classe operária. Com isso a arte

altura do real movimento das massas, das vozes

construtivista assumia o seu papel de agente

urbanas, com seus conflitos, ora de classe, ora de

modificador da realidade e das mentalidades, ao

consciência (SARAIVA, 2012, p.112). Ao mesmo

mesmo tempo em que reafirmava seu compromisso

tempo em que criava-se uma linguagem teatral

com a causa revolucionária.

desprovida de intelectualismos pouco familiares ao

como

eram

empregados

Na poesia, Maiakovski consolidava-se como o principal expoente e líder das vanguardas russas. Ao mesmo tempo em que experimentava novas formas de métrica em sua estilística, também criava

povo, construía-se uma forma de mobilizar o espectador emocionalmente, lançando mão de diversos recursos familiares a sua realidade urbana, fabril, classista.

tensões entre a sua escrita e a realidade concreta na qual pretendia atuar, no caso o binômio história/coletividade. Seu lirismo dispensa o simbolismo e acolhe as formações oriundas do moderno dinamismo dos centros urbanos A concretude, o material, e o delírio linguístico no qual

estão

inseridas

essas

referências

a

modernidade que o Estado Operário está construindo, são mais uma característica do Construtivismo, agora na poesia que se apresenta de forma construída ao compor cenárias que fogem das referências românticas, sem uma uma ancoragem real, para incorporar aquilo que de certa forma, explode no cotidiano do povo (SARAIVA, 2012, p.111). O teatro marcaria a reunião artes plásticas e poesia. Vsevolod Meyerhold, teatrólogo, e já o citado artista plástico Malevich construiriam uma

Montagem: dos soviéticos a André Bazin O tripé artes plásticas, poesia e teatro, que floresceram durante o período revolucionário, influenciariam de sobremaneira os próceres da montagem soviética que constituiriam o primeiro grande movimento cinematográfico da história. A esse período remonta, pela primeira vez na história, em que se pensou o cinema no sentido de diretrizes estéticas e políticas. Como nos indica Stam as indagações desses primeiros teóricos giravam em torno de questões tais como “que tipo de cinema

devemos promover? Ficção ou documentário? Mainstream ou vanguarda? O que é o cinema revolucionário?”

(STAM,

2013,

p.54).

Os

cineastas/teóricos soviéticos estavam imbuídos do mesmo senso de praticidade dos demais “operários da cultura”: revolucionar a sociedade russa também Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 141 montagem. Grande observador da montagem e da estrutura narrativa dos filmes produzidos nos EUA do período, ele começou a “desmonta-las” e reorganiza-las, repensando-as em uma perspectiva onde se fizesse possível entende-las em termos de efeitos práticos, e quem sabe assim alcançar segredo da eficiência dos filmes americanos que faziam sucesso no mundo todo. Para tal Kuleshov sempre considerou de vital importância medir os efeitos da montagem junto a percepção visual da plateia (XAVIER,2008, p.46). A partir dessa empreitada, seus experimentos de montagem sempre giravam em torno da questão de como o sentido de cada elemento do filme era dado por sua O “efeito Kulheshov”

através das artes, nesse caso especifico através do cinema. Kuleshov, um jovem pintor, fundou a primeira escola de cinema do mundo. Antes disso já fizera seu debut no cinema, trabalhando como cenógrafo em estúdios cinematográficos. Também marcou presença como cenógrafo teatral. Kuleshov dá nome ao primeiro experimento de montagem cinematográfica conduzido com fins de construir uma forma de controle sobre os processos cognitivos do espectador, o “efeito Kulheshov”. Esse experimento alternava a mesma imagem do

posição na montagem do filme. Não é equivocado atribuir a Kuleshov a visionária percepção do cinema como uma linguagem que podia ser manipulada

racionalmente

(SARAIVA,

2012,

p.118). Kuleshov nos arrolou as principais conclusões sobre o uso da montagem enquanto forma de estabelecer

a

semântica

da

imagem

cinematográfica: 1) o momento crucial da prática cinematográfica é o da organização do material filmado; 2) a justaposição e o relacionamento entre vários planos expressa o que eles tem de essencial e produz o significado do conjunto. (XAVIER, 2008, p.47)

um rosto de um ator, com uma determinada expressão, justapondo-a a imagens de outros

Tal qual um cientista que aplica o processo de

objetos (um prato de sopa, uma cama, um bebê, um

engenharia reversa3, ou que procura organizar

caixão, etc). O objetivo desse experimento era

diferentes materiais e recursos com vistas a

provar como o processo de montagem pode gerir

construir algo provido de sentido e finalidade,

as reações emocionais dos espectadores a partir de

Kuleshov aplicou o construtivismo a montagem

uma associação de imagens em uma sequência

cinematográfica

rítmica, criando assim sentido. Kuleshov realizou

experiências a partir da manipulação da percepção

como

forma

de

construir

diversos experimentos que envolviam o processo de 3

O processo de engenharia reversa consiste em desmontar um determinado equipamento ou máquina, para tentar descobrir seu funcionamento, principio tecnológico e seus componentes

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 142 cognitiva do espectador, através do elemento

técnicas de montagem, transcenderiam a mera

visual. O empirismo que aplicou ao estudo e

linearidade do binômio causa e efeito da narrativa,

elaboração de diversas técnicas de montagem,

gerando uma fragmentação que provocaria

além de terem constituído as linhas gerais iniciais

reflexões,

de outros experimentos estéticos realizados no

associações presentes nas imagens do intercaladas

cinema soviético. Essas experimentações também

no filme (STAM, 2013 p.57). Essas descontinuidades

serviram para reafirmar a posição do artista

presentes no cerne da narrativa gerariam estimulo

enquanto operário e enquanto mantenedor da

intelectual e emocional que irá moldar as reações

causa revolucionária, trazendo para o espectador

do espectador. Como a carne podre em O

novos sentidos e experiências que estivessem em

Encouraçado Potemkim (1925), observada com

consonância com a nova realidade política, social e

estarrecimento pelos marinheiros e com total

cultural.

indiferença pelo oficial superior que a indica

A escola de cinema dirigida por Kuleshov foi o nascedouro dos principais artífices do cinema soviético, dentre eles: Sergei Einsenstein, Dziga Vertov, Vsevolod Pudovkin, Alexander Dovzhenko. Em comum, todos tiveram passagens pelo teatro. Einseinstein

passara

pelo

Teatro

Operário

(Proletkult) e pelo grupo teatral Feks, pelo qual também passara Dziga Vertov (SARAIVA, 2012, p.118). Por questões de espaço e metodologia de análise, nesse artigo não será possível esmiuçar a metodologia e as técnicas empregadas por cada um desses grandes nomes da história do cinema. Farei aqui comentários mais gerais sobre a principal oposição que surgiu nesse movimento que foi entre o cine-punho de Serguei Eisenstein, e o cine-olho de Dziga Vertov. Sergein Einsenstein, o mais influente desses teóricos, operava sua produção artística em uma chave anti-naturalista4, filme deveria conter elementos extradiegéticos5, que apartados pelas 4

Por anti-naturalista devemos entender o cineasta, ou autor, que não se limita a ser um mero guia ou comentador da realidade, seu anseio é justamente o oposto: mostrar como é possível modificar a realidade, através de uma visão crítica que lança luzes sobre os aspectos da sociedade que se mostram deficitários. O objetivo do artista anti-naturalista é justamente fazer da sua arte um instrumento para se intervir na realidade. Em cinema o autor anti-naturalista é aquele cuja filme emprega uma estética de voltada para o sentido da opacidade, que significa um cinema de claros recursos estéticos, empregados

políticas

e

sociais,

através

das

própria para o consumo, o pavão mecânico em

Outubro (1928), símbolo de frivolidade da decadente monarquia, a associação entre o massacre de trabalhadores e um touro sendo abatido em A Greve (1925), esse conjunto de disjunções seriam as formas pelas quais Einsenstein acreditava ser possível estimular o questionamento político dos espectadores, ao passo que também constroem

neles

a

consciência

política

e

revolucionária (SARAIVA, 2012, p.118 e 119). Essa forma de abordagem frontal e interventora, com vistas a construção de um sentimento a partir de sua manipulação, colaborou para a identificação do cinema einsensteiniano como o cine-punho. A meticulosa construção desses momentos de inflexão e irrupção se deve ao fato do cinema eisensteiniano pensar através da imagem e de ser concebido como a montagem de uma grande atração, teatral, circense, estilizado, dividido em esquetes, pontuados por intensidades gradativas

na escala de intervenção, modelando seu discurso que ser por sua vez serve a uma representação definida (XAVIER, 2008, p.11) 5 Por elementos extradiegéticos devemos entender todos os elementos que não estão no tempo e no espaço da trama (elementos diegéticos). O elemento extradiegetico pode ser um narrador, uma trilha sonora executada fora do tempo e do espaço da trama, um recurso de montagem que que justapõem imagens e sequências que não fariam parte dos eventos narrados.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 143 (STAM, 2013, p.57), o som melancólico que conduz

representação, Vertov ia em uma direção oposta:

o cortejo marítimo do marinheiro morto em O

fazer tábula rasa das antigas representações

Encouraçado..., no mesmo filme, o rufar dos

artísticas e construir uma nova linguagem

tambores

cinematográfica,

durante

o

posicionamento

do

totalmente

contemporânea

encouraçado tomado por marinheiros rebeldes e a

(SARAIVA, 2012, p.133). Vertov via o momento da

fragata do exército destinada a acabar com o

revolução a oportunidade para se construir algo

motim, tudo embebido em feitos destinados a

totalmente novo, foi o mais radical dos teóricos,

despertar sentimentos muito específicos no

disposto mesmo a ir o mais fundo possível em todas

A. Rodtchenko - cartaz de "Cine-Olho (Kino Glaz)" de Dziga Vertov - 1924.

espectador. A marca do cinema de Einsenstein era

as suas possibilidades. Vertov também foi o grande

uma amalgama de experimentalismo, espetáculo,

idealizador do Kino Pravda (cinema verdade), e isso

este sendo uma forma de ressignificação das

irá influenciar muito na sua forma de captar

representações burguesas de arte, ou sejam, sua

imagens para reconstruí-las para além do fato.

reconstrução,

com

todos

esses

elementos

concorrendo para a transmissão de mensagem política operada em um discurso direto.

O cine-olho de Vertov constituía-se em uma experiência que negava tanto o simbolismo quanto o formalismo, transformando o cinema assim em

O principal contraponto a Einsenstein, era Dziga

uma descoberta fruto constante da constante

Vertov e seu cine-olho. Enquanto Einsenstein dava

decifração das imagens. Para tal, Vertov fez uso de

novos sentidos as antigas formas burgueses de

diversas técnicas de montagem, elipses, inversões

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 144 temporais,

acelerar

imagens,

congela-las,

Cabe ainda ressaltar que apesar do amplo

trucagens, sobreposições, justaposições, fossem

empenho do Estado em promover o cinema,

elas amplas ou minúsculas. Todos esses efeitos

principalmente

aplicados a sequências aparentemente sem

(veremos isso mais adiante no tópico sobre o

qualquer nexo causal traziam consigo um elemento

Realismo Socialista), esse cinema era precário em

construtivista, a partir dos jogos de relação que

recursos técnicos, o que tornava limitado em muitos

permeavam as imagens, permitindo ao espectador

pontos também estéticos. Procurando virar esse

construir seus sentidos através da percepção visual.

jogo, a carência de materiais estimulou o ambiente

Vertov filmava de forma documental, porém a

criativo que viria justamente a favorecer os

montagem reorganizava, ou melhor, reconstruía, a

experimentalismos na área da montagem, sob

imagem e a colocava em encadeamento e

diversos matizes. Tratava-se de um conjunto de

associação com outras imagens igualmente

questões que envolvem desde tempo e condições

reconstruídas (SARAIVA, 2013, p.135).

de projeção do filme até a necessidade de se

Enquanto Einsenstein tinha um estilo retumbante, explosivo,

Vertov

mesclava

uma

porção

documentário, no caso a parcela verdade do cinema, com uma poesia que remontava a Maiakovski, principalmente por essa trazer em seu bojo a tensão da realidade e sua concretude com o lirismo que lhe é impresso pelo trabalho de

para

usos

propagandísticos

transmitir uma mensagem de forma objetiva, direta e inconteste. A título de curiosidade: a mentalidade desenvolvida no cinema soviético de transformar a faltar de recursos em estética, permeou outros três grandes

movimentos

cinematográficos,

o

Neorrealismo italiano, o Cinema Novo Brasileiro, e o Nuevo Cine Latinoamericano.

montagem que retrabalha a imagem e a encadeia

Do que foi apreendido até aqui, tanto para

em uma sucessão de relacionamentos. Por esse

Einsenstein quanto para Vertov, entre outros

motivo Vertov se situava em uma categoria de

teóricos da escola soviética de montagem que

documentário poético (STAM, 2013, p.61). Ao se

oscilavam entre ambos os estilos, mas sempre

propor a decifrar o mundo, expor seus mistérios,

impondo alguma particularidade autoral, o

desmistifica-lo, ao mesmo tempo em que procurava

significado do filme é fruto da ação do espectador

circunscreve-lo dentro da vida urbana, material,

em contrastar duas tomadas distintas que são

produtiva, Vertov conciliava duas pontas da

justapostas através da montagem. Por vias e

corrente comunista de uma visão de mundo

metodologias diferentes, Einsenstein e Vertov

revolucionária: o entendimento do mundo par além

acreditavam no cinema enquanto forma não só de

da

artísticas

registrar a realidade, como também de transforma-

burguesas (as quais Vertov queria limar). A

la. Einsenstein criava o novo a partir do significado

exposição do cinema enquanto um elemento de

advindo dessa relação das imagens no plano,

construção que atravessa diversos processos que o

Vertov via a possibilidade de emergência do novo

trabalham, o moldam e o definem, tal como ocorre

com o registro do real sendo justaposto ou

em uma linha de produção era a marca do Estado

intercalado

Proletário

transformadas através da montagem (TURNER,

alienação

das

representações

racionalizado

e

construtor

que

reiteravam o filme enquanto uma divisão de tarefas

por

imagens

a

trabalhadas

e

1997, p.41 e 42).

produtivas (MICHELSON, apud STAM, 2013 p.63). Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 145 Mas ainda no século XX os significados e atribuições da montagem

ganhariam

deixa de ser a única forma de se criar sentido em um

novas

filme, para ser um dos recursos da linguagem

roupagens e significados, pelas análises de André

cinematográfica a colaborar para a criação e

Bazin.

reprodução de sentidos. Um plano longo formado

Bazin fora crítico de cinema e teórico, fundador da Cahiers du Cinema. Ajudou a ressignificar o papel da montagem dentro dos estudos daquilo que se constituiu na linguagem cinematográfica. Enquanto os teóricos soviéticos viam o sentido do filme repousar na combinação de tomadas, matéria

por um único quadro, ou um plano formado por sucessivos quadros, necessita não só dos elementos que estão presentes no quadro, o mise-em-scène, como também de uma forma de fazer com que a reprodução desses sentidos tenha ritmo e coerência através desses diversos quadros e/ou

prima captada a partir de “fragmentos da

planos. O recurso da montagem pode chamar

realidade”, rearranjados em um quadro, Bazin

atenção para um detalhe, ressaltar um elemento de

elabora a ideia de que o sentido da imagem, e por conseguinte do filme, está na composição da tomada em si mesma. Bazin traz a luz o conceito de

mise-em-scène, o movimento e arranjo dos elementos no quadro ou na tomada de uma cena a fim de observar como se podiam gerar significados.

cena, criar situações onde o mesmo sentido pode ser observado de diferentes formas (um mesmo evento visto pelo ponto de vista de diferentes personagens), criar rimais visuais que denotem um sentido especifico, enfim, as possibilidades são muitas.

Esses elementos iam desde o posicionamento e

Nem tudo na Rússia revolucionária era bonança.

movimentação da câmera, posicionamento e

A

movimentação dos atores, figurinos, iluminação,

Bolcheviques tinha uma face menos grandiosa e

cores do cenário, fluxo da cena, arte, etc. Nesse

mais rígida. A política oficial, o Realismo Socialista,

ponto encontramos outra aparente oposição aos

em um tempo relativamente curto, engessa todas

diretores e teóricos que soviéticos, pois estes viam

as

na limitação do cinema o seu maior trunfo estético,

revolucionária ocorre um processo de ortodoxia

enquanto Bazin via na apropriação de elementos

que passa a condenar e a perseguir todos que se

que compunham a linguagem cinematográfica e

opusessem as diretrizes do Estado. O próximo

criavam uma “ilusão do real” o grande mote da arte

tópico fala justamente desse debaclé artístico e

cinematográfica, dado a sua potencialidade infinita

também político.

de combinações e arranjos para a produção de

O Realismo Socialista

sentidos (TURNER, 1997, p.44). O mise-em-scène mostrou-se a mais importante contribuição teórica de Bazin, ajudando a romper com uma certa rigidez teórica dos diretores soviéticos que atribuíam única e exclusivamente à montagem a responsabilidade por conferir sentido ao filme. Com o mise-em-scène a própria montagem sofre uma guinada conceitual, pois

estatização

cultural

manifestações

promovida

artísticas.

De

pelos

vanguarda

Para além do juízo de valor acerca do sucesso ou fracasso do regime político socialista da antiga URSS, e como vem sendo reiterado ao longo desse artigo, a iniciativa do governo revolucionário que começou ascender ao poder em outubro de 1917, de estatizar as artes, dentre elas o cinema, produziu resultados muito fecundos. Seja no âmbito da história do cinema, dos estudos culturais, os Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 146 teóricos soviéticos abriram caminho para se pensar

de poucas palavras e com referenciais políticos bem

o cinema de uma forma inédita até então.

claros, desprovida de ambiguidades, de acentuado

Promoveram um aprofundamento artístico e

caráter doutrinária, claramente voltada para

técnico. Forma e conteúdo, nas abordagens desses

apreensão simples por parte das massas de novas

teóricos, tornaram-se questões dialéticas. Todavia

noções políticas. O construtivismo foi pilar

o que antes fora a ponta de lança dessa revolução,

fundamental dessa diretriz cultural, porém, sem o

começou a ser “cegado” pela burocracia e pela

arrojo e sem a liberdade criativa de outrem.

ascensão ao poder de grupos políticos mais preocupados

em

engessar

as

formas

de

representações artísticas, para favorecer um processo de ideologização, do que ousar através delas.

Na década de 20 os artistas soviéticos já mostravam sua insatisfação perante as diretrizes governamentais que impunham verticalmente formas de se gerar conteúdos artísticos. Acusavam o governo de limitação, simplificação e de coibir o

O Realismo Socialista, que grosso modo fora a

arrojo artístico. A centralização e a estatização das

política oficial do Estado para a estética, aplicada

artes, que no começo foi de vital importância para

em todos os campos artísticos, literatura, artes

se pensar e desenvolver novas formas de

plásticas, poesia, design e no tão aclamado cinema,

representação artística, agora cobrava um preço,

começou como uma diretriz elementar para se

além de se tornar um problema difícil de lidar por

transmitir uma mensagem ao povo russo pós-

parte dos artistas.

czarismo e com a revolução bolchevique já consolidada. De recursos estéticos simples, com uso

Cena de "Quando Voam as Cegonhas". Era do Realismo Socialista

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 147 No tocante aos efeitos do realismo socialista no

Comunista da União Soviética ocorrido em 1924,

cinema soviético, Furhammar e Isaksson nos

logo após a morte de Lenin, o grupo de Stálin

indicam:

começa a alcançar proeminência política sobre as

“A história do cinema soviético foi desde o princípio, em maior extensão do que em qualquer outro país, a história do relacionamento entre cinema e política. Na Rússia o desenvolvimento o desenvolvimento do cinema tem sido dirigido pelas autoridades de modo muito mais firma do que em qualquer outro lugar, e o conteúdo dos filmes russos muito mais impregnado pela mitologia política oficial do momento [...]. No começo, a revolução da revolução estavam ainda frescas, o ódio era violento o os filmes tinham realismo brutal. Mas revolução estabeleceu-se, transformou-se numa revolução, em um símbolo nacional”. (FURHAMMAR & ISAKSSON, 1976, p.13).

demais facções. Stálin começa a construir sua imagem de herdeiro político legítimo de Lenin. Já no XV Congresso, em 1927, Stálin consolida seu poder como Secretário Geral do Partido, afastando a fação trotskista. Nesse mesmo período o controle do partido recrudesce, o controle ideológico sobre os filmes se faz mais constante e intenso. A escolha política torna-se agora um pesado fardo para esses cineastas (colocar a fonte). Já em 1924 a controvérsia entre autoritários e liberais se faz presente. O então integrante do

A estatização do cinema por parte do governo

Politburo6 do Partido Comunista, Nikolai Bukharin,

bolchevique advém também da necessidade de se

um dos grandes cabeças da revolução de outubro e

montar uma máquina de propaganda em um

do partido Bolchevique, adota uma postura

momento onde a revolução ainda não estava

tolerante

consolidada. Durante a guerra civil (1918-1921),

entendimento, por parte do partido, de que

fazendo uso das poucas reservas técnicas que

nenhum estilo era representativo ou exclusivo

restaram após a evasão dos empresários e técnicos

Partido. As vanguardas respiraram aliviadas.

da indústria cinematográfica, para mobilizar um

Colaboraria ainda mais para a autonomia do

esforço de propaganda. Foram realizados filmes

cinema e das demais artes a ação de Anatóli

curtos, em sua maioria filmes de agitação, que

Lunatcharski, Comissário para a Informação, crítico

tinham a função de ser uma espécie de cine jornal.

literário e grande entusiasta do cinema. O binômio

Esses filmes eram destinados os “trens de

Bukharin/ Lunatcharski deteve a sanha autoritária,

propaganda”, que eram despachados para os

mas não por muito tempo. Já em 1928, com Stálin

territórios mais distantes do país, com a intenção de

consolidando seu poder como Secretário Geral do

levar os avanços da revolução a todos os povos da

Partido o controle ideológico torna-se uma

Rússia. Esses curtos filmes de agitação continham

demanda política de primeira necessidade. Em

ideias

revolucionários,

1930, durante o XVI Congresso do Partido

praticamente panfletos filmados (FURHAMMAR E

Comunista, sacramentam a função da arte como

ISAKSSON, 1976, p.14)

instrumento político. Era a adoção oficial do

simples,

slogans

e

progressista,

ajudando

no

O que antes era uma lealdade natural dos

Realismo Socialista como a única estética válida em

cineastas em relação ao governo, de forma até

toda a URSS (FURHAMMAR E ISAKSSON, 1976,

muito rápida azedou. No XIII Congresso do Partido

p.19 e 20).

6

Comitê executivo onde se agrupavam os diversos partidos comunistas e onde eram discutidas as diretrizes políticas e ideológicas

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 148 O fiasco do Realismo Socialista caminha lado a lado com o próprio cenário de terror que se descortinava na URSS. A década de 30 se revelaria um período conturbado nas relações políticas e sociais internas. Nomes importantes do partido Bolchevique, e que lutaram na revolução de outubro de 1917 e na guerra civil de 1918-1921, passaram a ser acusados de traição e associação com agentes imperialista estrangeiros. Entre as grandes figuras perseguidas e mortas estão o Leon Trotsky, o já citado Bukharin, Zinoviev, Kamenev, Rykov7. Isso só para citar os nomes mais conhecidos. O grande terror stalinista, também conhecido como o período do Grande Expurgo, que foi de 19341939, espalhou o terror no conjunto da sociedade. Uma política do medo dominava o imaginário social, onde qualquer um podia ser um inimigo em potencial. Tal prática levou a uma grande atrofia social, que se retroalimentava desse medo e insegurança, criando um ambiente de desconfiança e animosidade, manifestado na vigilância constante por parte do cidadão comum, preocupado em não se ver atingido por essa repressão sistemática e brutal, nem que para isso tivesse que denunciar, mesmo sem motivo aparente, seu vizinho, ou seu familiar. O dispositivo de repressão contava com o monopólio dos meios de comunicação e imprensa por parte do partido, com um rígido controle da censura, facilitando assim o controle ideológico. O terror tornou-se o espetáculo oficial do partido. O povo era conclamado a participar como ator daquele

processo.

Esse

espetáculo

era

a

dissimulação das intenções do partido, para ocultar seus mecanismos e seu sutil jogo do visível/invisível, que manipula os imaginários sociais. O conjunto das

pilares da ascensão de um regime burocrático e totalitário (BACZKO, 1985, p. 326). A imposição do Realismo Socialista como forma artística oficial do partido, para além do incentivo estatal, bem como a censura e o rígido controle ideológico que se seguiu sobre os diversos aspectos da vida dos soviéticos, são denotativos de um princípio que colocam a ideologia em si como a força motriz natural do processo político, social e histórico. Como formula Hannah Arendt, a partir do momento

em

que

se

inviabiliza

qualquer

interferência humana de quaisquer aspectos reguladores e legitimadores da vida social, cria-se uma lógica tirânica que vai tornar inelutável qualquer oposição, pois o que está em marcha e a natureza, a História encarnada pelo partido. Esse pensamento conduz a uma situação tal que, a qualquer momento, qualquer um pode e deverá ser eleito como o “inimigo” do Estado, do partido, que são os representantes naturais da História. A punição do partido, encarnada nos julgamentos dos grandes expurgos, seria nada mais, nada menos, do que o partido cumprindo o seu papel nessa lógica de conhecedor desses crimes, só lhe restando assim puni-los. Daí surgem as confissões sem crimes existentes, mas que alimentavam a sanha popular pelo punitivismo (ARENDT, 1960-1975, p.525). O que era a oficialização do Realismo Socialista se não uma das formas empregadas pelo partido para limitar

a

interferência

social

no

processo

revolucionário. Além de ser o instrumento necessário para a mínima mobilização popular, da qual nenhum governo, seja ele totalitário ou não, pode dispensar, incutindo valores e propagando a lógica “natural” da qual o partido é o timoneiro.

práticas de repressão e controle ideológico eram os

7

Para saber um pouco mais sobre a importância dessas e de outras figuras de destaque durante a Revolução Bolchevique,

indico e leitura de REED, John. Dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2010

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 149 O Realismo Socialista no cinema Soviético tinha

filme fora uma encomenda do próprio Stalin, justo

diversas limitações no tocante a transmissão dessa

no momento em que a Alemanha preparava seus

“realidade revolucionária”. Criaram-se imagens

exércitos para uma eminente investida militar pela

excessivamente idealizadas e unidimensionais

Europa. Logo após a assinatura do já citado Pacto

dessa realidade que tentava mostrar idílio na terra

Molotov-Ribbentrop, esse e outros filmes de

na qual havia se transformado a vida do trabalhador

propaganda foram tirados de circulação. Sendo

urbano e rural. A efervescência artística que havia

novamente postos em circulação no ano de 1941,

incentivado a mudança tornou-se uma couraça

quando a Alemanha Nazista o viola e parte para a

dura, pesada e impenetrável. A ficção dita sócio-

tentativa de conquista o território soviético.

realista tornou-se apologética, a ponto de fazer qualquer crítica contrária parecer desconfortável ou equivocada, pois ao se questionar a forma como essa “realidade revolucionária” era passada, era o mesmo que se postar contra a revolução, contra o Partido e, por conseguinte, contra a História. Se as experiências estilísticas dos teóricos da montagem tiveram dificuldades em tocar o povo, o realismo socialista, padronizado e aborrecido, também não chegou

perto

de

lograr

maior

sucesso

(FURHAMMAR E ISAKSSON, 1976, p.20).

e antes da assinatura do Pacto MolotovRibbentrop8 entre URSS e Alemanha Nazista às vésperas da Segunda Guerra Mundial, tem início uma produção incessante de filmes, ficções e documentários que alardeavam os perigos do nazifascismo. Enquanto a URSS Comunista era mostrada como o país aonde esses males jamais chegariam, além de ser a oposição natural ao nazifascismo. Remonta a esse período o último grande sopro criativo de Sergei Einsenstein, e um filmes

de

propaganda

política

Realismo Socialista passa por uma guinada, não no sentido qualitativo, e passa a recorrer a secular história Russa para criar novas consignas que forjem, além do nacionalismo, o pressuposto histórico que coloca o Partido na condição de força natural e histórica que está guiando a URSS a sua posição de natural grandeza. E que parte dessa grandeza fora justamente construída no dos inimigos externos, dentre eles principalmente, os alemães.

Após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha,

dos

É interessante observarmos nesse período como o

mais

significativos do período, Alexandre Nevsky (1928), baseado na história do príncipe homônimo, que no ano de 1242 combateu os Teotônicos (alemães) e os Tártaros, expulsando-os do território russo. Esse

Ao evocar a figura de Alexandre Nevsky, além de estabelecer o seu uso propagandístico ao relacionar a liderança e coragem do príncipe e o papel de Stálin como Secretário Geral do Partido diante do avanço do nazifascismo, o filme de Einsenstein torna-se não só um documento histórico de sua época, como também está embebido no esforço soviético de monumentalizar o seu passado histórico, seu presente e um determinado personagem e uma determinada situação, através do estabelecimento de paralelos históricos. Alexandre Nevsky (filme) torna-se documento por tratar-se de um produto oriundo das relações de força que o forjaram, e que detinham o poder naquele momento. Para os contemporâneos do filme e também para os seus

8

Tratado de não agressão assinado entre a Alemanha Nazista e a União Soviética em 23 de agosto de 1939

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 150 pósteros, trata-se de um monumento por ser uma

cristalização dos discursos, os anacronismos e

forma de perpetuar determinados valores e visões

desvendar as problemáticas de representação que

de mundo, imaginários, e quem define isso é,

são suscitadas acerca desse passado

logicamente, quem está no poder. Logo o monumento é gerido como um instrumento de poder, e um status atribuído ao documento e a as relações que tornaram possível a sua cristalização (LE GOFF, 2013, p.494-495).

A partir das formulações dos conceitos de documento e de monumento, pensemos não só no filme Alexandre Nevsky, mas no conjunto de propostas do Realismo Socialista e em seu contexto. Dessa relação podemos depreender a

A partir das formulações dos conceitos de

idéia que surge em torno do empreendimento de se

documento e de monumento, pensemos não só no

de gerar monumentos históricos, voluntaria ou

filme Alexandre Nevsky, mas no conjunto de

involuntariamente, a partir de uma sociedade

propostas do Realismo Socialista e em seu

historicamente

contexto. Dessa relação podemos depreender a

revolucionária), com a afirmação de um discurso

idéia que surge em torno do empreendimento de se

monolítico sobre as representações do passado

de gerar monumentos históricos, voluntaria ou

(NAPOLITANO, 2007, p.66). Os filmes do período

involuntariamente, a partir de uma sociedade

geridos pela diretriz estética do Realismo

historicamente localizada (URSS pós-revolução),

Socialista, independentemente de serem ficção ou

com a afirmação de um discurso monolítico sobre

documentário, eram também documentos, e

as representações do passado (NAPOLITANO,

tratavam diretamente de um momento histórico: a

2007, p.66). Os filmes do período geridos pela

revolução e o pós-revolução. Tratava-se de filmes

diretriz

realizados como partes de um esforço para

estética

independentemente

do

Realismo

de

serem

Socialista, ficção

ou

documentário, eram também documentos, e tratavam diretamente de um momento histórico: a revolução e o pós-revolução. Tratava-se de filmes realizados como partes de um esforço para consolidar a revolução e construir um legado, por isso não é equivocado situa-los na classificação de filmes históricos9. A análise desses filmes enquanto documento/monumento,

é

tomar

parte

na

operação intelectual de não só medi-los pelo seu grau de veracidade, pois como formulou também Le Goff “documento é monumento [...]. No limite

não existe documento verdade. Todo documento é mentira” (LE GOFF, 2013 p.497), como também desconstruir, ou melhor, desmonumentalizar a

localizada

(URSS

pós-

consolidar a revolução e construir um legado. As limitações impostas pela estética do Realismo Socialista não são intrínsecas, pois estão atreladas a uma realidade onde a disposição dos recursos materiais serão fomentadores das possibilidades técnicas e estéticas relacionadas ao filme. Da mesma que os teóricos da montagem criaram seu método em parte calcado nas condições materiais daquele momento da revolução e da guerra civil, a estética

do

Realismo

tratará

baseada

em

determinadas condições igualmente materiais, os elementos

que

cinematográfica

irão

nortear

daquele

a

linguagem

momento.

Essas

condições acerca da representação do real influenciarão de sobremaneira a forma como irão

9Gênero

cinematográfico, onde a partir de uma ficção, reencena o passado com os olhos voltados para o presente (SORLIN. Apaud. NAPOLITANDO, 2007, p.67)

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 151 operar as estratégias de monumentalização (MORETTIN, 2007, p.54). As breves exemplificações e formulações de conceitos aqui apresentadas nos ajudam a dimensionar o esforço que é pensar o cinema, nesse caso o cinema soviético. Essa leitura não se limita somente a um juízo de valor qualitativo, mas a uma leitura histórica dos conteúdos e das estéticas geradas nesse cenário histórico igualmente inédito. De tal forma que assim nos são fornecidas as ferramentas necessárias para pensar o contexto e o sentido da produção fílmica daquele período, para além da condição de monumentalização de um legado que se pretendia irrefutável. Nas palavras de Napolitano: “Portanto, ao contrário da separação rígida e estatutária entre documento e monumento, trata-se de operações culturais e intelectuais que, a um só tempo, monumentalizam ou desmontam as representações cristalizadas do passado.” (NAPOLITANO, 2007, p.66)

À guisa de conclusão O pós-Segunda Guerra marcou o pico da crise da indústria cinematográfica soviética, agora também em termos quantitativos. Das dezenas de filmes produzidos nas últimas décadas, o ano de 1952 traz consigo a marca de somente 5 filmes produzidos e lançados. Houve nesse mesmo período uma enxurrada de filmes históricos realizados com vistas a monumentalizar a imagem do Stálin. Era o Realismo Socialista atingindo seu ponto mais precário (FURHAMMAR E ISAKSSON, 1976, p.26). Em março de 1953 Stálin morre. Kruschev assume como novo Secretário Geral do Partido. Tem-se início um processo de “degelo” ou desestalinização,

O que temos hoje é a preponderância histórica dessa forma de fazer e pensar o cinema como representante de uma época e de um momento histórico muito representativo, nos âmbitos político, social, econômico e cultural. Longe de ser uma nota de rodapé, o cinema soviético ocupa algumas das páginas mais importantes da história do cinema. Com o advento da Nova História Cultural e dos Estudos culturais, novas luzes foram lançadas sobre essa forma de fazer cinema, nos permitindo análises mais minuciosas e abrangentes das teorias do período, que até hoje influenciam na formação de diversos cineastas e teóricos. Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestrando em História pela Unirio, pesquisa Cinema na América Latina e colunista especialista em cinema da Gnarus Revista de História.

Bibliografia ARENDT, Hanna. Origens do Totalitarismo. São Paulo. Companhia das Letras, 1989 BACZKO, Bronislaw. A imaginação social In: Leach, Edmund et Alii. Antropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985 FERRO, Marc. A Revolução Russa de 1917. São Paulo: Coleção Khronos Editora Perspectiva, 1974 FURHAMAR, Leif. Cinema a política/por/Leif Furhamar/e/Folke Isaksson Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976 MORETTIN, Eduardo. “O cinema como fonte histórica na obra e Marc Ferro”. História e cinema/CAPELATO, Maria Helena [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007 NAPOLITANO, Marcos. “A escrita fílmica da História e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton”. História e cinema/CAPELATO, Maria Helena [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007 SARAIVA, Leandro. “Montagem soviética”. História do cinema mundial/ MASCARELLO, Fernando (org). Campinas, SP: Papirus, 2012 STAM, R. Introdução a Teoria do Cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003 TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo: Summus, 1997 XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008

ao ponto da imagem de Stálin ser limada de filmes anteriores, bem como a proibição do culto a sua imagem.

Filmografia

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 152 A seguir uma breve filmografia de alguns filmes soviéticos realizados entre o período da Revolução Bolchevique e o início da Segunda Guerra Mundial: Cine-Olho. Direção: Dziga Vertov, URSS, 1924 A Greve. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1925 O Encouraçado Potemkin. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1925 A mãe. Direção: Vsevolod Pudovkin, URSS, 1926 Outubro. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1927 Arsenal. Direção: Aleksandr Dovjenko, URSS, 1928 O home com a câmera. Direção: Dziga Vertov, URSS, 1929 Três canções para Lenin. Direção: Dziga Vertov, URSS, 1934 A felicidade. Direção: Alexandre Medvedkine, URSS, 1935 Lenin em outubro. Direção: Mikhail Room, URSS, 1937 Alexandre Nevsky. Direção: Serguei Eisenstein, URSS, 1938

Bibliografia complementar Abaixo a relação de alguns livros básicos para conhecer melhor a Revolução Russa:

FILHO, Daniel Aarão Reis. As revoluções russas e o socialismo soviético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 GOLDMAN, Wendy Z. Mulher, Estado e Revolução: política familiar e vida social (1917-1936). São Paulo: Boitempo: Iskra Edições, 2014 LENINE. V.I. Obras escolhidas - Lênin – I. São Paulo: Alfa Ômega, 1986 Obras escolhidas - Lênin – II. São Paulo: Alfa Ômega, 1986 Obras escolhidas - Lênin – III. São Paulo: Alfa Ômega, 1986 REED, John. Dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Pinguin Classics Companhia das Letras, 2010 REMMINCK, David. O túmulo de Lenin: os últimos dias do império soviético. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 TROTSKY, Leon. A história da revolução russa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1977 VISENTINI, Paulo Fagundes. Os paradoxos da revolução russa: novas teses sobre o stalinismo, as guerras e a queda da URSS. Rio de Janeiro: Alta Books, 2017 WILSON, Edmund. Rumo a estação Finlândia: escritores e atores na história. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

”A Mãe”, direção Vsevolod Pudovkin,

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 153

Coluna:

HISTÓRIA E CINEMA: UMA ANÁLISE DO FILME CALÍGULA Por Danielle Guedes dos Santos RESUMO: Apresentado pela historiografia romana como um Imperador dado aos prazeres carnais mais extremos, Calígula tem sua memória propagada pelo cinema com cenas que envolvem orgias sexuais constantes, torturas e assassinatos por desejo incontrolável. Como base para a relação cinema-história, as construções cinematográficas nos proporcionam um diálogo com elementos que transitam entre o macro e o micro universo da História, nos evidenciando por vezes, os pormenores que passam despercebidos a primeira vista. Neste sentido, o presente artigo busca estabelecer um diálogo de análise entre a história do Imperador Romano Caio César Germânico, chamado Calígula (c. 37 a 41 d.C.) e a produção cinematográfica de 1979, intitulada “Calígula”, inspirada nos relatos e documentações históricas de seu período. Palavras-Chave: Calígula – Cinema – Películas Fílmicas – Império Romano.

Introdução: “Nada mais justo que a História se utilize do cinema, pois desde muito tempo, a História vem servindo de fonte de inspiração para muitas formas de representação, sejam elas lendárias, teatrais, literárias, plásticas e várias outras1.”

Conhecida como a 7ª Arte, o cinema ganha suas representações de imagens vistas em movimento a partir da contribuição da apresentação no Salão Grand Café, pelos Irmãos Lumière na Paris dos anos de 1895, graças a seu invento denominado

Cinematógrafo2.

GRALHA, Fernando. No escuro do cinema: reflexões sobre as relações entre cinema e História. Rio de Janeiro, Gnarus Revista de História, v. I, nº 1 – Novembro de 2012, p. 51. 1

2 Aparelho portátil que consistia em três utilidades: máquina de

filmar, de revelar e projetar. Foi baseado na invenção feita por Thomas Edson em 1891, o cinetófrago e o cinemetoscópio.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 154 A História tem se utilizado das

fatos e aspectos históricos

produções

dispostos

nas

filmagens.

cinematográficas por conta

Como todo documento de

da grande visibilidade e

análise

alcance que a tela grande

elaborar

pode proporcionar acerca de

histórico, devemos levar em

um determinado período ou

consideração a ideologia de

acontecimento histórico. Um

produção do filme, que parte

dos

importantes

da subjetividade de quem o

historiadores da 3ª geração

produziu e de quem o

mais

dos

um

para

discurso

Annales,

analisa. Tornando-o como

responsável por inaugurar as

objeto de estudo, o filme ao

concepções,

atingir

da

Escola

consultado

relações

e

a

categoria

de

teorias da chamada cinema-

documento histórico, pois se

história,

trata

Marc

Ferro,

de

uma

estabelece que “um filme diz

humana,

tanto

observado obedecendo a

quanto

for

esse

produção pode

ser

questionado”3, propondo desta forma uma “relação

certo rigor de análise, como já abordara Eduard

entre historiadores e a tela grande”4.

Carr ao propor algumas ideias e indagações ao

Partindo desse ponto, as revisões historiográficas da Nova História, colocam o uso do cinema como

documento histórico, tais como: Quem fez?; Para quem fez?; Para que fez?; Como fez?; Por quê Fez?9. “Algumas obras, por exemplo, podem ser de grande utilidade na reconstrução do gestual, do vestuário, do vocabulário, da arquitetura e dos costumes do período”10. A memória presente nas produções cinematográficas nos permite de muitas formas relembrar um determinado período, sendo fundamental ao trabalho do historiador, pois é possível perceber a construção das relações com as produções do período citado no filme, decompondo as “características e aspectos que a imagem filmática constrói” fazendo chegar ao “que não foi mostrado de imediato pelo cineasta”11.

um documento/monumento5 a partir da sua utilização como documentação primária de análise, cujo objetivo desse aporte teórico-histórico atende ao cinema como monumentum, onde confere um “sinal do passado”6 que configura o monumento sendo “tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação”7; e o documento, como fonte de escolha do historiador8, sendo ele escrito ou imagético, por exemplo. Ao fazer uso do cinema como base de análise de

Analisando o filme Calígula, temos a percepção –

seu trabalho, o historiador deve se propor a realizar

em parte – de como a sociedade do Império

uma crítica interna e externa, buscando extrair da

Romano vivia, em especial o Imperador Calígula,

temática apresentada no filme a veracidade dos

cujo filme retrata suas atividades com base em

FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade?. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. (Dir.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1976. 3v. 4 GRALHA, 2012, p. 50. 5 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão. São Paulo, Editora da UNICAMP, 1990. 3

6

LE GOFF, 1990, p. 535. Ibid, idem, p.535. 8 Ibid, idem, p.535. 9 CARR, E. H. Que é História? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. 10 GRALHA, 2012, p. 51. 11 Ibid, idem, p.51. 7

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 155 algumas questões evidenciadas pela historiografia,

Senador. A produção de Calígula recebeu duras

atribuindo o sentido de que “todo filme é um

críticas pelo exagero na propaganda sexual contida

documento, desde que corresponda a um vestígio

no filme, chegando por vezes, a perder parte da

de um acontecimento que teve existência no

essência do conteúdo histórico a ser passado nas

passado, seja ele imediato ou remoto”12. Portanto,

películas filmáticas.

este trabalho versa em analisar os aspectos históricos do filme Calígula de 1979, contribuindo

O Império de Calígula é abordado principalmente na obra de Suetônio13, na biografia que trata da

para uma reflexão acerca da relação entre história

“Vida dos Doze Césares”. Em seu título original De

e cinema.

Vita Caesarum, Suetônio se propõem a analisar e relatar os acontecimentos ocorridos no governo dos 12 Césares desde o Imperador Júlio César até a

Calígula: o filme e a história Calígula é um filme produzido nos anos de 1979 da nossa era, tendo sua produção elaborada em dois idiomas, o inglês e o italiano. Dirigido por Tinto Brass, Giancarlo Lui e por Bob Guccione, fundador da revista Penthouse. O filme gira em torno da ascensão e queda do Imperador Romano Caio César Germânico, mais conhecido como Calígula. Calígula foi escrito por Gore Vidal, cofinanciado pela revista Penthouse, e produzido por Guccione e Franco Rossellini. O filme é estrelado por Malcolm

McDowell no

papel

do

Imperador. Calígula foi o primeiro grande filme a mostrar atores famosos envolvidos em cenas de

dinastia dos Flávios, que tem seu término com o Imperador Domiciano. A obra de Suetônio torna-se uma importante “fonte para o estudo da vida desses administradores e também para entendermos melhor o poder exercido por eles que viveram em Roma, da transição da República para o Império”14. “Entre esses personagens históricos, Caio César Germânico, mais conhecido pelo cognome de Calígula, ocupa um lugar significativo no imaginário do homem ocidental, que através de livros, peças de teatro e películas cinematográficas perpetua a imagem deste imperador como um chefe de governo capaz de executar homens a seu bel prazer e perpetrar atos políticos que de tão esdrúxulos parecem mais pertencer à ficção do que corresponder a fatos históricos.”15

sexo explícito. O filme conta a história de Calígula, que comandou o Império Romano no período de c. 37 a 41 d.C. Em seu Império dito “orgíaco e sangrento”, ele faz com que assassinem vários membros da aristocracia do Senado; mantém um caso com a própria irmã, Drúsila; casa-se com Cezônio e concede ao seu cavalo, Incitatus, as insígnias de

Caio César Germânico. Chamado como Calígula na história do Império Romano, filho do popular General Germânico e de Agripina, que “era aquela mulher que Tibério havia banido”16, Calígula pertencia à casa imperial cujos descendentes tinham sido as “vítimas dos massacres de Tibério e de Sejano”17. Tinha três irmãs que haviam escapado às temíveis conspirações e atentados. “Após a

12

Ibid, idem, p.51. Nascido provavelmente em Roma do período de c. 69-141 d.C, Suetônio grande erudito e estudioso da retórica, ocupou o cargo da magistratura como Secretário Imperial de Trajano e Adriano, pela sua convivência e relação com Plínio o Jovem. 14 FRANÇA, Tiago; VENTURINE, Renata Lopes Biazotto. UM ESTUDO SOBRE A “AS VIDAS DOS DOZE CÉSARES” DE 13

SUETÔNIO. VIII Jornada de Estudos Antigos e Medievais. Universidade Estadual de Maringá, 2000. 15 CUNHA, Hugo de Araujo Gonçalves da. Poder e Violência

em Sêneca na Época de Calígula: um Estudo do De Ira (século I d.C.). Dissertação de Mestrado, UFF:Niterói, 2015, p.90. 16 LISSNER, Ivar. Os Césares: Apogeu e Loucura. Tradução de Oscar Mendes. Editora Itatiaia, 1959, p.122. 17 Ibid, idem,p.122.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 156 detenção de sua mãe, foi Calígula colocado sob a

historiografia apresentada acerca do período do

proteção de Antônia, sua avó, depois enviado a

Imperador Calígula. Tirando o enfoque das

Capri, à corte do velho imperador. Tinha então

taxações sexuais ao qual o filme Calígula é baseado,

Calígula dezenove anos e, por bem ou por mal, teve

podemos encontrar nas entrelinhas das películas

de exercitar-se na arte da dissimulação”18. Segundo

filmáticas – em cenas diretas e indiretas – o

relatos na obra de Suetônio, Calígula servia a

contexto histórico que cerca essa filmagem. Uma

Tibério

ou

das cenas que mais chama atenção logo no inicio do

lembranças dos atos práticas contra a sua família,

longa, é a de Tibério deixando em aberto quem o

levantando indagações que consistiam em enfatizar

sucederá após sua morte. No púlpito onde são

que nunca antes pode se ver “melhor escravo e pior

selados os decretos imperiais, Calígula acaba por

senhor”19.

carimbar sua própria sucessão com o apoio do

sem

demonstrar

ressentimento

“Não ignorava o imperador Tibério suas secretas atividades. — É para desgraça minha e para perda do país que Caio ficou vivo! — dizia ele”20. Dado aos

General Macro – esse que segundo a historiografia, era o maior temor de Calígula23 e no filme o mesmo aparece como seu aliado.

prazeres ditos “baixos”, a historiografia apresenta

Ao que indica a conspiração para a morte de

que Calígula sentia prazer na “crueldade” e um

Tibério é executada pelo próprio Calígula como

gosto propício ao exagero, pois “gostava de assistir

menciona Lissner: “Calígula havia envenenado o

às torturas e as execuções”21, bem como se disfarçar

velho Tibério e retirado do dedo do velho, que

com uma “peruca, envolto em vestes amplas e que

ainda respirava, o anel que devia herdar. Diz-se

se arrastavam pelo chão, para visitar os botequins

também que sufocara com suas próprias mãos

de má fama e os lupanares”22, exercitando seus

Tibério que tardava a morrer”24. No filme, esse

prazeres carnais, despejados em orgias sexuais

ocorrido, parece ser reinterpretado numa cena

rotineiras. As produções cinematográficas – em

onde quem aparece sufocando o Imperador Tibério

especial essa analisada por nós – se valeram dessa

é o General Romano Macro25 – cuja historiografia,

característica do Imperador, para enfocar e

aponta como Prefeito dos Pretorianos – após o

conceber seu Império como um local fadado a

comando de Calígula que já tinha retirado do dedo

luxúria, cujo qual acaba por transpassar as funções

do velho Tibério, o anel que deveria herdar e o

do Imperador como administrador de Roma e,

tornar o Imperador legítimo. Fato esse que se torna

evidenciá-lo a partir de suas práticas e aventuras

comum dentro da história do Império Romano,

sexuais.

dado as inúmeras tramas e atos de assassinatos para

Nesse sentido, a produção do filme de 1979 em alguns momentos tende a conversar com a

18

Ibid, idem,p.122. Ibid, idem, p.123. 20 Ibid, idem,p.123. 21 Ibid, idem,p.123. 22 Ibid, idem,p.123. 23 Ibid, idem, p.140. 24 Ibid, idem, p.123. 25 “Macro, prefeito dos pretorianos e sua esposa foram suas primeiras vítimas. Sucessor do infame Sejano, Macro havia 19

conseguir o controle administrativo de Roma e suas fronteiras.

secundado ativamente Calígula por ocasião de sua subida ao trono. O imperador julgava-o incômodo. Nomeou-o vice-rei do Egito, depois, antes que os desgraçados subissem a bordo de seu barco, receberam Macro e sua esposa ordem de se matarem”. Retirado de LISSNER, Ivar. Os Césares: Apogeu e Loucura. Tradução de Oscar Mendes. Editora Itatiaia, 1959, p.124.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 157 Sobre o funeral de Tibério, a produção do filme

envolve preces e dias clamando pela melhora de

consegue construir o mesmo já relatado pela

Calígula. A historiografia remete ao levante do fato

historiografia. Um funeral rápido, sem grandes

sobre a morte de sua irmã Drúsila e que Calígula

pompas, tendo o “corpo de Tibério transportado

teria feito com que seu corpo percorresse as

por simples legionários”26. Nomeando em seguida

cidades romanas, onde o povo deveria lhe prestar

Claudios como Cônsul Magistrado, bem como

adorações como uma deusa. Ordenou o "luto

apontando para todos que deveriam prestar

popular, durante dias, semanas e meses”32. “As

saudações e adorações a sua irmã Drúsila, essa com

exclamações, as risadas dentro de casa, nos banhos,

quem Calígula mantinha um romance e a fazia de

a alegria das refeições familiares, a das mulheres e

sua amante.

crianças

Calígula era aclamado pelos romanos que “juraram por todos os deuses que estavam dispostos a morrer por Caio César”27. Com uma certa popularidade, Calígula investiu empenho em conquistar o povo de Roma. Mandou “distribuir dinheiro e organizou festas, corridas e caçadas ao leão, à pantera e ao urso”28, para amenizar e apaziguar as lembranças do terrível Império de Tibério. Organizou como parte do entretenimento da população a “abertura de concursos de oratória, em grego e em latim, e concurso de poetas”29, mas sem perder a sua “fama” de inclinação para a crueldade, como explana a historiografia, o “poeta

eram

consideradas

como

delitos

merecedores da pena de morte”33. Calígula ordenou que fossem feitos “altares à nova deusa (...) para o Panteon, templo do Estado romano, onde somente Júlio César e Augusto (...) eram venerados como deuses”34 e a morte do Imperador Calígula pela Guarda Pretoriana. Nas películas do filme, esse fato abordado na historiografia do período de Calígula, a morte de Drúsila recebe doses de comparações, apenas diferenciando que em uma das cenas do filme, Calígula ao se encontrar transtornado com a morte de sua irmã sai às ruas disfarçado e ataca a população, acabando por ser preso pelos guardas romanos.

mais medíocre era condenado a apagar com a língua os versos escritos nas suas tabuinhas”30. Calígula também prometeu ao povo “abolir os processos de lesa-majestade, repatriar os banidos e publicar regularmente as medidas concernentes à gestão do Estado”31. O filme apresenta uma cena próxima a essa veneração e promoção do Imperador Calígula. Seu adoecimento e preocupação do povo romano com o Imperador são abordados na tela grande, com singela alusão a esse episódio da história, que

Conclusão: Contudo, o balanço de análise feito entre história e

nesse

trabalho

considera

as

apresentações de caráter histórico contidos no filme como uma contribuição a preservação histórica de memórias do Império Romano. Observamos que faltou ao longa a exposição das construções e importações de obeliscos vindas do Egito, na empreitada de Calígula em honra ao marco iniciado pelo Imperador Augustos. As

26

31

27

32

LISSNER,1959, p.123. Ibid, idem, p.123. 28 Ibid, idem, p.124. 29 Ibid, idem, p.124. 30 Ibid, idem, p.124.

cinema

Ibid, idem, p.124. Ibid, idem, p.125. 33 Ibid, idem, p.125. 34 Ibid, idem, p.125.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 158 constantes cenas envolvendo orgias, prostituição das mulheres dos Senadores e as próprias experiências sexuais do Imperador Calígula, bem como a construção de um cenário cinematográfico

Bibliografia: Documentação Primária: Filme: Calígula (1979) – Dirigido por Tinto Brass, Giancarlo Lui e Bob Guccione.

de fomento para esse aspecto, por vezes quase comprometeu uma análise de contexto histórico mais profundo. Mas como toda produção cinematográfica

que

pretende

atingir

uma

bilheteria de sucesso, atrativos como esse tornam-

Documentação Secundária: CARR, E. H. Que é História? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982. CUNHA, Hugo de Araujo Gonçalves da. Poder e

Violência em Sêneca na Época de Calígula: um Estudo do De Ira (século I d.C.). Dissertação de

se necessários e para tanto, devemos levar em consideração o público alvo e a subjetividade de produção, visto que o filme é “inevitavelmente fruto e imagem da sociedade que o produziu, constituindo-se desta forma fonte primária35 de

Mestrado, UFF:Niterói, 2015. FERRO, Marc. O filme: uma contra-análise da sociedade?. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. (Dir.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1976. FRANÇA, Tiago; VENTURINE, Renata Lopes Biazotto.

UM ESTUDO SOBRE A “AS VIDAS DOS DOZE CÉSARES” DE SUETÔNIO. VIII Jornada de Estudos

alta qualidade e potencialidades, desde que bem perscrutadas por um historiador com pleno domínio de seu ofício”36. Danielle Guedes dos Santos é Pós-Graduanda em História Antiga e Medieval pela UERJ, graduada em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e pesquisadora pelo Centro de Memória Realengo Padre Miguel (2015-2016).

35

Neste trabalho, optamos na redação conceituar as documentações não como “fonte primária”, mas sim documentação primária.

Antigos e Medievais. Universidade Estadual de Maringá, 2000. GRALHA, Fernando. No escuro do cinema: reflexões sobre as relações entre cinema e História. Rio de Janeiro, Gnarus Revista de História, v. I, nº 1 – Novembro de 2012. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão. São Paulo, Editora da UNICAMP, 1990. LISSNER, Ivar. Os Césares: Apogeu e Loucura. Tradução de Oscar Mendes. Editora Itatiaia, 1959.

36

GRALHA, 2012, p.51.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 159

Coluna:

O CINEMA DE SERGUEI EISENSTEIN – UMA ESCRITA HISTÓRICA Por Rafael Eiras

S

erguei Eisenstein, nascido na Rússia no ano

uma linguagem que buscava representar a

de 1898 e falecido em 1949, foi um dos mais

realidade, Eisenstein fazia o oposto.

importantes nomes do cinema russos. Sua

obra abrange tanto a teoria cinematográfica como a direção de filmes memoráveis e reconhecidos até os dias atuais. Obras que retratam um momento importante da história mundial. No entanto, elas não tinham um caractere de realismo, e sim, ao contrário, uma forte e radical preocupação estética que desconstruía com a ainda jovem ideia da narrativa clássica cinematográfica. Ao mesmo tempo que diretores como D.W Griffth inventavam

Sua trajetória como artista e escritor se mistura com o período que compreende a Revolução de 1917. O próprio diretor, em 1918, larga o curso de engenharia e alista-se no exército vermelho devido à Guerra Civil. Mantendo uma atividade artística extremamente relacionada ao socialismo russo dos primeiros anos. Ele entrar no círculo artístico de Moscou participando de um movimento conhecido como “construtivismo”. Já mesmo em 1917 tem pela primeira vez seus trabalhos artísticos Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 160 Prolekult causavam

verdadeira

destruição

da

instituição teatral, ao quebrar com as estéticas do teatro clássico ocidental. Eisenstein entra para o Prolekult no final de 1920, ocupando o cargo de cenógrafo, levando para o teatro muito de suas ideias construtivistas, onde a arte é pensada como uma construção, e não como representações

da

realidade,

próximas

da

arquitetura em termos de materiais, procedimentos e objetivos. Ou seja, não se preocupava em transmitir uma realidade, mas sim um discurso estético sobre o que acontecia.

Serguei Mikhailovitch Eisenstein

publicados, algumas caricaturas em um jornal da época. Suas primeiras experiências no teatro

“Os construtivistas mostravam esse realismo de uma série de maneiras, a maioria das quais levando os vários aspectos do teatro para sua própria esfera, onde podiam ser recompostos de acordo com os desejos formais do diretor. Os cenários não deveriam ser uma cortina de fundo do diálogo, (...) mas deveriam funcionar em igualdade de condições com o diálogo. ” (ANDREW, 1976, P. 55)

também datam dessa época. Toda a trajetória de seu cinema é, em certo sentido, perpassada pelos sentidos estéticos que a intelectualidade russa contemporânea ao diretor, buscava dar a todo o processo revolucionário. Havia por exemplo, a extrema necessidade de se buscar uma arte que propagasse uma cultura de origem proletária, que viesse dos próprios operários, constituindo, desse modo, a superestrutura que

Um conceito importante neste sentido era o movimento Prolekult ("proletarskaia

kultura"

-

cultura proletária) que considerava a arte como um poderoso instrumento das forças de classe, onde ela deveria ser fundamentada no coletivismo trabalhista, manifestando o máximo possível de energia de classe, da espontaneidade e da inteligência revolucionário-socialista no processo As

montagens

montagens teatrais, se torna um estudioso e teórico de artes, tanto para entende-la como para desconstrui-la. Lançavam-se assim, no estudo que inicia, as bases de sua futura arte cinematográfica. Um cinema altamente embasado na ditadura do sentido e que está mais preocupado em transmitir ideias e mensagens do que mostrar uma realidade. Em seus primeiros filmes como “A Greve” (1924),

fortalecesse a ideologia soviética.

artístico.

O diretor aderindo violentamente às novas

teatrais

do

“Encouraçado Potemkin” (1925), e “Outubro” (1927), o diretor tinha o claro objetivo de fornecer um mito fundador para o nascente Estado soviético, ignorando

totalmente

a

contribuição

dos

indivíduos. Ele desenvolve um heroísmo coletivo no lugar da clássica abordagem do drama individual. Retratando de forma estilizada e radical o momento histórico em uma complexa visão de mundo, rica demais para ser expressa em palavras.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 161 segundo plano na Revolução de Outubro, mas que controlava o poder em 1927, foi aquinhoado com referências elogiosas. A certeza que Lenin parecia ter do triunfo da revolução foi uma invenção a posteriori, e a tomada do Palácio de Inverno da maneira que aparece no filme foi uma lenda criada pelos bolcheviques. Mesmo “falhando” no que diz respeito à construção do passado, esses filmes são importantes testemunhos da época em que foram produzidos. (MOCELLIN, 2002, p21-22)

O filme Outubro (1928), que retrata os momentos que precederam a revolução de 1917, é financiado pelo partido comunista para a comemoração de dez anos do ocorrido. Mas a obra é muito mais que uma simples propaganda ao não retratar os fatos de uma forma realista, e sim criando outros sentidos que dialogam com o momento. A maior cena de ficção no filme, aquele que os críticos tendem a citar, é a tomada do palácio de inverno. Essa grande

Mas é como historiografia que se percebe a

e impressionante batalha é tão inteiramente

principal problemática acerca da obra de

ficcional que piadas eram contadas sobre ela. A

Eisenstein. Se levarmos em conta o já clássico ponto

mais comum era a de que mais artilharia foi

de vista de Marc Ferro, onde o filme seria pensado

detonada durante as filmagens do que durante a

como uma ferramenta para se analisar a sociedade

tomada original do palácio.

em que foi produzido, percebido não como uma

A estética do diretor, e as formulações do também teórico, até hoje causam debates acerca de seus conteúdos pela sua ousadia. Principalmente quando se usa as obras como uma fonte para o estudo da História, tanto como uma possível fonte historiográfica como ferramenta de ensino em sala de aula. Afinal, o momento em que o diretor se

obra de arte, mas sim como um produto da sociedade em que ele se insere, uma “imagemobjeto, cujas significados não são somente cinematográficos” (FERRO, 1992, p.87), o cinema seriam muito mais um instrumento para se revelar o que está nas entrelinhas da sociedade que as produziram.

encontra, e seus temas, são de extrema importância

Desta forma a obra de Eisenstein estaria a serviço

para o desenvolvimento dos acontecimentos do

de uma contra análise da sociedade e não

século XX até os dias atuais.

escrevendo

Em sala de aula seus filmes são muito usados pelo professor de História. No entanto há sempre a perigo

de

se

mostrar

eventos

que

não

correspondem com os fatos retratados pela historiografia oficial. O professor Renato Mocellin

uma

própria

historiografia.

As

metáforas criadas pelo diretor acabam por revelar aspectos da sociedade Russa da época através de uma análise do não visível nas imagens, percebendo a

ideologia

mascarada

pelas

técnicas

cinematográfica.

faz uma importante análise: “Quanto à história,

Neste ponto de vista todo imaginário produzido

Eisenstein não se limitava a narrá-la. Seus filmes não

pelo homem, sua arte, crenças, invenções, são

tinham compromisso com os “fatos que realmente

também Historia. “O filme, imagem ou não da

aconteceram”; por isso é preciso ter cuidado ao

realidade, documento ou ficção, intriga autentica

usá-los em sala de aula (MOCELLIN, 2002, p21-22)

ou pura invenção, é Historia (FERRO, 1992, p.86). O

Em Outubro (1927), por exemplo, as invenções são constantes: “Trotski, figura importante em 1917, “desapareceu”. Enquanto Stalin, personagem de

filme então deveri ser analisado como um produto da sociedade em que ele se insere e não uma obra de arte com seus significados metafóricos, uma “imagem-objeto, cujas significados não são somente cinematográficos”. (FERRO, 1992, p.87) Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 162 No entanto para historiadores pós-modernistas,

passado, o cinema como história está falando,

como Hayden White e Frank Ankersmit, a dimensão

relendo a história através de sua linguagem e de um

da metáfora no discurso historiográfico é, em

discurso proveniente de como ele é produzido. Em

última instancia mais poderosa do que a literal e

uma abordagem pós-moderna, trabalhando com a

factual, nos dias atuais (ROSESTONE, 2010,). Desta

interpretação das obras já existentes, usando

forma o historiador Robert A. Rosenstone (2010)

referencias de autores já consagrados, como

percebe que as verdades de filmes históricos são as

Ankersmith ressalta, e revelando a metáfora como

metáforas e símbolos que a obra cria através dos

um discurso que interpreta o passado, a obra

fatos literais da História tradicional. E elas se

Cinematográfica poderia ser considerada uma

assemelham a pelo menos dois aspectos da história

fonte historiográfica das mais importantes da

escrita, ambos se referem a acontecimentos e

atualidade.

movimentos do passado, e compartilham de um traço de irreal e de ficcional, pois ambas acabam por serem narrativas. O

pensamento

moderno

percebe

Para um diretor, como Eisenstein, que busca trabalhar com a história usando os artifícios de um filme dramático, ele necessita criar um passado que

pósa

satisfaça as demandas, práticas

e

tradições

verdade histórica como

tanto das mídias visuais

um discurso com base no

quanto

empírico

se

dramática, isso significa

desenvolveu, e ainda se

ir além somente da

desenvolve, nos últimos

interpretação dos fatos

dois séculos. Processo

a partir de vestígios e de

que gerou uma idolatria

evidencias encontrados

acerca

em livros ou arquivos, e

que

do

passado

da

forma

verídico como se ele realmente existisse da forma

sim trabalhar com a possibilidade de inventar

como foi interpretado através dos fatos, só por

alguns desses fatos. “Esse processo de invenção não

seguir esse padrão das palavras escritas

é, como algumas pessoas podem pensar, o ponto

A obra cinematográfica poderia ir além da constituição dos fatos, ela recriaria fatos. Filmes

fraco do filme histórico, mas uma importante parte de sua força. ” (ROSESTONE, 2010, p. 64)

históricos são parte de um campo diferente de

Como metáfora a historiografia nos dias atuais

discurso histórico, cujo o objetivo não é fornecer

pode potencialializar o ponto de vista histórico

verdade literais sobre o passado, mas “verdades

sobre determinado assunto. Um entendimento não

metafóricas que funcionam, em grande medida

limitado só a escrita, mas sim a outros formatos de

como uma espécie de comentário e desafio do

sentir. Através das características inerentes ao

discurso histórico tradicional. ” (ROSESTONE, 2010,

cinema e a sua linguagem, a historiografia pode

p. 23)

ganhar novos contornos onde não se tem só uma

Nesta perspectiva, de se pensar na metáfora como um estudo sério acerca dos vestígios do

compreensão fria dos acontecimentos, mas uma tentativa de senti-los. Afinal a função do cinema é Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 163 exatamente proporcionar uma experiência a quem

O incrível de se perceber nessa abordagem pós-

assiste, uma mágica que permite ao espectador

moderna de historiadores como Robert A.

participar afetivamente, ser conduzido a uma

Rosenstone é a de que todas essas ideias de criação

realidade possível e daí tirar suas conclusões e

da realidade e da formação de um discurso através

sensações.

da invenção dos fato, já estavam registrados nos

A invenção no cinema está em cada fotograma, mudança de período de um acontecimento, diálogos inventados para se entender melhor o personagem, cores de roupas para seguir uma paleta de cor que tenha algum significado importante para a narrativa, ações e gestos alterados por atores na hora da filmagem. Todos elementos que se unem para gerar o drama. Assim o filme que se compromete com a história, não deveria privilegiar os fatos, pois nunca vai conseguir

filmes e escritos de Eisenstein. Talvez, de certa forma, suas ideias de cinema contrapondo com a necessidade de se mostrar uma verdade histórica, antecipam essas ideias pós-modernas. ”O que incomodava Eisenstein nos filmes que via, era a ineficiência. O cineasta, achava ele, estava a mercê dos acontecimentos que filmava, mesmo quando interpretados. A plateia olhava para os eventos cinematográficos exatamente como olhava para os acontecimentos cotidianos, tornando o cineasta mero canal através do qual a realidade podia ser reproduzida.” (ANDREW, 1976, P. 55)

ser igual a escrita, mas sim, criar metáforas retiradas das interpretações sobre a história que já existe aos

Sua trajetória como teórico ajuda a deixar essa

montes, ou criar novas interpretações que a escrita

ideia mais clara. Em sua concepção o material

não poderia comunicar.

básico da arte cinematográfica evolui da ideia de

Como estética Eisenstein em seu filme Outubro

que era o “plano” a unidade de construção do filme,

(1928), ao retratar o início do socialismo soviético,

a uma concepção mais complexa: a da “atração”.

usa de condensação, simbologia e metáforas, para

Onde “o diretor, através de uma estruturação

encaixar as coisas no seu quadro temporal. É uma

calculada de “atrações”, pudesse moldar os

ficção, uma que não pode ser lida literalmente. Seu

processos mentais do espectador”. (ANDREW,

tema principal nunca é articulado diretamente, mas

1976, P. 54) Ou seja, ele buscava criar um texto

ele o coloca em cada imagem, em cada movimento,

através do significado dos planos e suas respectivas

em cada ângulo de câmera e em cada corte. Ideias

“atrações”. A verdade não estava na cena, mas no

que expliquem o contexto histórico que o filme se

tipo de simbolismo que ela poderia transmitir ao

propõe, como cita Rosenstone (2010, p.107):

espectador.

“Aceitar Outubro como história significa aceitar a emoção como parte da leitura da História. Significa aceitar também a ideia de que o metafórico é melhor do que o literal como maneira de julgar o trabalho do historiador. Está na hora de nos dispormos a avaliar as formas e as metáforas, bem como o conteúdo, que o historiador produz. Ao fazer isso, poderemos agregar os melhores filmes históricos, como Outubro, à nossa historiografia”

Para Eisenstein era importante neutralizar “o plano”

através da

estrema

estilização

das

“atrações” que o compunham, tirando quase todos os aspectos de realidade que existiriam no “plano”. De forma que este, neutralizado, poderia agir da mesma forma que um acorde musical, ou um pigmento de tinta, e assim moldar os significados necessários. “Para neutralizar o plano ele vai buscar inspiração no teatro Kabuki, uma arte estilizada e Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 164 exagerada, muito além do que seria aceito no teatro ocidental. O fato neste teatro é deformado e

estética estilizada e gráfica, ou seja, seu cinema é anti-realidade.” (ANDREW, 1976, P. 61)

alterado até que seja só uma base física. ” Enquanto Hollywood buscava proporcionar ao

(ANDREW, 1976, P. 56) Desta forma o diretor tenta fugir da realidade propositalmente, num sistema em que todos os elementos

fossem

iguais,

a

iluminação,

interpretação, a arte e etc... Dando ao espectador uma impressão psicológica precisa. Seria com a metáfora que o diretor poderia criar seu texto gerando significados que podem ser lidos. Elementos que se opõem no mesmo plano (transferência) ou que convergem para o mesmo lugar (sinestesia) estariam criando textos. “Em suma,

Eisenstein

nunca

considerou

espectador uma experiência realística, Eisenstein procurava subverter o realismo através da fragmentação

ou

“neutralização

desses

elementos. Permitindo-lhes funcionar justapostos em contra plano com outros elementos do filme. “A montagem, supera a sintaxe universal e cria o mais poderoso dos efeitos poéticos. No filme, torna elementos inarticulados ou banais e os funde em ideias ricas demais para serem exprimidos por palavras (ou pela simples explanação da realidade) levando o espectador para um mundo pré-lógico, o do pensamento imagético, onde a arte tem suas consequências mais profundas. ” (ANDREW, 1976, P. 66)

cinematográfico o mero registro da vida (...). Ele não buscava uma plateia passiva, mas uma plateia

É esse status de arte que faz o filme ser mais que a

de co-criadores, que poderiam ler o filme e

realidade. Extrapola e rasga com a retorica e cria

interpreta-lo e não somente aceitá-lo como uma

uma fonte histórica diferente no sentido de

realidade” (ANDREW, 1976, P. 57)

abranger sentidos amplos e mais potentes que a

Se inspirando em outra arte oriental, na poesia Haikai, o diretor e teórico buscou suas teorias de montagem. “A poesia de origem japonesa é feita de ideogramas que seria a junção, a colisão de duas ideias ou atrações. O desenho de um pássaro e uma bola significa cantar. Enquanto o desenho de uma criança e uma bola significa gritar. ” (ANDREW,

pura logica escrita. Aproximando mais o leitorespectador de uma realidade não factual, mas sensitiva. Onde o filme não seria um produto pronto, mas um processo criativo no qual a plateia participa

tanto

emocionalmente

quanto

intelectualmente. E é esse poder de arte que acaba sendo valorizado pelos pós-modernistas.

1976, P. 60). Ou seja, há uma unidade psicológica

Para o marxista Eisenstein, tanto a natureza

na colisão das atrações propostas pelo “plano”,

quanto a história obedecem a um princípio de

escrevendo assim o filme. Para se chegar a um

forma dialética. O cineasta deve olhar abaixo da

significado deveria existir conflito entre os planos,

superfície do realismo de um evento até que sua

ou dentro deles, uma dialética cinematográfica.

forma dialética se torne clara, só então é capaz de

Nasce daí sua famosa ideia de montagem

desenvolver seu tema. Para se buscar a realidade

intelectual.

“deve-se destruir o “realismo”. Decompor a

“ A montagem é, para Eisenstein, o poder criativo do cinema, o meio através do qual as “células” isoladas se tornam um conjunto cinematográfico vivo: a montagem é o princípio vital que dá significado aos planos puros “, neutralizados pela

aparência de um fenômeno e reconstrui-lo de acordo com um princípio de realidade”. (ANDREW, 1976, P. 75)

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 165 Todo esse cinema anti-realidade, na verdade, tenta gerar um discurso, que dialoga diretamente com a historiografia da época. É na tentativa de criar textos através de uma montagem elaborada

ENCOURAÇADO POTEMKIN Direção: Serguei Eisenstein. Produção: URSS , 1925, 75 min. Formato: 35 mm. OUTUBRO. Direção: Serguei Eisenstein e Grigory Alexandrov Produção: URSS , 1928, 1h43min. Formato: 35 mm.

que o diretor acaba por criar uma complexa relação entre história e cinema, que não tem mais a necessidade de retratar fatos, mas recriar ideias. Fazendo de toda a obra cinematográfica de Serguei Eisenstein uma escrita histórica. Rafael Eiras é formado em Cinema pela Universidade Estácio de Sá e Licenciado em História pela Universidade Cândido Mendes e colunista especialista em cinema da Gnarus.

Bibliografia AMENGUAL, Barthélemy. Chaves do Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1973 AMEIDA SALLES, F. O Encouraçado Ptemnkin in Cinema e Verdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ANDREW, J. Dudley. As Principais Teorias do Cinema. Rio de Janeiro: Zahar,1976. AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papiros editora. 2005 AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus.1995 EISENSTEIN, S. Reflexões de um Cineasta. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. FERRO, M. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. METZ, Cheistian. A Significação no Cinema. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva. n.54. 1972 MOCELLIN, Renato. O Cinema e o Ensino de História. Curitiba: Nova Didática, 2002 ROSENSTONE, Robert A. A Historia nos filmes/ Os filmes na Historia. Rio de Janeiro; Paz e terra, 2010.

Poster do filme Outubro, de Sergei Eisenstein, 1927

Referências Cinematográficas GREVE, A. Direção: Serguei Eisenstein e Grigory Alexandrov. Produção: URSS , 1925, 82 min. Formato: 35 mm.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 166

Coluna:

Fotografias da História

ARTE E POLÍTICA NA FOTOGRAFIA DE TINA MODOTTI Por Fernando Gralha

"Un mundo marcha al sitio donde tú ibas, hermana. Avanzan cada dia los cantos de tu boca en la boca del pueblo glorioso que tú amabas. Tu corazón era valiente" (Pablo Neruda)

Tina Modotti

cinematográficas hollywoodianas e posou como

A

modelo para artistas. Em 1918 mudou-se para Los

fotógrafa, modelo, atriz e militante Assunta

Adelaide

Luigia

Modotti

Mondini, conhecida no mundo artístico e

de luta como Tina Modotti, nasceu no fim do século XIX em uma pequena cidade italiana e viveu sua infância com os pais e cinco irmãos. Já aos 17 anos,

Angeles com o poeta americano, Roubaix de I’Abrie Richey (Robo), com quem viveu e continuou trabalhando como atriz em Hollywood. Neste período conheceu o fotógrafo Edward Weston, para quem começou a posar e ao mesmo tempo

se mudou para os Estados Unidos, onde deu início à carreira

de

atriz

atuando

em

obras Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 167

aprender fotografia. Já em 1921 Tina era a modelo

como editora e fotógrafa da Mexican Folkways,

preferida de Weston e logo se tornou sua amante.

uma revista bilíngue em espanhol e inglês sobre

Robo, que viajara ao México para trabalhar e

arte e cultura mexicana. A maioria das fotografias

promover as fotografias de Weston, faleceu lá em

pelas quais é conhecida foi tirada nesse período.

1922. Modotti então resolve ir com Weston para a

Impregnadas pela valorização do povo mexicano e

Cidade do México onde trabalhou como gerente de

pelo ponto de vista da denúncia, as efígies de Tina

estúdio em troca de aulas sobre fotografia.

foram reconhecidas e são célebres até hoje como

Assim, sua história enquanto fotógrafa foi

um marco de crítica social.

determinada pelo período vivido no México. Em

Neste período, a fotógrafa militante conhece

1922 deu início ao seu trabalho completamente

Júlio Mella, fundador do Partido Comunista de

envolvida pelas tonalidades vibrantes e vida

Cuba, com o qual inicia um relacionamento.

tipicamente mexicana. Tem além disso, intenso

Posteriormente Mella sofre um atendado e Tina é

contato com artistas engajados politicamente, posa

acusada da morte de seu companheiro. Logo em

para murais de Diego Rivera, conhece Frida Kahlo e

seguida, é deportada do México e, impossibilitada

importantes pintores e muralistas que fundaram o

de voltar à Itália por conta do evento do fascismo

Partido Comunista do México.

italiano migra para Berlim. Na Alemanha, vê a

Perpassada pela atmosfera de luta, Tina abriu um estúdio fotográfico com Manuel Alvarez Bravo, tirou fotos para os moralistas, inclusive Diego

chance de aprofundar sua ação militante, agindo como defensora de vítimas de guerras e presos políticos.

Rivera e José Clemente Orozco, e se tornou uma

Na Europa, chegou a Moscou, onde se envolveu

ativista política engajada. Começa sua careira na

com o ativismo político e o meio vanguardista

imprensa como tradutora para o jornal comunista El

soviético. Viajou à Espanha e teve na lá ampla

Machete e a partir destas influências desenvolve na

atuação durante a Guerra Civil Espanhola, cuidou

sua fotografia, o viés classista. Trabalhou também

de feridos, vivenciou a agonia de vítimas do Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 168 fascismo e auxiliou na retirada de milhares de

entendendo que a a tecnologia, a matéria e o

refugiados na fronteira entre Espanha e França.

processo fotográfico determinariam o sentido da

Enfim retornou ao México, e, no ano de 1942, com

imagem.2

60 anos, falece devido a um ataque cardíaco

Toda a fotografia é acima de tudo o signo de um

fulminante dentro do táxi a caminho de sua casa.

investimento

No seu enterro, sobre seu caixão estava a bandeira

mensagem, a função precípua do discurso

vermelha, a foice, o martelo e o hino "A

fotográfico é reforçar a transparência do meio,

Internacional".

porém o sentido da fotografia como qualquer outra

Toda essa experiência fez de suas chapas de Tina Modotti um reflexo de sua relação com a cultura mexicana e ao mesmo tempo uma representação do desenvolvimento de seus posicionamentos políticos. Ao imergir no cenário vanguardista mexicano, ao sintonizar-se com a cultura e questões políticas, criou um arquivo fotográfico do México pós-revolução

essencial

ao

movimento

vanguardista1, que, entre outros fatores, promoveu a consciência dos ideais revolucionários mexicanos através de suas fotografias de grande sensibilidade

de

alguém

para

enviar

uma

entidade, está inevitavelmente sujeito a uma definição cultural. Todo este contexto nos leva, entre outras possíveis abordagens, a possibilidade de pensar a fotografia

no

campo

pedagogia

do

comportamento e da aparência, no que a fotografia comporta um grande potencial de capacidade comunicativa de conhecimento social, de modelos performativos para a cidadania, ou seja, o papel político das imagens. São nestas áreas de atuação que se instituem as contendas simbólicas como contendas sociais. “Conforme adverte Georges

e motivação política.

Ballandier, ‘o poder só se realiza e se conserva pela produção de imagens, pela manipulação de

Fotografia, arte e política

símbolos’, pois, simplesmente pela força, sua

“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, produto emblemático nos estudos da

existência seria sempre ameaçada”. É, portanto impossível pensar a fotografia fora do

do

ato que a faz ser, é preciso pensa-la dentro de suas

rompimento do valor cultural e do objeto artístico

circunstâncias, dentro do jogo que a anima

pelas imagens técnicas, dentre essas o cinema e a

incluindo aí o seu percurso para além do ato, mas

fotografia,

assinala

que

o

fenômeno

fotografia tem como efeito o rompimento da aura, assim o valor artístico, ao ser aproximado do público por meio de sua reprodutibilidade, deixa de ser fruto de um culto e passa a ser uma experiência política, ou seja, segundo seu autor Walter Benjamim, sugeria a politização da arte,

1

Chamamos de Vanguardas Europeias o conjunto de tendências artísticas – em sua maioria provenientes de Paris, então centro cultural da Europa – que provocou ruptura com a tradição cultural do século XIX. As correntes de vanguarda surgiram antes, durante e depois da Primeira Guerra Mundial, introduzindo uma estética marcada pela experimentação e pela subjetividade que influenciaria fortemente diversas

também para sua recepção e contemplação, portanto a objetividade do homem presente (na imagem e em sua confecção) suplanta para a subjetividade do homem não totalmente ausente, mas em processo, sujeito presente em sua representação.

manifestações artísticas em todo o mundo. Apud: http://portugues.uol.com.br/literatura/vanguardaseuropeias. html 2 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985b. p. 165-196. v. 1.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 169 A partir destas ideias podemos ver a produção de imagens não apenas no ato fotográfico, mas no seu feixe de relações, trazer a discussão para o olhar do observador que vê não com os olhos mas com o pensamento.

Fotografia

é

pensamento,

experimento no qual existe a realidade e ao mesmo tempo não, a fotografia cria um evento singular, a experiência visual que se consubstancializa em uma forma de conceber e trazer o mundo através de um equipamento. fotógrafo e o fotografado, não é apenas uma ferramenta do usuário é para além, uma criadora de comunhão entre as pessoas, não uma mera produtora de imagens, mas uma agenciadora de relações sociais. A fotografia é “animada”, existe na relação com o espectador, tem vida própria, um micro-contexto que se explica apenas nela e em sua relação com o todo daí a necessidade teórica de se discutir o ponto da autoria fotográfica, do realismo fotográfico e a ação de se referenciar a historicidade da experiência que produz a fotografia. Assim, determinada fotografia de Tina Modotti ou série delas possui valor histórico seja pelas potencialidades técnicas e valores estéticos no

Percebe-se na obra de Modotti a clara tentativa de equilibrar a dicotomia entre política e estética. A nosso ver, ela consegue, suas imagens combinam com elegância, as duas, e Parada dos Trabalhadores é exemplo dessa admirável síntese. A foto dos camponeses foi tirada de um ponto de observação elevado durante a parada de 1º de maio de 1926. Naquele período de turbulências e agitação política o Dia do Trabalho tinha valor especial no

Equipamento este, a câmera, mediadora entre o

utilizados

“Parada dos Trabalhadores”, a foto.

registrar

imagens,

seja

pela

competência de atender às demandas visuais do circuito social constituídos por diversas instâncias no espaço público no qual é/são concebida(s).

México na década de 1920, por reverenciar os direitos dos trabalhadores e exaltar os militantes mortos como resultado da Revolta de Haymarket em Chicago de 1886.3 Parada dos Trabalhadores foi publicada na edição de agosto-setembro de

Mexican Folkways, uma revista importante que tinha por hábito exibir a obra de Modotti. Os Chapéus tremidos (Alguns dos sombreiros dos camponeses na parada de 1º de maio estão tremidos) evocam um efeito de movimento, Madotti retardou a velocidade do obturador para capturar a ação em fluxo e deixar evidente que o enorme grupo de trabalhadores está se movendo, marchando em frente. Ela opta também por não mostrar o rosto dos operários. Todos são vistos por trás, usando chapéus idênticos, sugerindo uma condição de unidade. Na efígie a individualidade inexiste, são os trabalhadores na coletividade lutando por seus direitos. Os sombreiros de palha que predominam a

Para exemplificar escolhemos a talvez mais

fotografia são definitivamente mexicanos as abas

emblemática e famosa foto realizada por Modotti:

largas não deixam dúvidas. Na figura, a fotógrafa

Parada dos Trabalhadores.

escolhe destacar um símbolo típico da cultura e da tradição mexicana, cuja preservação era uma

3

A Revolta de Haymarket, também conhecida como o Massacre de Haymarket, aconteceu no dia 4 de maio em 1886 na cidade de Chicago, Illinois, e é considerada uma das origens

das comemorações internacionais do "1º de Maio", o dia do trabalhador.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 170 grande preocupação da maior parte dos artistas de

enorme

vanguarda.

convicções de mundo, de relações humanas e de

Em “Parada dos Trabalhadores”, ao focalizar o

sensibilidade

e

objetivando

suas

luta.

grupo, Madotti revela sua sensibilidade política, transcende os limites da fotografia, atribuí a ela

Parada dos Trabalhadores, 1926. Gelatina/prata. 21,3 x 17 cm. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 171

Manifesto "Sobre a fotografia" de Tina Modotti: “Cada vez que se usan las palabras arte o artista

ocultar la esencia fotográfica de la obra sobreponiendo

trucos

y

falsificaciones.

La

con relación a mis trabajos fotográficos, noto una

fotografía, porque sólo puede ser realizada sobre el

sensación desagradable, debido sin duda al mal

presente, y sobre lo que existe objetivamente

empleo que se hace de tales términos. Me

delante de la cámara, se afirma como el medio más

considero una fotógrafa, nada más. Si mis

incisivo para registrar la vida real en cada una de sus

fotografías se diferencian de las que generalmente

manifestaciones. De ahí su valor documental. Si a

se hacen, se debe a que no trato de producir arte,

esto añadimos sensibilidad y conocimiento de los

sino fotografías honestas, sin recurrir a trucos ni

temas, junto a una idea clara del lugar que se ocupa

artificios; mientras la mayoría de los fotógrafos

en el desarrollo histórico, el resultado será digno,

continúan buscando efectos artísticos o la imitación

creo, de ocupar un sitio en la producción social, a la

de otras expresiones plásticas. Lo cual produce un

que todos debemos contribuir.”

efecto híbrido, que no permite distinguir en la obra su característica más significativa: su calidad fotográfica. Se ha discutido mucho en los últimos años si la fotografía debe o no ser considera obra artística digna de compararse con las otras artes plásticas. Existen divergencias entre aquellos que la consideran un medio de expresión como los demás y los miopes que miran este siglo XX con los ojos del siglo XVII; siendo incapaces de distinguir los aspectos más importantes de nuestra civilización tecnológica. Pero a los que usamos la cámara como instrumento del oficio, como un pintor utiliza sus pinceles, no nos interesan las opiniones contrarias, porque gozamos de la aprobación de cuantos reconocen las múltiples funciones de la fotografía y su directa elocuencia para fijar y registrar la época actual. Por eso no es indispensable saber si la fotografía es un arte o no. Lo que cuenta es distinguir entre buena y mala fotografía. Buena es aquella que acepta los límites de la técnica fotográfica y aprovecha las posibilidades y características que el medio ofrece. Mala es aquella fotografía realizada con complejo de inferioridad, no reconociendo el valor específico del medio y recurriendo a todo tipo de imitaciones. Estas obras dan la impresión de que el autor casi tiene vergüenza de fotografiar la realidad, e intenta

Em homenagem a ela, um poema de Pablo Neruda: “Tina Modotti, irmã, você não dorme, não, não dorme talvez o seu coração ouça crescer a rosa de ontem, a última rosa de ontem, a nova rosa. Descanse docemente, irmã. A nova rosa é sua, a nova terra é sua: você vestiu um vestido novo, de semente profunda e seu silencio suave se enche de raízes. Você não dormirá em vão. Seu doce nome é puro, pura é sua vida frágil: de abelha, sombra, fogo, neve, silencio, espuma, de aço, linha, pólen, construiu-se sua férrea, sua delicada estrutura. O chacal, diante dessa joia que é seu corpo adormecido, ainda levanta a pena, sangrenta ao par de sua alma, como se você, irmã, pudesse levantar-se, sorrindo, acima do lamaçal. Vou levar você à minha pátria para que não a toquem, à minha pátria de neve, para que sua pureza não seja alcançada pelo assassino, pelo chacal, pelo vendido: lá você estará tranquila. Você ouve um passo, um passo cheio de passos, algo de grande, desde as estepes, desde o Don, desde o frio? Você ouve um passo lime, de soldado na neve? Irmã, são seus passos. Algum dia eles passarão por seu túmulo pequeno, antes de as rosas de ontem murcharem; passarão para ver os de um tempo, amanhã, lá onde arde seu silêncio. Um mundo marchou ao lugar onde você ia, irmã. As canções de sua boca avançam a cada dia, na boca do povo glorioso que você amava. Seu coração era valente. Nas velhas cozinhas de sua pátria, nas estradas poeirentas, algo se diz, algo passa, algo volta à chama de seu povo dourado, algo desperta-se e canta. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 172 É sua gente, irmã: nós que hoje pronunciamos seu nome nós que de toda a parte, da água e da terra, com seu nome, outros nomes silenciamos e pronunciamos. Porque o fogo não morre.” (Pablo Neruda)

Internet: http://lounge.obviousmag.org/bienvenida/2015/01/so b-as-lentes-de-tina-modotti.html (Consultado em 12-09-2017) http://anovademocracia.com.br/no-77/3428-ainapagavel-flama-revolucionaria-de-tina-modotti (Consultado em 12-09-2017)

Fernando Gralha é Mestre em História pela UFJF, Doutorando em História pela UNIRIO, e editor coordenador da Gnarus Revista de História.

Referências: AVANCINI, Atílio. A imagem fotográfica do cotidiano: significado e informação no jornalismo. In Brazilian Journalism Research, vol. 7, nº1, p. 50-66, 2011. Disponível em http://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/view/285/267 (acessado em agosto de 2016). ARGENTERI, Letizia. 2003. Tina Modotti: Between art & revolution New Haven: Yale University Press. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas.

Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense,

1985b. p. 165-196. v. 1. AZOULAY, Ariella. "The Civil Contract of Photography". In: The Civil Contract of Photography. Cambridge: MIT Press, 2008. BURGIN, Victor. "Looking at Photographs". In: BURGIN, Victor. Thinking Photography. Londres: MacMillan Press, 1982. CAMPANY,David / HACKING,Juliet. Tudo Sobre Fotografia. Sextante / Gmt EDWARDS, Elizabeth; HART, Janice. "Introduction: photographs as objects". In: Photographs Objects Histories. New York: Routledge, 2004. HARIMAN, Robert; LUCAITES, John Louis. "Public Culture Icons and Iconoclasts". In: No Caption Needed. Chicago: University of Chicago Press, 2007. HOOKS, Margaret, Tina Modotti, Photographer and Revolutionary, Harper Collins, London 1993 KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 3ª ed. São Paulo, Ateliê Editorial, 1999. ____________________. Fotografia & História, 2ª ed. rev. São Paulo. Ateliê Editorial, 2001. LASTRA, James. "From the captured moment to the cinematic Image". In: ANDREW, Dudley (ed.) The Image in Dispute. Austin: University of Texas Press, 1997. PINNEY, Christopher. "Notes from the surface of the

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Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 173

Coluna:

JOE SACCO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A REPORTAGEM EM QUADRINHOS Por Renato Lopes "Nas histórias em quadrinhos, contamos com a repetição das imagens para criar a atmosfera. O repórter-fotográfico está sempre atrás da boa foto - ele procura por um instante. Mas eu estou em busca de uma época".

D

esde o movimento conhecido como

sobre temas já consagrados. Também tornou-se

Escola dos Annales1, passando pela Nova

muito comum a criação de novos campos de

História2 e com a implementação dos

pesquisa justamente em decorrência do acréscimo

Estudos Culturais na década de 80, muitas foram as

dessas novas demandas, frutos direto da mudança

novas aberturas teóricas que permitiram ao

da forma como se interroga o passado e o também

historiador incorporar novas metodologias e fontes

o tempo presente. Na célebre expressão era “Clio

de pesquisa ao seu trabalho. A cada etapa dessa

despedaçada”. Para alguns uma lufada de

revolução

renovação, para outros um martírio incontestável.

a

historiografia

era

severamente

revolvida e não demoravam a surgir novas abordagens, novas perspectivas, novos estudos 1 Para saber mais sobre a história dos Annales recomendamos a

leitura de BURKE, Peter. A Revolução Francesa em historiografia: a Escola dos Annales. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991

2

Para o melhor estudo das novas abordagens históricas, indicamos LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (orgs). História: novas abordagens. Rio de Janeiro, F.Alves, 1976

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 174

Os estatutos da História também passaram por consideráveis

mudanças.

cientificista/positivista,

um

projeto

uma

miríade

determinadas informações, testemunhos, discursos.

de

A informação, ou na fonte que traz essa informação,

atribuições frutos da mescla da História com outros

está impregnada de discursos, ela não é isente ou

campos

neutra, ou como nos diz Le Goff, a fonte não é

de

a

De

de um produto humano que carrega em si

conhecimento,

sociologia,

antropologia, filosofia, psicologia, o historiador se

“inócua”.

faz um pesquisador munido dos mais variados

Apreender o ponto de intersecção onde História

arcabouços teóricos para interrogar acerca de um

e informação se cruzam faz-se fundamental para

passado, seja ele distante ou recente. Tão

entender o tema deste breve artigo, por tratar de

importante quanto a pergunta se torna o saber

alguém que justamente operou nesse entre-

como perguntar.

campos e que acabou por constituir um novo

O acesso a informação acaba também por criar

campo dentro do ramo dos quadrinhos, a

não só a diversidade de conteúdos, como também

reportagem em quadrinhos, o repórter fotográfico

a forma de expressa-los. Os saberes via de regra

Joe Sacco.

variam em função das informações. Ao passo que o

Nascido na Ilha de Malta Joe Sacco é famoso

mundo passou por uma massificação da transmissão

pelas suas reportagens em forma de quadrinhos,

e consumo de informações em fins dos anos 80, e

que retratam a vida e a política em áreas de

vive esse processo acentuadamente até os dias de

conflito, como Palestina, Bósnia e Servia. Famoso

hoje, processos esses que afetam diretamente a

também por sua militância em torno da causa

forma como nos comunicamos e como entendemos

Palestina,

o mundo e as culturas, a História não saiu “ilesa”

desmistifica muitas informações relacionadas as

disso. A forma como as informações são produzidas,

zonas de conflito, explora suas causas históricas, e

distribuídas, percebidas, analisadas acabou por

tece uma rede de memórias a partir dos relatos, das

promover também uma revolução documental no

visões e lembranças daqueles que vivem e

cerne das sociedades informatizadas. A informação,

trabalham nesses locais.

ou aquilo que transmite a informação, também

Sacco,

através

de

seu

trabalho,

Joe Sacco pode ser enquadrado na categoria de

fonte

“testemunha ocular”, como definida por Peter

documental, a partir do momento em que se trata

Burke (BURKE, 2004, p. 12): alguém que presenciou

pode

ser

contemplada

como

uma

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 175 e registrou in loco determinado acontecimento, e

registro, alguém editou e redigiu o que irá ao ar ou

fez do uso da imagem uma forma de problematizar

será levado as bancas. Se esse processo é permeado

o conhecimento histórico. Ressaltando o fato que

de escolhas conscientes e inconscientes, que

nem mesmo sendo a testemunha ocular faz do seu

cunham os conceitos mercadológicos da noticia

registro uma fonte “pura”, pois quem a registra e a

enquanto um espetáculo, porque então não se criar

testemunha não é alguém isento ou desprovido de

novas vias, novas formas de trazer a noticia partir

subjetividades. Logo, a informação, no caso de

daquilo que está a margem dos consensos

Sacco jornalística, e o próprio documento, não

socialmente erigidos? Afinal o que não faltam são

falam nenhuma linguagem objetiva per si.

circunstâncias

Entender essa metodologia do trabalho de Sacco nos leva novamente a questão da massificação das

capazes

de

estabelecer

uma

contrapartida para o emprego outras formas e linguagens.

informações enquanto fontes e documentos. Pois

As redes sociais atualmente (o trabalho de Joe

ao verter suas reportagens para os quadrinhos,

Sacco é muito anterior a sua implementação),

Sacco acaba por gerar uma “divergência teórica”,

trouxeram uma lufada de renovação na forma como

frontalmente com o jornalismo e tangencialmente

se vincula e se percebe a noticia. E realmente as

com a História. Entender as nuanças desse conflito

mídias alternativas vieram para ficar. Todavia nem

é entender um pouco a essência do seu trabalho,

sempre a quantidade é sinônimo de qualidade. A

bem como a eficácia das problemáticas que

melhor noticia acaba sendo associada a sua

levanta.

capacidade de mobilizar likes. Em um mundo onde

O confronto de Sacco com o jornalismo

qualquer um pode produzir conteúdos é mais do

tradicional parte da própria proposta desse ultimo

que normal que a noticia seja extremamente volátil.

em se colocar como uma fonte de informações

Quando pensamos nessas duas dinâmicas,

objetiva e imparcial. Jornais impressos cada vez

critérios mercadológicos dos conglomerados de

mais sóbrios em textos e abundantes em imagens

mídia, e volatilidade da noticia nas redes sociais,

avulsas e apresentadores de telejornal, de boa

podemos inferir o quanto Joe Sacco foi um

aparência e voz polida, transmitindo noticias de

visionário em seu trabalho, operando no vácuo que

forma cada vez mais monolítica, obedecem antes

começou a existir entre essas duas vertentes. Ele se

de tudo mais a um critério mercadológico do que

contrapõe a mídia tradicional ao buscar um

realmente prover o espectador de informações ou

elemento humano, subjetivo, a partir dos relatos e

análises. Isso por si só faz com que a noticia, bem

das

como seu registro, jamais seja neutra, uma vez que

consequências dos conflitos e não aparecem no

os grandes conglomerados de mídia tem um claro

horário nobre por estarem fora dos critérios

objetivo: construir consensos em torno de algum

mercadológicos que constroem os consensos da

fato ou alguém. Da foto que entra no jornal

grande mídia. Ocorre dessas mesmas histórias

impresso ou aparece em site de noticias, ao ângulo

também não são serem abarcadas por muitas das

da imagem que será exibida no telejornal em

mídias alternativas, justamente por demandarem

horário nobre, tudo isso passou por uma filtragem,

tempo e cuidado para serem entendidas e

uma seleção realizada por alguém que não

assimiladas, e nas redes sociais o que vale ainda é a

necessariamente é a mesma pessoa que fez o

capacidade de mobilização instantânea.

experiências

daqueles

que

sofrem

as

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 176 Através de suas reportagens em quadrinhos Joe

demais, e o cinema por ser demasiado rápido, e

Sacco dá voz e espaço aos “invisíveis”, é ai que

quadro a quadro ele nos monta um painel que não

reside o poder de sua obra. Enquanto foto jornalista

se limita a instantes, mas trazem consigo os brutais

que verte seus trabalhos para os quadrinhos, ela

contornos, o peso e o conteúdo de uma época.

atua em uma linha muito tênue, entre o

A imagem é um toten da cultura ocidental, que é

estritamente factual e aquilo que ocorre as

predominantemente visual. Em um turbilhão visual

margens dos grandes acontecimentos. Sem

e semiótico o processo de apuração das imagens e

deslocar sua visão das reflexões maiores sobre um

conteúdos requer cada vez mais apuro e

grande

ocupada,

aprofundamento. E apesar de ter lançado suas

conflitos étnicos na Sérvia e na Bósnia), Sacco

principais obras há cerca de 20 anos, Sacco a

também quer entender a tragédia pessoal de cada

mantém em um elevado patamar de diferenciação.

um, como fazem para sobreviver, como viviam

Em tempos de militâncias midiáticas vazias,

antes desses conflitos e onde repousam suas

produzidas ao gosto do momento, as suas

esperanças e seus temores. Ao mesmo tempo em

reportagens

que faz e trabalha esses registros, o leitor é

preenchendo uma lacuna que a grande mídia exclui

conduzido por reflexões de cunho histórico,

e que a massificação compulsória e frenética não dá

midiático e até mesmo artísticos, dado o ineditismo

conta de abarcar com o devido aprofundamento.

de seu trabalho. Seja na atmosfera claustrofóbica

Joe Sacco é testemunha ocular e questionar de

de uma Gaza em ruínas e asfixiada pelo poderoso

arraigados paradigmas, desconstrói consensos ao

exército de Israel, passando por um campo de

mesmo tempo em que explora as brechas deixadas

refugiados na Bósnia, ou uma Sarajevo em ruínas, os

pelas deficiências da construção da noticia.

acontecimento

(Palestina

em

quadrinhos

continuam

quadrinhos de Sacco fazem aquilo que a literatura

A questão tangencial da obra de Joe Sacco com a

talvez não consiga alcançar, por ser hermética

História se exemplifica na sua busca não por

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 177 noticias, mas por pensar em termos de média e

nas ruas, nos hospitais, nas escolas e nas casas dos

longa

das

refugiados, presenciando confrontos dos soldados

descontinuidades da narrativa histórica, longe da

com a população e entrevistando vítimas de

relação de causa e efeito típica dos modelos de

tortura. (relançado pela editora Conrad Editora em

pensamento linear. E somente ao fazer isso, Joe

2011)

duração,

atuando

dentro

Sacco alcança um entendimento dos fatos para além da versão dos vencedores. No interior da

Uma história de Sarajevo: A guerra como

construção de seu discurso através das reportagens

lugar de trabalho. Com sua porção de carreiristas,

em quadrinhos, o próprio autor chama a atenção

burocratas, intrigas baratas, pequenas traições e

para se cruzar fontes. Para isso ele faz igual uso de

gente disposta a tudo para manter seus cargos. E, é

jornais impressos, livros e relatórios emitidos pela

claro, aquelas pessoas empreendedoras tentando

ONU ou por outros grupos de ajuda humanitária.

extrair o máximo de lucro de cada tragédia, como é

Com esses recursos acaba assumindo a sua porção

o caso de Neven, fio condutor dessa narrativa, a

pesquisador, pois faz uso de outros objetos-fonte

personificação da guerra, destruído e a beira da

para construir seus discursos. Ao analisar as

loucura Em '”Uma História de Sarajevo'” Joe Sacco

circunstâncias e os espaços onde as histórias que

invade o mundo dos correspondentes de guerra

retrata são criadas ele acaba sabendo um pouco

para revelar como funciona a busca de noticias e

mais sobre o que é ignorando nos meios de

mostrar que ao contrário que a imprensa costuma

comunicação da mídia hegemônica, ao mesmo

veicular, a situação não melhorou muito desde a

tempo em que passa ao leitor as circunstâncias em

queda de Slobodan Milosevic. (lançado pelo

que essas noticiais e suas reportagens foram

Conrad Editora em 2005).

criadas, permitindo contrapor discursos, leituras e pontos de vista sobre um mesmo tema.

Área de Segurança – Gorazde: Entre os anos

Fonte histórica, expressão artística e discurso

de 1992 e 1995, durante a Guerra da Bósnia, a

político, a obra de Joe Sacco cobre todas essas

imprensa mundial, sempre centrada na capital

vertentes. Além de engrossar as fileiras de uma

Sarajevo, realizou uma maciça cobertura da

categoria de quadrinhos que se tornam de extrema

tragédia. Sarajevo tornou-se parte do grande

validade para o ensino de História.

espetáculo mundial. No entanto, na parte oriental do país, a população muçulmana era vítima de

Obras de Joe Sacco publicadas no Brasil 

selvagerias impostas pelas forças sérvias, que

Palestina – Edição especial: reúne os

atacavam com uma crueldade impressionante. Isso

volumes Palestina – Uma não ocupada e Palestina –

ficou oculto e desconhecido aos olhos do mundo. A

na Faixa de Gaza. Esta obra procura retratar o

ONU decidiu agir, criando as 'áreas de segurança'

drama do povo palestino em uma reportagem em

nos territórios onde se confinavam os muçulmanos.

quadrinhos. O livro funciona como um diário do

Esses locais se tornaram os mais perigosos do país,

autor durante a visita que ele fez à Palestina, onde

devido ao cerco dos sérvios da Bósnia, que

ele mostra ao leitor tudo o que acontece em sua

realizavam ataques constantes. Essa cruel realidade

volta e as conversas que teve com as pessoas da

é revelada em 'Área de Segurança - Gorazde'.

região. Durante dois meses, ele coletou histórias

(lançado pela Conrad Editora em 2005) Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 178

Notas sobre Gaza: Em novembro de 1956,

nas cidades de Khan Younis e Rafah, centenas de civis foram mortos pelo exército israelense em uma incursão militar que tinha tudo para ser uma operação rotineira de captura de guerrilheiros palestinos. Segundo um os poucos relatórios da ONU disponíveis, os soldados teriam simplesmente entrado em pânico ao deparar com uma multidão em fuga. Já de acordo com o primeiro ministro israelense, as tropas teriam entrado em confronto com rebeldes armados, muito embora não tenha ocorrido uma única baixa entre suas fileiras. Em Notas sobre Gaza, Joe Sacco mergulha nos escombros de um conflito que parece não ter fim para reconstituir alguns dos eventos mais importantes para a escalada de violência em que se transformou a relação entre israelenses e palestinos

(lançado pela selo Quadrinhos na Cia, da editora Companhia das Letras, em 2010). Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestrando em História pela Unirio, pesquisa Cinema na América Latina e colunista especialista em quadrinhos da Gnarus Revista de História.

Bibliografia: Peter. A Revolução Francesa em historiografia: a Escola dos Annales. São Paulo:

BURKE,

Editora da Universidade Estadual Paulista, 1991. _______________. Testemunha Ocular: História e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004 LE GOFF, Jacques, NORA, Pierre (orgs). História: novas abordagens. Rio de Janeiro, F.Alves, 1976.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 179

Ensaio

DIÁLOGO ENTRE AS DUAS CULTURAS Por: Adílio Jorge Marques

E

m um mundo um tanto quanto conturbado,

apaixonam pela proclamação do conhecimento

confesso que ainda sou profundamente

humano ao longo do tempo.

crente na capacidade transformadora do

ser humano, principalmente por causa daquela que considero a mãe de todos os saberes, a Filosofia. Claro é que abracei, também, outra musa, tão importante para mim quanto a primeira. No caso, lembro de Urânia, representante da Astronomia e para muitos das demais ciências exatas que se seguiram, pois, enquanto símbolo, tal musa é coroada de estrelas e, com as mãos, segura um globo celeste que parece fazer medir. Outras vezes, Urânia

surge

com

muitos

instrumentos

matemáticos ao redor. Assim, iniciei-me seguindo os caminhos da Física.

Brasileira de Filosofia fiz homenagem a dois eminentes Professores, a saber, Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999) e Luiz Antônio Barreto (1940-2012). Ambos tiveram na prática da e

da

Filosofia

Spencer

Maciel

de

Barros,

historiador, educador, jornalista e filósofo brasileir o, foi um teórico da educação em nosso país, defendendo, em discursos, a escola pública e atingindo repercussão com suas ideias a partir da segunda metade da década de 1950. Escola pública de qualidade, eis algo que todos os que trabalham na educação buscam. Destacou-se politicamente pela proposta contra todo e qualquer tipo de totalitarismo. Roque Spencer construiu a sua imagem de homem e de mundo debatendo-se entre os limites da natureza e a afirmação da liberdade.

Ao tomar posse na cadeira 45 da Academia

História

Roque

notada

atividade

universitária e de pesquisa. Ambos construíram estradas inspiradoras para a minha formação, pois beberam na fonte inefável da musa Clio da História. Como ela, traçaram pergaminhos de sabedoria e marcaram o caminho daqueles que também se

Na época, passávamos por momentos difíceis em nosso país, ainda uma nação em busca de afirmação cultural, intelectual e política, e no mundo, com a Guerra Fria. Como disse Roque Spencer, sabemos que não há democracia sem cidadania, e que democracia é a elevação da cidadania à sua mais alta

expressão.

hodiernamente,

Por pois

tal assim

condição

lutamos

chegaremos

na

autonomia dos indivíduos. Lutamos ainda hoje contra a barbárie e a indignação que sentimos após fatos absurdos que se repetem em nosso cotidiano. Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 180 Temos deste pensador também a firmeza das

pensamentos mostram bem o que um amante da

convicções, pois isto pressupõe acreditar no poder

Filosofia pode sentir, mesmo estudando outras

das ideias que, antes de ser um empecilho, devem

ciências:

concorrer para melhorar o convívio humano. Disso tirei, também, uma lição para a vida: a prática da dialógica, do discurso da liberdade de saberes e de pensar que permite aceitar, por exemplo, que um

“... a recordação de Heráclito é a minha recordação do filósofo de Éfeso, estreitamente ligada ao fim de minha adolescência, à minha formação e à definição de minha imago mundi, que envolve também – e naturalmente – uma imago hominis”.

físico possa ser também um historiador, e vice-

Roque Spencer estava também influenciado pelo

versa, claro. E eis aí o meu caso. Grandes mentes da

filósofo alemão Max Scheler, conhecido por seu

nossa história mostram que a liberdade de ideias

trabalho

não faz de um estudioso das muitas tradições um

ética e antropologia filosófica. Da mesma forma a

profissional pior do que aqueles que optaram,

alma de Roque Spencer, mesmo ainda jovem, foi

também livremente, pelo aprofundamento em um

tocada pela eterna discussão filosófica entre

único saber.

Parmênides e Heráclito, pré-socráticos que nos

sobre fenomenologia,

Uma passagem simbólica dessa “dualidade” entre

legaram duas formas diferentes de compreender e

ciências exatas e ciências humanas, triste corrente

resolver “o problema da posição do homem no

de oposição entre ideias que atravessa o oceano

cosmos”. Heráclito propôs para a eternidade do

acadêmico, está em um relato do próprio Roque

mundo conhecido que não entramos no mesmo rio

Spencer na sua obra “Razão e Racionalidade”. Ele

duas vezes. Tudo muda e se transforma.

descreve que nos idos de 1945, perto do final da

Parmênides, ao contrário, diz que o ser é unidade e

Segunda Guerra Mundial, com 18 anos de idade,

imobilidade e que a mutação não passa de

fazia o último ano do antigo curso clássico, antes de

aparência, propondo a permanência do ser na

entrar para a o curso de Filosofia, no qual viria a

criação.

graduar-se Bacharel pela Faculdade de Filosofia,

Movimento ou permanência? Questão de escolha

Ciências e Letras da Universidade de São Paulo

ou de convivência filosófica? Devemos mesmo

(USP). Spencer tinha compromisso interior com

escolher ciências exatas ou ciências humanas?

várias disciplinas, para muitos um excesso de rigor,

Voltemos...

contraposição ao nosso atual momento de quase total desleixo institucional para com a boa educação e a cultura. Assim, Spencer estava na época a debruçar-se sobre várias disciplinas: Matemática, Física, Química, Biologia, História, Geografia, Grego, Latim, e ainda estudava ardentemente a Filosofia. Havia de fazer um trabalho para o final do curso e, influenciado pelos horrores

da

Grande

Guerra

e

pelo

existencialismo, decidiu fazê-lo sobre a angústia. Tendo como principal referência o pensamento de Heráclito, importante filósofo pré-socrático, seus

Spencer dedicou praticamente toda sua vida à atividade educativa, algo marcante para a minha trajetória.

Sua

preocupação

pedagógica

ultrapassava as paredes da universidade. Através dos jornais e dos livros propôs-se a educar toda a sociedade brasileira, defensor da vontade de transmitir o conhecimento adquirido para todos. Este é outro ponto afeito à minha pessoa. Penso que a divulgação histórica, filosófica e científica deva ser promovida com ações as mais diversas, visando atingir os diferentes públicos, ainda mais, repito, Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 181 em um país como o nosso, carente de uma

verdadeiro

educação de qualidade. Diversificar e espargir o

dogmatismos, poderia ser dispensado para todos.

saber, um vetor possível de transformar o ensino de

Uma nova escola poderia surgir, pois ciência,

ciências e a própria sociedade. Formar divulgadores

cultura e intelectualidade davam as mãos para a

é

ambiente

configuração de um novo corpo filosófico.

acadêmico, pois o preparo de uma nova linguagem

Comenius pensava a educação como instrumento

permite melhor compreensão, também para o

de salvação das almas pecadoras e decaídas, e

palestrante, do assunto que será explorado

também pensou na pacificação política da

adequadamente. Quanto mais culto e diversificado

sociedade convulsionada pelo conflito entre

o interlocutor, mais qualidade terá o diálogo com o

católicos e protestantes.

também

fundamental

para

o

público. Um

exemplo

saber,

não

condicionado

por

Remeto-me agora à história do acadêmico Luiz dessa

importância

dada

à

Antonio Barreto, anterior ocupante da cadeira 45

divulgação é a passagem do Sputinik 1 nos céus dos

na ABF. Este eminente sergipano também possuiu

Estados Unidos, após o seu lançamento em 4 de

formação múltipla e bem ampla. Trago, neste

outubro de 1957. O primeiro satélite artificial

momento, as palavras do historiador e conterrâneo

provocou verdadeira comoção naqueles que viam,

Jorge Carvalho do Nascimento: “Olhar para o

pela primeira vez, um objeto construído pelo

legado de Barreto é ficar diante de um amplo

homem capaz de realizar uma órbita controlada e

panorama no qual produção intelectual e ação

calculada antecipadamente. Esse fato e a guerra

cultural nunca se dissociam, posto que uma fosse

fria produziram forte transformação no ensino de

movida pela outra, ao mesmo tempo em que

Ciências nos EUA, capaz de influenciar milhares de

também a impulsiona, demonstrando o quanto ele

jovens a buscar uma nova formação científica.

foi capaz de correlacionar a reflexão com a

Temos como resultado um novo país, uma nova

realidade que viveu. Pesquisou práticas de vida dos

economia. Eu mesmo tenho como a mais antiga

indivíduos, adequando sempre teoria e prática”.

lembrança de vida um programa na TV sobre a descida do homem na Lua.

Luiz Barreto também foi personagem muito caro a este que vos fala, pois trabalhou e promoveu

Cito, então, Iohannes Amos Comenius, professor,

atividades nas áreas as mais diversas ao longo de

cientista e escritor do século XVII, considerado o

sua vida: educação, cultura, literatura e folclore,

fundador da Didática Moderna, quando escreveu a

além de escritor, biógrafo, jornalista, historiador e

obra “Didática Magna”, influenciado que foi pelo

advogado. Como jornalista, exerceu atividades de

Renascimento. Período no qual surge a ideia de que

repórter,

a consciência humana não deveria reconhecer

secretário de redação nos mais diversos periódicos

outra autoridade que as leis da razão e da natureza.

do Brasil e do mundo. Atuou em muitos cargos de

Comenius comungava, assim, com figuras como

instituições públicas e privadas, entre os quais o de

Galileu, Copérnico, Francis Bacon, para os quais a

Assessor Cultural do Instituto Nacional do Livro

busca da verdade implicava na dúvida, na

(INL), além de trabalhar em editoras, fundações e

experimentação, e não mais na crença ou apenas na

galerias de arte. Na política, foi Secretário da

tradição que consagrava a autoridade de poucos. O

Educação e Cultura de Aracaju; Diretor do Instituto

colunista,

redator, diagramador

e

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 182 de Filosofia Luso-Brasileira (Portugal); Diretor do

Vandelli, nascido em Coimbra em 1784 e que foi

Instituto Tobias Barreto. Ocupante de Cadeira na

professor de nosso Imperador D. Pedro II, assim

Academia Sergipana de Letras, membro e orador

como de sua família, e genro de José Bonifácio de

do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.

A. e Silva. Foi um momento no qual busquei

Especialista nas obras do filósofo, poeta, e jurista

desmentir a passagem célebre de Eça de Queiroz na

oitocentista Tobias Barreto, Luiz Antonio Barreto

sua obra “Notas Contemporâneas”: “Com efeito,

foi autor de diversos trabalhos sobre aquele ilustre

nós não trazemos para a Europa complicações

sergipano. Certamente, pelo legado que lhe é

importunas”. A vida do naturalista Alexandre

próprio, terá seu nome registrado na memória das

Vandelli, abandonada à margem da linha da

gerações subsequentes como uma das mais

história, deveria incomodar as mentes de sua

renomadas personalidades contemporâneas.

época, e mesmo as dos séculos seguintes.

Desta feita, Luiz Barreto refletiu para o povo

Assim, o entendimento e a influência do

aquilo que teve oportunidade de aprender, ou

pensamento ilustrado na sociedade, nas Academias

apreender, deste mundo fenomênico. Afirmo que a

e na imprensa do Brasil e de Portugal foram o meu

divulgação da Ciência e da Filosofia podem, então,

foco, dentro do recorte cronológico de meados do

ser arma eficaz contra o senso comum e os dogmas

século XVIII até o ano de 1862. Localizar a

cristalizadores que toda sociedade teima, em maior

historiografia desse período foi, e ainda é, motivo

ou menor grau, trazer consigo. Seja com pré-

de grande alegria e orgulho para mim. Tema que

conceitos, ou pós-conceitos, a mentira será

deve ser continuamente melhor construído a partir

superada pela verdade maior, encaminhada pela

do olhar luso-brasileiro e não apenas pelo olhar de

fronésis prevista pelo sábio de Estagira, Aristóteles,

outros centros europeus de historiografia. E tudo

a despeito do excessivo tomismo que assolou

isso aqui narrado não poderia deixar de ser caro à

muitas mentes ao longo dos tempos.

minha pessoa, pois sou de família – e com a

Por tudo o que expus até este momento, mostro de maneira simplificada como foi a minha própria ânsia de crescimento pessoal pelos caminhos das Ciências, tanto as humanas quanto as exatas. Por sinal, em 2007, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, iniciei o meu Doutoramento em História e Epistemologia das Ciências, com ênfase no mundo luso-brasileiro. O objetivo foi o de estudar a vida e a obra de um naturalista “esquecido” pela historiografia dos dois lados do Atlântico. Concluí com sucesso a minha pesquisa em 2009, com um trabalho - transformado em livro – que focou no

cidadania – portuguesa. Mantenho, ainda hoje, a minha pesquisa na linha de História social das ideias e das relações entre alguns personagens e a sociedade luso-brasileira, tais como José Bonifácio de Andrada e Silva e o próprio Bartolomeu de Gusmão. Meus estudos seguem no sentido de perceber como as mentes da ciência impregnaram os discursos políticos e os trabalhos na educação brasileira. Exatamente como fazia Luiz Barreto com a história de Sergipe e do Brasil, e na discussão sobre a evolução do pensamento, conforme o ideário de Roque Spencer.

aprofundamento e descoberta de textos científicos

Busquei, ao longo de minha experiência

perdidos desde o século XIX pertencentes ao

acadêmica, articular a análise e compreensão dos

naturalista

personagens históricos com os processos de

luso-brasileiro

Alexandre

António

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 183 construção das representações na História e

movimento deveria começar também na infância,

Filosofia das Ciências, buscando estabelecer

lembro ainda de Jean Jacques Rousseau. No século

relação entre identidades e memórias do mundo

seguinte, Rousseau, em sua obra “Emílio”, ou “Da

luso-brasileiro. Entendo que canalizando os meus

Educação”, concordou com Comenius em algo

esforços de pesquisa para este objeto terei a

fundamental: não interessa para a educação um

possibilidade de produzir trabalhos sempre de

aluno pleno de conhecimentos enciclopédicos, mas

melhor

contribuir,

aquele que adquiriu um desenvolvimento metódico

significativamente, tanto para com a sociedade,

da sua própria inteligência. Lembremos que a

quanto para esta Academia.

palavra grega “método” possui em si mesma a

qualidade

e

poderei

Enquanto pesquisador, preocupado com a divulgação das Ciências em geral, acredito também,

firmemente,

na

sua

importância

formadora de novos cientistas e intelectuais. Por isso, penso que o cuidado com a linguagem, seja ela escrita ou falada, deva ser primordial. Sei que a responsabilidade social é inerente a cada cidadão, e para aqueles que formam os jovens de um país que precisa encontrar a sua identidade real. Devemos ter o prazer de incentivar o esforço intelectual e conquistar novos talentos para a nossa nação.

Muitos

jovens,

se

eles

tiverem

a

oportunidade devida, se puderem passar pelo seu “momento Sputinik” em suas vidas, e com o devido acesso

às

livros,

qual o homem nasce naturalmente bom, o filósofo suíço nos diz que é preciso partir dos instintos naturais da criança/aluno para desenvolvê-los, vindo a propor algo marcante para todas as épocas: a proposta da “educação negativa”. Nesta, o papel do Professor ou orientador seria o de preservar a criança, pois ela mesma encontraria as suas aptidões. Tal ideia rousseauniana viria a substituir a “educação positiva” mais comum ainda hoje, ou seja,

aquela

que

forma

a

inteligência

prematuramente e impensadamente com o ensino sistemático de informações externas. Jean Jacques Rousseau beneficiou-se de uma

documentários – poderão despertar para o mundo

atmosfera que favorecia o pensamento racional e

fascinante das Ciências em geral. Lembro

tratou a escola como mecanismo por meio do qual

novamente: Ciências exatas ou humanas, ambas

seria viável o seu famoso contrato social. A

tratadas aqui sem distinções exclusivistas.

“solidariedade orgânica” (termo cunhado pelo

retomo

forma, mantendo o seu pensamento, segundo o

palestras,

Também

informações

concepção de “encontrar um caminho”. Dessa

Comenius,

um

pensador

sintonizado com a modernidade ao aconselhar que as crianças e os jovens deveriam aprender a investigar com método. Para Comenius, todo mestre deveria incentivar as crianças – e estamos

filósofo de Genebra para descrever o tipo de relação social próprio da sociedade moderna capitalista) tornar-se-ia realidade somente se os indivíduos passassem pelo processo de formação e de socialização que começava na infância.

falando de século XVII – a chegar às suas próprias

Tudo o que acabei de descrever, até este

conclusões, partindo da observação direta da

momento, mostra a minha carreira interpenetrada

natureza e menos dos livros.

pelos mais diversos interesses, pois vejo a formação

Mantendo a perspectiva de que o homem necessita ser formado em sua cultura, e que este

humana como um cristal multifacetado que não pode se permitir limitar devido a interesses de uma Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 184 época ou de ideais políticos. Defendo a liberdade

enquanto representantes da Academia no âmbito

de trabalho em campos diversos, explorando a

das Ciências e da tecnologia, torna-se mais do que

diversidade de nossa alma, de nossa formação.

nunca fundamental para a semeadura sólida do

Penso como Rousseau também quando ele nos

saber.

apresenta, citando outra passagem de sua obra “Emílio”, que a educação deve transformar o ser egoísta do mundo em um ser que saiba viver coletivamente.

Encerro com a lembrança de uma publicação de 1959, o ensaio “As duas culturas e uma segunda leitura”. Este texto inaugurou, naquele ano, um fértil debate sobre o distanciamento progressivo

E, ainda, trago aqui as palavras de Norberto

entre as Ciências naturais e as Humanidades. No

Bobbio sobre a tolerância e a manutenção dos

entender de seu autor, o físico e romancista Charles

valores dialógicos entre os intelectuais, no prefácio

Percy

de “Itália Civile”, escrito em 1963. Diz Bobbio:

empobrecimento

“Aprendi a respeitar as idéias alheias, a deter-me

tornando-os ignorantes nas Ciências naturais ou, ao

diante do segredo de cada consciência, a

contrário, da cultura humanística. Uma assimetria

compreender antes de discutir, a discutir antes de

notável que distingue a percepção social de ambos

condenar”.

os campos. Trabalhar nessa “assimetria” notável é a

Apesar de todos os reveses de nossa nação ao longo de décadas, eu acredito ser de grande valia o contato

da

visão

dos

provoca

um

intelectuais,

minha busca acadêmica, navegando por áreas aparentemente não relacionáveis.

Adquirimos visão mais social daquilo que a Ciência

de Isaac Newton ou de Cesar Lattes (importante

e a Filosofia representam. No caso, lembro a

Físico brasileiro) tanto quanto de Machado de Assis

divulgação

a

ou de Candido Portinari? Penso que não. Todos são

interdisciplinaridade e divulgar o que a academia

muito importantes, em suas múltiplas facetas, para

gera como pesquisa. Isto é, para mim, determinante

a humanidade.

a

mundo

afastamento

Deixo aqui breve reflexão. Poderíamos prescindir

da

o

tal

“extra-acadêmico”.

para

com

Snow,

informação,

superação

de

buscando

desafios

históricos

relacionados com a cultura e a educação. Essa abertura

pode

contribuir

bastante

para o

pesquisador, na medida em que o objeto de estudo do acadêmico passa a ser observado e questionado pelas novas e originais perspectivas do público. Enquanto pesquisadores, penso ser importante que estejamos disponíveis, pacientemente, e prontos

para

compreender

o

trabalho

do

jornalismo e do público em geral, buscando uma didática quase comeniana ou rousseauniana. A presença da nossa voz nos meios de divulgação,

Faço também das minhas palavras finais o apelo formativo de Charles Snow aos educadores e estudantes de seu tempo, a década de 50 do século XX, ouvintes da palestra que deu origem ao supracitado livro “As duas culturas”: “Cultivem mentes criativas, capazes de enfrentar os desafios contemporâneos na sua geração. Trabalhem para a manutenção de um mundo mais equilibrado, permitindo, desta forma, que haja beleza e compaixão”.

Belas palavras estas que não envelhecem, e que são, para mim, a razão de ser, também, da mãe Filosofia!

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 185

Monografia

TEATRO EXPERIMENTAL DO GUAYRA: TENTATIVAS DE POPULARIZAÇÃO DO TEATRO EM CURITIBA ENTRE 1956 A 1961 Por Maybel Sulamita de Oliveira

RESUMO: A criação de um grupo teatral que pertencesse ao conhecido Teatro Guaira, localizado em Curitiba, estava na lei n.º 2.382 de 1955 que previa a organização da Fundação Teatro Guaira. Esse intento, porém, só seria realizado em 1956, em virtude da preocupação com a baixa frequência de público na cidade devido aos elevados preços dos ingressos. A criação do grupo de Teatro Experimental do Guayra, portanto, pretendia suprir a falta de frequência de espetáculos locais no pequeno auditório e atuar como um instrumento em prol da popularização do teatro. Desta maneira, a presente pesquisa tem como intento analisar a trajetória do grupo de Teatro Experimental do Guayra, elencando os princípios de sua criação propostos pela diretoria do Teatro Guaira e as práticas realizadas pelo grupo entre 1956 e 1961 em favor da popularização do teatro, buscando demonstrar afirmações e contradições dentro desses objetivos iniciais realizados em um período que apresentava elementos de desenvolvimento urbano e também de modernização da cena teatral em Curitiba.

Introdução

urbano e também de modernização da cena teatral

A

no Brasil.

presente pesquisa tem como objeto de estudo a criação do grupo de teatro

A criação de um grupo teatral que se vinculasse

Experimental do Guayra e sua trajetória

diretamente ao Teatro Guaira encontrava-se entre

nas décadas de 1950 e 1960, elencando os

os artigos da lei n.º 2.382 de 10 de maio de 1955

princípios de sua criação propostos pela diretoria

que previa a organização e estrutura da Fundação

do Teatro Guaira e as práticas realizadas pelo grupo

Teatro Guaira. Esse propósito, porém, só seria

entre 1956 e 1961 em favor da popularização do

realizado um ano depois, em decorrência da

teatro.

preocupação da diretoria do teatro com a

Busca-se

demonstrar

afirmações

e

contradições dentro dos objetivos iniciais do grupo,

frequência

que foram propostos em um período que

espetáculos; essa baixa frequência se devia

apresentava

principalmente

elementos

de

desenvolvimento

sempre pelos

baixa

de

elevados

público preços

nos dos

ingressos. Fábio Laynes, superintendente do teatro

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 186 na época, iniciou uma campanha de popularização

No que se refere ao meio teatral, há quase um

dos preços dos ingressos, a partir do slogan "teatro

consenso entre os historiadores que realizam

a preço de cinema”1, onde buscava superar

pesquisas direcionadas ao teatro e a história,

acusações feitas à diretoria do teatro de elitizar o

quanto à ocorrência de um processo de

público e dificultar o acesso do palco aos grupos

modernização do teatro brasileiro, também

locais.

iniciado na década de 1950 chegando até meados

Dessa forma, a criação do grupo de Teatro Experimental do Guayra (TEG) seria um veículo para suprir a falta de frequência de espetáculos locais no pequeno auditório e, de acordo com as palavras de Fábio Laynes, atuaria como um “instrumento em prol da popularização do teatro”2. Para a criação desse novo grupo, no início de 1956 foi realizado um convite para a Sociedade Paranaense de Teatro, fundada por Ary Fontoura, para unir seu elenco ao do grupo Clube de Teatro, dirigido por Glauco Flores de Sá Brito para juntos formarem o Teatro

de 1960. Este processo de modernização carregava grandes mudanças para o teatro em si, baseando-se em novas concepções e anseios, almejando transformações dos meios e técnicas ligadas ao fazer teatral que superassem “inexistência

do

desenvolvia

pela

uma reunião com os diretores dos dois grupos e a superintendência do Teatro Guaira para discutir e analisar o regulamento do novo conjunto teatral. Naquele momento, a criação do grupo ganhou grande destaque na imprensa e foi considerada por Ary Fontoura como “uma das perspectivas melhores que tivemos até agora”3. A afirmação de Fontoura se referia principalmente aos propósitos da fusão dos dois grupos com diferentes características e experiências e a intenção de buscar através do TEG uma aproximação do teatro que se produzia na capital ao momento de modernidade da cena

2

Programa de Comemoração do 1º ano do Teatro Experimental do Guayra. Curitiba, 1956 -1957, junho de 1957. 3 FONTOURA, Ary. Teatro. O Estado do Paraná, Curitiba, 19 maio 1956, pp.ll 4 BERNSTEIN, Ana. JUNQUEIRA, Christine. A Crítica Teatral Moderna. In. FARIA, João Roberto (org.) História do Teatro

de

se

dramaturgos

predominância do teatro ligeiro e as montagens descuidadas e apressadas4. No teatro, portanto, todo esse processo gerou, segundo a historiadora Tânia Brandão, uma obsessão por um impulso civilizatório na cena teatral brasileira. Não podemos caracterizar esse processo como um movimento de longa duração ou com parâmetros definitivamente estabelecidos. A palavra moderno, aqui, portanto, é usada e sintetiza esse período, mas é importante ressaltar que ela foi empregada posteriormente pelos historiadores para caracterizar essas mudanças no âmbito teatral brasileiro, na época havia a pretensão de apontar um futuro, romper com o passado e implantar um novo ritmo5 para os espetáculos realizados no Brasil. Esse novo ritmo começaria e alcançaria grande destaque

TEIXEIRA, Selma Suely. Teatro em Curitiba na década de 50: história e significação, UFPR, 1992, pp. 102

ausência

que

abrigassem teatros, o desinteresse do governo, a

teatral brasileira.

1

brasileiro”

brasileiros, o número escasso de edifícios que

Experimental do Guayra. Posteriormente em março de 1956 foi realizada

teatro

a ideia de

no

eixo

Rio-São

Paulo,

mas

Brasileiro: Volume II. Do Modernismo às Tendências Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013, pp. 168 5

BRANDÃO. Tânia. As companhias Teatrais Modernas. In. FARIA, João Roberto (org.) História do Teatro Brasileiro: Volume II. Do Modernismo às Tendências Contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013, pp. 82

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 187 posteriormente também se expandiria a outras

Experimental do Guayra, a presente pesquisa foi

capitais,

o

norteada pelos seguintes objetivos principais:

desenvolvimento das artes cênicas já vinha sendo

compreender como o propósito de popularização

pauta de grandes debates intelectuais e estaria

presente na criação do grupo foi buscado e

diretamente acompanhado pela história própria do

aplicado ao longo de sua trajetória; analisar como o

Teatro Guaira.

grupo suscitou debates acerca do teatro que era

como

Curitiba.

Em

Curitiba

Dentro desse contexto, a formação de um novo grupo de teatro que representasse o Teatro Guaira e consequentemente o Estado do Paraná, deveria suscitar características e interesses não só vinculadas as artes, mas também deveria ser um veículo que transmitisse a imagem de um estado moderno, que agregaria nomes de prestígio dentro

realizado no Paraná nas décadas de 1950 e 1960; buscar elementos que demonstrem como o TEG se inseriu nas discussões e intenções de modernização da cena teatral brasileira; discutir a relação entre os interesses do Governo do Estado do Paraná e as práticas do TEG; analisar o público alvo atingido pelo grupo em dois espetáculos apresentados.

do panorama artístico curitibano, a partir disso

O primeiro capítulo realiza uma discussão acerca

destacarmos que o TEG, portanto, contava com um

de fontes históricas no estudo das relações entre

grande aporte financeiro e estrutural com o

História e Teatro. Nele, pretendemos demonstrar

governo, que fornecia pauta para apresentações,

os tipos de fontes e documentos que os

salas de ensaios e também técnicos para os

historiadores que pretendem entrar no campo de

espetáculos, o que o diferenciava de outros grupos

História e Teatro podem se apoiar, quais seriam as

teatrais da cidade, vínculo esse que dava

metodologias que dariam o suporte para pesquisas

visibilidade aos interesses do Estado e a divulgação

nesse meio e quais seriam os ganhos possíveis numa

da imagem de um estado moderno e integrado a

eventual aproximação entre a História do teatro e

uma atualização cultural, dentro de um compasso

o estudo historiográfico. A relação entre Teatro e

com o mundo desenvolvido6.

História, se coloca como um norteador na produção

A imagem de um estado moderno, portanto, se construiria através de uma aposta cosmopolita intelectual baseada nos movimentos fin-de-siècle, construída por artistas e intelectuais das elites que travavam uma luta simbólica7 para adaptar seus pontos de vista tradicionais às novas situações políticas nacionais e internacionais8. Com base no estudo deste período histórico, juntamente as questões que o estudo de História e Teatro suscitam e a criação do grupo de teatro

NAPOLITANO, Marcos. Op Cit, pp. 18 CAMARGO, Geraldo Leão Veiga de. Paranismo: arte, ideologia e relações sociais no Paraná: 1853 - 1953. 2007. 213f. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de 6 7

desta pesquisa, na medida em que possibilita a percepção

de

um

recente

interesse

de

pesquisadores de História em estudar artefatos ligados ao universo teatral (textos dramatúrgicos, críticas, fotografias, programas de espetáculo) como forma de entender melhor a participação do teatro na conjunção cultural e política de um determinado contexto. Essa aproximação dos historiadores ocorreu num período em que novos objetos passaram a fazer parte do fazer histórico,

Ciencias Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduaçao em História. Defesa: Curitiba, 2007, pp. 158 8 SANTOS, Antonio César de Almeida. Memórias e cidade; depoimentos e transformação urbana de Curitiba 1930-1990. 2. ed. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, pp. 158

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 188 especialmente a partir da chamada História Cultural. No

programas e críticas teatrais como fontes históricas,

segundo

capítulo

atentamos

para

a

apresentação do contexto histórico em que o Teatro Experimental do Guayra se inseriu, visando sua formação, sua trajetória, os objetivos de popularização presentes no discurso de seus fundadores,

Antes de iniciarmos uma discussão acerca dos

bem

como

os

espetáculos

apresentados, investigando como o grupo esteve voltado para um processo de modernização do teatro em Curitiba entre os anos de 1956 e 1961, coincidindo com um processo de modernidade teatral em outras cidades do país. Já no terceiro capítulo discutimos que o público alvo e voltado para ideia central da criação do TEG de popularização do teatro, só foi efetivamente buscado a partir de uma segunda fase do grupo, inaugurada com a montagem do texto de Oduvaldo Viana Filho: Chapetuba Futebol Clube.

é necessário distinguirmos a relação entre a História do Teatro e a ligação entre o Teatro e História. O teatro como área de estudos e como campo profissional artístico há muito tempo se consolidou através de diversos teóricos, atores e pesquisadores do universo teatral que se dedicaram a escrever a própria história do teatro, tendo como foco discutir técnicas, estilos, peças, textos teatrais, vertentes, dramaturgos, etc. Nessa área há uma diversidade de títulos e autores que abordam a história do teatro mundial, a história do teatro no Brasil, as grandes teorias do teatro, entre tantos outros temas ligados a grandes companhias, períodos históricos e estilos estéticos9. Mas no que se refere à relação entre Teatro e História, podemos notar o recente interesse dos pesquisadores de História em estudar artefatos ligados ao universo teatral (textos dramatúrgicos,

1.PROGRAMAS E CRÍTICAS TEATRAIS COMO FONTES HISTÓRICAS 1.1 Fontes históricas no estudo das relações entre História e Teatro

críticas, fotografias, programas de espetáculo) como forma de entender melhor a participação do teatro na conjunção cultural e política de um determinado contexto. Essa aproximação dos

O teatro provém das mais antigas tradições, suas

historiadores ocorreu num período em que novos

diversas vertentes e linhas de interpretação estão

objetos passaram a fazer parte do fazer histórico,

disseminadas pelas mais variadas culturas ao redor

especialmente a partir da chamada História

do mundo. O teatro como arte ou como

Cultural.

instrumento de transmissão de alguma idéia ou história, jamais se limitou a apenas à cultura ocidental, ou a culturas consideradas “avançadas”, o teatro em si ultrapassa limites estruturais e também profissionais, afinal, o fazer teatral é diverso e implica inúmeras atividades amadoras, lúdicas e didáticas. 9Como

bibliografia específica para o estudo da História do Teatro podemos citar como exemplos: História Mundial do Teatro de Margot Brecht; Teatro Grego: Origem e Revolução de Junito Brandão, Histórico do gênero trágico desde o mundo grego até a época contemporânea de Ligia Costa e Maria Ritzel

A partir desses apontamos iniciais, podemos nos questionar acerca dos objetivos e intentos dos historiadores que pretendem fazer usos de artefatos do teatro como fontes históricas. Suscitando questões como: Em que tipos de fontes e documentos os historiadores que pretendem entrar nesse campo estão apoiados? Quais Remédios, Introdução às grandes teorias do Teatro de Jean Jacques Roubine, Em Busca da Brasilidade: Teatro Brasileiro na Primeira República de Claudia Braga, História do Teatro Brasileiro: um percurso de Anchieta a Nelson Rodrigues de Edwaldo Cafezeiro e Carmem Gadelha, entre tantos outros.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 189 metodologias dão suporte para pesquisas nesse

No presente trabalho, abordaremos dois tipos de

meio? Quais seriam os ganhos possíveis numa

fontes históricas referentes ao teatro e suas

eventual aproximação entre a História do teatro e a

metodologias de investigação. O primeiro tipo diz

relação com a história?

respeito a dois programas teatrais do Teatro

Segundo a historiadora Rosangela Patriota, o objetivo do historiador que se interessa por teatro é recuperar a historicidade dos documentos que podem se apresentar em diversos formatos, e através deles constituir um diálogo que permita uma maior compreensão em relação ao processo em que o mesmo estava inserido10. Entendemos esse documento então, como uma produção de uma prática coletiva, que fornece mais que informações planas, mas também abre alternativas resultantes da intenção de quem a produziu,

Experimental do Guayra, sendo um deles do primeiro aniversário do grupo de 1957 e o outro do espetáculo Chapetuba Futebol Clube apresentando em 1960. Deste tipo de fonte, trataremos no próximo tópico, observando abordagens históricas dadas a esse tipo de documento através de estudos já realizados por outros pesquisadores, como Walter Torres Lima e José Gustavo Bononi, que propõem metodologias e análises para esses documentos. Buscaremos, nessa parte, indicar e elencar as diversas informações e apontamentos históricos que o programa teatral pode suscitar.

inscrita no campo social. Nesse sentido, em relação à questão sobre os tipos de documentos que poderiam ser usados como fontes históricas dentro da pesquisa em história e teatro, a resposta é ampla, devido à pluralidade de documentação que pode ser investigada em um trabalho desse tipo. Dentro dessa

discussão

podemos

citar

um

corpo

documental composto por: documentos oficiais do Estado, como por exemplo, documentos do DOPs em geral usados por estudos a respeito do teatro e repressão durante a ditadura militar e seus desdobramentos11; imagens/fotos que compõem estudos que tratam a imagem não como uma mera ilustração, mas como documento com uma linguagem própria que é construída em um dado contexto histórico12; matérias de jornais; revistas programas; críticas sobre os espetáculos; textos

1.2 Programas Teatrais como Fontes Históricas O programa teatral como fonte histórica vem sendo, ao longo dos últimos anos, objeto de estudo de vários historiadores, dedicados a entender não apenas as informações sobre o espetáculo ao qual ele está vinculado e as informações sobre a mesmo, mas buscar compreender de que forma os grupos, as companhias privadas e públicas, os coletivos teatrais e outros conjuntos artísticos independentes se expressam sobre sua própria obra; como há uma variedade de formatos para os programas dos espetáculos (tamanho, corte, cores, número de páginas etc.); e também a grande diversidade de conteúdos presentes nos programas, que procuram elucidar o espectador-leitor a respeito de diversas questões atinentes à montagem, ao processo

teatrais entre tantos outros tipos de documentos.

PATRIOTA, Op Cit, pp. 8 Dentro desse contexto histórico, podemos citar trabalhos como: Arte e Política: O Teatro como prática de Liberdade Curitiba (1950 – 1978) de Reginaldo Cerqueira; Censura no Regime Militar e Militarização das Artes de Miliandre Garcia; 10 11

História e Teatro: Imagens e cenas do Brasil pós 1964 de Kátia

Rodrigues Paranhos. 12 PARANHOS, Kátia Rodrigues. História e Teatro: Imagens, Leituras e Cenas do Brasil Pós-1964 - doi: 10.5216/hr.v16i1.14711. História Revista, [S.l.], v. 16, n. 1, p. 259-281, jun. 2011, pp. 260

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G N A R U S | 190 criativo, ao tema trabalhado, ao autor, entre outros

obra teatral há a presença de diversos discursos

aspectos13.

provenientes dessas vozes, que se apresentam de

Há a necessidade também de destacar que as revistas programas não são uma exclusividade do

maneira

institucional,

criativa,

comercial

e

publicitária15.

teatro e estão presentes em outros tipos de

Nesse ponto, analisar esses segmentos e também

cerimônias, há também uma divisão de suas

sua materialidade nos permite entender quais

denominações encadeadas às suas finalidades.

segmentos sociais o grupo teatral está inserido, e

Dentro do teatro, encontramos programas de um

também características do mecenato que se

espetáculo, programas de estréia, programas para

interessa pelo público e suas formas de consumo.

uma

de

Esse apontamento se torna mais claro ao

comemoração, programa do espetáculo em turnê,

encontramos, em diversos programas a grande

entre outros.

presença de propagandas dos mais variados tipos

temporada

anual,

programas

A partir desses apontamentos, podemos nos

de produtos.

apoiar na definição de programa teatral/revista

Walter Lima Torres Neto, em seu artigo Programa

programa do historiador Reginaldo Cerqueira. Este

de Teatro como Documento: Questões históricas e

afirma que as revistas programas “compõem uma

metodológicas destaca a figura de Eugène Rimmel,

prática teatral configurada segundo visões de

criador de perfumes e empresário do ramo de

mundo diferentes e de relações de interesses

cosméticos. Rimmel revolucionou o uso publicitário

diversos. Organizadas em forma de jornal, revista

em 1864 dos programas ao promover a propaganda

ou mesmo encarte, as revistas programas eram

para seus perfumes de maneira muito engenhosa:

montadas com jogo de imagens e conteúdo

associou-se a diversos teatros ingleses para, na

propagandístico”.14

impressão de seus programas, aromatizá-los com as

Essas visões de mundo diferentes apontadas por Cerqueira se referem à presença de textos de diferentes pessoas participantes da mesma obra,

essências dos perfumes que tinha a intenção de lançar no mercado, segundo a moda e segundo o repertório em cartaz16.

com diferentes funções dentro da produção teatral. Como

exemplos

dessas

diferentes

Um estudo primário em que se elaborou uma

vozes,

sistematização para se efetuar uma leitura crítica

destacamos que há programas com textos do autor

dos programas de teatro foi idealizada por David

sobre a criação do texto, do diretor sobre a

Gilbert. Torres aponta como David Gilbert

construção e intenção da montagem cênica, dos

estabelece algumas definições cruciais para se

atores sobre os personagens, dos apoiadores e/ou

avançar no estudo da morfologia dos programas de

patrocinadores justificando o motivo do apoio e

teatro. A pesquisa de David Gilbert associa-se a um

também seu interesse.

corpus de programas do teatro quebequense desde

Nesse segmento, o que nos chama atenção, é que por trás dessas classificações e cargos dentro da

13

Idem, Ibidem.

SOUSA, R. C. Arte e Política: O teatro como prática de liberdade Curitiba (1950-1978), UFPR, 2010, pp. 17. 14

os anos 1930 até o final do século XX. Para demonstrar o regime editorial desses programas,

15 16

TORRES NETO, W. L. Op cit, pp.208. Idem, pp.210

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 191 Gilbert propõe três níveis de leitura referentes aos

os atores que nela estiveram e ao mesmo tempo

três campos editoriais presentes nos programas:

registra uma atividade artística e diversas relações

“O co-texto referente a um conteúdo informativo e descritivo, isto é aquilo que chama atenção do espectador para os dados factuais presentes no programa; o avant-texto apresenta um teor comemorativo e promocional fazendo apelo ao valor da obra; e o meta-texto, que reúne um conteúdo exegético no formato de comentários abalizados sobre o espetáculo”17.

que ela estabelece com outras instâncias (políticas, sociais e econômicas). Em vista disso, consideramos que esses documentos produzidos pelo teatro são fontes

históricas

importante

para

diversas

pesquisas e extrema relevância para a história cultural e suas vertentes temáticas.

O programa teatral/revista programa, portanto, pode ser considerado como um processo de

1.3 Críticas Teatrais como Fontes Históricas

reciclagem e adaptação, síntese e expansão de

Igualmente, a crítica teatral também está inserida

formatos

e

conteúdos

oriundos

de outras

na série de documentações que registram o fazer

publicações18 escritas previamente ao espetáculo

teatral. A crítica pode nos dar pistas acerca do

propriamente dito. O que também é importante

espetáculo, como: quem fez a produção, os atores

apontar, é que o programa teatral, em geral,

participantes, as intenções do diretor da obra, a

sempre sugere muito mais do que pressupõe,

recepção da obra pelo público no dia do

devido ao trabalho de composição gráfica e ao

espetáculo, mas, no entanto, mais que informações,

conjunto de textos da publicação, a identidade

a “função” da crítica teatral está associada à análise

artística do coletivo de agentes criativos e seus

do espetáculo de acordo com fundamentos

colaboradores envolvidos no

projeto19.

No campo do saber da história, o programa de

teórico–metodológicos, componentes de aspectos formais

e

estéticos

pré-estabelecidos,

teatro abriga em si questões que não estão restritas

relacionados diretamente com a formação do autor

ao seu formato e de suas transformações, sofridas

que redigiu a crítica e suas próprias percepções.

ao longo da história do espetáculo no ocidente, o

A crítica é inerente à produção da cultura

objeto programa é uma publicação que, seja

dramática.

vendida ou oferecida gratuitamente ao espectador,

desenvolvimento de um meio teatral sem o

conseqüentemente se caracteriza como uma

respaldo de intelectuais conhecedores da arte,

lembrança, um traço, um vestígio, um lugar de

capacitados à análise e discussão do fenômeno

memória ao alcance das mãos, lembrança do que

estético. Sob esse ponto de vista, a crítica tem

fora o deleite dos olhos e dos ouvidos20.

função analítica e organizadora das diferentes

O programa de teatro/revista programa, com o passar do tempo, portanto, ativa a lembrança do

Não

se

pode

imaginar

o

correntes de pensamento que incidem na produção dramática.

espectador teatral acerca daquilo que foi

Há que destacar nesse sentido, que o teatro em si

representado, com informações referentes à obra e

carrega um caráter efêmero, pois, o espetáculo é

17 18

Idem, pp. 211 Idem, pp. 208

19TORRES

NETO, W. L. Programas de Teatro: traços de uma experiência criativa. In: VI Congresso Nacional da ABRACE -

Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, 2010, São Paulo. Memória Abrace Digital. São Paulo: ABRACE, 2010, pp. 04 20 Idem, pp. 02

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 192 representado em determinado momento, e mesmo que seja realizada uma temporada longa, a cada dia esse espetáculo não será exatamente igual ao anterior, há uma experiência ligada ao presente.

capacitados à análise e discussão do fenômeno estético. Sob esse ponto de vista, a crítica tem função analítica e organizadora das diferentes correntes de pensamento que incidem na produção dramática”23.

Outro fato dessa efemeridade também seria o público presente naquele instante, integrando a obra através da recepção, inserido neste público está o crítico teatral, que faz parte do público, mas ao

mesmo

tempo

se

diferencia

pelas

especificidades de seu trabalho e motivação de assistir o espetáculo. Faz-se necessário considerar que neste trabalho abordamos o teatro em seu sentido efêmero, porque a crítica aqui utilizada está relacionada a encenações teatrais pontuais,

Entendemos, por outro lado, que de maneira alguma há um caráter neutro em uma crítica teatral, afinal, qualquer discurso é determinado pelas particularidades do seu lugar de produção24. Partindo desse pressuposto, o crítico não é apenas um expectador, mas ele está em uma posição diferente dos demais, devido à sua obrigação profissional, que lhe permite exercer uma voz de

autoridade perante o resto do público.

mas vale lembrar que a crítica em si aborda um

A crítica teatral, por conseguinte não pode ser

campo vasto, desde encenações teatrais até a uma

vista como uma verdade absoluta que represente

crítica direcionada aos textos literários.

todo um período, ou uma opinião generalizada; ela

Nessa perspectiva, no que se refere ao teatro o que permanece no tempo não é o espetáculo em si, mas sim seus registros21, esta afirmação de Ana Benstein e Ana Junqueira se refere à importância da

é por sua vez um documento produzido, representante de um determinado ponto de vista construído por uma série de valores presentes em uma sociedade.

crítica teatral como registro histórico, uma vez que

Com base nessas afirmações, a crítica teatral, de

o objeto de estudo (texto teatral, grupo,

certa forma, registra todo um processo teatral

companhia, etc.) e a crítica são indissociáveis22. Por

referente à representação, e a recepção da obra

este fundamento, em geral, pode-se confunde a

por visões de mundo específicas. Décio de Almeida

história da crítica teatral com a história do teatro.

Prado, historiador e crítico teatral, defende a

O crítico teatral Sebastião Milaré destaca a importância da crítica como central no teatro. De acordo com ele a crítica está ligada diretamente a produção dos espetáculos, assim como Milaré, Décio de Almeida Prado, também afirma não haveria dissociações entre o teatro e a crítica. “A crítica é inerente à produção da cultura dramática. Não se pode imaginar o desenvolvimento de um teatro nacional sem o respaldo de intelectuais conhecedores da arte, 21 22

BERNSTEIN, Ana. JUNQUEIRA, Christine. Op Cit, pp. 161

Idem, Ibidem.

Sebastião. A Crítica teatral e sua função nos novos Disponível em: http://ensaioecriticadejornal.blogspot.com.br/2009/06/critic 23MILARÉ,

tempos.

importância das críticas afirmando que “todo um processo da vida teatral, referente à representação, aos atores, que não costuma subsistir a não ser através dessas notações diárias, apressadas, imperfeitas e fragmentárias25. Portanto, através dessas notações, nós historiadores podemos encontrar vestígios que contribuam para a escrita da história do teatro ou, no caso desta pesquisa, para a interpretação histórica desse conjunto de a-teatral-e-sua-funcao-nos-novos.html acesso em 26 de agosto de 2015. 24 FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Op Cit, pp. 02 25 PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno. 2 ed., São Paulo: Perspectiva, 2001 , pp. 17

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 193 documentos, no âmbito teatral curitibano, em seu

de Almeida Prado e Sábato Magaldi, da revista

diálogo com questões sociais e políticas que

Teatro brasileiro29. Esses convites eram tentativas

estavam em debate na virada dos anos 1950-60.

de dar destaque nacional dentro do meio teatral

Especificamente no período de 1940 a 1960, período esse que está inserido em um processo de modernização do teatro brasileiro propriamente dito, podemos situar o que estudiosos também

para o espetáculo realizado pelo grupo Teatro Experimental

do

Guayra,

infelizmente

não

encontramos nenhuma documentação ou crítica realizada pelos autores citados acima.

apontam como ciclo de formação da crítica teatral moderna.

1.3.1 Notas sobre a crítica teatral em Curitiba

Até meados da segunda metade da década de 1940, segundo Marcia Da Rin, “o papel do crítico se assemelhava à figura do divulgador. Seu trabalho consistia basicamente em fazer um rápido resumo da peça e da atuação dos seus principais atores, relatando os aplausos ao final do espetáculo26”. Há uma mudança a partir de dois eventos em específico: um foi a apresentação de Vestido de

Noiva, de Nelson Rodrigues em 1943, pois, a peça gerou debate entre os próprios críticos. O outro foi à entrada de Décio e Almeida Prado27 para o jornal

O Estado de São Paulo em 1946, o que proporcionou uma maior expressividade do trabalho dos críticos

teatrais28.

importância individual para a crítica teatral brasileira, há que destacar que em 1956, o grupo Teatro Experimental do Teatro Guaíra fazia uma avant-première para a imprensa e pessoas ligadas ao teatro, encenando o espetáculo A margem da

vida, para essa apresentação de abertura da temporada, foram convidados os diretores de teatro Gianni Ratto e Alfredo Mesquita, do TBC e

Escola

de

crítica” anteriormente, caracterizada em geral por temáticas ligadas a questão da existência ou inexistência do teatro brasileiro, Bernstein e Junqueira observam que até a década de 40 eram frequentes as afirmações sobre a inexistência do teatro no Brasil, ou sobre uma decadência precoce. As razões para essas declarações estariam voltadas para a ausência de uma dramaturgia nacional, o número escasso de teatros, o desinteresse do governo, a predominância do teatro ligeiro, as montagens

descuidadas

e

apressadas

que

privilegiavam sempre as chamadas vedetes30. Já em um contexto do que poderíamos chamar de

Ademais, Sobre Décio de Almeida Prado e sua

paulista

Uma vez que há a percepção de uma “velha

Arte

uma moderna crítica teatral, tratando-se como um movimento nacional, no estado do Paraná, especificamente em Curitiba, nota-se a presença de diversos críticos culturais, dentre eles, podemos apontar exemplos como Sylvio Back e René Dotti, ambos colaboradores da página literária Letras e/&

artes que marcou o jornalismo cultural da capital, publicada aos domingos pelo jornal Diário do Paraná.

Dramática,

respectivamente, além dos críticos teatrais Décio 26

DA RIN, Márcia. Crítica: a memória do teatro brasileiro. O

Percevejo, ano III, n. 3, 1995, pp. 38

27 Décio de Almeida Prado foi um dos mais importantes críticos

de teatro brasileiro, é autor de inúmeros trabalhos sobre a história do teatro e a crítica teatral, dentre suas obras podemos citar: Teatro em Progresso – Crítica Teatral (1955 -1964),

Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno, História Concisa do Teatro Brasileiro entre outros. 28 FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Op cit, pp. 4 29 TEIXEIRA, Selma Suely. Op Cit , pp. 200 30 Idem, pp. 162 Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 194 decorar quilométricos diálogos, levantar os braços quando vai falar, piscar os olhos nos momentos de contrição, etc. Isso qualquer humano copia, faz.”33

De acordo com o próprio editor da página literária, Sylvio Back, Letras e/& artes tinha um tônus polêmico cunhado por uma plêiade de artistas plásticos, contistas, poetas cronistas, críticos de teatro e de cinema, filósofos,

Curitiba, como capital do estado, e a classe teatral

historiadores, etc.31 Tanto Sylvio Back quanto René

curitibana em si, buscavam estar atentos ao que

Dotti se dedicaram a críticas teatrais de

chamamos de um processo de modernização

companhias internacionais e nacionais de grande

teatral, mas, no entanto, também sofriam

sucesso como o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC),

dificuldades de inserção na atualização da técnica

Teatro Arena, o grupo Oficina, entre outros; e a

teatral. Além de Sylvio Back, podemos citar vários

partir dos grandes grupos nacionais, buscavam

nomes que também se dedicavam a crítica teatral

realizar análises do teatro paranaense e curitibano

em Curitiba nesse período, como: Roberto

entre 1959 e 1961.

Menghini, Rogério Dellê, Amauri Parchen, Glauco

Assim como no eixo Rio- São Paulo buscava-se um

de Flores de Sá Brito, Paulino Nascimento, Ary

projeto de modernização do teatro e também da

Fontoura, Edésio Passos entre outros.

Essa

crítica, através de uma demanda de qualificação,

modernização ocorrida na década de 50 e meados

também Curitiba tentava-se afirmar desde os anos

da década de 60 foi um processo primordial para a

50 com uma efervescência amadorística, crítica e

entrada de novas teorias teatrais e influências

dramatúrgica que se revelava na exploração e

estrangeiras em todo Brasil e foi uma base para o

multiplicação de espaços e companhias teatrais32.

teatro que conhecemos hoje.

Mas mesmo com esses objetivos, havia quem acreditasse que Curitiba caminhava a passos lentos quanto comparados a outras localidades.

2. O CASO DO TEATRO EXPERIMENTAL DO GUAYRA

Sylvio Back, em uma crítica intitulada Do

medíocre no teatro da cidade tece uma série comentários acerca do II Festival de Teatro Amador do Paraná realizado em Curitiba em 1959, também fala da qualidade técnica dos espetáculos. Back afirma categoricamente que: “Nosso teatro vê-se num atoleiro, numa mediocridade inigualável. O que se presencia são encenações (repito que há exceções) de fotonovelas, de chanchadas e abominável consciência artística – os integrantes dos elencos limitam-se a recitar as falas. Tudo resuma a teatro de colégio interno, colégio de moças. Por todos os deuses, teatro é coisa séria! Não é apenas ter coragem, a sem-vergonhice de pisar no palco, de 31 Informações retiradas do Press- release da Edição fac-similar

comemorativa dos cinqüenta anos do Suplemento Paranaense Letras e/& Artes, editor Sylvio Back – Diário do Paraná. Realizada pela Itaipu Binacional. Curitiba, 2011.

2.1 A busca por um processo de Modernização do Teatro Brasileiro na década de 50 Nesta pesquisa, é importante salientarmos que o contexto histórico das décadas de 1950 e 1960 no âmbito teatral brasileiro é de grande importância para compreendermos as questões sociais, políticas e também artísticas desse período. Ademais, os grupos de teatro, textos teatrais e outras diversas manifestações

artísticas

estão

inseridos

em

experiências históricas mais amplas que compõem um processo no meio social. Neste capítulo,

32

COSTA, Marta Morais. Visões de Curitiba em Cena.

Letras.Curitiba. Editora da UFPR 1998, pp. 43 33 BACK, Sylvio. Do medíocre no teatro da Cidade . Publicada

em 05 de setembro de 1959 no Suplemento Letras e/& Artes – Diário do Paraná.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 195 buscaremos

elencar

fatores

De acordo com esse propósito e ideologia do

políticos e sociais que demonstrem esse processo

desenvolvimento, as mudanças almejadas não

de

e

estavam apenas no plano econômico, estavam

particularmente em Curitiba durante a década de

também em um campo mais idealizado e de caráter

1950.

social. Reginaldo Cerqueira aponta que essa

modernização

características,

do

teatro

no

Brasil

Há quase um consenso entre os historiadores do teatro, no que se refere a afirmar a ocorrência de um processo de modernização iniciado na década de 1950 chegando até meados de 1960. Este processo de modernização carregava grandes mudanças para o teatro em si, baseando-se em novas

concepções

e

anseios,

almejando

transformações dos meios e técnicas ligadas ao fazer teatral que superassem a idéia já citada no capítulo anterior de “inexistência do teatro brasileiro” devida à ausência de dramaturgos

ideologia estava sendo planejada nos segmentos intelectuais e políticos brasileiros, que traziam consigo sinônimos de industrialização. A década de 50, portanto, estava planificada segundo um modelo de modernização em cuja base, articulavase transformações urbanas pelos investimentos nos setores econômicos e de produção, mas também havia

a

internalização

de

modos

de

comportamentos, valores sociais e sensibilidades capazes de sintonizar e incorporar indivíduos ao nacional-desenvolvimentismo36.

brasileiros, o número escasso de edifícios que

No campo especificamente cultural, essas

abrigassem teatros, o desinteresse do governo, a

mudanças seriam derivadas de parâmetros e

predominância do teatro ligeiro e as montagens

tendências que viajaram da Europa, desde o final do

descuidadas e apressadas34.

século XIX37, e se realocariam através de uma ânsia

Após o fim do Estado Novo (1937-1945) houve em todo o Brasil um processo de liberação e força dada pelos projetos econômicos e industriais ao longo da década de 1950, esses fatores tiveram repercussão na prática cultural do país, que passou a movimentar-se cada vez mais dentro de um circuito político. Essa prática direta e indiretamente era operada por uma ideologia dominante, que utilizava os meios de comunicação e cultura como possíveis reprodutores das ideias recorrentes ligadas ao nacionalismo e o desenvolvimentismo. Tal processo buscava a construção de uma nação promissora com um ritmo frenético da urbanização, do desenvolvimento e do alegre tom de otimismo

por uma elevação cultural ou pelo acesso a uma comunidade artística internacional. No teatro, portanto, todo esse processo gerou, segundo a historiadora Tânia Brandão, uma obsessão por um impulso civilizatório na cena teatral brasileira. Não podemos caracterizar esse processo como um movimento de longa duração ou com parâmetros definitivamente estabelecidos. A palavra moderno aqui é usada e sintetiza esse período, mas é importante ressaltar que ela foi empregada posteriormente

pelos

historiadores

para

caracterizar essas mudanças no âmbito teatral brasileiro, na época havia a pretensão de apontar um futuro, romper com o passado e implantar um

estampado nos discursos de grande parte da população35.

34 35

BERNSTEIN, Ana. JUNQUEIRA, Christine. Op Cit, pp. 168 FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Op Cit, pp. 05

36 37

SOUSA, R. C , Op Cit, pp. 41 FERNANDES, Nanci. Os Grupos Amadores. Op Cit, pp. 81

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 196 novo ritmo38 para os espetáculos realizados no

2.2 A Modernização do Teatro em Curitiba

Brasil.

Antes de iniciarmos apontamentos e registros de

De acordo com Décio de Almeida Prado, o Brasil

como se deu o processo de modernização teatral

nesse período sentia a necessidade de expandir-se,

em Curitiba, há que se ressaltar que, de maneira

escapar de quadros demasiadamente provincianos

geral, a História do Teatro em Curitiba e no estado

para ter acesso a uma comunidade internacional

do Paraná, assim como o desenvolvimento nas artes

estável no campo das artes39, essa necessidade

cênicas, estarão diretamente ligados à história do

originou-se

da

Teatro Guaira. Observamos isso quando nos

efervescência amadorística, onde grupos amadores

voltamos para estudos que abordam o teatro

buscavam interferir no panorama teatral estagnado

paranaense em diversas áreas de conhecimento,

espelhando-se na produção profissional40 mas

documentações jornalísticas e outros tipos de

trazendo novos temas e abordagens.

produção escrita, que em sua generalidade

e

ganhou

força

através

O Rio de Janeiro protagonizou um papel representativo, sendo sede de várias dessas companhias, como O Teatro do Estudante do Brasil, Os Comediantes e o Teatro Universitário, já em São Paulo podemos destacar Os Amadores Paulistas, o Grupo Universitário de Teatro e o Grupo de Teatro Experimental. Com o tempo, essas companhias, através de realizações bem-sucedidas ou bem recebidas pelo público, conseguiram que o teatro

destacam ou desenvolvem suas bases na formação do Teatro Guaira. Isso se deve, provavelmente, ao papel e o fortalecimento ocasionado pela criação do órgão pelo governo do Estado. Uma vez que nosso recorte temporal se foca na década de 1950 e que temos como objeto o grupo de Teatro Experimental do Guayra, é de suma importância analisarmos o papel e a influência do complexo Guaira para todo estado do Paraná.

moderno iniciasse seus primeiros passos por meio

Desta maneira, a década de 1950, no que se

de novas propostas do fazer teatral e claramente de

refere ao teatro, caminha lado a lado com a história

influências internacionais.

do Teatro Guaira. Não queremos afirmar que a

Esses grupos foram, portanto, portadores de inovações no fazer teatral, e representaram características das mudanças operadas pelo processo de modernização desse período. Dentro desses novos parâmetros implantados, podemos apontar o surgimento da figura do encenador, que renovou o espetáculo teatral colocando sob a sua batuta o conjunto da montagem41.

história do teatro paranaense é a história do Teatro Guaira, mas ressaltamos o vínculo e a linha tênue entre eles, onde ambos constituem a história do Teatro no Paraná. Exemplo dessa relação próxima é a matéria publicada na Folha de Londrina em 30 de novembro de 1974, intitulada A História do Teatro Guaira (é a história do teatro paranaense). 42 Na matéria o autor disserta sobre a transição do Teatro Theodoro para o Teatro Guaira e posteriormente a mudança de local43, e afirma a

38

BRANDÃO. Tania. Op Cit,, pp. 82

39 PRADO, Décio de Almeida.

O teatro Brasileiro moderno. São

Paulo: Perspectiva, EDUSP, 1988. (Debates; 211) pp. 60 40 BRANDÃO, Tânia. Op Cit, pp. 58 41 MAGALDI, Sábato. Tendências contemporâneas do teatro brasileiro. Estudos Avançados 10 (28), 1996, pp. 278

42

A História do Teatro Guaira (é a história do teatro paranaense). Folha de Londrina. Londrina, 30 de Novembro de 1974. 43 O Teatro Theodoro surgiu em 1884 da iniciativa da Sociedade União Curitibana, que doou ao governo provincial o terreno e o edifício em construção para que este concluísse os

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 197 agasalhar os forasteiros e os curitibanos de quatrocentos anos dizem que se sentem como numa cidade estrangeira, onde já não conhecem ninguém46.”

importância do espaço cênico e suas iniciativas para todo estado desde sua criação. Em meio às comemorações do I Centenário de Emancipação Política do Paraná em 1953, havia um espírito ufanista que permeava o estado, imbuído

Dentre

as

várias

obras

anunciadas

pelo

desse pensamento, Bento Munhoz da Rocha Netto

Governador Munhoz da Rocha Neto estava a

assumira o governo do estado dois anos antes,

construção da nova sede do Teatro Guaira. Já nessa

tendo como meta principal de sua gestão construir

época a cidade contava com muitos movimentos

marcos culturais e arquitetônicos que assinalassem

teatrais: Grupo Experimental de Operetas, o Teatro

para a posteridade o centenário do Paraná. Assim

de Cultura Artística, Teatro Bandeirantes de

sendo, os monumentos apresentavam-se como um

Comédia, Teatro da Escola Técnica do Colégio

dos aparatos mais eficazes para preservar na

Progresso, Teatro Permanente da Criança entre

memória da coletividade, os cem anos do Paraná44.

outros, mas a construção do Teatro Guaira e a

O Paraná na década de 1950 teria em sua capital a representação de progresso e modernidade trazidos pelos ares dos novos tempos. De acordo com Marcelo Sutil e Fabiano Fazon, no livro

inauguração do pequeno auditório em 19 de dezembro de 1954 contribuiriam de forma decisiva para o grande impulso que as artes cênicas teriam durante toda década de 50.

Complexo Centro Cultural Teatro Guaira 50 anos

Selma Suely Teixeira, em sua dissertação Teatro

de História45, a década de 50 trouxe a esperança e

em Curitiba na década de 50: História e

alento de que o ritmo do desenvolvimento só

Significação aponta que desde a abertura do

tenderia a aumentar jornais, revistas e publicações

Pequeno Auditório do Teatro Guaira, autores,

oficiais vangloriavam o crescimento, Raquel de

atores, diretores e técnicos ligados ao teatro

Queiroz em um artigo para a Revista Cruzeiro deixa

paranaense foram unânimes em reconhecer que a

claro a visão de crescimento e progresso difundida

inauguração daquele auditório representaria para a

na cidade nesse período:

classe, a oportunidade de "subsistir em sua própria

“Curitiba dá a impressão de uma menina que cresceu demais e já não cabe mais na roupa. A cidade estoura por todos os lados, excede a pavimentação, a rede elétrica, a rede de água. Só se ouve falar em milhões, em arranha céus; os grandes prédios brotam por toda parte e nos bairros residenciais as casas de ricos se multiplicam. Os hotéis não chegam para trabalhos e passasse a administrar o teatro. O terreno ficava ao lado da atual Biblioteca Pública do Paraná. O São Theodoro funcionou por mais de dez anos, até a revolução Federalista, quando foi transformado em prisão política. Com o São Theodoro de portas fechadas a única casa de espetáculos de Curitiba era o Teatro Hauer. Em 1900 surgia então o Teatro Guaira, era o antigo Teatro Theodoro reformado, recebeu esse nome devido à sugestão de Romário Martins e Sebastião Paraná. Posteriormente a demolição desse edifício ocorreu devido à criação de outros espaços teatrais e também a morte de Salvador de Ferrante que ocasionou o fim da Sociedade Teatral Renascença que movimentada e dava impulso para apresentações no Teatro Guaira. As portas do antigo Guaira

casa”.

47

Até então os artistas do teatro local

contentavam-se, em encenar suas montagens nos salões de igrejas, escolas, sociedades beneficentes

foram fechadas em 21 de julho de 1937 e iniciou-se o processo demolição, que entre pausas e suspensões dos trabalhos durou três anos. Essas informações acerca da construção do Teatro Guaira, podem ser localizadas em notícias dos jornais da época e publicações e programas produzidos pela própria fundação Teatro Guaira, armazenadas na Casa da Memória de Curitiba. 44 BAHLS, Aparecida Vaz da Silva. Op Cit, pp. 13 45 SALDANHA, Marcelo; FAZION, Fabiano. Complexo Centro Cultural Teatro Guaíra: 50 anos de história. Curitiba, PR: [s.n.], 2005. 46 QUEIROZ, Raquel. Paraná e Santa Catarina. In. O Cruzeiro. Rio de Janeiro. Publicado em 21 de junho de 1952, p.61 47 TEIXEIRA, Selma Suely. Opc Cit, pp. 02

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 198 e nos palcos dos cine-teatros existentes na cidade

Teatro

Permanente

da

Criança,

no início da década48.

Experimental do Guayra entre outros.

o

Teatro

Durante esse período, a cena teatral curitibana

Desta maneira, consideramos que Curitiba,

estaria, portanto, em uma constante preocupação

durante a década de 1950, participou de uma fase

em acompanhar de perto o que se produzia em

promissora de consolidação do teatro produzido no

outros locais, seguindo o exemplo da televisão e do

Paraná e também no Brasil, influenciando de

cinema se pretendia uma atualização técnica e

maneira decisiva na profissionalização do teatro

cultural do

teatro49.

Essa preocupação criou de

paranaense. Uma vez que o processo de

certa forma, um movimento restaurador que

modernização da cena teatral curitibana foi aqui

reivindicava construções de edifícios teatrais e

apresentado, seguimos para a análise do objeto

regulamentação de leis que incentivassem o

especifico dessa pesquisa: o Teatro Experimental

surgimento de novos autores e de uma dramaturgia

do Guayra, que desenvolveu um papel fundamental

com características brasileiras. Os grupos de teatro

no quadro de modernização da cena teatral do

da cidade optaram por representar peças nacionais

estado do Paraná.

e internacionais ainda desconhecidos da platéia curitibana, passando em seguida a encenar com

2.2 O Teatro Experimental do Guayra - TEG

êxito, peças de autores paranaenses. Isso, aos poucos, obteve a simpatia do público curitibano que

se

tornou

assíduo

frequentador

dos

espetáculos realizados pelos grupos locais50. É expressivo destacar que a modernização da cena teatral que encontramos em Curitiba nesse

Desde 1940 já havia uma movimentação em prol da construção de um novo espaço cênico em Curitiba, tanto a classe teatral, quanto jornais da época lançaram diversas campanhas para a construção de um teatro. O cronista Evaristo Biscaia, atuante na imprensa local, publicou:

período, se refere também a um público específico

também incorporava hábitos e padrões de consumo

“O que nos falta é um teatro. E o mais triste é que já tivemos um que satisfazia plenamente nossos anseios. Quem passar pela rua Dr. Muricy verá as ruínas do Teatro Guayra, demolido sem razão justa e hoje reduzido a uma muralha desnuda [...] Todos unidos pela justa campanha dessa construção, que visa à melhor e maior elevação cultural dos curitibanos.52”

que estavam em sintonia com países considerados

Como vimos no tópico anterior, esse anseio foi

e tradicional, pertencente a uma esfera da sociedade restrita. A platéia nessa época ainda se caracterizava em grande parte por uma elite que ia frequentemente aos espetáculos, a partir disso

desenvolvidos.51 Como grupos locais e profissionais da década de 1950 em Curitiba, podemos destacar como mais expressivos a Sociedade Paranaense de Teatro, Grupo Experimental de Operetas Paranaenses, Companhia Estudantil de Espetáculos Musicados,

Idem, Ibidem. Idem, pp. 33 50 Idem, pp. 247

suprido durante as obras realizadas para a comemoração do I Centenário de Emancipação do Paraná em 1953. Devido ao andamento das obras o pequeno auditório do Teatro Guaira só foi inaugurado no ano seguinte, na presença do presidente Café Filho e do governador Bento Munhoz da Rocha Neto. A peça Os Inocentes de FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Op cit, pp. 05 BISCAIA, Evaristo. Coisas da Cidade. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1996, pp. 91

48

51

49

52

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 199 Para a formação do novo grupo foi realizado um convite para a Sociedade Paranaense de Teatro, fundada por Ary Fontoura, para unir seu elenco ao do grupo Clube de Teatro, dirigido por Glauco Flores de Sá Brito, e juntos formarem o TEG. Em março de 1956 foi realizada uma reunião com os diretores dos dois grupos e a superintendência do Teatro Guaira para discutir e analisar o regulamento do novo conjunto Figura 1: Foto da Reunião com os diretores dos dois grupos e a superintendência do Teatro Guaira para discutir e analisar o regulamento do TEG.

Henry James da companhia de Dulcina e Odilon inaugurou o palco em 19 de dezembro de 195453.

teatral. A fusão dos dois grupos traria diferentes características e experiências para o TEG que se

adequavam ao novo momento do teatro brasileiro.

A criação de um grupo teatral que pertencesse ao Guaira estava na lei n.º 2.382 de 10 de maio de

Na primeira reunião acerca do TEG, foi discutido

1955 que previa a Fundação Teatro Guaira, esse

e aprovado seu regulamento que designava para o

intento, porém só foi realizado em 1956, em virtude

cargo de diretor geral, Alceu Stange Monteiro, para

da preocupação com a frequência sempre baixa de

a direção artística Ary Fontoura e Glauco de Sá

público aos espetáculos devido aos elevados preços

Brito, para as funções de 1° e 2° secretários foram

dos ingressos. Fábio Laynes, superintendente do

escolhidos Ilze Buch e Luciano Cedro, para 1° e 2°

teatro na época, iniciou uma campanha de

tesoureiros José Luiz Caminha e Halina Diminska e

popularização dos preços dos ingressos, a partir do

a função de diretor de cena foi nomeado Odelair

slogan "teatro a preço de cinema”.54 Laynes buscava

Rodrigues. Essa formação inicial do TEG irá sofrer

superar acusações sobre a diretoria do teatro

uma série de alterações ao longo da trajetória e

acerca de impedirem e dificultaram o acesso a

também substituições.

grupos locais. Dessa forma, a criação do grupo de

Como vimos no começo deste capítulo, a década

Teatro Experimental do Guayra (TEG) supriria a

de 1950 no meio teatral buscava se voltar para

falta de frequência de espetáculos locais no

dramaturgos nacionais e estéticas artísticas novas.

pequeno auditório e de acordo com as palavras de

Dentro desse panorama, o TEG buscava um

Laynes atuaria como um “instrumento em prol da

repertório que atendesse essas demandas e

popularização do teatro55”.

também não perdesse de vista seu caráter de popularização do teatro. Para isso, foi criado um

53 54

PEREIRA, Marialda Gonçalves , Op Cit, pp. 07 Idem, pp. 102

55

Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra. Curitiba, 1956 -1957, junho de 1957.

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G N A R U S | 200 Conselho Literário e Artístico que escolheria o

Escaleno de Silveira Sampaio e Colégio Interno de

repertório do grupo, as escolhas seriam pautadas

Ladislau Fodor.

por peças “de reconhecido valor artístico, literário, humano

e

social,

tanto

nacionais

como

estrangeiros, e o decidido incentivo ao autor novo brasileiro e em especial ao autor paranaense56." A partir disso, a diretoria do TEG optou por dar continuidade aos ensaios da peça A Margem da

Vida, de Tennessee Williams, que estreou em 27 de maio de 1956 em uma avant-première para a

Já em 1957, observamos um ano que apresentou muitas dificuldades e períodos conturbados para o TEG em sua estrutura artística e também organizacional. Após o grupo reprisar o espetáculo

A Margem da Vida, Ary Fontoura assumiu o cargo de diretor geral no lugar de Alceu Stange Monteiro, dando início às preparações para a temporada comemorativa do primeiro aniversário do grupo,

imprensa e pessoas ligadas ao teatro. O espetáculo

que reuniria três espetáculos: o monólogo Sobre os

teve 16 apresentações em Curitiba e três em

males que causa o fumo de Anton Tchekov; Judas

Florianópolis57.

em sábado de Aleluia de Martins Pena, e o original

A criação do grupo e a escolha de seu repertório surtiram grande efeito no que diz respeito à

inédito de Dalton Trevisan A volta do filho

pródigo59.

imprensa, que realizou entrevistas com os atores e diretores do grupo.

Ary Fontoura, em uma

entrevista para o jornal Estado do Paraná, declarou que o grupo era “uma das perspectivas melhores que tivemos até agora”

58,

é importante

destacarmos que o TEG tinha um grande apoio financeiro e estrutural devido ao seu vínculo com

A temporada comemorativa do TEG será foco de análise no próximo tópico, através da revista programa oficial do Estado do Paraná, onde buscaremos elencar e tratar de elementos que incluam o grupo em um processo de modernização do teatro e também discutir seus objetivos iniciais de criação e suas aplicabilidades.

complexo do Teatro Guaira, que fornecia pauta para apresentações, salas de ensaios e também técnicos para os espetáculos. Durante seu primeiro ano de atividades, o TEG se dedicou a diversas atividades. Foram promovidas leituras dramáticas, apresentações em prol da construção de um Orfanato, desfiles-revistas, testes para elencos e sessões especiais com diretores convidados, entre eles estiveram Miércio Asknasy, Wolf Schaia, Mário Brassini e André Vilon. Encenou obras como: Sinhá moça chorou de Ernani Fornani,

Demorado Adeus de Tennessee Williams, Triangulo

56 57

Idem, Ibidem.

Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra 1956 -1957, junho de 1957. 58 FONTOURA, Ary. Teatro. O Estado do Paraná, Curitiba, 19 mai. 1956, pp.11

Terminada a temporada oficial comemorativa, o Teatro Experimental do Guaíra reapresentou, ainda em julho, as peças de Tchekov, Dalton Trevisan e Martins Pena em sessão especial para o elenco e os diretores da Escola de Arte Dramática de São Paulo, que se apresentavam em Curitiba. No dia 23 de agosto de 1957, O Estado do Paraná noticiou a saída de Glauco Flores de Sá Brito, Dalton Trevisan, Osires Rego Barros, Edde Isabel, Nair Dinacy e Aristeu Berger do TEG para, juntos, retomarem a organização do Clube de Teatro, que teria como programa, a encenação de peças não comerciais60.

59

Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra 1956 -1957, junho de 1957. 60 DELLÊ, Rogério. Reorganizando o Clube de Teatro. O Estado do Paraná, Curitiba, 23 ago. 1957.

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G N A R U S | 201 Concomitante a isso, Ary Fontoura venceu a

Chapetuba Futebol Clube de Oduvaldo Viana Filho,

concorrência aberta pela Prefeitura Municipal de

com estréia marcada para o público no dia 03 de

Curitiba e pela diretoria local da Legião Brasileira

novembro de 1960.

de Assistência para atuar no Teatro de Bolso da Praça Rui Barbosa, e também saiu do TEG, acompanhado por boa parte do elenco por ele dirigido61. Praticamente ao mesmo tempo, o grupo perdeu seus três diretores e grande parte de seu elenco, por sua vez a superintendência do Teatro Guaira temia o fechamento do TEG e, para evitar isso, convidou o ator José Carlos Baraúna para assumir o grupo a partir de 195862.

A nova etapa do TEG, de acordo com a crítica local, marcava um passo para o teatro paranaense, o Jornal Estado do Paraná definiu esse período como um momento de: “empreendimentos sérios que uniam a boa vontade e honestidade de propósitos que a maioria dos grupos tem, a um texto sério, atual, de intenso conteúdo humano.65" Através de Chapetuba Futebol Clube o TEG conquistou grande atenção da mídia e da critica

A direção de José Carlos Baraúna não ultrapassou

especializada em teatro. No último capítulo desta

cinco meses, enfrentando dificuldades com elenco,

pesquisa, daremos enfoque à repercussão do

técnicos e espaço físico, Baraúna chegou a iniciar os

espetáculo para crítica paranaense através dos

ensaios da peça Que mamãe não saiba de autoria

olhares de Sylvio Back, René Dotti, Jairo Regis na

de Cícero Camargo de Oliveira, mas a falta de apoio

coluna do Diário oficial do Paraná chamada Letras

e de incentivo demonstrada pelos dirigentes do

& Artes.

teatro levou Baraúna a pedir sua demissão em maio de 1958, declarando que o “superintendente interino [...] chegou ao ponto de não ceder-me nem a chave da sala de ensaios o que impossibilitou muitas vezes o meu trabalho.63

Entretanto, o TEG depois de Chapetuba teve um tempo de vida curto. Em sua volta para o TEG, Glauco de Flores de Sá Brito já apresentava grandes problemas de saúde, fator que nunca o impediu de apresentar um trabalho intenso no que se referia ao

Com a saída de Baraúna, o TEG foi desativado

teatro e televisão. Em junho e julho de 1962, Glauco

entre 1958 e 1959, só voltando suas atividades em

integrou a organização de um curso rápido de

1960 com a volta de Glauco de Flores de Sá Brito e

teatro realizado nas dependências do Teatro

um novo elenco apresentando a peça infantil

Guaira, ministrado por Joel Barcelos e Gianni Ratto.

Peripécias da Lua. Com a volta de Glauco o TEG

O curso, que em um primeiro momento não tinha

ganhava uma nova guinada que foi fortalecida

nenhuma meta, gerou um grande sucesso,

também pela inauguração do mini-auditório do

derivando a criação de um grupo oficial de teatro

Teatro Guaira64, um espaço próprio para seus

que representasse todo o estado do Paraná. Dessa

ensaios e apresentações. O mini auditório não

forma, em 1963 o Teatro Experimental do Guayra

marcaria apenas a volta do TEG, mas também de

veio a se tornar o Teatro de Comédia do Paraná

uma nova fase que viria através da montagem de

(TCP). 66

TEIXEIRA, Selma Suely. Op Cit, pp. 212 Idem, Ibidem. 63 Idem, pp.212 64 O Mini Auditório do Teatro Guaira, como homenagem, em 1975 recebeu o nome do Diretor do Teatro Experimental do Guaira Glauco de Flores de Sá Brito.

65 CHAPETUBA: TEG marca tento. O Estado do Paraná, Curitiba,

61 62

01 nov. de 1960, pp. 02 66 SUTIL, Marcelo Saldanha; FAZION, Fabiano. Op Cit, pp. 153

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G N A R U S | 202 2.3 Comemoração do 1º ano do Teatro Experimental do Guayra Como já citado anteriormente, José Gustavo Bononi indica que o programa de uma peça de teatro geralmente é produzido com o intuito de informar o público acerca da montagem que está sendo feita, apresentar o elenco do grupo, as personagens da peça, os possíveis patrocinadores e propagandas que ajudaram na impressão e na realização do espetáculo, além da trama que

que contemplava a montagem de três espetáculos distintos. Foram apresentados: Sobre os males que

causa o fumo de Anton Tchekov; Judas em sábado de Aleluia de Martins Pena, e A volta do filho pródigo de Dalton Trevisan no pequeno auditório do Teatro Guaira. A direção geral do TEG, nesse momento, era de Ary Fontoura; e a direção artística de Glauco de Flores de Sá Brito. O elenco que encenaria as peças, era composto por 22 pessoas mais a equipe técnica.

deverá ser iniciada67. A partir dessa definição de O programa é apresentado no formato de revista,

objetivo do programa teatral, que tem como foco a informação e a relação com público, buscaremos de forma crítica analisar os conteúdos e falas presentes no programa oficial da temporada comemorativa do TEG68. Como comemoração do 1º ano de atividades do Teatro Experimental do Guayra foi realizada em junho de 1957 uma temporada especial do grupo,

com 12 páginas impressas em preto e branco. A capa nos traz a reprodução de um desenho simples, onde há um ator e um expectador, o primeiro nos remete à representação clássica do teatro de duas máscaras, uma da comédia e outra da tragédia. No programa não há nenhum tipo de crédito ou autoria da imagem; junto à capa, temos o local onde a temporada será realizada, o símbolo do governo do estado do Paraná e o título que compreende o nome do grupo e seu aniversário de um ano.

2.3.1. Textos sobre os espetáculos da temporada Apesar de o

programa ser referente à

apresentação de três espetáculos, não consta nenhuma sinopse ou fala do diretor acerca do monólogo de Anton Tchecov Sobre os Males que

causa o fumo. Sobre a referida peça encontramos apenas a ficha técnica do espetáculo na qual não há alusão a nenhuma função técnica a mais do que a direção de Glauco Flores de Sá Brito e a interpretação de Rogério Dellê. Já sobre o texto de Martins Pena, Judas em

Sábado de Aleluia, ao longo do programa há dois Figura 2: Capa do Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra, junho de 1957. 67

BONONI, José Gustavo, Op Cit, pp.138

textos que explicam o motivo da montagem e sua

68

Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra 1956 -1957, junho de 1957.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 203 relevância; no primeiro o foco é dissertar sobre o a

tipicamente experimental, com a colaboração de

importância do autor que não primava por um

um excelente texto”. A biografia e a importância de

método de trabalho, nem por preocupações

Dalton Trevisan também fizeram parte dos textos

gramaticais69,

do programa. Trevisan é apontando como um

apresentando também a história do

texto e do gênero de costumes. Já no segundo texto referente ao espetáculo de Martins Pena é apresentado uma rápida biografia do autor e seus principais trabalhos como

jovem contista paranaense que a cada dia ganhava projeção

na

literatura

brasileira,

através

principalmente de trabalhos publicados no Rio de Janeiro e São Paulo70.

dramaturgo. O espetáculo contou com a direção de Ary Fontoura e o elenco era composto por Penalva Muniz, Nelcy Ferreira, Gilberto Marques, Sinval Martins, Mauricio Távora e Joel de Oliveira. O texto de Dalton Trevisan A Volta do Filho

Pródigo recebe grande atenção no programa, principalmente pela autoria do texto se derivar do curitibano Dalton Trevisan. De acordo com o diretor Glauco de Flores de Sá brito o motivo escolhido para encenar esse espetáculo, se deve “a

2.3.3. Falas do Superintendente do Teatro Guaira Fábio Laynes Apresentando outro eixo, a presença das falas de Fábio Laynes no programa de comemoração do TEG é valiosa, pois elas nos indicam um porta-voz do discurso oficial da instituição do Teatro Guaira, que de certa forma, também representava o governo do estado Paraná, devido à ligação institucional dos dois órgãos.

oportunidade de realizar um trabalho de teatro

Figura 3: Espetáculos apresentados pelo Teatro Experimental do Guayra na temporada comemorativa do primeiro ano grupo. Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra, junho de 1957

69

Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra, junho de 1957.

70 Idem.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 204 Laynes é autor de dois textos dentro do programa

A figura de Ney Braga nesse sentido exerceu uma

do TEG, e em ambos o superintendente destaca a

grande influência no que se referia ao teatro de

preocupação do governo em usar o teatro como

Curitiba deste período. Ney Braga ingressou na

fonte de cultura e como o TEG tem sido um veículo

carreira política por intermédio do seu cunhado

dessa proposição, e através de uma metáfora sobre

Bento Munhoz da Rocha Neto que o convidou para

a natureza e sua força, Laynes parabeniza seus

ocupar o cargo de Chefe de Polícia, quando

companheiros pela jornada do primeiro ano do

Munhoz da Rocha era o Governador do Estado.

grupo. Diante dessas primeiras constatações, queremos nos focar em dois momentos específicos das falas de Laynes, onde há a definição do intuito e da finalidade da criação do TEG: a popularização do teatro. “Vamos lançar um olhar ao ano que passou. Comparando o Teatro de hoje com o de ontem, depois de transposto este período de lutas, de avanços às vezes recuos, sentiremos que o Teatro Experimental do Guayra vem cumprindo realmente suas finalidades principalmente aquela de proporcionar bons espetáculos aos que dantes viam o Teatro como alguma coisa fora do alcance de suas possibilidades materiais. 71

Em 1954, Bento lançou a candidatura de Ney à Prefeitura de Curitiba que posteriormente foi eleito73, o vínculo direto com o Governador do estado permitiu um apoio decisivo na estrutura administrativa da prefeitura74. Conforme David Carneiro e Túlio Vargas75, como Prefeito Ney Braga, implementou reformas urbanas e modernizou a cidade de Curitiba, racionalizou o sistema de transporte coletivo, levou energia elétrica aos bairros, instituiu a primeira Comissão de Cultura, isentou circos e teatros de impostos municipais, instalou bibliotecas nas periferias e incentivou

Na primeira fala, o superintendente afirma que o

programas de preservação das áreas verdes.

grupo cumpriu sua finalidade de levar o teatro a

A partir da relação entre Ney Braga e o espírito

uma parcela da população que não frequentava o

ufanista que permeava o estado através da figura

teatro anteriormente devido às suas possibilidades

de Bento Munhoz da Rocha, Curitiba passou por

financeiras. Laynes, por um lado, estava certo, pois

uma série de reformas e novas políticas culturais,

havia cumprido a promessa de “teatro a preço de

que buscavam um progresso e desenvolvimento

cinema” realizada em 1956, com a ajuda do

através da cultura como possível reprodutora das

prefeito de Curitiba, Ney Braga, que sancionou uma

ideias

lei que isentava do pagamento do imposto

desenvolvimentismo76.

municipal todo e qualquer espetáculo realizado no Guaíra, proporcionando assim condições para o barateamento efetivo dos ingressos72.

71

Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra, junho de 1957. 72 TEIXEIRA, Selma Suely. Op Cit, pp. 103 73MAURICIO, Dinalva Rosa. Governos Lupion e Ney Braga: um estudo comparativo. UFPR, Curitiba, 2011, pp. 20 74 REBELO, Vanderlei. Ney Braga : A política como arte. Curitiba: Imprensa Oficial, 2004, pp. 45 75CARNEIRO, David e VARGAS, Tulio. História Biográfica da República no Paraná. Curitiba: Editora Banestado, 1994, pp. 213

ligadas

ao

nacionalismo

e

o

Diante dessas considerações, ao final do programa de comemoração do TEG, Laynes, confirma a estreita relação entre a prefeitura de

76

A cultura nesse período estava diretamente ligada à construção de uma identidade nacional, Renato Ortiz analisa como e por que os intelectuais brasileiros, em períodos distintos, enfrentaram o desafio de definir a especificidade do brasileiro enquanto nação, anunciando e também fixando, por assim dizer, um caráter ontológico à identidade brasileira. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 205 Curitiba,o Governo do Estado, e o Teatro Guaira,

automóveis. Em grande parte os comerciais eram

afirmando novamente o intuito de criação do TEG e

acompanhados de imagens de senhoras bem

sua utilização a favor da popularização do teatro:

vestidas e homens elegantes de terno e chapéu que

“O Teatro Experimental do Guayra foi criado para constituir-se na ponta de lança atual administração do Teatro Oficial do Estado Paraná na batalha em prol da popularização da arte cênica. Conhecemos a arte teatral como o mais eficaz veículo de cultura e por ela estamos propugnando. A designação “experimental”, acreditamos, caracteriza- bem o intuito deste conjunto77.

destacam o luxo e a satisfação do cliente que compra nas empresas anunciantes; além das empresas já citadas temos anúncios da Pianos Essenfelder, Foto Studio Dickow, Lojas Nasser, A Elegante Magazin, Renner, Casas Miranda, Maison Blanche, Remaco Limitada, Unicas, Livarias Brasil, Bond Passagens Áreas e Turismo, Importação

2.3.4. Publicidade e propaganda Essa relação de popularização e acesso ao teatro por um público que antes o via como impraticável,

Alberto Nigro, Casa Nickel, Rádio Service Ribas, Calçados Irmãos Mendes, Eletricidade Geral, Camisaria Pinheiro, Casa Castelo, Casa Beatriz, Arthur Alfaiate e Movéis Cimo.

dentro do programa oficial da temporada pode, em certa medida, ser questionável quando nos voltamos para a presença da publicidade no programa e para o tipo de público a que ela é direcionada. Ao longo do programa encontramos 23 anúncios de diversos ramos comerciais de empresas ou lojas localizadas no centro da cidade; observamos que, de maneira geral, as propagandas ofereciam produtos voltados para um público de elite que teria um poder aquisitivo elevado. A título de exemplo dessas constatações seriam os anúncios direcionados para o público feminino, como a loja Casa Marselha que ocupa uma página inteira destacando as últimas novidades em casacos de pele e lã para mulheres, seguido da publicidade do Instituto de Beleza Jandira que se dedica “aos mais finos e elegantes penteados”. Não só as mulheres são alvo das publicidades, mas também há anúncios que abrangem outras

Figura 4: Propaganda da loja Casa Marselha. Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra, junho de 1957.

categorias de uma mesma classe social, localizamos anúncios de venda de pianos, máquinas contábeis, pacotes turísticos, passagens aéreas e peças de

77

Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra 1956 -1957, junho de 1957.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 206

Figura 6: Propaganda da empresa Bond – Passagens e Turismo Ltda. Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra, junho de 1957.

Figura 5: Propaganda da loja Casas Miranda. Programa do 1º Aniversário do Teatro Experimental do Guayra, junho de 1957.

Essa gama de propagandas nos faz refletir acerca

ideia central da criação do TEG de popularização

de que o público atingido pelo TEG nesse período

do teatro, só será buscado a partir da segunda fase

era bem diferente do proposto por Fábio Laynes em

do grupo em 1960 com a montagem de Chapetuba

sua fala acerca da criação do grupo de teatro. O

Futebol Clube. A peça de Oduvaldo Viana Filho

público que se esperava atingir através da

permitiu que o grupo criasse estratégias para

temporada de aniversário do TEG ainda se

alcançar uma platéia diferente da que frequentava

caracterizava por um conceito mais tradicional e de

o teatro até esse momento. A repercussão das

elite do teatro vigente na época. Mas ao mesmo

apresentações de Chapetuba pelo TEG e as

tempo, os anúncios também revelam o grande

características adotadas a partir do espetáculo para

apoio que o grupo recebia nesse momento por

alcançar um público diferente do tradicional

parte de empresas privadas que buscavam vincular

analisaremos através das críticas realizadas por

sua marca ao TEG e de certa forma ao grande

Sylvio Back, René Dotti e Jairo Regis publicadas na

financiador do grupo, que era o governo do estado

coluna Letras & Artes do Diário do Paraná entre

do Paraná.

1960 e 1961.

Como

será

visto

no

próximo

capítulo,

observaremos que o público alvo e mais voltado à Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 207 3. CHAPETUBA FUTEBOL CLUBE NO TEATRO EXPERIMENTAL DO GUAYRA 3.1 Letras & Artes e Revista Panorama: notas sobre Teatro Paranaense As críticas que serão analisadas neste capítulo pertencem a duas fontes especificas: a página literária Letras e/& artes e a Revista Panorama. Ambas integraram o cenário do jornalismo cultural de Curitiba na década de 1960 e tiveram uma participação expressiva de Sylvio Back e de outros

interesse na movimentação teatral que era realizada em todo Brasil, nas edições da página literária há grandes espaços dedicados a análises e críticas de espetáculos teatrais, como citamos no primeiro capítulo deste estudo Sylvio Back, René Dotti, entre outros, tiveram como foco companhias internacionais e nacionais de grande sucesso como: o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), Teatro Arena, o grupo Oficina, entre outros, e a partir desses grandes

críticos culturais. Letras e/& Artes era um página literária publicada aos domingos pelo jornal Diário do Paraná, que circulou entre 1959 e 1961, de acordo com seu próprio editor, Sylvio Back a página literária tinha um tônus polêmico cunhado por uma plêiade de artistas plásticos, contistas, poetas cronistas, críticos de teatro e de cinema, filósofos, historiadores, etc.78, que se dedicavam em torno de uma pauta aberta e multifacetária, sem viés político ou ideológico, nem se perfilava a qualquer escola de artes plásticas ou era refém de autores e/ou de

grupos

nacionais,

buscavam

traçar

paralelos e comparações com o teatro paranaense. A Revista Panorama pode ser considerada mais abrangente, pois, se dedicava a uma série de variedades no que se refere aos seus temas. Fundada em Londrina, em 1951, pelo jornalista e professor Adolfo Soethe, mudou sua sede para Curitiba uma década depois, tinha correspondentes de diversas capitais brasileiras, que escreviam sobre uma grande variedade enorme de assuntos, com matérias que descreviam desde as belezas naturais da Ilha do Mel, no litoral paranaense, até o “mundo corrupto dos cassinos curitibanos81”.

guetos artísticos e culturais79. A historiadora Rosane Kaminki destaca que Letras

O teatro paranaense, portanto, sempre esteve

& Artes teve em sua época, grande importância

presente nas publicações dos dois veículos

para

as

discussões

públicas

em

Curitiba,

envolvendo tópicos que “fermentavam” frente às questões artísticas e filosóficas nacionais e internacionais integravam ensaios sobre filosofia existencialista e suas diferentes vertentes, artigos sobre os Salões de Artes Plásticas, sobre cinema e também sobre o teatro brasileiro moderno80. Neste

jornalísticos, que buscavam abranger notícias e discussões acerca de temas variados da década de1960

do

Paraná,

que

identificava

às

modificações que vinham se processando no meio teatral

brasileiro

em

especial

sobre

o

deslocamento do foco temático em direção à problemática social do país82.

sentido, observamos que desde sua primeira edição

De acordo com o suplemento Letras e/& Artes, o

em 1959, Letras & Artes destacou um grande

teatro paranaense estaria muito distante de um

78 Informações retiradas do Press- release da Edição fac-similar

80 KAMINSKI, Rosane. Poética da Angústia: história e ficção nos

comemorativa dos cinqüenta anos do Suplemento Paranaense Letras e/& Artes, editor Sylvio Back – Diário do Paraná. Realizada pela Itaipu Binacional. Curitiba, 2011. 79 BACK, Sylvio. Glória pela Memória. Disponível em: http://www.bpp.pr.gov.br/ modules /noticias/ar ticle. php?storyid=474. Acesso em 10 de novembro de 2015.

filmes de Sylvio Back (anos 1960-70). UFPR, Curitiba, 2008, pp. 31 81 ZANELLA, Daniel Paraná em Revista. Disponível em: http://www.candido.bpp.pr.gov.br/ modules/c o nteudo/conteudo.php?conteudo=155. Acesso em 10 de novembro de 2015. 82 KAMINSKI, Rosane. Op Cit, pp. 37

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 208 contexto nacional do teatro existente no resto do

momento onde as críticas teatrais estavam

Brasil e as temáticas tratadas por dramaturgos

diretamente direcionadas a falta de aproximação

nesse período, Sylvio Back, editor de Letras & Artes,

do teatro paranaense a temática brasileira teatral,

analisa que haveria uma temática brasileira sendo

se realizará em 1960 a montagem da peça

desenvolvida por novos dramaturgos que buscavam

Chapetuba Futebol Clube de Oduvaldo Vianna

representar algo novo e também revolucionário83.

Filho pelo Teatro Experimental do Guayra realizada

Back afirma que essa nova temática estaria distante

sob a direção de Glauco de Flores de Sá Brito, que

do Paraná devido a dois grandes fatores presente

se destacará por ter sido um projeto inovador

no Estado do Paraná, o primeiro seria ausência de

dentro do meio teatral curitibano.

diretores, dramaturgos e profissionais que levassem o teatro a sério, não haveria, portanto, uma

3.2 Chapetuba Futebol Clube

consciência artística e uma busca por técnicas e elementos estrangeiros que elevassem o teatro

O texto de Chapetuba Futebol Clube foi escrito

paranaense a outro patamar que superasse

em 1959 por Oduvaldo Vianna Filho, ator e

encenações de fotonovelas e chanchadas.

dramaturgo que através de suas obras deixou clara

O Governo, por sua vez, também seria apontando por Back como um grande “culpado”, que se satisfazia com uma inexpressividade do teatro paranaense, desvinculado da verdadeira realidade social e da identidade brasileira, idéia essa que percorria grande parte da produção de textos teatrais deste contexto, que buscavam aproximar o teatro da realidade de toda população, não mais só de uma elite que freqüentava os teatros. “As entidades culturais do Estado, ou até mesmo algumas não oficiais, não se preocupam em trazer novos teatrólogos, ou serem veículos de divulgação de seus pensamentos, e de suas obras [...] Satisfazem-se em promover reuniões ou empreendimentos inexpressivos que não dizem nada à realidade social brasileira. Aliás, a culpa do governo nesse particular é por demais conhecida. E não adianta insistir junto a ele, porque o governo nunca resolveu nada nesse setor e não irá resolver, tão cedo. O Guayra, o eterno inacabado ai está para confirmar o que afirmamos.84 “

sua preocupação em trazer para o palco conflitos inerentes à sociedade brasileira e demonstrar seu entendimento da arte como instrumento de luta, de intervenção política e conscientização de grupos sociais85. Os escritos de Vianinha, portanto, seriam profundamente marcados pela ótica do Partido Comunista Brasileiro, ao qual o autor esteve diretamente vinculado, elementos como de liberdade democrática, soberania nacional e melhores condições para o povo fariam parte tanto da obra de Vianinha, como das resoluções propostas pelo Partido Comunista em 1956. Dentro desse panorama, Chapetuba Futebol

Clube se apresenta como um texto que reunia uma temática brasileira social importante do período: o futebol. O texto trazia uma série de conflitos, com a intenção de apresentar contradições inerentes ao processo vivenciado, a partir da expectativa da véspera da traição de Maranhão, e da derrota do

Esses apontamentos se relacionam com nosso

time Chapetuba Futebol Clube para o Saboeiro,

objeto de estudo, na medida em que nesse 83

BACK, Sylvio. “Chapetuba” e temática brasileira. Letras & Artes. Diário do Paraná. Curitiba, 23 out. 1960 84 BACK, Sylvio. “Chapetuba” e temática brasileira. Letras & Artes. Diário do Paraná. Curitiba, 23 out. 1960.

PATRIOTA, Rosangela. Vianinha - um dramaturgo no coração de seu tempo. 1ª. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. v. 1, 85

pp. 98

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 209 porque

os

interesses

econômicos

assim

determinavam86.

para a imprensa, artistas e diretores do teatro

Chapetuba, portanto, não se restringia apenas aos conflitos de um time de futebol, seu cenário aborda elementos pertencentes ao contexto social do período, juntamente à abertura de um espaço para dramaturgias,

e apresentações. Apresentada em avant-première

encenações

e

interpretações

exclusivamente brasileiras87. Nelson Xavier, ator

paranaense no dia 30 de outubro, a peça de Oduvaldo Vianna Filho estreou no dia 3 de novembro, abrindo uma temporada de quatro dias. Jornais e revistas da época dedicaram grandes espaços em suas páginas especializadas para a divulgação e análise da montagem89.

que interpretou o personagem Maranhão na trama,

Jairo Regis afirma que a escolha do TEG estaria em

destaca sua experiência em participar de um

perfeita integração com as tendências e intenções

espetáculo que permitia vivenciar e atuar emoções

inauguradas no Brasil pelo Teatro Arena (peças de

brasileiras:

conteúdo social e dialético).

“Então, ensaiando Chapetuba, eu comecei, pela primeira vez como ator, a vivenciar plenamente minhas – eu vou chamar assim – emoções brasileiras: maneiras de sentir e de ser como só nós brasileiros somos e sentimos. Porque, o que havia antes? Na E.A.D eu tinha estudado com Tchecov e Maeterlinck, Goldoni ou Shakespeare, e no teatro que se fazia em São Paulo, naquela quadra, os modelos eram europeus. Mesmo textos brasileiros eram representados como estrangeiros88.”

90

Já Edésio Passos,

considera Chapetuba como o melhor espetáculo de 196091, pois, refletia o pensamento renovador do nosso teatro, em busca contínua, dentro dos problemas nacionais, do material necessário para os temas das peças a serem apresentadas ao público92, acrescentando que a peça seria “um esforço a mais em busca desse ideal renovador, do encontro de uma temática brasileira que satisfaça

As interpretações acerca do texto de Oduvaldo Vianna Filho, sua vertente política e sua importância foram alvo de grandes debates entre

aos anseios não só dos que se encontram entrosados no movimento artístico teatral, como de nosso povo93”. Essa nova fase do TEG, portanto, além de ser um

críticos culturais do período, partindo desses princípios a montagem realizada pelo grupo de Glauco de Flores de Sá Brito de Chapetuba também integrará uma série de debates acerca da relevância da montagem e sua temática. A estreia de Chapetuba Futebol Clube pelo Teatro Experimental do Guayra, após sua desativação entre 1958 e 1959, aconteceu em agosto de 1960, depois da inauguração do mini-auditório do Teatro Guaíra, espaço que pertencia ao grupo para ensaios

marco também seria definida e entendida pela imprensa como uma fase de empreendimentos sérios que “uniam a boa vontade e honestidade de propósitos que a maioria dos grupos tem, a um texto sério, atual, de intenso conteúdo humano”. 94 O crítico René Dotti, por sua vez acrescentou em uma crítica publicada em Letras e/&Artes que a montagem do TEG não estaria isenta de vícios literários

(pela

91

do Paraná. Curitiba, 13 nov. 1960.

01 nov. 1960, pp.02.

87

90 REGIS, Jairo.

Chapetuba não é futebol. Letras & Artes. Diário

ou

técnicos

(pela

representação), mas a grande contribuição seria o

Idem, Ibidem, pp. 100 XAVIER, Nelson, Op Cit, pp. 81. 88 Idem, Ibidem. 89 TEIXEIRA, Selma Suely. Op Cit, pp. 214 86

peça)

PASSOS, Edésio. Chapetuba: melhor espetáculo de 1960. O Estado do Paraná, Curitiba, 05 nov. 1960, pp. 12 92 Idem, Ibidem. 93 Idem, Ibidem. 94 CHAPETUBA:TEG marca tento. O Estado do Paraná, Curitiba,

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 210 valor de seleção em sintonia com as novas solicitações da literatura teatral95.

3.3 Tentativas de Popularização através de Chapetuba Futebol Clube Quando nos voltamos para o ideal inicial da

A escolha do TEG, portanto, além de estar alinhada as temáticas modernistas do teatro brasileiro propostas neste período, também representou um ato revolucionário e desafiador dentro da cena teatral curitibana, a autorização

criação do Teatro Experimental do Guayra, encontramos a pretensão de um grupo que supriria a falta de frequência de espetáculos locais no pequeno auditório e atuaria como um instrumento em prol da popularização do teatro96.

dada por de Oduvaldo Vianna Filho para a montagem de Chapetuba em Curitiba representou um novo passo no que se referiam as escolhas de repertório dos grupos teatrais do Paraná. Essa intenção de alinhamento, não está presente apenas nas críticas realizadas no período, ela também é confirmada nas próprias palavras do diretor, no programa de estréia da peça. Glauco deixa claro seu interesse em valorizar obras pertencentes à dramaturgia

nacional,

que

abordem

temas

próximos da sociedade brasileira e que causem tanto aos atores do espetáculo, quanto ao público um contato mais íntimo e sensível. A

dramaturgia

nacional,

portanto,

abordamos no primeiro capítulo, nesse momento havia uma busca e tentativas de se instaurar um restaurador

que

reivindicava-se

construções de edifícios teatrais e regulamentação de leis que incentivassem o surgimento de novos autores e de uma dramaturgia com características brasileiras, esse momento pretendia demonstrar certa independência de apresentações de textos exclusivamente internacionais, que por muito tempo dominaram o teatro brasileiro.

uma

análise

do

programa

de

Comemoração do 1º ano do Teatro Experimental do Guayra, observamos contrastes entre as propostas de criação do grupo defendidas por sua diretoria, e a presença de elementos publicitários que entram em confronto com a popularização do teatro pretendida. Tais contradições se dissolvem na medida em que o TEG opta pela montagem de

Chapetuba Futebol Clube em 1960, há a pretensão de através do texto de Oduvaldo Vianna Filho alcançar um público distinto do que agora se havia alcançado. Essa pretensão pode ser observada em um

nesse

momento representava um grande avanço, como

movimento

Através

primeiro momento, na quase inexistência de propagandas publicitárias no programa de estreia do espetáculo, há apenas duas referências a lojas, que se encontram na seção de agradecimentos, juntamente ao Clube de Futebol Coritiba. A loja Lord Sport, entretanto é a única com espaço e destaque para fornecer detalhes mais específicos de seus produtos voltados para o público masculino. Não há como afirmar se a presença dessas duas marcas e do nome do clube de futebol se deve ao patrocínio ou um apoio referente a materiais utilizados na peça. Mas é possível observamos uma total diferença no que se refere ao conteúdo publicitário voltado para o público presente no programa de comemoração do 1º ano

95

DOTTI, René. Considerandos sobre “Chapetuba”. Letras & Artes. Diário do Paraná. Curitiba, 06 nov. 1960.

96

Programa de Comemoração do 1º ano do Teatro Experimental do Guayra. Curitiba, junho de 1957.

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G N A R U S | 211 do TEG, a presença das

A pretensão do TEG

marcas, portanto, nesse

ganhou

grande

programa se restringe ao

proporção na imprensa,

reconhecimento de apoio

recebendo destaque e

ou ajuda na realização do

gerando

espetáculo.

acerca dos desafios que

preocupações

seriam enfrentados pelo Essas

mudanças,

grupo

em

podem

correlacionados

ser

O

segunda fase do grupo,

primeiro

destaque

encontrado nas críticas

que se caracterizava por alinhamento

a

execução deste projeto.

compreendidas e ligadas à

um

nova

empreitada,

relação à primeira fase do TEG,

na

aqui utilizadas se refere a

direto

Figura 7: Propaganda da loja Lord Sport. Programa do espetáculo Chapetuba Futebol Clube, novembro de 1960.

com a temática brasileira.

uma diferenciação do público tradicional do

Desta forma, logo após o término da temporada de estréia de Chapetuba

Futebol Clube em outubro de 1960, no mini-

teatro e o público que seria buscado pelo TEG em bairros e fábricas. “Urge, pois, subverter essa ordem estabelecida; há anos que ninguém se atreve a erigir-se num Fidel Castro teatral, para sanear a ambivalência e iniciar tudo de novo, respeitando o humilde, também sensível a arte. O TEG torna, pois, o encargo de levar a materialização um espetáculo teatral de boa qualidade para os habitantes dos bairros e trabalhadores das fábricas. O povo merece o melhor dos esforços98.”

auditório, que contou com grande sucesso de público, Glauco anunciou que as próximas temporadas do espetáculo não seriam outras cidades ou auditórios, mas sim em bairros e fábricas Curitiba. A mudança de público que o TEG proporia seria brusca, na medida em que se afastaria de certa forma do público do centro da cidade, se voltando para um público que possivelmente não estaria interado de discussões estéticas e artísticas teatrais profissionais presentes na época no meio da elite artística paranaense. Sylvio Back, após a anunciação do diretor, afirma que a empreitada do TEG de sair da esfera intelectualizada do centro da cidade, se

De acordo com Sylvio Back, essa “nova” plateia seria

intelectualizado,

compreensão”

e

adequação

com

a

problemática do operariado97.

97

BACK, Sylvio. Teatro Popular: TEG vai ás fábricas. Letras & Artes. Diário do Paraná. Curitiba, 20 nov. 1960

por

um

distante

público

não

daqueles

que

freqüentavam o teatro assiduamente, mas mesmo com essa diferenciação o novo público não deveria vir a ser tratado com menos importância, ou com falta de profissionalismo por parte do TEG99. Nas críticas realizadas por Back, o autor deixa

utilizava de uma peça ideal do ponto de vista de “fácil

composta

claro que o TEG deveria estar consciente de sua missão e sua responsabilidade em realizar um

98

BACK, Sylvio. Teatro Popular: TEG vai ás fábricas. Letras & Artes. Diário do Paraná. Curitiba, 20 nov. 1960 99

Idem.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 212 teatro popular, que permitisse a aproximação de

O Teatro Experimental do Guayra surgiu como

operários/homens simples com a melhor qualidade

uma proposta para a popularização do teatro

teatral que o grupo pudesse apresentar, essa

curitibano na década de 1950. Pretendia suprir a

atitude de acordo com o crítico abriria um

falta de espetáculos no pequeno auditório e abrir

horizonte fabuloso para o desenvolvimento

espaço para a aplicação de políticas públicas

público-teatro em nossa capital que até o momento

culturais que tornassem os valores dos ingressos

não havia sido explorado.

mais acessíveis ao um público que se encontrava

A montagem de Chapetuba e a nova fase do TEG, portanto além de receber grande destaque e elogios dos meios jornalísticos por sua aproximação com as discussões realizadas acerca da produção de dramaturgias e temáticas brasileiras, também suscitou questões acerca do público que o grupo

afastado do centro social e artístico da sociedade curitibana deste período. Além dos elementos de sua criação relacionados à popularização do teatro, nota-se claramente a tendência de aproximar o grupo a práticas teatrais e discussões difundidas no cenário nacional.

pretendia atingir posteriormente a sua estréia.

O momento cultural que o Brasil atravessava entre

Infelizmente nas fontes pesquisas nesta pesquisa

as décadas de 1950 e 1960 foi abundantemente

não encontramos críticas, notícias ou artefatos

marcado

teatrais que confirmem se os intentos do TEG de

considerados atrasados e retrógados referentes ao

popularização do teatro foram efetivamente

processo

realizados ou se o espetáculo Chapetuba chegou a

observamos que concomitantemente o governo do

ser apresentado nos bairros e fábricas de Curitiba

Estado Paraná e a direção do Teatro Guaira,

em 1961 e 1962.

pretendiam realizar um diálogo entre a arte do

As informações coletadas meramente nos mostram que o TEG depois de apresentar o espetáculo Chapetuba Futebol Clube teve um tempo de vida curto, sem novas montagens. Em junho e julho de 1962, o diretor do grupo Glauco de Flores de Sá Brito integrou a organização de um curso rápido de teatro realizado nas dependências do próprio Teatro Guaira. O curso, que em um primeiro momento não teria nenhuma meta específica, gerou um grande sucesso, derivando a

pelo

desejo

artístico

de

superar

existente.

Nesse

ideais sentido,

teatro e a modernidade que se buscava afirmar neste momento, através de práticas e obras e públicas

que

demonstrassem

o

otimismo

nacionalista vivido em todo o Brasil. O Teatro Experimental do Guayra, portanto, formado por personalidades importantes no meio teatral de Curitiba, seria um veículo que reafirmaria a imagem de um Estado preocupado em incentivar a cultura local e a relação com um processo de modernização.

criação de um grupo oficial de teatro que

Com base nesses apontamos e nas fontes

representasse todo o estado do Paraná, chamado

analisadas, foi possível observar que o Teatro

Teatro de Comédia do Paraná que viria substituir o

Experimental do Guayra, em seus primeiros anos de

Teatro Experimental do Guayra.

trabalho,

demonstrou

contradições

e

distanciamento com seus objetivos iniciais de CONSIDERAÇÕES FINAIS

criação voltados para a popularização do teatro observados nas falas de Fábio Laynes, pois, na Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 213 documentação referente ao grupo, foi perceptível

diretor do grupo Glauco de Flores de Sá Brito, e não

a

pela superintendência do Teatro Guaira.

presença

e

a

marca

de

uma

esfera

intelectualizada do centro da cidade.

Não tivemos a intenção dentro desta pesquisa de

Mas, já em sua segunda fase, pós a desativação do

esgotar toda discussão acerca de como se deu o

grupo entre 1958 a 1959, a volta de Glauco de

processo de modernização teatral em Curitiba, mas

Flores de Sá Brito e a montagem de um texto que

sim suscitar discussões acerca de como Curitiba se

trazia consigo elementos claros de um teatro

aproximou de discussões realizadas no meio

engajado, traz novos sentidos e discussões para o

artístico no cenário brasileiro nas décadas de 1950

repertório do TEG, onde há a intenção de resgatar

e 1960, fomentando juntamente análises que

suas preposições iniciais de um teatro mais popular,

relacionem o papel de grupos teatrais deste

distante de ambientes puramente tradicionais. Essa

contexto e suas relações com o Teatro Guaira.

dualidade presente na trajetória do Teatro Experimental do Guayra deve ser entendida não como apenas uma contradição, mas inserida e analisada dentro um panorama amplo, que se forma por um lado a partir de um processo de modernização da cena teatral brasileira, e por outro

Maybel Sulamita de Oliveira é mestranda em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO) e bolsista da Capes. Gradou-se em História - Licenciatura e Bacharelado, na Universidade Federal do Paraná (UFPR). É também técnica em Comunicação e Artes pelo Colégio Estadual do Paraná e tem formação profissional de atriz e produtora.

por particularidades de um grupo que teria vínculo direto ao governo do Estado do Paraná, como citado anteriormente. Quanto às tentativas de popularização propostas pelo TEG em 1961 a partir do espetáculo

Chapetuba Futebol Clube, do qual seriam realizadas apresentações em bairros e fábricas de Curitiba, não podem ser confirmadas se foram concretizadas devido à falta de documentações ou arquivos que confirmem se os intentos do TEG foram efetuados. Acreditamos que esse projeto de popularização do teatro pode não ter sido realizado pela desestruturação do grupo entre 1961 e 1962, juntamente a possibilidade de que esse projeto de popularização talvez não estivesse de acordo com os interesses de modernização cultural propostos pelas elites dirigentes envolvidas na direção e organização do grupo e não foram incentivados, uma vez que essas propostas também só são indicadas e afirmadas pelas falas da imprensa e do

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Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 216

Interdisciplinar

ENSINO DE FÍSICA E DE HISTÓRIA DA CIÊNCIA COM JOGO DE TABULEIRO Por Adílio Jorge Marques e Samantha de Lemos Souza

Introdução

S

erá possível aprender Física de forma mais

respeito

lúdica, de maneira que além de ensinar

desenvolvimento cognitivo.

novos conteúdos, consiga ainda despertar o

interesse dos alunos do Ensino Médio para a disciplina? Um jogo didático poderia facilitar o aprendizado de Física, conforme os autores abordados nesta pesquisa? Para tal, desenvolvemos um material didático que aborda as questões da Física e da História da Ciência de maneira conceitual, com o intuito de descobrir se a maior dificuldade dos alunos está no aprendizado da Física, ou no modo como esta disciplina vem sendo abordada, priorizando a utilização de equações

do

jogo

e

em

seu

papel

no

Nossa preocupação estava também em atrair o estudante de maneira que possamos fazê-lo interessar-se pela Física, e em obter maior compreensão dela. Outro fator que motiva este trabalho é a uma falta de capacitação e/ou preparação dos professores da região do Noroeste Fluminense, assim como para o resto do país. Sabemos que em sua maioria não são professores licenciados em Física, o que torna ainda mais complicado a utilização de métodos diferenciados na sala de aula.

acima da teoria. Propomos ainda que os alunos venham participar da construção do próprio conhecimento como John Dewey sugere, ao invés

Descrevendo o jogo e metodologia

de trabalharmos presos ao conceito de que o

A sociedade moderna vive a era da informação e

professor possui toda a verdade. Como atender a

a experiência educacional deve ser diversificada,

demanda com uma alternativa viável de baixo custo

pois envolve a multiplicidade de tarefas. Os alunos

e que satisfaça as necessidades acima citadas? Com

necessitam dominar o processo de aprendizagem

isso em mente, procuramos embasar o presente

para o desenvolvimento de suas competências, e

trabalho nas ideias de Lev Semenovitch Vygotsky, à

não mais absorver o conteúdo. Os jogos estão cada Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 217 vez mais presentes na vida cotidiana. Sua presença

divertida, consiga sutilmente devolver um caminho

cultural e tecnológica aumenta diariamente. A

certo ao aprendiz. (MORATORI, 2003, p.25).

presença da tecnologia entre os alunos se reflete na escola, assim como o gosto pelos jogos e o impacto que tais jogos possuem no aprendizado dos alunos. "Se o ensino for lúdico e desafiador, a aprendizagem prolonga-se fora da sala de aula, fora da escola, pelo cotidiano, até as férias, num crescendo muito mais rico do que algumas informações que o aluno decora porque vão cair na prova" (NETO, 1992, p 44).

Sabemos que: “O lúdico influencia enormemente o desenvolvimento da criança. É através do jogo que a criança aprende a agir, sua curiosidade é estimulada, adquire iniciativa e autoconfiança, proporciona o desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da concentração” (Vygotsky, 1984, p.39).

O jogo será usado durante uma aula de Física, e o Faz-se necessária uma educação permanente,

tempo é relativamente curto.

dinâmica e desafiadora visando o desenvolvimento

Outro fator que precisávamos levar em conta era

de habilidades para a obtenção e utilização das

a agilidade e facilidade de compreensão do

informações. Justifica-se a introdução dos jogos na

material desenvolvido para que não perdêssemos a

escola considerando que são instrumentos eficazes,

atenção e interesse dos alunos antes mesmo deles

conforme vários autores mostram em seus estudos

experimentarem o jogo e também para economizar

sobre os jogos didáticos. “Não há momentos

tempo que poderia ser utilizado jogando, ou seja,

próprios para desenvolver a inteligência e outros do

aprendendo.

aluno já estar inteligente, sempre é possível progredir e aperfeiçoar-se. Os jogos devem estar presentes todos os dias na sala de aula” (RIZZO, 1988, p 88).

Foi então criado neste trabalho um jogo de tabuleiro, um material específico para cada série do Ensino Médio, visando adequar o conteúdo com a série em que ele será utilizado. O jogo foi pensado

O jogo educativo deve proporcionar um ambiente

para um grupo de até cinco jogadores que

crítico, fazendo com que o aluno se sensibilize para

competem entre si, testando seus conhecimentos

a

com

previamente adquiridos durante as aulas e

oportunidades prazerosas para o desenvolvimento

aprendendo uns com os outros. “Brincando com a

de suas cognições. Uma vez estabelecido e

Física” foi o nome escolhido. É constituído de

obedecido o sistema de um jogo, aprender pode

perguntas e respostas, no entanto, as perguntas não

tornar-se tão divertido quanto brincar e, nesse caso,

serão feitas diretamente e sim por meio de ‘dicas’.

aprender torna-se interessante para o aluno e passa

Isso deu possibilidade ao participante que não

a fazer parte de sua lista de preferências.

conhece o assunto por completo de aprender sobre

construção

de

seu

conhecimento

Deve-se salientar que os jogos pedagógicos são

o tópico abordado.

apenas instrumentos, não mestres, ou seja, estes

Os assuntos discutidos neste trabalho são os

serão úteis somente se acompanhados por alguém

indicados para cada uma das séries pelo currículo

que analise o jogo e o jogador, de modo diligente e

mínimo de Física do estado do Rio de Janeiro, sendo

crítico, que ao ver que tal ferramenta deixou de ser

eles abordados apenas conceitualmente. No jogo

instrutiva e se transformou apenas numa disputa

temos ainda questões de história da ciência de Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 218 modo que o aluno entenda mais sobre a Física em si

As regras são bastante simples. A cada rodada um

e sobre os grandes nomes por trás dela. Isso

jogador diferente retira uma carta, como as

estimula, ao nosso ver, o Professor a não dar apenas

representadas na Figura 1, e lê a “dica” referente ao

o conteúdo, mas passando a mostrar para o aluno

número escolhido por cada aluno. O número de

onde, e como, foram feitas as descobertas. O

casas percorridas será determinada pelo número de

mesmo

dicas utilizadas para se acertar a resposta.

está

especificado

nas

orientações

curriculares para o Ensino Médio: “O uso da história da ciência para enriquecer o ensino de Física e tornar

mais

aproximando

interessante os

aspectos

seu

aprendizado,

científicos

dos

acontecimentos históricos, possibilita a visão da

O tabuleiro e as peças são ilustrados com personalidades da Física, como pode ser visto na Figura 2, isso com intuito de torna-lo mais atrativo para os adolescentes. O tabuleiro utiliza como plano de fundo a nebulosa planetária Hélice.

ciência como uma construção humana”.

Figura 1: Exemplo de carta

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 219

Figura 2: Foto do tabuleiro “Brincando com a Física"

Resultados obtidos Os vinte e sete alunos do Ensino Médio de escolas

O primeiro questionário aplicado, a entrevista, foi

públicas da cidade de Santo Antônio de Pádua que

com o intuito de descobrir o que os alunos

participaram

da

pensavam da disciplina, quais as opiniões e

responderam

a

aplicação quatro

do

trabalho

questionários:

uma

conceitos formados por eles sobre a matéria em si e

entrevista dividida em duas etapas (antes e depois

sobre a possibilidade de utilizar jogos no processo

da aplicação do jogo). Dois questionários foram de

de ensino-aprendizagem. Ao perguntarmos se os

conhecimento específico, realizados antes e após

entrevistados gostavam da disciplina, 67% das

ao jogo. Assim, foi possível comparar e considerar

respostas foi positiva, e as justificativas vão desde

as respostas dadas e através dessa comparação que

achá-la interessante até gostar de Astronomia e

obtivemos parte dos dados para analisarmos se o

Cálculo, como pode ser visualizado no Gráfico 1.

jogo contribui para o ensino.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 220

Gráfico1: Justificativa dos alunos, para o motivo de gostar de Física

Já ao questionarmos qual a maior dificuldade na disciplina, obtemos a citação de que áreas

lugar, a resposta mais citada foi a dificuldade com as equações.

específicas de pesquisa eram difíceis. Em segundo

Gráfico 2: Respostas dos alunos sobre suas dificuldades na disciplina

O que nos leva crer que um déficit na matemática

ao serem questionados se existe diferença entre

pode acabar prejudicando os alunos ao estudar a

Física

e

Matemática,

uma

porcentagem

disciplina de Física. Na pergunta seguinte, ao

significativa não consegue enxergar as diferenças

questionarmos se prefeririam responder a questões

entre tais disciplinas, como mostrado no Gráfico 3.

teóricas ou questões nas quais as utilizações de

Nos leva a crer que isso ocorre devido a maneira

equações são necessárias, a primeira foi a mais

como a abordagem em Física é feita nas turmas de

escolhida. Tendo como explicação respostas

Ensino Médio, se houvesse um maior foco na parte

variadas, desde ter dificuldade em cálculos a não

conceitual e Histórica como foi feita no jogo

gostar de decorar equações. Na próxima questão,

desenvolvido esse problema pode ser sanado.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 221

Gráfico 3: Resposta dos alunos quanto ao questionamento se na opinião deles existe diferença entre Física e Matemática

Perguntamos para os alunos se conheciam jogos

ter maior facilidade e maior compreensão dos

didáticos e nenhum deles conhecia jogos voltados

assuntos abordados, mas o esforço e interesse foi

para o ensino de Física. Comprovando que a

notado em todos. Segundo Dewey, “Aprender é

utilização de jogos didáticos seria interessante, na

próprio do aluno: só ele aprende, e por si; portanto,

sequência todos os 28 entrevistados admitiram que

a iniciativa lhe cabe. O professor é um guia, um

seria bom aprender através de uma brincadeira. O

diretor; pilota a embarcação, mas a energia

que nos leva a questionar porque esse método não

propulsora deve partir dos que aprendem”

tem sido utilizado com mais frequência. Os alunos,

(DEWEY, 1959, p. 43).

então, foram convidados a jogar, ao final da primeira parte da entrevista e da aplicação do questionário de conhecimento especifíco.

escolhiam os pinos e olhavam o tabuleiro, os alunos tiveram interesse de saber quem eram as pessoas ali representadas e qual era o desenho no fundo do tabuleiro, já que foram usadas algumas figuras de da

Física,

perguntas

que

entrevistados e todos alegaram ter gostado do jogo, e alguns citaram: o fato de ser instrutivo, pois

Antes mesmo de dar início ao jogo, enquanto

destaque

Ao terminarem o jogo foram novamente

foram

respondidas prontamente. Foi possível observar durante a aplicação que grande parte dos alunos apresentaram dificuldade no conteúdo abordado. Sendo as principais dificuldades nas questões de história da Física, pois infelizmente não é um assunto que os professores costumam abordar com frequência. No entanto, foram nessas que eles mais demonstraram curiosidade, ficando até mesmo ansiosos para descobrir a resposta. Durante a aplicação, assim como acontece durante as aulas, alguns alunos demonstraram mais interesse que outros, os mesmos que aparentavam

serviu para que aprendessem novos tópicos da Física; outros por ser divertido ou interessante. Quanto ao fato de serem abordadas questões de História da Física no jogo, uma grande parte gostou, tendo alguns alunos chegado a citar conteúdos e cientistas como assuntos que vieram aprender ao utilizar o jogo. Mesmo os que admitiram inicialmente não gostar da disciplina ao trabalharmos em conjunto com a História da Física foi possível despertar o interesse de alguns desses. O que nos leva a crer que trabalhar com este conteúdo na sala de aula seja uma boa forma de chamar a atenção do corpo discente. Ao perguntamos se os participantes foram capazes de aprender algum conteúdo físico, tivemos oitenta e nove por cento dos entrevistados respondendo sim. Foi pedido um exemplo, e vários citaram áreas específicas, mas a maioria acabou por Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 222 falar de conteúdos História da Física que haviam

que nos ajuda a entender que a História da Ciência

aprendido, tais como a figura de Galileu Galilei. O

consegue despertar o interesse dos alunos.

Gráfico 4: Resposta se gostaram das questões sobre História da Física

Em relação aos questionários de conhecimento

descrita na Segunda Lei de Newton. No primeiro

especifico, observou-se que houve um número

ano do Ensino Médio, como pode ser visto através

maior de acertos após a utilização do jogo. No

da Tabela 1, a primeira questão obteve o menor

entanto, este foi menor nas questões em que o uso

índice de melhora, e esta trabalha com o conceito

do cálculo se fazia necessário. Lembramos, porém,

de força e de aceleração utilizando equações. Ao

que o jogo é conceitual e não faz em nenhum

envolver cálculos, o índice de interesse é muito

momento a utilização de uma equação, o que

menor, novamente indicando que talvez o

temos em algumas cartas é a descrição das mesmas,

problema dos alunos da região em estudo seja a

como por exemplo, a função horária e a equação

base matemática.

SÉRIE

QUESTÃO

1° A

ACERTOS

PORCENTAGEM DE MELHORA

ANTES DO JOGO

DEPOIS DO JOGO

1

01/17

05/17

23,53%

2

07/17

14/17

41,18%

3

06/17

12/17

35,29%

N O

Tabela 1: Acertos, antes e depois do jogo, com a porcentagem de melhora no questionário de conhecimentos específicos do 1º ano

No segundo ano do Ensino Médio os dados

trabalhava Energia. Novamente a questão de se

coletados podem ser vistos na Tabela 2, e a questão

conhecer a equação e relacionar grandezas era

com menor percentual de acertos foi a que

necessária. No entanto, ainda assim ocorreu uma Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 223 melhora considerável. Os alunos tentaram levar a

assimilação. E que nós, Professores, podemos - e

questão para o cotidiano, o que serve para

devemos utiliza-la - de maneira a facilitar a

comprovar que os estudantes tentam fazer essa

compreensão dos alunos.

SÉRIE

QUESTÃO

2° A

ACERTOS

PORCENTAGEM DE MELHORA

ANTES DO JOGO

DEPOIS DO JOGO

1

11/15

13/15

13,33%

2

03/15

12/15

60%

3

02/15

11/15

60%

N O

Tabela 2: Acertos antes e depois do jogo, com a porcentagem de melhora no questionário de conhecimentos específicos do 2º ano

No terceiro ano do Ensino Médio, a questão com

e utilizar formalismos matemáticos, e isso é

menor percentual de acertos foi aquela na qual era

mostrado na Tabela 3.

necessário conhecer a equação do campo elétrico

SÉRIE

QUESTÃO

3° A

ACERTOS

PORCENTAGEM DE MELHORA

ANTES DO JOGO

DEPOIS DO JOGO

1

04/16

14/16

62,5%

2

09/16

15/16

37,5%

3

03/16

08/16

31,25%

N O

Tabela 3: Acertos antes e depois do jogo, com a porcentagem de melhora no questionário de conhecimentos específicos do 3º ano

Considerações finais Este trabalho consistiu em um jogo desenvolvido para o ensino da Física no Ensino Médio, tendo como base as ideias de Vygotsky e Dewey para desenvolvimento e método de utilização do mesmo. Foi observado que os conteúdos de

História da Física, além de aumentar o nível de conhecimento dos alunos em relação a disciplina como um todo, serviu como forma de chamar a atenção, e possibilitou que prendêssemos a atenção dos alunos durante a aplicação do jogo, e até mesmo depois durante a entrevista. Tornando possível concluir, por meio das respostas dadas, que Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 224 o trabalho contribuiu de forma positiva para melhorar a imagem da Física para com os alunos, ao mesmo tempo em que ensinou novos conteúdos e conseguiu avaliar conhecimentos prévios. Calculamos separadamente o aumento dos acertos em cada questão após a aplicação do jogo, tendo no primeiro ano um aumento médio de 33,33%, no segundo de 44,44% e no terceiro a melhora média obtida foi de 43,75%. O que nos permite concluir que o trabalho desenvolvido seja um bom instrumento para se utilizar em sala de aula. A partir dos resultados obtidos, acreditamos que o jogo cumpriu o papel para o qual foi desenvolvido: ensinar de uma maneira de lúdica. E conseguiu ir além do que esperávamos, pois, mesmo a abordagem tendo sido completamente conceitual, verifica-se que auxiliou para que os alunos melhorassem o seu rendimento em questões nas quais se faz necessário o uso de equações matemáticas. Comprovou-se que foi possível aprender Física sem a utilização maciça (ou única) de equações de abordagem teórica matemática. Indicamos que não estamos tentando tirar a importância das mesmas, apenas dizendo que a Física vai muito além de simplesmente fazer cálculos, e por isso não deveria ser o foco principal da disciplina ao ser abordada em turmas da educação básica. Samantha de Lemos Souza é Mestranda na Universidade Federal de Lavras (MG), Licenciada em Física pela Universidade Federal Fluminense (RJ) no Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior e Adílio Jorge Marques é Professor Adjunto da Universidade Federal Fluminense (RJ), Instituto do Noroeste Fluminense de Educação Superior.

BROUGÉRE, G. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998 DEWEY, J. Como Pensamos: como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo, uma exposição. São Paulo: Editora Nacional, 1979. KISHIMOTO, T. M. (org). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. São Paulo: Editora Cortez, 1997. REGO, T. C. Vygostsky. Uma perspectiva históricocultural da educação. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Editora. Martins Fontes, 1984. CARUSO, F. MARQUES, A.J., OGURI. VÍTOR. Galileu na sala de aula. São Paulo: Livraria da Física, 2013. NETO, E. R. Laboratório de matemática. In: Didática da Matemática. São Paulo: Editora Ática, 1992. 200p. p. 44-84. RIZZO, G. O Método Natural de Alfabetização. In: Alfabetização Natural. Rio de Janeiro: Francisco Alvez, 1988. p. 33-129. RICARDO, E. C. e FREIRE, J. C. A. A Concepção dos Alunos Sobre a Física do Ensino Médio: um estudo exploratório. Revista Brasileira de Ensino Física. vol.29, n.2, p. 251-266, 2007. BRASIL, Secretaria da educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio: Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Brasília, MEC, vol. 2, 2006. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/bo ok_volume_02_internet.pdf>. Acesso em: 09 ago. 2015 MORATORI, P. B. Por Que Utilizar Jogos Educativos no Processo de Ensino Aprendizagem? Disponível em: <http://www.virtual.ufc.br/solar/aula_link/lqui m/I_a_P/Psicologia_educacao_II/aula_037754/imagens/02/Jogos.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2015 SEEDUC. Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/seeduc/exibeconte udo?article-id=759820>. Acesso em: 09 ago. 2015.

Referências bibliográficas Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 225

Interdisciplinar

SAÚDE E SEGURANÇA NA INDÚSTRIA EXTRATIVA BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DE RESULTADOS ENTRE BRASIL E AUSTRÁLIA Por Romeu Ferreira Emydio e Luiza Helena Pernambuco de Fraga Rodrigues

Resumo: As indústrias de extração mineral e de petróleo e gás têm um papel de destaque na economia do Brasil e da Austrália. Enquanto estes dois países apresentam formas de governo, estruturas organizacionais, heranças culturais e sociais diversas; ambos têm em comum a indústria mineral e de petróleo como fatores imprescindíveis para alavancarem o bom desempenho de suas economias e para a manutenção de suas respectivas matrizes energéticas. Entretanto, em contraste com a boa performance em termos gerais do setor, quando são observados os índices em Saúde e Segurança Ocupacionais (SSO) das operações da indústria extrativa, pode-se observar que se trata de um setor de alto risco com grande suscetibilidade a fatalidades – como já foi evidenciado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e pela OIT (Organização Internacional do Trabalho). Neste recorte temático, apesar do desenvolvimento deste setor industrial em ambos os países, percebe-se um contraste entre os resultados obtidos pela Austrália e pelo Brasil no setor mineral, especialmente nas duas últimas décadas. Nesse estudo de caráter exploratório, foi realizada uma análise comparativa do desempenho ocupacional australiano e seus resultados visando contribuir para metas de redução das taxas de fatalidade e incidentes no setor extrativo brasileiro. Acreditase que o futuro intercâmbio de conhecimento e experiências intra-setoriais possa ser produtivo para a melhoria de desempenho da indústria extrativa em termos de Saúde e Segurança Ocupacionais (SSO) no Brasil. Palavras-chave: Saúde e segurança ocupacionais (SSO); fatalidades; indústria extrativa; indústria mineral; indústria petrolífera

1.

Introdução

A

(IBRAM/ICMM, 2013, p.78) mesmo o Brasil tendo

indústria extrativa mineral tem um papel

de destaque na economia do Brasil e da

apenas

30%

do

seu

território

mapeado

geologicamente (IBRAM, 2011, p.7).

Austrália. A mineração é responsável por

A Austrália, por sua vez, tem um histórico de

8% do GDP australiano (ABS, 2014); no Brasil, ela

exploração dos recursos minerais intensivo, tendo

responde por 4% do GDP e por sua vez compõe 33%

investido maciçamente em pesquisa e mapeamento

das exportações brasileiras (IBRAM/ICMM, 2013,

de suas reservas. E apesar dos gastos com exploração

p.34 e p.6). O “setor mineral tem sido um elemento

de novos depósitos minerais, o ritmo de descobertas

verdadeiramente indispensável da impressionante

de potenciais sítios extrativos de larga escala na

recuperação

Austrália tem declinado nos últimos anos (GUJ &

macroeconômica”

do

Brasil

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 226 SCHODDE, 2013). Sabe-se, contudo, que ambos os

contribuiu para 34% do consumo mundial de

países contam com o petróleo e com o carvão

energia, enquanto o carvão mineral contribuiu com

mineral, em proporções diferentes, como importante

26% (DNPM, 2012). Tanto Brasil quanto Austrália

fonte de energia para distribuição direta, ou como

figuram entre os maiores produtores minerais,

motor para outros setores industriais, o que é de fato

considerando inclusive outras commodities.

uma tendência global. Em 2012, o petróleo

Tabela1: Grandes Produtores de Minerais – uma breve comparação internacional

Ano 2009

Petróleo

Ferro

1000

1000t

barris/dia

Carvão Mineral

Bauxita

Ouro

Kt

t

1000t

AUSTRALIA

559

394

335

63

220

BRASIL

2.029

303

6

28

60

CHINA

3.790

234

2.845

37

300

RUSSIA

10.032

91

229

3

185

USA

7.196

27

906

-

210

Fontes: ABS (Australian Bureau of Statistics); CNI (Confederação Nacional da Indústria); DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral); MCA (Minerals Council of Australia); USGS (United States Geological Survey).

Segundo o Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), a indústria mineral é "o setor privado que mais investe no País, afinal, são em média mais de US$ 13 bilhões ao ano”. E “este valor é reavaliado pelo IBRAM periodicamente" (IBRAM 2011, p.6). Dados do IBRAM também indicam que o setor mineral em 2011 empregou no Brasil cerca de 2,2 milhões de trabalhadores diretos, “sem levar em conta as vagas geradas nas fases de pesquisa, prospecção e planejamento e a mão de obra ocupada

relação é considerada de 1:13; ou seja, para cada vaga direta são geradas 13 novas vagas. Importante

salientar

que

a

Organização

Internacional do Trabalho (ILO, na sigla em inglês) e a Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD, na sigla em inglês) classificam as atividades inerentes à indústria mineral como de alto risco em nível global (ILO, 2014; OECD, 1989) e, portanto tal risco ocupacional sujeita um contingente de pelo menos 2,2 milhões mão de obra

nos garimpos” (IBRAM, 2012, p.10), já que esta Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 227 ativa apenas no Brasil. Como já ressaltou Hodge (2014), além da importante perda de vidas humanas, os altos índices de mortalidade trazem implícito um expressivo impacto orçamentário e produtivo para as

2. Despesas diretas e indiretas decorrentes de mineração (custo de produção) 2.1

De quem é a Responsabilidade Direta.

economias dos países tanto nos casos de acidentes

Em relação à mineração no Brasil, a

fatais como nos casos de acidentes que provocam

competência para legislar sobre este assunto é

afastamento permanente ou temporário das

privativa da União, na forma do artigo 22 da

atividades laborativas, onde há perda da qualidade

Constituição da República Federativa do Brasil de

de vida, além das despesas diretas e indiretas que ao

1988 (CRFB/8),

final das contas impactam as comunidades como um todo. Importa

observar

que

apesar

da

global

Art. 22, XII, da CF: Compete privativamente à União legislar sobre: XII – jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia.

interconexão entre as indústrias de energia e extração mineral, os resultados em saúde e segurança

A CRFB/88 também determina que é direito de

do trabalhador destes setores podem variar

todos um ambiente saudável, na forma do artigo 225,

consideravelmente entre diferentes países, diversas

abaixo transcrito:

empresas, localização dos sítios de extração e tipos de recursos minerais. A experiência do Instituto para a Mineração Sustentável (SMI, Sustainable Minerals

Institute, na sigla em inglês) em analisar o desempenho global da indústria extrativa demonstra

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações.

que incidentes acontecem no local de trabalho de acordo com uma complexa interação de condições organizacionais e de gestão; legislação; condições técnicas; condições ambientais e sociais (HARRIS et al., 2014). Com o papel econômico importante da mineração para os países em foco, entende-se o impacto em escala que as taxas de fatalidades e incidentes ocupacionais podem assumir caso o

Cabendo aos estados e municípios a proteção, como manda o art. 23: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: VI proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII preservar as florestas, a fauna e a flora”, deixando claro o dever do Estado em relação a preservação do Meio Ambiente.

desempenho em termos de SSO não seja tratado como prioridade no setor. Este estudo buscou dados

Ou seja, a preservação é competência comum, mas,

de SSO na Austrália e Brasil no setor mineral e

legislar e competência privativa da União. No que

realizou uma análise comparativa dos resultados em

tange à responsabilidade civil objetiva, manda o

fatalidades e dos investimentos em SSO nos últimos

parágrafo 6º do art. 37 da CF/88:

anos nos dois países.

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 228 O Estado, dotado do poder de polícia que compõe

somando-se os casos de mutilação, morte e doença,

todos os atos administrativo tem o poder/dever de

torna esta atividade uma, senão a mais, perigosa

defender e preservar o meio ambiente, através de

para

fiscalização e coibição a prática de atos lesivos.

considerando os três estados com maior produção:

Surgindo, assim, sua responsabilização por ato de

Goiás, Minas Gerais e Pará.

terceiro que, com sua permissão exerceu múnus público. Isso está previsto também na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98)

acidentes

fatais

no

trabalho.

Isso,

De 2000 a 2010, a Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (Fundacentro)1 constatou que o Índice Médio de Acidente Geral no Brasil foi 8,66%,

Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.

enquanto que na mineração, este índice pula para 21,99%, em Minas Gerais porexemplo, quase três vezes maior que a média nacional. Isso decorre de vários fatores. Inicialmente

2.2 A questão da propriedade do solo e do subsolo na legislação brasileira na Constituição da República. Subsolo é da União:

merece destaque o fato de que a grande maioria

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União,garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.

terceirizados, objetos de um contrato feito entre o

§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o "caput" deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. (Grifos e destaques nossos. )

dos que trabalham em minas não são empregados daqueles que exploram as lavras, mas sim, tomador (mineradora) e o prestador (terceirizador). Isso não coladora para uma representação sindical e, consequentemente, órgãos de fiscalização mais cuidadosos (CIPA, por exemplo) O setor emprega 3 milhões de pessoas, dos quais 1,5 milhão são terceirizados e apenas 500 mil têm carteira assinada, segundo dados da Frente Sindical Mineral2.

3.2 - Da fiscalização precária Os terceirizados são as primeiras vítimas desta

3. Com relação à exploração das reservas minerais para fins comerciais. 3.1 Dos contratos de trabalho que vigem neste ramo de atividade empresarial e da responsabilidade civil objetiva do estado.

corrente de negligência. Segundo a Força Sindical na mineração, para cada dez mortes na mineração, oito são de terceirizados, revela Anízio Teixeira3. As despesas com relação a este fato são complexas, por ser extremamente difícil trazer ao pólo passivo da relação processual o Estado,

A atividade de mineração é a mais letal para trabalhadores no Brasil, segundo o MTE que,

1http://www.fundacentro.gov.br/

acesso em 04/09/2016

2http://www.fsindical.org.br/ acesso em 04/09/2016

responsável indireto, pois a terceirização tem também o escopo de afastá-lo deixando aos 3http://www.fsindical.org.br/ acesso em 04/09/2016

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 229 ‘tercerizadores’ a responsabilidade. E quando “eles”

Complementarmente,

não “respondem”? Quando nem a ‘terceirizadora’

bibliográfico para computar o número de fatalidades

comparece em suas responsabilidades? Há dezenas

ocorridas na indústria mineral brasileira entre os anos

de empresas que fornecem a mão de obra, mas,

de 2002 e 2009, já que os Anuários Estatísticos da

quando

verbas

Previdência Social revelam dados estratificados por

praticamente

gênero e por localização (urbana x rural), mas não os

ajuizadas

para

trabalhistas/indenizatórias,

honrar elas

as

evaporam-se no ar.

utilizou-se

levantamento

estratifica segundo segmentos industriais.

Esta fuga das responsabilidades deixa o Estado

Para a análise comparativa em termos de resultados

como sujeito passivo subsidiário, sem compromisso

ocupacionais entre Brasil e Austrália, tomamos os

do disposto no art. 37, § 6º, CRFB/88, que comanda

EUA como contraponto para uma contextualização

a responsabilidade objetiva do Estado. E se isso não

das questões abordadas e para a análise proposta

basta, na Previdência social cabe a Teoria do Risco

neste estudo exploratório. A comparação de dados

Integral, ou seja, o empregado que sofreu o dano,

não se estendeu além de 2009 por não estarem

será

disponíveis dados sobre o Brasil para os anos

recebido,

independentemente

da

complementação ou do apoio do patrão.

posteriores. Do mesmo modo, a análise de custos em SSO não pôde ser longitudinal, já que as informações sobre a Austrália tiveram uma mudança no modo de

3.3 - Das Pessoas Jurídicas Responsáveis.

relatar os custos a partir de 2009-2010, o que

O custo destas negligências em série praticadas nas

atividades

sobremaneira

mineradoras a

Previdência

têm

onerado

social,

dificulta a comparabilidade por passar a incluir custos indiretos e custos das empresas privadas num

sem

somatório de custo total, o que não é se dá do mesmo

compromisso dos reflexos no custo do produto, e

modo no Brasil. Ainda, as fontes consultadas para este

que soma cada vez mais vítimas. Responsabilizar o

estudo preliminar não disponibilizam dados da

Estado, como visto, não está fora de cogitação.

mesma maneira.

Segundo dados da Fundação Anízio Teixeira, para cada dez mortes na mineração, oito são terceirizados.

Os investimentos em SSO pelo governo australiano e brasileiro foram observados e comparados entre os anos de 2004 e 2010, como também em termos de porcentagem do GDP dos respectivos países e comparados aos dados mundiais revelados pela OIT

4 -Materiais e métodos Informações de banco de dados do ABS (Australian

(Organização Internacional do Trabalho).

Bureau of Statistics); CNI (Confederação Nacional da Indústria); DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral); MCA (Minerals Council of Australia); USGS (United States Geological Survey). MPAS (Ministério da Previdência e Assistência Social);

MSHA

(Mine

Safe

and

Health

Administration); SWA (Safe Work Australia).

5 - Resultados Existem diferenças expressivas nos índices de Saúde e Segurança Ocupacionais entre Austrália e Brasil, que se evidenciam nos índices de fatalidade descritos na tabela 2.

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 230 Tabela 2: Número de fatalidades relatadas por ano na mineração em alguns dos maiores produtores da indústria mineral

Anos

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

AUSTRÁLIA

7

11

11

8

14

7

12

10

BRASIL

37

25

31

43

38

38

43

41

USA

70

56

55

58

73

67

67

53

Fontes: MPAS; MSHA; SWA; SANTOS (2012), USGS.

Segundo o Ibram, de 1998 a 2005, o setor mineral

Brasil e assim a análise comparativa fica limitada aos

no Brasil liderou os índices de mortalidade e

custos governamentais e do próprio trabalhador, ou

acidentes

da sociedade.

do

trabalho

(IBRAM,

2014;

DATAPREV/MPAS, 2014), superando todos os outros setores da economia, o que é um dado alarmante. Pela tabela 2 podemos observar os dados para 2003, 2004 e 2005, onde os dados variam num crescendo, e permanecem mais ou menos estáveis até 2009. A não

O Ministério da Previdência e Assistência Social brasileiro informa que a soma total dos gastos com benefícios devido a acidentes e doenças do trabalho em 2010 custou mais de 16 bilhões de reais aos cofres públicos. Para o então Ministério da Previdência e

ser que os outros segmentos da indústria, no Brasil,

Assistência Social (MPAS) “a dimensão dessas cifras

tenham registrado maior número de fatalidades, de

apresenta a premência na adoção de políticas

fato o desempenho da indústria extrativa no Brasil

públicas voltadas à prevenção e proteção contra os

não passou a melhorar depois de 2005 (até 2009, pelo menos). Pode ter acontecido apenas que outros segmentos

industriais

passaram

a

ter

um

desempenho menos favorável.

riscos relativos às atividades laborais” (MPAS, 2014). A tabela 3 abaixo não inclui gastos das empresas em SSO, e pode-se observar que guardadas as diferenças de câmbio, os custos totais com compensações de

Ainda que, como revela o próprio IBRAM (2014), o

SSO por ano tanto na Austrália quanto no Brasil não

setor mineral tenha sido o que mais investiu no país

são tão díspares e seguem peri passo ao longo dos

nos últimos cinco anos, tal dado levaria a crer que os

anos, com apenas algumas variações. Se no Brasil, tais

investimentos em SSO propriamente dito ou não têm

gastos representam 4% do PIB (Produto Interno

trazido resultados, ou não tem havido suficientes

Bruto); na Austrália eles representam em torno de 5%

investimentos em SSO. Eis, portanto, o que um estudo

do PIB. E a OLP revela que em termos mundiais, os

verticalizado, com análise dos custos em SSO da

custos diretos e indiretos com compensação e

indústria poderia revelar, porém tais dados não estão

doenças do trabalho chegam a 4% do PIB mundial

linearmente acessíveis para cada setor industrial no

Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 231 (ILO, ). Portanto, ambos os países se comportam em torno da média mundial.

Tabela 3: Gastos em SSO pelo governo australiano e brasileiro no período 2004-2010

Gastos em SSO

BRASIL (Em bilhões de $R)

AUSTÁLIA

(Em bilhões de $Aud)

2010

16,60

15,36

2009

14,00

14,73

2008

12,50

9,70

2007

10,70

NA

2006

9,94

NA

2005

9,80

10,20

2004

NA

15,12

Fontes: SFW; AEPS.

Percebe-se que os gastos totais do governo

possível a melhoria nos índices de SSO na indústria

australiano com benefícios por incidentes e doenças

extrativa. Cabe analisar o que tem sido feito na

ocupacionais somaram 15 bilhões e 357 milhões de

indústria extrativa australiana para assegurar

dólares australianos em 2010 (SWA) – e assim, um

melhores resultados, já que este é um aspecto crítico

pouco menos do que o Brasil em termos relativos, se

no contexto ocupacional brasileiro, já que a

mantidos os respectivos câmbios. Mas deve-se

mineração ocupa um espaço expressivo para a

lembrar que a população total do Brasil é cerca de 8

balança comercial brasileira e tem um papel

vezes maior do que a da Austrália, e portanto a

relevante para a nossa matriz energética, mas ainda

proporção de gastos configura-se como bem menor

revela um alto índice de fatalidades e acidentes – o

no Brasil. Desse modo, a semelhança relativa no

que significa a inestimável perda humana e também

montante dos gastos se dissolve quando distribuídas

o elevado impacto financeiro.

per capita. Tal quadro geral, entretanto, basta para nos remeter à hipótese de maior investimento geral em termos de SSO no contexto australiano - onde, por sua vez, a mineração não figura no topo da lista

6 - Discussão e análise Já foi destacado que as diferenças de desempenho

compensações

em SSO podem variar em função das estruturas

decorrentes de acidentes relacionados ao contexto

governamentais dos países, em função da aplicação

ocupacional. Este dado é também um indicativo do

das respectivas legislações, por influência do grau de

desempenho menos crítico em SSO do setor extrativo

desenvolvimento econômico, dos valores e cultura de

como

setor

a

mais

receber

na Austrália do que o ocorrido no Brasil. Portanto, é Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 232 segurança e saúde ocupacionais na organização e nos

acidentes mais baixos e com menor número de

respectivos países.

acidentes registrados” (MEARNS; WHITAKER; FLIN,

É muito comum, como já observou Santos, recorrerse à carência de alta tecnologia na indústria extrativa mineral brasileira para justificar seus altos índices de fatalidade (SANTOS, 2012, p.61). No entanto, se considerarmos as taxas dos Estados Unidos, que tal como Austrália investe em recursos tecnológicos no setor, podemos inferir que tecnologia por si só não

2003, p. 641). E de acordo com a Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento, “a gestão de risco é o fundamento para toda a gestão de segurança" (OECD, 2008, p.57). Portanto, parece que o processo decisório conta mais do que as tecnologias para a melhor performance em SSO, ao menos na indústria mineral.

poderia explicar as diferenças nos números de fatalidades

da

indústria

mineral

australiana,

Representante de outra área de alto risco no setor extrativo, a Associação para a Conservação Ambiental

as explicações às meras classificações econômicas

International Petroleum Industry Environmental

entre países desenvolvidos e em desenvolvimento,

Conservation Association), por sua vez, considera no

pois esta razão por si só não garante bons resultados

mesmo sentido que a “gestão de risco é o processo

em SSO. Eis o que pretendemos mostrar com a tabela

que

dois, e a decorrência do grau de desenvolvimento

quantitativamente) e ranqueia os impactos (positivos

econômico dos países – que é o acesso às tecnologias

ou negativos) que podem ser produzidos por uma

inteiramente

dada atividade” (OGP-IPIECA, 2012, p.10). E ainda

determinante, do contrário não haveria diferenças

que “duas importantes considerações no processo de

expressivas entre Austrália e EUA nos resultados de

gestão de risco são a avaliação de dados existentes e

fatalidades do setor extrativo.

a

não

parece

ser

um

fator

Ao observarmos a tabela 2, percebemos a diferença entre os índices de fatalidade de três países selecionados: no período de oito anos entre 2002 e 2009, a Austrália soma um total de 80 fatalidades; no mesmo período o Brasil soma 299 fatalidades; e o Estados Unidos somam 499 fatalidades. Entretanto, devemos ressaltar que no caso do Brasil, precisamos

da

investiga,

determinação

Indústria

(IPIECA-

americana e brasileira. Portanto, não se pode resumir

calcula

da

Petrolífera

(qualitativamente

necessidade

de

ou

novas

informações” (OGP-IPIECA, 2012, p.10). Sendo assim, “as fontes de informação existentes devem ser cuidadosamente revistas para garantir a acurácia, relevância e completude” dos dados (OGP-IPIECA, 2012, p.10) para a gestão mais eficiente em SSO. E desse modo, facilitar e gerar as devidas ações de controle.

ser cautelosos, pois pode haver subnotificação

Embora a descrição pareça simples, nem todas as

(ALMEIDA & BARBOSA-BRANCO, 2011). Interessa

indústrias do setor extrativo têm sistemas de gestão

assim, entender quais são as práticas do setor na

de risco implantados. E nem todas as empresas

Austrália que têm levado aos índices decrescentes de

disponibilizam seus dados de SSO com linearidade.

fatalidades ocupacionais.

Ao mesmo tempo, nem todos os países dispõem de

Ao analisar variações nos índices de SST mundiais, pesquisa realizada por Mearns, Whitaker e Flin revelou que a "proficiência em práticas de gestão de segurança foi associada com índices oficiais de

dados organizados, ou os dispõem segundo um padrão irregular. Ao se observar os dados do presente estudo, a forma de disponibilizar os dados chama muita atenção. E o Brasil, entre os dois países Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 233 selecionados, é o que menos dispõe seus dados

Com base na expertise em redução de fatalidades e

estatísticos, o que impediria uma eficaz gestão de

incidentes em SST que se observa na indústria

riscos ocupacionais.

extrativa australiana em comparação com a realidade

A Austrália é tomada como exemplo, pois o país alcançou redução em torno de 50% nos índices de fatalidades e acidentes no setor mineral nas duas últimas décadas e se tornou referência internacional de desempenho em saúde e segurança do trabalhador (YANG, 2012). Poplin et al. (2007) observam que as taxas de acidentes com afastamento em minas de carvão, como um único exemplo do setor extrativo mineral, entre 1996 e 2003 apresentaram, na Austrália, redução de 78% e 52% respectivamente nos dois estados de tradição em mineração daquele país, a saber Queensland e New South Wales (POPLIN et al., 2007). Os mesmos autores comparam estes índices com a média de redução alcançada nos Estados Unidos, que foi de apenas 20% no mesmo período. Poplin et al. (2007)

brasileira, e como pretendemos contribuir para o melhor desempenho em SSO, é preciso conhecer e entender como tais fatores interagem e influenciam as condições e administração das rotinas de trabalho na indústria mineradora e petrolífera. E qual o papel da gestão de risco, seja através da implantação de sistemas, seja através dos processos decisórios e ações dos empregados, para influenciar e melhorar os resultados e índices em SSO. Entre os objetivos do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE, 2015) já constam ações que vemos como absolutamente necessárias, tais como a do “eixo 4”: ampliação das análises de acidentes do trabalho realizadas pelos auditores fiscais do trabalho, melhorando sua qualidade e divulgação, de modo a contribuir para prevenção” (TEM, 2015, p. 12).

também atribuem o impressionante decréscimo nos índices de SST na Austrália a adoção de medidas baseadas em gestão de risco. A realidade dos índices de SST no Brasil contrasta com a tendência australiana, onde dados do IBRAM indicam, por exemplo, que o número de incidentes na indústria extrativa mineral brasileira quase dobrou de 2003 até 2006, aumentando em 83% (IBRAM, 2012). Tais resultados se distanciam do que preconiza a OECD, para a qual a meta de todas as empresas deveria ser atingir a marca “zero incidentes” (OECD, 2008, p.43). Hodge propõe ir mais longe e propõe ter-se como meta o índice “zero mortalidade” no setor mineral (HODGE, 2014), o que algumas empresas já adotam seja por exigências para obter certificações de qualidade, seja por responsabilidade social corporativa, seja ainda por compromisso com o paradigma da sustentabilidade.

7 - Considerações finais Observamos

que

pode

haver

limitações

relacionadas ao acesso às bases de dados e a atualização dos mesmos pelas agências e instituições pertinentes à saúde e segurança do trabalhador, ou mesmo devido à existência de dados suficientes já produzidos, mas não organizados ou divulgados. Uma fonte alternativa de dados seriam os dados brutos das empresas do setor extrativo, entretanto por ser uma atividade não mandatória, as empresas tornam seus dados ocupacionais disponíveis ao público de maneira variável. A disponibilidade maior de dados permitiria análises quanto às commodities, quanto às práticas organizacionais, quanto às empresas, e permitiria a proposição de soluções com base nas práticas de gestão de riscos. Justamente quanto a esse aspecto, os dados com os quais já tivemos contato como ponto de partida nos Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 234 permitem observar que as diferenças entre o Brasil e

FROMMER, HARRISSON, 1990; BADRI, NADEAU,

Austrália são consideráveis. Tais diferenças podem

GBODOSSOU, 2011); já os estudos da realidade em

ser atribuídas principalmente à gestão de risco entre

SST da mineração latino americana (HILSON, 2000;

as indústrias extrativas da Austrália e Brasil, tanto na

GIUFFRIDA, FIUNES, SAVEDOFF, 2002) são raros

produção teórica quanto na experiência prática.

pelas justificativas nas diferenças econômicas.

Desse modo, há oportunidades de transferência de

Entretanto,

aprendizado e adaptação entre as experiências dos

globalização, a formação do MERCOSUL, a

dois países quanto às práticas de gestão de riscos à

emergência dos BRICS, e ainda as fusões corporativas

saúde e segurança ocupacionais na indústria

e

extrativa mineral. Acreditamos que um estudo

transnacionais trazem ao Brasil uma oportunidade

cruzado comparando a adoção da gestão de risco em

singular de elevar seus padrões de gestão em SSO

outros países, em diversas empresas do setor, possa

tendo em vista as metas da WHO, ILO e OECD. A

vir a contribuir para o melhor entendimento das

Norma Regulamentadora 22 (NR-22) já estabeleceu

ações gerenciais que permitem um melhor

a obrigatoriedade da adoção da gestão de risco na

desempenho da indústria extrativa, com benefício

mineração brasileira. Precisa-se caminhar neste

para os trabalhadores e para a sociedade como um

sentido, pois a mera criação de leis sem as condições

todo.

para sua aplicabilidade e gestão, podem não atender

Este aspecto nos parece de maior potencial para

eventos

surgimento

de

econômicos

grandes

como

a

conglomerados

as necessidades ou sanar os pontos críticos do setor.

facilitar o melhor desempenho, pois procedimentos

Em função das configurações decisórias das

de gestão, como sabemos, transpõem a legislação

empresas responsáveis pela indústria extrativa em

internacional, nacional, regional ou local para se

cada país e suas formas de gestão dos riscos em SST,

traduzirem no dia-a-dia das empresas, através das

este potencial benéfico parece não ter sido

decisões

dos

devidamente explorado. Haja vista o mais recente

empregados. Com as experiências bem sucedidas de

acidente ocupacional catastrófico de Mariana, numa

gestão em SST traduzidas em reduzidos índices de

empresa de capital misto brasileiro e australiano, cuja

fatalidades e incidentes em algumas organizações - e

troca de expertise parece ter favorecido mais ao

neste estudo inicial, possível de ser observado na

capital financeiro do que ao capital humano.

administrativas

e

ações

Austrália -, acreditamos que futuros estudos comparativos transnacionais, possam evidenciar diferenças relevantes e favorecer a melhoria dos resultados em SSO na indústria extrativa mineral como um todo, sobretudo com o fenômeno da globalização – que permite às empresas atuarem em diferentes localidades do mundo, trazendo a oportunidade de transpor boas práticas no mercado.

Justamente como revela o IBRAM, se o setor mineral é o que mais tem investido no país nos últimos 5 anos, tal dado levaria a crer que os investimentos em SSO ou não têm trazido resultados ou não têm havido suficientes investimentos em SSO. Eis o que um estudo verticalizado, com análise dos investimentos em SST pela indústria poderia revelar, mas tais dados não estão linearmente acessíveis para

Existem muitos estudos tratando das condições de

cada indústria do setor mineral no Brasil. Este fato se

SST da indústria extrativa de países desenvolvidos

constitui assim na limitação maior do presente estudo

(POPLIN et al., 2007; YANG, 2012 ; STOUT,

e também aponta para a possibilidade de futuro Gnarus Revista de História - VOLUME VIII - Nº 8 - SETEMBRO - 2017


G N A R U S | 235 desenvolvimento

da temática com

vistas à

implantação de melhorias na indústria extrativa. Romeu Ferreira Emydio é Pesquisador do IBGE, Mestre em Ensino e Saúde pela UNIAN e Doutorando pela COPPE/UFRJ e Luiza Helena Pernambuco de Fraga Rodrigues é Advogada, Mestra em Ensino e Ambiente pela UNIAN, Doutoranda em Políticas Públicas no PPEDIE/UFRJ e Coord de Grupos de Trabalho e Pesquisa em Política Nacional de Resíduos Sólidos na UNESA.

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