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Opinião

SEREMOS O CARTÓGRAFO DE BORGES OU OS URUBUS DIPLOMADOS? O QUE SE PASSA COM OS HISTORIADORES? Por Renato Lopes Pessanha

C

onversando com alguns colegas do campo

suspeito e em muitas vezes presta mais um

das ciências humanas, principalmente

desserviço do que realmente colaboração ao

historiadores, e participando de alguns

processo de conhecimento: o intelectual isentão, o

acalorados debates, seja pessoalmente ou pela

que fica em cima do muro, pior do que caco de

internet, eu tenho notado um estranho movimento

vidro. Esses tipos são muito bem encarnados por

no campo da História, que deve ser muito parecido

figuras tipo Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé,

com o mesmo movimento que o estômago faz

entre outros. É incomodo perceber que tem uma

quando quer vomitar e não consegue. Parece estar

parte da esquerda vestindo a carapuça da direita,

ressurgindo uma espécie de busca quase patológica

falam em polarização (com desagrado) e compram

por uma pretensa objetividade canônica, uma

esse discurso do “tomar partido é ruim, vamos

obsessão com a exatidão e uma vontade de acabar

pensar na causa maior”. Oras, a síndrome do gestor

com as cores da História que só se compara com as

público, que se candidata ao cargo público por um

do João Dória de apagar os grafites de São Paulo.

partido político, em uma eleição de voto direto,

Estamos perdendo a habilidade de pensar no dissenso, no contraditório e, principalmente, de

parece que anda contaminando muita gente. Por que será?

aceitar o antagonismo. E justamente por causa

Creio que no fundo isso está associado a uma

dessas deficiências que tem o azedo aroma da

tendência de se pensar os processos históricos,

dissonância cognitiva e social, a malfadada

políticos, sociais e culturais fora do campo dos

objetividade pós-positivista começa a repousar

afetos, das paixões, do imaginário e daquilo que é

num tipo de intelectual pensador que é altamente Gnarus Revista de História - VOLUME IX - Nº 9 - SETEMBRO - 2018


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subjetivo. Acreditamos mesmo no ranço da

entendi, recuso-me a me calar e a deixar que um

neutralidade a ponto de renegarmos toda e

racista/misógino/truculento, tente se sobrepor

qualquer ideia que nos conduza por um campo

àqueles que realmente querem promover uma

matizado a nuançado, onde o pensar exige mais

discussão política válida, e no final eu sou igual a

que números, datas e que está além da simples

eles, o errado? Qual o sentido disso? Imagine se os

relação causa-efeito. Ou seja, estamos fugindo da

russos da revolução de 1917, os escravos do Haiti,

divergência como um pastor da Universal foge do

as mulheres sufragistas, os cubanos, aqueles que se

fisco. Tudo isso em nome de que? Hum? Em nome

opuseram ao Francisco Franco, tivessem pensando

de uma forma de pensar renascentista/iluminista

assim.

que não cabe nenhum pouco na nossa realidade. As vezes parecemos dispostos a incorporar até mesmo o absurdo como um ponto a ser considerado em qualquer

discussão

política,

para

não

parecermos “polarizadores” ou “extremistas”. Nesse hall de anti-proezas vale até mesmo dar voz aos fascistóides de plantão, em nome da liberdade democrática (que eles não defendem), só para mostrarmos nossa “superioridade”. Desde quando é o poste que urina no cachorro? Desde quando com fascista tem conversa. Vale a pena? Eu respondo: não. Pois é nisso que eles ganham terreno. Se ser neutro é dar voz a esses caras, prefiro ser fanático e mandar todos calarem suas bocas bostejantes. “Ah, mas você está sendo igual a eles”. Deixa eu ver se

Por outro lado, vejo nesse empobrecimento da forma de pensar e agir uma dificuldade inerente a pouca disposição de se assumir um compromisso ou responsabilidade com alguma causa do seu tempo. “Fico em cima do muro, com uma mão dou a Deus e a com a outra dou ao Capiroto e fico me equilibrando”. Olha...nem Deus nem o Tinhoso se contentam com uma mão só. Se ficar nesse jogo uma hora você acaba sem uma das mãos...e sem o restante todo. Vargas que o diga. Há por trás desse recrudescimento também há uma certa soberba intelectual. A pessoa tenta pensar fora da caixinha e termina pensando fora do bom senso. Como os intelectuais, do porte de um

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GNARUS |7 Jaques Derridá, que quando dos atentados

direita é uma massa portadora de dissonância

terroristas de 2001, junto com mais uma galera,

cognitiva que recalca seus ressentimentos e produz

relativizaram a tortura e as agressões militares dos

esses cães hidrófobos que gritam “vai pra Cuba” e

EUA aos países árabes. Isso nos leva a uma outra

“o comunismo matou 10 bilhões de pessoas” (não

questão igualmente sensível: tomar partido, mudar

sei de onde saiu essa cifra, mas peguei como

de ideia, não é crime. Porém tenha respeito pela

exemplo). Tentar convence-los do contrário é uma

inteligência alheia e assuma sua postura. O que não

perda de tempo. Quando os cães ladram a caravana

dá para engolir é pagar de intelectual com

continua passando, mas se o cão está incomodando,

necessidade de terapia behavorista e sair fazendo

eles são afastados. Simples assim.

tábula rasa de tudo.

Coxinhas, mortadelas, ressentidos? Com certeza.

A neutralidade, a isenção, tem produzido uns

Quem um dia leu Max Weber e entendeu bem o

libelos obscuros. Fala-se tanto da polarização como

que é um “tipo Weberiano” sabe de sobremaneira

se ela fosse uma anomalia, um acidente de percurso

que essas generalizações correspondem a uma

nessa terra maravilhosa. Não é por nada não,

realidade bem palpável, bem concreta. E para além

acidente de percurso aqui é a democracia. A

das denominações a um profundo significado

polarização existe desde quando um certo

histórico e social. Novas formas de representação

português colocou os pés aqui. Existiu, existe e

exigem novas formas de tratamento. Isolar isso

continuará existindo. Aí entra o peso de

como quem isola a cepa de uma bactéria, está

desconsiderar os afetos: ninguém, seja por força da

perdendo tempo. Ou aceitamos as paixões ou

cultura, das formas de se comunicar, manifestar e

seremos piores do que os cães que ladram, seremos

organizar, fica mais calado ou diletante, todos se

só carcaças pelo caminho ou os violinistas dos

manifestam de alguma forma: seja xingando,

Titanic.

batendo, dando respostas atravessadas. O que temos são novas formas de pensar e viver essa polarização. Nesse momento erguer uma Torre de Marfim chega a ser uma ideia pior do que tentar erguer uma Torre de Babel. Os afetos, ou melhor, a polarização, nos faz a anti-babilônia, ser incisivo, nesse momento, pode te fazer menos gado do que quem insiste em criar rótulos, metodologias e receitas infalíveis para “normatizar” o pensar o histórico e minimizar a polarização social.

Pensando no meu oficio, o de historiador em constante processo de formação, bate uma certa dose de pessimismo, não nego. Me pergunto se seremos o cartógrafo do conto do Jorge Luis Borges, que queria fazer um mapa tão perfeito do reino mas acabou por reproduzi-lo por completo, afinal é onde nossa patologia pós-positivista vai nos levar pelo andar da carruagem. Ou se seremos os urubus diplomados do conto de Rubem Alves, que com inveja do canto dos sabiás, criaram escolas de

Pensar sobre a História, ou ofício de historiador

música, se outorgaram títulos e proibiram os sabiás

nesse momento, também é uma reflexão muito,

de cantar. Em vez de sermos sabiás que cantam com

muito interior de cada um. Como cada um está se

sentimentos, seremos urubus preocupados em criar

situando em relação a tudo o que se passa nesse

burocracias para minar os afetos e as paixões do

momento, como cada um reage a seu tempo, ao seu

campo do conhecimento. Se ninguém faz amigos

espaço, aquilo que lhe desagrada ou agrada. A Gnarus Revista de História - VOLUME IX - Nº 9 - SETEMBRO - 2018


GNARUS |8 bebendo leite, ninguém faz História sem afetos e/ou alguma dose de paixão e reação O quadro abaixo se chama "Academia de Atenas" do pintor Rafael. Só para mostrar que esse tempo aí já passou. E na icônica relação de Platão (apontado para cima) e Aristóteles (apontado para baixo), já se encontra o germe das oposições que se consolidariam ao longo dos séculos. Fala-se muito da "justa medida de Aristóteles", mas ela jamais vai ser alcançada enquanto houverem isentões e tentativas

vãs

e

até

espúrias

de

pseudo

neutralidade. A justa medida é, antes de tudo, tomar causa. No mais esse cenário da pintura já morreu, tem tempos.

Renato Lopes Pessanha é Colunista da Gnarus, Mestre em História Social e Doutorando em História Social - PPGH/UNIRIO.

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