ANO III - Nº 5 - AGOSTO - 2015
GNARUS
Revista de História - ISSN: 2317-2002
CAPOEIRA ROMANIZAÇÃO
HISTÓRIA PERSUASÃOAMÉRICA GUERRA
CIGANOS
SODOMIA
MÚSICA
FEMINILIDADES1932 IMPERIALISMOS OTAN
SANTO OFÍCIO
ANCESTRALIDADE CARNAVAL CONGRESSO DE VIENA
ENSINO
FOTOGRAFIA CINEMA
E.U.A.UMBANDA
GNARUS |2
Sumário Ao leitor .................................................................................................................................................................................................................. 3 Fernando GralhaError! Bookmark not defined.
ARTIGOS:
Impérios e Imperialismos. Uma breve história conceitual. ............................................................................................................................ 4 João Victor da Mota Uzer Lima Error! Bookmark not defined. As feminilidades no poema de Mio Cid .......................................................................................................................................................... 19 Lívia Maria Albuquerque Couto Capoeira e literatura: um panorama entre a ficção e a realidade .............................................................................................................. 26 Hugo Sbano A construção de um conceito: a romanização ............................................................................................................................................... 32 Alexandro Almeida Lima Araujo e Claudia Patrícia de Oliveira Costa Prática e punição da sodomia no século XIII através das Normativas Jurídicas Afonsinas: Las Siete Partidas ................................... 39 Bruna Oliveira Mota Ensino da História: teoria e práticas ................................................................................................................................................................ 41 Rennan de Azevedo Ramos As relações internacionais entre o Congresso de Viena e a grande guerra.............................................................................................. 49 Ricardo Luiz de Souza Um novo velho modelo no novo mundo: a república religiosa secularizada da Giovanni Italia........................................................... 63 Ricardo Cortez Lopes A cultura armamentista da sociedade estadunidense .................................................................................................................................. 70 Giancarlo Monticelli As câmaras municipais na América colonial: poder central e poder local nas instituições coloniais na América portuguesa ........ 73 Miguel Luciano Bispo dos Santos Transações comerciais mercantis: desestruturação social e o tráfico negreiro no reino do Congo no início do séc. XVI ............... 79 Lucenildo Souza Campos e Maria Gonçalves Campos Relações sino-afegãs: impactos da retirada das tropas da OTAN do Afeganistão.................................................................................. 70 Bernardo corais e Paulo Pulcherio Formas de persuasão e controle dos trabalhadores dos trabalhadores dos engenhos no imediato pós-abolição (Zona da Mata Sul de Pernambuco 1884-1893) ............................................................................................................................................................. 70 Maria Emília Vasconcelos dos Santos O carnaval carioca dentro da concepção da resistência do povo negro (desde 1850) .......................................................................... 70 Carlos Augusto Alves Santana Música: linguagem, contexto e recepção ....................................................................................................................................................... 70 Marília Luana Pinheiro de Paiva O culto à ancestralidade no Egito Antigo: uma estrutura africana ............................................................................................................ 70 Claudio Lourenço O tribunal do Santo Ofício português: Notas sobre sua consolidação e atuação ................................................................................... 70 Alex Rogério Silva
MINI-AULAS
Vários .................................................................................................................................................................................................................... 90 Cindye Esquivel e Germano Vieira
COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA
A imagem do sonho no cinema ........................................................................................................................................................................ 83 Rafael Eiras O Nuevo Cine Latino-Americano e uma Argentina memoriosa ................................................................................................................. 90 Renato Lopes
COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA
A fotografia na passagem do séc. XIX ao XX: a democratização da imagem .........................................................................................105 Fernando Gralha
PESQUISA
Ciganos no Brasil: cultura e preconceito no século XXI ............................................................................................................................... 94 Bianca Dias Umbanda, uma religião brasileira com características regionais ............................................................................................................... 97 Marcelo Soares
MONOGRAFIA
Oposição no Distrito Federal em tempos de guerra – 1932........................................................................................................................ 97 Felipe Castanho Ribeiro
RESENHA
Um convite a leitura de “A formação das almas: o imaginário da república no Brasil” ........................................................................117 Fernando Gralha
GNARUS |3
AO LEITOR
"C
ogito, ergo sum". "Penso, logo existo".
uma vez, através de nossos pensantes colaboradores um
Eis
o
cardápio bem variado das práticas e ideais humanos, juntos
fundamento racional, o ponto de
caminharemos por pecados e santidades, liberdades e
partida para a construção de todo o
escravidões, músicas e lutas, textos e imagens, ensino e
pensamento. A Gnarus chega ao seu
aprendizagens, gêneros e etnias, religiões e políticas,
quinto número priorizando assim como o filósofo, o sujeito
sempre dentro da máxima reflexão cartesiana, “cogito,
e não o objeto. E dessa forma, chamamos a atenção para o
ergo sun”.
aí,
segundo
Descartes,
primeiro e maior problema da produção do conhecimento
Acrescentando às intenções e pretensões reflexivas,
científico da História: o sujeito (o historiador) e o objeto (os
trazemos neste número duas novidades, primeiro o
homens no tempo) são o mesmo, isto é, homens. Um
lançamento da seção “Monografia”, na qual publicaremos
problema filosófico e metodológico, pois embora o
na íntegra trabalhos de historiadores recém pós graduados,
conceito de ideias claras e distintas que a metodologia
na estreia, temos o trabalho do Professor e Historiador
historiográfica nos dá e de como isso resolve alguns
Felipe Castanho nos convidando a uma viagem pelos
problemas com relação à verdade de parte do nosso
conturbados tempos de guerra de 1932 e do Brasil de
conhecimento, a complexidade e multiplicidade do pensar
Getúlio Vargas. A outra novidade vem através de nossos
não provê nenhuma garantia de que o objeto pensado
mais novos editores, Cindye Esquivel e Germano Vieira, são
corresponda a uma realidade fora do pensamento, o que
as já tradicionais em nossa página no Facebook, mini-aulas,
nos leva a outra grande questão: Como sair do próprio
pequenos textos sobre História e Historiografia que
pensamento e recuperar o mundo? Longe da pretensão de
trazemos aqui para a partir de micro textos, juntamente
responder a estas questões a Gnarus deste semestre
com todo o conteúdo da revista, reforçar nosso também já
pretende sim fomentar o cogito, o pensamento reflexivo
tradicional convite: uma nova viagem pelo rio da A-Letheia
tão necessário em momentos de crise, é nestes em que se
de nossa musa Mnemósyne.1
estabelece o momento de olhar para trás, recuperar e repensar nosso caminhar. Aspiramos ser um dos pontos de encontro desta reflexão. Para tanto, apresentamos, mais
1
Sobre o A-Letheia e Mnemósyne ver “Ao Leitor” Gnarus, nº 1.
Fernando Gralha
GNARUS|4
Artigo
IMPÉRIOS E IMPERIALISMOS. UMA BREVE HISTÓRIA CONCEITUAL. Por João Victor da Mota Uzer Lima
RESUMO Um conceito é definido por ser uma palavra polissêmica, ou seja, passível de múltiplas interpretações. Uma palavra, por definição, é um vocábulo usado para denominar um objeto, ação ou ideia: um “significante” com um “significado”, um conceito, por outro lado, seria um “significante” com diversos “significados”. Essa polissemia de pelo fato de que um conceito é apropriado por diversas sociedades distintas, e de formas distintas por uma mesma sociedade, durante a história. Sendo assim, um conceito está diretamente ligado à sociedade que o cria ou que o ressignifica. Por isso, a história conceitual (Begriffsgeschichte) e a história social partilham uma coexistência complexa, uma atua no campo da outra de forma que se complementem. O estudo de uma implica – quase que invariavelmente – na outra. O presente trabalho procura explorar esta relação entre as disciplinas através do estudo do conceito de imperialismo, apresentando a forma como o termo fora ressignificado por diversas sociedades distintas e por momentos distintos de uma só sociedade, evidenciando os momentos históricos através da forma como esta se apropria da ideia de Império, Imperialista e Imperialismo alem de problematizar e relativizar os mesmos conceitos. Palavras Chave: Imperialismo. Império. História Conceitual
D
avid Kenneth Fieldhouse escreveu um livro
Capitalist
popular, o termo é empregado na sua definição marxista
Imperialism”, em 1967, parte da serie
de dominação econômica dada pela evolução do
intitulado
“The
Theory
is
“Probems and Perspectives in History”, da editora Longman, onde logo na introdução procura exaltar a dificuldade de se discutir o imperialismo. Diz o autor – famoso pelo seu livro “Economics and Empires, 1830 -
1914” de 1973 e por ser um grande estudioso das políticas econômicas imperiais – que a grande dificuldade na discussão sobre o tema se dá pelas formas em que a palavra é empregada, sendo usada para denominar
expansionista territorial além do evento, ou, no mais
um
evento
histórico,
um
impulso
capitalismo (FIELDHOUSE, 1967). Esse
fenômeno
ocorre
pelo
fato
do
termo
“imperialismo” ser mais que uma palavra, ser um conceito. Por tanto, para compreender a forma como a apalavra é empregada deve-se primeiro compreender a definição de conceito e a diferenciação de uma palavra. Um conceito é definido por ser uma palavra passível de múltiplas interpretações. Uma palavra, por definição, é um vocábulo usado para denominar um objeto, ação ou
GNARUS|5 ideia, um conceito seria um
Latim/Português,
conjunto de ideias que só
Ministério da Educação –
poderiam ser expressas a
como: 1) Poder soberano
partir
de
do
um
mesmo
(Como o de um pai sobre os
logo
“Todo
filhos, ou do senhor sobre os
Conceito se prende a uma
escravos). 2) Supremo poder
palavra, mas nem toda
(de tomar todas as medidas
palavra é um conceito social
de
e
mesmo fora das leis), mando,
vocábulo,
político”
(KOSELLECK,
utilidades
públicas,
1979), de forma que os
autoridade
conceitos sejam vocábulos
domínio, soberania. 3) Poder
com uma multiplicidade de
supremo (atribuído a certos
significados.
Podem-se
magistrados), magistratura.
destacar os conceitos sociais
Em sentido especial: 4)
e políticos em três grandes
Comando
grupos:
Conceitos
Autoridades, magistrados ou
tradicionais cujo significado
comandantes generais. 6)
1)
suprema,
militar.
5)
persiste em partes; 2) conceitos cujo significado tenha
Comando, ordem, autoridade. 7) Estado, império,
mudado de tão forma drástica que, mesmo com a
governo imperial (FARIA, 1962). Sendo assim, império,
permanência da mesma palavra, uma comparação se
etimologicamente, não se caracteriza unicamente por
torna difícil; e 3) Os neologismos, palavras criadas para
um regime político – muito menos econômico – e sim por
causar impacto e novidades, como fascismo, comunismo
uma ação, a ação de dominar, de exercer posse e
(JASMIN; FERES JUNIOR, 2006) e imperialismo.
autoridade.
O que se destaca no estudo dos conceitos e da história
O termo fora introduzido na Inglaterra por volta de
conceitual como disciplina é a noção de “faixas
1870 e foi popularizado como vocábulo para denominar
temporais”. Uma vez que os conceitos não variam,
a expansão territorial e econômica somente por volta de
unicamente, de acordo com seu campo semântico, mas
1900 com a apropriação do termo por parte dos
também de acordo com os suportes temporais
intelectuais, antes disso, era usado na Inglaterra para
embutidos em si, os conceitos evidenciam uma possível
denominar a política da França de Napoleão Bonaparte,
continuidade ou descontinuidade histórica social,
o termo pouco a pouco foi substituído, a política imperial
refletidas na linguagem, fazendo com que o conceito
Francesa
carregue em si “uma referência ao intervalo de tempo
“Bonapartista” (Bonapartiste) – ou “Bonapartismo” – e os
que ele projeta” (MOTZKIN, 2006).
“imperialistas” – e consequentemente o “Imperialismo”
Desta forma, o termo “Imperialismo”, precisa ser
começou
a
ser
denominada
como
– ganharam uma nova conotação.
destacado e analisado diacronicamente desde a sua
A herança deste pensamento “anti-imperialista” que
formação até a sua utilização nos dias atuais, de forma
daria lugar ao termo “bonapartismo” na língua inglesa
que seja possível observar o seu contexto de criação e as
remete à Inglaterra renascentista. Patricia Springborg,
suas apropriações por parte dos escritores, dos
analisando como o conceito de império foi disseminado
intelectuais e da sociedade.
na Inglaterra afirma que os renascentistas ingleses
O termo Imperialismo é derivado do termo Império, do Latim Imperium. Sendo este definido – pelo dicionário
reconheciam-se como “Imperialistas Cosmopolitas” – ou seja, possuíam uma política imperial, mas não se
GNARUS|6 compreendiam como súditos ou submissos, gozavam de
a China ou Índia) e as colônias estabelecidas por
direitos e eram cidadãos, em contrapartida, em um
imigrantes brancos (como a America). Esta segunda
regime imperial “a civilização é o ethos do império”, de
forma de colonização seria a responsável pela criação
forma que a comunidade não funcionaria por si, não teria
desta forma de pensar o imperialismo.
estruturas ou instituições próprias (SPRINGBORG, 2007). Daí a negação inglesa ao uso dos termos “Império”, “Imperialista” e “imperialismo” em primeiro lugar.
Mesmo que a Índia fosse governada por uma empresa e não por um estado – diz Benedict Anderson – “quando
a Companhia das Índias Orientais pediu a renovação da
A ressignificação do termo, na Inglaterra, para a ideia
sua concessão em 1813, o parlamento determinou que
de dominação econômica só ocorreu na virada do século
fossem alocadas 100 mil rupias por ano para a educação
XVIII para o XIX devido a necessidades econômicas. Com
nativa.”. Implantou-se um sistema de educação todo em
a revolução industrial e a necessidade da exploração do
inglês, criando uma “miscigenação mental”, pessoas
mercado externo o termo Imperialismo foi lentamente
hindus “no sangue e na cor”, mas culturalmente inglesas.
transformado, de um termo pejorativo, em um adjetivo
(ANDERSON, 1983) Quanto ao prestígio, Leopold II diz:
elogioso e apreciado de tal forma que em certo ponto
“A Índia Britânica, por tempos, posse da Companhia, nunca custou à pátria mãe ‘um centavo’. A última guerra na índia, uma grande luta que foi mantida pela energia de toda a nação britânica e escrita com seu preciosismo sangue, prova quão alto a Inglaterra avalia a sua possessão.”
“promoveu um chauvinismo nacional de auto-justiça e
presunção” alegando “que o Império Britânico foi o benfeitor de toda a humanidade” (HODGE, 2008) e posteriormente levaria à compreensão de que o Imperialismo seria necessário e benéfico ao mundo, fazendo com que as nações se autodenominassem como
Esta utilização da palavra “imperialismo” para definir
imperialistas. Com o crescente número de publicações usando-se do termo – as mais relevantes talvez sejam “Imperialismo,
um Estudo” de John Hobson e “Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo” de Vladmir Lênin – a palavra “imperialismo” ficou popularizada por exprimir uma ideia de dominação político-econômica de uma
um sentimento de “preocupação na manutenção de um prestígio nacional”, então compreende o imperialismo como uma política expansionista, mas delega a ele um caráter menos econômico e mais cultural – embora não seja um “Imperialismo Cultural” propriamente dito. Na mesma época, devido ao crescimento do
empresa ou nação por sobre outra, através da
capitalismo,
exportação de capital financeiro, sendo assim, o que
“monopólio”, “exportação de capital” entre outros,
hoje é denominado “Imperialismo Monopolista” – nos
foram
termos Leninistas – no início do século XIX era chamado
“imperialismo” do “império” e vinculando-o ao
apenas de “Imperialismo”. “O império e os imperadores
capitalismo. A apropriação do termo por parte dos
antigos,
novíssimo”
economistas é refletida na quantidade de publicações
(HOBSBAWM, 1988). Sendo assim, os impérios antigos
sobre o tema a partir dos anos 1900: John Hobson
não seriam imperialistas? Seria possível a existência de
“Imperialismo. Um Estudo” em 1902, Rudolf Hilferding
um império que não praticasse alguma política
“O Capital Financeiro” em 1910, Rosa Luxemburgo “A
imperialista?
Acumulação do Capital” em 1913, Nikolai Bukharin
mas
o
imperialismo
era
O Rei Leopold II – então duque de Brabant – descreveu, em 1863, três diferentes tipos de colônias: A escravocrata (como Cuba), a colônia habitada por vários nativos e dependentes de algum estado europeu (como
termos
adicionados
como
“capital
lentamente,
financeiro”,
desvinculando
o
“Imperialismo e a Economia Mundial” em 1915, e Vladmir Lenin
“Imperialismo,
Fase Superior do
Capitalismo” em 1917, em meio à Primeira Guerra Mundial, cada um procurando explicar o fenômeno a partir de premissas diferentes.
GNARUS|7 Desta forma, o debate apresentado não contempla o
habitantes, a comunidade tem seus limites bem
conceito do termo, mas sim sua conotação e sua relação
estabelecidos, fronteiras determinadas e partilhadas por
e função dentro do capitalismo. O conceito de
todos, mesmo que elásticas; e é vista como soberana
imperialismo dado por Lênin, e por muitos outros, delega
devido ao seu contexto de criação, a noção de “nação”
ao termo uma função puramente econômica, sendo
foi criada em um momento em que a legitimidade dos
fundamental para a evolução do capitalismo, por outro
reinos monárquicos estava sendo atacados por
lado, os autores não marxistas, afirma Hobsbawm,
revoluções e pelos pensadores iluministas, portanto,
tentavam negar a relação da ação político-econômica
havia a necessidade ideológica de destacar o Estado de
dos Estados europeus no século XIX com o capitalismo
uma ordem divina, garantindo a liberdade e autonomia.
em geral. (HOBSBAWM, 1988) Portanto, esse debate
“as nações sonhavam em ser livres”. (ANDERSON, 1983)
procura discutir a natureza de um “Imperialismo
Portanto, quando Anderson observa no imperialismo
Econômico”, contemplando apenas uma das múltiplas
uma política de dominação onde há naturalmente um
interpretações do conceito.
conflito, já que a comunidade colonial, os nativos, não
Benedict Anderson em “Comunidades Imaginadas” de 1983 apresenta a importância da necessidade de um “nacionalismo oficial” para a manutenção de um império, Anderson apresentou o uso da cultura, através da língua e da educação, para a formação do império. Benedict Anderson não apresenta claramente a concepção de “cultura” adotada em sua obra, no entanto, a sua análise principal está na formação da consciência nacional e da nacionalidade. Segundo Anderson, “nação” seria definida por ser “uma
comunidade política imaginada – e imaginada como
carregaria em si a noção de pertencimento que os membros da metrópole, de forma que, para manter uma hegemonia,
seria necessária a
criação
de um
Nacionalismo Oficial. Anderson não denomine claramente o que toma como “cultura”1 – até mesmo porque não utiliza desta palavra – mas pode-se compreender que o nacionalismo oficial tinha como objetivo manter a unidade cultural do império, uma vez que ensinando a língua e as práticas da metrópole nas colônias, o Nacionalismo Oficial difundia as crenças, normas e atitudes da metrópole.
sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo,
Edward Said, observando na cultura uma forma de
soberana.” Imaginada porque os membros que
identidade, destacou um diálogo entre “dominado e
compõem esta comunidade, por menor que seja, nunca
dominador” através das produções culturais. Said
conhecerão todos os seus companheiros; é limitada
compreende “cultura” como um conjunto de práticas,
porque independente de seu tamanho ou número de
como as comunicações, as representações e descrições
1 O termo “Cultura” é originário da palavra germânica “Kultur”,
campos da antropologia e etnografia com um significado distinto do elaborado em sua origem. Na tentativa de modernizar o obter uma melhor previsão conceitual, o antropólogo Roger Keesing, em 1974, definiu cultura – ou melhor, “culturas” – como: “Sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante.” Com o estudo das ciências políticas, houve a apropriação do conceito de cultura por esta ciência, desenvolvendo o conceito de “Cultura Política”, que por sua vez viria denominar um conjunto de normas, crenças e atitudes difundidas pelos membros de uma unidade social, tendo como objeto fenômenos políticos (BOBBIO, 1991).
que era empregada para denominar conjunto de fatos intelectuais, artísticos e religiosos de uma comunidade1. No século XVIII os termos “Kultur” e “Civilization”, sendo o primeiro germânico e o segundo de origem francesa, apresentavam uma antítese: Enquanto um era usado para simbolizar os aspectos intelectuais e espirituais de um grupo; o outro expressava uma noção concreta, referindo-se as realizações materiais ou ao comportamento dos indivíduos (ELIAS, 1962). Enquanto o conceito de “civilização” enfatiza o que há de comum entre os seres humanos – ou segundo aqueles que se denominam “civilizados” – deveria haver, argumenta Norbert Elias, o conceito de “Kultur” enfatiza as diferenças nacionais e as peculiaridades de um determinado grupo. Ou seja, enquanto um tenta dar conta do que deveria ser igual a todos, o segundo denomina o que é específico de cada grupo, devido a tal compreensão, o termo germânico fora apropriado nos
GNARUS|8 elaboradas por um determinado grupo que gozem de
descrever o desconhecido, demonstrando um grande
certa
poder criativo e uma mobilidade social interna e uma
autonomia
perante
os
campos
políticos,
econômicos ou sociais, sendo uma fonte de identidade. Mas Said se limita a chamar de “cultura” as produções bibliográficas, principalmente os romances, que em sua compreensão, exerceram forte papel no fenômeno do imperialismo.
autoridade por sobre o outro. (SAID, 1993) Said define Imperialismo como “a pratica, a teoria e as
atitudes de um centro metropolitano dominante governando
um
necessariamente
território em
uma
distante”, dominação
não plena;
Embora compreendesse o imperialismo como uma
compreende a necessidade do lucro, mas defende que a
forma de dominação, e que "O principal objetivo da
dominação imperialista não se limitava unicamente ao
disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra ",
comércio, havia uma “cultura imperial”, um conjunto de
(SAID, 1993) Said destaca
experiências
que esta dominação nunca
dominador
foi
um
dominado. Said destaca
ocidental intruso e um não
ainda que "os poderes de
oriental nativo, sempre
representar o que está
houve alguma resistência.
além
passiva,
entre
imperialismo
destacado
Econômico”, afinal, não traz
palavra
raças, selvagens, chegando
esse diálogo; e 5) a capacidade de criar a imagem do outro, não pela “invenção da tradição” mas pelo grande poder que os intelectuais e escritores possuíam de
concepção
de
monopolista
ou nem mesmo traz a
sendo denominadas de
artísticos, literários, arquitetônicos e outros, evidenciam
a
capitalismo
decodificadas,
surgimento de novas elites culturais, novos estilos
do “Imperialismo
Etnografia essas diferenças
de forma que a dominação não se apresentava inerte. O
Said
imperialismo, mas não um
2) Com o advento da
4) a cultura metropolitana é afetada pelo imperialismo,
imperial".
econômico
facilidade em percebê-las;
“obrigação” na colonização para o benefício dos nativos;
mesmo
compreende um caráter
eram absolutas, devido à
cientificamente, causando a criação do discurso de
fronteiras
Portanto,
entre Oriente e Ocidentes
ocidente por sobre o oriente passa a ser aceita
das
sociedade
fronteiras físicas e culturais
à dicotomia: civilizado e primitivo; 3) a dominação do
do
deriva do poder de uma
o
em cinco momentos: 1) As
foram
quanto
em conversas informais,
participante do fenômeno sendo
do
metropolitanas,
Para Said a cultura é imperialista,
tanto
compreende
monopólio; no
imperialismo uma característica dominante, mas não como de um “Imperialismo Clássico” – no sentido etimológico, do governo de um Imperador – afinal não há um imperador ou rei soberano exercendo uma dominação ou expandindo seu Estado Imperial. Há uma dominação, mas de uma nação sobre a outra e não de um Estado liderado por um imperador, exercendo uma dominação física. Tão pouco Said expressa um “Imperialismo Cultural”.
GNARUS|9 A tese do “Imperialismo Cultural” defendia a existência
idêntica à soma das rendas da Grã-Bretanha, Alemanha
de uma nova forma de dominação e dependência, fruto
e França, chegou, em 1948, ao dobro da soma das rendas
de uma série de interesses de corporações, governantes
dos países citados e a mais de seis vezes mais que a renda
e
Unidos.
da União Soviética (ARRIGHI, 1996), com um novo
(THOMPSON, 2002) Segundo a teoria do “Imperialismo
sistema monetário mundial e com uma nova ordem
Cultural” A exportação de valores ocidentais por parte
mundial estabelecida devido ao novo meio de guerra
dos meios de comunicação em massa subjugam a cultura
com as bombas atômicas.
militares,
centralizados
nos
Estados
local criando então uma nova forma de dominação, fazendo com que a nação “dominada” necessite cada vez mais da importação de mercadorias e hábitos que correspondam a um novo padrão de vida que é vendido pelos valores exportados. Desta forma, o Imperialismo Cultural não se coloca no século XIX como as demais interpretações do fenômeno, e sim no século XX, no póssegunda guerra mundial, o conceito não faz referência ao período histórico do “neo-colonialismo”, situado no período convencionalmente denominado de “era do Imperialismo (1800 – 1914)”, e sim a um novo uso do termo imperialismo, o termo foi introduzido por Herbert Irving Schiller, sociólogo e teórico da comunicação, na publicação do livro “O Império Norte Americano das
Segundo Schiller, com o fim dos impérios coloniais, um novo império assumiu e os substituiu, o império americano que trazia em si duas bases: O seu caráter fundado
em
grandes
corporações
internacionais, e no monopólio da tecnologia de comunicação
e
de
império – construído no período entre guerras e predominante no cenário mundial no final do conflito – que assume o papel dos antigos impérios coloniais não se caracteriza como um governo imperial clássico governado por um imperador, como um “Imperialismo
Clássico” e não traz em seu seio um caráter expansionista militar aos moldes do “imperialismo continental” ou uma dominação econômica industrial monopolista aos moldes do “Imperialismo Econômico”, sua expansão e sua dominação se dão de forma diferente e por razões diferentes. O “Imperialismo Cultural” é visto como uma política de dominação que atua em um contexto ideológico cultural
Comunicações” em 1969.
econômico
É neste contexto em que Schiller escreve. Este novo
novos
sistemas
eletrônicos,
e não militar, territorial ou econômico. Tem seu inicio no meado do século XX por consequência do colapso dos antigos impérios colônias. Portanto, a “Cultura e o
Imperialismo” – como utiliza Said e Anderson – não deve ser confundida com o “Imperialismo Cultural”. É dado como certo que o final da Segunda Guerra
(THOMPSON, 2002) por onde seria veiculado, em forma
Mundial
decretou
de propaganda, a cultura e a ideologia de uma nação,
dominações imperialistas, o “velho imperialismo” não
mas não como um império, de forma que o “Imperialismo
era mais aceito e verificou-se uma nova forma de
Cultural” seja apresentado, ainda como dominação, mas
dominação econômica internacional, uma nova política
com um teor ideológico e não territorial, e fruto de uma
de
hegemonia americana resultante do término da segunda
Imperialismo”.
“reajuste
uma
mudança
drástica
espaço-temporal”,
um
nas
“Novo
guerra mundial, onde a necessidade propagandista se
Em 2005, o economista Egípcio Samir Amin apontou
elevou devido à conjuntura internacional da Guerra Fria.
cinco grandes objetivos econômicos dos Estados Unidos
Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos
de sua época, eram eles: 1) Neutralizar e subjulgar os
agiram como “oficina do esforço de guerra aliado” e
parceiros da tríade [bloco composto pela Europa, Japão
como o “celeiro e oficina de reconstrução europeia do
e Estados Unidos] e minimizar a capacidade do bloco de
pós-guerra” por consequência, a renda nacional dos
agir por fora das influencias americanas; 2) Exercer
Estados Unidos, que já em 1938 era aproximadamente
controle
militar
sobre
a
OTAN
e
a
“Latina-
Americanização” dos países periféricos que compunham
G N A R U S | 10 a antiga União Soviética; 3) Controlar o Oriente Médio
Unidos então criaram um sistema distinto baseado em
sem promover qualquer partilha; 4) Impedir a construção
uma combinação de acordos internacionais e financeiro-
de blocos regionais e garantir a subordinação dos
institucionais e centralizaram o poder econômico
Estados do BRIC; e 5) Marginalizar as regiões que não
financeiro em Wall Street. (HARVEY, 2005)
apresentem qualquer interesse econômico. Segundo Amin, o objetivo final era “fazer de Washington o senhor,
em última instância, de todas as regiões do planeta .” (AIMIN, 2005)
Portanto, o conceito de Imperialismo – e por consequência o de Império – se adaptou a um novo mundo adquirindo uma nova definição em uma compreensão banhada em globalização, lançando mão
Este “Novo Imperialismo” – embora Amin não utilize
de um termo centenário para denominar fenômenos
deste termo – se caracterizaria por ser uma dominação
modernos. Apesar do apelo ao ineditismo evocado pelo
econômica entre estados, mas não por empresas ou pelo
uso do “novo” Harvey se apropria de um termo que já
monopólio de bens, mas através de um novo sistema.
havia sido usado para denominar um fenômeno de
Com o advento da globalização, houve uma renovação
dominação.
no antigo método na relação entre “devedores e credores”, o processo de endividamento acarretou no desenvolvimento de um capitalismo tributário e na submissão financeira de países dependentes, em um nível macroeconômico mundial. (CASANOVA, 2005). David
Harvey
compreende
o
fenômeno
do
imperialismo como uma política de reajuste espaço-
Imperialismo ou imperialista e tomado hoje quase que como sinônimo de “dominação” e/ou de “dominação ilegítima” o que foge por completo de sua origem etimológica. João Victor da Mota Uzer Lima é formado em História e mestrando do Programa de pós-graduação em História social da UERJ. joao_uzer@hotmail.com
temporal proporcionada por uma “sobreacumulação”, fenômeno este que gera investimento, o excedente – de capital ou de trabalho – pode ser absorvido por: 1) deslocamento temporal através de investimentos em projeto longo prazo ou gastos sociais que preparem o futuro; ou 2) deslocamentos espaciais de abertura de novos mercados. (HARVEY, 2005) O imperialismo do século
XIX,
teria
sido
um
efeito
de
uma
sobreacumulação europeia, resultando na Primeira Guerra Mundial e posteriormente na crise dos anos 30. Esse sistema – segundo Harvey – foi substituído em 1945 por um novo, liderado pelos EUA. Segundo Harvey, uma aliança global entre os principais poderes capitalistas – o que Amin chamou de “tríade”
–
foi
sobreacumulação,
desenvolvida mas
para
tal
para era
evitar
a
necessário
compartilhar os benefícios da intensificação de um capitalismo, integrado as regiões centrais e se envolver em
uma
expansão
geográfica
sistemática. Esta
conjuntura foi alterada nos anos 70 quando os dólares excedentes inundaram o mercado mundial. Os Estados
Bibliografia ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 1983. Ed. Brasileira: São Paulo: Companhia das Letras, 2008. AMIN, Samir. O Imperialismo, Passado e Presente. Revista Tempo: Rio de Janeiro, nº 18, pp. 77-123. 2005. ARRIGHI. Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo; Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Contra Ponto. 1996. BOBBIO, Norberto; MATTUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen Varriale. Brasília: Editora Universidade de Brasília/Linha Gráfica, 1991. Vol.1. CASANOMA. Pablo González. O Imperialismo, Hoje. Revista Tempo: Rio de Janeiro, nº 18, pp. 65-75. 2005 ELIAS. Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes: Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994. Vol. 1. FARIA. Ernesto. (Org). et al. Dicionário Escolar Latim – Português. Ministério da Educação e Cultura – Departamento Nacional de Educação. 1962. FIELDHOUSE. David Kenneth. The Theory of Capitalist Imperialism. Londres. Longman Group Limited. 1974. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005. HOBSBAWM. Eric. A Era dos Impérios, 1875 – 1914. 1988. Ed. brasileira: Trad. Sieni Maria Campos e
G N A R U S | 11 Yolanda Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2014. HODGE. Carl Cavanagh. Encyclopedia of the Age of Imperialism, 1800-1914. Vol. 1. Londres. Greenwood Press. 2008 JASMIN. Marcelo Gantus; FERES JUNIOR. João. História dos conceitos: dois momentos de um encontro intelectual. In: História dos Conceitos, debates e perspectivas. Rio de Janeiro: editora PUC-Rio, Edições Loyola. 2006 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Shurkamp Verlag Frankfurt am Main, 1979. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro. Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006. MOTZKIN, Gabriel. A instuição de Koselleck acerca do tempo na história. in: JASMIN. Marcelo Gantus; FERES JUNIOR. João. (org) História dos Conceitos: debates e perspectivas. Rio de Janeiro: editora PUCRio, Edições Loyola. 2006. SAID. Edward Waide. Cultura e Imperialismo. 1993. Ed. Brasileira: Trad. Denise Bottmann. São Paulo. Companhia das Letras. 2011. SPRINGBORG, Patricia. Modelo clássico e circulação de conceitos na Inglaterra do inicio da Idade Moderna. in: FERES JUNIOR. João; JASMIN. Marcelo. (org) História dos Conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro. PUC-Rio. Ed. Loyola. 2007. THOMPSON, John B. A Mídia e a Modernidade: A teoria social da mídia. Petrópolis. Vozes, 2002
G N A R U S | 12
Artigo
AS FEMINILIDADES NO POEMA DE MIO CID Por Lívia Maria Albuquerque Couto
Resumo: Neste artigo analisaremos a construção das feminilidades de alguns personagens por nós selecionados no Poema de Mio Cid à luz dos Estudos de Gênero. Apesar da problemática em torno de sua autoria, defendemos que tal documento foi escrito em 1207, pelo clérigo Per Abbat, e destinado às cortes castelhanas da época ao narrar os sucessos militares de Rodrigo Díaz de Vivar, conhecido como El Cid. Cabe salientar que este estudo busca especificidades dentro da referida região e nossas conclusões aqui apresentadas
baseiam-se
na
comparação
de
personagens históricos-literários criados por um autor que viveu no âmbito do reino de Castela no século XIII. Nesse contexto, veremos os tipos de mulheres apresentadas pelo autor neste documento medieval. Para tal, partimos do pressuposto de que as representações sociais estão calcadas nos interesses de grupos específicos. Sendo assim, a maneira como se dão suas construções, para nós, ajudam a entender como as mulheres estavam ou deveriam estar inseridas na sociedade castelhana dos séculos XII-XIII na perspectiva, especificamente, deste clérigo.
G N A R U S | 13
Bodas das Filhas do Cid (Cantar II) e A Afronta de
Introdução:
Corpes (Cantar III). Importante destacar que
E
m nosso artigo preocupamo-nos em analisar, à luz dos Estudos de Gênero e através do Método Comparativo em
História, como foram construídas as feminilidades no Medievo Ibérico, utilizando como documento o
Poema de Mio Cid. Ele foi redigido a partir de fatos históricos sobre a vida de Rodrigo Díaz de Vivar, o EI Cid, cavaleiro que viveu no século XI na região de Castela. Levaremos em consideração na obra o seu momento de produção e o contexto social, nos quais, o autor estava inserido e o tipo de posicionamento dado por ele às mulheres presentes
no
Poema.
A
metodologia
de
comparação histórica a ser utilizada será norteada pelo
historiador
alemão
Jürgen
Kocka,
principalmente no artigo Comparison and Beyond1 e também no trabalho da historiadora americana Joan Scott, em especial, o texto Gender: A Useful Category of Historical Analysis2, presente em seu
usamos como base a versão elaborada por Colin Smith (2001) e a versão traduzida por Maria do Socorro Correia Lima de Almeida (1988). O primeiro cantar – O Desterro do Cid - começa com o El Cid sendo exilado, por ordem de Afonso VI. O infanzone deixa sua esposa, Doña Jimena, e filhas, Doña Elvira e Doña Sol, no Monastério de São Pedro de Cardeña, aos cuidados, devidamente patrocinados, do Bispo Don Sancho, o qual deve zelar sempre pela segurança e saúde de sua esposa e
filhas.
Daí
em
diante,
El
Cid
parte
tranquilamente para às suas empreitadas militares. Neste primeiro momento, podemos destacar um evento singular disposto na gesta, isto é, a despedida de Donã Jimena frente ao seu marido El
Cid, esta se prostra diante dos seus pés e daquele momento em diante verbaliza uma singular oração religiosa, pedindo a Deus pelo sucesso de seu marido em suas campanhas.
livro Gender and Politics of History. Neste, Scott
O segundo cantar – As Bodas das Filhas do Cid –
apresenta os vários sentidos em que a palavra
é iniciado retratando as primeiras e grandiosas
gênero pode ser apresentada e o referente uso
conquistas do Cid, em suas campanhas na região
feito tanto por historiadores homens como
do Levante e posteriormente, com os processos
pesquisadoras feministas, demonstrando assim,
que levam à conquista de Valência. Este cantar se
das mais simples às mais complexas, suas
encerra com um evento paradigmático para a
diferentes conotações.
nossa pesquisa, sendo então a narração dos
O Poema de Mio Cid, escrito em 1207, por um clérigo poeta de nome Per Abbat, encontra-se hoje dividido, para fins de estudo, em três núcleos
eventos que levam o Cid a aceitar as bodas de suas filhas com os Infantes de Carrión, através de uma mediação do soberano Afonso VI.
narrativos, aos quais, com frequência costumam
O terceiro cantar – A Afronta de Corpes –
ser denominados como: Desterro do Cid (Cantar I),
encerra a trama apresentando o desfecho da
KOCKA, Jürgen. Comparison and Beyond. History and Theory, n. 42, p. 39-44, fev. 2003. 2 SCOTT, Joan Wallach. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: _____. Gender and Politics of History. New York: Columbia University Press, 1999. p. 28-50. 1
afronta através da restituição moral e financeira do Cid, obtida por meio de um torneio realizado neste sentido, pela convocação das cortes em
G N A R U S | 14 Toledo. O Campeador consegue recuperar sua
quando esta se encontra pedindo proteção para El
honra e seu prestígio frente ao Soberano e às
Cid, que fora desterrado:
cortes. Posteriormente retornou à Valência onde viveu com alegria até a sua morte. É importante
[...] Longuinhos, cego de nascença, feriute com a lança, e o sangue correu por ela abaixo e ensopou-lhe as mãos e, tendo-as levado ao rosto, abriu os olhos, olhou ao redor e acreditou em ti, que assim o curavas de seu mal; senhor, que ressuscitaste do sepulcro, foste por tua vontade aos infernos, arrombaste suas portas e livraste os santos padres, tu que és rei dos reis e pai e senhor do mundo, a ti adoro e em ti creio de coração e rogo a São Pedro que me ajude a implorar-te para que guardes de todo o mal o meu Cid Campeador e, posto que agora nos separamos, permite-nos voltar e encontrar-nos nesta vida4.
frisar que o clérigo Per Abbat informa que as Filhas do Cid conseguem atar uma segunda boda, com infantes oriundos de uma família dinástica mais poderosa, sendo estes de Navarra. Os motivos desta consideração por parte do clérigo será parte importante de nossa análise.
Análise das Feminilidades: Baseados nos Estudos de Gênero, na ótica de Joan Scott, vemos como é necessário conceituá-lo enquanto uma categoria útil à História e não apenas à História das Mulheres. O Gênero é tratado tanto para História das Mulheres quanto para a dos Homens, podendo também ser usado nas relações entre homens e mulheres, dos homens entre si e igualmente das mulheres entre si. Esse conceito
foi
criado
para
opor-se
a
um
determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes um caráter fundamentalmente social3.
Essa seria a única parte na qual Doña Jimena tem participação efetiva, e estaria relacionada com a visão dualística da época, quando não vistas como objeto de pecado estariam relacionadas a santas ou mártires. Contudo, a personagem histórica – e, neste caso, a não literária – Doña Jimena foi tão excepcional frente aos entraves de seu tempo, que após a morte de seu marido em 1099, a mesma conseguiu governar o território de Valência por quase três anos, rendendo-se apenas, quando não mais conseguiu resistir às ameaças almôadas.
No entanto, é necessário destacar o fato de que
Através da omissão desta situação no Poema de
não existe consenso sobre a definição de gênero.
Mio Cid podemos constatar que a intenção, ou
Assim, podemos considerar que o feminino e o
melhor, na visão destes clérigos ao exercer um
masculino se definirão em cada sociedade, ou seja,
papel ativo, governando suas casas e bens, elas, as
são conceitos em construção. Mas, em nossa
mulheres, estavam ultrapassando a função do seu
análise enfatizamos que utilizaremos a definição
sexo, normalmente fraco e tentado ao mal.
elaborada por Joan Scott.
Logo, percebemos que o modelo ideal feminino
Não obstante, o primeiro evento a ser analisado
para época e ditado por um grupo especifico, isto
no Poema com relação aos tipos de feminilidade é
é, eclesiásticos, baseava-se numa visão dualística
a descrição de uma Oração feita por Doña Jimena,
do feminino, ou visto como santa, comparada a figura de Maria, ou a responsável pela perdição da
3
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 20, nº 2, jul./dez/. 1995. p. 71-99
ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Tradução de Maria Socorro Almeida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. Versão em prosa. p. 14. 4
G N A R U S | 15 humanidade, se comparada a Eva. Sendo que, isso
voltada a procriação e ao respeito subserviente
era perpassado em escritos oficiais, já que estes
dos intentos de seu marido.
tinham por função o "exemplum". Esses tinham função pedagógica, ou seja, enunciam uma moral e todos mesmo os destinados a divertir, como, por exemplo, os romances, as canções, os contos satíricos,
tinham
a
função
de
ensinar.
É
interessante destacar que a partir de toda a descrição que se segue durante o momento desta oração, é interessante destacar como neste momento – e ademais em toda a gesta – há uma construção de relação matrimonial entre Doña Jimena e El Cid, envolta em caracteres puramente assexuados, não sendo possível assim, enxergar em
Tão substancial quanto este primeiro evento, encontramos nas referidas "Bodas das filhas do Cid" (O Segundo Cantar do Poema), com os Infantes de Cárrion, um evento revelador destas questões de Gênero no Medievo. Curiosamente, o casamento é realizado ainda que a despeito das desconfianças nutridas pelo Cid em relação àqueles jovens infantes. Este matrimônio, contudo, só aconteceu graças à mediação do soberano Afonso VI, o qual suserano frente ao vassalo Campeador se interpõem como verdadeiro responsável por aquela união.
momentos da gesta, demonstrações de carinho e amor
envolvendo
o
casal.
Apesar
de
se
preocuparem um com o outro, a relação descrita entre o Cid e sua esposa é sempre feita de cima para baixo, quase como uma relação de vassalagem que envolve o casal. Doña Jimena interpela seu marido, e o trata, em palavras e gestos, como os demais pertencentes do séquito
Na entrega das mãos de Doña Elvira e Sol para o Rei efetuar o matrimônio, podemos perceber imediatamente como as mulheres se tornavam um instrumento de feudalidade, isto é, verdadeira moeda de troca, mais um item do enumerado jogo de ampliação de poderes que envolviam as relações de vassalagens nas cortes. Desta maneira:
A partir de ahora las hijas del Cid constituyen – en la mente de todos, incluido el rey – los peones en la lucha por el poder: el Cid siente por ellas una gran ternura, pero conmovedoramente obedientes, las mueve en el tablero como hacía cualquier otro señor medieval con sus mujeres. La acción en la corte se basa en el perjuicio económico que ha sufrido el Cid, y el detrimento a su honor, no en el daño físico causado a las mujeres en Corpes, ni en el hecho de que ellas han perdido a sus maridos6.
cidiano. Podemos perceber segundo Smith:
Lo que más pone de manifiesto las cualidades morales del Cid en el poema es, quizá, la frecuente presencia de los personajes femeninos. Éstos no toman iniciativas y rara vez tienen voluntad propia, pero dicen mucho y reaccionan con frecuencia; a veces, incluso vemos al Cid a través de sus ojos5.. Esta menção nos ajuda a corroborar com uma hipótese que defenderemos no decorrer de nossa pesquisa, se relacionando ao fato de um clérigo ter escrito o Poema, ao idealizar o tipo de amor a ser propagado em Castela, ou seja, um amor espiritual, sendo que, podemos considera-lo vassálico. Evidenciando assim a costumeira função
Quando as filhas do Cid são ultrajadas após o casamento, sendo abandonadas na Floresta, além da honra do Cid ficar “manchada”, a sua relação de vassalagem e suserania com soberano fica
matrimonial da mulher no Medievo, quase sempre ANÔNIMO. Introducción. In: Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. p. 85-86. 5
ANÔNIMO. Introducción. In: Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. p. 80. 6
G N A R U S | 16
ele. Nessa situação, até pensaríamos que a atitude
felicidad o compatibilidad, a pesar del primer fracaso (3720-3724); pero lo contrario, repetimos, sería, más sorprendente en una narración medieval7.
imediata do Cid seria cingir a espada e defender
Com base em tudo que foi visto podemos
sua honra e a de suas filhas, frente aos Infantes de
assegurar que a Idade Média foi um período de
Carrión, mas o ideal que envolve o Cid é descrito
intensa misoginia. Ressaltando o papel que a Igreja
de forma tão perfeita que o clérigo descreve suas
Cristã Medieval teve para a propagação desta
ações de forma totalmente contrária. Logo,
visão. Dessa maneira, esta instituição estabeleceu
percebemos também como o clérigo atribuía
funções para a feminilidade, fundamentadas na
modelos de masculinidades no Poema.
sua concepção do que era certo para a sociedade.
estremecida, já que, se atribui a Afonso VI reparar um erro que, indiretamente pode ser atribuído a
É justamente por saber o peso de uma grande moeda política que tem em mãos, que o Cid consegue fazer com que
o
Podemos observar algumas destas no Poema do
Mio Cid, quando, por exemplo, a esposa e filhas do Cid necessitam de constante proteção, ou seja, estão
soberano
"voz
em Toledo, e naquele justiça
Castelhana,
este
Cid. Segundo, Georges Duby materna
este
Filhas do Cid, um casamento “melhor”, tornandoas senhoras dos Infantes de Aragão e Navarra, oriundos de uma casa dinástica mais poderosa e respeitada que os seus primeiros maridos. Com isso, mais uma vez, percebemos a intenção do
funerária, ao
que
reger as ‘obséquias’, os
no
patrocínio daquele matrimônio, consegue para as
“duas
parece, a dama para
reparando o erro que cometido
e
designavam,
último, de certa forma, havia
havia
funções da feminidade,
honra frente às cortes e soberano,
se
tratando das filhas do
consegue restituir sua ao
ativa",
essencialmente
momento, respeitando a
sob
custódia e não tinham
convocasse as cortes
toda
sempre
serviços que os ancestrais exigiam dos vivos”8. Este autor coloca em foco o ponto em que as mulheres não tinham escolha nas decisões tomadas para suas vidas. Eram tratadas como “joguetes” nas mãos dos homens, que poderiam ser seus pais, irmãos ou maridos.
clérigo ao demonstrar que casamento e amor não
Vemos ainda, que não deveria existir amor no
estariam necessariamente relacionados, e que o
matrimônio, já que ambos, marido e mulher,
dinheiro, basicamente, move toda a história do
deveriam apreciar somente à Deus. Nesse
Poema, pois as relações sociais e políticas estariam
contexto, os eclesiásticos apresentam o casamento
intercaladas. De maneira que:
se valora todavía la segunda boda de las muchachas por su posición social, no por la
ANÔNIMO. Introducción. In: Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. p. 80. 8 DUBY, Georges. Damas do Século XII: a lembrança das ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 21. 7
G N A R U S | 17 como um "mal-menor". Podemos ressaltar que no
dos documentos medievais que temos acesso
discurso dos teólogos sobre o amor, este residia na
foram escritos à luz do olhar masculino e clerical.
relação com Deus, sendo assim, sinônimo da busca
Este fator adicionado à misoginia eclesiástica
do
do
medieval, baseada, principalmente, na explicação
afastamento do mundo e da renúncia aos prazeres
bíblica para o surgimento da mulher, fez com que
associados à vida terrena. Amar significava
esta fosse considerada um ser inferior, portador do
entregar-se a Deus com alma piedosa e corpo
"pecado original". Em contraponto, o exemplo
imaculado. Desse modo, estes introduziram no
ideal seria o de Maria, mãe de Jesus, que
casamento os valores da ascese, equilibrando o
engravidará virgem e foi escolhida para ser mãe do
“mal” da cópula com o “bem” da oração e com a
redentor da humanidade.
aperfeiçoamento
espiritual
através
ideia de cópula justa. “Casar-se no Senhor” significava não apenas unir-se com a bênção sacerdotal, mas seguir as interdições do tempo sagrado e das épocas inférteis (menstruação, gravidez). O amor no casamento só era, assim, “verdadeiro” quando submetido à disciplina da continência e os valores da hierarquia9.
Por conseguinte, a imagem feminina era pensada diante de uma dualística representação, sendo por muitas vezes construída pelos clérigos, como um ser inferior, fraco e auxiliar do homem e que por isso necessitavam da presença masculina ao seu redor. Sendo assim, segundo a Igreja, a mulher só teria valor pela virgindade, nesse caso, estariam às
Assim, ressaltamos os modelos de feminilidade
santas e mártires. Então, a forma mais pura de
perpassados neste documento medieval, já que as
amor entre homem e mulher seria o amor
mulheres no Poema de Mio Cid são protótipos
espiritual, que propagava a abstinência sexual,
femininos típicos da Igreja Cristã Medieval: são
pois dessa forma não haveria contaminação dos
passivas, raras vezes têm vontade própria e sempre
corpos e as mulheres estariam mais próximas do
têm que obedecer a seu senhor, marido ou pai.
amor divino.
Nisto, o autor reflete os costumes de sua época, representando às mulheres como instrumentos para descrever o Cid como esposo e pai, lhe dando uma dimensão de amor, ternura e vida doméstica ao lado da guerra e da honra. Logo, os modelos que todas as mulheres deveriam seguir. Aliás não só modelos de feminilidade, mas padrões comportamentais para toda a sociedade.
Contrapondo esta visão clerical e misógina sobre a mulher, se revelava o Amor Cortês, o qual “tratase do amor exclusivo, total, apaixonado que um jovem cavaleiro devota a uma dama de uma posição mais elevada que a sua, na maioria das vezes casada, às vezes com seu próprio senhor”, de forma
que
o
amor
e
casamento
seriam
incompatíveis numa mesma esfera10. Falando especificamente da presença feminina
Considerações Finais: A figura da mulher na Idade Média, ainda hoje, é pouco abordada pela historiografia. Grande parte
no Poema de Mio Cid, este por sua vez escrito quando a sociedade necessitava de “modelos de comportamentos”, principalmente, em se tratando 10
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Editora Ática, 1996. p. 50. 9
FLORI, Jean. A Cavalaria: A Origem dos Nobres Guerreiros da Idade Média; tradução Eni Tenório dos Santos. São Paulo: Madras, 2005 p. 146.
G N A R U S | 18 da Cavalaria. Observamos, enfim, qual seria o modelo ideal a ser seguido pelos sexos femininos e masculinos, isto é, como estes deveriam se comportar perante a sociedade.
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. DUBY, Georges (Org.). História da Vida Privada 2: Da Europa Feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. DUBY, Georges. Eva e os Padres: Damas do Século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Lívia Maria Albuquerque Couto é Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe e Integrante do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste).
Referências Bibliográficas: Documentos medievais impressos: ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Tradução de Maria Socorro Almeida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. Versão em prosa. Obras de caráter teórico-metodológico: BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha; THEML, Neyde. História Comparada: Olhares Plurais. Revista de História Comparada, v. 1, n. 1, jun. 2007. Disponível em: <http://www.hcomparada.ifcs.ufrj.br/revistahc/ vol1-n1-jun2007/olharesplurais.pdf>. Último acesso em: 07/10/2007. KOCKA, Jürgen. Comparison and Beyond. History and Theory, n. 42, p. 39-44, fev. 2003. SCOTT, Joan Wallach. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: _____. Gender and Politics of History. New York: Columbia University Press, 1999. p. 28-50. _____. Prefácio a Gender and Politcs of History. Cadernos Pagu, n.3. 1994. p. 11-27. _____.História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. p. 63-96. Obras gerais:
A Construção das Masculinidades em Castela no Século XIII: Um Estudo Comparativo do Poema de Mio Cid e da Vida de Santo Domingo de Silos. Rio de
ALVARO, Bruno Gonçalves.
Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de Filosofia e
FLORI, Jean. A Cavalaria: A Origem dos Nobres Guerreiros da Idade Média; tradução Eni Tenório dos Santos. São Paulo: Madras, p.141171, 2005.FLETCHER, Richard. Em Busca de El Cid. São Paulo: Unesp, 2002. TERESA LEÓN, María. Doña Jimena Díaz de Vivar: Gran Señora de Todos los Deberes. Madrid: Editorial Castalia, 2004. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Editora Ática, 1996.
G N A R U S | 19
Artigo
CAPOEIRA E LITERATURA: UM PANORAMA ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE. Por Hugo Sbano
Resumo O trabalho realizado tem como objetivo utilizar as fontes literárias que retratavam aparições de movimentos da capoeira no século XIX. Construindo um panorama com a nova historiografia que defende a tese de que a capoeira não é uma luta criada por negros contra o sistema escravista e que seu aparecimento se deve as grandes formações urbanas e não ao seu vínculo com o campo. Elaborando de forma sucinta uma idealização de como a sociedade via o capoeira e como ele transitava por ela.
D
iversas obras literárias registraram a
urbanas1, que ocorreram com a cidade do Rio de
presença de indivíduos praticantes de
Janeiro depois da vinda da família real e a ascensão
capoeira na capital do Rio de Janeiro.
de imigrantes.2
Obras como O Cortiço, Memórias de um Sargento de Milícias, Camélias e Navalhas são alguns registros literários que enquadram relatos históricos das atividades de capoeiragem na Corte. Foram
Através da análise das obras literárias que relatam aquela época como, por exemplo, neste artigo que visa os personagens retratados na sociedade do Rio de Janeiro no século XIX, podemos entender como a
mencionados, tanto nos jornais como nos periódicos literários, recortes de situações em que a capoeira estava interligada com as grandes movimentações
1
LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), P. 77 2 SILVA, Alberto da Costa - História do Brasil Nação Vol I, As marcas do período P. 30
G N A R U S | 20 presença da capoeira foi fundamental para o Brasil
Filtrando os fatos históricos e as representações
neste século. Pois, dessa forma, entendemos o que
literárias percebemos que a capoeira estabelece sua
Sandra Pesavento defende como representações
presença cotidiana na sociedade do século XIX.
construídas sobre o mundo e sua ligação com a
“Os literatos, por meio de seus textos, intencionalmente ou não, expressavam os dilemas e impasses vivenciados por sujeitos e grupos sociais em distintas situações, além de possibilitar o entendimento sobre os modos de vida, costumes e visões de mundo em um determinado período.”8
literatura3. No programa Roda Viva4 o escritor José Murilo de Carvalho relata que é extremamente necessário para um historiador realizar a leitura de obras literárias, e
Ao utilizarmos as obras literárias como fontes,
entendimento sobre um determinado momento
podemos enquadra-las para verificar que tipo de
histórico se torna mais abrangente.
mentalidade existia na sociedade e qual era a
pois através delas o campo de estudo
Segundo Sandra Pesavento toda a literatura da época
é
um
registro
histórico
sobre
uma
determinada visão que a sociedade tinha sobre
característica de um capoeirista do século XIX. Utilizando primeiro as referências fornecidas por Manuel Antônio de Almeida:
“Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado. Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história, um certo Chico- Juca, afamadíssimo e temível.”9
aquele fato específico5. A grande movimentação de consumo literário de uma sociedade pode explicar seus sonhos, medos, receios e estado de mentalidade. Graças à nova variante de fontes primárias que as novas gerações de historiadores abarcaram a literatura ganha
Recortando este relato percebemos que Chico-
grande força de edificação histórica6:
“A problemática do “mundo como representação”, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e pensar o real. ”7
Juca deveria ser mais um valentão desordeiro como
3
PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 39 4 RODA VIVA. José Murilo de Carvalho. 22/09/2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=U8sM-Pwa8Sw>. Acesso em: 12, mar. 2015 5 PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 42 6 Idem, p. 37 7 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel, 1990, p. 23-24
8
AlMENDRA, Renata Silva – Entre Apartes e Quiproquós: Teatro e malandragem na capital do império, p.15 9 ALMEIDA, Manuel Antônio de – Memória de um Sargento de Milícias, p.76
G N A R U S | 21 muitos outros que existiam naquele século, todavia,
estruturam o tipo capoeira da época. Suas atividades
Chico-Juca no decorrer da história se enquadra nas
de baderna, habilidades em confrontos bélicos e
características dos temidos capoeiras:
qualidades
“O Chico-Juca era um pardo, alto, corpulento, de olhos avermelhados, longa barba, cabelo cortado rente; trajava sempre jaqueta branca, calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda; ordinariamente era afável, gracejador, cheio de ditérios e chalaças; porém nas ocasiões de sarilho, como ele chamava, era quase feroz. Como outros têm o vício da embriaguez, outros o do jogo, outros o do deboche, ele tinha o vício da valentia. Mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na cabeça, armava brigas e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem.”10
sedutoras
registram
as
grandes
características do capoeira do século XIX e da sua mentalidade12. Notamos que a presença do personagem já estava vinculada ao cotidiano da sociedade. Entretanto, ao passar dos anos, um sentimento de medo vai tomando conta da população que não estava interligada com os capoeiras, que eram temidos, valentes
e
muita
das
vezes
mortais.
Esses
personagens vão transformando a cidade carioca em duas13. A terra carioca recebeu uma grande massa populacional de vários locais e inclusive, de maior importância, os negros vindos da África.
Ao decorrer da obra, Chico-Juca é requisitado para A capoeira tem uma grande ligação com os
resolver um problema pessoal de cunho amoroso do personagem
chamado
Leonardo
que
estava
necessitado das habilidades de combate e confusão que o mestiço sabia aplicar. Entretanto, dentro do
escravos, pois mais do que uma prática de pessoas marginalizadas, negras, mestiças e pobres ela estava atrelada e arraigada às práticas escravas14. Segundo Carlos Eugênio Líbano, a capoeira tem
diálogo na leitura é que enquadramos o personagem como um capoeira:
uma relação total com a expansão do meio urbano e
“Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando apareceu-lhe o Leonardo. - Olá mestre Pataca! Disse ele apenas o viu, pensei que ainda estava de xilindró tomando fortuna por causa da cigana... - É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar. - Homem, cabeçada e murro velho sei eu dar, porém fortuna! Nunca tive tal habilidade. - Não se trata de fortuna, disse-lhe o Leonardo baixinho, trata-se de pancada velha.11 Observamos que a relação de atitudes, vestimentas e questões, tanto biológicas como psicológicas, 12 10 11
Idem, p. 76 Ibidem, p. 77
LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), P. 36 13 Idem, p.232 14 Ibidem, P.126
G N A R U S | 22 sua criação foi estabelecida através da necessidade
para solucionar alguns problemas, exemplo disso, a
que o escravo de ganho possuía de sobreviver ao dia
Revolta dos Mercenários e a Guerra do Paraguai17.
a dia nas ruas da cidade.
Efeito esse que criou um grande fortalecimento
Qual necessidade existia para um escravo desenvolver um método de sobrevivência nas terras cariocas? A rixa dos próprios negros vindos de
sobre a presença que a capoeira tinha como força bélica da época. O medo estava registrado dentro da população:
Os escravos de ganho tinham como ofício principal
“Além disso, o Rio revelava-se uma cidade ameaçadora, mormente nesse horário tardio. A área era insegura, e pos capoeiristas, quase sempre mulatos ou mestiços, estavam por todos os lados, demonstrando estar permanentemente interessados em se confrontar com alguém18.”
as atividades de lucro na cidade15, essas atividades
À noite as ruas da cidade carioca ganhavam uma
davam ao escravo uma livre movimentação nas ruas,
presença mais fortificada das práticas de capoeira.
facilidade para trocar informações com seus
Não incomum os confrontos pessoais eram, em sua
semelhantes
confrontar
maior parte, resolvidos ao véu dos ares noturnos,
determinados desafetos. Também não esquecendo
pois os praticantes poderiam se movimentar e fugir,
que pela necessidade de pagamento ao senhor, os
caso fosse necessário, com maior facilidade.
diversas partes do continente africano, reforçadas pelas novas tendências de superioridade de um escravo contra o outro, são alguns dos fatores que impulsionaram uma relação de conflito entre eles.
e
também
para
escravos em diversos momentos lutavam entre si para dominarem os pontos lucrativos da cidade, por exemplo, as fontes de água, locais de feira e com maior aglomeração social para obter bons lucros16.
Na obra de J. Natale Netto, Camélias e Navalhas, também são retratados a grande presença das maltas de capoeira relacionada com as atividades do período
regencial.
Momento
este,
deveras
A mentalidade da época registrada no livro de
complicado, da política da corte que passava por
Manuel Antônio de Almeida exemplifica que existia
diversos conflitos, em sua maior parte, pela
uma relação entre os praticantes de capoeira e a
necessidade de uma decisão entre qual caminho
sociedade.
político o Brasil iria seguir19. Ocorrendo nesse
Demonstração
essa,
muito
bem o
momento uma maior preocupação por conta de
personagem Leonardo tinha ao recrutar os serviços
existirem duas maltas de capoeiras que possuíam um
de desordem do Chico-Juca.
grande poder nas ruas. As cores brancas da malta
evidenciada,
feita
pela
necessidade
que
A relação que existia entre a sociedade e as práticas de capoeira eram bem presentes. Inúmeras foram às vezes em que os membros do Estado tiverem que recrutar as habilidades dos capoeiras 15
SILVA, Alberto da Costa - História do Brasil Nação Vol I, As marcas do período, P. 45 16 LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), P. 111
17
SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres,p.19 18 NATALE, Netto J. Camélias e navalhas: histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX, p.49 19 GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937), p.18
G N A R U S | 23
- Canalha! Berrou possesso. E ia precipitarse em cheio sobre o mulato, quando uma cabeçada o atirou no chão.
dos Nagoas e o vermelho dos Guayamus ficariam visíveis e costumeiros pelos anos do século XIX20:
“No jornal eram comuns os comentários sobre a capoeira, e Teodoro sabia que, de certa forma, a cidade era dominada por dois grandes grupos de capoeiristas: os nagoas, ligados aos monarquistas do Partido conservador, e os guaiamus, adeptos dos republicanos do Partido Liberal. Os primeiros usavam como distintivo, a cor branca; os segundos, a vermelha.21”
- Levanta-te, que não dou em defuntos! Exclamou o Firmo, de pé, repetindo a sua dança de todo o corpo.
O confronto e o pavor, demonstrados pelos
As atividades das maltas possuíam uma grande e
membros que estavam presenciando o conflito,
conturbada ação na sociedade. O medo era
retratam o temor causado pelo capoeira quando
alastrado de forma quase que potencial dentro da
este entrava em ação. Era costumeiro o uso dos
cidade do Rio de Janeiro. Não muito incomum era a
golpes peculiares, registrados na época, como a
grande presença de capoeiras nas forças policiais ou
cabeçada, a rasteira, o pontapé e a tapoa24. A
de certa forma da mão leve que o Estado tinha
navalha era outra das grandes e mais perigosas
quando o assunto era controlar a presença e
surpresas dos capoeiristas, uma das armas mais
O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na orelha.”23
O pânico e medo eram
temidas, pois a grande habilidade que os capoeiras
características causadas na população evidentes na
tinham ao utilizar este objeto era o temor da
aparição que o personagem Firmo tem registrado no
sociedade. Armamento este que foi anexado pela
livro O Cortiço:
cultura
movimentação da
capoeira22.
“– Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! Respondeu Firmo, frente a frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e bamboleando todo o corpo e meneando os braços como preparado para agarrá-lo.
escrava
através
da
aglutinação
dos
portugueses marginalizados que foram inseridos no mundo da capoeira:
“Então o mulato, com o rosto banhado de sangue refilando as presas e espumando de cólera, erguera o braço direito, onde se viu cintilar a lâmina de uma navalha.
Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com um soco armado; o cabra, porém deixou-se cair de costas, rapidamente, firmando-se nas mãos, o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco passou por cima, varando o espaço enquanto o português apanhava no ventre um pontapé inesperado.
Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa, cheia de pavor. Mulheres e homens atropelavam-se caindo uns por cima dos outros. Albino perdera os sentidos. Piedade clamava, estarrecida e em soluços, que lhe iam matar o homem. A das Dores soltava censuras e maldições contra aquela estupide de destriparem por causa de entrepernas de mulher25.” Notamos dentro destes registros literários grandes
20
SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres,p.18 21 NATALE, Netto J. Camélias e navalhas: histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX, p.206 22 MATTOS, Augusto Oliveira. Guarda Negra, A redentora e o Ocaso do Império, p.96
informações sobre como era vista e temida o uso das 23
AZEVEDO, Aluísio- O Cortiço, P.125 SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres,p.19 25Idem, p.126-127 24
G N A R U S | 24
parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os inimigos.26”
armas e das artes da capoeira pela sociedade da época. Existiam muitos outros talentos e atividades que os capoeiristas exerciam dentro da sociedade, porém o que mais assustava a população em si não era somente a presença desses indivíduos. O fato de que ao arrumar confusão com um praticante, os membros da sua malta também iriam ser os inimigos
Notamos que a grande formação das maltas de capoeira traziam uma identidade de pertencimento aos seus harmoniosos grupos, pois em sua maior relação
era
de
criar
um
sentimento
de
pertencimento e identidade frente as novas situações que foram ocorrendo no Rio de Janeiro e na sua sociedade.27
do desafeto criado. Registrando esta situação Aluízio Azevedo relata o acontecimento em outra parte do seu livro, após o confronto entre Jerônimo e Firmo, o
Conclusão
português recuperado da navalhada que levou no primeiro combate vai buscar revanche e consegue liquidar o seu oponente amoroso, entretanto ao matar Firmo, seu outro companheiro de malta,
O grande impacto da evolução urbana também foi registrado nas obras literárias a partir do momento em que a cidade vai crescendo e a capoeira vai se unindo a população em expansão.
Porfiro junta sua malta para ir atrás do português e aí temos um registro de como era um confronto de maltas visto de acordo com a mentalidade do escritor:
“Mas, no melhor da luta, ouviu-se na rua um coor de vozes que se aproximava das bandas do Cabeça de Gato. Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, para vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de Malta. Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de um improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário. Os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas da mão o sangue das férias. Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe
Arraigada a formação da cidade, como defende o historiador Carlos Eugênio Líbano, a capoeira possuía fatores que estabeleciam uma relação de sedução com seus praticantes, por exemplo, o sentimento de inclusão dentro de uma camada social, sentimento de pertencimento este que estava estabelecido
no
grupo
de
capoeiragem
(posteriormente a sua malta), o temor que o indivíduo criava dentro da sociedade e suas regalias frente ao seu senhor, afinal era fundamental para o senhor ter um escravo que sobrevivesse nos climas tensos em que a cidade estava:
26 27
AZEVEDO, Aluísio- O Cortiço, p.190-191 GOMES, Flávio, Negros e política, p. 41
G N A R U S | 25 com padrões de hierarquia que era estabelecido na Corte30. Segundo Pesavento, podemos entender uma sociedade de acordo com a sua literatura:
“A literatura é tomada a partir do autor e sua época, o que dá pistas sobre a escolha do tema e de seu enredo, tal como sobre o horizonte de expectativas de uma época31.” Observando as obras literárias identificamos que a capoeira tinha muito mais um papel de interesses de cunho territorial e status do que uma simples luta/dança, criada pelos negros escravos para lutar como forma de resistência contra as garras da
“Para os escravos, a complacência senhorial logicamente era bem-vinda. Ter um escravo capoeira não era tão mal para o dono. Em um clima de violência urbana crônica - como vimos nos idos do período joanino -, as habilidades da capoeira forjavam um cativo que sabia se defender, podia ir para as ruas com mais segurança de que voltaria inteiro, em vez de um débil boçal, incapaz de entrar numa turbulenta fila de chafariz.28 Assim, como é sugerida pela historiadora Sandra Pesavento, a relação de aproximação entre a Literatura e a História estrutura que ambas guardam distintas possibilidades de serem interligadas para analisarmos o mundo real29.
Através
dessas
obras, podemos buscar outras formas de entender como a nova historiografia retrata os estudos a respeito das práticas e desenvolvimentos da capoeira no Rio de Janeiro. Sua aparição está diretamente ligada com os meios sociais urbanos, o sentimento
de
pertencimento
e
a
relação
senhor/escravo que existiam dentro da sociedade
28
LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), p.502 29 PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 80
escravidão. Hugo Sbano é Graduado no curso de Letras Português/Literatura e História- Faculdades Integradas Simonsen. Vinculado ao Gelhis (Grupo de Estudos da Licenciatura em História).
Referências ALMEIDA, de Manuel Antônio. Memórias de um sargento de milícias - São Paulo: Melhoramentos Ltda Ed., 2011. NATALE, Netto J. Camélias e navalhas: histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX. - Barueri, SP: Novo Século Editora, 2012. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Porto Alegre: L&PM, 1998. GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (18881937). - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural – 2. ed.2.reimp- Belo Horizonte: Autêntica, 2008. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850) 2ª ed. rev. E ampl. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. 30
FARIA, Sheila de Castro- Identidade e comunidade escrava: um ensaio 5 31 PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 83
G N A R U S | 26 MATOS, Augusto Oliveira. Guarda Negra: a redemptora e o acaso do império. - Brasília: Hinterlândia Editorial, 2009. ALMENDRA, Renata Silva. Entre apartes e quiproquós: teatro e malandragem na capital do império. – Brasília: Hinterlândia Editorial. 2009. SILVA, e Alberto da Costa. História do Brasil Nação: 1808- 2010: Volume 1: Crise colonial e independência (1808-1830). – Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. CARVALHO, de José Murilo. História do Brasil Nação: 1808-2010: Volume 2: A construção nacional (1830-1889). – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Nação: 1808-2010: Volume 3: A Abertura para o mundo (1889-1930). – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
MOURA, Jair. Evolução, apogeu e declínio da capoeiragem no Rio de Janeiro, Cadernos Rioarte Ano I nº 3. Rio de Janeiro: 1985. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994. MARCOS, Luiz Bretas "Navalhas e Capoeiras – Uma Outra Queda", Ciência Hoje – Especial República, Rio de Janeiro, n. 59, novembro de 1989. SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres. Biblioteca nacional, São Paulo, 2004. FARIA, Sheila de Castro. - Identidade e comunidade escrava. Um ensaio. CNP. 2006. 122-146. CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações, Lisboa. Difel 1990.
G N A R U S | 27
Artigo
A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO: A ROMANIZAÇÃO Por Alexandro Almeida Lima Araujo Claudia Patrícia de Oliveira Costa Resumo: O presente artigo tem como finalidade abordar um conceito bastante difundido durante o século XIX, a Romanização. A historiografia do século XIX construiu e apontou para uma visão de imposição de um ethos romano durante e após o processo de expansão territorial da capital do Imperium Romanum¸ Roma, sobre os demais grupos étnicos ditos “incivilizados”. Logo, Roma seria a luz civilizatória e as demais culturas vizinhas do Império seriam “inferiores”, necessitando, assim, da “luz civilizatória” dos romanos, uma cultura “superior”. Portanto, houve a “necessidade” de romanizá-los. Essa construção do XIX foi uma justificativa para que as potências européias buscassem e dominassem territórios. Por exemplo, as pinturas do século XIX foram meios usados para sustentar e representar uma política de dominação através de imagens de combates de gladiadores, naumáquias e venationes, em que os anfiteatros e as arenas romanas seriam utilizados como um locus de romanização. Entretanto, nesta conjuntura, a imposição e homogeneidade cultural de uma “Roma superior” ficam apenas no campo do discurso suscitado pelo XIX, haja vista que, na prática, os grupos culturais díspares que foram ou se deixaram incorporar ao Império não deixaram de cultuar seus deuses, de falar em sua língua nativa, ou de praticar sua cultura de modo geral, para abraçar à romana. Neste sentido, a heterogeneidade cultural se fez presente no Imperium, que se estendeu de um domínio de Roma sobre a Península Itálica, a posteriori, da península itálica às demais regiões que margeiam o mediterrâneo e além. Palavras-chave: Romanização. Ethos romano. Heterogeneidade cultural. Império romano.
O
Império romano abrangeu áreas bem longínquas de sua capital, Roma. Houve, primeiramente, uma “extensão de Roma à Itália, depois à
bacia mediterrânea e além”. (CABANES, 2009, p. 195). De acordo com Guarinello, “o Império foi o resultado de um lento processo de conquista militar e centralização política, primeiro da cidade de Roma sobre a Itália, depois da própria península sobre as demais regiões que margeiam o Mediterrâneo”. (2009, p. 149). O processo de expansão do Império foi fundamental para
estudiosos de Antiguidade Clássica, no século XIX, criarem meios que justificassem o interesse de grupos culturais nos processos de Imperialismo e partilha afro-asiática. Por exemplo, a França se utilizou do discurso de Romanização para legitimar sua ação durante a busca incessante imperialista do XIX. “Assim, as nações que se formavam no século XIX como Inglaterra, França ou Itália, só para citar alguns exemplos, buscaram no Império romano
sua maior
fonte
de
legitimação”.
(GARRAFFONI e SANFELICE, 2013, p. 67).
G N A R U S | 28 A
historiografia
“revisionista”
ou
“nova
Imperial, se deu, segundo a historiografia
historiografia”, da segunda metade do século XX e
“tradicional”, mediante o poder bélico e militar
a mais recente, do XXI, tem se preocupado em
romano. Essas conquistas eram fomentadas pelas
rever certos conceitos construídos por uma
legiões do exército romano, a fim de incorporar ao
historiografia “tradicional”, do século XIX e da
Império os povos subjugados e, assim, romanizá-
primeira metade do século XX. O arcabouço
los. Muitos desses grupos conquistados eram
conceitual defendido por historiadores do século
levados ao “centro” da Romanização: o anfiteatro.
XIX foram difundidos e incorporados por uma parte da historiografia do início do século XX. A
linha
mais variadas etnias. Por conseguinte, para a
especificamente aquela do XIX, estabeleceu um
historiografia do XIX, o anfiteatro era o local ideal
Romanização.
para Roma impor sua cultura aos que não eram
Romanização, portanto, “é um termo que surge na
romanos. Assim, no que concerne o combate
historiografia de fins do século XIX para significar
gladiatorial, os nomes de algumas categorias de
o contato entre os Romanos e os outros povos”.
gladiadores – gaulês e trácio, por exemplo – que
(MENDES, 2007, p. 2). Esse era o período em que
lutaram nas areias dos edifícios de pedra no
se assinalava a necessidade de criação de um
período imperial seriam orquestrados para se
discurso legitimador para que as potências
referenciar aos territórios agora sujeitados por
colonialistas
Roma: as regiões da Gália e da Trácia.
conhecido
europeias
“tradicional”,
onde, neste âmbito, se reuniam guerreiros das mais
conceito
argumentativa
Por que o anfiteatro? Porque esse era o local
como
conquistassem
áreas
territoriais de grupos culturais considerados inferiores, como africanos, indígenas americanos ou asiáticos. Logo, Roma e seu processo civilizacional expansionista foram atrelados aos discursos dessas nações europeias para galgarem e controlarem novos territórios, sob o discurso de se levar a “civilização aos incivilizados”. Nas palavras da historiadora Norma M. Mendes:
discursos
ideológicos
das
como batalhas navais, que ocorriam com o anfiteatro parcialmente inundado, havia uma simbologia de representação pautada numa ideologia de domínio romano através do poder militar
e
naval.
Segundo
a
historiografia
tradicional do século XIX, as naumáquias eram, portanto, encenações de batalhas vencidas por
A experiência imperialista romana foi apropriada pelos
A respeito das naumáquias, também conhecidas
potências
coloniais, que a utilizaram para justificar e legitimar o direito de conquista, vinculando a ação imperialista da Inglaterra, França, Itália como herdeiras de Roma e como uma forma legítima de disseminar entre os nativos o que os Romanos chamavam de civilização. (MENDES, 2007, p. 2). Neste sentido, a imposição cultural romana
Roma, demonstrando aos espectadores toda a glória que o Império possuía, de ser superior a quaisquer outras culturas e exércitos. Do mesmo modo, não podemos nos esquecer das
venationes, espetáculos em que animais exóticos eram exibidos nos anfiteatros para um público que, em alguns casos, jamais tinha visto tais animais, o que causava surpresa. Esses animais, provenientes
das
mais
variadas
regiões
sobre demais grupos étnicos culturais que não
conquistadas por Roma durante o processo de
falavam o latim e que circundavam a Roma
expansão territorial eram caçados nas arenas por
G N A R U S | 29
venatores: homens livres ou escravos que atuavam
modos de agir e pensar para abraçarem o modo
como caçadores. Muitos animais foram mortos
comportamental dos romanos.
neste tipo de espetáculo e a simbologia presente era o controle do civilizado sobre o animal, tido como selvagem e incivilizado. Logo, o domínio de um Império sobre territórios que possuíam amplamente animais selvagens, como o norte da África,
e
a
captura
destes
para
serem
transportados até Roma para fazerem parte dos espetáculos públicos fornecidos pelos Césares, seriam
formas
de
Romanização.
Portanto,
combates de gladiadores, batalhas navais e caçadas demonstrariam ao público o controle e domínio sobre “o outro”.
A ROMANIZAÇÃO E O DISCURSO HOMOGENEIDADE CULTURAL.
DE
Renata Garraffoni (2006) destaca as potências europeias que, de uma forma ou de outra, buscaram na Roma expansionista, um modelo eficaz de militarização e de conquistas de novos territórios. Glaydson José da Silva (2005) concorda com Garraffoni, ao denotar que países europeus buscaram uma legitimação para conquistar novos territórios. Tal legitimação foi construída tomando Roma como modelo, isto é, Roma transmitiu um
Com efeito, abordaremos neste artigo, além da
ideal de missão imperial civilizatória para os
historiografia, três pinturas que demonstram estas
“europeus civilizados” (SILVA, 2005, p. 93). Regina
três formas de espetáculos. Em nossa opinião, as
Bustamante também concorda com o olhar
pinturas do XIX também foram formas de
interpretativo esboçado pelos dois historiadores e
reafirmar um discurso de romanização, segundo o
afirma que, no decorrer do “processo de
qual, Roma era ”a senhora toda poderosa”, padrão
‘civilização/romanização’, Roma parecia também
a ser copiado pelos europeus daquele século.
ter transmitido seu próprio espírito imperial para
Desta forma, vamos analisá-las segundo a ótica
os europeus. Procurava-se estabelecer uma linha
prevalente na historiografia mais recente, já que as
de continuidade entre os expansionismos romano
referidas imagens estão imbuídas e fazem parte de
e o europeu” (BUSTAMANTE, 2006, p. 110).
um discurso tido, para nós, como tradicional. Para tanto, nossa hipótese está ancorada na visão de que não havia uma unidade cultural no império1. Havia grupos heterogêneos que dividiram espaço e não necessariamente deixaram de lado seus
Dessa forma, era necessário acreditar e difundir a ideia de que Roma criou uma política de homogeneidade cultural através das conquistas e que a Europa era a continuidade desta política de conquista e eliminação de heterogeneidades culturais mediante um forte poderio militar. Assim, “a cultura clássica, em especial os textos
1
É importante ressaltar que “o vasto território que compôs a sociedade romana dos séculos I e II d. C. circundava todo o mar Mediterrâneo e integrava inúmeras regiões anexadas ao longo do processo de conquista, com grande variedade de povos. Esse imenso império emaranhado de latinos, gálatas, egípcios, béticos, germanos, dácios, gregos, entre tantos outros, apresenta diversidades jurídicas, econômicas, étnicas, de idade, sexo, profissão e língua que acabam sendo camufladas e simplificadas pela expressão ‘povo romano’”. FEITOSA, Lourdes Conde. Masculino e Feminino na sociedade romana: os desafios de uma análise de gênero. In: CANDIDO, Maria Regina. (org.). Mulheres na Antiguidade: Novas perspectivas e abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora – DG ltda, 2012. p. 208
produzidos pelos antigos romanos da elite imperial, foi importante no período de formação dos estados nacionais por apresentarem um caráter de autoridade e poder”. (HINGLEY apud GARRAFFONI e SANFELICE, 2013, p. 68). Lourdes Conde Feitosa (2006) demonstra a importância de novas abordagens críticas acerca
G N A R U S | 30 do entendimento propagado por pesquisadores
traços culturais de uma sociedade, mesmo se essa
adeptos do conceito de Romanização. Em
sociedade esteja contida em uma sociedade
Gladiadores na Roma antiga: dos combates às
geográfica e politicamente mais ampla. “O
paixões cotidianas (2005), Garraffoni se desvincula
chamado ‘processo de romanização’, muito
destas linhas normativas, refutando visões como
debatido atualmente, nunca teve a profundidade e
“pão e circo”2 e “romanização”. Segundo Feitosa
extensão que lhe atribuía à historiografia mais
(2006), a respeito da abordagem da Garraffoni, “as
antiga. Durante séculos, povos montanheses
interpretações [classicistas ou tradicionais], em sua
mantiveram-se arredios à influência romana, no
imensa maioria, apresentam os combates [de
próprio coração do Império”. (GUARINELLO, 2006,
gladiadores] como
e
p. 14-15). Guarinello (2010) aprofunda, ainda, essa
homogêneo, relacionados ora a uma ‘política do
discussão em um ensaio intitulado Ordem,
pão e do circo’, ora ao processo de ‘romanização’”
Integração e Fronteiras no Império. Nesse ensaio,
(FEITOSA, 2006, p. 213).
o autor aborda o conceito de romanização e seu
um fenômeno
único
No entanto, consideramos que, esse “domínio” militar e político não significam dizer que as etnias e culturas diferentes que Roma encontrou durante o processo de expansão foram extirpadas, sobrepondo-se assim uma “cultura soberana”, a
desdobramento no pensamento europeu do século XIX. Ao discutir o conceito de identidade, defende a tese de que as “resistências enfrentadas pelo Império contra diferentes populações” não devem ser reduzidas. (GUARINELLO, 2010, p. 114).
romana. “Visto em seus próprios termos o Império
É neste sentido que os historiadores Erick Otto
Romano não circunscrevia uma organização social
Gomes e Luciane Munhoz de Omena (2014)
homogênea e singular, mas agrupava ‘sociedades’
pautam-se, haja vista que o Imperium em nenhum
completamente distintas”. (GUARINELLO, 2009, p.
momento
149).
universalmente homogêneo, pelo contrário, pois
A pesquisadora Marina Regis Cavicchioli (2009) afirma, por exemplo, que “Pompéia foi formada por vários povos e várias culturas – assim como a própria Roma, por uma fusão e mescla de identidades, (CAVICCHIOLI,
provavelmente 2009,
p.
61).
fluidas”. Essas
novas
interpretações derrubam a ideia de romanização, pois não há uma cultura superior que anule demais
as
foi
constituído
heterogeneidades
dos
em
um
povos
“manobra política para a manutenção da ordem e afastar a plebs das decisões políticas, [em que] as autoridades davamlhe o pão e o circo. Esta concepção se enraizou no senso comum e presenciamos hoje, no público não especializado, formulações de que a plebe era sanguinária, despolitizada, ociosa e desinteressada pelo trabalho”. OMENA, Luciane Munhoz de. Os ofícios: meios de sobrevivência dos setores subalternos da sociedade romana. In: Revista de História e Estudos Culturais. vol. 4. Ano 4. nº 1. Jan/Fev/Mar. 2007. p. 12. Entretanto, é “impensável imaginá-los como setores sociais omissos, preocupados apenas com o seu pão e divertimento, vivendo de forma ociosa, e dependentes das distribuições de trigo oferecidos pelo imperator ou elite”. et al. Idem. p. 13.
suas
particularidades linguísticas, culturais, militares, religiosas, entre outras, não foram sobrepujadas por um domínio cultural civilizacional romano. Neste sentido “os elementos culturais poderiam sobreviver na pluralidade, um ao lado do outro, levando-se em consideração a coexistência de identidades discrepantes ou paralelas”. (OMENA e OTTO GOMES, 2014, p. 66). Com efeito:
2
e
meio
G N A R U S | 31
Pollice Verso, de Jean-Léon Gérôme, 1872, Óleo sobre tela. (In: ROBERT, 1995, p. 114-115.) Era
um
Estado
profunda
Dessa forma, a identidade romana não era
heterogeneidade. A unidade linguística conferida
fechada e/ou única, ou seja, não pode ser
pelo uso oficial e literário do latim e do grego era
considerada homogênea e unificada, pois a
apenas aparente e superficial. Latim e grego eram,
identidade
com efeito, línguas francas, usadas pelas elites e
GARRAFFONI, 2005.). Isto é, “o Império Romano
pela administração. Mas as populações locais
não exigiu que indivíduos ou mesmo comunidades
continuavam se expressando em seus idiomas de
adotassem uma identidade distintamente romana
origem: o celta na Gália, o púnico no norte da
pela exclusão de qualquer outra identidade. As
África, o copta no Egito, o aramaico no Oriente
identidades locais sobreviveram e floresceram sob
Próximo,
início,
o Império”. (LAURENCE apud MENDES, 2011, p.
uniformidade étnica ou cultural. O império
429). Logo, “Roma, surgida de uma união de povos,
estendia-se por dezenas de povos e comunidades
sabia conviver com as diferenças”. (FUNARI, 2011,
que
p. 86). Dessa maneira, “diante da diversidade
etc.
marcado
Tampouco
preservaram
suas
por
havia,
tradições
de
culturais,
é
plural3.
(CARVALHO,
2009;
alimentares, familiares, suas roupas e moradias, seus modos de enterrar os mortos, suas crenças religiosas, em suma, suas culturas particulares. (GUARINELLO, 2009, p. 150-151. Grifo nosso.).
3
“(...) os historiadores mais antigos, da primeira metade do século XX, descreviam a aparente homogeneidade cultural do Império através do conceito de romanização e helenização, como se as populações conquistadas tivessem acolhido de braços abertos as benesses de civilizações superiores: romana no Ocidente, grega no Oriente. São idéias ultrapassadas”. GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. p. 143.
G N A R U S | 32 socioeconômica, política e cultural das províncias
houvesse a manutenção de sua vida. Vejamos que,
e no interior das províncias, houve mais de um tipo
nesse sentido, o levantar dos dedos pedindo para
de romano”. (MENDES, 2011, p. 429).
poupar sua vida procura representar o olhar intelectual do século XIX sobre a perspectiva
A ROMANIZAÇÃO E AS REPRESENTAÇÕES DOS ESPETÁCULOS GLADIATÓRIOS NAS PINTURAS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX.
romana da morte digna, não temer e não fugir de um destino iminente, ao sucumbir corajosamente a um adversário mais forte, respeitando a honra do
Os combates de gladiadores foram formas que,
combate. Nessa configuração de se estabelecer
segundo alguns autores do século XIX e XX,
uma identidade dos cidadãos romanos está a
demonstravam o “ideal do ser romano” e,
aversão a ser covarde. Bem como o gladiador que
consequentemente,
vence a batalha representa o ser destemido e
a
efetivação
de
uma
romanização. Ou seja: os combatentes assumiam e divulgavam características de como deveria ser um romano. Por exemplo: o desprezo pela morte, não fugir do seu destino ao perder uma luta na arena e oferecer o pescoço a seu adversário, de forma honrosa, para que fosse cravado o gládio e ter uma morte digna, caso assim fosse decidido pelo público, que se manifestava acenando com o polegar para baixo ou para cima. O combate apresentava em sua essência a virilidade, que também estava ligada a um valor relacionado ao
ethos romano. A imagem a seguir, uma pintura do século XIX, representa a leitura que se fez acerca dos jogos de gladiadores e sua representatividade enquanto poder de fomentar um ideal identitário romano.
estendidos
A mensagem visual representada pelos jogos de gladiadores
nos
remete
ao
sistema
de
representações que definiam o cidadão romano, e consequentemente, o projeto imperial romano. A sociedade romana era altamente militarizada e necessitava demonstrar aos concidadãos e aos estrangeiros presentes às arenas seu poderio bélico, sua repugnância à covardia, a destreza, técnica,
coragem
e
habilidade
de
seus
combatentes. Compreendemos este simbolismo presente nos Jogos como mensagens visuais para a população, já que demonstram entre outros signos a conquista frente aos demais povos – que eram trazidos e representados nas arenas como categorias de combatentes – e mantém viva a
A construção de uma identidade romana é percebida
corajoso, isto é, o ser “romano”. Dessa maneira:
na do
imagem
quanto
gladiador
aos
dedos
caído,
uma
representatividade de súplica ao público para que
historicidade
do
povo
romano
através
de
representações de batalhas antigas. (FERREIRA, 2006, p. 24).
G N A R U S | 33 A conquista e expansão estariam atreladas ao
eram superiores frente a outros grupos étnicos. Em
conceito de Romanização, já que os povos
outras palavras, a cultura romana se impondo
“conquistados”, alguns deles tidos como inimigos
sobre outras culturas e isso estava em evidência
de Roma, tornaram-se categorias de gladiadores,
através dos prisioneiros de guerra que eram
por exemplo, os trácios4 e mirmiliões, também
capturados no processo de expansão do Império e
conhecidos como gauleses5. Neste sentido, para os
levados para o as arenas dos anfiteatros.
autores adeptos do conceito de Romanização, há um domínio sobre o outro, evidenciando,
Outro ponto importante é a representatividade das
batalhas
navais
que
aconteciam
nos
La Naumaquia, de Ulpiano Checa, 1894. Fonte: http://www.thecult.es/Arte/ Ulpiano -Checa-el-pintorepico.html portanto, a cultura e a sociedade romana como as
anfiteatros. Essas eram representações de batalhas
mais fortes. Isso demonstraria o quão os romanos
que foram vencidas por Roma sobre territórios até então dominados por outros grupos socioculturais.
4
Armado de um pequeno escudo redondo, capacete, duas perneiras, braçadeira direita e uma espécie de sabre curto e curvo (sica). Cf. HARCQUARD, G. DAUTRY, J. MAISANI, O. Guide Romaine Antique. Apud. COSTA, Claudia Patrícia de Oliveira. Táticas e Estratégias: o gladiador na Roma imperial de meados do I. d. C. a meados do II d. C. Rio de Janeiro, 2005. p. 57. Segundo Jérôme Carcopino, “os trácios se protegem com o escudo circular (parma) e manejam o punhal (sica)”. CARCOPINO, J. A Vida Cotidiana: Roma no apogeu do Império. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990. p. 279. 5 Era relativamente pouco armado. Pequeno escudo retangular e um capacete em forma de um peixe (murmo), que justificava sua denominação. Ibidem. Segundo Jérôme Carcopino, “os murmillonnes, usam capacete com a figura de um peixe marinho, a murma”. Ibidem.
Essa encenação de uma batalha épica que acontecia dentro do anfiteatro demonstrava o poderio militar romano sobre as sociedades que enfrentaram Roma. Buscavam demonstrar aos presentes nas arquibancadas o que era ser um romano, evidenciar as glórias do Império e unificar valores que o romano deveria absorver, tornandose uma cultura homogênea pautada numa
G N A R U S | 34 ideologia de domínio. A imagem a seguir, também
apud FERREIRA, 2006, p. 22). De acordo com
datada do final do século XIX, representa uma
Pierre Grimal, um pesquisador latinista que possui
naumáquia, segundo a referida perspectiva.
produções difundidas no início do XX, com
As naumáquias eram os espetáculos mais complexos
em
sua
organização,
pois
era
necessário inundar até certo ponto a arena e, dessa
forma,
propiciar
a
navegação
das
características historiográficas peculiares do XIX, “a atracção que esses divertimentos exerciam sobre as populações rudes constituía um meio poderoso de romanização”. (GRIMAL, 2003, p. 69).
embarcações. No caso da capital, havia um sistema
É um ponto crucial do conceito de Romanização,
que enchia o anfiteatro, deslocando a água do rio
pois a “identidade romana” é construída mediante
Tibre. Por sua vez, havia também, um sistema de
os valores de civilização difundidos no âmbito da
drenagem que escoava a água e deixava o
arena, ou seja, a “Roma civilizada” mostra seu
anfiteatro em condições para combates de
domínio sobre os mais variados espécimes de
gladiadores ou caçadas. Estas pinturas procuravam
animais. Seria o controle do civilizado sobre o
evidenciar a grandiosidade dos espetáculos
incivilizado, ou melhor dizendo, sobre as feras
romanos, ou como a intelectualidade do século
apresentadas nas arenas.
XIX imaginava ser. Desta forma, acreditamos poder acessar a concepção de romanização, como ela foi construída.
caráter
da
Romanização
que
os
pesquisadores do século XIX enfatizaram e que está presente, em particular, na pintura intitulada
foram
La rentrée des félins de autoria de Jean-Léon
representadas por pinturas durante os séculos XIX
Gérôme exposta a seguir, é a ideia de identidade
e início do XX, as caçadas apresentadas nos
civilizatória romana mediante a execução de
centros das arenas foram objetos dos pintores que
condenados da justiça. Esse tipo de execução
apontavam para a diversidade de animais que
acontecia em um determinado turno do dia no
Roma apresentava nos Jogos Gladiatórios. Isso
anfiteatro, comumente ao meio-dia. Além das
demonstrava o poder de conquista de Roma sobre
penas em que os condenados eram atirados às
as demais regiões, por exemplo, norte da África e
feras, na obra de Gérôme ainda podemos observar
do restante Mediterrâneo. Como se “o papel social
outras formas de execução para criminosos
dos jogos estivesse intimamente relacionado com
comuns, como a crucificação.
As
venationes
Outro
(caçadas)
também
a formação do ethos social e a ideologia da glória e do prestígio, vinculado à vitória militar”. (HARRIS
G N A R U S | 35
La rentrée des félins, de Jean-Léon Gérôme, Óleo sobre tela, 1902. (In: GARRAFFONI, 2005, p. 202) Entretanto, não entendemos as ações que
edifícios de pedra da Roma Antiga. Como bem
ocorreram nos anfiteatros como um modo de
explica a historiadora Renata Garraffoni, “poucos
imposição de uma romanização. Além do que, os
[pesquisadores do XIX] fazem distinção entre uma
pesquisadores e, principalmente os pintores do
luta de gladiadores e as execuções de criminosos”.
século XIX e início do XX, veem os combates
Havia, portanto, “o cumprimento de uma das
gladiatórios na arena como um local de extrema
penas capitais presentes na legislação romana”.
violência, onde aconteciam as mais variadas
(GARRAFFONI apud OMENA, 2009, p. 99).
atrocidades. É notório o enfoque à violência na imagem acima: há sangue por toda a arena, o que normalmente, os autores classicistas classificaram como “verdadeiras carnificinas”. É como se o anfiteatro tornasse um símbolo de massacre e, por conseguinte
de
ordem,
ressaltando
uma
identidade romana através da conquista.
Não podemos esquecer que as arenas eram locais onde os mais variados grupos étnicos encontravam-se para assistir aos combates de gladiadores,
isso
fica
claro
com
a
linha
interpretativa que seguimos, a da historiadora Renata Garraffoni (2005), haja vista que a pesquisadora evidencia que os anfiteatros estavam
Porém, os combates que ocorriam nos anfiteatros
próximos às fronteiras, o que facilitava a circulação
podem soar muito mais violentos para nós, do que
de pessoas de diversas regiões que compunham o
propriamente para os romanos da época imperial.
império. A mesma aponta para os conflitos de
A violência parece ser mais uma preocupação
identidades e culturas num espaço como um
moderna do que para aqueles que adentravam os
G N A R U S | 36 anfiteatro, já que a singularidades de cada
caracterizou o Império Romano em seu auge
indivíduo deve ser ressaltada.
expansionista, entre os séculos I e II d.C.
Em face do debate esboçado, adotamos em nossa pesquisa os conceitos de táticas e
estratégias, como concebidos por Michel de Certeau. Para Certeau, a intricada rede de relações estabelecida entre os integrantes de dada comunidade pode ser definida como um complexo jogo de táticas, na qual o indivíduo ou mesmo determinados grupos sociais possuem variáveis formas de reagir ou interagir com as imposições ou convenções
desta
sociedade,
que
segundo
Certeau, seriam as estratégias (1996, p: 46). Logo, ao enfocarmos o expansionismo romano e os reflexos desse processo na composição dos espetáculos de anfiteatro, rejeitamos as teses que enfocam tão somente a arena como um espaço de propaganda da dominação romana sobre o outro, submisso.
Certeau, consideramos que o fomento aos espetáculos, quer por iniciativa pública ou privada, configuraria
Buscamos nesse artigo, discutir os limites do conceito de romanização, consolidado como lugar comum entre a historiografia de finais do século XIX e primeira metade do século passado. Em face dos recentes debates, mobilizamos conceitos de
tática e estratégia para buscar uma alternativa para a análise das relações de poder estabelecidas entre Roma e povos conquistados. Nessa chave, impõe-se
a
necessidade
de
repensar
os
espetáculos de arena, parte do ethos cultural romano, sob perspectivas mais abrangentes. Essas perspectivas, que vêm ocupando cada vez mais espaço nos estudos clássicos, procuram levar em conta a pluralidade étnica, cultural e social incluída sob a égide do Império Romano entre os
Ao nos apoiarmos no arcabouço teórico de
se
CONSIDERAÇÕES FINAIS
em
estratégia
do
poder
constituído. Nesse sentido, para além de cumprir uma função religiosa, qual seja a de apaziguar os mortos, ainda eram simulacros da dominação romana sobre outros povos. Entretanto, essa não é a única interpretação possível e nem essa mensagem era absorvida de forma homogênea por aqueles que assistiam a tais espetáculos e nem mesmo por aqueles que os protagonizavam. Com base no conceito de tática, acreditamos que a pluralidade cultural que vivia sob o controle de Roma possuía variáveis formas de reagir e interagir com as imposições do tipo estratégia. As
séculos I e II. Não por acaso, esse período assinala o maior impulso expansionista do império e foi apropriado pela historiografia do século XIX para forjar os argumentos que visavam à legitimação da política imperialista encetada, então, pelas potências europeias.
Nesse
modelo
de
colonização,
procurava-se difundir a imagem do europeu, herdeiro presumível da potência dos antigos romanos, imbuído da missão civilizadora que desde a Antiguidade lhe competia. Ao enfocar o europeu sob essa perspectiva, tais análises se ancoravam em pressupostos de uma historiografia etnocêntrica e totalizante. Porém, os recentes estudos, inscritos na chave de
interações, tensões e negociações ocorridas a
pesquisas
que
propõem
alternativas
partir das operações de táticas e estratégias
interpretativas para os trabalhos centrados em
compunham o mosaico social e cultural que
macro análises, têm procurado enfocar as relações
G N A R U S | 37 estabelecidas entre gladiadores e sociedade romana, bem como as variadas formas de integração das populações dominadas por Roma ao conjunto de normas que determinavam o “ser romano”. Nossas investigações sobre esse assunto estão
em
consonância
a
essa
renovação
historiográfica e pretendem abordar os jogos de anfiteatro, pondo em questão as múltiplas identidades culturais abarcadas pelo Império Romano, suas tensões, atrações, repulsas e interpolações.
Alexandro Almeida Lima Araujo é Graduado em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Integrante do grupo de pesquisa “Mnemosyne” – Laboratório de História Antiga e Medieval do Maranhão, UEMA. E-mail: alexandroaraujo12@yahoo.com.br e Claudia Patrícia de Oliveira Costa é Doutoranda em História Social junto à Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Ensino de História e Patrimônio Cultural da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (LEEHPaC/PUC-Rio). Professora de História da rede pública estadual do Rio de Janeiro. E-mail: cliouerj@yahoo.it
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G N A R U S | 39
Artigo
PRÁTICA E PUNIÇÃO DA SODOMIA NO SÉCULO XIII ATRAVÉS DAS NORMATIVAS JURÍDICAS AFONSINAS: LAS SIETE PARTIDAS1 Por Bruna Oliveira Mota
Introdução
O
freira, um parente, uma mulher casada, um animal presente artigo tem como objetivo a análise das práticas sexuais por meio das
Siete Partidas, compêndio jurídico
ou até por meio da manipulação, também foram considerados pelo clero medieval como algo abominável.
castelhano. Enfatizaremos, de maneira geral, a
Ainda segundo Vainfas, o conceito de sodomia,
prática da sodomia, conceituando e analisando o
durante toda Idade Média, adquiriu alguns
rigor da sua condenação no século XIII, a partir da
sentidos. O primeiro grande significado da sodomia
referida documentação.
pertencia ao campo da animalidade, pois
Segundo Ronaldo Vainfas,2 o conceito de sodomia é um ato condenado conforme a época. Por muito tempo a sodomia permaneceu no mesmo âmbito de qualquer ato contra naturam, nos quais também estavam inseridos neste conceito de “contra a natureza” a retro canino (mulher de costas
sodomitas eram todos aqueles que cediam aos apelos da carne sem atentar para os costumes humanos em matéria sexual. O segundo significado advém da prática da sodomia marcada pelos
desvios da genitalidade, ou seja, o coito anal e as poluções orais.
para o homem) e a mulher super virum (homem
Com o decorrer do tempo, o conceito de sodomia
embaixo da mulher). A emissão de sêmen com uma
passou a ser identificado de forma individual, como
Entre o Pecado e o Prazer: As práticas sexuais em Castela no Século XIII (PVD2567-2014) financiado com bolsa remunerada pela COPES-UFS e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Álvaro. 2 VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986.p. 66 e 67. 1 O presente artigo está atrelado ao Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica
G N A R U S | 40
A Punição dos Sodomitas, Nicholas Hogenberg (séc. XV) um intercurso sexual entre homens e punidos
Partidas, especificamente a Setima Partida, como
violentamente com a mutilação ou a morte. Porém,
parâmetro para nossa análise.
ainda assim, como um ato contra naturam. O rigor à prática da sodomia, ao que tudo indica, se intensificou a partir do século XIII e XIV com os
A Sodomia na Documentação
testemunhos de inúmeros códigos ocidentais que
No Título XXI da Setima Partida, intitulado De los
estabeleceram a pena de morte na fogueira para os
que fazen pecado de luxuria contra natura,3
homens acusados dessa prática.
podemos ler:
O que tem nos instigado nesse artigo é entender o porquê desse rigor nesses séculos, sendo que nos anteriores a prática da sodomia era punida com a mesma intensidade de uma fornicação simples, ou seja, a sua condenação não era tão rigorosa a ponto de levar seu praticante à morte. Tentaremos ao longo desse trabalho elencar alguns fatores para a severidade na punição da sodomia durante o século XIII, utilizando a Siete ALFONSO X. Las siete partidas de Don Alfonso X. Barcelona: Impresta de Antonio Bergnes, 1843-1844. IV Tomos. Tomo IV. p. 329. 4 Idem. p. 329 e 330. 3
Sodomitico dizen al pecado, en que caen los omes yaziendo unos com otros, contra natura, e costumbre natura. E porque de tal pecado nacen muchos males em la tierra do se faze; e es cosa que pesa mucho a Dios con el, e sale ende mala fama, non tan solamente a los fazedores, mas aun a la tierra do es consentido; porende, pues que em los otros titulos ante deste fablamos de los otros yerros de luxuria, queremos aqui dezir apartadamente deste, e demostraremos, donde tomo este nome; e quien lo puede acusar, e ante quien. Et que pena merescen los fazedores e los consentidores.4
G N A R U S | 41 conquistadas e reconquistadas no período de seu O compêndio jurídico Las Siete Partidas, previa a
reinado.
morte àquele que fosse acusado de sodomia, seja
A condenação da sodomia estabelecida pelo víeis
ele ativo ou passivo, mas não àqueles que foram
religioso se dá no pressuposto básico da Igreja
forçados a praticar tal ato e nem àqueles que eram
considerar qualquer prática sexual fora do âmbito
menores de 14 anos.
conjugal e afastado do seu fim único que é a
A sodomia é considerada por Alfonso X um mal que põe em perigo não só a vida de quem a pratica,
procriação,
como
uma
prática
totalmente
abominável.
mas também a comunidade como um todo, pois
De igual maneira, sendo necessário um aumento
traz a ira de Deus. Sabemos que tal prática é
populacional no jogo político e estratégico de
condenada
mediante
Alfonso X, a prática da sodomia se caracterizava
argumentos religiosos, mas percebemos que não se
como um obstáculo importante para o alcance dos
é censurado somente o ato em si, mas sim a sua
seus objetivos. É importante pontuar que não
atuação
na
Setima
contra
sociedade
e
Partida
a
seus
interesses. várias para
punição
a e
condenação
tão
rigorosas da sodomia por parte de Alfonso X,
entre
universal
daquele período, mas entendemos a sua prática como algo que
colocava
do monarca. A validação de tal
pontuamos a questão
hipótese
religiosa, o aspecto
severidade
de
sodomia
político
e
o
para
a da
como
estratégica para a
pressuposto que o
uma
interesse
populacional
de
em
xeque os interesses
elas
fundamento
a
sodomia como uma prática
Temos hipóteses
consideramos
preservação por
combater a sodomia
Alfonso
e a bestialidade por
evidenciada na obra
ele estava atrelado a
Sexo, Pecado, Delito.
uma necessidade de
Castilla de 1200 a
um
1350,5 de Ana E.
aumento
populacional povoar
para
as regiões
ORTEGA BAÚN, Ana Estefanía. Sexo, Pecado, Delito. Castilla de 1200 a 1350. Madrid: Bubok Publishing, S.L., 2011. 5
X
é
Ortega Baún, quando a
mesma
pontua
G N A R U S | 42 sobre a legitimação e reconhecimento do concubinato clerical pelo monarca, permitindo que os filhos desses clérigos tivessem direito a herança dos seus pais, segundo ela, com o objetivo de repovoar o mais rapidamente possível o extenso e vago território conquistado pelos castelhanos. Segundo Jeffrey Richards,6 a preocupação latente com o problema da sodomia nas cidades foi exacerbada pela peste pandêmica e o consequente declínio da população que combinava com o hábito dos homens se casarem tarde ou sequer fazê-lo, em parte devido ao alto custo dos dotes e do casamento. Com relação à prática da sodomia o autor ressalta “A utilização de acusações de prática desviante para se livrar de inimigos era parte habitual da política medieval, e a sodomia era frequentemente vinculada à bruxaria e ao culto do Diabo”.7 Como dito, percebemos assim que a condenação da sodomia não adivinha somente de uma questão religiosa, ou seja, um ato que ia de encontro aos postulados da Igreja Medieval. Ela também se chocava com os interesses políticos da sociedade e
este acusamiento puede ser fecho delante del Judgador do fiziessen tal yerro. E si fuere provado, deve morir porende tambien el que lo faze, como el que lo consiente. Fueras ende, si alguno dellos lo oviere a fazer por fuerça, o fuere menor de catorze años. Ca estonce non deve recebir pena, porque los que son forzados non son en culpa; otrosi, los menores non entienden que es tangran yerro como es, aquel que fazen. Essa misma pena deve auer todo ome, o toda muger, que yoguiere con bestia; e deven demas matar la bestia para amortiguar la remembrança del fecho.8
Podemos notar através deste trecho documental, que todo acusado de sodomia e bestialidade teria como pena a morte, sendo, simplesmente, necessários testemunhos que explicitassem a veracidade do ato praticado. No entanto, convém destacar que nem sempre a condenação da sodomia foi realizada seguindo esse mesmo
víeis,
se
recuarmos
um
pouco
documentalmente perceberemos que no Fuero
Real, no Livro Cuarto, Título IX, intitulado De los que dejan La órden, e de los Sodomitas, em sua “Ley 2“ essa condenação tinha outra descrição:
do monarca castelhano Alfonso X.
Punição da Sodomia A punição da Sodomia estabelecida na Setima Partida, em sua Ley 2 intitulada “Quien puede
acusar a los que fazen el pecado sodomítico, e anti quien, e que pena merecen auer los fazedores del, e los consentidores” estabelece:
Maguer que nos agravia de fablar en cosa que es muy sin guisa de cuydar, e muy mas sin guisa de facer: pero porque mal pecado alguna vez aviene que un orne cobdicia a otro por pecar con el contra natura, mandamos que cualesquier que sean que tal pecado fagan, que luego que fuer sabido, que amos a dos sean castrados ante todo el pueblo, e después al tercer dia que sean colgados por las piernas fasta que mueran, e nunca dende sean tollidos.9
Cada uno del pueblo puede acusar a los omes que fiziessen pecado contra natura, e RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.p. 148 e 149. 6 7
Idem. p. 147. 8 ALFONSO X. op.cit.,p. 330 e 331. 9 FUERO REAL DEL REY DON ALONSO EL SABIO. In: Opusculos
Legales del Rey Don Alfonso el Sabio, publicados y cotejados
con varios códices antiguos por la Real Academia de la Historia. Madrid: Imprenta Real, 1886. Vol. 2: El Fuero Real, Las leyes de los Adelantados mayores, Las nuevas y El Ordenamiento de las Tafuererias, y por apendice Las Leyes del Estilo. p. 3-169. p.134. Disponível em: https://archive.org/details/opusculosle gales02cast. Última consulta em: 20 de março de 2015.
G N A R U S | 43 O que tem nos instigado, é entender o porquê da
entende essa atitude do monarca como uma
mudança na punição da sodomia por parte de
estratégia política, um pretexto convenientemente
Alfonso X. O que levou o monarca a mudar uma
válido, utilizado para afastar um inimigo declarado
estrutura jurídica já vigente? É importante ressaltar
do reino, posto que, segundo ele, o caráter rápido
que não pretendemos propor aqui respostas para
e violento da punição da sodomia presente na Siete
tal ato, mas sim, a construção de argumentos que
Partidas poderia servir de parâmetro para validação
possibilitariam lançar possíveis explicações sobre o
da sua hipótese.
caso.
Por fim, acreditamos que todas as abordagens
Analisando os dois aspectos punitivos da sodomia
em relação à prática da sodomia podem ser
em momentos diferentes do Governo de Alfonso X,
consideradas válidas, por isso não devemos
notamos
na
conceber as atitudes do monarca castelhano-
aplicabilidade da pena. Como tentativa de
leonês sobre um único víeis, já que as relações
explicação para essa mudança, são levantadas
naquele
algumas hipóteses, construídas por especialistas
entrelaçadas, ou seja, não podendo se separar o
sobre a vida e a obra de Alfonso X, entre eles,
âmbito religioso, do político, do econômico e
destacamos o trabalho de Salvador Martínez.
nem do cultural. Julgar que Alfonso X instituiu a
uma
acentuada
modificação
No livro Alfonso X, the learned: a biography,10 este autor institui como hipótese para tal mudança, o caso mais enigmático do governo do monarca: a morte de seu irmão Fadrique. Segundo Salvador Martínez ele foi punido pela pena capital sob a
momento
estão
completamente
punição da sodomia utilizando somente um desses pressupostos
seria cair em
erro
anacrônico muito grave, pois sabemos que no contexto medieval essas instancias não se separavam.
acusação de sodomia. É válido lembrar que não nos deparamos até o momento com algum documento que ateste tal hipótese, mas consideramos o caso aqui, não pela veracidade ou não do ato, e sim, pelas suposições acerca da punição de tal prática estar intimamente vinculada às disputas de poder no período. Como ferramentas para tal afirmativa, Salvador Martínez utiliza como pressuposto alguns aspectos nebulosos acerca desse ato, entre eles, o sigilo em torno da real causa da morte do acusado, a forma como o mesmo foi morto, sem direito a um funeral digno de um nobre e as circunstâncias entorno do ato. Ressaltamos que o próprio autor não acredita na prática da sodomia por parte de Fadrique, ele 10 MARTÍNEZ, H. Salvador. Alfonso X, the learned: A biography.
Leiden/Boston: Brill, 2010.
Considerações Finais Quando se trata da Idade Média, de maneira geral, o sexo é visto por nós contemporâneos como uma das práticas mais reprimidas daquele período. Essa perspectiva, carregada de uma série de interpretações simbólicas equivocadas, está atrelada ao fato de, indiscutivelmente, ter sido aquele um período da História no qual a Igreja media forças na tentativa de normatizar práticas
comportamentais
procuramos,
em
tese,
que, compactar
hoje, em
classificações que facilitem nossas análises:
G N A R U S | 44 política, religião, religiosidade, instituições, economia, cultura, etc. Como afirma Jérôme Baschet:
Embora a religião no sentido contemporâneo do termo não existia na Idade Média, as questões relativas à organização da Igreja, quer dizer, às relações entre os clérigos e os laicos, de um lado, entre os homens e o mundo celeste, de outro, são evidentemente centrais, mas nem por isso formam, em decorrência, um setor autônomo e separado do restante da atividade coletiva. Elas são, pelo contrário, inseparavelmente imbricadas no conjunto das realidades sociais. É preciso, então, cessar de pôr o estudo da Igreja à margem da análise do feudalismo, sob o pretexto de que ele diria respeito a um capítulo “religião”, que tivesse apenas relações acessórias com as estruturas sociais. Repitamos ainda uma vez: a Idade Média ignora toda a autonomização do domínio religioso, pois a Igreja, como comunidade, é a sociedade em sua globalidade, enquanto, como instituição, ela é sua parte dominante, que determina suas principais regras de funcionamento.11
Diante de tudo que foi exposto, reforçamos a prerrogativa de que não existe um único postulado em voga da prática da sodomia. Entendemos essa prática e a sua punição por todas as estruturas que norteiam e normatizam a sociedade daquele momento intimamente vinculada às relações senhoriais.
Bruna Oliveira Mota é Mestranda pela Universidade Federal de Sergipe e pesquisadora do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica Entre o Pecado e o
Prazer: As práticas sexuais em Castela no Século XIII
(PVD2567-2014) financiado com bolsa remunerada pela COPES-UFS e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Álvaro (UFS).
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 168. 11
G N A R U S | 45
Artigo
ENSINO DA HISTÓRIA: TEORIA E PRÁTICAS Por Rennan de Azevedo Ramos
Resumo: O presente artigo tem como proposta elucidar os usos realizados pelo presente sobre a memória e a identidade, bem como entender a relação existente entre essa tríade na pratica de ensino da história, na formação do processo de consciência histórica e suas aplicações no ensino da história local. Palavras-chaves: Memória; Identidade; Ensino de História; História Local; Regimes de Historicidade; Consciência Histórica; História Oral. reflexão sobre a melhor forma de compreender a 1. Regime de Historicidade, Memória e
futuro, relacionando, segundo suas palavras, a
Identidade
V
relação existente entre a tríade passado, presente e
ivemos o consumo do imediato; há uma valorização cada vez mais significativa de datas comemorativas e do patrimônio. O foco está em um
presente contínuo, único, marcado pela “tirania do instante e a estagnação de um presente perpétuo” (HARTOG, 2013, p. 11). O culto ao presente apresentado por Hartog marca uma ruptura com uma visão progressista da história que entende o futuro, com sua ampliação do horizonte de expectativa e seu afastamento do campo de experiência, como a melhor forma do homem lidar e representar seu tempo. O conceito de regime de historicidade proposto pelo autor supracitado aborda justamente uma
“memória (presente do passado), a atenção (presente do presente) e a expectativa (presente do futuro)” (Ibidem, p12. ) com a forma com a qual o homem lida com o tempo e o representa. O próprio termo regime de historicidade é passivo de análise na medida em que falar de “regime de temporalidade em vez de historicidade teria o inconveniente de convocar o padrão de um tempo exterior” (KOSELLECK, 2006, apud HARTOG, 2013) e não aquele construído pela observação do historiador que busca uma naturalização e instrumentalização do tempo. Sendo assim, entendemos que a forma como o homem se relaciona com o tempo apresenta duas fases concluídas: história magistra vitae e história
G N A R U S | 46 moderna. Estaríamos, segundo Hartog, em uma
de linearidade, sendo a “seta” seu símbolo
nova fase, o Presentismo.
característico. A busca pela evolução leva, nesse
A história magistra vitae usa a história como instrumento de legitimidade, buscando no passado, através do exemplo de vida, sua força. Ela entende o passado como uma construção de exemplos a
momento, a uma eclosão de narrativas nacionais, visando à construção de um projeto de futuro da nação e realizando uma releitura do passado através da necessidade do presente.
serem seguidos, a partir de cujos ensinamentos
Já no presentismo, o futuro deixa de ser o símbolo
devemos instruir para o futuro. Para Koselleck “o
máximo das aspirações do progresso e passa a
papel magistral da história era ao mesmo tempo
exercer um sentido escatológico. “A isso deve-se
garantia e sintoma de continuidade que encerrava
ainda acrescentar outra dimensão de nosso
em si, ao mesmo tempo, passado e futuro”
presente: a do futuro percebido não mais como
(KOSELLECK, 2006, p. 43), apresentando seu campo
promessa, mas como ameaça; sob a forma de
de experiência muito próximo de seu horizonte de
catástrofes, de um tempo de catástrofes que nós
expectativa. Seu recorte temporal dataria desde a
mesmos provocamos” (HARTOG, 2013, p. 15). O
antiguidade até o marco da modernidade. Com a
conceito de presente se sobrepõe aos do passado e
eclosão da revolução francesa
do futuro, havendo uma perpetuação do imediato.
Até o século XVIII, o emprego de nossa expressão permanece como indício inquestionável da constância da natureza humana, cujas histórias são instrumentos recorrentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas ou políticas. (ibidem, p.43) O regime de história moderna, por outro lado,
A história perde seu status de dona absoluta de “verdades” e “voltou a ser esse túnel na qual o homem entra na escuridão, sem saber aonde suas ações o conduzirão, incerto de seu destino, da segurança ilusória de uma ciência do que ele faz” (ibidem, p. 20).
entende a história como algo passivo de ser
Neste cenário marcado pelo “boom memorial”,
ensinado, em que os “homens conhecem seu
entendemos a memória como um objeto de poder,
presente e são capazes de iluminar o futuro”
que motiva disputas na medida em que, através de
(ibidem, p.45). Diferente do regime anterior, o de
construções do presente, tem o poder de formar e
ponto de vista moderno apresenta uma nova forma
legitimar identidades. A “memória tornou-se, em
de representar o tempo. Há uma nítida distinção
todo caso, o termo mais abrangente: uma categoria
entre passado, presente e futuro promovendo um
meta-histórica.Pretendeu-se fazer memória de
afastamento entre o campo de experiência e o
tudo e, no duelo entre a memória e a história, deu-
horizonte de expectativa, negando a proposta de
se rapidamente vantagem à primeira” (ibidem,
história exemplar do anterior. Não há como pensar
p.25)
a repetição em história, o que não quer dizer que não podemos retirar algo dela para o futuro.
A memória fornece a ligação que o historiador precisa para entender o passado: ela é uma
A maior marca do regime moderno se configura
construção mutavel que atende as necessidades do
pela busca incessante pelo progresso. Sua
presente. No século XIX, com a explosão do espírito
representação do tempo está marcada pela ideia
comemorativo e seus elementos de suporte, como
G N A R U S | 47 criação de medalhas, selos de correios, museus e
que acarreta de fato uma representação seletiva do
bibliotecas, temos o marco inicial do forte apelo
passado, um passado que nunca é aquele do
pelo uso da memória. Nos séculos XX/XXI foi a vez
indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido
das guerras mundiais e a popularização da
em um contexto familiar, social, nacional”
fotografia, que se apresentou como uma forma de
(ROUSSO, 2010, p. 94). A memória se constrói,
democratização do instante. Apesar de discordar
dessa forma, como a soma das experiências vividas
de Hartog a respeito da perpetuação do presente,
pelo indivíduo. Para Le Goff, devemos entender a
o historiador Andreas
Huyssen1
concorda que
memória
não
como
uma
propriedade
da
estamos passando por um momento de “boom das
inteligência, mas sim como “a base na qual a qual se
modas retrôs e a comercialização em massa da
inscrevem as concatenações de atos” (LE GOFF,
nostalgia e a obsessiva automusealização através da
1990, p. 123). Esse autor complementa o conceito
câmera de vídeo e de fotografias” (HUYSSEN,
de memória apresentando-a como “um elemento
2000, p. 14), entendendo a memória ligada a uma
essencial do que se costuma chamar identidade,
sociedade de consumo vinculada aos processos de
individual e coletiva” (ibidem, p. 135).
globalização.
Em seu artigo “Não basta a história de
Ao falarmos de memória, faz-se necessário
identidade”, Hobsbawn (1998) nos relata a respeito
elucidar o binômio inseparável que este conceito
de uma conferência internacional sobre os
forma com o esquecimento, sendo ambos os
massacres alemães ocorridos durante a Segunda
conceitos intermediários na análise do tempo e do
Guerra Mundial. A conferência foi realizada na
espaço. Só se faz possível rememorar se possuirmos
província de Erezzo, localizada ao norte da Itália,
a capacidade de esquecer. Huyssen nos lembra
onde 50 anos antes um dos massacres havia
“que a memória e o esquecimento estão
acontecido. A memória sobre o ocorrido, que
indissoluvelmente e mutuamente ligados; que a
outrora estava apenas relegada à lembrança dos
memória
de
sobreviventes, foi posta em cheque por um grupo
esquecimento e que o esquecimento é uma forma
formado não apenas por historiadores, mas
de memória escondida” (HUYSSEN, 2000, p. 18).
também por cientistas sociais de múltiplas
é
apenas
uma
outra
forma
O esquecimento e o silêncio são fortes reveladores dos mecanismos de manipulação da memória coletiva e consequentemente de sua formação no processo das identidades, na medida em que ela colabora para a desconstrução das memórias particulares em detrimento de um todo. A ligação da história com o passado nunca é espontânea: é ligada a uma objetividade, uma visão parcial do passado proveniente da memória. “A memória é uma reconstrução psíquica e intelectual Em oposição ao presentismo, Huyssen entende existir um alongamento do passado através do processo de 1
nacionalidades. Na ocasião pretendia-se inaugurar uma piazza em homenagem aos mortos na tragédia de 1944. Lá se ouvia uma narrativa comemorativa construída pelos habitantes locais sobre o ocorrido, que não só não correspondia à proposta apresentada pela equipe da conferência, como em alguns casos exibia contradições. A pergunta lançada por Hobsbawn foi a seguinte: “Qual a natureza da comunicação entre o historiador que entregou ao prefeito da aldeia a transcrição do construção da memória em detrimento de uma diminuição do presente.
G N A R U S | 48 inquérito sobre o massacre, realizado pelo exército
cede do “momento agora”, do consumo extremado
inglês dias depois de sua ocorrência, e o prefeito
da memória. Tentaremos demostrar como o
que a recebeu” (HOBSBAWN, 1998, p. 283) O
professor em sala de aula se apropria destas
próprio autor a responde: “para um era uma fonte
questões de temporalidades para compreender as
primária de arquivo, para outro, um esforço do
carências de interpretação do passado que levam a
discurso comemorativo da aldeia” (ibidem, p.283).
formação
Hobsbawn deixa claro com esse relato o processo
consequentemente na formação das consciências
de formação da identidade coletiva em torno de
históricas.
uma memória construída pelo presente. Podemos identificar de forma nítida as características de construção da memória coletiva, que faz os habitantes da região criarem laços de identidade com o ocorrido, e dos historiadores, que, distanciados do objeto em análise, apresentaram uma outra versão dos fatos baseados nas fontes. Ainda sobre o presentismo e suas relações com a memória e a identidade, Hartog afirma:
O presente descobre que o solo desmorona sob seus pés [...] três palavras chaves resumiram e fixaram esses deslizamentos de terreno: memória, mas trata-se na verdade de uma memória voluntária, provocada (a da história oral) reconstruída (história que conta sua história), patrimonial ( a defesa, a valorização, a promoção do patrimônio), comemoração. Os três apontam para um outro: Identidade” (HARTOG, 2013, p. 156) Ao relacionar o presentismo com o “boom memorial”, com a valorização do patrimônio e das datas comemorativas, com a história oral e com a construção da identidade, Hartog nos deixa claro que vivemos um momento de grande alargamento do presente e de tensões derivadas da disputa da memória proveniente desse alargamento.
das
narrativas
históricas
e
São muitos os desafios encontrados hoje para aqueles que se dedicam à pratica do ensino da história.
Os
problemas
vão
desde
uma
desvalorização latente do profissional da área, somada às péssimas condições de trabalho, problemas
de
formulação
de
currículos
e
desmotivação do professor. Afinal, o que é ensinar história? Seria o ensino da história uma mera reprodução dos saberes acadêmicos? Uma “função didática de orientação da teoria da história que pode ser exemplificada como o ensino de história nas escolas”? (RÜSEN, 2001, p. 50) Trata-se de um equívoco comum organizar a disciplina história, nas escolas, como uma miniatura da especialidade científica. Dominique Borne “denuncia a ‘a aula magistral’ e preconiza a atividade do aluno, que deve construir, ele próprio, seu saber” (BORNE, 1998, p. 136).Dessa forma, transforma-se o aluno em um agente ativo de sua prática de ensino/aprendizagem, levando-o a uma reflexão sobre o conhecimento. O papel do professor é levantar “problemáticas em lugar de desenvolver uma única narrativa cronológica narrando os fatos históricos”
(ibidem,
p.136).
A
abordagem
cronológica deve ser seletiva, para evitar o 2. O Ensino da História e a formação da Consciência Histórica Ainda sob a égide do conceito supracitado do Presentismo, vamos buscar compreender o papel do ensino da história neste mundo marcado pela
“enciclopedismo”, porém ainda se apresenta como ferramenta fundamental para situar nossos alunos com noções importantes referentes a tempo e espaço. Borne defende uma maior abertura nos programas para “um lugar natural para a história
G N A R U S | 49 nacional, patrimônio comum de um povo” (ibidem,
tempo, deixando em evidência seu potencial
p 136), deixando claro que a melhora do ensino
didático, assumindo no campo de formação um
parte necessariamente de uma mudança curricular
papel puramente de orientação.
que abra um maior espaço para história nacional e a identidade enquanto nação, priorizando uma história da tolerância e da liberdade. Para Borne, deve haver necessariamente uma maior valorização do senso crítico. A identidade não pode ser construída sem o somatório da racionalidade e do inconsciente. Não se pode controlar a identidade sem entender o valor que existe entre o binômio memória e história.
A relação de Jörn Rüsen com a temporalidade se dá de duas maneiras. O tempo natural, sendo aquele que independe da ação do homem para existir, aparece como um obstáculo ao agir, vivendo como uma mudança que não pode ser ignorada se o homem tem a pretensão de buscar suas intenções; e o tempo humano aquele em que as intenções são representadas e formuladas como um processo temporal organizado da vida humana prática. O ato
Um dos pontos importantes do ensino da história
da formação da consciência histórica está
é a tentativa por parte do professor de despertar
intimamente ligado à forma que ele entende e lida
em seu corpo discente um novo olhar para história.
com o agir referente ao tempo. Essa intenção pode
Refiro-me à reconstrução do processo lógico-
ser descrita como transformação intelectual do
dedutivo, no qual “o melhor ponto de partida
tempo
parece ser aquele que, na vida corrente, surge
“naturalmente, a divergência entre tempo como
como
pensamento
intenção e tempo como experiência não deve ser
histórico. Esse ponto de partida instaura-se na
pensado de forma dicotômica” (ibidem, p.59); o
carência humana de orientação do agir e do sofrer
autor mescla essas experiências de consciência no
os efeitos das ações no tempo” (RÜSEN, 2001).
tempo entre a experiência e a intenção onde ambos
Essas carências de orientação no tempo devem ser
se encontram decisivos e correlacionados.
consciência
histórica
ou
dirigidas ao passado, pois é justamente dessa necessidade de interpretação do vivido que surge a matriz disciplinar da ciência da história. No entanto, não se pode ignorar a relevância propedêutica da teoria da história no processo de ensino-aprendizagem, na medida em que “se pensa que a teoria da história é, para a ciência da história, justamente a especialidade que reflete sobre seu enraizamento na vida prática e sua função nela ― a partir da qual a ciência história, por si em sua autocompreensão, se abre para todos os processos que se designam, aqui, pela expressão ‘formação histórica’” (ibidem, p. 50). Isso fica claro quando notamos que a teoria da história serve de ponte entre a história como ciência e a vida prática do seu
natural
em
tempo
humano.
Então
A lembrança é outro fator primordial quanto à formação do processo de consciência histórica. “A lembrança é, para constituição da consciência, por conseguinte, a relação determinante com a experiência do tempo” (ibidem, p.67). Sua narrativa se constitui na interpretação das experiências atuais no tempo, que são, basicamente, as lembranças vividas pelo auditório social que o cerca. Essa interpretação é, segundo Rüsen, transportada para o processo de tornar presente o passado mediante o movimento narrativo. Transportando a experiência da formação da consciência
histórica
para
a
história
local
entendemos, tomando por empréstimo a fala de
G N A R U S | 50 Maria Auxiliadora Schmit, que a “compreensão que
perceber que, apesar de a história oral ser uma
os conteúdos, ressignificado a partir da experiência
ferramenta fundamental, principalmente quando
dos sujeitos na localidade, podem passar a compor
atrelada às práticas sobre a história dos excluídos,
aos currículos e aos materiais didáticos. ” (SCHMIT,
ela ainda aparece como suscitadora de questões,
2007, p. 193) Documentos e lembranças extraídas
sem jamais ter como pretensão apresentar
pela história oral ganham status históricos, fazendo
respostas para essas perguntas.
com que as pessoas comuns se entendam agentes ativos da produção de suas próprias narrativas históricas criando laços de identidade com a história local e a resinificando.
Outro ponto bastante controverso levantado pelos historiadores que lidam com essa pratica metodológica se encontra na sua ligação com a história do tempo presente. “A história do tempo
Não menos interessante é entender a relevância
presente tem de lidar com testemunhas vivas,
de iniciativas como as da micro-história e a do
presentes no momento do desenrolar dos fatos, que
estudo da história local, para nossa prática
podem vigiar ou contestar o historiador” (ibidem,
pedagógica em sala de aula, na medida em que ela
p.XXIV). Há ainda aqueles que refutam sua validade
quebra antigos paradigmas de poder, trazendo,
histórica, alegando que é impossível para o
como apresenta a autora, aquilo que estava
pesquisador que se propõe ao trabalho nesta
guardado em uma memória individual, de âmbito
categoria realizar sua pesquisa, na medida em que
puramente afetivo para uma identificação coletiva,
a ausência de um distanciamento entre o objeto e
passando pelo crivo crítico de nossa matéria.
sua análise não permite um real entendimento dos conceitos sem que estes estejam banhados pela
3.História Oral como ferramenta, estudo de caso de Realengo
realidade, crenças e entendimentos de quem o lê. Porém, o que faz do pesquisador que lida com história antiga alguém que seja capaz de realizar
A história Oral se configura como uma
tais abstrações, se retirando de suas leituras de
metodologia de pesquisa, uma ferramenta que
mundo que garantiriam a ideia de imparcialidade e
abala o modelo tradicional, pautado unicamente
manchariam o processo objetivo da pesquisa?
em fontes documentais, permitindo dar voz a
noções convencionais do que vale a para história”
Na história do tempo presente, o pesquisador é contemporâneo de seu objeto de estudo e divide com ele os que fazem a história, seus autores, as mesmas categorias e referências. Assim a falta de um distanciamento, ao invés de um inconveniente, pode ser um instrumento da realidade a ser estudada” (ibidem, p. XXIV)
(THOMSON, FRISCH, & HAMILTON, 2010, p. 76).
O historiador então passa a exercer um papel
Refiro-me à história oral como uma metodologia,
central e ativo na construção daquela realidade
pois entendo que essa prática “apenas estabelece e
historiográfica com a qual vai trabalhar; divide com
ordena procedimentos de trabalho, funcionando
sua fonte um papel fundamental na construção do
como uma ponte entre a teoria e prática”
processo
(FERREIRA & AMADO, 2010, p. XVI). Podemos
característica meramente investigativa, para se
setores sociais antes esquecidos pelos vieses tradicionais da história. “A história oral, juntamente com outros artefatos, dados e textos culturais, provou-se crucial para superar o processo de
histórico,
deixando
de
lado
sua
G N A R U S | 51 tornar um agente ativo de sua própria produção. A
Foram entrevistados três adolescentes de idades
história oral está para o tempo presente, como uma
entre 15 e 18 anos, alunos e moradores do bairro de
ferramenta
e
Realengo, questionados dentre outras coisas sobre
necessária quanto a arqueologia se apresenta para
sua relação com a história, com o tempo e com a
os historiadores especialistas em história antiga.
história local. Ao mesmo tempo foram convidados a
fundamental,
tão
importante
Ao relacionarmos a história oral com a prática de ensino em história, entendemos que os conceitos de memória e representações se fazem presentes, enquanto construções coletivas, significados e ressignificados.
A
história
necessariamente
com
as
oral
lembranças
joga e
os
esquecimentos evocados ou silenciados pelos sujeitos naquele momento, reportando-se a
enriquecer o trabalho com sua fala cinco professores, que atuam no bairro e têm, em maior ou menor grau, alguma relação com ele. Desses professores,
dois
aceitaram
o
convite
e
disponibilizaram seu tempo, mesmo se tratando do período de suas férias. Aos professores foram levantadas questões referentes a sua prática de ensino e suas relações com o ensino da história local em sala de aula.
acontecimentos passado.
qual se prioriza um caráter qualitativo em
A escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos , por uma preocupação com amostragem, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência. Assim, em primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou situações ligados ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos. (ALBERTI, 2013, p. 40)
detrimento do quantitativo. As entrevistas de
A primeira parte da entrevista com os alunos,
Para a presente pesquisa, foram colhidos depoimentos, a fim de elucidar, através do estudo de caso, os usos da metodologia em questão, para entender e ampliar a experiência do professor no ensino da história. Devido ao pouco tempo de preparo, optamos por um modelo de entrevista pensada através da pesquisa semi-estruturada, na
história oral podem ser dividias em dois tipos. As de
tinha
história de vida, que priorizam relatos do depoente
estabelecida entre eles e a história, portanto foi
com relação a sua trajetória e seus envolvimentos
perguntando qual a importância atribuída por eles
com o passado e as entrevistas temáticas, onde se
a estudar essa matéria e uma rápida explicação do
questiona
e
que eles entendiam como história. Os três alunos
acontecimentos relacionados a um determinado
apresentaram respostas muito semelhantes, todas
tema. As entrevistas de história de vida, podem
pautadas
contar em sua formatação com o número de
configurando
entrevistas temáticas que forem necessárias para
temporalidade deste grupo como uma consciência
englobar toda a trajetória de vida de quem concede
histórica exemplar, onde busca-se estudar o
o depoimento. As entrevistas realizadas para essa
passado para compreender o presente e entender o
pesquisa se enquadram no grupo de entrevistas
futuro. “ Eu acho que conhecendo o passado você
temáticas.
tem uma boa base para solucionar seus problemas
o
entrevistado
sobre
fatos
como
objetivo
na
ideia a
entender
magistra
maneira
de
a
da lidar
relação
história com
a
no futuro . Porque uma boa parte das coisas que vão acontecer pode encontrar no passado uma solução
G N A R U S | 52 prévia que acaba sendo esquecida” (Aluno 1; 2015)2
alegou ser importante essa modalidade de estudo
ou ainda “ A história vai nos mostrar uma série de
dizendo: “Acho importante estudar história local
problemas
na
para estudarmos o meio em que vivemos. Como ele
humanidade no passado que vão nos ensinar a não
é agora e como ele era no passado, como se tornou
cometer os mesmos erros no futuro”. (Aluno 2;
o que é hoje. Só que eu acho que isso não é muito
2015)3.
estudado. Estudar isso seria muito legal, até mesmo
e
erros,
que
aconteceram
Já sobre sua relação com tempo destaco a fala do
para nosso entendimento”. (Aluno 3 ; 2015)6
primeiro entrevistado que diz: “vejo o tempo como
Essa carência apresentada pelo aluno 3 referente
algo muito complexo que foge ao nosso controle e
ao estudo da localidade em sala de aula, motivou a
como algo que temos que aprender o mais rápido
realização
possível utilizar bem. Pois não podemos evitar
importância da história local, também aos
questões naturais como a morte e precisamos usar
professores que passaram pela captura de
nosso tempo para atingir nossos objetivos.” (Aluno
depoimentos. Ambos os professores concordam
1; 20154). O aluno se apropria do tempo proposto
que o estudo da história local é de uma importância
por Rüsen, marcando a transição do tempo natural,
vital na formação da identidade do aluno e no seu
imutável, representado na resposta pela morte com
reconhecer como parte integrante da história.
a necessidade inerente do ser humano de agir em
Porém ao questioná-los sobre quais os mecanismos
prol de seus objetivos.
didáticos usados para ensinar esse tipo de história
Conforme os questionamentos sobre a história local foram surgindo, ficou aparente por parte dos alunos, um desinteresse de conhecer sobre o bairro em que moram, sendo no entender de dois dentre os três questionados a respeito , estudar história local ser algo “trivial” ou “sem muita importância”.
devido a pressão com as questões que envolvem o vestibular.
A gente acaba não tendo muito tempo de trabalhar assuntos fora do currículo. Vou citar o meu caso, eu trabalho um tempo de aula de história na semana. Então fica uma coisa bem complicada de você puxar assuntos de fora do currículo para conseguir trabalhar em sala de aula. (PROFESSOR 1, 2015)7
diferença é algo trivial”. (Aluno 2; 2015) 5. Isso reflete na forma com que eles se identificam com o
histórica. O aluno 3 foi o único entrevistado que Arquivo pessoal do entrevistador ibidem 4 ibidem
a
maneira com a qual se deveria esse tipo de proposta
grandioso. Na minha opinião. Acho que não faz
seus estudos, porém nenhum grau de identificação
quanto
médio, não permite trabalhar, pelo menos na
explicar isso? Eu não acho que seja algo tão
enquanto local de residência ou lugar onde fazem
pergunta,
currículo de história hoje, principalmente no ensino
história local) sim, mas (pensativa) como posso
identidade com a região representam identificação
mesma
em sala eles foram unanimes em alegar, que o
“ Eu acho que tem uma importância (estudar
bairro. Podemos observar que os laços de
da
Cabe então por parte desses profissionais, reinventar suas práticas para adequar a carência sobre a história local com o pouco tempo do currículo, fazendo links entre a história local e a narrativa histórica nacional.
ibidem ibidem 7 ibidem
2
5
3
6
G N A R U S | 53
Volto a afirmar, a importância do quartel de Realengo com os presos militares. Se eles (alunos) entendem essa parte que durante a ditadura militar algumas pessoas foram presas no quartel de Realengo, ele vai começar a assimilar essa questão do processo histórico. Ele vai entender um pouco melhor o local da formação de uma identidade local. Ele já vai ter o conhecimento prévio para um conhecimento mais abrangente que é a questão sobre o conhecimento sobre a ditadura. (PROFESSOR 1; 2015)8
percepções
dos
seus
alunos
através
da
interpretação em busca de uma orientação em prol de uma maior consciência histórica. Jöel Candau (2011), em seu livro Memória e Identidade, trabalha a memória á dividindo em três fases básicas: proto-memória, memória propriamente dita e meta-memória. A protomemória é aquela derivada da memória social, são
Ou ainda relacionar a história local com os
os gestos, as práticas e a linguagem. São todos os
assuntos cobrados no Exame Nacional do Ensino
aspectos da vida em sociedade adquiridos através
Médio:
do habito de forma inconsciente. A memória
Em sala de aula? Sem condições. Diretamente não. Eu acabo tendo que jogar dentro da perspectiva do ENEM. Você acaba fazendo um grande “mix”. Trabalhar o tempo, a história local e o conteúdo propriamente dito. Então trabalho a perspectiva do tempo através do conteúdo. Por exemplo, o imperialismo, dentro do conceito de imperialismo vou trabalhar a relação do homem com o tempo propriamente dito. (PROFESSOR 2, 2015)
propriamente dita, vem de nossas recordações,
Ambas as falas apresentam críticas severas ao
alunos uma resposta que se encontra nestes três
currículo de história, alegando ser ele o maior culpado pela falta do tempo necessário para abordar assuntos como tempo e história local.
lembranças do vivido, aquilo que realmente participamos. E a meta-memória está ligada ao processo de representação, na medida que ela se configura pela forma que nos enxergamos nos processos de memória. Ao serem questionados sobre
as
lembranças
marcantes
entre
os
entrevistados e o bairro, obtivemos de um dos aspectos de memória.
Tem uma notícia marcante, não me envolve mais foi algo que aconteceu em Realengo – a Chacina que ocorreu no Colégio. Isso de fato marcou a gente, todo mundo lembra da repercussão que aquilo teve [...] Eu consigo lembrar do nome do responsável pela chacina, consigo lembrar do nome do colégio e da forma como as pessoas relataram o caso nas entrevistas de televisão [...] No momento da chacina eu estava assistindo uma programação na Tv Globo e ela foi interrompida para que fosse passado as informações do ocorrido. (ALUNO 1, 2015)
No mundo ideal hoje, você trabalha com 4 tempos de história. Você trabalha com dois tempos de história do Brasil e dois tempos de história Geral em 3 anos de Ensino Médio. Que é onde você vai ter mais tempo para trabalhar essas questões mais a fundo tanto os conceitos quanto os conteúdos propriamente ditos. Onde eu trabalho não é assim. Eu tenho dois tempos semanais para abordar todo o período histórico cobrado no ENEM. Da história Antiga á Era Lula no Brasil. Não tenho tempo nenhum para abordar conceitos, muito mal tenho tempo para fazer chamada. (PROFESSOR 2 . 2015)
conhecido a tragédia ocorrida no dia 07 de abril de
Ao professor sobra a responsabilidade de encarar
2011 no bairro de Realengo, zona oeste do Estado
a adversidade com criatividade, as carências com
do Rio de Janeiro. Na ocasião Wellington Menezes
respostas,
de Oliveira, 23 anos, invadiu a Escola Municipal
8
ibidem
buscando
sempre
modificar
as
O massacre de Realengo, foi como ficou
G N A R U S | 54 Tasso da Silveira e com um revolver em punho,
com respeito as questões que envolve a história
assassinou a sangue frio doze alunos com idades
local, trabalhar a memória é o primeiro passa para
entre treze e dezesseis anos se matando ao final.
o entendimento das questões que envolvem as
Mesmo tendo apenas 12 anos de idade na data da
disputas do tempo presente.
chacina, o aluno 1 apresenta o fato como sua lembrança mais marcante com o bairro, em seu relato apresenta dados da memória social, na medida que apresenta fatos do conhecimento
Rennan de Azevedo Ramos é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen, Mestrando pela UFRRJ e Professor de História do Colégio Francisco de Assis. rennan.azevedo. ramos@gmail.com
coletivo, colhidos não de suas próprias lembranças mais da cobertura da mídia, das entrevistas, dos relatos dos jornais e revistas. Ao mesmo tempo tem a lembrança do que estava fazendo no momento em que soube do fato “a programação foi interrompida “ e ainda relata como se sentia no momento “uma notícia marcante” ou “não me envolve, mais isso realmente marcou a gente” realizando um processo de identificação e solidarizando com as vítimas. Já o aluno 2 ao ser questionado sobre possuir lembranças com o bairro responde: “sim, porque faz parte do passado da minha família, minha mãe passou a adolescência em Realengo”(ALUNA 2, 2015). Nesse caso entendemos que seus laços de identidade com a região estão marcados pela égide do conceito da pós-memória, aquelas que é marcada
pela
geração
seguinte
de
quem
presenciou a memória propriamente dita, memória de pai para filho. Segundo Sarlo:
Nessa dimensão identitária, a pósmemória cumpre as mesmas funções clássicas da memória: fundar um presente em relação com um passado. A relação com esse passado não é diretamente pessoal, em termos de família e pertencimento, mas se dá através do público e da memória coletiva produzido institucionalmente. (SARLO, 2007) Ela se apropria das lembranças dos pais e retira delas seus laços de identidade com o bairro. É importante a inteiração entre alunos e professores
Referências ALBERTI, V. (2013). Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV. BORNE, D. (1998). Comunidade de Memória e Rigor Crítico. Em J. D. Jean BOVTIER, Campos e Canteiros da História. Rio de Janeiro: UFRJ. FERREIRA, M. d., & AMADO, J. (2010). Apresentação. Em M. d. FERREIRA, & J. AMADO, Usos e Abusos da História Oral (pp. vii -xxv). Rio de Janeiro: FGV. HARTOG, F. (2013). Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica. HOBSBAWN, E. (1998). Sobre historia: Não basta a história de identidade. São Paulo: Companhia das Letras. HUYSSEN, A. (2000). Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos e midia. Rio de Janeiro: Aeroplano. KOSELLECK, R. (2006). Futuro do passado. Rio de Janeiro: editora PUC-Rj. LE GOFF, J. (1990). História e Memória. São Paulo: UNICAMP. ROUSSO, H. (2010). A memória não é mais o que era. Em J. A. Marieta de Moraes FERREIRA, Usos e Abusos da História Oral (pp. 94-101). Rio de Janeiro: FGV. RÜSEN, J. (2001). Razão Histórica. Brasilia: UnB. SARLO, B. (2007). Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras. SCHMIT, M. A. (2007). O Ensino de História Local e os desafios da formação da consciência histórica. Em A. M. Ana Maria MONTEIRO,
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G N A R U S | 55
Artigo
AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ENTRE O CONGRESSO DE VIENA E A GRANDE GUERRA. Por Ricardo Luiz de Souza
Resumo: O presente artigo tem por objetivo realizar um debate historiográfico acerca das relações internacionais entre as grandes potências europeias e mundiais entre o congresso de Viena e a primeira Grande Guerra. Como metodologia de trabalho, serão utilizados alguns autores que trabalham com esse recorte histórico que vai de 1815 até 1914, buscando assim com esse debate, corroborar quais os principais nuances e fatos que ocorreram nesse período, no que concerne principalmente as relações entre as nações e o grande equilíbrio de poder demonstrado nesse período. Palavras-chave: Equilíbrio, finanças, Revolução, Paz.
Introdução
suas dissertações, teses e projetos de pesquisa. Esse período compreendido entre o fim das guerras
O
mundo no século XIX apresentou momentos únicos na história da humanidade, sendo um século vultoso que vai deste as grandes revoluções e
transformações sociais, mudanças de guinadas econômicas e políticas. Enfim, é um dos séculos mais fecundos na história da humanidade, pois esse período é uma espécie de quebra de paradigma entre o velho e o novo, o arcaico e inovador. Século em que inúmeros autores e pesquisas acadêmicas das mais diferentes áreas debruçam
napoleônicas que sacodem a Europa e o começo do grande morticínio da Primeira Grande Guerra, produziu e produzirá ainda novas pesquisas e perspectivas novas acerca de seus inúmeros nuances e desenvolvimentos. O presente trabalho possui por objetivos principais realizar um debate historiográfico acerca dos fatos e nuances desse século tão fértil. Assim, procuraremos explicitar o arcabouço teórico de acordo com autores consagrados da historiografia mundial nacional. Nesse período conhecido como
G N A R U S | 56 o século da paz de cem anos, as relações entre as
grande frequência de choques revolucionários.
nações
o
Nesse respectivo século, o volume de levantes,
desenvolvimento do comércio, dos investimentos e
insurreições e guerras civis foi tão grande que pode
da indústria. Um dos objetivos desse trabalho é
ser considerado o século mais fértil da história
esmiuçar ao leitor, o quanto essa complexa rede de
humana no plano revolucionário, Acerca disso o
relações era complexa e atrelada ao objetivo da
autor descreve:
se
tornam
primordiais
para
nova classe emergente após a revolução francesa: a Burguesia. Assim, nas próximas páginas trataremos alguns dos principais fatos desse recorte histórico e suas principais características, e os fundamentais desdobramentos desse longo período causaram no mundo. O objetivo desse trabalho é procurar explicitar assim, de forma sucinta mais coesa, quais são esses nuances principais.
Essas revoluções têm como pontos comuns o fato de quase todas serem dirigidas contra a ordem estabelecida (regime político, ordem social, às vezes, domínio estrangeiro), quase todas feitas em favor da liberdade, da democracia política ou social, da independência ou unidade nacionais. É esse o sentido profundo da efervescência que se manifesta continuamente na superfície da Europa, a que não ficou imune nenhuma parte do continente: tanto a Irlanda como a península ibérica, os Bálcãs como a França, a Europa Central e a Rússia, foram afetadas por essa agitação, uma ou mais vezes.(Remond, 1997,p. 05)
O panorama geral Europeu entre 1815 e 1914. De acordo Remond (1997), O século XIX, tal como os historiadores o delimitam, ou seja, o período compreendido pelo referido autor entre o fim das guerras napoleônicas e o início do primeiro conflito mundial, é um dos séculos mais complexos, mais cheios de nuances e percalços que existem na história humana. Hobsbawm (1981) salienta que, através da grande onda da ideologia pregada pelo forte movimento Iluminista do séc. XVIII, surgem os princípios universais que guiariam a Revolução Francesa: (liberdade, igualdade e fraternidade). Fato é que este mesmo pensamento, apesar de inovador, repleto de ideias humanitárias, de racionalidade e de progresso, ainda que indiretamente, favoreceu à consolidação do grande ideal do capitalismo (anseios do vitorioso mundo Burguês). René Remond assinala também que o século XIX foi fértil no terreno das revoluções, o autor também aponta que nesse período o traço mais evidente é a
Polany (2000) atenta para o fato que a civilização do século XIX, manter-se-ia em quatro grandes parâmetros: O primeiro parâmetro era o “sistema de equilíbrio de poder” equilíbrio este que, durante um século, impediu a ocorrência de qualquer guerra prolongada e devastadora entre as Grandes Potências” (POLANY, 2000, p.01). O segundo parâmetro era o uso e propagação do padrão internacional do ouro que simbolizava uma organização exclusiva na história econômica mundial. A terceira era o mercado auto-regulável, que produziu um bem-estar material sem precedentes
para
crescentes
indivíduos
consumidores. O último parâmetro era o estado liberal, com menor intervenção do Estado nas atividades
econômicas.
Classificando
esses
parâmetros de modo mais quantitativo, verificamse dois parâmetros econômicas e dois políticos. Com relação a Europa pós napoleônica, Remond (1997) atenta para o fato de que após a derrota dos exércitos franceses em Waterloo (1815), os
G N A R U S | 57 processos de restauração encabeçados pelas
Esse foi, portanto, um grande avanço da
potências centrais são intensificados, com o
revolução francesa, pois agora o movimento liberal
objetivo de se restaurar todo o processo
se consolidara no cenário europeu, e as classes
monárquico abolido pelos ideais da revolução. É
burguesas estavam se garantindo cada vez mais, no
restaurado o poder monárquico nos países onde os
centro do poder europeu e de suas decisões
ventos revolucionários franceses passaram (França,
institucionais. De acordo com Hobsbawm (1981) é
Espanha, Portugal) baseando-se nas voltas das
observado que a cultura do campo, assim como a
famílias e de seus aristocratas. Mais, porém, essa
religião deste, sofre uma grande refração no
nova monarquia, se baseia agora numa verdadeira
decorrer de todo o séc. XIX, se tornando o mundo
“corda bamba’, pois com o acesso de certos extratos
mais cético, cientifico e com uma população mais
sociais dantes negligenciados, são criadas cartas
esclarecida (devido ao avanço na educação das
constitucionais que limitam os poderes dos chefes
massas) e principalmente pela vitória evidenciada
de Estado. Acerca desse importante processo o
da cidade (liberal) sobre o campo (tradicional).
autor destaca esse processo no caso da França:
Outro ponto bastante preponderante no bojo
[...] O caso da França — de onde partiu a Revolução — é, na espécie,particularmente exemplar, já que Luís XVIII não viu possibilidades de voltar ao Antigo Regime e outorga a seus súditos uma Carta Constitucional, fazendo concessões importantes à experiência e às aspirações dos franceses. A existência de uma Carta já é por si mesma uma concessão importante. O Antigo Regime caracterizava-se pela ausência de constituição. Com a Carta Constitucional há, agora, um texto, uma regra, à qual se pode fazer referência, uma constituição disfarçada. Com efeito, apesar do preâmbulo, que insiste na concessão unilateral feita pelo rei, trata-se na verdade de uma constituição, uma espécie de contrato passado entre o soberano restaurado e a nação.[...]
desses momentos, foi a grande evidência de que a
[...] A análise do conteúdo da Carta dissipa, a esse respeito, todas as dúvidas. Ela prevê instituições representativas, uma Câmara eletiva (trata-se de uma homenagem ao princípio eletivo) associada ao exercício do poder legislativo, que vota o orçamento, em aplicação do princípio da necessidade do consentimento dos representantes da nação ao imposto. Trata-se, de algum modo, vinte e cinco anos depois, da legitimação das pretensões dos Estados Gerais. Enfim, a Carta reconhece explicitamente certo número de liberdades que a primeira Revolução havia proclamado: liberdade de opinião, liberdade de culto, liberdade de imprensa, isto é, quase toda a essência do programa liberal [...] (Remond, 1997, p.11).
nos códigos napoleônicos ficam em vigor por um
restauração dos antigos poderes absolutistas estava muito longe, de ser e conseguir, ser absoluta. Não obstante, impulsionaram-se pesadas pressões no que diz respeito às transformações sociais. De acordo dom Rémond (1997), por todo rincão de terra onde a Revolução passou, ela abalou profundamente as estruturas sociais e por toda parte verifica-se a conservação essencial de suas concepções originais, e de suas transformações- na França, onde a Carta reconhece as liberdades civis, nos Países Baixos, na Alemanha Ocidental, no Norte da Itália e até na Polônia, onde códigos inspirados tempo indeterminado. Algumas mudanças ocorrem em grandes áreas, tais como: O regime de servidão é abolido, os privilégios de certas classes são suprimidos e a mãomorta eclesiástica desapareceu. A equidade civil de todos diante da lei, diante da justiça, diante dos impostos, para o acesso aos cargos públicos e administrativos, é agora a norma para uma boa parte do continente Europeu. Todas essas reformas favorecem principalmente a classe burguesa, e de
G N A R U S | 58 fato, verificou-se a transição de sociedade
dos Estados está visivelmente reduzido”. Países
aristocrática para uma sociedade burguesa. Essas
como a Polônia, Suécia e Finlândia serão
transformações e sua conservação aproximam
abocanhadas pela crescente potência da Rússia. A
demasiadamente, os territórios dos países nos quais
Prússia consegue aumentar substancialmente seus
elas ocorrem, sendo bem acima das diferenças
territórios, nesse ínterim a Áustria também perde
ethos
parte de seu grande território, fracionados nos
existentes
no
passado
regido
pelo
nobiliárquico. Nesse ínterim, essas reformas lançam
Países Baixos1
uma linha de união e colaboram para unificar a Europa Ocidental, fazendo dessa parte da Europa ficaria bastante diferente da Oriental, no que tange
As finanças como protetoras da “paz”.
os aspectos sociais, políticos e econômicos. Outro
Percebe-se uma grande aclamação pela paz nas
importante marco do século XIX,é o movimento das
potências industriais e nas economias arrasadas
nacionalidades. Esse processo procede da herança
pelos conflitos. É dentro dessas perspectivas que
da Revolução, pois ao enumerar as consequências
incluem-se o período descrito por Karl Polany como
da Revolução sobre a ideia de nacionalidade. Nisso,
“cem anos de paz”. O autor trabalha com a ideia de
surgem dois importantes Estados que iram fazer
que era necessário para se conservar as economias
parte do rolo das nações protagonistas nos
em plena ascensão, e no caso a maior potência do
processos econômicos, políticos e sociais europeus
Globo - a Inglaterra - evitar ao máximo, grandes
e mundiais: Alemanha e Itália. No que concerne o
confrontos armados. É necessário que o comércio,
movimento das nacionalidades, Rémond (1997)
as finanças e as atividades manufatureiras
descreve:
prosperem, e para isso, é necessária a paz. A Europa
Enfim, o movimento das nacionalidades, que não se segue cronologicamente aos três precedentes, mas corre por todo o século XIX, constitui o último tipo de movimento. Ele procede da herança da Revolução, como vimos ao enumerar as consequências da Revolução sobre a ideia de nacionalidade; ele também é contemporâneo tanto dos movimentos liberais como das revoluções democráticas, e mesmo das revoluções sociais, e mantém com essas três correntes relações complexas, cambiantes, ambíguas, sendo ora aliado, ora adversário dos movimentos liberais, ou das revoluções democráticas e socialistas.(Rémond, 1997, p.04). Após a grande destruição causada pelas Guerras Napoleônicas, o mapa Europeu redesenhou-se em suas fronteiras em 1815. Conforme Remond (1997 :10), “O mapa está muito simplificado; o número
1René
Remond salienta que, geograficamente o mapa europeu foi modificado de maneira profunda a partir de 1815.
passará por um grande período sem um grande conflito armado, a não ser por pequenos e esporádicos conflitos como, por exemplo, a Guerra da Criméia. Acerca disso, Polany descreve:
O comércio se unira definitivamente à paz. No passado, a organização do comércio fora militar e guerreira; era um conjunto de piratas e bucaneiros, era a caravana armada, o caçador e o que colocava armadilhas, o mercador com a espada, a burguesia armada das cidades, os aventureiros e os exploradores, os plantadores e os conquistadores, os caçadores de homens e os comerciantes de escravos, os exércitos coloniais e os navios fretados. Tudo isto já havia sido esquecido. O comércio dependia agora de um sistema monetário internacional que não podia funcionar numa guerra generalizada. Ele exigia a paz e as Grandes Potências se esforçavam por mantê-
Estando a Europa, muito longe de uma restauração dos Estados e dos soberanos no status quo anterior a 1789.
G N A R U S | 59
Ia. Todavia, o sistema de equilibro de poder, como vimos, não podia garantir a paz por si mesmo. Isto foi conseguido pela finança internacional, cuja própria existência incorporava o princípio de uma nova dependência do comércio à paz. (Polany, 2000,p.30).
internacional, a haute finance propriamente dita, criou uma nova classe de homens ligados a aproximar as nações no que diz respeito aos negócios e a paz, esses profissionais eram os diplomatas que zelavam pelos interesses de suas elites e governos mundo afora. Houve também
Nesse ínterim, essa nova sociedade burguesa central europeia irá tecer sua nova organização da vida econômica e fornecer o pano de fundo para a Paz dos Cem Anos. Num primeiro momento, devido as grandes percas materiais causadas pelas guerras napoleônicas, criaram nas classes mais abastadas e dirigentes a perceber que, para o pleno desenvolvimento econômico, a manutenção da ordem social e a paz são extremamente
alguns centros nacionais gravitando em torno dos seus bancos de emissões de moeda e suas bolsas de valores. Os banqueiros internacionais não se limitavam a financiar governos em suas aventuras de guerra e paz, realizando polpudos investimentos externos na indústria, nos serviços públicos e bancos, bem como empréstimos a longo prazo à corporações públicas e a Estados dos mais diferentes lugares do globo.
necessários. Assim, a partir dessa nova perspectiva
Arrighi (1996) descreve que com a súbita e
econômica vigente, o modelo da “paz” estava
irreversível expansão do capitalismo, verifica-se
vitorioso. As classes médias eram o sustentáculo do
formar no mundo Europeu os chamados “hegemons”
interesse na paz, muito mais poderoso do que o de
que são nada mais, nada menos do que países que
seus predecessores reacionários, e alimentado pelo
possuem
caráter nacional internacional de uma nova
anteriores, e que controlam os meios sociais e
economia. Entretanto, “o interesse pela paz” só se
políticos, fato esse o que os torna fundamentais no
tornou efetivo porque foi capaz de fazer o sistema
jogo político mundial existente.
de equilíbrio de poder servir à sua causa, fornecendo àquele sistema os órgãos sociais capazes de lidarem diretamente com as forças internas ativas na área da paz. “2.
mais poder e recursos que os
Giovanni
Arrighi
(1996)
adverte
seus
que
o
Imperialismo de livre comércio, marca do sistema mundial organizado e mantido pelos britânicos, tinha
por
principais
premissas,
guardar
a
De modo organizacional, a haute finance foi o
importância das comunidades nacionais e da
epicentro de uma das mais intricadas instituições
propriedade privada a extensa centralização do
que a história do homem já produziu. Apesar de
poder mundial no Reino Unido. O equilíbrio de
transitória, ela só é comparável, em universalidade
poder entre as potências, consistiu num modo em
e pela profusão de formas e instrumentos, com o
que nenhuma grande potência se destacasse mais
montante das atividades humanas na indústria e no
que a outra, política essa materializada no
comércio do qual se tornou, de alguma forma, a
Concerto Europeu, contando com o apoio
frente e o verso de um sistema. Além do centro
fundamental da Haute Finance, Não obstante, o
2Karl Polany também afirma que Durante a paz dos Trinta Anos,
pelos negócios, e mesmo a Santa Aliança não desdenhava a crucial ajuda dos Rothschilds.
1816-1846, a Grã-Bretanha já pressionava muito pela paz e
G N A R U S | 60 uso do padrão ouro nas transações comerciais e constitucionalismo nas políticas nacionais também se caracterizaram como característica dessa hegemonia economia britânica nos quatro cantos do mundo. No que diz respeito à Hegemonia inglesa no mundo, Arrighi (1996), descreve o conceito de hegemonia como “à capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações soberanas” (Arrighi, 1996, p.27).
harmoniosa, duas vias de desenvolvimento aparentemente divergentes , que tinham sido abertas muito antes pelos grupos dominantes de outros Estados. O que houve de diferente foi a combinação entre essas vias, e não as vias em si.(Arrighi, 1996, p.57).
Hobsbawm (1981), descreve que a primeira fase da industrialização britânica se baseou na indústria têxtil, principalmente a do algodão. Dona de um monopólio comercial imenso no escoamento e produção
Essa dominação não necessita ser só de cunho físico, mais também pode se apresentar como dominação ideológica 3 , dominação essa que a Inglaterra passará a exercer no mundo no século XIX e os E.U.A passaram a exercer no século, mais precisamente após a destruição da Primeira Grande Guerra.
desse
produto
na
América
(principalmente os Estados Unidos) e Ásia. Com o monopólio cada vez maior da venda e compra de algodão mundial, os industriais ingleses assim entravam nessa empresa com certeza de venda de seus produtos e lucro imediato e certo. Enquanto isso paisagens de cidades como Manchester e Liverpool iam mudando, se tornando mais cinzas,
Segundo Kennedy (1989) o controle da haute
horizontais, com inúmeras fábricas, além de um
finance pelos ingleses, sua supremacia marítima,
exército
posição
influências
maltrapilhos, sendo que, a mentalidade acerca do
continentais e comerciais a fizeram tornar uma
trabalho e do tempo é transformada 4 . Com o
nação com poder sem precedentes. Sua hegemonia
desenvolvimento dessas cidades a indústria
global exercia influência em todo o globo e era
alimentícia foi em seguida alavancada com o
interessante para a manutenção desse poderio que
desenvolvimento e aumento demográfico das
o mundo todo fosse uma grande extensão do
cidades, causando no campo uma espécie de
pensamento liberal, que esse pensamento passasse
“revolução” na produtividade das culturas, com o
a sobrepor as decisões dos Estados. No que
implemento de novas técnicas agrárias e pastoris
pertence essa afirmação, Arrighi (1996) descreve:
como a fertilização dos campos, revezamento de
insular,
poderio
militar,
O poder mundial da Grã-Bretanha no século XIX não teve precedentes. Mas a via de desenvolvimento que levou a essas conquistas não deve ser considerada totalmente inédita. Pois o imperialismo de livre comércio da Grã-Bretanha simplesmente fundiu, numa síntese 3De acordo com o pensador italiano Gramsci, para um povo ter
preponderância sobre outro, somente a ação e repressão militar não são necessários, ficando o campo ideológico com muita importância para legitimar e coordenar as ideias de submissão de um Estado mais fraco ante um mais forte. 4 De acordo com Eduard Palmer Thompson, os costumes dos trabalhadores que antes de entraram no mundo fabril, não são
de
trabalhadores
famigerados
e
culturas, novas culturas adotadas (como o caso da Batata, vinda da América do Sul). Todas essas inovações que incrementaram o aumento da população e consequentemente mais braços para as fábricas. A Indústria alimentícia foi abastecida de
totalmente suprimidos, tendo esses homens e mulheres costumes que perfazem boa parte do tempo. A percepção acerca do tempo é totalmente transformada pela noção capitalista segundo a ótica de tal autor, mais de uma forma lenta e gradual e não totalmente abrupta.
G N A R U S | 61
novas técnicas de produção de bebidas e comidas,
investimentos maciços em qualquer atividade de
se tornado essas mais dinâmicas para a vida corrida
cunho industrial ou afins. As Expansões industriais
do trabalho fabril. Outra indústria vital para o
em torno das atividades têxteis eram facilitadas
abastecimento energético das fábricas foi à
pela grande soma de lucro que adivinha de sua
extração do carvão vegetal, sendo usado de forma
venda, e assim, novas máquinas e tecnologias eram
tanto industrial como doméstica devido à fraca
adquiridas podendo ser pagas em torno de pouco
vegetação arbórea Inglesa. O carvão mineral se
tempo,
tornou a mola central no abastecimento das
consumidores como a América Espanhola, Ásia e
máquinas a vapor tanto das indústrias, como
África.
devido
ao
ganho
de
mercados
também das ferrovias mundo afora. Foi o combustível da revolução.
Um mundo em constante movimento
Todo o mercado financeiro e especulativo teve que se reformular se tornado mais proativo para suplantar cada vez mais os altos capitais circulantes no mundo, não havendo dificuldade quanto às técnicas comerciais e financeiras. Os bancos e todos os seus artífices, estavam cada vez mais interligados
com
a
oferecendo
facilidades
industrialização, a
empréstimos
seja e
Segundo Arrighi (1996), após um século inteiro de hegemonia britânica mundial, verifica-se a partir dos anos de 1870 a ascensão de dois concorrentes implacáveis, Estados Unidos da América e Alemanha. Os E.U.A, grande nação de dimensões continentais possuía recursos naturais, potencial humano, economia nacional maiores que os da
G N A R U S | 62 terra da rainha. Essa guinada na mudança da grande
compromissos que pudessem forçar a Alemanha
potência mundial irá se propagar com maior ênfase
para fora de seus anseios de manutenção de paz,
após a Grande Primeira Guerra Mundial. Os Estados
pois com essa paz, os negócios, indústria e
Unidos segundo Kennedy (1989), preferiram após a
comercio alemães prosperavam. Nessa mesma
guerra de Secessão, concentrar suas energias e
ideia, mais do outro lado do Atlântico,
forças no aparelhamento de sua economia no que diz respeito ao comércio, a indústria, e a sua crescente influência no continente americano em detrimento dos gastos militares. O número de militares regulares dos Estados Unidos era de certa forma no século XIX, menor que potências médias europeias, como a Hungria e a Áustria. O antagonismo da E.U.A e da Rússia era enorme frente aos exércitos regulares, mais era muito maior no aspecto econômico, Trocando em miúdos, a Rússia se mantivera entre as grandes potencias por sua alta capacidade militar, mas não pela sua econômica frágil.
Hobsbawm (2004) descreve que os últimos anos do século XIX foram vistos até hoje na história da civilização
humana
como
estabilidade social e política.
um
período
de
Foram anos de
intensa prosperidade econômica e crescimento constante das nações mais abastadas do Globo. Os governos se mostraram mais experientes na arte de conter agitações políticas e sociais. Época conhecida como belle époque, onde o mundo de certa forma estava mergulhado num mundo de intensa prosperidade. Apesar de todo esse otimismo e ar próspero, algumas áreas mundiais estavam passando por momentos de muita
Já na Europa, surge uma nação que irá acirrar
instabilidade e com grande eminência de
ainda mais o concerto europeu, a Alemanha
revoluções até que em 1914 o mundo assistir a
unificada por Otto Von Bismark em 1870, angariava
segunda guerra mundial afetando a paz em todo o
seu poderio em sua grande e expoente indústria
globo. Áreas como o Império Otomano, Rússia e o
química e siderúrgica, assim percebeu-se que o
Império Habsburgo tiveram como a primeira
concerto da Europa estava em seu auge. “Nas duas
guerra mundial uma espécie de desencadeamento
décadas que se seguiram imediatamente à
de conflitos internos e instabilidade política. É bem
ascensão da Alemanha à categoria de Grande
lógico que a belle époque não estava inserida de
Potência, ela foi a principal beneficiária do
forma continua em todo o mundo, vários países
interesse pela paz” (Polany, 2000, p.35). Kennedy
como o México passavam por serias revoluções,
(1989) salienta que essa nova potência central
Países como China e a Rússia passariam por
forçou seu caminho até as primeiras fileiras
transformações profundas na sua concepção tanto
mundiais à custa do relativo atraso econômico da
política, ideológica e econômica, as grandes crises
Áustria e da França pois para os franceses era mais
sociais que esses países passaram por vários anos e
vantajoso para manter seu grande status quo e
as grandes pressões internas devido a sua
evitar uma guerra mortífera com a poderosíssima
amplitude
Alemanha de Bismarck. O alto escalão do Governo
mudanças na virada do Séc. XX.
alemão favoreceu deliberadamente a paz com a colaboração conjunta das outras Grandes Potências (Áustria, França, Inglaterra e Rússia) evitando
geográfica,
trouxeram
grandes
G N A R U S | 63 O colapso de um sistema frágil
Praticamente na mesma época, os sintomas de
Entretanto, de acordo com Polany (2000) no final da década de 1870, o episódio do livre comércio estava no seu final, e a utilização do padrão ouro pela Alemanha marcou o início de uma extensa rede de protecionismo e expansão colonial mundo afora. A Alemanha passava agora, a reforçar sua posição através de uma união com a ÁustriaHungria e a Itália. A partir daí, a Grã-Bretanha passou assim, a ser o principal líder do interesse pela paz em uma Europa onde ainda permanecia um grupo de estados soberanos independentes e
dissolução das formas existentes de economia mundial como a rivalidade colonial na África e Ásia, e a competição por mercados exóticos tornaram-se aguçados. A habilidade da haute finance em contornar a disseminação das guerras diminuía rapidamente. A paz ainda se arrastou durante os sete anos seguintes, mas era apenas uma questão de tempo para desmoronar-se, e que, de fato a teia da organização econômica do século XIX ruísse e acabasse por completo com a Paz dos Cem Anos. Da paz a uma guerra sem precedentes históricos.
portanto, sujeitos ao tão desejado equilíbrio de poder. Na década de 1890, a haute finance estava no seu apogeu e a paz parecia mais segura do que nunca. Os interesses britânicos e franceses diferiam entre si na África, os britânicos e os russos competiam uns com os outros na Ásia. O Concerto, embora capengando, continuava a funcionar. A despeito da Tríplice Aliança, ainda havia mais de duas potências independentes para vigiar uma a outra ciumentamente. Mas isso não durou muito tempo. Em 1904, a Grã-Bretanha fez um acordo com a França sobre o Marrocos e o Egito, e alguns anos mais tarde entrou em acordo com a Rússia sobre o território Persa. Estava ai formada a contraaliança. O Concerto da Europa, essa federação frouxa
de
potências
independentes,
foi
subitamente substuído por dois agrupamentos antagônicos e o desejado e complexo “castelo de areia” que era equilíbrio do poder, chegara a seu final. Com apenas dois grupos de poder em extrema competição acirrada pelo imperialismo, seu
Conclusão. Percebemos preocupações
que das
uma
potências
das
grandes
europeias
foi
justamente se evitar uma guerra de alta deflagração, pois um conflito de alto custo humano e material nesse período era muito ruim para a prosperidade dos negócios e das finanças. O mundo do século XIX é completamente diferente depois da sacudida institucional que a Revolução Francesa trouxe ao mundo europeu. O século XIX também é apresentado como um século de unificações nacionais de países como a Alemanha e a Itália, que serão importantíssimos nos decorreres dos anos nos cenários europeu e mundial. O período analisado nesse trabalho também demonstra a guinada na mentalidade europeia no que concerne a política, ciências e artes nesse período conhecido como a paz de cem anos. Como grandes baluartes da “paz de cem anos”
mecanismo deixara de funcionar de forma
verificamos que as finanças e os governos tiveram
harmônica, como funcionara em tempos atrás.
uma importância primordial, pois a guerra entre as
Nisso, já não havia mais um terceiro grupo que se unisse a um ou outro para frear aquele que buscasse aumentar o seu poder e ser o fiel da balança.
grandes potencias, era vista como essencialmente danosa para a burguesia industrial, comercial e financeira das maiores potências do globo. Essa teia de compromissos e equilíbrio finalmente rui a partir
G N A R U S | 64 do final do século XIX, pois com o fenômeno do imperialismo, a competição por produtos exóticos, matérias-primas e mercados nos países africanos e asiáticos, traz por terra todo o arcabouço feito pelas finanças. Para um conflito de grandes proporções e intensa carnificina, seria só uma questão de tempo. Infelizmente para boa parte da humanidade. Ricardo Luiz de Souza é Aluno do 9º período do Curso em Licenciatura em História da UFRRJ, campus Nova Iguaçu. ricardoluisouza@gmail.com
Bibliografia GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. _______________. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. _________________ . A Era do Capital. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004. POLANYI, Karl. A Grande Transformação - as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes
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G N A R U S | 65
Artigo
UM NOVO VELHO MODELO NO NOVO MUNDO: A REPÚBLICA RELIGIOSA SECULARIZADA DA GIOVANNI ITALIA Por Ricardo Cortez Lopes
Resumo: Esse trabalho busca expor um dos projetos da modernidade política que fracassaram diante do modelo moderno vencedor após a queda do Antigo Regime. Este projeto seria o da república proposta pelo movimento Giovanni Italia, que foi exposto e defendido no contexto social da nascente República Rio Grandense Farroupilha pelo italiano Luigi Rossetti (1800-1840) nas páginas do jornal “O Povo” (1838-1840). Esta república, no entanto, não se assentaria na secularização da esfera pública, como ocorreu historicamente no processo de formação da grande maioria dos estados modernos. Apreendemos e sistematizamos esse modelo a partir da Teoria das Representações Sociais, coletando os dados no jornal com o objetivo de compreender a estrutura funcional dessa proposta republicana-religiosa. Assim, buscamos as representações sociais sobre os seguintes conceitos e apresentamos parcialmente alguns resultados da análise: a legitimidade do poder (deísta, e não emancipatória do ponto de vista individualista), o laço social democrático (pela fraternidade cristã), o modo como se processa a dinâmica social (pelo progresso do igualitarismo) e o papel da Religião (concebida como esfera autônoma do jogo político e que, coerentemente com a argumentação do autor, estava e não estava incluída no modelo ao mesmo tempo). Palavras-chave: Modelo Republicano. Teoria das Representações Sociais. Modernidade Religiosa
G N A R U S | 66 Introdução
É
estruturantes deste, a saber: a) legitimidade do
mile Durkheim distingue, quando de suas considerações sobre o estudo do fenômeno moral, entre um “ser” e um “dever ser”: “a realidade moral, como qualquer espécie de
poder,
b)
laço
social
democrático,
c)
processamento da dinâmica social e d) papel da Religião. Essas representações sociais emergiram a partir da análise de conteúdo.
realidade, pode ser estudada de dois pontos de
O movimento Giovanni Italia surgiu em uma
vista diferentes. Pode-se tentar conhecê-la e
conjuntura complexa da história italiana, situada no
compreendê-la. Ou, então, dispor-se a julgá-la”
século XIX, em que a unificação territorial ainda
(DURKHEIM, 1970: p. 50). Entre o que seria de fato
não havia sido levada a cabo. Há, neste período,
e o que se projetaria (emprestamos a expressão de
uma proliferação de sociedade secretas, entre elas
Freud) de ideal para substituir o que seria um fato
a célebre Carbonaria, criada por Mazzini (que criou
social. Esse trabalho trata um pouco de um “dever
a Jovem Itália posteriormente). A sociedade Jovem
ser”: o de um modelo
Itália (Giiovanni Italia),
político que se buscou
radicalmente republicana
irradiar para o mundo a
e
partir de um epicentro
estender seus tentáculos
específico.
Mais
para uma série de países,
especificamente,
essa
entre
nacionalista,
eles
o
vai
Brasil
pesquisa trata do projeto
(LEITMANN,
de república – o dever ser
100).
de uma república secular
manifestação oficial dela
e
tempo
em território brasileiro foi
religiosa - nutrido por um
no Rio de Janeiro, onde
ator político – o jornalista
houve uma seção (na qual
pertecente
ao
Rossetti
movimento
Giovanni
ao
mesmo
Italia Luigi Rossetti (1800-
A
a
farroupilha).
Aproximadamente
italianos
um epicentro específico – a nascente república
farroupilhas
farroupilha. Para o italiano, a república recém
esperançosos de que a revolução republicana
fundada estava se afastando dos ideais de sua
popular espalhasse-se pela América a partir da
agremiação política original, de modo que a
província gaúcha. A república, na perspectiva desse
maneira encontrada para trazer de volta esses
movimento, não se legitimaria politicamente na
ideais perdidos seria através dessa publicação
liberdade do homem como indivíduo, mas sim no
jornalística.
homem como uma criação divina que precisa ser
projeto a partir de algumas representações sociais
juntaram-se
50
1840) no jornal “O Povo” (1838-1840) – dentro de
Portanto, o foco desse trabalho será apreciar esse
mazzinianos
p.
primeira
conheceu
causa
Lenço Farroupilha
1985,
(LEITMANN,
1985,
às
forças
p.
105),
igual aos seus irmãos –igualitarismo que não proviria da noção de um contrato social (PANERAI, 2009, p. 24). Ou seja, é o Estado que serviria a uma
G N A R U S | 67 finalidade religiosa, e não a religião que
católica como fator aglutinador dos diferentes
administraria o Estado.
atores. Uma série de projetos de secularização do espaço público foram formuladas no bojo desta
A separação da esfera pública da esfera privada A política moderna se caracteriza pela sua tentativa ostensiva de se autonomizar do campo religioso (HERVIEU-LEGER, 1999: p. 41), como demonstra a concepção de privatização da religião. A partir daquele momento, criar-se-ia uma esfera pública, objetiva e laica, espaço de circulação de ideias, e uma esfera privada para cada um dos cidadãos, subjetiva e de celebração religiosa. Dentro da discussão sobre modernidade e tradição,
conjuntura social específica, de modo que este breve artigo intentará expor uma dessas propostas, o do jonalista Luigi Rossetti. O projeto que foi o “vencedor”, e que muitas vezes é confundido com a própria concepção de laicismo é aquele que diz que a religião é uma atividade privada, de modo que diz respeito apenas ao indivíduo, e que busca romper radicalmente com a religião (SANCHIS, 2001: p. 38). Não é o que observaremos na proposta que analisaremos.
essa nova concepção tornou-se base para a formulação de diferentes teorias da secularização, tomadas a partir daí de uma perspectiva historicista.
Representações sociai1 Nesta seção vamos definir o conceito de
A discussão sobre o laicismo (vital para se discutir o avanço do processo de secularização) adquiriu contornos
decisivos
quando do advento da Revolução Francesa, após o Iluminismo (CIPRIANI, 2012: p. 16). Dentro do clima de derrubada do Antigo Regime, muitos intelectuais empreenderam
um
esforço no sentido de fundar uma nova moral que pudesse dar início a um princípio de coesão, capaz de integrar os indivíduos
em
uma
sociedade moderna não baseada
1
na
religião
Não vamos referenciar as obras dos autores da Psicologia Social por conta da falta de espaço
representações sociais, ancorados em Denise Jodelet, Mary Jane Spink, Maria Manuel Baptista e Serge Moscovici. A teoria de
Representações
Sociais
visa
analisar
modalidades conhecimento dirigidas
de prático para
a
comunicação e para a compreensão do contexto social. São formas de conhecimento manifestam
que
se
como
elementos cognitivos tais como imagens, conceitos, categorias, teorias - mas que não se reduzem aos seus
componentes
G N A R U S | 68 cognitivos. Ou seja, segundo Spink, são maneiras representacionais
socialmente
Esse trecho se refere a dimensão (a). Aqui é
compartilhadas
possível perceber que a luta pela democracia é
estruturantes e estruturadas, de se explicar o
igualitária e leva em consideração o interesse de
mundo revestidas da dinâmica própria que envolve
todos os homens de maneira igual. É, portanto,
os mecanismos do meio social, criando, assim, uma
avessa
realidade comum, segundo Batista. Vamos chegar à
provisoriamente, de “privilégios nobres”.
essas Representações através da técnica de Análise de Conteúdo. Nossa análise será temática, e procederemos a partir da categorização em volta de determinadas unidades de significação, que serão as que estarão expostas no começo de cada sessão. Legitimidade do poder A questão da legitimidade é abordada em duas dimensões pelo jornal: a) como o que já é e vai permanecer e b) como o que foi e está sendo substituído. O poder que é legítimo aos olhos de Rossetti é o poder que emana da fraternidade cristã, e dela se origina a democracia igualitária,
a
privilégios,
que
chamaremos,
“Justo José Vieira, cazado, com filhos, ja naó existe! Huma partida de 16 ferozes ladrões, assassinos pertencentes a [ilegível] sujeita e imunda que se intitula legal [grifos meus].” (O Povo, 1838, p. 483). Neste trecho, é possível se apreciar (b). “Ladrão” seria o não-democrático, pois seria usurpador (na medida em que utiliza da força para desequilibrar a distribuição de posses justas), “assassinos” (pois também se utiliza da força para impingir uma morte violenta a alguém, que tornaria uma morte não legítima, pois seria realizada por devoção a uma figura pessoal). Cônscios de seus crimes, e da vendita nacional que
ilustrativa da maior dignidade humana possível.
os
Esse é o poder estável, pois respeita a Lei Natural
indignamente tem lançado aos braços de
divina. A pesquisa completa dá conta que o que está
mercenários
em jogo é um conflito contra a figura do rei
[provavelmente “cúmulo”] da ignomia e de eterno
absoluto, que traria a legitimidade para a sua figura
opobriu, conseguiraó da camara temporária
pessoal e desviaria a prática política do verdadeiro
permisaó para engajar hordas destes janizaros, e
centro de sua imanência: Deus, cultuado através do
como na América naó poderão encontrar homens
exercício da Igualdade (daí o nome do jornal, “O
que degradem a sua razão a ponto de combater
Povo”). A nobreza também seria um traço de
princípios que hão jurado é estabelecido sobre
distinção de berço que afetaria essa igualdade
montões de cadáveres, terão sem dúvida de
entre os seres humanos, que é um projeto
recorrer à caduca Europa, e he desta que novos
intrinsicamente moderno (TAYLOR, 2010: p. 26).
vândalos conduzirão a escravidão e a morte aos
No dia 20 de setembro lançamo-nos n’huma carreiras muito mais vasta, muito maior do que talvez se pense. Quando proclamamos o systema democrático, jà não foi huma simples luta pela independencia que assumimos; desde aquelle momento entramos nas fileiras do exercito humanitário, e a nossa causa tornou- se a cauza de todos os homens (O POVO, 1838, p. 108)
espera
[refere-se estrangeiros,
aos e
monarquistas], para
comola
filhos do novo mundo (O Povo, 1838, p. 149) Ainda há referência a (b). Há um antinacionalismo por parte dos não-democráticos, que apenas se curvam aos desejos egoístas do soberano. Por isso são “hordas” que “degradam a sua razão”, e que, por isso, utilizam-se da sua violência, o que
G N A R U S | 69 gera “cadáveres”. Talvez por conta das Reformas
uma uniformidade baseada na cooperação, e não
Protestantes, a Europa se mostra caduca, em
na competição narcísica entre tiranos.
oposição ao novo mundo, que pode ser algum vento de renovação ao estar longe desses movimentos políticos.
Em hum de nossos números anteriores expozemos parte de nossos pensamentos sobre a relação natural que existe entre a actual luta da republica rio grandense contra o império dos argentinos contra o malvado Rosas. Patenteamos nossas ideias como homens do povo, como homens da liberdade, como homens que simpathisaó com todos os que arvoraó o pendão da igualdade tenha o nome que tiver a terra em que nascerão (O POVO, 1838, p. 563) Neste trecho, há (a) e (b). Há, em (b) um império regido por outro líder pessoalizado, no caso Rosas, que é “malvado”. No sentido (a), há a liberdade e a igualdade independente do local de nascimento, o que reforça o igualitarismo (e a meritocracia).
Hum throno não pode aqui subsistir – he uma mancha que todos devemos concorrer para apagá-la. A época em que as republicas do sul tem de convergir em um só centro já a entrevemos, e bem depressa chegará – o tempo dos impérios e dos reis pode se considerar acabado. (O POVO, 1838, p. 109) Em (b), podemos ver que o trono produz fragmentação dos centros de poder, com impérios e reis. No sentido (a): as repúblicas, ao se focarem em Deus (e por extensão no ser humano), trazem
“Vimos rotos os liames da sociabilidade, violadas todas as suas leis, enthronadas a violência, coroado o delicto, e a virtude nos ferros”(O Povo, 1838, p.
15). Novamente, (b): a Lei, que é decorrente do consenso entre os cidadãos, não pode querer ser respeitada pelo tirano, o que degradaria a sociabilidade.
Laço social democrático Uma vez estabelecida a legitimidade do sistema democrático igualitário (calcada na ideia de Deus), passa a ser importante que esta se estabeleça segundo uma Lei Natural. O laço social é como se fosse uma repetição do laço realizado entre Deus e a humanidade (HERVIEU-LEGER, 1997: p.55) entre os próprios homens. Isso só pode se realizar com a destruição das heresias dos outros sistemas, para que se possa purificar novamente a prática política. Portanto, há uma espécie de evolucionismo, obviamente o cristão no sentido de conhecimento da doutrina cristã.
[...]bater e diperçar algum grupos inimigos que vagavao pelos matos dos campestres e rolante: elles prevenidos da entrada de nossa força haviaó feito 3 emboscadas, as quaes
G N A R U S | 70
apenas carregadas se puseraó em precipitada fuga deixando armamentos e outros objetos que atestaó o seu terror (O POVO, 1838, p. 563) O terror aqui pode ser entendido por duas vias. O terror que os soldados inimigos sofrem por parte do tirano; ou o terror como a falta de fibra em situação de combate por não se estar lutando por uma causa justa, daí a fraqueza na vontade. É, portanto, um arquétipo de não repetição. “Rio-grandenses! Dirigi ao cêo [céu] sinceros votos de gratidão por tervos livrados dos abutres que correm o Brasil! Vós sois o povo por deos escolhido para salvá-lo [salvar o Brasil]!” (O POVO,
dessa disposição (na expressão emprestada por nós de Pierre Bourdieu). Publicar de preferência artigos de doutrina, propagar princípios, apregoar as virtudes que devem ornar a alma do verdadeiro republicano, educar finalmente, se nos he permitida à expressão, nossos concidadãos ao novo modo de política (O POVO, 1838, p. 19) Há uma alma genuinamente republicana (que se constrói pela educação, e não pela cegueira causada pelo tirano) que é capaz de compreender o novo modo da política, que remete a adoção desse laço.
1838, p. 387). O Céu é o intermédio dos votos direcionados a Deus. A batalha é contra os “abutres” (e o abutre é um animal que não busca o confronto com suas presas). O laço social se estabeleceu verdadeiramente entre o povo rio grandense por esse ser escolhido por Deus para iniciar a execução de sua vontade.
A hum simples golpe de vista se patenteia o despotismo atroz e tyrannico que opprime o malfadado Brazil: as sympathias que nos merece esta desditoza nação, de que outr’ora fizemos parte; sua tendência ao systema democrático que havemos jurado; a surda guerra que simultaneamente nos fazem detestáveis e torpes luzitanos, sobre tudo a intima convicção que a antolha á feliz épocha em que o laço federeal com indissolúvel nó ligará todo o continente brasileiro; tão sagrados e respeitáveis títulos impelem nos a tomar parte nos males que dilaceraó e oprimem ao brazileiros livres [...]”(O POVO, 1838, p. 149)
Processamento da dinâmica social A dinâmica social é a descrição das consequências da adoção ou não da Aliança com Deus. Há uma situação anterior que pode ser descrita a partir de alguns fatos e uma situação posterior da mesma monta.
Essa
dinâmica
é
ilustrada
pelos
acontecimentos que serão descritos em seguida.
Que monumento de degradaçaó, immoralidade, e depravaçaó tem o governo do Brasil transmittido às gerações futuras, no segredo de enviar ao túmulo o innocente fructo da fraqueza humana!!!! Quando e em que tempo se imaginou o meio de Mattar crianças por via das mamadeiras! Santo Deus: consintis, e tolleraes ainda que monstros que mandão, e aos escravos que obedecen ordens taes” (O POVO, 1838, p. 302) A situação da ausência de Aliança se prolonga
Portanto, até aquele momento, há um depotismo
através de acontecimentos como esse da morte das
tirânico, que provém dos “detestáveis e torpes
crianças em orfanatos: degradação, imoralidade.
luzitanos”. A tendência ao sistema democrático do
Isso porque há monstros que mandam e escravos
Brasil (a partir do Rio Grande do Sul) conduz o
que os obedecem.
continente brasileiro a uma época em que se estabelecerá um laço federal como consolidação
Unamo-nos [referindo-se a República RioGrandense e às Repúblicas do Rio Prata] para fazer frente ao despotismo, que contra nós arremessa o reino da escravidão! Hum dia,
G N A R U S | 71
huma hora só de perplexidade nos pode perder! Attentai no procedimento da corte do Brasil, na sua impotencia e arrogância, e decidi- vos!!!” (O POVO, 1838, p. 108) A Aliança permite que se perceba a situação e se faça frente à toda essa injustiça, o que desenrola o processo de luta. Esse seria o inimigo a ser batido: o reino da escravidão, o cindimento do Brasil, a impotência e a arrogância.
Papel da Religião Deus, como já pudemos observar, pode ser considerado como o centro de imanência da democracia republicana proposta por Rossetti. A religião que deriva desse culto é considerada (a) como interior a prática política (pois a fraternidade é a celebração mais endêmica dessa religião) e (b) excluída ao mesmo tempo, pois ela pode ser
Combatendo pela independencia vingávamos as injurias e as perseguições aturadas, que suportamos sob a dominação de um governo tirânico: combatíamos unicamente por nos; mas apresentando-nos a face do mundo, como republicanos, novos deveres nos érão impostos: já naó éramos uma simples associação de homens, que cansados de sofrer levantando-se em um momento de desespero contra seus oppressores – offereciamo nos ao contrario como huma sociedade de homens livres, como um povo de irmãos incubidos de uma missão solenne de civilização e de gloria. (O POVO, 1838, p. 108)
deturpada para conferir poder a uma linhagem
A partir daí, inicia-se a descrição do levante
preocupa com a humanidade, e sim com o seu ego.
daqueles que se rebelaram contra os seus opressores: já não era uma batalha localizada (a de associação de homens), mas uma batalha pela civilização, pelo projeto universal, um povo de irmãos.
“nenhum fructo da fatricida, e brutal guerra que contra nós tem injustamente sustentadi aquelle governo inhumano, e os dissecados meios que deve contar para continuá-la […]” (O Povo, 1838, pg. 225). Aqui é possível se perceber o sentido (b). O governo não-democrático é inumano por conta da adoção deturpada da religiosidade, que concede poderes sobrehumanos ao tirano, que não se
“Hum estabelecimento dessa espécie [a Igreja], considerado em si mesmo, vem a ser uma mera chama de instrucção; porque o seu fim principal he a comunicação e a conservaçaó do dogma, e da moral na sua verdadeira pureza” (O POVO, 1838, p.
A época em que os princípios democrático humanitários deviao espalhar-se em todo o nosso continente era chegada, e o altíssimo fazia ensoberbacer os tiranos, e os homens, para que indignados levantássemos o braço, que tão poderozamente tem cartigado os prepotentes que antepõem obstáculos ao seu progressivo desenvolvimento (O POVO, 1838, p. 109) A percepção da existência da Aliança concomitou com o ensoberbecimento divino da natureza dos tiranos. Iniciou-se o progressivo desenvolvimento dessa
nobre.
dinâmica
solidariedade.
de
aumento
do
laço
de
387). Neste trecho, é possível perceber a separação entre religião e estado, a característica principal da política moderna. A Igreja deve permanecer em sua dimensão moral, e não na dimensão política. Esta seria a dimensão excludente da religião (a).
Nos o temos proclamado a face de Deos e dos homens, e cumprimeros a promessa – os homens são iguaes e irmãos – toda a humana família tem uma mesma origem. Mas Deos, dando-nos uma linguagem diferente, e colocando-nos em diferentes pontos da Terra, confiou a cada Nação huma missão igualmente diferente, porém harmonizante afim de concorre-mos accordes nos differentes meios de desenvolvimento (O POVO, 1838, p. 108)
G N A R U S | 72 Referências É possível perceber a fundação das nações decorrendo da missão dada por Deus, e não por conta da vontade de algum tirano específico. Nesse caso, a religião acaba sendo incluída na política, pois é através do dogma da igreja que se mantém a fraternidade que dá a imanência do sistema político. E sem essa imanência, a Aliança se esvai, pois os cidadãos se desumanizam e se submetem a autoridades ilegítimas.
Conclusão Este trabalho procurou mostrar as representações sociais sobre a justa governança de um jornalista pertencente ao movimento Jovem Itália que participou física e ideologicamente do conflito farroupilha, buscando-se essas representações através da análise de conteúdo. A chamada Revolução Farroupilha instalou uma república no Rio Grande do Sul. Todavia, o “referencial teórico” desta, que Rossetti esperava que fosse ser seguido pelos formadores da república, efetivamente não foi seguido e mantido, mesmo que o jornalista propagasse em seus escritos que efetivamente o fora. Portanto, há aqui um exercício interessante de Rossetti: convencer através de seus escritos que o caminho a seguir era aquele tanto para aliados quanto para inimigos, pois o perigo da fuga desses ideiais seria a volta ou o reforço do mando monárquico-nobre, tão danoso para a dignidade humana. Ricardo Cortez Lopes é Licenciado e Bacharel em História e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). rshicardo@hotmail.com
CIPRIANI, Roberto. A Religião no Espaço Público. In: ORO, Ari, STEIL, Carlos Alberto. A Religião no Espaço Público. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia. Rio de Janeiro: Forense, 1970. HERVIEU-LÉGER, Danièle. Croire en modernité: audelà de la problématique des champs religieux et politiques. In: MICHEL, Patrick (org). Religion et Démocratie: nouveux enjeux, nouvelles approches. Paris: Albin Michel, 1997. LEITMAN, Spancer. Revolucionários Italianos no Império do Brasil. In: PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Império. Passo Fundo, RS: Méritos, 2006. MUSEU E ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Documentos interessantes para o estudo da Grande Revolução de 1835-1845, 1º volume: O Povo, 2º volume: O mensageiro, O americano. PANERAI, Fernanda Bitencourt. A presença de elementos políticos da Jovem Itália no periódico O Povo 1838-1840. Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção de grau em Licenciatura em História. 2009. SANCHIS, Pierre. Desencanto e formas contemporâneas do religioso. In: Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 3, n. 3, p. 27-43, oct. 2001 TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.
G N A R U S | 73
Artigo
A CULTURA ARMAMENTISTA DA SOCIEDADE ESTADUNIDENSE. Por Giancarlo Monticelli
A
Unidos,
para a vida urbana nos grandes centros industriais,
especificamente à época da colonização,
o que tornou a vida nestes grandes centros
nos traz à luz, o quão difícil e sacrificante
industriais bastante difícil. Para a Coroa inglesa e
sua
da
estas pessoas, a solução para este enorme
colonização da América portuguesa e espanhola,
problema seria a aventura colonizadora para as
onde a Coroa destes países teve presença
novas colônias na América, o novo eldorado.
foi
a
história
dos
ocupação.
Estados
Diferentemente
marcante, a Coroa inglesa terceirizou esta colonização devido a sua situação financeira precária, e por conta deste fato os colonizadores ingleses, por muitas vezes foram abandonados a própria sorte. O panorama da Inglaterra estava abalado pelas guerras internas e externas na Europa da Era Moderna. Com o início da Revolução
Industrial
e
seu
sistema
de
“Enclosures”(cercamentos), empurrava a grande população rural inglesa, que havia perdido suas terras, para as grandes cidades industriais, que, diante deste processo, mostrou o obvio: a total falta de estrutura para receber um enorme contingente de pessoas sem qualquer qualificação
A fome, o clima, os índios e o abandono da ajuda oficial, seriam, pelo menos inicialmente, os grandes obstáculos a esta empreitada. Mas a nova terra era a melhor opção naquele momento e esta chance seria aproveitada e defendida a todo custo, e, a sua defesa, como se diz popularmente, seria “armada até os dentes”, e, como conseqüência desta atitude, inicialmente, a independência da metrópole. Os que para lá foram, foram para ficar, sem dúvida, daí a necessidade e o incentivo de se armar como no comentário do historiador André Maurois no seu livro História dos Estados Unidos:
G N A R U S | 74 “O arrojo dos exploradores franceses era digno de admiração, mas por isso mesmo inquietava as colônias inglesas da costa. Principalmente Nova Iorque, que comunicava diretamente com o Canadá por vias líquidas que poderiam tornar-se rotas de invasão. Os franceses do Canadá desejavam Nova Iorque e Nova Iorque, que não ignorava este desejo, via nele uma causa de perigo permanente” (Maurois, 1946: p. 63).
expediente normal, isto é, era realizado de forma
A defesa do território era o grande mote inicial
ficava a cargo de cada colônia sustentá-los. Esta
e as guerras coloniais iniciadas na Europa por
prática de formação miliciana foi de grande
Londres, rapidamente chegavam à América e
importância
foram bastante perigosas para a soberania dos
estadunidense tem o direito de portar uma arma
territórios colonizados. Este contínuo estado de
de fogo, a formação deste grupo também foi
guerra serviria para a formação permanente de
garantida constitucionalmente. Diz a Constituição
milícias
no artigo I / seção VIII:
armadas
nas
colônias,
formadas
automática, no qual cada cidadão, fazendeiro e homem branco livre, com a capacidade de portar e disparar uma arma de fogo seria parte integrante deste grupo,
pois a presença de soldados
profissionais da Coroa Britânica era raro e custoso, e quando ocorria, era bastante problemático, pois
assim
como
cada
cidadão
basicamente por fazendeiros e exploradores que mesmo
não sendo de forma uniforme e
organizadas, serviriam atender aos interesses de cada colônia especificamente. Estes grupos armados, não oficiais, posteriormente lutariam pela independência e seriam naturalmente usados para conquistar novas terras. Com o tempo e a exaustão da exploração das áreas já colonizadas, notou-se a necessidade de expansão e conquista de
novas
terras
altamente
produtivas
e,
“Regular a convocação da milícia, a fim de garantir a execução das leis da União, reprimir insurreições e repelir invasões; Promover a organização, armamento e treinamento da milícia, bem como a administração das partes desta empregada no serviço dos Estados Unidos, reservando-se aos estados a nomeação dos oficiais e a obrigação do treinamento de acordo com a disciplina prescrita pelo congresso” (Constituição América).
dos
Estados
Unidos
da
sabidamente existentes ao sul, ao norte e,
O início turbulento do relacionamento com os
principalmente a oeste. O uso constante e
autóctones, donos da terra antes da chegada do branco europeu,
fortemente
foi
defendido
armas de fogo
com
as
por grande parte
existentes,
dos colonos era
seja, armas de
uma
fogo. A Guerra
incentivado
de
prática
rotineira,
não
armas ou
de
somente nestes
Independência, a
conflitos, mas no
qual
próprio dia a dia.
colônias lutaram
A
de
destes
formação grupos
armados era um
todas
as
forma
uniforme contra um
inimigo
G N A R U S | 75 comum, os britânicos, com as suas já bastante
lutaram entre si, numa guerra fraticida sem
experimentadas, milícias, defendiam os interesses
precedentes e com milhões de pessoas armadas e
separatistas. Enfim todas as colônias armadas com
treinadas para um conflito por quase 6 (seis) anos
um enorme contingente humano armado e um
,e, a respeito desta guerra os número de pessoas
inimigo comum.
envolvidas até hoje não está esclarecida. Maurois
A consequência deste conflito foi, além da Independência, a homologação de uma carta magna, a qual, a defesa do porte de armas pelos cidadãos foi garantida de forma jurídica e oficial. Guerras e mais guerras, esta foi a temática por bastante tempo, defendendo posses da Coroa Inglesa, mas agora seriam por mais terras e o vizinho ao sul sofreria as consequências do desejo expansionista, encabeçado pelo sentimento de levar “civilização” aos povos, o chamado de “Destino Manifesto”. O México sofreria com 2 (duas) guerras., contra o poderoso, e mal intencionado e muito bem armado vizinho, perdendo inicialmente o território do Texas ,e, finalmente, o Novo México e a Califórnia inteira, dando aos Estados Unidos a abertura coast to coast, isto é, de um oceano (Pacífico) a outro (Atlântico). A esse respeito nos fala Leandro Karnal na sua obra História dos Estados Unidos: das
origens ao século XXI: “Resolvida a “questão do Texas”, o presidente James K. Polk (1845-1849) dedicou-se a uma nova linha de expansão, que se estendia das Montanhas Rochosas até o Pacífico. A próxima conquista seria a Califórnia mexicana, devido ao interesse norteamericano no comércio marítimo da região. Os mexicanos sequer tentaram saídas diplomáticas e os americanos entenderam isso como motivo para mais uma guerra. O fim do conflito, em 1948, os mexicanos assinaram o Tratado de GuadalupeHidalgo, reconhecendo a fronteira do Rio-Grande e cedendo o Novo México e a Califórnia aos Estados Unidos.” (Karnal, 2007: p.128)
diz que:
“Que forças se enfrentavam? O norte tinha cerca de vinte e dois milhões de habitantes; e o sul cinco milhões de brancos e quatro milhões de escravos. Quanto ao número total de soldados em luta, não existe acordo entre historiadores. Os do Sul dizem que a Confederação mobilizou seiscentos mil homens contra dois milhões e quinhentos mil da União” (Maurois, 1946: p. 346) A consequência ao fim do maior conflito ocorrido no território do país foi a fundação, em 1871, da N.R.A. (National Rifle Association) , Associação Nacional do Rifle, criada para defender a segunda emenda constitucional e o direito de uso e porte de armas de fogo por qualquer cidadão. A partir deste artigo poderemos entender que o significado, hoje, da formação da Guarda Nacional daquele país, que foi explicitada no documentário de Michael Moore, Tiros em Columbine, no qual poderemos perceber que como a legislação administrativa destes grupos é regulada pelos estados da federação. Existem estados, como por exemplo, Michigan, que se um cidadão não for portador de uma arma de fogo é considerado um mau cidadão, não capaz de defender a sua pátria já que grande parte da sua população é integrante de uma milícia armada, e , em contrapartida, outros estados, como a Filadélfia, este porte de arma sem um registro controlado, se torna um crime grave. Na realidade o princípio filosófico desta atitude armamentista é: Partindo da
Mas o país se armaria ainda mais para o maior
premissa que o outro é sabedouro que eu tenho
conflito já ocorrido em seu território: a Guerra da
uma arma de fogo, não serei atacado pois também
Secessão, quando muitos de estadunidenses
poderei
responder
à altura.
Dentro
desta
G N A R U S | 76 perspectiva elucidaremos a questão do porte de
exemplo abrindo uma conta bancária no Estado de
armas de fogo garantida pela própria constituição,
Michigan ganha – se de prêmio um rifle
direito esse adquirido de forma natural pelo fato
automático.
de uma constante defesa de sua área, guerras ou conquistas de territórios, na enorme expansão para o oeste, na qual o país dobrou seu tamanho. Não é difícil imaginar John Wayne, Kirk Douglas,ou
Gregory
Peck
ou
até
O poeta, pacifista e músico Robert Zimmerman (Bob Dylan) na sua obra “Hurricane” inicia uma de suas canções mais famosas e emblemáticas em plena década de 60 desta forma:
mais
sem mencionar a Guerra do Vietnam com seus
“Pistols shots ring out in the barroom night Enter Patty Valentine from the upper hall She sees the bartender in a pool of blood cries out, “My God, they killed them all!” (“Tiros de pistola ouvidos no bar Patty Valentine entra pelo corredor de cima Ela vê o balconista do bar em uma poça de sangue Grita: “Meu Deus, eles mataram todos eles!”)
Rambos e Braddocks infalíveis e invencíveis
A canção nos fala do contexto de um crime
empunhando poderosas automáticas de 800 tiros
ocorrido naquela década com uma condenação
ou mais por minuto. Não é de se estranhar que um
injusta ligada ao racismo, porém o início da canção
país assim com esta mentalidade crie uma
deixa bastante clara a intimidade da sociedade
constituição toda particular defendida até hoje
estadunidense com as armas de fogo.
recentemente, Clint Eastwood empunhando a clássica Colt 45 nos clássicos filmes de faroeste ufanistas,
aos
quais,
desde
criança,
nos
acostumamos a assistir bombardeados pela TV aberta e o cinema com seus enlatados vips, isto
pela grande maioria das pessoas que lá vivem.
Esta matéria nos demonstra que a consolidação
Na constituição estadunidense estão inseridas
de uma cultura armamentista que perdura até os
22 emendas em formas de artigos, o artigo II nos
dias de hoje e que também se tornou uma das
diz:
grandes características deste povo é fruto de um
“Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, não se impedirá o direito do povo de possuir e portar armas” (Constituição dos Estados Unidos da América).
perfil histórico belicista. A inserção cultural do porte de armas e de uma política armamentista tem toda a significação arraigada no âmago desta cultura, por assim dizer, nesta fase supracitada inicialmente. Dentro desta visão poderemos
Esta emenda constitucional, hoje, nos Estados Unidos, é extremamente debatida dentro da sociedade daquele país pelas suas consequências como os massacres nas escolas, cinemas e lojas de fast food feitos por ex-militares paranoicos (estes habilitados
pelas
próprias
forças
armadas),
milicianos ou até mesmo civis que atiram com extrema habilidade, na população indefesa. Outro ponto a ser abordado é a facilidade de como se adquire uma arma de fogo legalizada, por
observar que a importância histórica de se compreender que o nascimento e o procedimento de um determinado povo, é de enorme influência sobre
este,
incluindo
aí
também,
uma
compreensão sociocultural das atitudes e do “Modus Operandi” de um determinado raciocínio em relação às políticas internas e principalmente externas que os estadunidenses praticam há bastante tempo. Inicialmente no século XIX na América Central e do Sul e após a 1º e 2º Grande Guerra, expandindo – a para o mundo, como se
G N A R U S | 77 fosse a verdade absoluta de uma conduta sua economia e o American Way of Life como um conceito de civilização. Para nós latinos, que estamos em eternas campanhas de desarmamento da população, nos parece bastante estranho esse povo ao norte que adora se matar sem motivos. Porém os brasileiros nada podem criticar, pois vivemos uma guerra civil não declarada e que também não somos exemplo de nada. Giancarlo Monticelli é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e membro do GELHIS.
BIBLIOGRAFIA KARNAL, Leandro (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2007. MAUROIS, André. Trad. Godofredo Rangel. História dos Estados Unidos. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946. PADOVER, Saul K. Trad. A. Della Nina. A Constituição Viva dos Estados Unidos. 2. ed. São Paulo: Ibrasa, 1987. Tiros em Columbine (filme). Dir. Michael Moore. 2001, 120 min. son. color. 16mm. United Artists. E.U.A.
G N A R U S | 78
Artigo
AS CÂMARAS MUNICIPAIS NA AMÉRICA COLONIAL: PODER CENTRAL E PODER LOCAL NAS INSTITUIÇÕES COLONIAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA. Por Miguel Luciano Bispo dos Santos.
RESUMO: Nos últimos anos, a pesquisa histórica sobre o nosso período colonial conheceu significativos desenvolvimento, seja pela recuperação de antigos objetos de estudo, analisados sob novas perspectivas, seja pelo surgimento de novas temáticas, que conferiram maior dinamismo a relação metrópole-colônia. Acreditamos que o nosso Artigo esteja inserido nessa renovação e avanços da historiografia sociopolítica do “Brasil-Colônia”, que evidencia que o mundo colonial não era “passivo” e obediente do mando da Coroa, mas uma célula atuante, os quais vários micropoderes se faziam representar. Logo, o presente trabalho propõe desenvolver uma reflexão sobre o sistema administrativo do Império português, sobretudo, das Câmaras Municipais, assim como a relação de poderes entre a metrópole portuguesa e suas possessões ultramarinas.
O
sistema administrativo do Império
ultramarinas, que era composta da seguinte forma:
português fora constituído em
Mesa de consciência e ordens (órgão responsável
quatro planos distintos, apesar de
por questões que envolvia aspectos morais,
ligadas entre si (administração
religiosos e política indígena na colônia); Casa de
central
metrópole,
Suplicação (instituição ligada ao sistema judiciário);
administração central na colônia; administração
Conselho da Fazenda (instituição responsável pelas
regional; administração local). A administração de
finanças e arrecadação de impostos), Casa das
Lisboa, sede metropolitana do Império, era
Índias ou Conselho Ultramarino (órgão responsável
composta
da
pela administração das possessões ultramarinas) e a
administração central da coroa, com atribuições
Mesa do Desembargo do Paço (instituição ligada
tanto na metrópole quanto nas possessões
também ao sistema judiciário).
por
órgãos
na
encarregados
G N A R U S | 79
jurídico entre o rei de Portugal e os donatários eram estabelecidos em dois documentos, Carta de Doação e Carta Foral. Nas últimas décadas do século XVI, existiam dezessete capitanias hereditárias e quatro capitanias reais (Bahia, Rio de Janeiro, Paraíba e Rio Grande), entre ocupada e não ocupadas. “No século XVIII a política de centralização de Dom João V e do marques de Pombal levaria a extinção das Capitanias particulares, por compra, abandono ou confisco”. (WEHLING, 2005: pp. 304) A administração local era representada pelas Câmaras Municipais, cuja instalação dependia de autorização régia, que atendiam os interesses da sociedade local perante ao poder central, representado pelas instituições reais.
Já a administração central na América portuguesa era representada pelo o Governo-Geral da Bahia, instituído em 1549. Para assessorar diretamente o
“Menor divisão administrativa da Colônia, o município ou termo, era dirigido por um órgão colegiado, a Câmara Municipal, com funções político-administrativas, judiciais, fazendárias e de polícia. Dentre as várias instituições portuguesas transplantadas para estes lados do ultramar, a municipalidade colonial regia-se pelas mesmas leis metropolitanas – as Ordenações -, que regulamentaram legalmente os concelhos em seu funcionamento das Câmaras Municipais durante o período colonial.” (SALGADO, 1997: pp. 69)
Governador-Geral foram instituídos alguns cargos régios, os mais importantes foram: Ouvidor-mor Provedor-mor
As estruturas das Câmaras Municipais na América Portuguesa:
(responsável pelas finanças e arrecadação de
A Câmara Municipal fora um dos pilares da
impostos) e o Capitão-mor (responsável pela defesa
sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos
da colônia).
do mundo, isto é, um elemento de unidade e de
(responsável
pela
justiça),
As capitanias hereditárias e reais eram o terceiro plano
administrativo,
isto
é,
administração
regional. No caso das capitanias particulares, os capitães donatários eram a autoridade máxima dentro
da
Capitania,
com
sua
morte,
a
administração passava para seu herdeiro. O vínculo
continuidade entre o Reino e seus domínios, assim como a Santa Casa da Misericórdia. Apesar da universalidade
das
Câmaras
no
Império
Ultramarino, existiam diferenças singulares entre elas, devido às condições socioculturais de cada região. Como salienta Charles Boxer:
G N A R U S | 80
“Entre as instituições que foram características do império marítimo português e que ajudaram a manter unidas as suas diferentes colônias contavam-se o Senado da Câmara e as irmandades de caridade e confrarias laicas, a mais importantes das quais era a Santa Casa da Misericórdia. A Câmara e a Misericórdia podem ser descritas, apenas com um ligeiro exagero, como os dois pilares da sociedade colonial, do Maranhão a Macau. Garantiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados passageiros não podiam assegurar.[...]” (BOXER, 2011: pp. 267)
As Câmaras eram instituídas nos locais com estatuto de vila e podiam ser criadas por um decreto real ou por meio de uma petição dos moradores locais ao rei. O sistema político dos Conselhos Municipais surgiu nos finais da Idade Média e constituía a forma racionalizada de um sistema político-administrativo mais arcaico, que Antônio Manuel Hespanha (1986) designa como patriarcal
comunitário
(baseado
num
reconhecimento natural e ilimitado da autoridade dos líderes da comunidade).
“Na verdade, o sistema político concelhio, tal como estava institucionalizado no século XVII, remontava aos finais da Idade Média e constituía a forma racionalizada de um sistema político-administrativo mais arcaico, que aqui designamos por patriarcal comunitário. Os funcionários honorários dos concelhos são, pela sua forma de designação e pelas suas funções, os honoratiores (os homens bons, vizinhos honrados, old men, great men) das comunidades camponesas tradicionais.” (HESPANHA, 1986: pp. 46)
pequena parcela de moradores da vila que poderiam participar desse sistema político, isto é, os homens bons, aqueles que não estavam ligados a nenhuma atividade manual, ser um dos principais da terra, andar na governança, viver à lei da nobreza e ser limpo de sangue. Dessa forma, o voto ficou restrito aos proprietários de terras e de escravos, com a exclusão, durante muito tempo, dos comerciantes, camponeses e artesãos. No que diz respeito à composição classista e racial das Câmaras coloniais, é evidente que as exigências respeitantes à “pureza de sangue” não podiam ter sido estritamente observadas em locais como São Paulo, com uma reduzida população branca. A necessidade de ocupar e de organizar a administração local forçou a relativização da observação a essas regras. Não que tenham sido questionadas, mas foram ignoradas devido à impossibilidade prática de cumpri-las. Segundo as Ordenações Filipinas, de 1603, o processo eleitoral da Câmara Municipal, sob a superintendência de um juiz da Coroa, deveria ocorrer em três em três anos, e nessas votações eram escolhidos os indivíduos que, ao longo de um ano, alternadamente, serviriam nos cargos de juízes ordinários, vereadores e procuradores. A eleição anual sucedia-se geralmente no dia ou na véspera de Ano Novo, sendo indicado um rapaz de forma aleatória entre o povo para retirar da urna os nomes dos eleitos. As listas de voto trienais eram compiladas
O sistema administrativo por Câmaras Municipais foi implantado logo no início do processo de colonização portuguesa na América, sendo São Vicente o primeiro município, fundado em 1532. A formação dos Conselhos era realizada através de um processo eleitoral, no entanto, somente uma
confidencialmente
por
seis
representantes eleitos para esse fim através de uma reunião de todos os chefes de família abastados e respeitáveis que estavam habilitados a votar. Outrossim, esses oficiais eleitos deveriam ser confirmados pela administração central da Coroa
G N A R U S | 81
ou pelo senhor da terra, caso a vila ou cidade se
confiscadas para serem utilizados ao serviço da
localizasse no interior de um senhorio.
Coroa. Estavam isentos também do serviço militar,
A documentação encontrada no livro de “Registro geral da Câmara Municipal de São Paulo”
exceção em situação que a sua vila fosse atacada diretamente.
exemplifica de forma bem pontual como era
Nessa perspectiva, a ocupação de cargos na
registrado o processo eleitoral de tal instituição
administração das Câmaras Municipais tinha
administrativa no século XVII.
grande significação social e política no Antigo
“E logo, a primeiro de janeiro de 1629, no mesmo dia e ano acima escrito e declarado nesta vila de São Paulo na casa do conselho, estando ali os oficiais dela, por eles foram aberto o cofre dos pelouros e sendo aberto, chamaram um menino e baralhados os pelouros saiu por juizes: Antônio Pedroso e Henrique da Cunha e vereadores Gaspar Cubas e Domingos Cordeiro e Francisco João e procurador Gressotimo Alves e por todos sobreditos tirado Francisco João se irem ao sertão contra as leis de sua majestade e títulos de correição, pela qual razão se lhe não foram dados os cargos até o senhor governador mandar, os que lhe for de justiça e logo mandaram chamar a Francisco João para efeito de receber juramento para que ele faça logo eleição dos oficiais que faltam, conforme sua majestade manda e logo se entregou as chaves do cofre aos oficiais da Câmara. As receberam Baltazar de Godoi e Francisco Jorge e Luis Fernandez Bueno e se assinaram aqui Manoel da Cunha escrivão da Câmara o escrevi. Votos que se tomaram para se fazer dois juizes e dois vereadores e um procurador.” (REGISRO GERAL DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Apud LIMA, 2006: pp. 61)
Ser membro camarário significava possuir determinadas prerrogativas no exercício da função, como: isenção de prisão arbitrária; tortura judicial; e de ser acorrentado. No entanto, essas prerrogativas eram revogadas em casos de alta
Regime português. No Brasil, o controle do acesso a cargos da vereação era um objeto de disputas entre grupos economicamente influentes nas vilas e cidades. Estas disputas podem ser entendidas, segundo Maria Fernanda Bicalho (2000), como um dos fatores que indicam a centralidade daqueles cargos enquanto espaço de distinção e de hierarquização dos colonos tanto social quanto politicamente. A composição das Câmaras Municipais na colônia variava de acordo com a importância da vila ou cidade.
Normalmente,
os
Conselhos
eram
compostos por 02 (dois) juízes ordinários, de 02 (dois) a 06 (seis) vereadores e 01 (um) procurador. O Fernando Ribeiro considera que, por não serem remunerados e pelo prestigio da função, os membros dos Conselhos não separavam entre a propriedade pessoal e do patrimônio da Câmara.
“Por não serem remunerados, e por representarem os elementos mais destacados da sociedade, não é de se espantar que considerassem essa situação, somada ao cargo que ocupavam, como privilégios. Esses privilégios levariam à confusão entre público e privado na administração municipal. Isto é, não haveria separação entre a propriedade pessoal dos oficiais da Câmara e o patrimônio dessa.”(RIBEIRO, 2010: pp. 3)
traição, nessas situações, a punição implicava até a pena de morte. Além disso, estavam dispensados de ter militares, praças ou oficiais, alojados em sua residência e de ter seus cavalos, carroças
Até o final do século XVII, o cargo da Câmara mais prestigiado era o de Juiz Ordinário, constituído em número de dois, sendo que um deles acumulava a
G N A R U S | 82
função de presidente da Câmara. O juiz ordinário
fixação dos pesos e medidas e pela vigilância sobre
tinha como atribuições: aplicação da lei em
os preços), e os juízes dos órfãos (responsáveis pelos
primeira instância (apesar de sua alçada ser
inventários, partilhas e administração dos bens dos
reduzida, pois cabia recurso ao ouvidor de
órfãos), estes últimos em apenas alguns municípios.
capitania de grande parte das causas julgadas); a
O escrivão, se bem que não tivesse inicialmente
fiscalização dos outros funcionários (os almotacés,
direito de voto, era frequentemente incluído entre
quadrilheiros,
alcaides-pequenos,
os oficiais. O mesmo acontecia com o tesoureiro,
tabeliães, escrivães e outros); da manutenção da
nos casos em que a sua tarefa não era, como
ordem, da defesa da jurisdição real, da contensão
acontecia muitas vezes, preenchida rotativamente
dos abusos dos poderosos, da polícia (das
pelos vereadores. Os oficiais subordinados da
estalagens, das batidas aos lobos); exercer a função
municipalidade, no entanto, não tinham direito de
de juiz dos órfãos, no caso de ausência de alguma
voto.
meirinhos,
pessoa exercendo tal função. Além dessas, os juízes ordinários teriam que realizar audiências em dois dias na semana nos Conselhos, vilas e lugares com sessenta vizinhos, e em um dia nos lugares com menor número de moradores.
De acordo com Boxer (2011), determinados Conselhos
Municipais
configuração
de
ainda
possuíam
representação
das
uma classes
trabalhadoras que se fundamentava no sistema das corporações. Os comerciantes e artesãos (ourives,
Já os vereadores assumiam o papel administrativo
armeiros, pedreiros, tanoeiros, alfaiates, sapateiros,
da Câmara, tinham as seguintes atribuições:
etc.) todo ano votavam, entre seus pares, 12 (doze)
determinação dos impostos; fiscalização dos
representantes. No caso de Lisboa e Porto, 24 (vinte
oficiais da municipalidade; aplicação da lei pelos
e quatro); onde formavam a Casa dos Vinte e
juízes ordinários; zelar pelas obras e pelos bens do
Quatro. Estes eleitos, por sua vez, nomeavam
lugar; determinação dos preços de alguns produtos;
quatro de entre eles, os chamados procuradores
garantir o suprimento de carne e pão; ordenação
dos mestres, para representarem os seus interesses
dos oficiais mecânicos, jornaleiros e moças de
na Câmara Municipal.
soldada; lançar fintas, além de despachar com os juízes os feitos provenientes dos almotacés. Igualmente,
“eram-lhes
destinadas
às
competências de caráter normativo das Câmaras, modernamente conhecidas como legislativas: fazer as posturas e os editais.” (SALGADO, 1997: pp. 7071)
“[...] Estes quatro representantes tinham o direito de assistir a todas as reuniões do Conselho e a votar em todos os assuntos que afetassem as guildas e corporações de artífices, e a vida econômica da vila ou cidade. Avisavam a Câmara dos preços que os artífices e jornaleiros deviam levar pelos seus respectivos serviços, e estabeleciam também as condições de aprendizado, de membro das guildas. [...]”(BOXER, 2011: pp. 268-269)
As Câmaras também tinham nos seus quadros
A Câmara tinha como funções administrativas na
funcionais os oficiais subordinados, seus números
vila de tributar e executar as leis na sua jurisdição
variavam de cidade para cidade, mas incluíam
de uma área de 06 (seis) léguas ao redor da vila;
geralmente os almotacés (responsáveis pela
intervir no mercado controlando os preços e
regularidade do abastecimento dos gêneros, pela
serviços ligados ao abastecimento da cidade;
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supervisionar a distribuição e o arrendamento das
ligações com as bandeiras, e mesmo com o caminho
terras municipais e comunais; conceder o usufruto
do mar podiam ser responsáveis pelo afastamento
exclusivo de bens e serviços essenciais à vida
temporário de um homem bom de seus ofícios
comum da cidade, a exemplo do açougue público;
camarários.
determinar a construção de povoados; assegurar a manutenção de estradas, pontos, fontes, cadeias e outras obras públicas; regulamentar os feriados públicos e as procissões; responsável pelo policiamento da cidade, pela saúde e sanidade públicas; eleger os capitães-mores das Ordenanças (com a necessária presença do ouvidor ou provedor da capitania), seus sargentos-mores e outros postos dessa força auxiliar; além disso, era incumbida de proteger a terra às suas custas, como aponta o
O rendimento camarário provinha das rendas da propriedade municipal, incluindo as casas alugadas como lojas e dos impostos sobre as mercadorias que eram negociadas em sua jurisdição. Outra fonte de recursos financeiros eram as multas aplicadas pelos funcionários
da
Câmara.
Em
situações
emergenciais, o Conselho podia deliberar uma coleta por cabeça aos moradores da vila, o valor era estipulado conforme a capacidade real ou presumível de cada um para pagar.
Boxer:
“As Câmaras coloniais eram também, totalmente ou em parte, responsáveis pela manutenção, alimentação e vestuário das suas guarnições e pela construção e manutenção das suas fortificações, tal como pelo equipamento de frotas costeiras contra os piratas, etc. quando considerados estes encargos obrigatórios mas extremamente pesados e as suas receitas, não é de surpreender que raras vezes fossem capazes de equilibrar as suas receitas e despesas, e que encontrassem, de um modo geral, profundamente endividadas. Uma vez que as festividades religiosas e as despesas navais e militares tinham precedência sobre tudo o resto, a manutenção das estradas, pontes e sistemas de esgoto era, frequentes vezes, tristemente negligenciada [...]”.(BOXER, 2011: pp. 277)
O papel das Câmaras Municipais na dinâmica e relação de poderes do Império Português: Por um longo tempo, o tema das relações de poderes entre a colônia e a Metrópole no Antigo Regime foi marcado por abordagens divergentes entre os seus especialistas. Para uns, de inspiração weberiana, como Raymundo Faoro (1975), o Estado sempre foi maior que a sociedade, tendo por isso prevalecido o interesse estatal sobre o privado. Para outros, de inspiração marxista, como Caio Prado Jr (1942), afirma-se que o poder local, constituído a partir do latifúndio e da família patriarcal, foi maior e mais forte do que ação do Estado, diluindo a autoridade deste a ponto de
As
reuniões
da
maioria
dos
Conselhos
realizavam-se geralmente duas vezes por semana, às quartas-feiras e aos sábados. Os vereadores que não cumprissem com suas responsabilidades eram multados, a não ser mediante justificativa válida. Em São Paulo, era comum o descumprimento das reuniões ordinárias, cujo motivo decorria sempre dos oficiais viverem fora da vila. As possíveis
fragmentá-la por completo. Temos que destacar também o livro “Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)” (1979), de Fernando A. Novais. Influenciado por teorias marxistas e, em grande medida, fundamentado nas teorias do “sentido da colonização” de Caio Prado Jr. Novais (1942) objetivou dar conta dos processos e estruturas da
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colonização europeia no início da chamada Época
século XX, ocorreu uma viragem historiográfica da
Moderna, mas especificamente a colonização
relação de poder entre a metrópole portuguesa e
portuguesa na América. O sentido de Antigo
suas colônias ultramarinas. O campo da história
Sistema Colonial, de forma resumida, denota a
política e institucional da Europa meridional sofreu
estrita relação metrópole-colônia no qual, o
uma radical mudança de paradigma. “Categorias
exclusivo comercial, o mercantilismo, a dominação
como as de ‘Estado’, ‘centralização’ ou ‘poder
política da metrópole sobre a colônia, o tráfico
absoluto’, por exemplo, perdera sua centralidade
negreiro e a escravidão foram formas de
na explicação dos equilíbrios de poder nas
apropriação de riquezas e acúmulos de capital que
sociedades
só beneficiaram Portugal. A relação política entre
(HESPANHA, 2010: pp. 165). Em Portugal, podemos
Lisboa e as possessões ultramarinas era definida em
citar
termos econômicos: as colônias serviam de
Hespanha, Nuno G. F. Monteiro e Fernanda Olival,
mercados para os bens da metrópole, constituíam-
que propuseram uma revisão historiográfica sobre
se em espaços abertos de áreas de atividades para
a centralização da monarquia portuguesa ente
o comércio e negócios e de fornecimento de certos
séculos XVI e XVIII.
artigos a Portugal. Desse modo, a estrutura de governo era centralizada na metrópole, isto é, autoridade absoluta estava nas mãos do monarca.
“Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política mercantilista, expansão ultramarina e colonial são, portanto, partes de um lado, interagem reversisamente neste complexo que se poderia chamar, mantendo um termo da tradição, Antigo Regime. [...] O Antigo Regime Político – essa estranha e aparente projeção ao do poder para fora da sociedade – representou a fórmula de a burguesia mercantil assegurar-se das condições para garantir sua própria ascensão e criar um quadro institucional do desenvolvimento do capitalismo comercial. Tratava-se, em última instância, de subordinar todos ao rei, e orientar a política da realeza no sentido do progresso burguês, até que, a partir da Revolução Francesa e pelo século XIX afora, a burguesia pudesse tornar, como diria Charles Mozaré, conquistadora e modelar a sociedade à sua imagem, de acordo com sues interesses e segundo os seus valores.[..]” (NOVAIS, 2011: pp. 66-67)
Baseado
renovação
epistemológica
políticas
historiadores
de como
Antigo António
Regime” Manuel
Destacamos as abordagens de Antonio Manuel Hespanha, que propõe uma análise do poder no Antigo Regime português seiscentista a partir da noção de monarquia corporativa, onde o rei é a cabeça desse corpo político, caracterizado pelo policentrismo e pluralismo jurídico- político. O pesquisador lusitano deu ênfase às limitações do poder e dos recursos reais e à contínua autoridade da nobreza, dos Conselhos Municipais e das autoridades eclesiásticas. Tratava-se de um compartilhamento de poder, que obrigava a Coroa a governar por intermédio de um sistema de recompensa e incentivos, uma economia de mercês, e não do exercício da força e da autoridade. Tal interpretação implicava uma extensão do Estado patrimonial até uma fase adiantada do século XVIII, e sublinhava o contínuo vigor
da
estrutura
feudal-corporativa
de
recompensa e serviço ao Estado. da
historiografia política, a partir dos anos 70 do
A respeito da hierarquia dos poderes no Império português, Antônio Manuel Hespanha (2010) explana que o poder central devia respeitar,
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enquanto característico de um Antigo Regime, os direitos e jurisdições que são prescritas como inmemoriais. Os súditos podiam questionar legalmente as determinações da Coroa que ia de encontro às práticas do costume do reino, o chamado direito comum. O monarca em seu papel
responsabilidade de governarem o Império Português. De qualquer modo, a Coroa e os seus conselheiros quase sempre dedicavam uma atenção cuidadosa aos pedidos e exigências que lhes eram feitos pelas principais Câmaras coloniais, mesmo nos casos em que a decisão final lhes era desfavorável.” (BOXER, 2011: pp. 277-278)
de governante tinha a obrigação de guardar o direito do bem comum do seu povo. Logo, as ordens
Maria Fernanda Bicalho (2010) considera que a
régias podiam ser contestadas quando ia contra as
“nobreza da terra” viam os cargos da Câmaras
leis de usos e costumes do reino.
Municipais como “lugar e veículo de noblitação, de
Pautado na ideia da garantia do bem comum e obediência aos interesses coletivos, a Câmara Municipal era um órgão institucional que ratificava seu poder e legitimava uma autoridade local que ora unia-se a voz dos centrais e ora contrapunha-se as determinações do poder central na defesa de seus próprios interesses. Nesse contexto, as Câmaras Municipais constituíam um poderoso órgão da administração colonial. Os Conselhos das vilas mais relevantes do Império português ainda tinham a prerrogativa de se corresponderem diretamente com a metrópole. Era nessa condição que se opunham muitas das vezes ao poder central representado
pelo
governo-geral.
Como
argumenta Charles R. Boxer:
“[...] em muitas ocasiões, puderam (Conselhos Municipais) influenciar a política da Coroa e conseguir a revogação ou a modificação de decretos reais impopulares. Esta correspondência forneceu também à Coroa uma oportunidade útil de verifica os relatórios dos vice-reis, governadores e arcebispos. Sucessivos monarcas da dinastia de Avis, Habsburgo e Bragança agradeceram à Câmara de Goa a informação objetiva que lhes fornecia. Por outro lado, a Coroa pensava por vezes que a Câmaras iam demasiado longe ao protestarem contra decretos impopulares ou contra decisões governamentais. Os vereadores municipais da Bahia foram severamente repreendidos em 1678, por atuarem como se partilhassem com o príncipe regente D. Pedro a
obtenção de privilégios e, principalmente, de negociação com o centro – com a Coroa – no desempenho do governo político do Império” (BICALHO, 2010: pp. 220). Ainda segundo a autora, os títulos e honras concedidos aos membros dos concelhios podem ser analisados como elemento instituidor de uma “economia moral do dom, de acordo com a qual aqueles beneficiados passariam a estar ligados ao monarca através de uma rede baseada em relações assimétricas de troca de favores e serviços” (BICALHO, 2010: pp. 206). Por meio dessa prática estabelecia-se um pacto político entre os súditos e o soberano. O indivíduo ou grupo que prestava serviço à Coroa (acima de tudo na conquista e colonização do ultramar) esperava ser retribuído com mercês, privilégios e honras. Havia, pois, uma obrigação tácita de reconhecimento e retribuição pelos serviços por parte do rei. Em contrapartida, o súdito agraciado estreitava sua vassalagem. Nesse contexto, os Conselhos Municipais eram de grande importância na estrutura administrativa do Império português, pois exerciam um papel de destaque na administração das vilas e na defesa dos interesses dos colonos perante a Coroa. Dessa forma, a administração portuguesa não é mais vista como centralizada, um poder absoluto, e
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teve como efeito pôr em dúvida o papel predominante da Coroa e de um sistema colonial em
que
os
interesses
da
metrópole
necessariamente ordenavam o sistema político. No entanto, isso não significa que não houvesse uma centralização no aspecto político do Império português, a negociação é uma forma de manter a centralização, o controle político sobre a Colônia. Nesse sentido, a ideia da centralidade e da centralização está unida. A centralidade do rei está relacionada no aspecto social, do fato de todo mundo se remeter ao rei para conseguir algum privilégio, já a centralização é o aspecto político que passa pela dinâmica de negociação, e não mais como uma via de mão única. Sendo assim, a política centralizadora do soberano tinha como função manter a unidade, a harmonia, fazendo atribuições e dando garantias. Partimos, portanto, do princípio de que o Antigo Regime
estava
equilibrado
pela
ideia
de
“autonomia limitada”; coexistindo no corpo social, apesar da centralização, vários níveis de poder e campos de equilíbrio social. O Estado precisava dos corpos administrativos, e estes necessitavam do Estado. Isso nos leva a pensar que a colônia tinha suas dinâmicas particulares, porém com modelos jurídicos e político-administrativos característicos da Metrópole. Miguel Luciano Bispo dos Santos é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. miguellucianobispo@hotmail.com
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O Império Português século XV a XIX
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Artigo
TRANSAÇÕES COMERCIAIS MERCANTIS: DESESTRUTURAÇÃO SOCIAL E O TRÁFICO NEGREIRO NO REINO DO CONGO NO INÍCIO DO SÉCULO XVI. Por Lucenildo Souza Campos e Maria Gonçalves Campos
RESUMO Este artigo propõe pesquisar o tráfico de escravos africanos entre o continente africano (Reino do Congo) e o Brasil. Para isso, a pesquisa focará os conceitos políticos e econômicos presentes na formação do Brasil. Conceitos de escravidão do período, a relação entre portugueses e congoleses e os relatos deste tráfico no início século XVI. Palavras-chave: Tráfico de escravos, Escravidão, História do Brasil, História da África.
Formação do território brasileiro e o cenário político-econômico europeu
P
população levando-os a miséria. Os europeus se viram obrigados a se lançarem a novas empreitadas comerciais, com intuito de ampliar sua economia.
ara compreendermos melhor o tráfico de
De início procuravam ampliar suas rotas na Europa,
escravos entre o continente africano e o
mas acabaram ampliando para novos territórios
Brasil necessitamos, a priori, retomarmos
fora de seu continente. É neste contexto que temos
qual o conceito em que a formação do Brasil se dá tanto no âmbito histórico quanto políticoeconômico.
a chamada “expansão marítima europeia”. A expansão marítima dos países da Europa, depois do séc. XV, expansão de que o descobrimento e
O período abordado, fins do século XV e início do
colonização da América constituem o capítulo que
XVI, encontramos uma Europa que transita da
particularmente nos interessa aqui, se origina de
Idade Média para a Idade Moderna. Devido a
simples empresas comerciais levadas a efeito pelos
epidemia da “Peste Negra” que dizimou boa parte
navegadores
da população europeia, e ainda por encontrarem-
desenvolvimento
se em uma crise econômica que assolava a sua
europeu, que até o séc. XIV é quase unicamente
daqueles do
países. comércio
Deriva
do
continental
G N A R U S | 89 terrestre, e limitado, por via marítima, a uma
econômicos ou a uma órbita de poder que lhe
mesquinha navegação costeira e de cabotagem,
escapa naquele momento. (Cf. MORAES, 2009).
(PRADO JR. 1994. p. 9).
Em meados do início do século XVI, os
Portugal privilegiado pela sua posição geográfica
portugueses limitaram-se assentar poucas e frágeis
se lançará ao oceano em sua empreitada
bases em seu domínio, representadas por algumas
mercantilista procurando empresas em que não
feitorias, pequenos e dispersos, entrepostos de
encontrassem concorrentes mais antigos e já
escambo e comercialização de pau-brasil. Mas no
instalados [...] buscarão a costa ocidental da África,
decorrer a Coroa Portuguesa devido a carência de
traficando aí com os mouros que dominavam as
colonizadores dispostos a ocupar o território, optou
populações indígenas. Nesta avançada pelo oceano
pela colonização semi-privada concedendo aos
descobrirão as Ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açores)
colonos o máximo possível de autonomia. Assim, os
e continuarão perlongando o continente negro
grandes empreendimentos agrário-mercantis serão
para o sul. (Idem, p.10).
latifúndios canavieiros e engenhos, esta também
Inserido neste contexto é que se dá o “descobrimento” do Brasil, para o historiador Caio Prado Jr. a chamada época dos descobrimentos nada mais era do que a expansão da história do comércio europeu. “É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas empresas [...] Os portugueses traficarão na costa africana com marfim, ouro, escravos [...]”. (Idem, p.11). Ao ocuparem o território que viria a ser o Brasil os portugueses necessitavam criar uma estrutura para dominarem sua conquista, um vasto território ermo, instituído como sertão. O sertão não se define por características geográficas
clássicas,
muito
menos
pela
intervenção da sociedade sobre a superfície, mas sim uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica. Definir um lugar como sertão significa projetar uma valorização futura em moldes diferentes dos vigentes no mesmo momento dessa ação. O sertão é comumente concebido como um espaço de expansão, como objetivo de um movimento expansionista que busca incorporar aquele novo espaço, assim denominado, a fluxos
será a espinha dorsal da economia colonial e principais núcleos populacionais. (Cf. COSTA, 1988). Portanto, a colonização do Novo Mundo
poria á disposição, em tratos imensos, territórios que só esperavam a iniciativa e o esforço do homem. É isto que estimulará a ocupação dos trópicos americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu não traria com ele a disposição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contra gosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele. (PRADO JR, 1994 p. 17).
Conceitos de escravidão presentes na África antes do início do século XVI E é nesta condição que o europeu em sua expansão marítima e mercantilista, com vasto território conquistado, com ambições políticas, financeiras e pessoais. Com baixa população, pois esta fora devastada pela peste, em seu continente, decide pela opção da escravidão como maneira eficiente para atender a seus projetos e obter mão
G N A R U S | 90 de obra necessária. Em primeiro momento procura
A escravidão no continente africano, utilizaremos
utilizar-se do indígena americano, entretanto, este
como base aqui o Congo quando iniciou contato
por
com os portugueses,
diversos
fatores,
culturais,
sociais
e
estranhamento a rotina de trabalho, que lhe era
[...] a escravidão seria do tipo doméstico. [...] não havia uma classe escrava no Congo, antes da chegada dos portugueses, mas, sim um grupo servil transitório – gente de origem estrangeira, capturada na guerra ou em razias, criminosos proscritos ou retirados da sociedade, pessoas que tinham perdido a proteção dos seus ou incorrido em fortes dívidas. Eram “escravos”, mas os seus filhos ou netos tinham por destino ser absorvidos na sociedade, ainda que de modo parcial, pois formariam um ramo inferior, de exescravos, da linhagem do “antigo dono”. (SILVA, 1998 p. 369).
estranha, recusa-se a tal situação de submissão. Além de que uma característica da escravidão era a submissão de um estrangeiro, pois o mesmo seria um estranho aos costumes e a geografia de onde seria cativo. Neste caso, o indígena americano não estaria em território hostil, pelo contrário este seria senhor destes territórios conhecia todas as suas especificidades geográficas, tanto que no decorrer dos séculos o europeu só dominara esse território inóspito utilizando-se do conhecimento indígena. E
para
resolver
esse
contra
tempo,
os
colonizadores europeus decidem recorrer à escravidão do povo africano. Deve-se aqui reinterar que o conceito de escravidão deste momento terá uma característica própria, que diferenciará da praticada pelas sociedades antigas e da que era conhecida e praticada no continente africano. Podemos dizer
Portanto, essa escravidão se assimilava muito as características da efetuada nas sociedades da Antiguidade. Outra característica conhecida pelos africanos seria a escravidão efetuada com características islâmicas que também era efetuada no continente. Os
Estados
muçulmanos
desse
período
interpretavam a antiga tradição escravista de acordo com a sua nova religião, os escravos eram
que
A escravidão era uma forma de exploração. Suas características específicas incluíam a ideia de que os escravos eram uma propriedade; que eles eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção poderia ser usada á vontade; que sua força de trabalho estava á completa disposição de um senhor; [...] Enquanto propriedade, os escravos eram bens móveis; o que significa dizer que eles podiam ser comprados e vendidos. Os escravos pertenciam aos seus senhores que, pelo menos teoricamente, tinham total poder sobre eles. (LOVEJOY, p. 29-30. 2002)
utilizados nos serviços militar, administrativo e doméstico.
Inicialmente
os
escravos
eram
prisioneiros capturados nas guerras santas que expandiam o Islã da Arábia pelo norte da África e através da região do golfo Pérsico. A escravidão era justificada com base na religião. A natureza da demanda por escravos revela alguns aspectos importantes do comércio. As mulheres e crianças eram preferidas em maior número do que os homens. Tinham também mais probabilidades de serem incorporadas á sociedade muçulmana. Os meninos, fossem eunucos ou não, eram treinados para o serviço militar ou doméstico, e alguns dos mais promissores eram promovidos. As mulheres
G N A R U S | 91 também tornavam-se domésticas e as consideradas
tradicionais dessa sociedade, do reino do Congo,
mais belas eram colocadas em haréns. (Cf.
derivada deste contato.
LOVEJOY, 2002).
O contato inicial entre portugueses e congoleses se dá em 1483 quando uma embarcação
O contato português com os africanos, aqui no caso do Congo, fez com que esse conceito de escravidão, fosse alterado, assim como alguns conceitos sociais aos quais estavam relacionados com a escravidão se desestruturaram. Ao iniciarem o contato mercantil baseado em troca pagava-se
“os navios portugueses em marfim, panos de ráfia, peles, cera, mel e cobre [...] Embora, de vez em quando, alguns escravos, procurava reservá-los para os presentes que remetia ao rei de Portugal.” (SILVA, 1998. p. 370).
portuguesa ancora em Pinda (Mpinda) na margem sul da embocadura do Zaire. Os portugueses são acolhidos pelo mani ou senhor do Sônio (Sonho, Sono, Soio ou Soyo) em contato regido mais pelos gestos, acenos e mímicas do que uma comunicação verbal em si. Os portugueses talvez aconselhados pelo manisônio enviam mensageiros com presentes a Banza Congo (Mbanza, Umbanza ou Ambasse Kongo) aonde vivia o grande rei, o manicongo Nzinga a Nkuwa.1 Deste contato inicial o português, Diogo Cão leva consigo quatro congoleses para que estes fossem
Primeiros contatos entre congoleses e portugueses
“visitar”
Portugal
prometendo
que
estes
É interessante notar que o contato do europeu
regressariam dentro de algum tempo. Em 1485,
branco com o africano negro é revestido por uma
estes mesmo voltam vestidos à moda europeia e
áurea mítica, onde surgem menções que o africano
falando português. E relatam o que viram para o
acreditava que: o europeu por vir das águas,
manicongo.
considerada como divisora do mundo dos vivos e dos mortos (nas tradições religiosas africanas); e pela sua cor branca - cor essa que os mortos encarnavam em seus novos corpos após cruzarem as águas no mundo dos mortos - fossem seres vindos do além, antepassados, entes sobrenaturais, deuses... Devemos ressaltar que tal imaginário com certeza surge para reforçar e legitimar uma supremacia
europeia
“civilizada”
perante o
africano “primitivo” e este fato sendo verossímil ou não, o que não podemos deixar de analisar como
Neste
momento
teremos
o
seguinte
desenvolvimento de fatos que propiciam o início desta interação entre portugueses e congoleses: Primeiro, o manicongo anima-se com a ideia de ter os portugueses como aliados devido aos seus arcabuzes, bombardas, bestas; pois assim seu reino se tornaria muito mais forte perante aos reinos vizinhos através de um apoio português e ainda seus súditos relatavam que os mesmos contavam com um deus poderosíssimo.
um fato real e concreto é a desestruturação social,
Segundo, o monarca português D. João II
política e econômica, que se dará nas conjecturas
ambicionava compor aliança com um rei poderoso,
1
Sobre o reino do Congo, Alberto da Costa e Silva, A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 491-8.
G N A R U S | 92 o manicongo poderia ser esse monarca, este deveria ser ou poderia vir a ser cristão. Assim o manicongo entendia que
“por meio da ajuda portuguesa poderia levar a cabo o que hoje chamaríamos de modernização do país, importando novas técnicas, alterando processos produtivos, modificando comportamentos sociais e inserindo o Congo na economia do Atlântico.” (SILVA, 1998. p. 362). O manicongo embarca nos navios de Diogo Cão uma embaixada repleta de presentes para D. João II, tais como: dentes de elefante, panos de ráfia congoleses, damasco, objetos de marfim; chefiada pelo quitome manivunda (Mani Cabunda), pois por ser o sacerdote dos espíritos da terra e das águas, tinha jurisdição sobre o que ficava do outro lado do mar.2
Esta aceitação do cristianismo no Congo, dos manicongos, é tida como uma estratégia de política interna, pois o rei não controlava o culto dos antepassados, nem dos espíritos da terra e das águas no culto da religião tradicional, o que mudaria com a religião católica. Poderia assim, legitimar seu poder independentemente do apoio dos quitomes e gangas (sacerdotes), dos chefes das
candas (clãs e linhagens matrilineares). Houve
naturalmente
quem
rejeitasse
o
cristianismo e a ele se opusesse. A hostilidade provinha não somente dos sacerdotes e dos devotos das crenças tradicionais, mas também das linhagens matrilineares. [...] Como o manicongo tinha muitas mulheres e pelo casamento se vinculava à maioria das candas, o poder tendia a circular entre várias linhagens.
Primeiras influências: Os reis católicos Quando as caravelas portuguesas retornam comandadas por Rui de Sousa, começamos a ter as primeiras mudanças. O manisônio foi batizado, em uma igreja construída para a ocasião, recebendo o nome de Manuel. Após seguirem para Banza Congo, o manicongo deu ordens para que os portugueses ajudassem a construir uma igreja de pedra e cal aonde ele também viria a ser batizado. Devido a conflitos contra os angicos, e tiquês acabou sendo batizado antes da construção da igreja e passou a chamar-se João, D. João I. Saiu-se vitorioso do conflito utilizando-se de arcabuzeiros e barcos portugueses; e levava consigo uma bandeira de cruzado enviada pelo rei de Portugal e benta pelo papa Inocêncio VIII.
2 Padre Francisco de Santa Maria, O Ceo aberto na terra, Lisboa,
1597, reproduzido em Pe. Antônio Brásio, Monumenta
Ora, a religião e os novos costumes trazidos pelas caravelas alteravam isso. Ao opor-se à família polígama e ao exigir que cada converso, fosse rei, nobre ou plebeu, tivesse uma única mulher, o catolicismo quebrava um dos alicerces da harmonia da sociedade e do estado. (SILVA, 1998. p, 379). O cristianismo foi adequado e reinterpretado de acordo com as crenças locais pelo povo. Alguns aderiram à religiosidade sendo tocados pela fé cristã e outros por conveniência. Nzinga a Nkuwa tornou-se D João I e aceitou o cristianismo devido a necessidade de obter aliança com os portugueses e não por uma aceitação pura dos dogmas cristãos o que fez depois com que ele tenha se afastado da fé católica. O contrário do que se pensa sobre o príncipe Mbemba Nzinga, que tudo indica foi um
Missionaria Africana: África Ocidental, I. série I, v. I, Lisboa, 1952, p. 91.
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Missão capuchinha no reino do Congo, em gravura do século XVII. fervoroso católico e veio a se tornar o sucessor de D. João I que morreu em 1506. Mbemba Nzinga utilizou-se do cristianismo, pois era o primogênito, ou seja, o herdeiro natural ao trono dentro do conceito europeu. Mas, no conceito tradicional seria seu irmão Mpanzu a Kitima, o herdeiro natural, que era apoiado pelos adversários do modelo europeu de governo.
Tráfico de escravos entre congoleses e portugueses Neste processo de modernização do país o rei redistribuía
a
riqueza
que
destinava
aos
governadores provinciais, que distribuíam aos chefes de distrito, que por sua vez distribuíam para os líderes de aldeias e cabeças de linhagens. Devido a isso se criou entre as elites congolesas o gosto pelos artigos que vinham nas caravelas.
Mbemba Nzinga venceu e matou seu irmão com
Os portugueses traziam em suas embarcações lã,
auxilio dos portugueses e se tornou D. Afonso I. Era
algodão, seda, rendas, contas de vidro, porcelanas,
tido além de um católico devoto como um
espadas, pistolas e diversas armas de luxo. Com a
europeizador. Durante todo o seu reinado de 1506
ampliação
á 1543 procurou “modernizar” o seu país através do
impossibilitou-se o pagamento com apenas cobre e
contato com os portugueses.
peles. Os portugueses manifestaram o desejo de
das
importações
transatlânticas,
receber em escravos, estes viravam meio de conversão da moeda nativa para a portuguesa. (Cf. SILVA, 1998).
G N A R U S | 94 A
partir
deste
momento
aqueles
que
bercantim português transportava no máximo 200
comercializavam como os portugueses, utilizaram-
escravos, uma caravela 500, um navio grande até
se de campanhas militares para resolver conflitos
700.
com seus vizinhos, apreendendo grandes números de pessoas para submeterem-nas à escravidão. Ocorriam guerras fúteis, apreensão de vassalos uns dos outros, quem cometesse pequenos delitos também estava sujeito a se tornar escravo. Esta virou a grande mola do comércio entre portugueses e africanos. Portugueses de diversas áreas fossem missionários, leigos ou membros da Coroa transformaram-se também em grandes traficantes de escravos, esses juntamente com negros e mulatos ficaram conhecidos como “pombeiros”.
A ânsia por escravos viciou todo o diálogo entre o Congo e os portugueses. Ao exportar gente, aquele país perdia mão de obra. E cada vez mais, pois, se na terceira década do século XVI, saía pelo porto de Pinda, entre dois mil e três mil escravos por ano, na quarta, o número aumentara para entre quatro mil e cinco mil, e em 1548, atingia os seis ou sete mil. (SILVA, 1998. p, 379). Os dados sobre esse transporte de escravos no século XVI, ainda é escasso, apenas podemos
Essas viagens em condições normais levavam de trinta e cinco dias, ao Pernambuco, quarenta até a Bahia e cinquenta ao Rio de Janeiro. As taxas de mortalidade dos escravos eram elevadas. Temos como exemplo, em 1569, Frei Tomé e Macedo citando o caso de uma embarcação que transportava 500 cativos. Somente em uma noite morreram 120, ou seja, 24% do carregamento. (Cf. MATTOSO, 2003). Quando a viagem prolongava-se além do período comum, a mortalidade de escravos aumentava consideravelmente, pois
“O cativo abordo dos negreiros está sujeito a todos os riscos e não tem defesa contra a morte, seu regime alimentar foi mudado bruscamente. Sente falta do exercício físico, mesmo se é obrigado a andar ou dançar no convés durante a viagem; a promiscuidade nos porões é insuportável. Medo e desesperança tomam seu coração. A higiene a bordo é, em regra geral, medíocre.” (MATTOSO, 2003 p. 52)
utilizar informações de casos isolados. Apenas o período referente aos séculos XVIII e XIX são mais concisos, pois contam com largas informações obtidas por Pierre Verger e de Herbert Klein.
A promiscuidade e o horror desse confinamento também têm servido de tema ás descrições de cortar o coração do leitor sensível, e é bem verdade que as condições do aprisionamento dos cativos eram horríveis. É preciso, porém, evitar as generalizações, pois o tratamento aos cativos variava de um navio a outro (MATTOSO, 2003 p. 46). Não podemos obter dados exatos da quantidade de escravos carregados, quantidade de viagens, faixa etária ou sexo dos escravos, mas pelos parcos dados sabemos que em média um pequeno 3
Castro Alves – Navio negreiro (trechos)
Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar...3
G N A R U S | 95 Considerações Finais
Atlântico, onde tal ruptura se deu no seu interior,
A necessidade de expandir o seu comércio devido
na sua condição física e psicológica.
à crise econômica oriunda do final da Idade Média fez com que os europeus se lançassem em busca de novos empreendimentos. Ao se depararem com novos territórios, e pela sua população ter sido
Lucenildo Souza Campos e Maria Gonçalves Campos são Graduandos em licenciatura em História pela UNIESP – Centro Novo. camposlsc@hotmail.com; m_goncalvescampos@ yahoo.com.br
drasticamente reduzida devido à “peste negra” utilizou-se da mão de obra escrava para poder atender
os
seus
interesses
financeiros
e
expansionistas. Neste contato dos europeus com novos povos, no caso africano, houve uma desestrutura do padrão social, estabelecido naquelas terras, antes da sua chegada àquele continente. Isto fez com que estruturas escravocratas surgissem para suprir a necessidade europeia de mão de obra escrava. Essa desestruturação se deu tanto no território africano, com desestruturações sociais, política econômica, financeiras, eclosão de diversos conflitos locais, intensificação de número de escravos. Como também se fez presente nos indivíduos que foram trazidos para o outro lado do
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALVES, Castro. Os escravos. 1ª ed. São Paulo: L&PM, 1997. COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. LOVEJOY, Paul. A África e a escravidão. In:_____A escravidão na África: uma história de suas transformações. Trad. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2002 MATTOSO, Katia M. de Queirós. No Brasil: ser uma mercadoria como as outras. In:_____ Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003. MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia Histórica do Brasil: Capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablume, 2009. PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23. ed. São Paulo: Brasiliense,1994. SILVA, Alberto da Costa e. No reino de Congo e Angola. In_____: A Manilha e o Limambo de 1500 a 1700. São Paulo: Nova Fronteira, 1988.
G N A R U S | 96
Política – Tempo Presente
RELAÇÕES SINO-AFEGÃS: IMPACTOS DA RETIRADA DAS TROPAS DA OTAN DO AFEGANISTÃO Por Bernardo Corais e Paulo Pulcherio
Resumo A China recentemente intensificou sua ajuda econômica ao Afeganistão que, junto com investimentos comerciais, são importantes para a estabilidade do país depois de 13 anos de guerra. Este artigo tenta responder o porquê dessa intensificação. A China compartilha uma fronteira com o Afeganistão, de pequena extensão em comparação com seus outros vizinhos. Porém, essa fronteira liga o Afeganistão à Xinjiang, uma parte da China habitada por muçulmanos com os quais o governo chinês tem preocupação que a instabilidade do Afeganistão fomente separatismo, extremismo e terrorismo dentre eles. Este artigo argumenta que a assistência econômica e os investimentos chineses se devem principalmente pelo medo de separatismo. Iremos argumentar também que, com o fim da missão da OTAN no Afeganistão em 2014, a China intensificou sua ajuda para que a saída das tropas ocidentais não abale a frágil estabilidade do país e não possibilite a insurgência de grupos terroristas, ao mesmo tempo em que é uma oportunidade para a China aumentar sua influência na Ásia Central. PALAVRAS-CHAVE: China. Afeganistão. Separatismo. Xinjiang. Cooperação.
G N A R U S | 98 A garantia de estabilidade em um país é motivada por diversos fatores e, ao logo da história, esses
INTRODUÇÃO
fatores variaram dependendo do contexto histórico e
O
dos Estados envolvidos. Na política internacional, as ano de 2001 foi marcado pelo maior
motivações podem envolver tanto motivos idealístico
atentado terrorista sofrido pelos Estados
e morais quanto motivos definidos por interesses de
Unidos. Os atentados de 11 de setembro
poder. “É tão fatal, em política, ignorar o poder
foram seguidos pelo início da guerra ao terror e pela
quanto ignorar a moral” (CARR, 1981, p. 130). Na
invasão
no
história vemos políticas traçadas por Estados que são
Afeganistão. O objetivo era desmantelar a Al-Qaeda
motivadas mais por ideias, às vezes mais por
e destituir o Talibã do governo afegão. Das tropas no
interesses de poder e, finalmente, misturando os dois.
Afeganistão, os Estados Unidos lideravam em
É importante ressaltar, como Carr o faz, que os termos
números: em 2011, apresentavam um contingente de
de poder estão hierarquizados acima de motivações
101,000 soldados no país (LANDLER, 2014). O custo
idealísticas (CARR, 1981). Os distúrbios causados no
semanal referente a manutenção das tropas norte-
Oriente Médio a partir da criação do Estado de Israel
americanas ficava em torno de 2 bilhões de dólares
foram em parte por motivos morais. Países árabes
(BBC, 2011). O presidente norte-americano Barack
como Egito, Síria, Transjordânia, Iraque e Líbano
Obama, em 2011, anunciou um plano para a retirada
ingressaram em uma guerra contra o Estado recém
de tropas norte-americanas do Afeganistão. Ao final
criado visando a libertação da Palestina. No entanto,
de 2014, a missão no Afeganistão estaria oficialmente
nesse contexto, as motivações definidas em termos
acabada e a segurança passaria a ser uma tarefa dos
de poder podem ser encontradas: um novo
oficiais afegãos. No entanto, a retirada de tropas não
competidor no Oriente Médio ameaçaria o equilíbrio
é total: o plano consiste em diminuir gradualmente o
de forças da região. Pode ser inferido que na relação
contingente para que permaneça no país um número
da China com o Afeganistão há a presença dos dois
necessário para proteger a embaixada norte-
tipos de motivações. No caso específico da retirada
americana em Cabul e para ajudar o exército afegão
de tropas da OTAN e de tropas norte-americanas, a
em assuntos de segurança. Até o final de 2014, é
China se vê diante um dilema. Ao mesmo tempo que
pretendido diminuir as tropas de 32,000 para 9,800,
a retirada de tropas ocidentais é um ponto positivo
e em 2015 diminuir para a metade desse número.
para um aumento da influência chinesa na Ásia
Além das tropas norte-americanas, a OTAN planeja a
Central, uma vez que abre uma janela de
retirada total das tropas da ISAF (Força Internacional
oportunidade para o país avançar seus interesses na
de Assistência para Segurança, em inglês) ao fim de
região, essa retirada pode significa um abalo na frágil
2014. É esperado que o Afeganistão consiga manter
estabilidade do Afeganistão. Garantir a estabilidade
a estabilidade do país depois de vários anos de
do Afeganistão tem motivações morais, porém as
guerra.
intenções de garantir a integridade territorial da
liderada
pelos
norte-americanos
China são baseadas em interesses de poder. Não
G N A R U S | 99 podendo mais depender das forças ocidentais para a
econômica e os investimentos da China no
estabilidade necessária para impedir que insurgentes
Afeganistão se dão a partir da análise anterior.
no Afeganistão incitem movimentos separatistas na província de Xinjiang, como será argumentado nesse artigo, a China recentemente intensificou a
RESENHA DE LITERATURA
assistência econômica ao Afeganistão. O presidente
Tomar medidas visando a integridade territorial do
afegão Ashraf Ghani, eleito em setembro de 2014,
território chinês não é uma política nova. Na verdade,
visitou pela primeira vez a China em outubro desde as
a preocupação com a integridade territorial data
eleições para estreitar os laços diplomáticas e assinar
desde 1949, ano da proclamação da República
um acordo no qual a China prover mais de 330
Popular da China. Não só a província de Xinjiang faz
milhões de dólares de assistência econômica nos
parte dessa preocupação, mas também a região do
próximos três anos ao Afeganistão (PANDA, 2014).
Tibete e o Taiwan, que até hoje não é reconhecido
Este artigo argumenta que a intensificação da assistência econômica chinesa ao Afeganistão se dá pelo medo de separatismo do Partido Comunista Chinês em relação a região de Xinjiang. A região é habitada por muçulmanos em sua maioria sunitas da etnia Uigur, e a China teme que insurgentes afegãos causem um efeito spill-over sobre a região, o que intensificaria
movimentos
separatistas
e
atos
terroristas. Este artigo argumenta também que esse medo é intensificado com a aproximação da saída das tropas da OTAN do Afeganistão em 2014. A saída das tropas ocidentais do Afeganistão significa que a manutenção da estabilidade do Afeganistão, que já é frágil, poderá ser prejudicada. À China, que tem muitos investimentos no país que são prejudicados
como independente pelo Partido Comunista Chinês. O realismo de Edward Carr nos proporciona uma maneira de olhar para a assistência e os investimentos promovidos pela China no Afeganistão: ela é movida por motivos morais e também por motivos definidos em termos de poder. E o que é importante nesse olhar é o fato que interesses definidos em termos de poder são privilegiados em detrimento dos motivos morais (CARR, 1981). Por mais que a ajuda chinesa no Afeganistão seja para ajudar um Estado falido a se recompor, os motivos que são privilegiados são aqueles que são relacionados ao poder: o Partido Comunista Chinês quer garantir a estabilidade do Afeganistão para que grupos insurgentes não ameacem a integridade territorial da China.
por atos terroristas e, mais importante, que divide
Promover a estabilidade do Afeganistão não é uma
uma fronteira com o Afeganistão, interessa muito
tarefa tão simples e uma série de outros fatores estão
garantir a estabilidade do seu vizinho.
presentes nessa questão. As relações da China com o
A análise no artigo será estruturada em duas seções. A primeira seção será dedicada a uma discussão sobre como a China, Xinjiang e o Afeganistão se relacionam no contexto de defesa de integridade territorial. Na segunda seção analisaremos como a assistência
Afeganistão têm implicações nas relações da China com o Paquistão, cujo governo apoia os Talibã. A manutenção de uma boa relação com o Paquistão é vantajosa à China, pois o Paquistão exerce um papel de contrapeso à Índia no equilíbrio de forças da Ásia Central. A China, por sua vez, tem uma série de
G N A R U S | 100 disputas de fronteiras com a Índia. Assim, a China se
técnica, e também o apoio de ambos os países ao
vê diante de mais um dilema: ao mesmo tempo que
combate contra o terrorismo, extremismo e
vê como necessária a contenção dos insurgentes no
separatismo (EMBASSY OF THE PEOPLE’S REPUBLIC
Afeganistão para que o país deixe de abrigá-los e
OF CHINA IN THE ISLAMIC REPUBLIC OF
treiná-los ou pelo menos dificulte a ação de
AFGHANISTAN, 2012). Em 2014, a China anunciou
organizações terroristas em seu território, a China
que fornecerá uma ajuda de 330 milhões ao longo
não pode fazê-lo de modo a abalar suas relações com
dos próximos três anos, mais do que a quantidade
Paquistão, pois este é um contrapeso geopolítico à
total de assistência providenciada entre 2001 e 2011,
Índia, devido a sua disputa de fronteiras com ela
mostrando a disposição chinesa a se aproximar do
(Caxemira sendo o exemplo mais marcante).
Afeganistão mais do que somente na retórica.
Complicando mais ainda esse dilema, a China também procura deve manter relações saudáveis com a Índia, uma vez que o país é uma parte importante dos BRICS, parceiro da China na arena global.
primários da China quando se diz respeito ao Afeganistão, que se assemelham à política da China quanto
a
outros
países
da
Ásia
Central.
Primeiramente, a China quer garantir a segurança da
O foco deste artigo, contudo, será a assistência econômica
Michael Clarke escreve sobre três objetivos
chinesa
no
Afeganistão,
província de Xinjiang; em segundo lugar, a China
que
quer garantir o desenvolvimento de maiores laços
recentemente foi intensificada, o que é um marco
econômicos e investir em recursos naturais; em
importante que evidencia a disposição da China em
terceiro lugar, a China tem interesse em combater a
engajar no Afeganistão. A elevação do status das
influência dos Estados Unidos e da Índia na região
relações sino-afegãs para um parceria estratégica e
(CLARKE, 2013). Segundo Zhao Huasheng, o objetivo
cooperativa em 2012 inicia uma nova fase do
primário da China no Afeganistão é de fortalecer a
engajamento chinês no Afeganistão. Esse novo status
cooperação, fornecendo ajuda e investimentos e
das relações sino-afegãs entrou em vigor um ano
ajudando o Afeganistão a se integrar na região da
após o anúncio da retirada de tropas norte-
Ásia Central. Não é a toa que as relações Pequim-
americanas do Afeganistão, quando haverá a entrega
Cabul foram elevadas ao status de parceria
da responsabilidade pela segurança para os oficiais
estratégica e cooperativa em 2012. Além disso, para
afegãos (COOPER e LANDLER, 2011). Em junho de
conseguir esse objetivo, entre 2011 e 2013 a China
2012, após um encontro entre os então presidentes
deu 200 milhões de dólares em ajuda para o
Hu Jintao, da China, e Hamid Karzai, do Afeganistão,
Afeganistão. Ao ajudar o Afeganistão, a China espera
os dois assinaram um joint statement que define a
garantir a estabilidade do país, principalmente na
cooperação política, econômica, militar, cultural e
relação do Talibã com o governo afegão. Apesar da
também no cenário regional e internacional como os
China reconhecer o Talibã como um ator político, é
cinco pilares da relação bilateral sino-afegã. Além
totalmente
disso, o documento deixa clara a intenção de ambos
extremismo (HUASHENG, 2014). De acordo com a
os lados em continuar e expandir a cooperação
análise de Dirk van der Kley, a China não quer que a
contra
terrorismo,
separatismo
e
G N A R U S | 101 instabilidade do Afeganistão e nem o terrorismo
transporte do minério. Segundo Ron Synovitz, muitos
propaguem
Xinjiang,
residentes da região estão felizes com esse
majoritariamente habitada por muçulmanos sunitas
investimento, já que o empreendimento criará vários
da etnia Uighur, e esse é o principal motivo para que
empregos.
a China ajude o Afeganistão (KLEY, 2014).
preocupam com sua segurança. Temem pelo perigo
para
a
província
de
Contudo, Richard Weitz escreve sobre uma visão diferente quanto ao papel da China no Afeganistão. Ele cita que muitos observadores norte-americanos acham que a China está free riding nas costas dos mortos das tropas da OTAN. Ou seja, Os Estados Unidos e seus aliados gastam bilhões para manter suas tropas no Afeganistão, além de ter várias baixas ao longo da missão de derrotar os radicais islâmicos, porém quem se beneficia desse clima mais propício para desenvolvimento e investimento são os chineses, e não os aliados ocidentais. A China investiu em 2007 mais de 3 bilhões de dólares em um acordo feito pela China Metallurgical Group Corporation (CMGC) para explorar enormes jazidas de cobre em Mes Aynak, ao sudeste de Cabul, que dificilmente teria acontecido se as forças ocidentais não estivessem garantindo segurança no país. A China estaria free riding justamente porque se beneficia da segurança das forças ocidentais ao passo que não oferece quase nenhuma ajuda militar direta para as operações no Afeganistão (WEITZ, 2011). O caso do investimento chines nas jazidas de cobre em Mes Aynak nos leva à um outro fator importante a ser considerado na análise sobre a assistência econômica chinesa no Afeganistão: a voz afegã. Apesar de ser estimado que o minério possa valer até 88 bilhões de dólares, o local precisa de infraestrutura. É necessário a construção de uma usina para o fornecimento de energia elétrica para as operações de extração e de uma ferrovia para o
No
entanto,
esses
residentes
se
de gases perigosos devido às explosões necessárias para começar a extração do cobre e temem pela água que pode ser contaminada por toxinas. Também temem principalmente pela corrupção no país que pode
afetar
esse
investimento
porque,
no
empreendimento, milhares de dólares estão em jogo (SYNOVITZ, 2008). Não só sobre problemas ambientais e de saúde são as preocupações quanto ao investimento chines, mas também de teor cultural. Valerie Plesch, do Al Jazeera, escreve que vários arqueólogos estão precupados porque, além do cobre, várias estátuas budistas que datam da época de Alexandre, o Grande, estão enterradas em Mes Aynak. Arqueólogos estão tentando cavar o máximo que podem para salvar esses artefatos, porém dizem que precisariam de no mínimo 25 anos para poderem completar
a
escavação.
O
governo
afegão
dificilmente esperaria esse tempo todo, em vistas do seu acordo com a CMGC para exploração e extração do cobre. Inclusive os chineses já irão tomar conta do local até o final de 2014. Há praticamente uma corrida para terminar a escavação, ao passo que os arqueólogos afegãos lamentam a perda de um importante patrimônio cultural (PLESCH, 2014). No meio de todos esses fatores envolvendo Mes Aynak, ataques terroristas tem seu espaço. O Talibã, segundo Jessica Donati e Mirwais Harooni da Reuteurs UK, tem como uma de suas prioridades bloquear o projeto nas jazidas de Mes Aynak, alegando que todos os governos são corruptos e que os afegãos não iriam ser beneficiados pelo dinheiro vindo do
G N A R U S | 102 investimento chinês. O porta-voz do Talibã inclusive
e integridade territorial, e não permitir que os seus
diz que, se os chineses conseguirem pemissão do
respectivos
grupo, suas vidas podem ser poupadas (DONATI e
quaisquer atividades dirigidas contra o outro lado” e
HAROONI, 2012).
que “os dois lados expressaram forte rejeição a todas
No entanto, apesar de todos os motivos para a China se engajar no Afeganistão, Elizabeth Wishnick escreve que a China, mesmo com interesse em manter a segurança em Xinjiang, tem relutância em cooperar com o Afeganistão em termos de assistência econômica, preferindo focar em investimentos comerciais. Compara que, logo após a elevação do status das relações sino-afegãs para uma parceria estratégica e cooperativa, a China garantiu modestos 1,5 milhões de dólares para o Afeganistão. Alguns dias depois, a China deu ao governo do Tajiquistão 1 bilhão de dólares em ajuda econômica para a construção de uma fábrica de cimento e uma usina (WISHNICK, 2014). Van der Kley escreve que, a partir de 2012, a China começou a ter um papel mais proativo em relação ao Afeganistão, principalmente no campo diplomático, conforme o fim da missão da OTAN no Afeganistão se aproxima. No entanto, concorda com Wishnick sobre a modéstia da assistência chinesa, escrevendo que a ajuda provida pela China para a reconstrução do Afeganistão desde 2001 “tem sido de modestos 250 milhões de dólares” (KLEY, 2014). Apesar da modéstia em relação a assistência econômica, a China de fato começa a ter um papel proativo a partir de 2012. Além da elevação das relações Pequim-Cabul ao status de parceria estratégica e cooperativa em 2012, em um documento que deixa claro que “os dois lados se comprometeram a apoiar firmemente um ao outro nas questões relativas à soberania nacional, unidade
territórios
sejam
utilizados
para
as formas de terrorismo, extremismo, separatismo e crimes organizados” (EMBASSY OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA IN THE ISLAMIC REPUBLIC OF AFGHANISTAN, 2012), o governo sob a presidência de Xi Jinping deixa claro a ênfase na vontade de um Afeganistão estável. Shannon Tiezzi, do The
Diplomat, escreve que a Organização para Cooperação de Xangai (OCX), uma organização para cooperação regional cujos membros são a China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão, mas que é liderada de facto pela China, tem como uma das suas maiores preocupações os assuntos de segurança, sendo o terrorismo o item mais importante da agenda da organização. A China põe muita enfase na segurança, principalmente em relação a Xinjiang, como evidenciado quando o presidente chines Xi Jinping disse, no encontro da OCX no Tajiquistão no dia 12 de setembro de 2014, que os membros da OCX deviam se esforçar para combater os três maiores males: terrorismo, extremismo e separatismo. O Afeganistão é um dos temas de maior relevância para a OCX, pois os membros temem pela estabilidade do país após a retirada
da
OTAN.
Além
de
segurança,
a
preocupação é grande com assistência econômica, para que se obtenha estabilidade regional, incluindo nisso o Afeganistão (TIEZZI, 2014). Não só em foros multilaterais, Xi Jinping deixa claro sua ênfase também em combater os três maiores males internamente. Em uma sessão de estudos em grupo sobre segurança nacional e estabilidade social do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, em
G N A R U S | 103 abril de 2014, o presidente disse: “(Nós devemos)
líderes chineses e afegãos (o primeiro nível de
fazer terroristas se tornarem como ratos correndo
análise), porque apesar da importância a qual damos
através de uma rua, com todos gritando ‘batam
para os joint statements e para as declarações oficiais
neles!’" (WEN, 2014).
de cada um dos chefes de Estado, a mudança que
Em setembro de 2014, a China garantiu 330 milhões de ajuda para ao Afeganistão ao longo dos próximos três anos. As relações Pequim-Cabul não são torneadas apenas por ajuda econômica, mas também de importantes investimentos comercial. Este artigo tenta resolver a questão quanto aos motivos da recente intensificação da assistência econômica promovida pela China no Afeganistão, que contrasta com a “modéstia” citada por Wishnick e van der Kley.
estamos
analisando
não
é
cronologicamente
correspondente com uma mudança de governo específica. O nível sistêmico (o terceiro nível de análise) também se exclui pois o problema é, de certa forma, limitado geograficamente. A guerra ao terror, claro, é uma política mundial, mas a sua intensificação no pós-2001 não foi o gatilho para o aumento da intervenção chinesa no Afeganistão (à época do Talibã no governo), e a parceria estratégica aconteceu não em função de uma disputa com outra grande potência na região, mas sim da necessidade
METODOLOGIA As
informações
de apoiar um governo que se põe contra o terrorismo contidas
no
artigo
vêm
majoritariamente de artigos científicos, de artigos e
e livra os chineses de arcar com os custos da manutenção da estabilidade na região.
notícias de periódicos, discursos e de documentos
Neste artigo usaremos alguns conceitos que devem
oficiais. Para melhor estudar o nosso objeto de
ser definidos para facilitar a leitura. Um deles é o
pesquisa, usaremos o segundo nível de análise
conceito de spill over que é a ideia de que um
proposto por Waltz em seu livro "O Homem, o Estado
processo pode se espalhar de um país para o outro.
e a Guerra" (WALTZ, 2004). Usaremos o nível do
Não só a cooperação pode sofrer o spill over, mas as
Estado para analisar a relação entre China e
guerras também podem e em especial as guerras
Afeganistão, pois vemos esta como a melhor forma de
irregulares. Outros conceitos importantes são os três
analisar o porquê da mudança das políticas chinesas.
grandes males dos quais a China fala em seus
O objetivo ao usar esse nível de análise é entender as
discursos: o separatismo, terrorismo e extremismo,
condições que levaram a essa mudança e, tendo isso
que estão intimamente ligados. O terrorismo é o
em vista, o segundo nível de Waltz nos fornece a
meio pelo qual os separatistas que têm uma visão
lente que precisamos para olhar para dentro do
extremista do Islã procuram se fazer ouvidos. A
Estado chinês e entender quais os motivos que
estabilidade é um conceito que diz respeito à força
levaram à guinada nas relações sino-afegãs de 2012,
das instituições nacionais, a capacidade delas de
sem deixar de analisar as razões pelas quais Cabul
perpetuarem sua existência sem depender quase que
precisa de Pequim, sobretudo após a retirada da
só de ajuda estrangeira, e a instabilidade é um
maior parte da ISAF ao fim de 2014. Acreditamos que
conceito derivado desse, sendo a incapacidade das
essas razões transcendam a visão de mundo dos
instituições governamentais de um certo país se
G N A R U S | 104 manterem funcionando e provendo os serviços
internacionais com a Mongólia, Rússia, Cazaquistão,
básicos que um governo deve prover à sua população.
Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão e com a região
Outro conceito que a China usa em seus discursos
da Caxemira. É lar da minoria uigur que são em sua
com certa frequência é o peaceful rise ou peaceful
grande maioria muçulmanos sunitas e falam a língua
development, que é o caminho escolhido pelo comitê
uigur. Desde os primórdios da proclamação da
central do Partido Comunista Chinês para consolidar
República Popular da China (RPC), uma das principais
a China como uma grande potência sem entrar em
preocupações
conflito com as já existentes, e sempre buscando
consolidação do território. Xinjiang recebeu uma
cooperar para gerar benefícios para todos. Quando
atenção especial, já que muitos uigures queriam
usamos o termo assistência econômica queremos
autonomia territorial. O interesse na região, além de
dizer quando um país dá uma ajuda de custo a outro
consolidação territorial, também vem dos recursos
sem esperar receber de volta ou quando faz um
minerais. Xinjiang corresponde a um sexto de todo
empréstimo a juros irrisórios e prazo para pagamento
território chinês, possui 38% do carvão nacional e
longo. Esse conceito se difere de investimento na
25% das reservas de petróleo e gás, além de 730
medida em que neste último o governo do país
milhões de toneladas de minério de ferro, fazendo da
provedor ou suas empresas (estatais ou não) investem
província uma importante fonte de recursos minerais
em outro em busca de lucro, um negócio de fato.
dentro da China (CHINA, [s.d.]). Além disso, sempre
Investimentos também trazem benefícios para o país
houve o medo do efeito dominó: se o separatismo
onde se está sendo feito o investimento, como
vencesse em Xinjiang, regiões como o Tibete
fortalecimento da economia e geração de empregos.
poderiam seguir o mesmo rumo.
Também é importante definir free riding, que usamos quando nos referimos à alegada “carona” que a China pega na segurança provida pelas tropas da OTAN. Assim, apesar de ter contribuições muito pequenas à segurança afegã, a China se aproveita dos gastos dos EUA e de seus aliados para desenvolver suas atividades
econômicas
com
segurança
no
Afeganistão.
do
Partido
Comunista
era
a
A relação entre os uigures com a RPC foi marcada pelo ressentimento principalmente devido a dois eventos importantes da história da RPC: o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, que resultaram na morte de vários uigures e na destruição da cultura uigur. Na era pós-Mao, houve a abertura econômica sob o governo de Deng Xaoping e a criação das Zonas Econômicas
Especiais
(ZEEs).
Essas
reformas
transformaram a vida de muitos chineses, ao passo ANÁLISE Seção 1: As relações entre China, Xinjiang e Afeganistão sob a luz da integridade territorial Xinjiang, oficialmente Região Autônoma Uigur do Xinjiang, é uma região autônoma localizada no noroeste da China. A região tem fronteiras
que a qualidade de vida aumentou. Porém, essas transformações ocorreram somente nas áreas das ZEEs, predominantemente habitadas pela etnia Han, enquanto que as desigualdades sociais entre áreas urbanas e rurais aumentaram. Enquanto o litoral da China se beneficiava da liberalização econômica, o oeste ficava esquecido. No caso de Xinjiang, havia
G N A R U S | 105 grande preocupação por parte do governo de que
seria tolerado. Um exemplo foi após militantes
essa
e
uigures explodirem uma bomba em uma estação de
autodeterminação. O governo então engajou em
trem em Urumqi, capital de Xinjiang, e matar três
políticas de homogeinização, de liberalização
pessoas e ferir 79. O ataque coincidiu com uma visita
econômica e de investimento em infraestrutura para
de Xi Jinping à Xinjiang. O presidente ordenou que as
que a população uigur de Xinjiang ficasse contente
tropas chinesas em Xinjiang dessem um “golpe duro”
devido ao crescimento econômico. O Partido
no terrorismo (BRANIGAN, 2014). No encontro da
Comunista acreditava que, contanto que a população
Organização para Cooperação de Xangai (OCX) no
estivesse contente e se sentisse integrada ao resto da
Tajiquistão, no dia 12 de setembro de 2014, Xi
China, isso inibiria protestos por autodeterminação.
Jinping anunciou que os membros da OCX deveriam
Era a “Marcha para o Oeste” chinesa. De modo
se esforçar para combater os três maiores males:
complementar a essa política doméstica, a China
terrorismo, extremismo e separatismo. O presidente
passou a procurar parceiros econômicos na Ásia
pediu, como escreveu Shannon Tiezzi, do The
Central, com a qual Xinjiang divide grande parte de
Diplomat, para haver foco no combate ao
suas
resultaram
extremismo que envolve religião e que os membros
oleodutos, ferrovias e desenvolvimento econômico
da OCX deveriam se responsabilizar em garantir a
na região antes marcada pela pobreza e o abandono.
segurança regional e a estabilidade. As preocupações
desigualdade
fronteiras.
fomentasse
Dessas
separatismo
parcerias
A partir dos ataques de 11 de setembro, com o início da guerra ao terror e com a invasão liderada pelos norte-americanos no Afeganistão, a China passou a aplicar o discurso de guerra ao terror aos uigures. A questão da autodeterminação começou a ser tratada como uma questão de segurança e o governo passa a chamar separatistas de terroristas, além da repressão ser maior e passar a focar também
com Xinjiang ficam bem evidentes nesse discurso. Outro exemplo foi em uma sessão de estudos em grupo sobre segurança nacional e estabilidade social do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, em abril de 2014 onde Xi Jinping disse: “(Nós devemos) fazer terroristas se tornarem como ratos correndo através de uma rua, com todos gritando ‘batam neles!’".
em elementos do Islã. Desde então, os uigures são
Feita essa primeira análise da relação entre o
vigiados mais cautelosamente e qualquer indício de
governo chinês e Xinjiang, temos que levar em conta
separatismo
combatido
um outro importante ator: o Afeganistão. Com a
violentamente. Por exemplo, no mês do Ramadã de
invasão soviética e com a guerra civil, o Afeganistão
2014, um dos cinco pilares do Islã, o governo chinês
se tornou um covil para vários grupos terroristas,
intensificou uma campanha contra terrorismo e
entre eles o Talibã. Com muito de seus combatentes
separatismo, ao passo que proibia qualquer coisa que
vindos de campos de refugiados das guerras e com
parecesse ser muito conservador, como jejuar e, no
financiamento de países como o Paquistão e a Arábia
caso das mulheres, usar véu (DENYER, 2014). Sob o
Saudita, o Talibã tem uma interpretação rigorosa do
governo de Xi Jinping, em várias ocasiões o
Islã. E essa interpretação extremista é tudo aquilo que
presidente chinês deixou claro que o separatismo não
o governo chinês repudia em suas políticas, ainda
e
terrorismo
é
G N A R U S | 106 mais quando o Talibã oferece guarida para membros
que preocupa mais ainda a China em relação ao MITO
do Movimento Islâmico do Turquestão Oriental
(KECK, 2014).
(MITO), um movimento que quer a independência de Xinjiang, assim como de outras áreas próximas. Contudo, a China reconhece o Talibã como um ator político legítimo, e isso complica a situação, já que, ao mesmo tempo que a China quer manter boas relações com o Paquistão, o governo chinês não quer um spill over de terrorismo do Afeganistão para Xinjiang. Apesar do Talibã ser considerado um ator político legítimo, o MITO não é, sendo na verdade considerado um grupo terrorista, ao qual a China usa o discurso de guerra ao terror. Inclusive, o governo chinês alega que o MITO mantém ligações com a alQaeda (KAIMAN, 2013). Além disso, recentemente a Al-Qaeda e o Estado Islâmico declaram uma jihad contra a China por alegarem que a China ocupa a região de Xinjiang e oprime os muçulmanos dali, o
Diante dessa relação complicada, a China tem muitos motivos para investir e ajudar o Afeganistão. Para a China é essencial manter um Afeganistão estável. Uma guerra civil no país poderia resultar no
spill over do conflito para dentro de Xinjiang, que é um dos maiores medos do Partido Comunista Chinês. Porém, essa ajuda até 2012 era menos intensa quando comparada com as recentes intensificações da assistência econômica chinesa ao Afeganistão. Vimos que a assistência provida por Pequim ao Afeganistão entre 2001 e 2011 é menor do que a quantidade de ajuda que foi prometida para os próximos três anos em pelo menos 80 milhões de dólares. A pergunta é: qual a diferença entre a situação atual e a anterior que leva o governo chinês a mudar sua postura e ser mais proativo no
G N A R U S | 107 Afeganistão? A resposta é o anúncio da saída das
estratégica. Segundo a declaração, “a situação
tropas da OTAN no fim de 2014. A situação do
regional e internacional estava passando por
Afeganistão no começo da década a partir da
mudanças profundas e complexas”. O encontro se
intervenção dos norte-americanos e seus aliados era
deu no dia 8 de junho de 2012, um ano após o anúncio
de um reduto para grupos extremistas, e pode ser
do presidente norte-americano Barack Obama de
comparada com um ninho de vespas que aparece em
que as tropas norte-americanas iriam ser retiradas do
uma casa há muito tempo abandonada e que agora
Afeganistão até 2014, um claro motivo para a China
voltou a ser habitada: derrubar o ninho não é uma
engajar mais no Afeganistão. A declaração diz
tarefa segura ou simples de completar, no entanto
também que essa nova parceria colaboraria para que
alguém precisa resolver o problema. Como a OTAN
houvesse “paz, estabilidade e desenvolvimento na
sentiu a necessidade de resolver o problema, Pequim
região e além”, que “os dois lados se comprometeram
não precisava conter as organizações terroristas
a apoiar firmemente um ao outro nas questões
baseadas no Afeganistão e preferiu ainda se manter
relativas à soberania nacional, unidade e integridade
longe da intervenção militar. Porém, com a saída da
territorial, e não permitir que os seus respectivos
OTAN e o aumento da responsabilidade do governo
territórios sejam utilizados para quaisquer atividades
afegão de lidar com a segurança em relação às
dirigidas contra o outro lado”, que “os dois lados
organizações terroristas baseadas em seu território, a
expressaram forte rejeição de todas as formas de
China se vê impelida a ajudar o governo afegão. Se na
terrorismo, extremismo, separatismo e crimes
primeira década do presente século o governo chinês
organizados”, e que “continuariam a explorar novos
procurou manter uma ajuda modesta ao Afeganistão,
canais e métodos para expandir acordos e
em parte com o objetivo de não chamar a atenção das
investimentos bilaterais e a intensificar a cooperação
organizações terroristas para o seu país, agora essa
econômica”. Em segundo lugar, é importante notar
ajuda passou de modesta para mais ativa.
que também em 2012, na mesma reunião de membros da OCX, o Afeganistão foi admitido como
Seção 2: Um novo patamar para as relações sinoafegãs Identificamos quatro evidências principais que comprovam o engajamento mais proativo da China a partir de 2012. Em primeiro lugar, a elevação do status das relações sino-afegãs foi um dos primeiros passos da postura mais proativa da China em relação ao Afeganistão. Resultado de um encontro bilateral entre os então presidentes Hu Jintao, da China, e Hamid Karzai, do Afeganistão, durante uma reunião de membros da OCX, as relações sino-afegãs foram elevadas para um status de parceria cooperativa e
um membro observador da OCX. A OCX tem o papel principalmente de fortalecer laços econômicos entre seus membros e de ser um contrapeso à influência norte-americana na Ásia Central, além de ter como uma de suas maiores preocupações o tema de segurança. A entrada do Afeganistão como membro observador fortaleceu o contato do país com os demais membros da OCX, em especial com a China, que tem um interesse especial na região. Mais recentemente, o governo sob a presidência de Xi Jinping deixa claro a ênfase na vontade de um Afeganistão estável em uma nova reunião dos
G N A R U S | 108 membros no Tadjiquistão, no dia 12 de setembro de
inclusive, disse que essa seria uma nova era de
2014. Como Shannon Tiezzi, do The Diplomat,
cooperação nas relações sino-afegãs que iria levar o
escreveu, Xi Jinping disse que os membros da OCX
desenvolvimento a novas dimensões. Assim, a China
deviam se esforçar para combater os três maiores
garantiu ajuda de 330 milhões de dólares para os
males: terrorismo, extremismo e separatismo. O
próximos três, que é 80 milhões de dólares a mais de
Afeganistão é um dos temas de maior relevância para
toda a ajuda que a China deu ao Afeganistão de 2001
a OCX, pois os membros temem pela estabilidade do
até 2011. Como Clarke, Huasheng e van der Kley
país após a retirada da OTAN. Em terceiro lugar, o
escrevem, há um consenso quanto ao objetivo
então chefe de segurança chinês Zhou Yongkang fez
primário da China no Afeganistão que envolve,
uma visita histórica à Cabul em setembro de 2012. Era
principalmente, garantir a segurança de Xinjiang. As
a primeira vez que um oficial chinês fazia uma viagem
evidências aqui apresentadas do papel mais proativo
oficial para o Afeganistão em quase meio século.
que a China vem tomando a partir de 2012 com a
Nessa visita, ambas as partes entraram em acordo
aproximação do fim da missão da OTAN no
quanto a China ajudar a treinar a polícia afegã, que
Afeganistão confirmam esse objetivo primário.
iria assumir a segurança do país após a retirada das tropas ocidentais no final de 2014. A ajuda militar indireta é o único tipo de ajuda envolvendo forças militares feita pela China. O governo chinês não interfere
com
seu
exército
diretamente
no
Afeganistão (BBC, 2012). Finalmente, em quarto lugar, uma outra evidência importante é que, se de 2001 até 2011 a assistência econômica chinesa ao Afeganistão havia sido "modesta", como dito por Elizabeth Wishnick, ao comparar uma ajuda de um milhão e meio de dólares logo após a entrada do Afeganistão como membro observador da OCX com os 1 bilhão de dólares que a China deu ao Tajiquestão, o engajamento “modesto” da China passou a ser proativo. Entre 2011 e 2013 a China deu 200 milhões de dólares em ajuda para o Afeganistão, como escreveu Huasheng.
Em 2014, em sua primeira
viagem de Estado como presidente, Ashraf Ghani se encontrou com o presidente chinês Xi Jinping na China. Desse encontro, como escreveu Tom Kutsch, do Al Jazeera, foi anunciado uma cooperação econômica e de segurança mais estreitas. Xi Jinping,
É claro que, além do medo do separatismo em Xinjiang, a China vê outros motivos para ajudar o Afeganistão. A China tem buscado parceiros comerciais em todo o mundo para conseguir os recursos que sua enorme economia demanda para se manter crescendo, e prova disso é o investimento chinês em vários países africanos que possuem reservas pouco exploradas de recursos naturais, sejam de minério de ferro, carvão ou petróleo. Não seria diferente no Afeganistão, tendo em vistas as descobertas, de certa forma recentes, de grandes jazidas de minérios no país. O Afeganistão já era reconhecidamente rico em recursos minerais, e os chineses já haviam fechado um negócio de três bilhões de dólares pelo direito de explorar a reserva de cobre em Mes Aynak, situada a sudeste de Cabul. Porém, até 2010 não se sabia o quão extensas eram essas riquezas até que um time de pesquisadores americanos a serviço do Pentágono descobriram as vastas reservas de minério de ferro, cobre e outros metais raros (RISEN, 2010). Em 2014, foi feita uma estimativa do valor da riqueza mineral afegã posta
G N A R U S | 109 em um trilhão de dólares, sendo assim um grande
corrupção do governo afegão, já que milhões de
atrativo às empresas chinesas de mineração (FARMER
dólares estão em jogo nesse investimento. Não só nas
e SPILLIUS, 2010). Portanto, vemos que a chegada da
jazidas de cobre em Mes Aynak a China tem
China no Afeganistão era apenas uma questão de
investimentos, mas também em relação ao petróleo
tempo. Se por um lado o governo chinês quer a
da bacia do Amu Darya, onde o governo afegão
estabilidade do Afeganistão pelo medo de um efeito
assinou em 2011 com a China um contrato para
spill over de terrorismo e extremismo para Xinjiang,
exploração de petróleo por 25 anos (SHALIZI, 2012).
por outro a China quer tornar o país seguro para que
Assim, a estabilidade do Afeganistão é de grande
seus investimentos não sejam alvo de atos terroristas.
interesse para que os interesses econômicos chineses
No caso das reservas de cobre em Mes Aynak, a China
no Afeganistão se perpetuem. Não só no Afeganistão,
investiu em 2007 mais de 3 bilhões de dólares em um
mas a estabilidade afegã também beneficia a China
acordo feito pela China Metallurgical Group
para ter uma maior influência na Ásia Central.
Corporation (CMGC). No entanto, a exploração não foi para frente. Um dos motivos foi a existência de estátuas
budistas
em
Mes
Aynak
que
são
consideradas patrimônio cultural. Arqueólogos enfrentam uma corrida contra o tempo para escavarem e salvarem o máximo que puderem, mas o ideal seria no mínimo 25 anos. O governo chinês, contudo, pretende tomar conta do local até o fim de 2014. O outro motivo foi a de ataques terroristas, como dos Talibã, que, segundo Donati e Harooni da
Reuters UK, o grupo alega que todos os governos são corruptos e que os afegãos não iriam ser beneficiados pelo dinheiro vindo do investimento chinês, tendo como uma de suas prioridades bloquear o projeto nas jazidas de Mes Aynak. Os próprios afegãos aparecem nessa relação de maneira ambígua. Segundo Ron Synovitz, muitos residentes da região estão felizes
Na visão de de alguns observadores americanos, como diz Richard Weitz, a China estaria se aproveitando da segurança trazida pelos Estados Unidos e pela OTAN para investir o máximo que pode para retirar todos os benefícios possíveis do Afeganistão. Seria uma ação de free riding. No nosso ponto de vista, discordamos com essa visão, pois além da China ter interesse em comum com os Estados Unidos de combater o terrorismo no Afeganistão, os investimentos chineses são, antes de tudo, para tornar possível que o Afeganistão desenvolva melhor sua
economia,
crie
vários
empregos
e
consequentemente torne o governo eficiente o bastante para conseguir manter o Afeganistão estável. A China com certeza quer se beneficiar dos recursos do Afeganistão, mas o combate ao terrorismo, principalmente visando a segurança de
com o investimento do governo chinês, já que
Xinjiang, se destaca mais do que um simples free
empreendimento
riding. A abordagem chinesa em manter a
criará vários
empregos. No
entanto, esses residentes se preocupam com sua segurança, temendo pelo perigo de gases perigosos devido às explosões necessárias para começar a extração do cobre e pela água que pode ser contaminada por toxinas. Além disso, temem pela
estabilidade
do
Afeganistão,
econômica,
financiamento
com de
assistência
projetos
de
desenvolvimento e treinamento de pessoal é uma solução bem adequada a esse problema, pois ao mesmo tempo que fortalece o governo afegão que
G N A R U S | 110 será o novo responsável por manter a segurança no
intensificação da assistência econômica chinesa ao
país após a saída de forças da OTAN, não contribui
Afeganistão, sendo que em 2014 foi prometido 330
para o aumento da tensão entre os muçulmanos
milhões de dólares ao longo dos próximos três anos,
chineses e o governo chinês, além de ser uma forma
que é 80 milhões a mais que toda a ajuda chinesa ao
de abordar a questão que está de acordo com o
Afeganistão de 2001 até 2011.
discurso chinês de peaceful rise e de não intervenção, já que dispensa intervenção militar e não entra em conflito com outros Estados.
Não só o medo de separatismo, terrorismo e extremismo em Xinjiang move os interesses da China no Afeganistão, mas também interesses econômicos. Investimentos realizados por empresas chinesas no
CONCLUSÃO Devido ao Afeganistão servir de covil para vários grupos extremistas muçulmanos, a China tem interesse em manter o Afeganistão estável. A estabilidade é essencial porque o país faz fronteira com a região autônoma da Xinjiang, na China, que é lar dos uigures, predominantemente muçulmanos sunitas e que tem um histórico de quererem autodeterminação. A China tem medo de que haja um efeito spill-over do Afeganistão para Xinjiang que fomente o separatismo mais ainda na região. A China deu assistência econômica ao Afeganistão para ajudar o país a ficar estável desde a invasão dos norteamericanos e seus aliados em 2001. Porém, o que era uma ajuda menos intensa se intensificou a partir de 2012, pois foi anunciado o fim da ISAF e a retirada das tropas da OTAN, o que inclui os Estados Unidos, do Afeganistão ao fim de 2014. Quatro evidências sustentam a hipótese de que a ajuda chinesa ao Afeganistão foi intensificada. (1) A elevação do status das relações sino-afegãs, que passaram a ser uma parceria cooperativa e estratégica, (2) a admissão do Afeganistão como membro observador da OCX, (3) a visita do oficial de segurança Zhou Yongkang, a primeira em mais de 50 anos de um oficial chinês ao Afeganistão e (4) a
Afeganistão como nas jazidas de cobre em Mes Aynak e nas reservas de petróleo na bacia do Amu Darya dependem da estabilidade do Afeganistão para não serem alvos de atos terroristas. Então, apesar da prioridade ser garantir a segurança de Xinjiang, o governo chinês também quer garantir a segurança de seus investimentos. O termo free riding para caracterizar a China em sua relação com o Afeganistão durante a permanência das tropas norte-americanas e de seus aliados é equivocada. A China quer se beneficiar dos recursos naturais do Afeganistão, mas o combate ao terrorismo, um desejo que é comum também aos Estados Unidos, é a prioridade maior, pois o medo do Partido Comunista de separatismo em Xinjiang é grande. Embora o free riding não seja adequado para caracterizar as ações da China no Afeganistão, o realismo de Carr é. Na política internacional, as motivações podem envolver tanto motivos idealístico e morais quanto motivos definidos por interesses de poder, porém as motivações baseadas em termos de poder estão hierarquizadas acima de motivações idealísticas. Garantir a estabilidade do Afeganistão tem motivações morais, porém as intenções de garantir a integridade territorial da China são baseadas em interesses de poder.
G N A R U S | 111 A abordagem chinesa na sua relação com o
habitantes das áreas mais atingidas, como é o caso do
Afeganistão através de majoritariamente assistência
Tibete e Xinjiang, e uma outra que se faz presente na
econômica e investimentos, frente a saída das tropas
política externa chinesa, que é a de manter um baixo
da OTAN do Afeganistão, é eficiente porque ajuda o
perfil e não chamar atenção dos grupos terroristas.
governo afegão a manter o Afeganistão estável ao
Através desse método, a China se isenta de ter gastos
passo que fortalece a economia do país e gera
exorbitantes
empregos. Além do mais, a abordagem chinesa não
internacionalmente. Portanto, vemos que um campo
contribui para um aumento de tensões em Xinjiang,
promissor para futuros artigos e teses a observação
já que não envolve uma intervenção militar e nem
mais profunda de como os outros países da OCX
entra em conflito direto com outros Estados. Resta
enfrentam o problema posto pelo terrorismo e como
saber se esta abordagem será viável no futuro. Há a
essas visões dialogam umas com as outras no âmbito
possibilidade da reconstrução do Afeganistão falhar
das
e o governo cair novamente em mãos extremistas, e
importante que isso é discutir se as visões dominantes
caso a OTAN não queira bancar uma nova incursão
de como combater o terrorismo em cada um desses
por considerar um caso perdido, a China talvez tenha
países são compatíveis, isto é, se elas podem ser
que tomar a frente na guerra ao terror na região. O
harmonizadas e dirigir um esforço conjunto entre os
Talibã já atrasou as obras de Mes Aynak, gerando um
países da região.
grande prejuízo para as companhias chinesas, e a AlQaeda e o Estado Islâmico já declararam que a jihad
e
organizações
de
manchar
multilaterais.
sua
imagem
Ainda
mais
Bernardo Corais e Paulo Pulcherio são graduandos do Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ
mundial inclui Xinjiang. Sendo assim, o potencial para ataques terroristas mais contundentes à província podem aumentar num futuro em que os EUA e as potências ocidentais não mais interfiram no Oriente Médio e na Ásia. Caso o governo afegão de fato caia, a China poderia sem dúvida alguma contar com o apoio de outros atores igualmente interessados em manter a estabilidade da região, como a Índia, Rússia, Paquistão e os países da Ásia Central. A OCX é uma excelente
forma
de
integrar
esses
atores,
principalmente porém resta saber a eficiência com a qual ela conseguirá agir e qual a disposição desses atores em se comprometerem com a guerra ao terror na região. A China parece possuir duas formas de abordar o problema do terrorismo. Uma delas é a abordagem no âmbito doméstico, com cerceamento dos direitos, e abusos de poder para com os
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G N A R U S | 114
Artigo
FORMAS DE PERSUASÃO E CONTROLE DOS TRABALHADORES DOS TRABALHADORES DOS ENGENHOS NO IMEDIATO PÓS-ABOLIÇÃO (ZONA DA MATA SUL DE PERNAMBUCO 18841893). Por Maria Emília Vasconcelos dos Santos
Resumo: O objetivo fundamental deste artigo é tratar dos trabalhadores que atuaram no mundo dos engenhos, em uma conjuntura pré-abolição e pós-escravidão, a partir de um diálogo com os processos judiciais e registros policiais. Discutimos as relações estabelecidas entre os trabalhadores e os mecanismos utilizados pelos empregadores, senhores ou prepostos para explorar a força de trabalho de seus empregados e controlá-los, isso nas últimas décadas do século XIX, na Mata Sul de Pernambuco.
O
s senhores de engenho ficaram atentos
libertandos,
aos projetos, aos debates e à atuação
contemporâneos como despreparados para a
dos escravos e libertos ao longo da
liberdade. A situação da província pernambucana
década de 1880, notadamente, nas questões que
nas últimas décadas do século XIX não se resumia
envolveram o fim da escravidão na lavoura
às questões levantadas pela Abolição. A economia
açucareira. Eles protagonizaram maneiras de gerir
açucareira estava enfraquecida, obrigando os
e de controlar o trabalho dos cativos e ex-cativos,
plantadores a aumentar o uso da mão de obra e
com o objetivo de fazer prevalecer os interesses
reduzir o salário pago aos diaristas.1 No dia a dia
senhoriais e preservar a força de trabalho sob sua
dos
tutela. Temos, por exemplo, a lei do ventre livre,
implementadas para garantir a estabilidade da
que garantia aos proprietários a guarda dos
força de trabalho na região.
engenhos,
considerados
diversas
por
estratégias
alguns
foram
ingênuos até os 21 anos de idade. Medidas como essa foram adotadas para reafirmar direitos senhoriais sobre ex-escravos e para conduzir os
ZACARIAS, Audenice Alves dos Santos. Legalidade e autoridade: a implantação da Republica no Estado de Pernambuco (1889-1893). Dissertação de Mestrado, UFPE, 1
Recife, 2009.
G N A R U S | 115 O trabalho na lavoura canavieira, durante o
separação entre tempo de trabalho e tempo livre.
período da safra, exigia que os seus trabalhadores
Desse
fossem submetidos a rígidas disciplinas de
atrapalhassem o descanso dos trabalhadores no
trabalho. A pessoa responsável por supervisionar
interior das propriedades agrícolas. As autoridades
todas as atividades ligadas ao serviço do eito no
empenharam-se para que seus dirigidos se
interior dos engenhos era o feitor e essa
tornassem trabalhadores livres laboriosos, bem
nomenclatura permaneceu no período pós-
comportados. Procurava-se incutir o hábito do
abolição, pelo menos na documentação por nós
trabalho
acessada.
trabalhadores, pois, estando mais descansados,
Os feitores possuíam diversas atribuições no
modo,
evitavam-se
disciplinado
e
eventos
regular
entre
que
os
teriam melhor desempenho no serviço.
exercício de suas funções. Entre elas, a de expulsar
As pessoas responsáveis pela gerência dos
escravos fugidos oriundos de outras propriedades,
trabalhadores nos engenhos barganhavam bom
manter a organização dos trabalhos e competia
comportamento dos seus subordinados ao “ceder”
também a ele zelar pela conservação dos
autorização para que à noite eles realizassem
equipamentos e da estrutura física do engenho. De
reuniões. E, desse modo, pretendiam ganhar a
acordo com o Barão de Goicana, um feitor teria de
gratidão dos trabalhadores que deveriam retribuir
ter uma postura enérgica, notadamente, quando
também com bom comportamento. Sendo assim,
gerisse os serviços desempenhados por pessoas
eles se reuniam nos locais de moradia para
livres.2 O feitor tinha um papel chave para
conversar, cantar, brincar, dançar e consumir
conduzir as tarefas do engenho podendo,
bebidas alcoólicas. Tais reuniões por vezes
inclusive, executar expulsões ordenadas pelo dono
terminavam com o envolvimento em brigas e
do engenho com a prerrogativa de usar de
confusões.
violência contra os trabalhadores. Nem sempre os
poderiam desenvolver um senso de comunidade
feitores agiam conforme a lógica senhorial, por
ou identidade, como a de trabalhador de engenho
vezes eles escondiam as pequenas transgressões
que passava pelas mesmas agruras.
dos trabalhadores sob seu comando e assim impediam represálias senhoriais sobre os que cometiam furtos ou se afastavam do trabalho por alguma razão.
Mas
também,
nessas
ocasiões,
As reuniões, algumas delas festivas, nem sempre acabavam de forma cordial, mesmo entre pessoas que tinham uma relação mais próxima, dentro ou fora do ambiente de trabalho. Por exemplo, em
O feitor tinha que executar as ordens do
fevereiro de 1877, Simplício dos Santos e Manoel
proprietário, chamar a atenção dos trabalhadores
Francisco de Santana, moradores do Engenho
que porventura estivessem dispersos e não
Amizade, em Escada, saíram juntos para um
cumprissem com suas obrigações. Todas essas
divertimento no Engenho Soledade em Ipojuca e,
responsabilidades demonstram uma tentativa de
sem motivo justificado, os dois brigaram e se
controlar as tarefas realizadas pelos trabalhadores,
agrediram com facadas e cacetadas.3
ou melhor, desejava-se demarcar de forma clara a 3
GOUVÊA, Fernando da Cruz. “O Barão de Goicana e seu Diário”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Vol. L, Recife, 1978, p. 187. 2
Ofício da Delegacia de Escada 05 de fevereiro de 1877, folhas sem numeração, Fundo SSP, Delegacia de Polícia de Escada, nº 130 (1877-1887), APEJE.
G N A R U S | 116
Na Europa e nos Estados Unidos nesse período, os grupos dominantes e os intelectuais e profissionais a eles ligados elaboraram estratégias para levar a “disciplina ao domicílio”, como parte de uma tentativa de criar novos valores entre as classes populares, permitindo dessa forma um controle mais eficaz sobre seu trabalho.6
Durante o tempo de folga, os trabalhadores livres e libertos, antes de 1888 e depois da abolição, aproveitavam para se socializar com familiares e amigos, cultivar roças, viajar além dos limites dos engenhos, receber pagamento por trabalho extra, ou participar de festa com música e dança. Embora essas atividades tivessem propósitos e funções diversas, essas ocasiões serviam para reforçar as relações sociais e para se falar de assuntos cotidianos. Entretanto, não devemos ignorar a importância desses momentos de sociabilidade,
pois
eles
poderiam
ser
Slenes apontou para as mudanças nas ações disciplinares vividas no Brasil em fins do século XIX, notadamente no processo que comportou práticas de trabalho escravo e de trabalho livre, que sem dúvida, contribuíram para a conformação social do trabalhador nacional. O segundo elemento que nos leva a crer que nos
politicamente perigosos se o cenário apropriado surgisse para traduzir ideias em ações. No contexto social do final da escravidão e da ampliação da incorporação de formas de trabalho livre, emergiu a questão do controle sobre o tempo e a mobilidade dos trabalhadores livres. Essa mudança pode ser analisada no mesmo sentido proposto por Thompson, que argumentou que a mudança social ocorrida com a introdução da organização da produção capitalista impôs uma severa reestruturação dos hábitos de trabalho, produzindo novas disciplinas orientadoras das atividades dos trabalhadores, em especial dos ritmos de trabalho e da noção do tempo.4 De acordo com Robert Slenes, para quem viveu no final do século XIX, o disciplinamento do trabalhador livre não acontecia segundo um processo natural, mas dependia da tutela da
estabelecimentos produtores de açúcar buscava-se controlar o tempo livre dos trabalhadores é o fato de o feitor morar próximo às residências reservadas aos trabalhadores. Os alojamentos tornaram-se importantes locais de congraçamento e discussão entre os empregados dos engenhos. Nesse espaço, os trabalhadores expunham suas insatisfações uns aos outros e pensavam em alternativas para os seus problemas. Além de um local físico, o alojamento também é um local social, ou seja, um espaço destinado para o descanso e o controle dos trabalhadores. O feitor tinha ainda que garantir
alojamento, o silêncio durante o período de descanso, proibir a ingestão de bebidas alcoólicas, punir os trabalhadores que desrespeitassem as normas estabelecidas, tudo isso para garantir a produtividade dos trabalhadores.
burguesia e do Estado.5 O autor menciona ainda que: 4THOMPSON,
E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. Costumes em comum. São Paulo: Schwarcz, 1998. 5 SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e
recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p.141.
a vigilância do
A regularidade na escrita da palavra “feitor” não nos dá a dimensão dos movimentos dos seus significados ao longo do tempo. Ser feitor antes e depois da abolição, de acordo com os ofícios policiais 6
Idem.
e
processos
judiciais,
apresentou
G N A R U S | 117 mudanças no comportamento de quem exercia
Outra forma de controle utilizada nos engenhos
esta função junto aos sujeitos do seu entorno. Tal
eram as punições. As penalizações variavam e os
ocupação não foi exercida de maneira constante,
desviantes podiam receber penas menos rigorosas,
mas seguramente nos dois momentos ser feitor
por exemplo, ser chamado à atenção. As mais
comportava exercer grande autoridade sobre os
severas poderiam resultar no não recebimento do
seus subordinados, vigiar e gerir os seus trabalhos.
pagamento pelas atividades realizadas, a dispensa
Luiz Alberto Couceiro, por sua vez, argumenta que
do trabalho atual ou até a perda do local de
durante a escravidão os feitores tinham liberdade
moradia. A concessão de moradia e a ameaça de
para punir os escravos com maior violência, já para
supressão dessa permissão poderiam servir como
os homens livres outras regras de negociação das
objeto de pressão a ser exercida no caso de
condições de trabalho eram utilizadas.7 Supomos
desobediência a certas regras.
que a diferença se deu na diminuição da possibilidade de se punir os trabalhadores com castigos físicos mais severos no pós-abolição. Por fim, tal designação ocupacional comportou novos significados ao longo do tempo e articulou-se de acordo com as mudanças que as relações sociais operaram.
Isso pode ser observado na história de um morador do Engenho Prazeres, propriedade de Agostinho Alves de Barros. O senhor do engenho, tendo conhecimento de que um morador praticava furto, dirigiu-se a casa dele primeiro para advertilo do seu mau procedimento e aconselhá-lo a mudar de conduta. Caso contrário, não continuaria
As festividades e os hábitos de lazer como os
a morar no engenho.9
jogos de azar, o consumo de bebidas em excesso faziam parte da vida social dos trabalhadores, no entanto eram consideradas prejudiciais para o andamento das atividades laborais. Quando as atividades do tempo de lazer ocorressem, deveriam ser autorizadas, controladas e, em algumas
ocasiões,
foram
proprietários das unidades
propiciadas
pelos
agrícolas.8
Os jornaleiros migrantes que trabalhavam nos engenhos durante a safra de cana-de-açúcar tinham que arranjar um lugar para morar enquanto estavam fora de suas localidades de origem. Ceder um alojamento acabava sendo um bom negócio para os donos dos engenhos. Dessa forma, os senhores teriam um contingente de trabalhadores com alguma experiência com a lida a sua disposição em qualquer dia e horário.
7
COUCEIRO, Luiz Alberto. “A disparada do burro e a cartilha do feitor: lógicas morais na construção de redes de sociabilidades entre os escravos e livres em fazendas do Sudeste, 1860-1888”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2003, V. 46, n. 1. 8 BRUSANTIN, Beatriz de Miranda. Capitães e Mateus:
relações sociais e culturas festivas e de luta dos trabalhadores
dos engenhos da mata norte de Pernambuco (Comarca de Nazareth – 1870/1888). Tese de Doutorado, Campinas, SP, 2011.
G N A R U S | 118 e solteiros.10 A terminologia senzala, para indicar o alojamento dos trabalhadores residentes nos engenhos, permaneceu no imediato pós-abolição, sugerindo que os trabalhadores dos engenhos que residiam nestes espaços ocupassem posições “baixas” nessa sociedade. As modalidades de habitação podiam ser as senzalas ou os casebres espalhados pelo engenho. Gileno de Carli, em 194011, observou que as moradias dos homens que viviam nas lidas dos canaviais ainda eram semelhantes às senzalas do tempo do cativeiro. Em alguns engenhos, as senzalas foram construídas no estilo barracão ou eram pequenas casinhas; em outros engenhos podiam coexistir os dois tipos de construção. O referido autor apresentou em seu livro uma foto de uma moradia de trabalhadores de engenho, que ele indica como sendo uma espécie de senzala com elementos africanos. Os trabalhadores locais deviam possuir uma casa modesta, com piso de terra batida, semelhante à foto apresentada no livro de Gileno de Carli. Em suma, os lugares e as condições onde habitavam os trabalhadores
dos
engenhos,
fossem
eles
temporários ou permanentes, eram parecidos com as residências dos escravos. De acordo com Manoel Correia de Andrade, os Casas de trabalhadores dos engenhos. Fonte: DE CARLI, Gileno. Aspectos açucareiros de Pernambuco. Rio de Janeiro, s.n., 1940, p.27.
viajantes que estiveram pelo Norte do Brasil, no início do século XIX, e passaram pelos engenhos açucareiros observaram a existência de um
As senzalas dos engenhos, mesmo depois da
número significativo de trabalhadores conhecidos
abolição, serviram como moradias para os
como moradores. Os proprietários cediam a esses
trabalhadores. No processo judicial em que a
trabalhadores uma pequena extensão de terra nas
senzala foi mencionada, esse espaço serviu como
áreas periféricas dos engenhos, denominados
local de moradia para trabalhadores de temporada
sítios, e também o direito de construir uma casa e
9
Ofício da Delegacia de Escada 11 de novembro de 1878, folhas sem numeração, Fundo SSP, Delegacia de Polícia de Escada, nº 130 (1877-1887), APEJE.
10
Juízo de Direito. Autora – A Justiça Pública Reu – Jeronymo Leonardo da Silva. Ipojca, 1889, MJPE. 11 DE CARLI, Gileno. Aspectos açucareiros de Pernambuco. Rio de Janeiro, s.n., 1940.
G N A R U S | 119 de cultivar gêneros alimentícios ou ainda cana-de-
sobre a mão de obra. De acordo com Moacir
açúcar para ser fornecida ao engenho. Em
Palmeira, nos engenhos do Nordeste, no século
contrapartida, tais homens e mulheres deviam
XX, a permissão para morar em uma casa e para
trabalhar de três a quatro dias semanais no
pequenos cultivos dentro do engenho trazia junto
engenho em períodos normais e com uma
a obrigação de prestação de trabalho. Diante da
dedicação mais intensa nos períodos do corte e
iminência da abolição da escravidão em 1888, o
moagem da cana.12
grupo senhorial temia não poder mais contar com
A concessão de moradias no interior dos engenhos para seus trabalhadores foi possível, segundo Cristiano Christllino13, por conta da disponibilidade de terra livre dentro das áreas canavieiras. O autor questiona o que faziam os senhores de engenho com 80% de suas terras, já que somente 20% delas
eram
utilizadas no cultivo da
cana.
seus dependentes. Tal prática visava evitar que, a qualquer
insatisfação,
os
empregados
abandonassem os postos de trabalho na lavoura. Para manter os laços, mesmo que mais fracos, era necessário que patrões e empregados cumprissem minimamente
suas
obrigações.
As
relações
clientelísticas,
grande parte destas terras ociosas foi utilizada
para
garantir
maior dos
trabalhadores, por meio da concessão de moradia. No contexto de final do regime imperial e da implementação da República, as
ou
seja, o costume de trocar favores por obediência
Provavelmente,
fidelidade
o serviço leal e devotado dos escravizados e de
lealdade
e foi
um
padrão estruturante do
sistema
de
morada. Com isso não queremos dizer que nesse tipo de relação dispensasse concessões, acordos, e que os trabalhadores livres ficassem desprovidos de poder de negociação.
relações de dependência e poder tiveram de ser
Nem sempre as lealdades foram respeitadas e, a
rearranjadas. As elites políticas que disputavam o
depender dos interesses em jogo, os laços
poder, influenciadas pelas oscilações na economia,
estabelecidos entre trabalhadores e senhores
readaptaram as relações de mando e dependência.
poderiam ser desatados. Esse foi o caso do preto
O sistema de moradia estabelecido nas últimas décadas do século XIX permitira, sob novas bases, a manutenção do poder dos senhores de engenho
Felipe Ferreira, que se dizia um trabalhador morigerado e que foi lavrador por 16 anos em um engenho no município do Cabo. O proprietário pediu que ele se retirasse da casa que ficava em
12
ANDRADE, Manoel Correia de. “Transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Nordeste açucareiro”. Revista Estudos Econômicos, São Paulo - USP, v.13, nº 1, 1983, p. 77. 13 CHRISTILLINO, Cristiano Luís. “A Zona da Mara Pernambucana e a Serra Gaúcha: apontamentos sobre a
terras do engenho para dar a outro morador. Felipe, tentando evitar a sua saída, lembrou que estrutura fundiária em meados do século XIX”. CLIO – Revista
G N A R U S | 120 tinha sido escravo do pai do dono do engenho e
A relação dos agregados, por exemplo, supunha
que, mesmo alforriado, não quis abandoná-lo e,
quase que inevitavelmente vínculo pessoal com o
por gratidão, tratou dele até a morte. Ele tinha em
proprietário da unidade produtiva ou com uma
mente que tanta dedicação poderia evitar alguns
família que residia nela, dentro da lógica
constrangimentos. Contudo, o preto Felipe não foi
paternalista.
atendido e, quando cuidava de suas plantações, foi
moradores atendia a múltiplos propósitos, a
agredido e obrigado a se retirar da casa, pois o
acumulação de mão de obra nos parece a mais
novo morador já se encontrava à porta, com todos
evidente. Esses moradores podiam também
os seus objetos, para se mudar14 Práticas como essa
cumprir a função de eleitores ou compor uma
faziam
e
milícia particular. Qualquer que fosse a situação
comportamentos em que aqueles que ocupavam
do agregado, as vantagens nesse tipo de vínculo
posições de poder e status hierarquicamente
eram mútuas, apesar de não excluir explorações e
superiores
desmandos.
parte
do
alijavam
jogo
os
de
interesses
trabalhadores
rurais
A
recepção
de
agregados
e
egressos do cativeiro e seus descendentes de “direitos” conquistados durante a escravidão. Talvez o liberto Felipe Ferreira não estivesse correspondendo às expectativas dessa rede hierárquica, e por isso perdeu o “direito” às concessões obtidas. Existiam expectativas e obrigações de ambas as partes. Os moradores, ao trabalharem nos engenhos, esperavam em troca proteção e salário. Os senhores, por sua parte, exigiam a prestação de serviço contínuo e fidelidade. A expectativa patronal era de dedicação absoluta ao trabalho, não permitindo indisposições e folgas. Os trabalhadores livres usufruíram da prerrogativa da mobilidade a fim de estabelecer e negociar novas relações de trabalho e tratamento, em uma sociedade ainda marcada profundamente pela escravidão. Os trabalhadores não aceitavam passivamente os excessos por parte dos seus patrões ou das pessoas responsáveis por gerenciar a sua lide, por isso indivíduos livres abandonavam seus postos quando julgavam que enfrentavam situações intoleráveis. de Pesquisa Histórica, n.30.2, Recife, UFPE, 2013. 14 Jornal do Recife, 14 de fevereiro de 1889, p.2. FUNDAJ.
Maria Emília Vasconcelos dos Santos é Doutora em História Social da Cultura pela Unicamp e professora substituta no Centro de Educação da UFPE e da FBV. mariaemiliavas@hotmail.com
G N A R U S | 121
Artigo
O CARNAVAL CARIOCA DENTRO DA CONCEPÇÃO DA RESISTÊNCIA DO POVO NEGRO (DESDE 1850). Por Carlos Augusto Alves Santana
S
abemos que existe uma vasta historiografia
negro, não poderia ser o centro do processo de
que aborda o tema Carnaval Carioca num
desenvolvimento de qualquer nação, pois era
viés narrativo que fortalece uma concepção
considerado inferior de acordo com a teoria de
oficial, que o carnaval carioca é fruto do processo
Herbert Spencer.3 Outra teoria desenvolvida por
cultural da miscigenação da população Brasileira.1
Charles Darwin4 vai se consolidar na formulação
Procuramos caracterizar o papel central que a
científica segundo a qual, só as espécies mais fortes
cultura negra teve na formação do carnaval
se manteriam, as mais fracas desapareceriam ao
Carioca, desde o período Imperial na capital do
longo do tempo. No Brasil estas teorias tiveram um
Império, dando elementos históricos, que possam
amplo apoio de vários setores da sociedade como:
levar a uma reflexão, a partir da metade do século
Político, Intelectual, Estadista, etc.5.
XIX, quando surgem as teorias do racismo científico criadas na Europa,2 influenciando a elite nacional brasileira daquele período. Estas teorias vindas da Europa caracterizavam cientificamente que o povo
FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro, Ediouro, 2004, Pág. 246 a 279. 2 OLIVEIRA, Lidiany Cristina de. As Teorias raciais e o Negro do Pós - abolição às Primeiras Décadas do Século XX / Campinas, SP: [s.n.], 2005. Orientador: José Luís Sanfelice. Trabalho de 1
Neste mesmo período o carnaval Francês, vai sofrer uma mudança, as brincadeiras que ocorriam na festa de carnaval que tivessem no seu conteúdo elementos primitivos teriam que deixar de ser conclusão de curso (graduação) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Pág. 06 a 11. 3 Idem. 4 Idem. 5 Idem.
G N A R U S | 122
praticadas, no intuito de se tornar uma “festa
organizada através do calendário cristão. Como
civilizada”. No Brasil, a elite vai também adotar a
estava a conjuntura na Europa na metade do século
mesma postura, desenvolvendo várias ações no
XIX e qual a sua influência na corte Imperial
campo jurídico para eliminar todas as brincadeiras
Brasileira em relação à festa do carnaval neste
que representassem o atraso da população
mesmo período. Procuraremos desenvolver uma
Brasileira, nelas o principal alvo era o entrudo, pois
reflexão a partir da metade do século XIX, e início
existia a necessidade de passar à Europa que na
do século XX, na capital da República, como o povo
nação brasileira estava sendo gestada uma futura
negro mantinha suas tradições culturais na festa do
nação civilizada.6
carnaval, quando
Utilizaremos do método cientifico desenvolvido por Carlo Ginzburg7, através do seu livro “O Queijo e os Vermes”, que faz uma investigação de Menocchio, um moleiro do século XVI, em uma micro-história para poder compreender a macro história, Também recorreremos ao método da História Comparada a partir da narrativa de José D’Assuncão de Barros8 no seu livro “ Historia Comparada”, quando demonstrarmos a diferença entre o carnaval na Corte Imperial Brasileira e o carnaval Europeu. Vamos caracterizar o carnaval carioca, a partir da metade do século XIX na capital da corte Brasileira, e posterior a capital da República, e na capital do Rio de Janeiro, para
a repressão a algumas
manifestações culturais eram enquadradas no código penal9, como crime. Como a reforma do Prefeito Pereira Passos10, influenciou no carnaval na Capital da República. Quando surgem as escolas de sambas e as transformações ocorridas na era do governo de Getúlio Vargas11 no carnaval carioca. Vamos caracterizar em que momento acontece o chamado carnaval o moderno12. Não deixaremos de abordar em que momento os bicheiros de jogo de bicho13 começam a dirigir as escolas de samba Carioca, qual foram os fatores que levaram eles a tomar esta iniciativa. Vamos terminar o artigo fazendo uma reflexão como esta a festa de carnaval Carioca na atualidade.
podermos refletir através da festa do carnaval como
Segundo Felipe Ferreira existem várias versões
o povo negro conseguiu manter algumas tradições
sobre a origem da festa do carnaval, só a partir dos
culturais.
primeiros séculos da era cristã que se tem as
Começaremos abordando o surgimento da festa de carnaval em que região do mundo tinha este tipo de festa, quando deixa de ser pagã e se torna 6
FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais. O Surgimento do Carnaval Carioca no Século XIX e Outras Questões Carnavalescas. Rio de Janeiro, UFRJ, 2005. Pág. 55- 76. 7 GINBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as Ideias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição; Tradução: Maria Betânia Amoroso; tradução dos poemas José Paulo Paes; Revisão Técnica: Hilário Franco Junior. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. 8 BARROS, José D'Assunção. História Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014. 9 ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro, Oficina do Livro, 1991. Pág. 29-30. 10 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2° Edição, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio
primeiras informações como era esta festa e quais os territórios que criaram esta festividade14. Na festa que passou a ser chamada de carnaval as de Janeiro Secretaria Municipal de Cultura Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural Divisão de Editoração cientifica. Pág. 45 a 61. 11 SOIHET, Raquel. A Subversão Pelo Riso: Estudo sobre o Carnaval da Belle Époque ao Tempo de Vargas. / Rachel Soihet 2° Edição Revisada e Ampliada. Uberlândia, EDUFU, 2008. Pág. 55 a 208. 12 ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro, Oficina do Livro, 1991. Pág. 183 a 194 13 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 16 a 20. 14 Idem
G N A R U S | 123
pessoas tinham o hábito de usar máscara para se
por 40 dias de jejum, porém foi no “Sínodo de
fantasiar,
algumas
Benevento”, convocado pelo Papa Urbano II em
características coletivas no comportamento da
1091, para definir o início em que os cristãos
população que brincava no carnaval como:
começariam a praticar a purificação da alma no
bebedeira; comilança; farra; banzé; confusão; todo
processo de jejuar durante 40 dias, este período
este comportamento era exagerado15. Este tipo de
ficou conhecido como Quaresma, sabendo que
festa de acordo com Hiram Araujo vai surgir na
neste dias os cristãos tem que abrir mão dos
antiguidade no Egito; Mesopotâmia, no território
prazeres
Grego-Roma. “Assim no período compreendido
brincadeiras, relações sexuais, bebedeiras e
entre 16 e 18 de dezembro, quando o retorno do sol
comilanças. Foi determinado pela Igreja no final do
permitia a volta aos trabalhos nos campos,
“Sínodo Benevento”, que o primeiro dia da
comemoravam-se as Saturnais, homenageando a
Quaresma, começaria a contar a partir da quarta
memória do deus Saturno.16” . Existia também na
feira de cinzas e terminando no domingo de Páscoa,
além
desta,
existiam
antiguidade homenagem vários
materiais
e
carnais
como
festas,
totalizando os 40 a
Deuses,
dias
da
Quaresma,18
na
como a Deusa Isis
Europa,
e o touro Ápis. A
período que ficou
igreja
nos
estabelecido para
primeiros anos de
espiritualização
cristianismo classifica
dos esta
neste
cristãos,
temperatura
a é
forma de festa
muito
baixa
como uma prática
provocando
demoníaca,
frio intenso, por
um
“Paganismo”, estas brincadeiras que surgiram nas
causa deste clima a população Europeia, criou um
festas de carnaval são fruto de uma iniciativa
hábito de comer “Uma boa maminha assada, um
popular, contrapondo a cultura oficial17. Há muita
lombinho na brasa, um torresminho crocante,” este
dificuldade quando se tenta definir a origem do
costume permanece até hoje. Mas nos dias que
carnaval na historiografia moderna. A igreja no
antecediam o início da Quaresma, a população
século VII, através do papa Gregório I, determinava
fazia tudo em excesso nas festividades para os
que todos cristãos, em um determinado período do
Italianos estes dias que antecedem a Quaresma
ano deveria se voltar totalmente para à vida
eram chamados de “Carnevale” ou “Carnavale”,
espiritual, aberto mão da vida cotidiana fazendo o
“Deus da Carne”, esta é uma das definições da
mesmo sacrifício que Jesus Cristo, se submetendo
15
ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1991. Pág. 19 a 20 16 Idem.
FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 25 a 39. 18 Idem. 17
G N A R U S | 124
origem da palavra Carnaval, segundo Hiram
que achassem agrupamento de mais de quatro
Araujo19
escravos (Título 6,Parágrafo 12)”.
Para podermos refletir sobre o carnaval na Capital
Segundo Martha Abreu,21 o “Código de Postura”
da Corte, no início do século XIX, é importante
vai mexer com todas as festas populares, atingindo
realizar
as
em cheio as festas tradicionais promovidas pelo
transformações que o carnaval Parisiense estava
povo negro. Para o professor e escritor Flávio dos
passando no período, por que o país francês, depois
Santos Gomes, esta década de 30 do século XIX é o
da sua Revolução no final do século XVIII, passa a
período em que ocorreram os grandes levantes de
ser o centro das formulações de desenvolvimento
escravos na Capital do Império22, sendo um dos
econômico e cultural para uma boa parte do
fatores do endurecimento da lei do “Código de
mundo, esta nova concepção desenvolvimentista
Postura”. A elite Brasileira que quer se tornar
de sociedade a partir da França vai impor que a
Francesa em todos os aspectos, não poderia ter um
população modifique o comportamento nos dias de
carnaval
comemoração dos festivais em especial o carnaval
caracterizadas por um comportamento primitivo da
em Paris, não podendo se utilizar de brincadeiras
população como a brincadeira do entrudo23, e vai
que representassem o atraso, como as brincadeiras
desencadear um processo de estimular outras novas
que tinham características “bárbaras”, por que um
formas de brincadeiras nas festas do carnaval,24 este
país que pretende prosperar intelectualmente,
procedimento seria seguido nas outras Capitais da
politicamente, economicamente, culturalmente, a
Corte Imperial, pois já havia uma lei que orientava
primeira coisa a fazer é preparar a população para
como deveria ser a postura das pessoas no dia-dia
se tornar “Civilizada20”, está prática fica nítida na
na sociedade Brasileira. Neste momento vão surgir
base central do “Racismo Científico”, que vai
os primeiros bailes de máscaras, que já eram uma
influenciar a elite da corte Imperial Brasileira em
prática que ocorria no carnaval Parisiense, que
vários setores da sociedade, sendo até criado um
passou ao longo dos anos a fazer parte do nosso
“código de Postura”, em 1930 e em 1938 este
carnaval. Outra iniciativa é a criação dos clubes
mesmo sofrerá uma revisão para aumentar a carga
Carnavalescos, as “Sociedades”, em 1854 na Capital
de punição para aqueles que não cumprissem as leis
do Império estas sociedades vão ser o marco
do código, como por exemplo: ” Proibir a existência
transformador do carnaval de rua a partir do seu
das casas conhecida por Zuncu e Batuques, (Título
primeiro desfile após a sua fundação.
uma
abordagem
sobre
quais
04, no Parágrafo 7); Multa em trinta Réis aos donos das tavernas ou qualquer outra casa pública, em
em
que
as
brincadeiras
eram
O romancista José de Alencar, pública uma crônica no jornal “Correio Mercantil”, em 1855, relatando a festa de carnaval na Capital da Corte do
19
ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro: Oficina do Livro: 1991. Pág. 29 a 38. 20 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 104 a 126. 21 ABREU, Martha O Império do Divino – Festas Regionais e Culturas Populares no Rio de Janeiro 1830 a 1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: São Paulo: FAPESP, 1999. Pág. 195 a 224.
22
Idem. FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 104 a 126. 24 MORAIS, Eneida. 1904 – 1971. História do Carnaval Carioca Revista e Atualizada, por Haroldo Costa: Rio de Janeiro: Record: 1987. Pág. 29 a 38. 23
G N A R U S | 125
Império, criticando a brincadeira de se jogar limão-
Viva a bebedeira.
de-cheiro em pessoas (Entrudo), mas vai fazer um
Nos dias de carnaval26!... Dando continuidade de resistência de cunho
elogio à criação dos clubes Carnavalescos: ”Muitas coisas se preparam este ano para
os três dias de carnaval. Uma sociedade criada o ano passado e que conta já perto de oitenta sócios, todas as pessoas de boa companhia, deve fazer no domingo a sua grande promenade pelas ruas da cidade”25.
“Na tarde de segunda – feira, em vez do passeio pelas ruas da cidade, os máscaras se reunião no Passeio Público e aí passarão a tarde como se passa uma tarde de carnaval em Itália, distribuindo flores, confete e intrigando os conhecidos e amigos.”
popular no carnaval na Capital da Corte do Império, há um fator que vai ampliar esta rebeldia, é a chegada de negros forros que vem na maioria da província da Bahia, atrás de melhores condições de vida, com eles trazem as suas festas que eram praticadas nos seus lugares de moradia, muitas destas festas guardavam a tradição de algumas regiões do continente Africano, trazida pelos escravos para Brasil. Quem vai narrar com muita propriedade a vinda dos negros oriundos Bahia
Segundo Eneida Morais, a sociedade “Congresso
para a Capital da Corte é Roberto Moura, vai
das Sumidades Carnavalescas” foi um marco na
procurar afirmar que estes negros que vieram da
transformação do carnaval a partir do período, até
Bahia vão se utilizar das festas religiosas para inserir
o Imperador D. Pedro II e sua família, foram ao
as suas tradições culturais, eles vão participar
desfile para prestigiar o grande acontecimento que
ativamente das procissões de comemoração em
iria transformar por muito anos o carnaval na
homenagem ao dia de santos como São Sebastião,
Capital da Corte. Mas o povo pobre que na metade
nossa Senhora da Conceição, Santo Antônio,
século XIX, em sua maioria era de negros libertos ou
Santana, Divino Espírito santo, etc. “Mas para
escravos e uma parcela de portugueses, vai cair na
Moura, os negros Baiano se utilizam também da
brincadeira do Zé Pereira, uma brincadeira que é
festa natalina para fazer as suas manifestações
originaria de Portugal, trazido pelo povo pobre,
culturais como: ”cheganças, bailes, pastoris,
que nos dias de carnaval saíam as ruas tocando
bumba-meu boi e cucumbis. Porém uma tradição
zabumba e tambores, sem necessidade de fantasias,
que veio da Bahia e que era celebrado no dia 6 de
era só entrar na brincadeira da forma que estivesse
janeiro de cada ano, o dia de Reis, ficou mantida
no momento, e esta brincadeira no dia de carnaval
desde da metade do século XIX até algumas
passa por todo segundo período do Império, e esta
décadas do século XX, na Capital da República, os
até hoje, no chamado bloco de sujo.
negros ao participarem desta festividade, se
25
“Viva o Zé Pereira
mascaravam vestindo uma fantasia e uma pessoa
Viva o Zé Pereira.
levava um estandarte que continha o enredo que
Viva o Zé Pereira.
seria homenageado, a passeata era acompanhada
Que a ninguém faz mal!...
de uma orquestra composta por “violão, violas,
Viva a bebedeira.
ganzás, pratos, castanholas e as vezes flautas”.
Idem. Pág. 44 a 77.
26
ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro: Oficina do Livro: 1991. Pág. 95 a 96.
G N A R U S | 126
Segundo Hiram Araújo, havia uma pessoa junto às
Social28, na busca de criar um padrão de sociedade,
tias Baianas que terá um papel importante na
como ponto de partida na civilização das pessoas
criação de vários Ranchos carnavalescos, é o
para conseguir se constituir em um país com
Pernambucano Hilário Jovino Ferreira, que levará
perspectiva de se desenvolver em todos os aspectos
pela primeira vez um Rancho para desfilar nos dias
da sociedade, a elite Brasileira continuava a copiar
de carnaval na Capital da corte. Hiram Araújo, vai
as ideias Francesas. Segundo Carlos Medeiro, o
se utilizar no livro em que ele é o organizador “
primeiro governo Republicano, vai se caracterizar
Memória
definição
pelo total incentivo de estimular a vinda de
desenvolvida por Muniz Sodré, “Os ranchos
imigrantes Europeus para o país, fortalecendo a
aproveitaram a festa europeia do carnaval para
mesma atitude do governo Imperial29. Com a
apropriar dos cordões a tática de penetração
estação da estrada de ferro da Penha, o povo negro
coletiva (espacial, temporária) no território urbano
vai ocupar por muitos anos uma festa religiosa
e afirmar através da música e dança um aspecto de
Portuguesa, à festa da Penha, que se tornou um
identidade cultura negra.”27
local de resistência das tradições da cultura
do
Carnaval”
de
uma
O início do regime Republicano Brasileiro, vai dar continuidade
às
teorias
raciais
como
a
Evolucionista, Racismo social e o Darwinismo
popular, com predominância maior das tradições do povo negro que vieram da Bahia, ou de outra região do Nordeste do país, neste período final do século XIX e início do XX, segundo Roberto Moura,
27
Idem. Paginas 167 a 174. Cristina de. As Teorias raciais e o Negro do Pós - abolição às Primeiras Décadas do Século XX / Campinas, SP: [s.n.], 2005. Orientador: José Luís Sanfelice. Trabalho de 28 OLIVEIRA, Lidiany
conclusão de curso (graduação) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Pág. 12 a 17. 29 MEDEIROS, Carlos Alberto, Na Lei e na Raça, Legislação e Relação Raciais – Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: DP&A: 2004. Pág. 43 a 57.
G N A R U S | 127
“as mulheres baianas (Tias Baianas, como exemplo
Central, a elite enganou-se, quase todas as
Tia Ciata); têm um papel fundamental na
manifestações
organização da festa,” Mais uma vez são essas
presente no carnaval da Avenida Central, mas o
mulheres o esteio do grupo, criando as condições
carnaval popular vai se concentrar na Praça da
para a festa, os homens chegando à tarde com seus
República, especialmente, na Praça XIV, onde o
instrumentos de percussão, pandeiro e tamborins a
carnaval era em tudo diferente do carnaval da
que se juntam pratos e colheres na roda do samba.”
Avenida. Para lá afluíam os cordões com seus
A festa da Penha, é um dos fatores que iram
componentes vestidos de cores berrantes, as caras
influenciar no carnaval da Capital República, pois
cobertas de zarcão, os capacetes pomposos
era lá que alguns músicos e compositores
repletos de plumas, tocando os mais variados
apresentavam as suas composições para o próximo
instrumentos, desde os primitivos, reco- reco, viola,
carnaval, como Donga, Caninha, Pixinguinha30.
pinho, e até a flauta de 13 chaves e a requinta.
Mais nem tudo era alegria, pois exista uma
Ainda ás duas horas da manhã de Terça-feira, podia
repressão policial contra algumas manifestações
se ver nas calçadas da ampla praça um cordão desse
culturais ligadas ao povo negro, por exemplo: A
gênero cansado, estrompado e rouco, as violas de
capoeira e o batuque. O início do Século XX, com a
cordas bambas, as gaitas fanhosas32. Nos anos 20,
reforma urbana do Prefeito Pereira Passos, que
logo no início vai ocorrer a semana da Arte
ficou conhecida como “Belle Époque”, o carnaval
Moderna, quando foi discutido uma nova
na Cidade do Rio de Janeiro, também vai sofrer
concepção da criação de uma Nação Brasileira, que
algumas transformações, logo após a inauguração
incorporasse os três elementos que fundaram a
da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), o
sociedade Brasileira, o negro, índio e o branco,
carnaval carioca passa a ser na Avenida Central,
quem desenvolve este tema é o professor Antonio
antes o carnaval era festejado na Rua do Ouvidor,
Sérgio Alfredo Guimarães. Segundo Rachel Soihet,
era nesta rua que passavam os Cordões, os
os anos 20 serão o de reconhecimento da cultura
Cucumbis Africanos, Zé- Pereiras e os desfile das
negra, ”O samba acabou predominando e
grandes Sociedades31. O Carnaval elegante teria se
marcando sua presença nos cordões e blocos
retirado
sociedades
carnavalesco”, um dos fatores que ajudam a tornar
carnavalescas e para alguns teatros, abandonando
a música de Samba e seu ritmo popular foi a criação
as ruas. A reforma urbana de Pereira Passos estava
das rádios e o surgimento dos discos, que se tornam
dentro do projeto de tornar o carnaval uma festa
grande veículo de comunicação. No final dos anos
civilizada, a elite achava que com a inauguração da
20, um grupo de jovens filhos de maioria de filhos
Avenida Central, algumas manifestações culturais
de negros que vieram da Bahia, para Rio de Janeiro,
que participavam do carnaval promovido na Rua do
a partir do meio do século XIX, vai criar um dos
Ouvidor, não iriam se deslocar para a Avenida
maiores símbolo do carnaval as Escolas de Samba,
30
31
para
os
salões
das
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2° Edição, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Cultura Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural Divisão de Editoração cientifica. Pág. 108 a 115.
populares,
passaram
a
estar
SOIHET, Raquel. A Subversão Pelo Riso: Estudo sobre o Carnaval da Belle Époque ao Tempo de Vargas. / Rachel Soihet 2° Edição Revisada e Ampliada. Uberlândia, EDUFU, 2008. Pág. 59 a 77. 32 Idem. Pagina 69.
G N A R U S | 128
que serão o ponto máximo da cultura popular nos
que começou no final do anos 50, com a vinda de
anos 30, segundo Hiram Araújo, existem várias
setores da classe média para fazer parte da
versões de como surge o nome Escola de Samba, a
estrutura da Escola de Samba33. Mas é Hiram de
primeira Escola de Samba, que foi criada é a “Deixa
Araújo, que caracteriza o momento fundamental
Eu
no bairro do Estácio, depois a
desta transformação, ”Nelson de Andrade, que
Mangueira, Portela, Salgueiro, Vizinha Faladeira e
havia assumido a presidência da escola de samba,
Império Serrano, em Madureira no morro
da
em fins da década de 50, convida os artistas
Serrinha. Os anos 30 vão ser caracterizados como o
plásticos Dirceu e Maria Louise Nery, para fazem o
período
sociedade
carnaval Debret, em 1959, e consegue o segundo
Brasileira, fazendo com que as ideias formuladas na
lugar. O jurado Fernando Pamplona fica encantado
Semana da Arte Moderna, sejam postas em prática,
com a apresentação da escola, Nelson, então, o
e as manifestações culturais populares, como o
convida para desenvolver um trabalho artístico na
Samba e as Escola de Samba,
passam a ser
escola. Fernando organiza a equipe com Arlindo
utilizados como veículo de integração para uma
Rodrigues, Nilton Sá, Dirceu e Marie Louise Nery e
“consciência nacionalista”, como elemento de
inicia uma verdadeira revolução na temática e no
unificação
segundo
tratamento plástico- visual34.” Esta transformação
Guimarães surge a partir de 1937, no governo
no campo estético Artístico, obriga a escolas, se
Getúlio Vargas, mas dá-se o fortalecimento da
adequar a uma nova realidade que eles não
teoria da Democracia Racial, em alguns momentos
estavam preparados financeiramente, pois as
e setores da sociedade esta concepção é invocada
estruturas do desfile da escola de samba eram fruto
até hoje.
de contribuições obtidas através do popular “livro
Falar”,
das
da
transformações
futura
nação,
na
que
Voltando ao carnaval Carioca, as Escolas de Samba na década de 30, vão trabalhar na procura de sua identidade, procurando diferenciar dos Cordões e dos Ranchos, mas segundo Felipe Ferreira, o carnaval Carioca nos anos 40, será o modelo a ser seguido nas outras Capitais do país, tendo o desfile das Escolas de Samba, como o elemento principal do festejo nos dias de carnaval, nos anos 50 está consolidado toda a chamada ”espinha dorsal” na construção do desfile de uma Escola de Samba, que são: enredo, samba -deenredo, alegorias e fantasia, os anos 50, de acordo com Cavalcante, será também a formação da maior transformação dos desfiles das Escolas de Samba, CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval Carioca: Dos Bastidores ao Desfile. 3° Edição Revista e 33
Ampliada; Rio de Janeiro: UFRJ: 2006. Pág. 39 a 43.
de ouro”, passado no comércio, e com ajuda de empresários locais e também dos bicheiros, além da participação de seus integrantes que em sua maioria eram pobres. Segundo Cavalcanti, na sua narrativa no seu livro “Carnaval carioca dos bastidores ao desfile”, ele vai dedicar um capítulo do livro sobre o jogo de bicho, que passa a ser a mola propulsora da nova engrenagem das escolas de samba, vai utilizar seu trabalho de pesquisa sobre a Mocidade Independente de Padre Miguel, caracterizado na entrada do bicheiro Castor de Andrade na agremiação, que não é diferente das outras escolas, ela nos leva a refletir o que interessava para o bicheiro, “A vitória e a boa
34
Idem. Pág. 45 a 53.
G N A R U S | 129
colocação da escola correspondiam a outra vitória”:
de carnaval. Sabemos que o carnaval Carioca está
significava o reconhecimento do valor social
inserido dentro da indústria do entretenimento do
positivo do jogo do bicho na vida do Rio de
turismo
Janeiro35. Para a comunidade era a satisfação de ver
econômica, como deixa claro Cavalcante. Porém
sua escola campeã ou podendo desfilar em iguais
não podemos deixar de lembrar que o símbolo
condições com as demais escolas consideradas
central da festa carnavalesca no Rio de Janeiro é o
grandes (as quais, quase todas elas têm o jogo de
ritmo e as músicas do Samba e a alegria do povo
bicho, por trás).
Carioca, que é fruto da cultura do povo negro. Por
O bicheiro, dono da banca do bairro ou da região, costuma ser o patrono da escola de samba. No ano de 1984, ano de inauguração a passarela do samba e de criação da liga de Liga Independente da Escola de Samba (Liesa), que passa a controlar quase todo o festejo do carnaval na Marquês de Sapucaí, três
numa
visão
predominantemente
isso, onde houver um batuque de carnaval Carioca haverá uma resistência do povo negro. Esperamos ter conseguido estimular as pessoas que leram o artigo acima, a refletir em que outros setores da sociedade Brasileira o povo negro resistiu com as suas tradições culturais.
bicheiros vão ser as pessoas que iriam controlar a Liesa, Castor de Andrade, Capitão Guimarães e Anísio Abraão David. De acordo com Cavalcante,
“existia um interesse de criar uma entidade que pudesse dar todo respaldo jurídico para controlar o desfile das escolas de samba, economicamente e politicamente”. A liga fundou a sua própria gravadora, fez um contrato com RCA, e logo de começo venderam-se cerca de um milhão e duzentas mil cópias no ano36, esta nova forma de organizar o desfile das escolas de samba do carnaval Carioca, vai influenciar internamente nas escolas de samba, fazendo que o interesse econômico sobressaia em detrimento do aspecto cultural da festa carnavalesca. Em nossas considerações finais, gostaríamos de deixar uma reflexão, o carnaval Carioca não esta
Carlos Augusto Alves Santana é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e atualmente Pós Graduando em História da África na mesma instituição.
Bibliografia ARAÚJO, Hiram, coord, Antônio de Pádua Vieira (Luiz Antônio); Carlos César Ribeiro, José Luís Azevedo, Ivan Cavalcanti Proença- Memória do Carnaval- Rio de Janeiro: Oficina do Livro,1991. ABREU, Martha, O Império do Divino: Festas
Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900- Nova Fronteira; São Paulo:
Fapsp,1999. BARROS, José D’Assunção, História ComparadaPetrópolis, RJ: Vozes, 2014. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro, Carnaval Carioca dos Bastidores ao Desfile: 3º. Edição. Ver. Ampliada.- Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. DINIZ, Alan, Alexandre Medeiros, Fábio Fabato: As
Três Irmãs: Como um Trio de Penetras “ Arrombaram a Festa”. 1º Edição: Rio de Janeiro:
reduzido ao desfile das escolas de samba, a cada ano que passa inúmeros blocos são criados em todas as regiões da Capital do Rio de Janeiro, com um caráter bem popular, fazendo com que centenas de famílias vão às ruas brincar os três dias 35
Idem.
Nova Terra. 2012. DINIZ, ANDRÉ. Almanaque do Samba: a História do Samba, o que Ouvir, o que Ler, onde Curtir. 3º edição. Revisada – Rio de Janeiro: Zahar, 2012 FERREIRA, Felipe, Inventando Carnavais: O
surgimento do Carnaval Carioca no Século XIX e
36
Idem.
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outras Questões Carnavalescas, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005 FERREIRA, Felipe, O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro: Rio de Janeiro: Edioouro,2004 GINZBURG, Carlo, O Queijo e o Vermes: o
Cotidiano e as Ideias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição: tradução- Maria Betânia
Amoroso: tradução dos poemas José Paulo Paes; revisão técnica Hilário Franco JR, - São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GOMES, Flavio dos Santos. Histórias de
Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro, Século XIX: Rio de
Janeiro, Companhia das Letras, 1996. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo, Classes, Raças e Democracia: São Paulo: Editora 34, 2012 (2 Edição) LOPES, Nei. Partido – Alto: Samba de Bamba – Rio de Janeiro: Pallas,2008. LOPES. Nei. 1942. Rio Negro, 1° Edição: Rio de Janeiro: Record: 2015 MATTA, Roberto da. O que é o Brasil: Rio de Janeiro: Rocco, 2004. MEDEIROS, Carlos Alberto, Na Lei e na Raça: Legislações Raciais, Brasil – Estados Unidos- Rio de Janeiro: DP&A, 2004. MORAES, Eneida, História do Carnaval Carioca; Revisado e Atualizada por Haroldo Costa.- Rio de Janeiro: Record. 1987. MOURA, Roberto, Tia Ciata: e a Pequena África no Rio de Janeiro- 2 Edição: Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultura, Divisão de Editora, 1995. OLIVEIRA, Lidiany Cristina de. As Teorias Raciais e o
Negro do Pós – Abolição ás Primeiras Décadas do Século XX – Campinas, SP: {s.n.} 2005. PIMENTEL, João, Blocos: Uma História Informal do Carnaval de Rua – Rio de Janeiro: Prefeitura, 2002. SOIHET, Rachel. A subversão pelo Riso: Estudos
Sobre o Carnaval Carioca da Belle Époque ao Tempo de Vargas: 2º edição Revista e Ampliada. – Uberlândia: EDUFU, 2008.
G N A R U S | 131
Artigo
MÚSICA: LINGUAGEM, CONTEXTO E RECEPÇÃO. Por Marília Luana Pinheiro de Paiva
Resumo: Evidenciando a importância da relação da recepção e da música (se atendo as suas letras), e os aspectos sociais, políticos e amorosos que cada letra trás. Escabecemos neste artigo um paralelo entre música e receptor, tendo a música como uma fonte de interpretação e de discussão através da sua linguagem, utilizando a metodologia de análise de discurso que permite compreender, que cada discurso através de uma linguagem, possui uma ideologia e esta atrelada a uma história, perpassa elementos do nosso cotidiano e de nossas experiências subjetivas, pois a música através da linguagem constitui uma identificação com o receptor, ou seja, o ouvinte. Palavras chaves: Música, subjetividade, recepção.
A
música, mas também para pensar a música.”
relação existente entre texto, linguagem, história e música permite a compreensão destes como objetos de pesquisa para se
discutir aspectos políticos, sociais, culturais, identitários, sociológicos, entre outros. As implicações históricas da música no Brasil são apontadas por Marcos Napolitano (2002, p.5) nos seguintes termos:
“[...] a música tem sido ao menos em boa parte do século XX, a tradutora dos nossos dilemas nacionais e veículo de nossas utopias sociais, para completar, ela conseguiu ao menos nos últimos quarenta anos, atingir um grau de reconhecimento cultural que encontra poucos paralelos no mundo ocidental. Portanto, arrisco dizer que o Brasil, sem dúvida uma das grandes usinas sonoras do planeta, é um lugar privilegiado não apenas para ouvir
A música possibilita uma reflexão histórica à medida que traz elementos que as constituem e permitem essa ação; são carregadas de signos e simbologias, que através da linguagem expressam ideias e comportamentos (modos de sentir, pensar e agir) de uma sociedade através da música; nas
letras
transmitem-se
ideologias,
aspectos sociais, políticos e culturais de uma determinada época.
“[...] Como parte constitutiva de uma trama repleta de contradições e tensões em que os sujeitos sociais, com suas relações e práticas coletivas e individuais e por meio de sons, vão (re)construir partes da realidade social e cultural.” (MORAES, 1997, p 212) A música está inserida em um tempo histórico e social; as letras e a própria
G N A R U S | 132 sonoridade
das
expressam
focando necessariamente os versos das
sentimentos e emoções que atingem o
canções nas letras, está inserida em um
receptor e o identifica. A música atinge o
tempo histórico, social, e assim expressam de
individual
da
uma forma ou de outra reproduz o seu
identificação que afeta o modo de produção
contexto cultural em que a canção foi
da subjetividade. Assim, as letras das canções
produzida e reproduzida.
e
o
canções
coletivo,
através
em relação com o indivíduo proporcionam um reconhecimento com a linguagem, emoções e ideologias que estão presentes muitas vezes de forma implícita ou explicita na canção. As canções estão presentes no nosso cotidiano: uma canção que toca no rádio nos afeta de maneira por vezes inconsciente, somando-se ao modo como construímos e expressamos nossas emoções, pensamentos e atitudes. Comunicar é atingir o indivíduo em si, é um processo que se firma através da linguagem, a qual perpassa todas as camadas, invadindo todos os meios sociais. A linguagem em si,
“O sentido no contexto de cada leitura é valorizado perante os outros objetos do mundo com os quais o leitor [ou auditor] tem uma relação. O sentido fixa-se no plano do imaginário de cada um. Mas encontra, em virtude do caráter forçosamente coletivo de sua formação, outros imaginários existentes, aquele que divide com os outros membros de seu grupo ou de sua sociedade.” (JOUVE 2002 Apud THBRIEN, p. 22). Partindo da perspectiva de que o sujeito individual faz parte de toda uma sociedade de relações sociais que deve se levar em conta o contexto social e a linguagem produzida, pois traz traços de um subjetivo e de um meio social em que está situado o indivíduo; pois o indivíduo não está sozinho,
G N A R U S | 133 ele faz parte de uma rede de elementos que
sobretudo – sobre sua afetividade. As
o formam e que moldam sua percepção e sua
emoções estão de fato na base do princípio
fala, ou seja, os seus modos de sentir, pensar
de identificação, motor essencial da leitura
e agir. A psicologia social nos trás uma visão
de ficção. É porque elas provocam em nós
sobre esse panorama analisado
admiração, piedade, riso ou simpatia.
“A psicologia social mostra que o importante é o diálogo entre eu e o outro, a relação entre psiquismo individual e ambiente social; põe em evidência a ação que exercem sobre a formação das personalidades os quadros de atividade mental propostos pelo grupo a todos os indivíduos que o compõem; faz entrever menos confusamente como, em certos casos, são respostas individuais que, por seu lado, modificam o meio cultura.” (DUBY, 1999, p. 23). Ao se identificar com uma música o sujeito se caracteriza como parte dela, ou seja, muitas vezes refletindo sobre a letra o seu pessoal se tornando parte dela como subjetivamente
incorporado
a
um
reconhecimento de emoções atreladas nas letras que perpassam a letra enquanto gramática e se torna uma veículo que se aproxima do receptor, relacionando-se emoções sentimentos e afinidades com a letra e a sua representação, logo, com a canção em si, passa a ser uma representação de um fragmento individual. A música sendo composta por letras, antes estando incluída em um grupo linguístico, nos faz analisar o que esta letra transmite e representa no meio cultural que ela esta vinculada.
(JOUVE,2002, p. 19) A linguagem é o principal instrumento de comunicação
e
representação,
assim
transmite uma mensagem através da língua para um emissor, ou seja o receptor. Essa relação de comunicação, esta vinculada com a sua produção e sua exterioridade. Como Moscovici (2003 p. 35) “Nós pensamos através de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema que esta condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura”. A música não é a-historica, ela está inserida nesse conjunto de cultura e crenças que articula-se com o individuo e sociedade e que cria representações e vincula ideologias. Assim como também trás a possibilidade de interpretações e pode ter sentidos diferentes dependendo da posição social, histórica, cultural, a partir de crenças, valores, experiências sociais, emocionais que cada indivíduo ocupa, o que vai determinar a relação que este individuo tem com a música é a posição emocional e cultural que ele ocupa. Não esquecendo que a música é uma produção cultural e as emoções produtos
O charme da leitura provém em grande parte das emoções que ela suscita. Se a recepção do texto recorre às capacidades reflexivas do leitor, influi igualmente - talvez,
sociais, que intensificam e estruturam as relações de indivíduos-sociedade, são elas as emoções que provocam mudanças e geram reflexões sobre as próprias relações em si.
G N A R U S | 134 Estas emoções estão presentes no nosso dia a
laços afetivos entre pessoas que eles
dia e são refletidas e reproduzidas nas
reconhecem; e os modos de expressão
canções. Ou seja as canções são reflexos do
emocional que eles pressupõem, encorajam,
vivido em sociedade, tanto em questão
toleram e deploram. (ROSENWEIN, 2011, p.
social, como política, econômica e relação
23).
amorosa individual que ao ser explicita na música gera uma identificação e assim uma aproximação do com o receptor, pois este último se “encontra” nas letras e na mensagem que a música trás, não apenas no aspecto amoroso, mas essa relação pode acontecer em outras esferas, como política, social, histórica. A maneira que o indivíduo se aproxima e se reconhece, ele cria uma ligação com essa música, estabelecendo uma identidade, compactuando com seus signos e
suas
representações,
gerando
uma
interlocução.
Compreendendo
que
determinadas
canções trazem letras que fazem uma crítica, assim como alusão a valores, deplorações, denuncias, insatisfações presente no país de origem, como descontentamento político, decepção com condições básicas de saúde, políticas púbicas, insegurança, violência, corrupção,
representando um desagrado
econômico, social, amoroso entre relações sujeito sociedade, e suas relações pessoais, dentre tantos outros aspectos que permeiam a nossa sociedade, e que em muitas vezes é corrompido
ou
até
mesmo
Assim surgem sujeitos que as reconhecem
desestruturalizado. As canções refletem o eu
e se identificam o que Rosenwein conceitua
poético e a sociedade. Um exemplo dessa
como “comunidades emocionais, que são
reinvindicação enquanto letra e música é
sujeitos que estabelecem ligações com estas
possível encontrar na canção.
canções”. Comunidades
emocionais
fundamentalmente comunidades sindicatos, conventos,
o
mesmo
sociais-famílias, instituições fábricas,
são que bairros,
acadêmicas,
pelotões,
cortes
“Que País É Esse”? Da banda Legião Urbana. Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação
principescas. Mas o pesquisador que se
Que país é esse?
debruça sobre elas procura, acima de tudo,
Que país é esse?
desvendar os sistemas de sentimento,
Que país é esse?
estabelecer o que essas comunidades (e os indivíduos em seu interior) definem e julgam
No Amazonas, no Araguaia iá, iá,
como valoroso ou prejudicial para si (pois é
Na baixada fluminense
sobre isso que as pessoas expressam
Mato grosso, Minas Gerais e no
emoções); as emoções que eles valorizam,
Nordeste tudo em paz
desvalorizam ou ignoram; a natureza dos
Na morte eu descanso
G N A R U S | 135
Mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos fiéis Ao descanso do patrão Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Terceiro mundo, se for Piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas
coloca “Quando vendermos todas as almas
dos nossos índios num leilão”. Estabelece uma forte crítica com a história e com o passando no qual a História é negada ou seja a cultura existente no Brasil é ignorada pelos colonizadores, considerando um país sem História e índios como “tabulas rasas” contraponto com o atual momento histórico que o país esta vivendo, sendo questionado o próprio futuro do país diante de tantas ações mal elaboradas, e más condutas na política do Brasil. Tomando como base a letra como um
Dos nossos índios num leilão
texto, traz considerações relevantes diante
Que país é esse?
das representações sociais daquele período
Que país é esse?
seguido pela própria vontade da mudança.
Que país é esse?
Sendo o receptor aquele que ouve e alguns
Que país é esse?1
refletem sobre ela, esta canção que está incumbida de ideologias, valores que
A letra da canção está inserida em um contexto histórico de uma época um período marcado por grandes reivindicações do próprio grupo de rock nacional que se formava, com grandes bagagens de criticas feitas também pela música popular brasileira MPB, que abarcava grandes críticas perante o regime ditatorial. A canção é escrita em 1978 e lançada em 1987¹ relatando grande insatisfação popular com o Brasil, com a corrupção, com a alienação que o governa repressor estabelecia na população assim como o próprio poder que constituía frente à
desperta uma analise sobre o contexto e que afetam o ouvinte acabando por transformálo. Segundo Zhumthor (2007, p 52) “Comunicar (não importa o quê: com mais forte razão um texto literário) não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem se dirige; receber
uma
comunicação
é
necessariamente sofrer uma transformação”. Compreendendo a relação existente entre a história e a música, a canção faz refletir sobre elementos presentes no país e suas dimensões.
ditatura, o descaso com o nosso país,
A metodologia de analise de discurso
negando a sua própria história quando Russo
permite analisar as letras e o discurso, assim
¹RUSSO, Renato. “Que País É Esse”? Vagalume, 2014.Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/legiao-
urbana/que-pais-e-esse.html>. Acesso em: 30 abr. 2014
1
G N A R U S | 136 como a ideologia que permeia o discurso nas
caracteriza, uma posição social, histórica, é
músicas, como aponta CAREGNATO, MUTTI
através da linguagem que se caracteriza uma
(2006, p. 680)
ligação com a realidade. Assim como a
A AD trabalha com o sentido e não com conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido; pode-se afirmar que o corpus da AD é constituído pela seguinte formulação: ideologia +história + linguagem. A ideologia é entendida como o posicionamento do sujeito quando se filia a um discurso, sendo o processo de constituição do imaginário que está no inconsciente, ou seja, o sistema de ideias que constitui a representação; a história representa o contexto sócio histórico e a linguagem é a materialidade do texto gerando “pistas” do sentido que o sujeito pretende dar. O sentido é a prática da análise do discurso, pois leva-se em consideração que a linguagem não é transparente e está é passível de análise e de interpretação, a linguagem é o meio que o homem se comunica, transforma sua realidade e a traduz. E na linguagem que emerge a ideologia de cada sujeito atrelado ao espaço e historicidade que ele permeia na sociedade, podendo representar a sua posição e as suas concepções sendo elas implícitas ou implícitas no discurso. Segundo Foucault (1999, p. 10.)
(...) o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do desejo; visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. A ideologia está presente em cada discurso, pois faz parte da linguagem e a
interpretação de cada discurso de cada letra, de cada texto, é como um bosque, um jardim de caminhos que se ramificam e se difundem, porque ate mesmo quando o caminho não está definido o leito [ ouvinte] pode delinear seu próprio caminho, indo tanto para a esquerda como para a direita, levando ao estremo como o leviano, assim optando por um caminho, o ouvinte como o leitor é compelido a optar o tempo todo. (ECO, 2002, p. 12) Assim como cada receptor pode conferir significados diferentes a um mesmo discurso e a uma mesma música, dependendo da sua posição
social,
experiências
sociais
e
emocionais, porém há concepções atreladas a esses significados pois como Jouve. (JOUVE, 2002, p.25, grifo nosso) ressalta:
Na medida em que, cortada de seu contexto, a obra é raramente lida como seu autor queria, não é lógico desistir de ressaltar qualquer intenção primeira e ver apenas no texto o que se quer ver? Se não se pode reduzir a obra a uma única interpretação, existem, entretanto critérios de validação. O texto permite, com certeza, várias leituras, mas não autoriza qualquer leitura. A organização dada pelo autor do texto permite variações de leitura, mas ainda assim constituiu uma programação que deve ser respeitada pelo autor. (JOUVE, 2002, p.25, grifo nosso). Existe uma certa liberdade para cada leitor, ouvinte, ler, ouvir e interpretar uma canção, porém a direção é pré determinada pelo autor, ou compositor, o que o ouvinte faz é
G N A R U S | 137 interpreta-la conforme as suas aptidões e
Contudo a recepção, e a interpretação de
identidade, que está ligada a diversos outros
cada canção além de ser subjetiva ela
fatores culturais, que vão dar sentido
também depende de demais fatores, que vão
diferente para cada verso, para cada canção.
direcionar e complexar cada canção. Tanto
Assim Iser (1999) fomenta a respeito dessa proximidade do leitor [ouvinte] receptor e o universo paralelo da leitura e o universo, a realidade do leitor a medida em que ambos se encontram, o texto, no caso a música torna-se correlato da consciência de seu receptor, o que encaminha um rumo da leitura. Assim a relação entre o ouvinte e a letra, o receptor retira a sua consciência do mundo e insere no universo da canção. Não se esquecendo de que cada música também está atrelada ao seu tempo e espaço, pois ela é filha do seu tempo, assim como fruto de ações do tempo histórico, pois cada música esta vinculada com um período
coletivo como individuais, o abstrato e o real se ligam na medida em que provoca uma identificação com o eu-poético, deste modo o conhecimento empírico do mundo se difunde com a linguagem, na qual cria-se um elo de ligação, pois os dois universos se encontram e dessa maneira muitas vezes o receptor torna a letra da música como representação de si mesmo, ou de sua posição atual, seja ela política, social ou emocional. A música exprime emoções e capta-as,
penetrando
sentimentos
e
nos
despertando
íntimos uma
identificação e uma aceitação subjetiva, estabelecendo uma ligação receptor e autor.
da história, seguido de interpretações de indivíduos presente nessa história, seguido de uma conjuntura sociopolíticas desse tempo. Assim Ross (2011, p .12) argumenta:
Então por que se arraigou a ideia de que há algo de peculiarmente inexprimível na música? A explicação pode não estar na música, mas em nós mesmos. A partir de meados do século XIX, as plateias se acostumaram a adotar a música como uma espécie de religião secular ou política espiritual, investindo-a com mensagens tão urgentes quanto vagas. As sinfonias de Beethoven prometem liberdade política e pessoal; as óperas de Wagner inflamam a imaginação de poetas e demagogos; os balés de Stravinsky liberam energias primais; os Beatles incitam uma revolta contra antigos costumes sociais. Em qualquer momento da história, existem alguns compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época.
Marília Luana Pinheiro de Paiva é graduada em História e Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. marilia-lua1@hotmail.com.
REFERÊNCIAS CAREGNATO, Rita C. A; MUTTI, Regina. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Florianópolis: Texto Contexto Enfermagem, p. 679-684, out/dez, 2006. DUBY, George. Histoire des Mentalites. Terra mar. Portugal, 1999. ECO, Umberto. Seis passos no bosque da ficção. São Paulo: Companhia das letras, 2002. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 5ª ed. 1999. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999. JOUVE, Vicent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
G N A R U S | 138 MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia – história, cultura e música popular em São nos anos 30. Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutor em História. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. MOSCOVICI, S. Representações sociais, investigações em psicologia social. Petropólis: Editora Vozes, 2003
NAPOLITANO, Marcos. História e música história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 ROSENWEIN, H. Barbara. História das Emoções, problemas e métodos. São Paulo: Letra e Voz, 2011 ROSS, Alex. Escuta só: do clássico ao pop. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ZHUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007
G N A R U S | 139
Artigo
O CULTO À ANCESTRALIDADE NO EGITO ANTIGO: UMA ESTRUTURA AFRICANA. Por Claudio Lourenço
M
uita confusão surge ao se estudar o
as necessidades de seu tempo, cada estrutura
sistema
O
cultural é particular e deve ser entendida dentro
conceito de rei divino, o culto a
de seu próprio contexto. Tendo como base esses
religioso
egípcio.
diversas divindades, o relacionamento entre os
princípios,
a
cultura
egípcia
deve
ser
vivos e os que passaram para o além-vida são
compreendida dentro de seu lugar e momento
motivos de incompreensões e visões erradas
histórico e não através de estruturas de outros
sobre as crenças dos antigos egípcios. Parte
povos e, principalmente, das dos dias atuais.
desses erros é se querer compreender fatos do passado tendo como base conceitos das sociedades atuais, caindo no tão funesto anacronismo. Outro fator é se querer ver o Antigo Egito como uma civilização à parte do local onde ela se encontra: a África. O antropólogo Lévi Strauss desenvolveu o conceito de estruturalismo em meados da década de 1950, onde dizia que a cultura de um povo é desenvolvida de acordo com suas
A dispersão do homem a partir da África.
necessidades em dado local e momento
A África é o continente original da espécie
histórico. Não há cultura superior ou inferior – o
humana, tendo de lá migrado os grupos humanos
que retirava as bases do racismo científico, ou
que iriam ocupar todos os territórios do globo. As
darwinismo social -, mas culturas diversas. Mais
estruturas religiosas primordiais que aí surgiram
importante, a cultura de uma sociedade não
irão acompanhar esses grupos migrantes e se
pode ser medida através de outra, pois sendo
desenvolver em todas as partes por eles
estruturada por um grupo social de acordo com
G N A R U S | 140 ocupadas. A primeira forma de compreensão
velhos, os ancestrais que governam mesmo as
espiritual desenvolvida pelos homens foi o
forças e elementos da natureza.
contato consigo mesmo. Os homens antigos perceberam-se como parte integrante da natureza e refletem sobre a possibilidade de a vida e a consciência não estarem limitadas ao corpo material. Assim como o vento, que é invisível, haveria uma parte do ser que também não poderia ser vista ou tocada, mas somente sentida, percebida. Essa parte do ser habitava o corpo e expressava-se através dos pensamentos e sentimentos. Quando o corpo morria, essa parte
imaterial
desprendia-se
dele,
mas
continuava existindo e podia – e acreditava-se que certamente fazia – contatar aqueles que ainda estavam vivendo ligados a um corpo. Esses seres espirituais possuíam duas características fundamentais que irão fundamentar seu culto: eles haviam adentrado o mundo das energias que governam a natureza, sendo capazes de controlá-las e, ainda mantendo contato com os vivos, sendo seres poderosos e sábios, poderiam auxiliar o desenrolar dos eventos sociais de forma mais harmoniosa e eficaz.
universo, sobre tudo que o cerca, observando que os animais, plantas, rios e mesmo ele próprio tem um nascimento, uma origem, ele imagina que todas as coisas que existem assim o tiveram. Ele imagina que houve uma força criadora que a tudo trouxe existência. Ele imagina, também, que aquela sua parte imaterial, seu eu espiritual, foi algum
momento
estruturas religiosas mais arcaicas através dos modelos que nos foram legados pelos gregos. A diferença fundamental é que os gregos acreditavam haver um grupo de seres à parte da humanidade, composto por indivíduos, que embora possuíssem qualidades humanas, eram dotados de poderes sobre-humanos, os deuses. Já outros povos, que mantiveram as estruturas religiosas originais, não creem em deuses como uma classe separadas, mas sim em ancestrais poderosos e divinizados. A compreensão dessas duas vertentes de pensamento faz toda a diferença quando se procura compreender as estruturas religiosas das sociedades e, neste caso, do Egito Antigo. Logo de início, precisa-se compreender que o que é conhecido como Egito faraônico surgiu através da união sucessiva de diversos grupos que habitavam a região do Nilo. Esses grupos - que se unem ou são militarmente unidos em dois grupos, o Alto e o Baixo Egito, para logo em
Quando o homem começa a refletir sobre o
em
A confusão surge quando se tenta entender as
do
tempo
criado.
Construindo um esquema sobre esse processo criativo universal, imaginou que alguns seres foram criados juntamente com todas as coisas da natureza. Tais seres foram os primeiros a governar o mundo, sendo os espíritos mais
seguida se unirem em um só Estado centralizado – possuíam cada qual sua mitologia. Tais mitologias tiveram que ser unidas em um corpo único, mas que em muitos casos mantiveram divergências entre um nomo e outro. Segundo o mito egípcio, o espírito original, Atum, gera sozinho dois filhos, Shum e Tetnuf, os princípios do movimento e da umidade. Shum e Tetnuf se unem e têm um casal de gêmeos, Geb, a terra, e Nut, o céu. Enamorados, Geb e Nut se unem e Nut engravida de quatro filhos: Osiris, Isis, Seth e Nefts. Ainda no ventre da mãe, Osiris e Isis se apaixonam, se unem e Isis dá à luz Hórus,
G N A R U S | 141 que nasce sob a forma de um falcão e, irrompendo o ventre de Nut, voa para os confins do universo, conhecendo todas as coisas. Os filhos de Nut e Geb nascem e Osiris, casa-se com Isis e recebe o governo da terra negra às margens do Nilo (o kemet), enquanto Seth casa-se com Nefts e recebe o governo das terras secas e vermelhas do deserto (o desret). Invejando o reino fértil do irmão, Seth arquiteta um plano para destronar Osiris e tomar seu reino. Ele mata Osiris, trancando-o em uma caixa que é atirada no Nilo. Isis sai em busca da caixa e a encontrando usa magia para ressuscitar o marido. Ela se une sexualmente a ele e engravida de Hórus, que ressurge como um homem. Seth descobre que Osiris está vivo, o encontra e esquarteja. Isis reúne as partes e novamente o ressuscita, mas ele decide viver no outro mundo (o mundo da vida, o mundo espiritual que se encontrava
abaixo
do
mundo
material),
tornando-se o senhor dos mortos, o senhor dos espíritos. Hórus cresce e se torna um grande guerreiro. Sua mãe lhe conta a história no assassinato de seu pai e Hórus decide vingar o pai e destronar o usurpador Seth. Ele une os povos do Egito e liderando um grande exército, vence Seth e se torna o primeiro rei do Egito.
A batalha entre Hórus e Seth. A partir deste mito, justificava-se o poder do rei do Egito. Em primeiro lugar, o espírito primordial Atum foi sincretizado com o deus supremo da cidade que estava no governo. Em Heliópolis, ele foi identificado com Rá, o deus-sol. Em Mênfis, com Pitah, o criador; em Tebas, com Amon, que também foi unido sincreticamente a Rá; em Amarna, sob o governo de Akenaton, com Aton, o sol. Dizia-se que o rei recebia a energia do deus supremo, sendo seu escolhido para ser o ocupante do trono de Hórus. A ligação com o deus supremo e com o patrono do trono do Egito, tornava o rei divino e o legítimo herdeiro do trono. Isso é ancestralidade. Esse mesmo sistema de crenças pode ser encontrado entre outros povos africanos até hoje. Dentre os iorubas, o rei tem ligação ancestral direta com o patrono da cidade ou do trono. O faraó era tanto divino quanto humano. Como
O faraó Seth homenageia Hórus e é amparado por Isis.
divino, era o representante direto das divindades no mundo, seu sumo sacerdote e controlador das forças da natureza. Como humano, era o pai de
G N A R U S | 142 todos os homens, responsável por suprir todas as
faraó deveria ter um tratamento especial após
necessidades da sociedade. Ele era o responsável
sua viagem para o outro mundo, devendo seu
pela manutenção de maat, a ordem cósmica.
culto ser mantido através das eras para que a
Os egípcios acreditavam que o poder do faraó era tão grande e ele era tão digno de reverência que não se podia nem mesmo chegar perto dele e muito menos tocá-lo ou em um de seus instrumentos e roupas. Caso isso acidentalmente ocorresse, somente o imediato perdão real evitaria a morte da pessoa. Dizia-se que a serpente que havia à frente da coroa real, o Uajt, cuspia o fogo solar sobre quem se aproximasse muito do rei sem autorização. Não se olhava diretamente para o rei e nem se lhe falava diretamente; ninguém falava ao rei, mas, sim, na presença do rei. Nem se referia diretamente ao rei; não se dizia “O rei ordenou.”, mas “Alguém ordenou.” Ou “A Grande Casa ordenou.” (Grande Casa é, em egípcio, per-aa, que originou a palavra faraó). Nem mesmo o rei falava diretamente de si como pessoa humana, não dizia “Eu desejo.”, mas “Minha Majestade deseja.”. Esse imaginário de divindade régia pode, novamente, ser observado em outros locais a África. Novamente, entre os iorubas, as pessoas para falar ao rei, precisam se prostar no chão,
harmonia
fosse
preservada.
estruturas
funerárias
colossais,
Construiu-se como
as
pirâmides, ou tumbas muito bem protegidas para abrigarem seus corpos. Templos de adoração foram construídos em associação com essas tumbas, onde o culto poderia ser mantido por um grupo seleto de sacerdotes. Tão importante era esse culto que ainda durante a XVIII dinastia o culto aos reis da IV era mantido. No complexo de Karnak está desenhado uma imagem do faraó Set I prestando o culto a todos os faraós anteriores, desde Narmer, enquanto seu filho e herdeiro, Ramsés (que se tornaria o grande Ramsés II), lê em um longo papiro os nomes de todos eles. Está escrito no mural que Set garantiria seu devido culto. O vizir e arquiteto real de Djoser, o famoso Imhotep, foi cultuado como divindade por ter construído o complexo mortuário de Djoser em Sakkara. Ele esculpiu tudo em pedra, mesmo portas e cortinas, culminando tudo com uma imensa pirâmide em degraus. O culto de Imhotep perpetuou-se por milênios no Egito e, mesmo, entre os romanos.
com a cabeça baixa sem olhar para ele. Muitos
A mumificação é outro fator a ser analisado.
reis iorubas usam uma cobertura de franjas sobre
Mumificar os mortos é um procedimento comum
o rosto, o ade, que serve para proteger as pessoas
a diversos povos até os dias de hoje. Pode ser que
do poder que emana de seu rosto.
os egípcios não acreditassem realmente que a
Para a mentalidade egípcia, os ancestrais deveriam ser cultuados, perpetuando a união e a harmonia entre os mundo material e espiritual. Assim o era entre vários povos africanos, como também entre os indígenas das Américas, entre os aborígenes da Oceania e entre os japoneses. Uma estrutura psíquica arquetípica natural do homem. Como senhor de todos os homens, o
preservação da alma dependesse da preservação do corpo, mas que a preservação do corpo garantisse um maior contato entre os homens e o antigo habitante daquele corpo. Embora a alma partisse para o reino da luz, a sua união com seu antigo corpo era preservada através do ritual da abertura da boca que a reconectava com o corpo preservado. A mumificação não era privilégio da
G N A R U S | 143 realeza, mas estava acessível a todos que
O Egito Antigo foi um precursor de cultura e um
pudessem arcar com os custos. Além de
irradiador do saber para outras áreas. As
reconectar a alma com seu corpo agora
estruturas culturais egípcias – principalmente as
mumificado, os sacerdotes a conectavam a uma
estruturas de mentalidades – representam
estátua sua que ficava na capela fora da tumba, o
estruturas básicas humanas e, devido a sua longa
local onde as pessoas poderiam homenagear o
história, podemos estudá-las como em nenhum
morto e prestar-lhe o devido culto.
outro povo, pois temos registros arqueológicos e históricos desde a pré-história até a queda de Psamético III para os persas de Cambises, já no século IV da Era Cristã. Claudio Lourenço é graduado em Licenciatura plena em História pela Universidade Cândido Mendes e pós-graduando em História da África pelas Faculdades Integradas Simonsen.
Referências:
Ritual de mumificação no Antigo Egito. O culto aos ancestrais foi comum entre vários povos da África. Só houve mudanças com a chegada
das
religiões
monoteístas,
que
buscaram extingui-los. Mas mesmo hoje, com grandes partes das populações islamizadas ou cristianizadas, ainda preservam-se grupos que praticam o culto milenar aos ancestrais.
Culto a um ancestral mumificado pela tribo Kukukuku da Nova Guiné.
JOHNSON, Paul. O Egito Antigo. Rio de Janeiro RJ. Ediouro, 2010. JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ. Vozes, 2011. SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses - 3a edição. Rio de Janeiro, RJ. Nova Fronteira, 2006.
G N A R U S | 144
Artigo
O TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: NOTAS SOBRE SUA CONSOLIDAÇÃO E ATUAÇÃO Por Alex Rogério Silva
Símbolo da Inquisição Portuguesa.
RESUMO: O texto tem por objetivo analisar as principais motivações que incidiram no surgimento do Tribunal do Santo Ofício de Portugal e os principais alvos de sua atuação, tanto em Portugal como em terras brasílicas. Além disso, visa-se discorrer sobre as diversas percepções e sanções que os “desviantes” recebiam por fomentar os desvios de ortodoxia e conduta tão combatidos pela Inquisição. Palavras-chave: Sodomia, Judaísmo, Inquisição, Portugal, Brasil.
Introdução
G N A R U S | 145
A
preocupação
com
os
desvios
da
ortodoxia sempre foi uma constante
Pode-se afirmar que foi na Modernidade que a Inquisição viveu seu período mais intenso:
para a Igreja de Roma. Sua história apresenta
diversos
episódios
“A Inquisição Medieval penetrou em vários países da Europa Ocidental, chegando a alguns países da Europa Oriental, mas foi na época Moderna, nos séculos XVI, XVII e XVIII, que ela atingiu o seu apogeu, estendendo-se inclusive às colônias.2”
de
querelas, disputas, esforços e tentativas no sentido da manutenção de uma unidade, tanto doutrinária quanto organizacional e hierárquica. Desde seus primórdios, a Igreja se encontrou às voltas com diversas dissidências, tendo-as tratado, em uma perspectiva geral, de duas maneiras. Uma
Em Portugal...
destas vias de ação era a perseguição e eliminação
Foi estabelecido o Tribunal do Santo Ofício em
física da divergência, como ficou patente na
1536, com a bula Cum Ad Nihil Magis, só passando
cruzada contra os cátaros no sul da França em
a funcionar, neste reino, definitivamente 11 anos
1209. A outra via de ação era a incorporação das dissidências, quando as ideias divergentes sofriam
depois,
através
da
bula
Mediatio
Cordis,
concedida pelo Papa Clemente
VII.3
um processo de conformação à norma prescrita.
Santo
Espanha,
Um exemplo deste modus faciendi pode ser
direcionada primordialmente para a repressão dos
encontrado no caso da criação da ordem franciscana em 1210, possível graças à adaptação
Ofício,
como
em
A atuação do estava
judeus convertidos ao cristianismo, denominados
cristãos-novos e de seus descendentes.
das ideias de São Francisco. O Tribunal do Santo Ofício medieval foi criado com a finalidade de preservar a unidade dogmática no seio da cristandade, então abalada pela disseminação de movimentos heréticos, dentre os quais se destacavam os cátaros, que professavam uma doutrina de caráter fortemente maniqueísta. Esta primeira Inquisição ou tida como Inquisição Medieval teve seu âmbito de ação restrito à Itália, França, Aragão e a região do que hoje compõe a Alemanha, sendo que o ritmo de sua atividade foi declinando com o passar do tempo, sem, contudo, ter sido em momento algum formalmente extinto, como foi a Inquisição Moderna.1 FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo, Perspectiva, 1977. BETHENCOURT, Francisco. História das 1
inquisições: Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000. PROSPERI, Adriano. ‘Inquisizione Medievale’. In: Dizionario Storico dell´Inquisizione. Pisa: Edizioni della Normale, 2010. 2 NOVINSKY, Anita. ‘A inquisição’. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 15. 3 MARCOCCI, Giuseppe & PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa (1536-1821). Lisboa: Esfera dos livros, 2013. MARCOCCI, Giuseppe. I custodi dell’ortodossia: Inquisizione e cheisa nel Portogallo del cinquecento. Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2004.
G N A R U S | 146 Efetivamente,
foram
Boa Esperança: todas as
quatro os Tribunais que
possessões da Ásia e da
compunham
costa
a
Inquisição portuguesa4,
A
especifica. O primeiro o
de
que
referente
províncias
e reino do Algarves, Trás-os-montes e parte
e
e foram recebidos pelo monarca D. Manuel, o
1541, foi instituído o
províncias do “Alentejo
pela
residência em Portugal
da Boa Esperança”. Em
pelas
perseguidos
estabeleceram
de Portugal até o Cabo
responsável
judeus
entraram
domínios e conquistas
Évora,
os
expulsos da Espanha,
Beira, Brasil e todos os
de
tal
Inquisição que foram
da
“Estremadura, parte da
Tribunal
de
1492, no momento em
com uma abrangência às
história
tribunal teve início em
Lisboa,
estabelecido em 1539, jurisdicional
da
África”.5
cada um com jurisdição foi
oriental
Gravura a cobre intitulada "Die Inquisition in Portugall" por Jean David Zunner retirada da obra "Description de L'Univers, Contenant les Differents Systemes de Monde, Les Cartes Generales & Particulieres de la Geographie Ancienne & Moderne." por Alain
da Beira, incluía ainda
O Tribunal de Coimbra tinha sob sua alçada a "Guarda, província do Entre-Douro e Minho, Trásos-Montes e parte da Beira” e terras que pertenciam ao mesmo bispado, foi instituído no mesmo dia que o anterior. Fora do continente europeu, faz parte do arsenal lusitano o Tribunal de Goa, criado em 1560, com “jurisdição sobre todos os domínios portugueses além do Cabo da
Portugal contava com o capital financeiro dos judeus
para
continuação
a do
processo expansionista, e, em função do medo
quaisquer outras terras que pertencessem aos bispados da mesma cidade”.
venturoso.
da perda deste apoio o monarca permitiu a permanência daqueles que concordassem em se batizar na Igreja Católica e adotassem a nova religião. Muitos abraçavam a fé cristã e eram batizados, mas continuavam com a sua devoção religiosa em oculto. Se descobertos, eram mortos, tinham os seus bens confiscados pela Coroa e, constrangidos nos autos de fé: cerimônias públicas onde os culpados eram queimados à vista do povo. O Estado, em função do alto custo da
4
A princípio foram criados em Portugal seis tribunais. Metade deles – Lamego, Tomar e Porto -, entretanto, foram extintos pouco tempo depois da instauração, não deixando muitos registros de suas passagens pela História Portuguesa. BETHENCOURT, Francisco. Op. Cit. p. 23-25.
manutenção da corte em Portugal e nas colônias, SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 160. 5
G N A R U S | 147 dependia de empréstimos e “desde que se
Por Bula, em 1539, o Papa assegurou algumas
encetara o caminho ruinoso dos empréstimos,
garantias aos acusados. No entanto, as orientações
nunca mais se abandonara, e o estado quase que
da Santa Sé não foram respeitadas no país, pois
exclusivamente vivia desse expediente6”. Enquanto
contrariavam os interesses da Coroa, o que levou o
o Estado pobre e endividado carecia de recursos,
Pontífice a suspendê-la novamente em 1544.
os judeus exerciam uma espécie de monopólio
Muitas vezes o rei, por não estar de acordo com as
comercial emprestando dinheiro a juros e
disposições papais, burlava várias delas, inclusive
investindo no comércio. Uma de suas atitudes foi
nomeia, em 1539, como Inquisidor-Geral seu
libertar os judeus que haviam se tornado escravos
próprio irmão, Infante D. Henrique.
até que no final do séc. XV, e outra foi oferecer casamento à princesa D. Maria de Aragão, filha dos reis católicos espanhóis. A aceitação da proposta seria condicionada a uma expulsão judaica em Portugal daqueles que haviam sido condenados pela Inquisição espanhola. D. Manuel aceita as condições e em 1496 publica o édito de expulsão vindo a falecer em 1521 sendo transferido o poder para D João III.
Diante de tal situação e da ameaça do monarca de promover um cisma, o Papa assentiu às exigências do rei, acatando a nomeação do Inquisidor-Geral o Cardeal Infante D. Henrique e concedendo ao rei poderes para interferir nas questões inquisitoriais. Em contraponto, o povo judeu que era contribuinte em Roma, tinha representantes de seus interesses que intercediam e procuravam atravancar os planos de D. João.
Dom João III desejava não apenas a instalação da Inquisição, mas também, o poder de nomear inquisidores e agir sobre ela conforme os
Os alvos do Tribunal do Santo Ofício Neste momento, os alvos principais do renovado
interesses da Coroa. Em dezembro de 1531, o Papa que
Tribunal eram as práticas religiosas das minorias
institucionalizou o Tribunal do Santo Ofício
étnicas convertidas ao cristianismo, sobretudo os
português, porém com a promulgação do
judeus, o que segundo Henry Kamen, refletia de
documento, é também nomeado um Inquisidor
forma pungente a situação de desigualdade
para o reino, entretanto, pouco tempo depois o
proporcionada pelos movimentos de reconquista
Sumo Pontífice a revoga, após descobrir a
na Península.7 O comportamento herético dos
confissão forçada dos judeus. Em 1533, concede a
judeus convertidos, os intitulados cristãos-novos,
primeira bula de perdão aos cristãos-novos
se consumava na prática, às escuras, de sua
portugueses. Após o falecimento de Clemente VII,
religião ancestral.
Clemente
VII
promulgou
a
bula
em 1534, Paulo III assume a Santa Sé e com isso há
Porém, além dos crimes religiosos de heresia,
o restabelecimento, em 1536, da Inquisição em
feitiçaria e blasfêmia, os inquisidores perseguiram
Portugal,
nomeando
três
Inquisidores
e
autorizando o rei a nomear outro.
também alguns desvios sexuais, entre eles a sodomia, a bigamia e a luxuria dos sacerdotes. Os crimes
HERCULANO, Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Porto Alegre:
sexuais
eram
combatidos
quando
6
Editora Pradense, 2002, p. 50.
KAMEN, Henry. La Inquisicion española. Trad. Esp. Barcelona, 1999, pp. 23-25. 7
G N A R U S | 148 islâmica. Isto fica evidente no Scriptorium8 de D. Afonso X, o Sábio, na qual, contava com sábios e artistas de diferentes procedências e das três culturas então reinantes na Península Ibérica: a cristã, a judaica e a muçulmana, e também o que afirma Anita Novinsky:
“Durante a Idade Média, a Espanha mostrou-se como um dos países mais tolerantes da Europa em relação aos hereges. Durante esse período, cristãos, muçulmanos e judeus coexistiram num mesmo território de forma pacífica e até mesmo em solidariedade. Por essa razão, até o século XV a Inquisição não obteve quase nenhuma penetração no país 9.”
Com o passar dos anos, os judeus passaram a angariar espaços nos Reinos Ibéricos, e como um Obra mostra cena de expulsão de judeus. Muitos deixaram o país, mas outros optaram por ficar e se converter ao catolicismo. (Xilogravura, Michaly von Zichy, 1880, posteriormente colorizada)
número crescente de judeus se encontravam impedidos de galgarem postos significativos dentro da estrutura político-administrativa dos Reinos, passaram a adotar o cristianismo como fachada a fim de lhes servir de acesso aos já
considerados como atos contra natura, pois escapavam da luxuria usual tolerada ao menos para os leigos, nas relações conjugais. A sodomia ou “pecado nefando” aparece sempre em uma abordagem indignada e caracterizada como ato de um homem com outro e sempre associada à bestialidade, a copula animal ou à imitação do
citados postos. Combater essa heresia passa a ser o principal interesse de Castela e Aragão. Essa situação culmina com a expulsão dos judeus de
nação dos Reinos espanhóis em 1492, ordenado pelo Decreto de Alhambra ou édito de expulsão e com a concessão da bula papal que cria a Inquisição hispânica, cujo principal objetivo é
papel feminino por um dos parceiros. A perseguição aos judeus É difícil precisar quando os judeus chegaram à Península Ibérica. Estes estiveram em tal região durante todo período antigo e medieval, na qual, consolidaram um pacífico convívio com as outras duas culturas presentes na península: a cristã e a
8
Enorme escritório onde [o Rei Sábio] abrigava, sob o seu mecenato, poetas de todo ocidente românico, especialmente da Provença. Mas não só poetas; também desenhistas, miniaturistas, músicos e tradutores várias origens, sem falar dos mestres em todas as artes liberais e também dos sábios de coisas do oriente. Esse conjunto extraordinário de colaboradores do rei Afonso X, formados em três culturas diferentes – a muçulmana, a judaica e a cristã – passou a História com o nome de Escola de tradutores de Toledo.” Fonte: LEÃO, Ângela Vaz. As Cantigas de Santa Maria. Extensão, Belo Horizonte, v.7, n.3. p. 27-42, ago 1997. 9 NOVINSKY, Anita. Op. Cit. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21.
G N A R U S | 149 combater a heresia judaica, ou seja, investigar
práticas judaicas levou o criptojudaísmo para
cada converso com costado judaico.
dentro das casas, o que possibilitou às mulheres
Essa situação alcança Portugal quando o monarca D. Manuel I assume o trono e pede em casamento D. Maria de Aragão, filha de Isabel e Fernando. Decidido o casamento, vem com este o compromisso aceito por D. Manuel, de expulsar os judeus de seu território. Apesar de aceitar as condições e de escrever um édito de expulsão semelhante para os judeus portugueses, D. Manuel cria meios para que a maior parte desses judeus
serem agentes desse “judaísmo que se tornara possível – criptojudaísmo –, de portas a dentro, realizado no silêncio e discrição do ambiente familiar, tendo o lar, em sua pouca privacidade, como principal espaço de ocorrência”11. O dia a dia de parte dessas mulheres cristãs-novas que judaizavam era dividido entre o seguir as normas sociais impostas às mulheres e muitas vezes liderar seu grupo.
fique no Reino até a data final concedida pelo édito, que seria em outubro de 1497. Chegada a data, os judeus ainda em terra portuguesa têm como única opção a conversão. Nascem assim os cristãos-novos portugueses, também conhecidos como os batizados em pé10. Depois de convertidos, podem esses indivíduos ficar oficialmente sob o poder da Igreja. Como não poderia deixar de ser num processo realizado de maneira forçosa e decretado por lei, muitos dos judeus que foram obrigados a abraçar a doutrina cristã para continuarem presentes e tentarem ser aceitos na sociedade que renegava suas tradições, considerável parcela dos antigos adeptos da religião hebraica buscou, dentro das condições e limites possíveis, manter a herança religiosa, procurando formas de continuar fiel às crenças dos antepassados, mesmo que de forma limitada, improvisada e adaptada às parcas possibilidades então vigentes.
Gravura de 1741 (autor desconhecido) satiriza padres sodomitas num banquete dentro de uma igreja.
Dentro desse contexto, devemos ressaltar o papel feminino. A necessidade do segredo das 10
Assim se designava o judeu convertido, que recebeu o batismo quando adulto, tornando-se por isso cristão-novo, em oposição ao cristão-velho, que recebia o mesmo sacramento sempre ab infantia, nos braços de padrinhos. LIPNER, Elias. Santa inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977. p. 32.
ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia – séculos XVI e XVII. 2004. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, p. 12. 11
G N A R U S | 150 O Brasil foi um espaço privilegiado para a
religiosa, e considerado luxuria por afastar a alma
resistência criptojudaica, graças a uma relativa
dos caminhos de Deus. Tais advertências são
harmonia no convívio entre cristãos-velhos e
encontradas em diversas passagens da Bíblia.
novos, além da não existência de um Tribunal na colônia, mas sim de visitações. Prova disso é a maciça presença neoconversa em praticamente todos os espaços da economia. Havia cristãosnovos nos mais diversos meios, chegando muitos deles a ocupar cargos e posições de importância: ouvidores da Vara Eclesiástica, mestres de latim e aritmética, senhores de engenho, religiosos, profissionais vereadores,
letrados, juízes,
médicos,
escrivães,
advogados, meirinhos
e
almoxarifes, o que reflete o alto grau de miscibilidade na colônia se comparada às outras áreas de migração dos cristãos-novos partidos de Portugal,
como
o
Norte
europeu,
as
geograficamente descontínuas ocupações no Oriente e o Levante.12 Também o elevado número de casamentos que uniam cristãos-velhos e neoconversos aponta para uma maior aceitação social destes enlaces e a diluição dos atritos no convívio entre os grupos na região brasílica.
Ao longo da era cristã, a categoria da sodomia recebeu
acompanharam
os cristãos-novos. Eles, assim como os demais grupos na mira do Santo Ofício, como sodomitas, bígamos, blasfemos etc., eram alvos de suspeitas constantes.
significados, os
os
quais
desdobramentos
do
pensamento e da doutrina da Igreja sobre a natureza da Carne e do pecado – especialmente o pecado da luxúria. Ainda que, a ascensão da categoria à posição de pecado carnal mais grave que podia ser cometido por um cristão tenha sido gradual a partir da Baixa Idade Média, sua condição de pecado nefando – o pecado do qual não se deveria ousar dizer o nome – acompanhou de forma estigmatizante os seus praticantes desde os dias de S. Paulo. Os praticantes da sodomia podiam ser homens ou mulheres, uma vez que esse pecado tinha dimensões hetero e homoeróticas, sendo considerado imperfeito quando era o sexo anal entre homem e mulher e perfeito quando entre homens. A sodomia entre mulheres compunha uma dimensão paralela, chamada sodomia feminina.
A perseguição intensa que se iniciou com o estabelecimento do tribunal português assustava
diversos
No
Brasil
e
na
Europa
a
prática
da
homossexualidade, era considerada um enorme pecado e seus praticantes estavam sujeitos a diversas punições, podendo até chegar a ser queimados na fogueira pelo tribunal do Santo Oficio. Porém a vida na Colônia possuía uma realidade oposta à da Metrópole, uma vez que a
Os sodomitas nas malhas do Santo Ofício A
sodomia
é
uma
prática
fortemente
discriminada pela Igreja Católica, a qual se vale das sagradas escrituras para reprimir e orientar seus fiéis seguidores nas condutas da moral
distância entre ambas proporcionava um ambiente favorável a obnubilação de práticas proibidas, onde lá eram rigidamente mais fiscalizadas que aqui, assim como relata Laura de Melo e Souza13, onde a Colônia passa de paraíso a purgatório, SOUZA, Laura de melo e. O Diabo E A Terra De Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 13
NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 58. 12
G N A R U S | 151 devido ao fato de os depostos serem enviados à
execuções, segundo Luiz Mott15, a primeira
colônia para pagarem por seus pecados, também o
ocorreu 1613 em São Luis do Maranhão um índio
grande contingente territorial desta Colônia,
Tupinambá, infamado como tibira, foi amarrado na
muitas dessas práticas podiam ser facilmente
boca de um canhão sendo seu corpo estraçalhado
escondidas, a nudez dos índios, bem como a
com o estourar do morteiro, e o segundo em 1678,
liberdade sexual destes e dos negros, acrescidos a
um jovem negro, escravo, foi morto de açoites por
frouxidão dos costumes morais em terras do Novo
ter cometido o pecado de sodomia.
Mundo, sendo estes fatores que facilitaram a propagação e realização para as “nefandices”.
A mesma Igreja se encontrava frente a um dilema, em relação às mulheres nefandas, pois
Antes da primeira visitação do Tribunal do Santo
uma das definições para sodomia feita por
Oficio chegar ao Brasil, quem se encarregava de
Ronaldo Vainfas16 define que a prática como o ato
julgar ou casas de homossexuais na colônia, eram
da penetração anal com derramamento de sémen.
os capitães donatários, como Vainfas expõe:
Se as mulheres não possuem um pênis como
“... Protegidos pela fraqueza da estrutura eclesiástica e pela quase total ausência da Inquisição até o fim do século XVI, a instrução de D. João III a Duarte coelho, em 1534, autorizando-o a condenar e mandar executar, sem apelação nem agravo, os sodomitas de qualquer realidade que lhe viessem às mãos.14”
concretizar o ato da sodomia e ser acusada por tal pratica? Essa é uma discussão tratada por Ligia Bellini17, a qual os clérigos e doutores de igreja intrigavam-se a respeito da sodomia entre mulheres, onde alguns teóricos afirmavam que para a realização de tal prática as mulheres utilizavam-se em certos casos, de instrumentos de
Para os populares, os que mais os incomodava, eram as atitudes desses indivíduos, denominados também por Homoeróticos, por este inverterem
couro, vidro, madeira e outros mais, talvez por esse motivo, no período colonial foram poucos os registros sobre os casos de sodomia feminina.
seus papeis sexuais, uma vez que muitos demonstravam afeto publicamente ou ainda se caracterizavam, assumindo a postura e vestindo-se
Considerações Finais O Tribunal do Santo Ofício foi criado com a
como o ser do sexo escolhido. E mesmo sabendo da rigidez com que a Inquisição condenava e punia os diversos casos que lhes eram denunciados, no Novo Mundo, seu Tribunal era mais maleável a respeito de algumas dessas punições, pois também nos é sabido que na Colônia não houve nenhum caso de morte na fogueira, mas ocorreram mortes de alguns sodomitas, para ser exato, foram duas
finalidade de preservar a unidade dogmática no seio
da
cristandade,
então
abalada
pela
disseminação de movimentos heréticos. Na ocasião, os alvos principais do Tribunal foram as práticas religiosas das minorias étnicas convertidas ao cristianismo, como os judeus, mas não somente, os sodomitas, bígamos, blasfemos, luteranos e MOTT, Luiz. Relações Raciais entre Homossexuais no Brasil Colonial. Revista Brasileira de História, vol., 5, nº 10, 1985. 16 VAINFAS, Ronaldo, Op. Cit, p. 223, 224. 17 BELLINI, Ligia. A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e 15
VAINFAS, Ronaldo. Trópico Dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. P: 211. 14
Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo, Brasiliense, 1989.
G N A R U S | 152 feiticeiros (em menor número), eram alvos de suspeitas constantes. As perseguições eram intensas, na qual, o Tribunal do Santo Ofício utilizava de todos os meios possíveis para a denúncia dos possíveis hereges e para a captação de provas que o incriminasse. Na metrópole, o controle era mais acirrado, devido à presença dos tribunais, já na colônia brasílica, havia uma harmonia, entretanto, casos de heresia saíram da colônia em direção à metrópole, como visitações aqui ocorreram. Em
suma,
a
Inquisição,
utilizando
de
prerrogativas na qual considerava heréticas, em uma
busca
pela
preservação
da
unidade
dogmática cristã, nada mais fez do que manter jogos de poder, de acordo com as conveniências do momento, na qual, faz menção a seguinte passagem:
“O que emerge de tal situação é que a Inquisição nada mais era que uma arma de classes, usada para impor, em todas as comunidades da Península, a ideologia de uma única classe: aristocracia dos leigos e dos eclesiásticos.18”
Alex Rogério Silva é Mestrando em História e Cultura Social na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus de Franca). E-mail: alex465@gmail.com
Referências Bibliográficas: ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia – KAMEN, Henry. La Inquisicion española. Trad. Esp. Barcelona, 1999, pp. 10. 18
séculos XVI e XVII. 2004. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói. BELLINI, Ligia. A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo, Brasiliense, 1989. BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo, Perspectiva, 1977. HERCULANO, Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Porto Alegre: Editora Pradense, 2002. KAMEN, Henry. La Inquisicion española. Trad. Esp. Barcelona, 1999. LIPNER, Elias. Santa inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977. p. 32. MARCOCCI, Giuseppe & PAIVA, José Pedro.
História da Inquisição portuguesa (1536-1821).
Lisboa: Esfera dos livros, 2013. ______. I custodi dell’ortodossia: Inquisizione e cheisa nel Portogallo del cinquecento. Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2004. MOTT, Luiz. Relações Raciais entre Homossexuais no Brasil Colonial. Revista Brasileira de História, vol., 5, nº 10, 1985. NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. ______. ‘A inquisição’. São Paulo: Brasiliense, 1982. PROSPERI, Adriano. ‘Inquisizione Medievale’. In: Dizionario Storico dell´Inquisizione. Pisa: Edizioni della Normale, 2010. SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo E A Terra De Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. VAINFAS, Ronaldo. Trópico Dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010.
G N A R U S | 153
Mini Aula:
ORIGENS DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA DO SÉCULO XIX Por Germano Vieira1
A
primeira classificação da
sociedade é relativa ao trabalho,
separando
escravos e livres. A massa
escrava representava quase 50% da população brasileira. Os escravos eram divididos entre si por rivalidades tribais. Muitas vezes nem falavam o mesmo idioma, dificultando, ao lado da restrição da liberdade pessoal, a formação de uma camada social coesa.
[...] Mas, indiscutivelmente, a pura presença, as inúmeras revoltas provocaram um medo contínuo nas classes dominantes e influenciaram muito no seu procedimento político.
Este primeiro critério, a partir do qual
Redenção de Can (1895) – Modesto Brocos y Gomes.
podemos dividir a população em livres e escravos, não é tão esclarecedor
como poderia parecer, pois também de um negro alforriado que trabalhava em liberdade os brancos continuavam a exigir sinais de reverência e submissão. Exigiam, por exemplo, que os negros, mesmo livres, lhes cedessem o lugar nas estradas e nas ruas. Era ponto de honra, branco só hospedar branco. Mesmo nas Casas de Misericórdia faziam-se restrições ao negro livre. Embora fosse corrente o dito de que ‘negro rico é branco e branco pobre é negro’, a realidade era outra. Encontramos, assim, outro fator de classificação em que se misturavam classe e raça. A cor era critério de segregação, impedia ou limitava a ascensão social. Para subir socialmente era preciso, além de ser livre, ter cabelos bons, isto é, lisos, pele não muito escura e nariz não muito chato.” (WERNET, Augustin. O período regencial. São Paulo: Global, 1984, p. 17.)
1
Germano Martins Vieira é Graduado em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Gama Filho, Pós-graduado em História do Rio de Janeiro pelas Faculdades Integradas Simonsen, membro do Gelhis e pesquisador da Gnarus Revista de História.
G N A R U S | 154
Mini Aula:
“L’ÉTAT C’EST MOI!”
Por Germano Vieira
D
urante o reinado de Luís XIV (1643-1715), a França conheceu o apogeu do Absolutismo e tornou-se uma grande potência europeia, passando a rivalizar
diretamente com a Inglaterra a hegemonia econômica e política. Devido às grandes realizações que empreendeu em seu governo, ficou conhecido pelos seus súditos como o “Rei Sol” e entrou para a História com a célebre frase: “O Estado sou eu!” Diante desta afirmação, é possível perceber que, como a figura do rei confundia-se com a do Estado, este, enquanto instituição, não existia sem a pessoa do monarca. Embora não obtendo o mesmo sucesso na economia como Luís XIV por, entre outros motivos, abusar dos gastos públicos e exagerar na ostentação da riqueza, foi no discurso proferido por Luís XV, seu sucessor, em 1766, que o pensamento absolutista ficou mais bem expresso.
Luís XV, o Bem-Amado. “É somente na minha pessoa que reside o poder soberano... é somente de mim que os meus tribunais recebem a sua existência e a sua autoridade; a plenitude desta autoridade, que eles não exercem senão em meu nome, permanece sempre em mim, e o seu uso nunca pode ser contra mim voltado; é unicamente a mim que pertence o Poder Legislativo, sem dependência e sem partilha; é somente por minha autoridade que os funcionários dos meus tribunais procedem, não à formação, mas ao registro, à publicação, à execução da lei, e que lhes é permitido advertir-me o que é do dever de todos os úteis conselheiros; toda a ordem pública emana de mim, e os direitos e interesses da nação, de que se pretende ousar fazer um corpo separado do Monarca, estão necessariamente unidos com os meus e repousam inteiramente em minhas mãos.” (FREITAS, Gustavo de (org.). 900 textos e documentos de História, vol. 2, pp. 201-202.)
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Mini Aula: GARGÂNTUA E PANTAGRUEL
Gargântua e Pantagruel – Gustave-Paul Doré (1832-1883). Por Germano Vieira
C
ríticos do comportamento corrupto e mundano do clero católico, alguns dos humanistas do Renascimento, como François Rabelais (1494-1553), se utilizaram da forma satírica para denunciar os abusos eclesiásticos nos anos que antecederam a Reforma Religiosa. Censurados como livros
obscenos, a série de romances Gargântua e Pantagruel foram classificadas, em 1564, como obras heréticas e incluídos no Index librorum prohibitorum (Índice de livros proibidos).
“[A ilha era habitada por pássaros] grandes, belos e polidos, em tudo semelhantes aos homens da minha pátria, bebendo e comendo como homens, digerindo como homens, dormindo como homens... Vê-los era uma bela coisa. Os machos chamavam-se clerigaus, monagaus, padregaus, abadegaus, bispogaus, cardealgaus e papagau – este era o único da sua espécie... Perguntamos por que havia só um papagau. Responderam-nos que... dos clerigaus nascem os padregaus... dos padregaus nascem os bispogaus, destes os belos cardealgaus, e os cardealgaus, se antes não os leva a morte, acabam em papagau, de que ordinariamente não há mais que um, como no mundo só existe um Sol... Mas donde nascem os clerigaus?... – Vêm dum outro mundo, em parte de uma região maravilhosamente grande, que se chama Dias-sem-pão, em parte doutra região Gente-demasiada... A coisa passa-se assim: quando, nalguma nobre família desta última região, há excesso de filhos, corre-se o risco de a herança desaparecer, se for dividida por todos; por isso, os pais vêm descarregar nesta ilha Corcundal os filhos a mais... Dizemos “Corcundal” porque esses que para aqui trazem são em geral corcundas, zarolhos, coxos, manetas, gotosos e mal-nascidos, pesos inúteis na terra... Maior número ainda vem de Dias-sem-pão, pois os habitantes dessa região encontram-se em perigo de morrer de fome, por não ter com que se alimentar e não saber nem querer fazer nada, nem trabalhar em arte ou ofício honesto, nem sequer servir a outrem... ou cometeram algum crime que os poderá levar à pena de morte... então voam para aqui, tomam aqui este modo de vida, e subitamente engordam e ficam em perfeita segurança e liberdade.” (RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. In: FREITAS, Gustavo de. (org.) 900 textos e documentos de História. Lisboa, pp. 161-162.)
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Mini Aula:
BRASILEIRO: POVO PACÍFICO? Por Germano Vieira
R
evoltas populares de colonos contra excessos fiscais,
favores
privilégios
suprimidos,
e
foram
cruentamente,
como no Rio de Janeiro, em 1660, quando foi enforcado Jerônimo
Barbalho
e
sua
cabeça sangrenta foi exposta no pelourinho; ou como no
Estudo do pintor Antonio Parreiras (1860–1937) para o quadro “Julgamento de Felipe dos Santos”, pintado em 1923.
Maranhão, em 1684, quando Manuel
Bequimão
e
Jorge
Sampaio foram decapitados e Francisco Dias Deiró foi supliciado em efígie.2 Se as lutas em Minas Gerais, entre paulistas e emboabas (1708-1709), e as atrocidades do Capão da Traição foram menos cruentas do que se costuma supor, a Guerra dos Mascates (1710-1711) custou 150 vidas, 80 feridos e 490 presos; em Vila Rica, nas duas sublevações de 1720, uma e outra cruentas, o Conde de Assumar teve mais de 2.000 homens para rebater os sublevados e acabou enforcando e esquartejando Felipe dos Santos e queimando as casas dos principais revolucionários; no motim militar de 1728, na Bahia, dos 23 réus, 7 foram condenados à pena de morte, sendo os dois chefes esquartejados e os demais sofreram açoites e degredo por toda a vida para Benguela e Angola. (...) Essas explosões de sangue mostram o inconformismo do povo, o radicalismo da liderança popular e a violência e crueza da repressão pela minoria dominante. A fase colonial não valida a tese da tradição política pacífica, que uma historiografia oficial vem sustentando para abater os impulsos de revolta e para satisfazer as esperanças da minoria dominadora.” (RODRIGUES, J. H. Conciliação e Reforma no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, PP. 28-29.)
2
Supliciado em efígie: quando o réu encontrava-se foragido, após sua condenação, a punição era feita sobre sua imagem.
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Mini Aula:
SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E O "JEITINHO BRASILEIRO" Por Cindye Esquivel3
S
érgio Buarque de Holanda escrever em uma época onde a
dicotomia
modernismo
tradição era
x
muito
evidente, tornando o incômodo com as estruturas, tidas como atrasadas, muito latentes. Muito mais que lusitanos chegaram nas caravelas, o patrimonialismo advindo de famílias ibéricas também veio. Esta influência minava toda o aparato burocrático responsável por prover uma sociedade mais igualitária já que, tornava a filiação e o "apadrinhado" mais válido que
a
competência
e
respaldo
burocrático. Ranço esse que minava o progresso e representava o retrocesso. A cordialidade era também vista como uma âncora indesejada. O "homem cordial" apresentado pelo autor, representa o "jeitinho brasileiro de ser",
onde
familiaridade
o
sentimento alcança
de
âmbitos
inadequados, chegando em nossa instituição estatal. O homem cordial ajuda quem lhe aprouver, dedicando somente indiferença para aqueles que não são "da família", essa cordialidade é benquista por trazer o sentimento brando frente às ordens, entretanto, não há família de milhões, sendo então essa cordialidade um mecanismo de exclusão e o oposto. 3
Cindye Esquivel é graduanda em História e bolsista do Programa de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Simonsen, membro do Gelhis e pesquisadora da Gnarus Revista de História.
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Mini Aula:
FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO E O "SENTIDO" DE NOSSA COLONIZAÇÃO.
Por Cindye Esquivel
C
aio Prado Júnior ao escrever sobre nossa História, orienta sua análise para o viés que
possui
mudanças
mais
hirtas
(econômica e social), optando por não
avaliar o quesito institucional, por conta de sua frágil mutação. Sua obra evidencia que ainda hoje somos incapazes de bravar nossa nacionalidade, já que a mesma se encontra inconclusa, de forma a provar que mesmo que possamos dizer que chegamos a um aporte político, estamos longe de estar
sem
algemas
econômicas
e,
consequentemente, sociais. O autor deixa claro que a gênese da nossa colonização é capitalista, já foi pensada para se tornar uma engrenagem exploratória
calcada
na
escravidão,
diferentemente de colônias vizinhas, a mão de obra branca nunca foi uma real opção (até mesmo porque, Portugal não tinha "mãos" para mandar para cá, como a Inglaterra fazia com suas colônias). Mesmo que a ideia matriz tenha sido modificada (inicialmente seria só um porto de enriquecimento, uma réplica do êxito na Índia) para um povoamento, não podemos dizer que o interesse primordial (obtenção de riquezas) fora esquecido, povoar foi a forma de tornar duradoura essa obtenção (visto que o escoamento demográfico era impraticável no caso de Portugal). As pechas de nossa frágil sociedade de hoje, são oriundas, para o autor, desse primórdio exploratório escravocrata que hoje permeia as dificuldades de nossa realidade.
G N A R U S | 159
Mini Aula:
CARACTERÍSTICAS DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA NO SÉC XIX
Por Cindye Esquivel
N
ossa historiografia teve um início modesto e pouco abrangente já que se ocupava apenas por descrições voltadas para os olhos europeus e escrita por cronistas. Fomos alcançando paulatinamente a abertura do leque de abrangência, em um primeiro momento com um incômodo
sutil de Frei Vicente de Salvador e essa visão de sucesso total da colonização; Pós esse primeiro estranhamento, vimos em Antonil uma abertura nos campos alheios aqueles dos governantes e seus feitos, ele veio com uma abordagem diferenciada que, mais que meramente narrativa, instruía. Antonil nos serviu como um manual de entendimento de uma classe que até então, aparecia somente como objeto pertencente a um processo, mesmo que de forma bem inicial. Já Varnhagen aparece na leva das pesquisas do IHGB, usando uma intensa pesquisa à fontes escritas, mesmo que sendo usadas de forma descritiva, época teórica, linear, e pouco analítica; Varnhagen adota uma postura elitista, voltando sua análise para os governos em vigência e seus antecessores. Enquanto Capistrano, também rato de documentos, usa seus métodos de pesquisa científica (já adotada também por Varnhagen) para ressaltar um viés mais próximo do social, ele grassou expandir o limiar de alcance para horizontes
ainda
tidos
como
"de
pouca
importância" e trouxe o ineditamente das culturas distintas, mesmo que Von Martius já houvesse evidenciado a necessidade da inclusão das três "raças" (branca, negra e Índia) para a formação da História Nacional, foi Capistrano quem de fato trouxe essa multi-cultura para nossa escrita historiográfica.
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Mini Aula:
"CAPÍTULOS DE HISTÓRIA COLONIAL", CAPISTRANO DE ABREU E SUA RUPTURA COM MODELO HISTORIOGRÁFICO DE VARNHAGEN. Por Cindye Esquivel
C
apistrano se aloca em um momento transitório entre um momento de ranço tradicionalista da escrita histórica e aqueles que virão para desestabilizar essa corrente de tradição colonial
( Gilberto Freire. Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda...). Sua posição, enquanto historiador, foi marcada pelo intenso culto aos documentos e fontes primárias, entretanto, Varnhagen não destoava nesse sentido. O diferencial entre eles era o viés de análise dedicado ao documento, enquanto a pesquisa de Vernhagem se preocupava em ressaltar, quase de forma ufanista, os feitos da elite dirigente, visando forçar um ideal de cultura unificada; Capistrano ressalta que nossa cultura não foi importada da Europa, nossa abatatem cultural não veio nas caravelas com pitadas portuguesas em nossa receita, tínhamos um pluriculturalismo que ia além dos moldes europeus. Tínhamos em nosso país, regiões que erram desconexas em instâncias que ultrapassam a esfera geográfica, eram áreas com muito mais discordâncias que semelhanças (língua e religião) e tentar pulular um ideal único de nação em uma sociedade marcada pela escravidão, era ineficaz. Tínhamos descontinuidades pós Independência que Capistrano usufrui para ratificar a impossibilidade de uma unidade nacional, quando não logramos nem uma unidade social. Portanto, um "multi-Brasil" era muito mais palatável que um ideal unificado de nação e é ao encontro disso que Capistrano rebate Varnhagen e sua tese simplista de união cultural.
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Mini Aula:
O ROMANTISMO, A HISTÓRIA E O ILUMINISMO Por Cindye Esquivel
A
influência romântica pode levar a essência da História
para conceitos mais inovadores ou conservadores. A autonomia tão em pauta iluminista é agora criticada e vista como uma tentativa de controlar a vida a qualquer
preço, e por isso, se libertar do passado e das tradições já não é mais desejado. Mary Shelley (1797 – 1851) procura mostrar em seu romance (Frankenstein ou o moderno Prometeu, publicado em 1818) que até mesmo os conhecimentos racional e científico têm limites e que buscar a plena autonomia passaria desse limiar. O ser humano e a sociedade, segundo o Romantismo, estão submetidos a forças que não se pode controlar e precisamos aceitar e lidar com isso. O conservadorismo histórico, que tinha Edmund Burke (1729 – 1797) como fiel representante, é o contrapeso das ideias racionais e de autonomia, defendidas pelo Iluminismo, alegando que tanta abstração torna excludente a experiência vivida e a própria história. A História conservadora, portanto, ergue o seu pilar na tradição, mesmo que esta, seja de forma aristocrática e se apoiando na História Magistra para defender modelos ultrapassados que mesmo sendo adaptados, não agradam mais a maioria. A vertente defendida por Michelet (1798 – 1874) também é tradicionalista, entretanto, a inovação trazida por ele é que muda-se o foco de análise que não mais será o meio aristocrático e sim o povo. Para ele, a escrita do autor é fruto da nação e cultura as quais ele pertence, ou seja, a visão cosmopolita defendida pelos Iluministas (o objeto de estudo deveria ser visto com olhos estrangeiros) se extingue e dá lugar à aproximação inseparável do autor e sua forma de escrever História. O autor antes de ser “quem escreve”, é pertencente a um povo e esse povo (consequentemente o autor) tem sua própria História. O povo nacional tem sua experiência que não pode ser substituída por uma escrita racional e abstrata, tornando a historiografia de Michelet fortemente nacionalista. Com esses dois autores em questão (Michelet e Edmund Burke) podemos perceber que ambos desconsideram a possibilidade de a História ser uma ciência totalmente racional, como era defendida no Iluminismo e que cada um com sua vertente, nos traz formas distintas de escrever História.
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Mini Aula:
O DOCUMENTO COMO MATÉRIA-PRIMA DA HISTÓRIA:
Por Fernando Gralha
A
História, segundo o historiador francês Marc Bloch, é o estudo das sociedades humanas no tempo; assim, tem como matéria-prima tudo que comprove, explique e esclareça como as pessoas viviam num determinado tempo e lugar. A produção do conhecimento histórico deve ser feita com base em
indícios, restos e pistas, ou seja, documentos analisados pelo historiador tornam-se fonte do conhecimento sobre o passado. São, portanto, as fontes históricas. Denomina-se fonte histórica todo documento trabalhado pelo historiador em sua busca de conhecimento sobre o passado. Tal noção inclui uma outra, a de registro, utilizada até agora nesta exposição, como sinônimo de documento. Assim, o termo registro, que no dicionário tem uma multiplicidade de significados, está sendo utilizado como uma forma de guardar, de comprovar a existência de algo, de servir como atestado, portanto, de documentar uma experiência coletiva, ação ou sentimento. Assim, os registros do passado também podem ser considerados fontes históricas.
G N A R U S | 163
Mini Aula:
HISTÓRIA, CONFLITO E MUDANÇA
Por Fernando Gralha
A ideia de conceber a realidade como movimento/mudança e de atribuir ao conflito um papel essencial tem, talvez, em Heráclito de Éfeso (540-480 a.C.), filósofo grego anterior a Sócrates,
seu
pioneiro
e
principal
representante. É dele o aforismo “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (B 91), que os historiadores costumam utilizar para concluir, corretamente, que a História não se repete: tudo muda o tempo todo. Ele também escreveu: “O conflito é pai de tudo, de tudo é rei; designou uns para deuses, outros para homens; de uns fez escravos, de outros, livres” (B 53). O conhecimento científico pode ser resumido à relação entre o sujeito do conhecimento (sujeito cognoscente) e o objeto a ser conhecido (objeto cognoscível). Para aplicar essa definição de ciência à História e compreender os problemas específicos da ciência histórica,
Heráclito, em detalhe do afresco pintado por Rafael, “A Escola de Atenas”
precisamos refinar nossa definição. Para tal, vamos recorrer a outro historiador francês, Marc Bloch (1886-1944). Ele afirmou no início do século
XX: “A História é a ciência dos homens no tempo.” E aqui nos defrontamos com o primeiro e maior problema para a produção do conhecimento científico da História: o sujeito (o historiador) e o objeto (os homens no tempo) são o mesmo, isto é, homens.
G N A R U S | 164
Mini Aula: A FILOSOFIA MEDIEVAL
Por Fernando Gralha
A
té pouco tempo atrás, a Idade Média, como um todo, era apresentada como uma época na qual os seres humanos, subjugados à autoridade do dogma religioso – e essa visão se aplicava ao pensamento filosófico cristão, judeu e islâmico – esgotavam-se em discussões de problemas imaginários. Ainda hoje os termos “medieval” e “escolástico” têm sentidos nitidamente pejorativos.
A Filosofia Medieval só recentemente foi reconhecida como filosofia propriamente dita (BOEHNER; GILSON, 1982), pois suas obras eram consideradas como textos teológicos. Para conhecê-la, é preciso observar alguns elementos do longo debate ocorrido entre as religiões monoteístas e as ideias filosóficas greco-romanas. Com o fim do Império Romano no Ocidente, a Igreja Cristã se manteve como uma importante instituição social e política, consolidando sua organização religiosa e difundindo o cristianismo. Podemos dizer que a religião cristã que conhecemos após o ano mil da nossa era é a síntese de elementos do judaísmo, religião da qual se originou, da própria experiência cristã e da cultura helenística e, desta síntese, se originou a tradição cultural ocidental. Segundo Luiz Alberto de Boni:
“A Filosofia Medieval leva consigo um problema peculiar, que provocou respostas as mais divergentes: o problema de uma Filosofia estreitamente relacionada com a Teologia. Não se trata apenas de um cunho religioso do saber, peculiar ao pensamento filosófico até Hegel. No pensamento medieval, tanto no cristão, como no árabe, como no judaico, a Filosofia encontra-se imbricada em uma religião revelada” (BONI, 1988, p. 59).
Assim sendo a Filosofia Medieval se constituiu dentro das categorias teológicas e é a teologia que confere unidade ao mundo medieval, ainda Segundo Boni: “Não se trata de negar o íntimo relacionamento existente entre religião e filosofia durante o período em questão. Aliás, até Kant, este relacionamento foi sempre muito estreito, e em Hegel é fundamental. (...) Por isso, o critério de entrelaçamento com a religião cristã não é suficiente para delimitar a filosofia medieval e não permite, inclusive, que se estude o pensamento árabe e judaico da época. É preferível, pois, procurar parâmetros dentro da própria Filosofia. Nesse sentido, julgamos poder definir a Filosofia Medieval como aquela Filosofia que, durante um período de cerca de mil anos, procurou recuperar para a humanidade ocidental, repensando-o, o vasto legado greco-romano.” (BONI, 1988, p. 64-65).
Manuscrito medieval representando uma reunião de doutores na Universidade de Paris.
G N A R U S | 165
Coluna:
A IMAGEM DO SONHO NO CINEMA Por Rafael Eiras
O
filme
Morangos
(Smultromstallet,
Suécia,
Silvestres 1957),
do
em sequências carregadas de lirismos e marcando para o
espectador
um universo
até então
diretor sueco Igmar Bergman é um cinema
negligenciado pela narrativa usual, onde o tempo
direcionado para o inconsciente 1humano, repleto de
linear, construído pela narrativa clássica, se dilui em
momentos oníricos e delírios, onde o passado é
pausas dramáticas.
evocado no presente formando um outro tempo
Bergman é conhecido por colocar em seus filmes
fílmico, a imagem do sonho. Lugar em que as
uma preocupação regular; fazer um estudo das
emoções do personagem principal são materializadas
relações humanas através das teses freudianas,
FREUD, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro Imago. 2004 Segundo Freud o inconsciente é o conjunto dos conteúdos não presentes no campo afetivo da consciência, É constituído por
conteúdos recalcados aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente.
1
G N A R U S | 166 desenvolvendo assim uma maneira particular de
Finalmente quando chega ao seu destino Isaak já não
cinema, quase metafísico. Enquanto a forma clássica
é mais a mesma pessoa.
do cinema contar uma história, herdada dos
Todo este processo caracterizado por esta brusca
primeiros filmes montados, de mestres como D.W.
tomada de consciência, de quem o personagem foi e
Griffith, privilegiavam muito mais a ação dramática, o
do que havia reprimido em seu inconsciente, é
diretor sueco tinha nos momentos não dramáticos sua
apresentado por imagens confusas e sentimentais.
principal força.
Nestas o “eu lírico” se revela como símbolos de um
A narrativa clássica quando apresentava o sonho
universo íntimo, de um homem perplexo e
fazia de uma forma tão racional quanto a própria
angustiado pela proximidade da morte. Símbolos que
vigília, onde a estrutura tanto narrativa quanto
são gerados pela manipulação consciente dos
semiótica
recursos técnicos da estética cinematográfica.
não
buscavam
potencializar
a
subjetividade inerente a este estado. Desta forma
O cinema é uma ferramenta de ilusão poderosa, ele
todas as cenas apresentadas deveriam gerar um
faz as pessoas se transportarem para um outro
entendimento claro e de rápida assimilação.
"mundo possível”2 no qual um tipo de realidade se
A história de Morangos Silvestres se inicia com a
apresenta, mesmo que esta não esteja de acordo com
viajem do Dr. Isaak Borg para receber uma
as regras racionais da vida. Quando começamos a ver
condecoração pelos serviços prestados durante
um filme ele nos apresenta imagens, sons, atuações,
cinquenta anos de medicina. A viagem, que deveria
que retratam um universo próprio, com regras
ser feita de avião, acaba sendo feita de carro e no
próprias. Em um musical o fato das pessoas se
decorrer deste trajeto o personagem com a ajuda de
comunicarem cantando não impossibilita a aceitação
sonhos, visões oníricas, e de delírios, sofre um
do espectador deste mundo estranho, se levarmos em
doloroso processo psicológico de autoconhecimento
consideração que no mundo ordinário não se fala
tardio. Basicamente, ele irá se ver diante da morte e
cantando. Isto ocorre por que as regras deste mundo
descobrir que devido a sua postura racionalista e
foram apresentadas no começo do filme, como um
objetiva nunca fora realmente amado.
momento contratual em que o espectador aceita
Junto com ele está sua nora Marrianne, e no trajeto, acaba dando carona para dois rapazes e a uma moça,
entrar na estória e participar das regras impostas pela narrativa. Esta é a famosa magia do cinema.
e mais tarde a um casal que vive brigando. Antes de
No entanto há na obra de Bergman uma quebra
chegar ao destino, o velho doutor, ainda se detém nos
com a forma dramática clássica, pois o filme é diluído
arredores de um antigo casarão onde havia passado a
no lirismo psicológico do personagem principal.
infância e onde sofre delírios relacionados a um amor
Diluição que cria uma falta de clareza lógica na
da juventude. Ele também faz uma breve visita à casa
evolução dramática do filme. E consequentemente
de sua mãe percebendo a frieza com que foi criado.
cria um choque neste acordo entre o espectador e a
2
ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985
G N A R U S | 167 obra. No musical, mesmo com os diálogos musicais a ação dramática seque seu rumo, já numa sequência voltada para o lirismo não. Para o cineasta Luiz Buñuel a forma Poética é uma crítica a forma clássica, pois esta se limitava a imitar o romance e o teatro e desta forma ela seria menos rica para expressar psicologias. Para ele a arte cinematográfica era uma forma de expressar a vida subconsciente tão profundamente presente na poesia, mas quase nunca era usado com este propósito.
“...o cinema é uma arma magnífica e perigosa. É o melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções, do instinto O mecanismo produtor, das imagens cinematográficas é, por seu funcionamento intrínseco, aquele que, de todos ao meios de expressão humana, ou melhor, mais se aproxima do estado da mente em estado de sonho...”1 Um cinema poético então, segundo Buñuel, seria o cinema que se libertaria da realidade para poder lidar
ação progredir degrau após degrau com um destino
com sentimentos, instintos, vontades.
definido. Porem esta progressão dramática pode
Normalmente em um drama clássico a ação dramática é quem faz com que o drama prossiga, ela
conter outras características que afetem mais ou menos este desenvolvimento dramático.
é a relação intersubjetiva, ou seja, a relação entre
No caso de Morangos Silvestres o psicológico do
pessoas. Ela é, portanto a execução de uma vontade
personagem acaba revelando o seu “eu poeta” com
humana. A finalidade de uma ação só é dramática se
todo o seu lirismo. A forma lírica é a forma que está
produz outros interesses e paixões opostas, criando-
presente no poema, é a voz de um poeta, que em
se o conflito dramático; uma ação desencadeada por
primeira pessoa mostra seu mundo interior. Porém
uma vontade que tem um determinado objetivo e
não se pode dizer que o filme é uma obra
colide com interesses e paixões. A unidade de ação
completamente lírica3, pois mesmo diluído na
clássica se dá na realização de uma meta
subjetividade, a ação acontece. Diferente de
determinada, através de um conjunto de conflitos2.
experiências anteriores em que o cinema se desligava
Ou seja, num drama clássico cada cena deve fazer a
completamente de uma narrativa presa aos padrões
BUÑUEL, Luis. Cinema: como instrumento de poesia in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg334
2
1
ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985 3 ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985
G N A R U S | 168 clássicos, como no surrealismo, Bergman cria uma
esta força tão contraria a racionalidade aristotélica e
forma de narrativa que mesmo atrapalhando e
que permeia toda a história da humanidade. O
diluindo a narrativa, acaba por torna-la mais rica e
próprio ato de se assistir a um filme e responder aos
coerente num jogo quase dialético. E por tanto a
estímulos que a imagem em movimento cria, quase
imagem do sonho em seu filme ganha uma potência
como se aquilo fosse real, também é um estado de
até então nunca trabalhada antes.
magia, onde o espectador se encontre imerso na
É no sonho que a forma lírica se mostra mais
narrativa.
presente por que é neste estado que o inconsciente
Todos estes aspectos formam a ideia de que é
humano é revelado, pois os sonhos mostram os
preciso se quebrar, ou diluir, a forma clássica da
sentimentos e desejos escondidos. O fato da técnica
imagem-ação7, ou “a Grande Forma”, para se
cinematográfica, por exemplo, recorrer ao sonho
arquitetar uma imagem de sonho. Mais que
quando se quer dizer certas coisas vedadas a um
puramente a ideia de um drama clássico a “Grade
entendimento racional é um exemplo disto. A
Forma” é uma maneira de se perceber o cinema
psicanálise diz que os sonhos4 seriam a representação
clássico do ponto de vista da semiótica. Importante se
de um conjunto de pensamentos que estão
falar desta ideia porque ela traz na sua postulação a
reprimidos no inconsciente e querem se tornar
ideia de que as ações no filme têm que ser
conscientes. Nos sonhos do Doutor Isaak Borg,
legitimadas pelo ambiente, coisa que não acontece
podemos encontrar dês do seu medo da morte
no Sonho. Para Deleuze o cinema de imagem e ação
eminente até sua infelicidade sexual com a esposa.
está impregnado de segundidade8 ou de Syn-signo,
Esta
linguagem
que é a ideia do meio atualizando as qualidades e
cinematográfica pode ser libertadora, pois não é
potências. É a ambiência ditando o que se tornara
preciso seguir nenhuma regra vigente no mundo
ação porque é através de suas qualidades que as
racional. Por este motivo o sonho é em sua origem um
personalidades iram vir à tona. Para existir uma ação
elemento poético. E também por que no sonho se
é necessário que o meio em que ela se propagara seja
encontra o completo estado de magia, onde a
definido, pois este ambiente definira tudo; quem é o
subjetividade é tanta que no momento em que se esta
bonzinho, quem é o malvado, quem é o selvagem e
nele se acha que vivencia a verdade.5
etc. No Faroeste, por exemplo, se pode perceber o
ferramenta
onírica
para
a
Para Edgar Morin6 o sonho nada mais é que um
ambiente como definidor das ações e das reações que
estado em que o indivíduo se encontra atolado por
culminaram na estrutura dramática clássica: S-A-S´ (S:
sua própria subjetividade, pois tudo o que se passa
situação inicial, A: ação transformadora, S´: situação
nele é uma criação do sonhador. Desta forma é
final); o Cawboy tem que agir contra os índios que são
através desta participação afetiva que nasce a magia,
selvagens. Tudo isto definido em poucos planos onde
FREUD, Sigmund. Interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago. 2001 5 MORIN, Edgar. A alma do cinema in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg 143 6 idem
7
4
DELEUZE, G. Cinema: Imagem-movimento. Rio de Janeiro: Brasiliense 1985 8 METZ, C. A significaçao no cinema . Rio de Janeiro: Pespectiva. 1972
G N A R U S | 169 os índios atacam uma diligência, como no filme do
completo e se volta para um mundo lírico rico em
diretor John Ford, “No Tempo das Diligências”
imagens poéticas. Por exemplo, em uma sequência
(Stagecoach, Estados Unidos, 1939)
do filme vemos: um homem afiar sua navalha e corta
No sonho o ambiente não dita as ações, pois estas
o globo ocular de uma mulher. Em seguida vemos um
já não têm uma relação de racionalidade. No mundo
ciclista passar pela rua, ele cai e uma mulher vai
onírico não há a necessidade de uma ação (como
ajudá-lo. Depois na casa da mulher, se vê a mão
vemos no esquema S-A-S´) e sim o desejo desta ação.
cortada do ciclista, cheia de formigas. Na imagem
Quando as ações se voltam para o desejo elas já não
seguinte a mulher aparece na rua vestida como um
necessitam de ser explicadas, elas são frutos de um
homem, empunhando a mão como um bastão e um
esquema voltado não para a imagem como a
carro a atropela. Chega-se nesta obra no máximo da
exemplificação das qualidades e potências de um
imagem sonho, onde o real é este sonho, e não há
filme, e sim as imagens como ideias mentais.9
uma ação dramática.
O
Surrealismo10
traz em sua gênese estas imagens
Segundo Martine Joly no seu livro “introdução à
do sonho, ou seja, traz na sua maneira fantasiosa de
análise da imagem”11 a noção de imagem no campo
realidade uma imensa porção de subjetividade. Isto
das artes é vinculada essencialmente ao visual:
devido a sua origem, ele è fruto de uma corrente
afrescos, pinturas, ilustrações, desenhos, gravuras,
moderna de arte que sempre buscou representar o
filmes, vídeo, fotografia. No entanto um dos sentidos
irreal e o subconsciente para que a emoção mais
de imagem, do latim Imago, designa a máscara
profunda do ser tenha todas as possibilidades de se
mortuária usada nos funerais na antiguidade romana,
expressar com a aproximação do fantástico, no lugar
estando relacionada a um espectro ou a alma de um
onde a razão humana perde o controle. Impulsionada
morto.
mais pelo desejo do que pela necessidade. Por isso
È nesta ideia de imagem que se pode perceber a
suas imagens são de sonho, mesmo que este não
imagem do sonho, a concepção da imagem como um
esteja sendo revelado como tal.
reflexo, uma sombra de algo material ou imaterial.
No curta-metragem “Um Cão Andaluz” (Un Chien
Para o cinema da “grande forma” a imagem seria a
Andalou, França, 1929) filme feito em parceria do
representação de um ambiente e suas qualidades, já
diretor espanhol Luis Buñuel e o expoente da pintura
na quebra deste paradigma ela seria a ideia de que se
surrealista Salvador Dali, se pode aceitar a completa
faz do homem e do seu mundo, o abstrato que se
falta de lógica do mundo apresentado. Os dois
encontra no universo da subjetividade.
roteiristas escreveram seus sonhos e depois os
A imagem neste sentido é uma construção do
filmaram transformando a obra em uma produção
homem. È um signo que requer ser interpretado por
feita com os princípios surrealistas, onde a narrativa
um indivíduo e sua bagagem cultural. Vilém Flusser,
se despe das características clássicas de drama por
em “Filosofia da Caixa Preta”, coloca a imagem como
9
11
DELEUZE, G. Cinema: Imagem-Movimento Rio de Janeiro: Brasiliense 1985 10 BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify. 2000
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem São Paulo: Papirus editora. 2006 pg 18.
G N A R U S | 170 objeto oferecedor de símbolos “conotativos”. O olhar
cenográfico de forma que ele crie códigos bem
do receptor sobre as intenções do emissor é quem
subjetivos e que passem uma ideia mental. As paredes
estabelecerá relações significativas entre os símbolos
da casa onde moram três irmãs e uma governanta são
ali representados. Refere-se à interpretação das
de um vermelho bem forte, tentando passar a
imagens como “tempo de magia” elas “Devem sua
mensagem de que a casa que elas vivem seria o útero
origem à capacidade de abstração específica que
materno. E o grande problema das irmãs é a relação
podemos chamar de imaginação”.12
delas com a mãe.
O poder da imagem neste sentido abstrato está
Nesta categoria de cinema, se podemos
justamente no poder de se criar códigos que
chamar assim, há um inevitável e forte apelo
possibilitem a uma ideia não voltada a necessidade
emocional do autor da obra, no caso do diretor sueco,
de uma ação, mas sim ao desejo poético de se mostrar
ele coloca em cada elemento técnico da filmagem
o inconsciente de um personagem, uma ideia
um pouco de sua experiência pessoal. É justamente
política, ou até uma simples brincadeira, através de
como um poeta escrevendo. Bergman falou sobre
um sonho ou delírio. “O caráter mágico das imagens
como pensou Morango Silvestres e seu envolvimento
é essencial para a compreensão das suas mensagens.
pessoal:
Imagens são códigos que traduzem eventos em
“Suponho que um dos motivos mais fortes que se esconderam atrás de Morangos Silvestres está justamente nisso. Eu fazia uma ideia da minha pessoa a partir da pessoa que meu pai era e procurava uma explicação para os conflitos que tinha com minha mãe. Percebia que eu fora um filho não desejado, parido durante uma crise física e psíquica de minha mãe”10
situações, processos em cenas”. 13 Assim a subjetividade se apresenta na origem do cinema, diferente do que pensa André Bazin, 14 quando ele afirmava que em um fotograma se pode extrair uma arte completamente objetiva, sem a intervenção subjetiva do ser humano. Propagando a ideia de que numa fotografia, ou num dos vinte quatro quadros por segundo do cinema, esteja
Na primeira cena de sonho de Morangos Silvestres,
registrado uma verdade absoluta, quase como um
e é importante analisá-la porque ainda não se sabe
fetiche de realidade gerado pela frieza objetiva da
muita coisa sobre o personagem e por isso se tem
máquina fotográfica. Um erro essencial, pois toda
pouca noção de seus sentimentos verdadeiros,
fotografia tem em sua gênesis um ponto de vista, uma
vemos:
ideia.
O Doutor Isaak Borg caminhar por ruas desertas.
Em um outro filme do diretor sueco Igmar Bergman
Ele para em frente a um poste e olha para cima
intitulado “Gritos e Sussurros” (Viskningar Och Rop,
enxergando um relógio sem ponteiro onde em cada
Suécia, 1972) podemos pensar no ambiente
um de seus lados se encontram dois outros círculos
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
14
12
2002 13 idem
BAZIN, André Ontologia da imagem fotográfica in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg 121. 10 BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo: Matins Fontes. 2001.
G N A R U S | 171 como se fossem outros dois relógios. A diferença é
Doutor percebe que é ele próprio no caixão.
que nessas duas esferas menores se encontra um olho
Apavorado ele acorda.
para cada círculo, quase como um óculos. O Doutor
O que se percebe nesta sequência é que as imagens
pega seu relógio no bolso e percebe que este
não projetam ações voltas para a necessidade e sim
também está sem ponteiro, pensativo e confuso ele
por um desejo. Ou seja, o ambiente não gera a ação
vacila em que direção tomar e quando vai retomar o
racional do personagem, ele passa na verdade um
caminho vê do lado do poste um homem de costas.
estado de espírito, e agrega em sua formação uma
Ele vai até ele e o vira. O que o doutor vê assustado é
serie de símbolos que geram imagens intelectuais,
um corpo sem rosto. Imediatamente o homem sem
desprovidas de uma coerência com as ações do
rosto cai no chão e começa a jorrar sangue pela
personagem. Uma das interpretações poderia ser a
cabeça. Confuso o doutor olha para frente e continua
de que o doutor está com medo da morte e sente que
a andar até parar numa esquina e olhar uma carroça
sua hora estar por vir.
sem motorista transportando um caixão. A carroça
Neste âmbito o que se tem é a significação da
prende sua roda no poste. Os cavalos forçando a
imagem. Uma imagem pode gerar algum sentido que
carroça para que ela se desprenda fazem o caixão
não está relacionado necessariamente a narrativa da
escorregar. Por uma fresta que se abriu na queda o
história, ou que servem, como no caso do filme, para
G N A R U S | 172 enriquecer o conhecimento sobre a psique do
Afinal toda imagem deve ser lida16 e interpretada,
personagem. Neste sentido a imagem do sonho e
mesmo quando não é uma imagem poética. Pois os
responsável por cria códigos que não podem ser lidos
sentidos são diferentes de uma pessoa para outra, a
objetivamente, e que dependem também da
subjetividade de quem assiste é o fim do significado.
participação afetiva do espectador que tenta de
Esta ideia reforça uma hipótese que na verdade
alguma forma interpreta-las e inseri-las no contesto
qualquer imagem pode ser de sonho e o que regularia
dramático da história. Uma interatividade que
esse limite seria o uso ou não das técnicas narrativas
exercita tanto a imaginação do espectador como cria
clássicas. O sonho no cinema então é a falta de
reflexões bem mais complexas acerca da obra.
narrativa, pois seu principal objetivo é contar o que
Outra cena importante é visita do Doutor Isaak à
não se pode contar e sim sentir. Não há espaço para
sua antiga casa, local onde foi criado e teve seus
uma imagem-sonho sem que haja algum mistério
primeiros amores. Lá ele tem um delírio acordado e
subjetivo a ser desvendado. Por isso a imagem dos
se depara com seu antigo amor da juventude e a sua
sonhos são os momentos em que os seres humanos
própria imagem ainda jovem. Neste momento, uma
podem realmente se libertar de suas realidades
espécie de sonho acordado, o personagem está em
formais.
um limbo temporal e espacial, um novo espaçotempo criado pelo diretor, onde a fácil desculpa do estado de sonho não é mais usada e o lírico realmente
Rafael Eiras é formado em Cinema pela Universidade Estácio de Sá e graduando em História pela Universidade Cândido Mendes.
se mistura diretamente com a ação dramática. Neste ponto a ideia de realidade que a narrativa clássica tenta buscar se racha, e o lirismo flui como um rio
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
atemporal e mágico.
AMENGUAL, Barthélemy. Chaves do Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1973 AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papiros editora. 2005 AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus.1995 ARMANDO, Carlos. O Planeta Bergman. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989 BILHARINA, Guido. O cinema segundo Bergman, Feline, e Hitchcouk. Uberaba: Instituto Triangular de Cultura,1999 BJORKMAN, Stig. O Cinema Segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz e terra,1977 BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify.2000BERGMAN, Ingmar. Imagens.São Paulo: Matins Fontes. 2001 CARRIÉRE, Jean-Claude. A linguagem do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995
Como ressalta Edgar Morin no seu livro “A alma do cinema”
15,
a
fotografia,
a
iluminação,
o
enquadramento podem gerar angustia, podem exaltar a espiritualidade, podem passar ideias e pensamentos diversos, dependendo da intenção do artista. Importante no entanto é que esta subjetividade ajude a criar a estética que a obra se propõe, tanto derrubando com a estrutura clássica por completo, ao renegar a narrativa, ou inserindo momentos líricos a esta.
MORIN, Edgar. A alma do cinema in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg 143 16 AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papiros editora. 2005 15
G N A R U S | 173 DELEUZE, G. Cinema: Imagem-movimento Rio de Janeiro: Brasiliense 1985 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2002 FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Rio de Janeiro: Imago. 2003 FREUD, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro Imago. 2004 FREUD, Sigmund. Iterpretaçao dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago. 2001 JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem São Paulo: Papirus editora. 2006
METZ, Cheistian. A Significação no Cinema. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva. n.54. 1972 PALLOHINI, Renata. Introdução à dramaturgia. São Paulo: Brasiliense. 1983 PARENTE, André. Ensaio Sobre o Cinema do Simulacro. Rio de janeiro: Pazulin.1998 RIVEIRA, Tânia. Arte e Psicanálise. São Paulo: Jorge Zahar. 2002 ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985 SILVA, Alberto. Cinema e Humanismo. Rio de Janeiro: Pallas S A.1975 XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983
REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS
MORANGOS SILVESTRES Ficha Técnica
Título Original: Smultromstallet Gênero: Drama Tempo de Duração: 95 minutos Ano de Lançamento (Suécia): 1957 Distribuição: ABS Avensk Filmindustri Direção: Ingmar Bergman Roteiro: Imgmar Bergman Produção: Alan Ekelund Música: Eric Nordgrn Fotografia: Gunnar Fischer Direção de Arte: Gittan Gustafsson
Elenco Victor Sjôstrôm Bibi Anderson Ingrid Thulin Gunaa Bjornstrand
UM CÂO ANDALUZ Ficha Técnica
Título Original: Un Chien Andalou Gênero: Drama Tempo de Duração: 16 mm Ano de Lançamento (França): 1929 Direção: Luis Buñel Roteiro: Luis Buñel e Salvador Dalí Produção: Luis Buñel Música: Richard Wagner Fotografia: Albert Duverger
Elenco Pierre Batcheff, Simone Mareuil, Luis Buñuel, Salvador Dalí
GRITOS E SUSSURROS Ficha Técnica Título Original: Viskningar Och Rop
Elenco Harriet Andersson (Agnes) Kari Sylwan (Anna)
G N A R U S | 174
Gênero: Drama Tempo de Duração: 90 minutos Ano de Lançamento (Suécia): 1972 Estúdio: Cinematographica AB / Svenska Filminstituet Distribuição: New World Pictures Direção: Ingmar Bergman Roteiro: Ingmar Bergman Produção: Lars-Owe Carlberg Fotografia: Sven Nykvist Desenho de Produção: Marik Vos-Lundh Figurino: Marik Vos-Lundh Edição: Siv Lundgren
Ingrid Thulin (Karin) Liv Ullmann (Maria) Anders Ek (Isak) Inga Gill (Contador de histórias) Erland Josephson (David) Henning Moritzen (Joakim) Georg Arlin (Fredrik)
NOS TEMPOS DAS DILIGÊNCIAS Ficha Técnica Título Original: Stagecoach Gênero: western Tempo de Duração: 96 minutos Ano de Lançamento (EUA): 1939 Estúdio: warner Direção: John Ford Fotografia: Bert Glennon
Elenco John Wayne Claire Trevor George Bancroft Louise Platt Andy Devine Claire Trevor Tim Holt John Carradine Donald Meek Thomas Mitchell Berton Churchill
G N A R U S | 175
Coluna:
O NUEVO CINE LATINO-AMERICANO E UMA ARGENTINA MEMORIOSA Por: Renato Lopes
O presente texto tem por objetivo fazer uma breve exposição do movimento cinematográfico conhecido como “Nuevo cine latino-americano”, com vistas a contextualizar uma de suas obras mais expressivas, o filme “A História Oficial” de Luiz Puenzo, 1985. Ao mesmo tempo busca traçar relações entre a memória de uma Argentina em processo de redemocratização e as memórias clandestinas que emergem nesse momento e a forma como são retratadas através da imagem cinematográfica.
O NUEVO CINE LATINO AMERICANO E SEU PAPEL NO REDEMOCRATIZAÇÃO ARGENTINA
“Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que permitam escapar à
condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes” – Paulo Emilio Salles Gomes.
G N A R U S | 176
A
o começar a esboçar um pouco sobre a
criativo, nos 50/60 e anos 80, estava presente em
trajetória do cinema latino americano, o
seu
crítico e historiador Paulo Emilio Salles
cinematográfico que geraria uma série de rupturas:
emite este diagnóstico, tanto estrutural quanto
a busca por um cinema que retratasse os problemas
estético, que acaba por expressar também a tônica
do terceiro mundo, a busca de alternativas por um
dominante que moldaria o nosso cinema em fins
desenvolvimento que gerasse menos exclusão e
dos anos 50 e início dos 60 e que posteriormente
mais empoderamento as classes de poucos
seria retomada no imediato pós-ditaduras, na
recursos, um cinema de cunho político social que
redemocratização: um cinema de poucos recursos
fosse militante, que buscasse a identificação entre
materiais, porém de grande inventividade estética
seu público e ao que ele assistia, gerando uma
(linguagem utilizada no direcionamento da
conscientização ao passo que aumentaria a
mensagem) e onde a forma não prevaleceria sobre
participação de popular de grupos historicamente
o conteúdo, mas que buscar-se-ia uma relação
excluídos2.
bojo
essa
discussão
externa
ao
fato
dialética entre ambos. A
O
essência desse Nuevo
subdesenvolvimento,
Cine latino-americano, do
próprio
dado
Cinema
em
aceita passivamente, um novo caminho começa a
ruptura provocada por
se desenhar, onde a falta
fatores extrínsecos ao
de recursos, longe de ser
elemento
uma deficiência técnica,
cinematográfico, de um que
aparecem
seria
novas
tributário as discussões
da
ruptura
e
da
elaboração
ambos
os
contextos
de
sua
emergência
e
1
de
da
uma
linguagem estética que prima por dialogar com
radicalização política.1 Em
formas
a
vez intervém na própria
continente vivia. Seria a artística
ligados
expressão que por sua
políticas-sociais que o vertente
latino
americana, deixa de ser
uma continuidade. Uma
cinema
a
cinematografia
uma
ruptura, mas do que em
próprio
que
marcaria
Novo brasileiro, estava calcada
estrutural
a sociedade da qual emana
(Paranaguá).
boom
PARANAGUÁ, Paulo Antônio. O Cinema na América Latina: Longe de Deus e perto de Hollywood. Coleção Universidade Livre. São Paulo,L&PM. 1985 pg.66
MENDES, A.R.S O Nuevo Cine Latino-americano e a filmografia sobre os Regimes Civil-militares. In: Revista 2
Intellectus / Ano 05 Vol II –2006 ISSN 1676 –7640
G N A R U S | 177 Como nos índica Mendes:
sócio-política, não cabe em uma estrutura narrativa
“Maquiagem e iluminação, utilizados para realçar e padronizar o belo, não deveriam estar presentes. A ausência desta beleza seria o retrato de uma América Latina que se buscava distante de Hollywood. Fernando Birri afirmava que deveria se procurar “um desaliño provocado” com o qual concordava Nelson Pereira dos Santos.5 Sinalizando para as características do cinema na década de 1950, Avellar indica que a perspectiva não era a de representar o mundo, mas sim de reapresentá-lo”3 Muitas são as formas de proclamar este novo cinema “Uma estética da fome, uma estética da violência” segundo Glauber Rocha. “Um terceiro cinema, militante, oposto ao cinema alienado, comercial, dominante, bem como o cinema reformista, colonizado, de autor”, para os argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino. “Um cinema imperfeito”, para o cubano Julio Garcia Espinosa. “Um cinema coletivo, junto ao povo”, defende o boliviano Jorge Sanjinés. Em comum a todas essas proclamações podemos perceber que acaba recaindo sobre o cineasta, e ele aceita de muito bom grado, seu papel de produzir ideologias,
fomentar
discussões,
gerar
representações da realidade que os permeavam. Era um cinema que ao mesmo tempo que propunha uma linguagem, um conteúdo a ser discutido, negava veementemente seu enquadramento em qualquer escala de produção e reprodução a nível industrial ou mercadológico, busca se desvencilhar de qualquer formula pré fabricada e maniqueísta, seu intuito e abarcar toda a realidade que não é contemplada
pelos
consagrados
esquemas
narrativos do cinema maisntream hollywoodiano. Assim o nuevo cine latino-americano torna-se a afirmação de que a verdade, fruto da discussão 3
Ibdem.
4
Idem nota 02
arraigada em conceitos pré-concebidos. O que vem tornar o nuevo cine latino americano ainda mais revolucionário é sua ânsia de fincar a sua linguagem em uma realidade altamente distinta daquela retratada e vendida pelo cinema estadunidense, e que tanto sufocava a produção local.
O Nuevo Cine na Redemocratização Argentina Evidentemente que um cinema com esta perspectiva revolucionária seria prontamente calado quando da consumação dos golpes militares pelo cone sul entre metade dos anos 60 e 70. Afinal dada sua dimensão política e revolucionária seria uma arma apontada contra os ditadores que governavam impunemente. Cineastas e roteiristas que estavam na vanguarda dos movimentos cinematográficos foram silenciados ou preferiram o exílio. Mas apesar de todo o sufocamento a qual fora submetido o nuevo cine, no período de derrocada dos regimes militares ele volta a emergir, com sua temática político-social, cujo foco agora erma justamente os regimes civil-militares que se encerravam no cone sul. Embora não fosse necessariamente o mesmo cinema, nele estava contido a semente daquele mesmo movimento dos anos 60/70, mesmo porque muitos de seus principais realizadores estavam de volta a cena.4 Esta nova fase do nuevo cine, por assim dizer, vem aliar-se as memórias populares referentes aos períodos ditatoriais e tentam substituir a memória oficial propagada pelo regime, por uma memória que ficou clandestina, silenciada, dos moviments populares que resistiram as ditaduras. Havia-se um
G N A R U S | 178 comprometimento em buscar uma verdade que
instrumento criador de representações históricas, e
teria ficado ocultada, tinha-se novamente um
agente ativo do processo de construção da
cinema militante, de reflexão sobre a realidade
memória. Para isso devemos sempre considerar o
latino americana.
contexto em que o filme foi produzido, quem o
Vale ressaltar que nesse momento, mais do que convergências, ocorrem rupturas no seio do movimento dicotomização
cinematográfico. presente
O
grau
de
anteriormente
nas
películas do nuevo cine, agora dá lugar a um processo de vinculações institucionais que refletem os interesses de determinados grupos, nesse caso os governos democráticos que assumem o poder durante o processo de redemocratização. O cinema passa a ser instrumentalizados por esses grupos, que irão que irão especificar o tipo de discurso
dirigiu, roteirizou, seu tema, técnicas de produção ou seu misce en scene7, grupos sociais que concorrem para sua produção, que políticas culturais regem a sociedade no momento de sua produção e lançamento para consumo. A análise de todos esses elementos constitutivos colabora para que o filme seja utilizado como suporte aos recursos didáticos, indo além do simples uso da imagem como representação, e sim entendo os elementos que compõem aquela representação e qual seu sentido8
mediador das relações presente/passado. O cinema
No caso do cinema argentino e sua relação
tem esse laço concreto com a realidade dos atores
estabelece-se no bojo da redemocratização
históricos, sendo também um agente histórico e o
ocorrida em 1983, onde produziram-se diversos
filme um mediador dessas relações e discursos. Mas
filme
não deve-se deixar de indicar que o filme não traz
documentários ou ficções (esta última categoria
somente as motivações ideológicas de seus
produzida mais maciçamente), abordando diversos
realizadores, há questões tangentes a sua
aspectos, desde a questão das crianças arrancadas
produção, que ficam evidente quando filme é
dos pais perseguidos políticos, os desaparecidos,
lançado em seu circuito de exibição e o espectador,
torturas,
a despeito de qualquer ortodoxia imposta pelos
abordagens diretas ou mais alegóricas, exemplos
seus realizadores, tem a liberdade de se apropriar
não faltam, o cinema Argentino é fecundo em tratar
dos temas ali levantado.5 Supera-se a idéia de que
a ditadura nos mais diversos âmbitos, nas mais
o espectador é um agente passivo, pois a forma
diversas formas. Para além do tema ditadura há
como este irá receber a mensagem exerce
temas como a crise econômica do país, os males da
influência tamanha a partir da diversidade de
sociedade
sentidos criados pelos que assistem a obra.6
relacionamentos, cidades, amores, amizades, tudo
Não devemos perder o foco de que o filme é um documento histórico na medida em que é um
5
NAPOLITANO, Marcos. História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; - USP: História social. Série Coletâneas). Págs. 65 e 66. 6Idem nota 02. 7Movimento e arranjo dos elementos no quadro ou na tomada de uma cena a fim de observar como se podia gerar
sobre
o
crimes
ditadura
não
Argentina,
resolvidos,
argentina
seja
sejam
com
contemporânea,
isso ressaltando tendo o país, suas particularidades e história como pano de fundo.
significados, construindo relações entre as tomadas através da montagem. 8 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez. 2008. Páginas 373 e 374.
G N A R U S | 179 No contexto da redemocratização argentina,
período de redemocratização, em torno de um
toda essa nova vertente, tributária das origens do
esforço para revolver as memórias em busca
nuevo cine, vem agregar-se a uma prática de um
daquelas que não estavam minadas pela história
discurso único, que visa garantir uma perspectiva
oficial.
minimalista de democracia, capaz de garantir a
enquadramento das memórias através do cinema.
manutenção de uma classe dirigente no poder9. Na
Era
necessário
realizar
um
novo
Michael Pollack nos diz sobre o cinema usado
redemocratização argentina, esse discurso ilustra o
como suporte ao enquadramento da memória: “O
embate
projetos
filme é o melhor suporte para fazê-lo, donde seu
democráticos: uma democracia formal de caráter
papel crescente na formação e reorganização,
neoliberal ou minimalista e um projeto mais amplo
portanto no enquadramento da memória.Ele se
que
havia
entre
dois
de democracia participativa10.
dirige não apenas as capacidades cognitivas mas
Já nesse momento argentino, evidencia-se um dos
capta as emoções”11. O trabalho de enquadramento
pontos de ruptura entre a estética revolucionária
da memória se constitui em um trabalho de
do nuevo cine, oriunda dos anos 50/60, e as novas
associação entre dados históricos e a memória
propostas que surgem: enquanto naqueles anos
como “operação coletiva dos acontecimentos e das
privilegiava-se o documentário como mediador da
interpretações do passado”. De modo que seja
realidade a partir do cinema, nessa nova etapa o
estruturado um limite, plausível através das
cinema de ficção ganha de vez seu espaço, e passa
justificativas baseadas em metodologias de
a ser a produção preponderante. Posteriormente, o
pesquisa
que era um antagonismo, ficção e documentário,
arbitrariedades e por conseguinte, injustiças
passam a serem vistos como obras complementares
históricas norteiem o processo de reconstrução do
na compreensão da realidade. As novas tecnologias
passado.
que surgem, capazes de facilitar a produção e a montagem de pequenas e hábeis equipes de filmagem parecem minar a ideia de economicidade produtiva e precariedade de recursos, tem-se início o réquiem da estética revolucionária, que vê-se dominada
pela
aceitação
das
inovações
tecnológicas globalizantes do período (Mendes)
e
análise,
evitando
assim
que
E é justamente sobre uma memória enquadrada e o papel do cinema em sua mediação, seja didática ou metodológica, que vou procurar ilustra a relação cinema/memória, através da análise de um dos filmes mais expressivos da retomada do Nuevo Cine Latino-Americano. Trata-se do filme “A História Oficial” de Luiz, Puenzo, 1985. Ele será nosso
Para além da discussão dos rumos teóricos que o
timoneiro no entendimento das novas relações
nuevo cine estava tomando, havia a discussão em
institucionais, a partir do rearranjo das memórias,
torno do papel do cinema naquele momento. Como
que surgem na Argentina redemocratizada.
já dito anteriormente o cinema argentino estava agregando as memórias populares e sendo instrumentalizado pelos grupos dirigentes do
9
BORON, Atilio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1994. Página 07. 10 Idem nota 02.
11POLLACK,
Michel. POLLACK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. In:Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, Pg. 11
G N A R U S | 180 A NÃO OFICIALIDADE DA HISTÓRIA OFICIAL
questionamentos, tudo ocupa o seu devido lugar, nenhuma porta se abre sem que a outra esteja
En el pais del no me acuerdo Doy tres pasitos y me pierdo. Un paasito para alli, no recuerdo si lo di. Un pasito para alla !Ay, que miedo que me da!12
devidamente fechada. Podemos dizer que Alicia, ao início da narrativa, encontra-se em um estado de “plenitude”, aliás não só ela como tudo a sua volta. Tudo está reconhecidamente normal. Todorov reconhece este estado como o ponto inicial elementar de
Ao início de “A História Oficial” (Luiz Puenzo,
qualquer narrativa. Porém para que a história se
1985), a professora Alicia Barnet, interpretada por
desenvolva serão necessárias oposições, capazes de
Norma Aleandro, ministra aulas de História da
desencadear uma série de significados que serão
Argentina – mais precisamente história política e
entrelaçados ao longo do filme. Essa quebra da
institucional a partir de 1810 – em um colégio de
plenitude é um processo marcado ao longo da
ensino Médio. Após as aulas, retorna para sua casa,
narrativa. Para se opor a esse estado de plenitude,
onde
sempre
manifesta-se
uma
reencontra sua filha
força
adotiva Gaby e ao
desestabilizadora,
final do dia também
que vem em sentido
reencontra
contrário,
marido
seu
com
o
Roberto.
intuito de quebrar a
Alicia parece ter um
harmonia inicial. A
bom casamento e
partir
uma vida normal.
momento
duas
Alicia
situações
podem
ser
transparece uma
afetuosa esposa
desse
mãe
ocorrer: a plenitude
uma
é restabelecida; ou
atenciosa,
se reconhece que
e
contrastando visivelmente
não se pode fazer com
nada para deter ou
austeridade
mudar o efeito da
como professora. No
força que gerou a
sua mundo
de
Alicia
percebemos
que
ruptura13.É característico
do
tudo é bem dividido,
“Nuevo Cine Latino
não há espaço para
Americano”
dúvidas
com finais abertos,
12
ou
En El País Del No nome acuerdo – composição Maria Elena Walsh
13
filmes
Tzvetan Todorov APAUD. TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997 Pág. 80.
G N A R U S | 181 que são representativos dessa impossibilidade de se
alunos “a história é a memória dos povos”. Esse
alcançar um novo equilíbrio ao fim da trama. O que
elemento não surge de forma casual na narrativa,
servia para acentuar ainda mais a oposição entre a
ao contrário, ele irá representar uma dicotomia
estética marginal de cunho político-social que
permanente em toda narrativa. Irá marcar a relação
Nuevo Cine fazia em relação à hegemonia da
entre memória coletiva cerceada e libada pelas
estética hollywoodiana que valorizava o belo em
ações e práticas terroristas dos
detrimento da imperfeição da realidade, com finais
ditatoriais, e a edificação de uma memória oficial,
felizes, maniqueístas e bem resolvidos.
que irá suplantar essa memória coletiva e os efeitos
Ao fim de “A História...” veremos bem que o conflito pode estar ali, plantado desde o início,
interesses
da repressão e será também sua justificativa plena e irrefutável.
latente, aguardando o momento de se realizar.
O terceiro passo é o reencontro de Alicia com suas
Assim também são as memórias, as lembranças e as
antigas colegas do colegial. Nesse momento surge
outras faces da História. O drama de Alice começou
uma outra personagem chave na narrativa, e que
a ser desencadeado em quatro passos bem
certa forma será a responsável por transpor os
identificáveis.
conflitos e dilemas da sociedade argentina daquele momento para a vida de Alicia, a personagem em
OS 4 PASSOS
questão é sua amiga Anna, que acaba de voltar do exílio. Anna revela o porquê de seu afastamento:
O primeiro dado de realidade que nos é
Pedro, seu companheiro, havia sido condenado
apresentado é o ano em que transcorre a história do
pelo regime, Anna acabou sendo presa e torturada
filme: 1983. Essa marcação temporal nos ajudará as
por 36 dias por não revelar seu paradeiro. Alicia
mudanças pelas quais a personagem principal irá
nesse momento demonstra total alienação quanto
passar ao longo da trama. O ano em questão marca
as práticas políticas e de repressão promovidas pela
o fim do período ditatorial da Junta Militar, iniciado
Junta Militar que governou o país a bem pouco
em 24 março de 1976, autodenominado “Processo
tempo, e isso fica evidente quando esta indaga o
de Reorganização Nacional”. Um estado de
porquê de Anna não ter denunciado o que ocorreu.
exceção que durou quase 8 anos, onde qualquer
Temos duas vivências simultâneas tipificadas pelo
sinal de dissidência ou oposição era reprimido
regime: uma pessoa totalmente alienada em
violentamente, através de práticas coercitivas que
relação a repressão do regime militar, e outra que
iam do sequestro, passando por torturas, chegando
foi o algo e sofreu as consequências dessa
a assassinatos com ocultação de cadáveres. O
perseguição, Anna. A situação de ambas marca essa
período ficou conhecido como “Guerra Suja”. Suas
tônica dominante da sociedade argentina do pós
ações extrapolaram as fronteiras constitucionais
ditadura e que ganhou mais força e alcance através
visando silenciar toda e qualquer oposição e
do processo de rememoração oriunda dos relatos
espalhar o terror no conjunto da sociedade.
orais de sobreviventes e perseguidos políticos.
O segundo dado que nos é fornecido se apresenta
No entanto Anna, mais do que marcar posições,
durante a aula de Alicia, nos primeiros minutos do
traz aquela que será a informação chave do tema do
filme. Já nesse momento Alicia afirma aos seus
filme e o quarto ponto que irá configurar a retirada
G N A R U S | 182 de Alicia de sua zona de conforto: quando Anna
adotará um outro estado para chamar de
relata que muitas gestantes eram separadas de seus
plenitude?
filhos logo após darem a luz, que por sua vez, essas crianças eram dadas ou vendidas a colaboradores do regime ou eram apropriadas por militares que
UM PAÍS MEMORIOSO
em muitas vezes eram algozes de seus pais
Ao colocarmos em perspectiva as informações dos
biológicos. Nesse instante o estado de inquietação
quatro passos que levaram Alicia a rever seus
de Alicia aumenta e a realidade na qual está inscrita
conceitos e sua vida, é possível traçar um panorama
começa a se fragmentar a partir das informações
geral do que constituiu o processo de oficialização
que recebe. As contradições de sua realidade
de uma história e uma memória, a partir das ações
passam a ficar evidentes, os embates em sala de
que
aula sobre quem escreve a história, os assassinos
desaparecimento
que a falseiam e promovem o esquecimento, a
começarmos pela própria denominação que a Junta
demissão
literatura
Militar se outorgou “Processo de Reorganização
considerado agitador (com quem Alicia durante um
Nacional”, denotando a necessidade desses
diálogo abre um pouco mais sua mente para a
dirigentes de “associar uma profunda mudança
realidade em volta), até seu primeiro contato com
política a uma revisão (auto)crítica do passado”.14
as Abuelas da Plaza de Mayo. Alicia vê seu chão se
Essa suposta revisão crítica, foi a justificativa para
desfazer e passa a tatear em busca de respostas.
desencadear uma repressão institucionalizada por
de
um
professor
de
Resolve pedir a ajuda de Anna, busca o médico que lhe entregou Gaby recém nascida no hospital, tenta buscar paz no confessionário da Igreja, mas
visam
o
esquecimento de
outras
e
o
memórias.
total Ao
um estado terrorista, cujo inimigo se encarnava nas diversas tendências políticas da história recente da argentina: o populismo peronista e o comunismo.
encontra um padre distante e dissimulador, uma
A forma como Alicia recebe informações sobre o
clara referência da cumplicidade espúria entre a
passado recente da Argentina, da possibilidade de
Junta Militar e a Igreja Católica. Quando resolve
sua filha ter sido apropriada, dos inúmeros casos
indagar Roberto sobre a possibilidade de sua filha
semelhantes ao seu, do seu primeiro contato com
ser um bebe roubado, Roberto acusa Anna de estar
Abuelas que buscam informações da mesma forma
colocando ideias distorcidas na cabeça de Alicia,
que ela, todo o contato com essas memórias ocorre
porque “Anna era casada com um subversivo”.
a margem das vias oficiais, informações que saiam
Alicia, assim como enunciado na ideia de Todorov, foi retirada de sua zona de conforto, e agora se encontra em um momento de grande tensão. Ao fim da história Alicia se encontrará em outro ponto da narrativa, em outro estado mental, mas conseguirá restabelecer sua paz inicial? Ou
14
Idem nota 11. Pág.5
da clandestinidade a qual haviam sido confinadas. Essas informações chegam não só Alicia, mas ao conjunto da sociedade argentina, através de redes de contato
que persistiram
aos
anos
de
perseguição, onde pessoas foram assassinadas e privadas de sua identidade. Suas memórias e histórias passaram tanto tempo na clandestinidade,
G N A R U S | 183
“esperando a hora da verdade e da redistribuição
constantes dessa perseguição, esta última ganhou
das cartas políticas ideológicas”. Ao passo que este
status de matriz teórica, campo de conhecimento
exemplo ilustra de forma contumaz que qualquer
essencial para ser o sustentáculo crucial de
revisão “crítica” ou tentativa de silenciamento de
qualquer força política, dada a importância que
memórias de grupos minoritários ou hegemônicos
ocupa no imaginário dos indivíduos e das
não estão sob total controle dos grupos que detém
coletividades. E quem a influência e molda,
o poder político. Os dominantes jamais terão total
exercerá controle políticos sobre os grupos no
controle até onde levarão suas reivindicações que
conjunto da nação.
se formam “ao mesmo tempo em que caem os tabus
conservados pela memória oficial anterior”15
O personagem Roberto, marido de Alicia, vem representar a burguesia argentina que mais do que
Ao longo do filme (e mais marcadamente em seu
fechar os olhos e ouvidos para o momento político
encerramento) ouvimos a cantiga “En El País Del No
do país, foram coniventes com regime e ao vê-lo se
no me acuerdo”, composta por Maria Elena Walsh.
enfraquecendo, começaram a temer por sua vida e
Uma clara referência ao “no me acuerdo” imposto
seus negócios favorecidos pelo regime. Afinal o
pela Junta Militar, em seu processo de exercer
filme faz uma vinculação entre empresariado-
controle sobre a memória argentina. Os militares
militares-estrangeiros-Igreja,
também tentaram fazer o seu “no me acuerdo”
esquema de corrupção encabeçado por um
particular, onde se isentavam de qualquer
General e seu sócio estrangeiro. Não á uma
responsabilidade
e
exploração mais aprofundada dessa dicotomia
desaparecimentos, pois estavam em uma guerra e
durante, que redunda em colocar as mazelas da
os fins, segundo eles, seriam justificáveis. Um pouco
sociedade argentina unicamente na corrupção
menos explicito é a referência que a cantiga faz as
promovida pelos militares. Sendo a corrupção
diversas experiências do século XX, capitaneada
sintomática em quaisquer regimes, democracias ou
pelos regimes totalitários que deram a memória um
ditaduras, com o diferencial ser mais acobertada e
estatuto inédito, ao passo que a perseguiam de
não investigada em regimes ditatoriais17.
sobre
as
mortes
modo a suprimi-la. Com o advento das tecnologias de informação ao longo do século XX e a necessidade de controla-los, a apropriação das memórias chegou a níveis quase orwellianos. Atingindo sucesso de controle da informação de diversas formas, ocorreu eliminação, falseamento, manipulação das memórias, eram capazes de ocupar o lugar da realidade, enquanto outras formas de difusão da verdade eram perseguidas16.
em
um
mega
O jogo de oposições citados anteriormente buscam ilustrar a própria diferença entre Alicia e Roberto. A professora, mesmo com sentimentos contraditórios, tem o desejo de saber quem são os pais verdadeiros de Gaby, mas ao mesmo tempo tem medo de perder sua filha, persiste na busca pelo esclarecimento, pela verdade. De outro lado, Enquanto o marido busca ensandecidamente ocultar qualquer traço da verdade sobre a origem
A história e a memória passam a ser alvos 15.
Ibdem
16Tzvetan
Todorov APAUD. PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do Esquecimento na História. Letras nº 22 – Literatura e Autoritarismo. Pag.85
17MENDES,
R.A.S. Cinema e memória sobre os regimes civilmilitares do Cone Sul. Revista do Clube Militar – edição especial. Rio de Janeiro, março/abril de 2004. Nº 407. Pág.10
G N A R U S | 184 de Gaby e suas relações escusas como o regime
justificativa ao golpe de 1976, “guerra contra a
militar. No bojo deste choque de visões, Alicia
subversão”, já não tinha mais a mesma validade e
passa a se dar conta da real situação do país, passa
um novo argumento capaz de justificar a barbárie
a rever a “história oficial”. Alicia começa a
que estava em marcha: um mal para combater outro
acompanhar
mal maior, ou como ficou conhecido a “teoria dos
desaparecidos,
noticiais as
nos
jornais
manifestações
nas
sobre ruas.
dois demônios”, muito questionada a posteriori19.
Intimamente começa o questionamento da professora acerca de seu lar, de seu trabalho, além do choque de suas memórias particulares no tocante a como Gaby chegou a seus braços, pois segundo o marido Gaby havia sido abandonada pelos pais. Mas depois de sua conversa com Anna, Alicia acaba por entrar em um caminho sem volta, onde não é mais viável esquecer, ou não pensar sobre o passado pois “ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera18.
Nesse vazio, diante dessa instabilidade e com a capacidade de atingir um grande público o cinema se faz a via necessária para se firmar com características de cunho político e visando a intervenção nas formas de se moldar a memória. Nesse sentido o filme toma parte nesse esforço de construção da memória, devido a fatores tais como: a escolha do período, final da ditadura e transição democrática; o tema, desaparecidos políticos. O filme fora lançado em 1985, com a memória dos acontecimentos recentes ainda muito viva e com muitas das situações abordadas no filme ainda se desenrolando. Esse tempo e esse lugar, onde se
O LUGAR DA MEMÓRIA NA IMAGEM E NA HISTÓRIA NÃO OFICIAL
constrói a memória, nesse caso através de imagens, clamam por colocar a memória em um lugar e “é
No ano em que transcorre a história do filme, o
este vai e vem que os constitui, momentos de
ano de 1983, a sociedade argentina ainda tateia no
história arrancados do movimento da história, mas
escuro e nos escombros do terrorismo de Estado
que lhe são devolvidos. Não mais inteiramente a
praticado pela junta militar. De modo que ao fim do
morte, mas como conchas na praia quando o mar se
regime a organização popular encontrava-se
retira da memória viva”20
combalida, sem capacidade para erigir uma contra argumentação
sistemática
e
ampla,
estava
calcando-se nos relatos e denúncias orais dos que sobreviveram. Os mesmos interesses ditatoriais coexistiram com as aspirações democráticas durante e após o período de transição democrática. O discurso anterior que serviu de pretensa
18
SARLO, Beatriz. O tempo UFMG/Companhia das Letras. Pg.9
passado.
Editora
19 GOMES, Salatiel Ribeiro. Cinema e memória: alegorias
de uma argentina memoriosa. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2011. Página. 2
Assim o filme insere-se em um âmbito da história recente
da
Argentina
onde
as
operações
cinematográficas além de formas de construção das memórias sobre a última ditadura também buscam, adquirir importância na atuação dos processos de reparação histórica. As representações fílmicas, quando confrontadas com outras fontes, alimentam
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de memória. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC. São Paulo, SP – Brasil, pg.13 20
G N A R U S | 185 os debates e as mobilizações sociais que existem na
uma alienada nesse sentido, não podendo ser
sociedade e que clamam por justiça, punição aos
responsabilizada pelo crime de apropriação que
torturadores (mandantes e executores) e a
envolve Gaby.
restituição dos filhos sequestrados para suas famílias de origem21.
Ainda é possível visualizar na obra de Puenzo teses sobra a memória e a lembrança afetadas pela
Através do tema que aborda, o momento que
fluidez do tempo e sobre a própria história.
retrata e o contexto de grandes transformações da
Apreende-se que a emergência das memórias, seja
Argentina memoriosa do pós-ditadura, “A História
aquelas correntes afetadas ou as memórias que
Oficial”
a
ficaram clandestinas, sofrem os efeitos da
compreender o partido de qual memória está
aceleração do tempo, tornaram-se um tema
tomando. Como lugar de memória o filme é
“espetacularmente
investido de um aspecto simbólico, que o faz
memórias não só acerca de crimes cometidos, mas
ocupar espaço na imaginação de quem assiste.
promove-se a recuperação de memórias no âmbito
Simbólico “por definição visto que caracteriza um
cultural, construção de identidades perdidas e
acontecimento ou uma experiência vividos por um
privadas do conflito de versões e leituras do
pequeno número, uma maioria que deles não
passado. Ou nas palavras de Beatriz Sarlo “o
participou”22.
presente ameaçado pelo desgaste da aceleração,
assume
e
ajuda
o
espectador
social”.
Contrapõem-se
converte-se, enquanto transcorre em matéria de memória”23. Trabalhar as memórias faz parte de
CONCLUSÕES
uma operação que, seja pelo silêncio ao qual foram
O drama familiar de Alice é o timoneiro eleito por
submetidas ou pela ação da velocidade frenética do
Puenzo para estabelecer uma empatia com o
tempo, evita-se que se criem vazios sobre o
espectador, pois justamente retrata o drama que
passado.
muitas
famílias
argentinas
viviam
naquele
momento. É nesse ponto que o simbólico e a posição pela escolha da memória a ser construída se agudiza para introjetar na imaginação do público, através carga simbólica presente na película, o despertar de consciência da personagem principal, que era também o de muitos cidadãos argentinos naquele momento. Também é a forma encontrada para colocar Alicia tão vitima daqueles acontecimentos quanto outras milhares de mães e avós, sem necessariamente um julgamento moral, pois o filme se preocupa em pontuar Alicia como
Já dentro da perspectiva histórica “A História
Oficial”, interpõe memória e história no tocante ao afloramento da “verdade”. Em Mendes vemos essa perspectiva “Esta verdade, por sua vez tem origem em espaços não controlados pelas instâncias de poder: a família, a imprensa, as lembranças individuais. O diretor/roteirista propõe, neste sentido, uma transferência da verdade para as mãos das vítimas.24 Gostaria de encerrar dizendo que embora “A
História Oficial” não possa ser pródiga em levantar problematizações ou até mesmo relativizações no
21
Idem nota 18 nota 19. Pg. 22
22Idem
23
SARLO, Beatriz. O tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura – Rio de Janeiro: José Olympo, 2005. Pg.96. 24 Idem nota idem nota 16. Pág.12
G N A R U S | 186 transcorrer de sua exibição, o partido que o filme toma em relação a qual memória está defendendo, nos ajuda a situa-lo bem em um contexto especifico e abre a possibilidade para que o espectador possa buscar as entrelinhas daquilo que o filme apensas sugere ou induz. O filme envelheceu bem ao julgamento do tempo, pois mesmo com os seus “poréns” ainda é forte o suficiente, dado o contexto em que foi feito, para ser referencial nas discussões acerca do papel da memória na elaboração do relato histórico. Renato Lopes graduando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina e é agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema, realizado pela MPC&Associados, que discute através de documentários as ditaduras no cone sul.
BIBLIOGRAFIA BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez. BORON, Atilio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1994. GOMES, Salatiel Ribeiro. Cinema e memória: alegorias de uma argentina memoriosa. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2011. GRAEME. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997. MENDES, R.A.S. Cinema e memória sobre os regimes civil-militares do Cone Sul. Revista do Clube Militar – edição especial. Rio de Janeiro, março/abril de 2004. Nº 407. Pág.10 MENDES, A.R.S O Nuevo Cine Latino-americano e
a filmografia sobre os Regimes Civil-militares.
In: Revista Intellectus / Ano 05 Vol II –2006 ISSN 1676 –7640. NAPOLITANO, Marcos. História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; - USP: História social. Série Coletâneas). NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de memória. Projeto História: Revista do Programa de Estudos PósGraduados em História e do Departamento de História da PUC. São Paulo, SP – Brasil.
PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do Esquecimento na História. Letras nº 22 – Literatura e Autoritarismo. PARANAGUÁ, Paulo Antônio. O Cinema na
América Latina: Longe de Deus e perto de Hollywood. Coleção Universidade Livre. São
Paulo,L&PM. SARLO, Beatriz. O tempo passado. Editora UFMG/Companhia das Letras. SARLO, Beatriz. O tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura – Rio de Janeiro: José Olympo, 2005.
G N A R U S | 187
Coluna:
Fotografias da História
A FOTOGRAFIA NA PASSAGEM DO SÉC. XIX AO XX: A DEMOCRATIZAÇÃO DA IMAGEM. Por Fernando Gralha
E
m uma conjugação de engenho, técnica e
ilustração, auxílio à memória ou representação
oportunidade a fotografia surgiu em
artística.
meados do século XIX e modificou o
mundo, causou grande impacto na forma de produção e circulação cultural, alterando por completo o ambiente visual e os meios de intercâmbio de informação da maioria dos habitantes do planeta. Atualmente são raros os que não fazem uso frequente da fotografia, seja como
1
Segundo Le Goff, dois tipos de materiais são aplicados à memória coletiva: os documentos e os monumentos. Seguindo ainda o mesmo viés de análise, de que “não há história sem documentos” e que “há que tomar a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira”, entendemos que a fotografia abrange tanto o conceito de documento como monumento, principalmente dentro da ideia de “novo documento” que transcendendo
A máquina de fotografar e seu produto, a fotografia,
compuseram
equipamento/elemento
o
tecnológico
novo que
possibilitava registrar o cotidiano de uma sociedade em processo de transformação, foram e são fundamentais para a construção das memórias1 de qualquer grupo social, nação, Estado, etc.
para além dos textos tradicionais, carece ser tratada como um documento/monumento. A fotografia de fato, oscila entre documento e monumento, entre memória e História, ora serve de índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas e lugares nos dizem sobre determinadas feições desse passado – modismos, condições de vida, arquitetura, festas, solenidades, etc. Por outro lado, é um símbolo, daquilo que no passado, a sociedade determinou como imagem a ser perpetuada no futuro.
G N A R U S | 188 Abriram para o mundo um novo modo de vida e
imagens, uma ampla diversificação de serviços
uma nova ideia de cidade. Ajudaram a transformar
ofertados, como a fotografia de cidades, aspectos
Paris em capital do século XIX e fizeram com que os
da natureza, construções (prédios, escolas, estradas
críticos e avaliadores desse período a tomassem
de ferro, pontes, etc.), expedições científicas e
como referência para a interpretação da passagem
militares, documentação de empresas e governos,
do século XIX para o século XX.
etc. emprestaram à imagem fotográfica o caráter
O novo documentarismo
produzido
pelos
fotógrafos produziram uma antologia da visão
prático e documental que contribuíram para a popularização da fotografia.
pública. As fotografias dos artistas organizaram
Antes reservada às elites, a fotografia na
uma memória, uma lembrança não só de fatos
passagem do século XIX para o XX, passou por um
históricos, mas também
processo de ampliação
de figurantes anônimos
de seu alcance com a
com
o
chegada no mercado de
espectador
podia
novas e mais simples
facilmente
se
os
quais
técnicas
fotográficas,
reconhecer, além de
baseadas no princípio
provocar
do
emoções
específicas.
Estas
negativo-positivo,
que ao diminuir os
imagens eram as do
custos
fato, da coisa concluída
tornaram a fotografia
definitivamente,
acessível a um público
elas
de
produção,
expunham o tempo, o
maior.
sentimento
efetivo crescimento da
do
irreparável e do vivido. Walter
Benjamin,
inspirado
nas
caminhadas
classe
de Janeiro, resultou em uma crescente demanda
de
do mercado consumidor de imagens. O novo
Luz, colocou a fotografia num primeiro plano, como um dos mais importantes elementos da modernidade por esta se consistir, simultaneamente, em consequência do de
desenvolvimento
técnico
e
testemunha do novo tempo. Iniciada pelos daguerreótipos, ampliada pelos carte-de-visite
média,
particularmente no Rio
Baudelaire pela Cidade
processo
No Brasil, o
e definitivamente conquistada
pelos cartões postais, a utilização da fotografia não se restringiu apenas ao prazer da contemplação de
modo de expressão e registro chegou ao alcance de novos usuários, como comerciantes urbanos, professores, profissionais liberais, funcionários públicos, artistas, entre outros que almejavam ter sua imagem eternizada pela fotografia. Desta forma
o
perfil
da
clientela
sofreu
uma
transformação que a diferiu da dos tempos do daguerreótipo, quando o retratado era, quase sempre, um representante da elite agrária ou da nobreza oficial.
G N A R U S | 189
Este alargamento do alcance das técnicas de reprodutibilidade impulsionou principalmente o fotomadorismo, cujo emblema inicial foi a introdução, em 1888 pela Eastman Kodak da câmera portátil, seu slogan publicitário – “You press
the Button, we do the rest”, em último caso, sugere que a produção de imagens prescindia da figura do fotógrafo profissional nos registros mais comuns, segundo George Eastman “qualquer pessoa com
mediana inteligência pode aprender a tirar boas fotos em dez minutos.”
preeminência
por
uma
qualidade
técnica
profissional. Com a popularização da fotografia a imprensa a incorporou aos principais almanaques, revistas e jornais. Seu emprego, a princípio, tinha como função ilustrar reportagens e artigos ratificando o acontecimento narrado, ou mesmo de forma casual, sem nenhuma conexão com o texto publicado. Portanto, é importante atentar ao novo papel da fotografia no início do século XX – no Brasil explicitado em publicações como a Revista
No alvorecer do século XX a fotografia já
“Kósmos” e o periódico “O Commentário” entre
apresentava todos os quesitos imprescindíveis para
outros –, o de se constituir como um elemento do
a realização do registro de imagens de alta
cotidiano da população, consecutivamente conexo
qualidade de exposição e reprodução, os principais
não somente ao desenvolvimento científico e à
progressos foram de ordem mecânica, na
verdade da reprodução dos fatos, mas igualmente
construção de lentes cada vez mais precisas e
ao registro, à documentação do momento especial
nítidas, e câmeras portáteis de diversos tamanhos e
vivido.
formatos. A Eastman lançou, por exemplo, em 1900, a câmera Brownie, ao custo de somente um dólar, e que transformou radicalmente a fotografia em uma arte popular, passando às outras empresas a
A fotografia, composta por signos sociais, políticos e estéticos e de sua relação simbólica com seu exterior, institui, sob o enfoque da produção de significados socioculturais, um “espaço histórico”
G N A R U S | 190 legitimado. Através de sua condição legitimadora e dialógica, o modo de representar da fotografia atualizou-se enquanto “gênero de discurso”. Tal significação encontra-se bem encaixada nestas características e condições na medida em que, de acordo com o pensamento de José R. S. Gonçalves,
“os ‘discursos do patrimônio cultural’, presentes em todas as modernas sociedades nacionais, florescem nos meios intelectuais e são produzidos e disseminados por empreendimentos políticos e ideológicos de construção de ‘identidades’ e ‘memórias’, sejam de sociedades nacionais, sejam de grupos étnicos, ou de outras coletividades.” Assim sendo, a fotografia se estabelece como mediadora e reflexo de um momento crítico da sociedade do início do século XX, permeada pelo movimento
progressista
e
modernizante,
empreendido pelas elites com o objetivo de pouco a pouco, construir um caminho de emancipação e inclusão no mundo moderno. Enfim, o novo equipamento e o olhar do fotógrafo transformaram o cotidiano em nova expressão estética, ao registrar tipos, costumes e hábitos, moda e ao atribuir à imagem fotográfica a condição de representação das inovações e da curiosidade do homem moderno. Fernando Gralha é editor da revista Gnarus e autor de “A BELLE ÉPOQUE CARIOCA: Imagens da modernidade na obra de Augusto Malta (19001920). (Dissertação de Mestrado, UFJF/2008).
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G N A R U S | 191
Pesquisa
CIGANOS NO BRASIL: CULTURA E PRECONCEITO NO SÉCULO XXI Por Bianca Dias
“Dos debates acadêmicos às conversas informais, os ciganos são retratados a partir de sentimentos que oscilam entre o fascínio que suas tradições exercem e os temores alimentados por estigmas e superstições atrelados ao seu estilo livre. [...] Perseguidos ou incorporados à nossa hierarquia social, os ciganos são mais do que leitores do futuro, podendo ser considerados também escritores do nosso passado. [...]”1
Ciganos na Alemanha em 1944 – Fonte: CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana.
1
COSTA, Elisa Maria Lopes da. Ciganos em terras brasileiras. In:Revista de História.com.br, 2007
G N A R U S | 192
E
studar a cultura dos ciganos não é uma
É difícil estabelecer uma rota migratória para
tarefa das mais fáceis, tendo em vista que
os ciganos, porém é provável que eles
é um povo ágrafo e sua cultura e tradição
possivelmente seriam oriundos da Índia e do
é registrada de forma oral. Um povo que foi e é
Egito, e a rota migratória desse povo foi traçada,
altamente discriminado desde sua chegada as
e segundo Huizinga, eles teriam saído da Índia
terras brasileiras, vindo juntamente com os
em direção ao Afeganistão, passando também
degredados enviados de Portugal, e desde o
pela Pérsia e Romênia e finalmente entraram na
século XIV tem dificuldade de se estabelecer
Europa pela Grécia.5
como pátria, ou seja, estabelecer um local como sua pátria, os motivos dessa dificuldade não são concretos, não se sabe se é apenas por sua característica nômade, ou pelos preconceitos que sofrem desde sua chegada.2 Aportados no Brasil, os ciganos desempenharam papéis na sociedade, principalmente no tráfico interno de escravos, isso no século XVIII, os ciganos que eram famosos até pelas suas “mandingas”, eram procurados pelos senhores de escravos a fim de recuperar seus escravos fujões. Já no século XIX, apesar da má fama dos ciganos com relação aos
E
ser produto de roubo, mesmo com essa possibilidade, os escravos eram adquiridos pelos senhores.3 Não se pode provar ao certo que esses escravos eram realmente produto de roubo dos ciganos, porém, de acordo com a pesquisa de Rodrigo Teixeira Corrêa em História dos Ciganos do Brasil há um documento datado de 1832 em que um cigano que atendia pelo nome de
seguiam
os
grupos
com
suas
características diferenciadas, roupas coloridas, praticando a quiromancia e usando seu idioma, o romani, língua usada pelos ciganos para comunicar-se entre si, um dialeto complexo, não escrito devido a agrafia desse povo, sendo usado como forma de manterem viva sua cultura, independentemente
dos
países
por
onde
passaram. Para os ciganos o ir e vir é natural, é a chance do reencontro, portanto o romani tem tamanha importância para os ciganos, pois é o dialeto que os diferenciam dos demais.6
escravos que comercializavam, pois recaía sobre os eles a suspeita de que esses escravos poderiam
assim
Os ciganos se dividem em 3 grupos principais: Calon, Rom e Sinti, que são os mais conhecidos aqui no Brasil e esses grupos subdividem-se em diversos outros subgrupos, pouco se sabe sobre os ciganos no Brasil, sua quantidade e sua localização
geográfica
é
difícil
de
ser
estabelecido, o grupo Calon é considerado o grupo mais numeroso, que chegou por volta dos anos de 1555.7
Joaquim José Roiz teria sido preso por ser
Já os Rom, chegaram clandestinamente entre
suspeito pelo roubo e pela venda de escravos em
os imigrantes alemãos, italianos, gregos e russos,
Minas Gerais e em São Paulo.4
isso já no século XIX, pesquisadores apuram que dentre os ciganos deste grupo estaria o avô do Presidente do Brasil entre os anos de 1956 e
2
MOONEN, Frans Lucia. Anticiganismo Os ciganos na Europa e no Brasil, p.9. 3 GONÇALVES, Andrea Lisly. Fazer o que? IN: Revista de História.com.br,2007. 4 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos do Brasil, P.77
5
HUIZINGA, 1984 , p.28. HILKNER, Regiane Aparecida , 2008 , p.3 , Tese de Doutorado, UNICAMP. 7 MOONEN, Frans. Rom, Sinti e Calon. Os assim chamados ciganos. IN:dhnet.org.br 6
G N A R U S | 193 1960
Juscelino Kubstchek, Jan Nepomusck
Os Sinti chegaram ao Brasil possívelmente a
Kubstchek,que trabalhou como marceneiro em
partir da Primeira e da Segunda Guerra, vindos
Diamantina, Jan casou-se com uma brasileira,
da Alemanha e da França, mas não há no Brasil
Teresa Maria de Jesus Aguiar com quem teve três
uma pesquisa para apurar sua presença por aqui,
filhos: João Nepomuceno Kubitschek, que seria
sendo assim, é mais difícil de precisar a história
um destacado político, logo depois nasceu Carlos
desse grupo. De acordo com os dados fornecidos
Kubistchek e por último Augusto Elias Kubistchek
pela Embaixada Cigana no Brasil, os Sinti
que teria sido um comerciante sem muitos
sofreram no holocausto na Alemanha, assim
recursos, que viveu em Diamantina por toda a
como os Judeus, porém não houve um
sua vida e casou-se com Maria Joaquina Coelho,e
levantamento histórico do número dos ciganos
deste
Júlia
por não haver, fontes escritas no período, visto
Kubistchek que casou-se com João César de
que o romani só transformou-se em língua escrita
Oliveira, tornando-se assim pais de Juscelino
na atualidade de acordo com a publicação de
Kubistchek (1902- 1976). Fato este que os livros
sobreviventes do holocausto cigano.9
enlace
matrimonial
nasceu,
didáticos não fazem questão de informar, mesmo sendo um político famoso descendente de ciganos. 8
Juscelino Kubitschek – Fonte: Editora Abril.
8
Centro de Cultura Cigana - MG
9
Embaixada Cigana no Brasil.
G N A R U S | 194 Sabe-se que os ciganos estão presentes no Brasil, inclusive no Rio de Janeiro desde o século XVI, mas só no século XIX a presença dos ciganos passou a ser mais notada e é claro com muito incomodo, os assim chamados ciganos, na verdade eram negociantes, inclusive de escravos, eles estavam assentados num local chamado “Campo dos Ciganos”, um local alagadiço onde hoje está situada a Praça Tiradentes, e como extensões desse acampamento surgiram também outros onde hoje está situada a Rua da Constituição (anteriormente conhecida como Rua dos Ciganos) e também se localizavam na Rua
de
Sant’Anna.
comunidade
cigana
Tempos ou
depois
assentamento,
essa foi
transferido para o Valongo. O Cais do Valongo era o local onde chegavam os escravos no Brasil,
Cigana praticando a Quiromancia. Fonte: CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana.
que deu lugar ao Cais da Imperatriz no século XIX, mais adequado para receber a Monarquia Portuguesa. Após a abolição da escravatura, os
“adivinhar o futuro”, que é apenas um de seus
ciganos foram transferidos para onde hoje está
rituais, e talvez o mais conhecido, quem nunca se
localizado o bairro do Catumbi, e nesse local
deparou com um cigano pela rua pedindo para
ainda podemos encontrar ciganos descendentes
“ler a sua mão”? São eles ciganos mesmo? São
do assentamento original.10
descendentes dos ciganos que chegaram ao
É possível observar que, em nosso país, mesmo no século XXI o preconceito em relação aos ciganos é latente, apesar dos decretos e leis em favor das minorias étnicas onde enquadra os ciganos. Os ciganos desde a sua chegada em solo brasileiro, são relacionados com ladrões, tidos como preguiçosos e espertalhões, que
Brasil com os degredos de Portugal? Os ciganos trazem consigo o mistério junto com a sua cultura peculiar, por isso é tão difícil saber ao certo da onde vem e para onde vão.11 Apesar de terem uma cultura tão rica, é pouco difundida, talvez devido ao preconceito sofrido ao longo do tempo.12
sempre querem tirar vantagem de algo seja,
Partindo do princípio que os ciganos são um
através do comércio ou dos rituais próprios de
povo ágrafo (até bem pouco tempo) e nômade e
sua cultura, como por exemplo a quiromancia,
por esse motivo é considerado um povo apátrida,
que é ato de ler a sorte através das linhas das
acabou por deixar seus registros de forma oral,
mãos , comumente utilizados pelos ciganos para
que dificulta um pouco a historiografia, porém
10
CASTRO, Debora Soares. O olhar de si e o olhar dos outros: Um itinerário através das tradições e da identidade cigana, p.70-75.
11
PIERONI, Giorgio. Vadios, ciganos, heréticos e bruxas: os degredos do Brasil Colônia, 2000. 12 Embaixada Cigana no Brasil
G N A R U S | 195 nos dias atuais podemos contar com alguns
rica. Atualmente já existem monografias, artigos
poucos livros e monografias, assim como os
e livros que abordam o tema, o que facilita um
artigos que abordam o tema.13
pouco a pesquisa e a discussão em torno do
Apesar da dificuldade de estudar a cultura cigana, para nós historiadores, não existe a
tema, porém ainda há muito que pesquisar, visto que, o tema ainda é pouco abordado.15
impossibilidade, tendo em vista a agrafia desse
O que pouca gente sabe é que existe um
povo, já podemos nos basear na metodologia da
Decreto do então Presidente da República Luís
História Oral, pois as ideias de Gwin Prins no
Inácio Lula da Silva que institui o Dia Nacional
livro de Peter Burke “A Escrita da História”, nos
dos Ciganos a ser comemorado no dia 24 de
esclarece que na ausência de documentos
maio de cada ano, data esta em que os ciganos
escritos usa-se a História Oral, e que para as
comemoram o dia de sua protetora, Sara Kali,
sociedades desprovidas de chances de produzir
este decreto é datado do dia 25 de maio de
uma história escrita, como é o caso dos ciganos,
2006, publicado em Diário Oficial da União no
em que sua tradição era transmitida oralmente
dia 26 de maio de 2006.16 E também um Guia de
de geração para geração.14
Políticas Públicas para Povos Ciganos da
E para melhor entendermos a questão do preconceito sofrido pelos ciganos que fazem parte da sociedade brasileira, apesar dos documentos e leis que transitam pelo Brasil em favor dessa minoria étnica, podemos contar com diversas associações que cuidam em não deixar se perder tão rica cultura, assim como lutam pelos direitos dos ciganos junto ao governo brasileiro, e vem alcançando algum êxito no que
Secretaria
de
Políticas
da
Promoção
da
Igualdade Racial, uma forma de tirar os ciganos da margem da sociedade, para que eles tenham o mínimo de dignidade, e para concedê-los os direitos civis básicos como documentos de identificação e até a inclusão em projetos sociais do governo, e a educação itinerante, já que se trata de um povo nômade. O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 institui a Política
se refere aos direitos sociais dos ciganos, são elas: Associação Internacional de Cultura Romani (AICROM-Brasil-GO), Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC-GO), Associação de Preservação da Cultura Cigana (APRECI/ PR), Centro de Estudos e discussão Romani (CEDROSP). Já podemos contar também com o Centro de Cultura Cigana e com a Embaixada Cigana no Brasil que nos fornece material para pesquisa diversificado para que possamos entender melhor a história dos ciganos e sua cultura tão 13
Embaixada Cigana no Brasil/ Cento de Cultura Cigana – MG. 14 BURKE, Peter. A Escrita da História. Capítulo: A História Oral ( Gwin Prins ) - P.165-200.
15
Embaixada Cigana no Brasil/Centro de Cultura Cigana no Brasil – MG. 16 Disponível na íntegra em: planalto.gov.br/casacivil.
G N A R U S | 196 Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Vale ressaltar que a Embaixada Cigana no Brasil
Povos e Comunidades Tradicionais, documento
afirma que esses números de acampamentos por
este que protege os ciganos por sua forma
municípios são maiores, eles estimam que no Rio
própria organizacional e
cultural.17
Grande do Norte são 3500 acampamentos , na
Os ciganos possuem muita fidelidade a sua cultura e a sua tradição, mas mesmo com essa fidelidade, é preciso que haja mais projetos de inclusão social dessa etnia. No Brasil existem diversos acampamentos ciganos distribuídos em todo território nacional, e de acordo com dados do IBGE e disponibilizado pela Embaixada cigana no Brasil, na Região Norte existe 449 municípios e 4 acampamentos, na Região Nordeste existe 1794 municípios e 97 acampamentos, na Região Cento
Oeste
são
446
municípios
e
39
acampamentos, na Região Sudeste existe 1668 municípios e 96 acampamentos e na Região Sul são 1188 municípios para 54 acampamentos.
Paraíba existe 1500 ,em Pernambuco os acampamentos giram em torno de 500, em Alagoas são 400, assim como em Sergipe, já na Bahia esse número quase triplica, são 1600 acampamentos ciganos, no Rio de Janeiro e no Paraná o número gira em torno dos 1500, São Paulo também é habitado pelos ciganos, em torno de 1000 o número dos acampamentos, em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e no Espírito Santo existem também vários acampamentos.18 São ciganos do grupo Calon, compostos por famílias numerosas, embora muitos acreditem que sejam compostos por nômades , muitos desses grupos procuram uma vida sedentária, um
Luciana Sampaio – Exposição “Casas do Brasil – Barraca Cigana” – Museu Casa Brasileira. 18 17
Disponível na íntegra em: seppir.gov.br – planalto.gov.br
Dados da tabela 174 do IBGE – Disponibilizada pela Embaixada Cigana no Brasil.
G N A R U S | 197 local onde possam se estabelecer, porém para
diz respeito a etinicidade dos grupos que não se
esses grupos se estabelecerem em algum local,
reconhecem entre si e acaba por dificultar a
eles dependem da sociedade ao seu redor,
realização de políticas inclusivas pelo governo.19
existem os mais diversos problemas que dificultam os grupos a se tornarem sedentários, problemas sociais, falta de políticas que permitam sua integração na sociedade, a diversidade cultural dos ciganos também são um obstáculo para a sua inclusão, a língua, tradição o
A história do povo cigano precisa ser mais amplamente pesquisada, já existem algumas pesquisas sobre o assunto, porém é preciso que haja um maior aprofundamento na questão social desta etnia diferenciada, pois os ciganos nos dias de hoje, sofrem com o preconceito étnico, ainda
Grupo de líderes ciganos em reunião com a pasta do CNE – Conselho Nacional de educação. Fonte: Agência Brasil. estilo de vida e a relação familiar desses grupos
é altamente marginalizado e vivem a margem da
são distintas, assim como seus valores e suas
sociedade, na maioria das vezes estão em
crenças religiosas são peculiares, dentro do
acampamentos sem a mínima condição de
próprio grupo falta organização face ao meio
sobrevivência e sem a mínima dignidade,
não cigano, e como os ciganos Calon de regiões
sofrendo de uma forma que vai muito além do
diferentes não se reconhecem como uma mesma
olhar desconfiado do gadjé (palavra em romani
etnia configura-se aí uma problemática de
utilizada pelos ciganos ao se referir aos não
pluralismo. Cada grupo possui uma etnicidade, o
ciganos), que marginaliza e exclui. A cultura dos
mesmo acontece com os Rom, e os Sinti, a questão da inclusão é bastante complexa ao que
19
Centro de Cultura Cigana/Embaixada Cigana no Brasil.
G N A R U S | 198 ciganos não está apenas nas saias estampadas
tempos e espaços uma determinada realidade
das mulheres, das suas barulhentas pulseiras, de
social é construída e pensada.24E com essas ideias
suas
existe a possibilidade de uma pesquisa mais
intuições,
de
seu
baralho,
de
sua
quiromancia, ou da dança em torno da fogueira,
aprofundada
em
consonância
com
uma
ou de seus rituais e festas como o casamento, a
abordagem histórica, social e cultural dos
realidade é outra, está na vontade de se tornar
ciganos.
cidadão, de ter uma vida digna, com documentos de identificação, com escolas, está em manter-se nômade de acordo com sua cultura e tradição, ou se tornar sedentário e poder viver em uma
Bianca Dias é Graduada em Licenciatura em História pelas Faculdades Integradas Simonsen. E–mail: diasbianca95@gmail.com
sociedade inclusiva.20 A Portaria Nº10 de 28 de Fevereiro de 2014 da Resolução Nº3 do CNE instituiu um grupo de trabalho para que os ciganos itinerantes possam ser incluídos tanto no ensino público quanto o privado, já que a maior dificuldade dessa inclusão está justamente na itinerância desses grupos.21 A pergunta que fica no ar é: será que essa saga cigana um dia terá fim? Os ciganos têm um universo próprio que nem mesmo eles conhecem a sua história, os ciganos vivem no limite do real e da lenda, entre a ilusão
Bandeira Romani
e a verdade, mas que verdade? Nós
historiadores
nos
assemelhamos
a
detetives que buscam indícios e pistas como afirma Carlo Ginzburg22, e que para a História não existe verdade absoluta e que o documento é falso e verdadeiro ao mesmo tempo, como nas ideias de Jacques Le Goff23, e sem poder deixar de citar Roger Chartier e beber em sua fonte, para que se possa desenvolver uma pesquisa bastante aprofundada sobre os ciganos e sua cultura, já que para Chartier o objeto da História Cultural é identificar o modo como em diferentes
Referências: COSTA, Elisa Maria Lopes da. Ciganos em terras brasileiras In:RevistaHistória.com.br, 2007. GONÇALVES, Andrea Lisly. Fazer o que? IN: Revista de História.com.br,2007 HUIZINGA, Paulo. Sociedade obscura. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1984.p.28 HILKNER, R. A. Rossi. Ciganos Peregrinos do tempo: ritual, cultura e tradição. Campinas (UNICAMP), Tese de Doutorado, UNICAMP, 2008. MOONEN, Frans. Rom, Sinti, Calon: Os assim chamados ciganos. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos MOONEN, Frans. Anticiganismo: Ciganos na Europa e no Brasil. Disponível em: dhnet.gov.br GINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas e sinais: Morfologia e História. Tradução de Frederico Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
20
Embaixada Cigana no Brasil. Resolução de 16 de Maio de 2012- CNE – mobile.org.br 22 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: Morfologia e História,1989 23 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ed. 2003. 21
24
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações, 1990.
G N A R U S | 199 CHARTIER, Roger. Entre práticas e representações. Col. Memória e sociedade. Tradução: Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. LEGOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão.5ª Ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo, UNESP, 1992. Capítulo: A História Oral (Gwyn Prins). P.165200. MORAES FILHO, Melo. Os Ciganos no Brasil e o cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1904. Quadrilhas de ciganos. IN: Fatos e Memórias, Rio de Janeiro: Ed. Garnier, Parte III[ reproduzida In: Ático Villas Boas de org.(2004)]. PIERONI, Giorgio. Vadios, ciganos, heréticos e bruxas: os degredados do Brasil Colônia. Bertrand do Brasil, 2000. TEIXEIRA, Rodrigo Correa. História dos ciganos no Brasil. NEC. E-Book disponível em dhnet.org.br. BUENO, Eugênio. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições do Brasil. São Paulo. Ed. Objetiva, 1995. CASTRO, Debora Soares. O olhar de si e o olhar dos outros: um itinerário através das tradições e da identidade cigana. PUC- RS. Programa de Pós Graduação em História. Departamento de Filosofia e Ciências Humanas.
Acervos: Centro de Cultura Cigana de Minas Gerais – Acervo de Zarco Fernandes. Disponível em: www.zarcofernandes.webnode.com.br Embaixada Cigana do Brasil Phralipen Romane– Acervo de Nicolas Ramanush. Disponível em: www.embaixadacigana.com.br CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana
Fontes Primárias: Decreto de 25 de Maio de 2006, publicado no Diário Oficial da União dia 26 de Maio de 2006. Texto integral do documento disponível em: www.planalto.gov.br/casacivil Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos da Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial. Documento na íntegra disponível em: www.seppir.gov.br Resolução Nº3 de 16 de Maio de 2012 do Conselho Nacional de Educação – CNE. Documento na íntegra em: mobile.cnte.org.br Portaria Nº10 de 28 de Fevereiro de 2014 – MEC. Disponível na íntegra em: http://www.cmconsultoria.com.br/
G N A R U S | 200
Artigo
UMBANDA, UMA RELIGIÃO BRASILEIRA, COM CARACTERÍSTICAS REGIONAIS. Por Marcelo Soares
O
ser humano desde a sua criação é
agregados após seu surgimento. E como ainda não
cercado pelo imaginário da magia, pelo
se tem um estudo específico nesse sentido, além do
sobrenatural e pelo misticismo. O Brasil
uso bibliográfico faremos também o uso da
é um país de proporção continental e tem sua
oralidade e faremos isso através de documentários,
magia e misticidade proporcional ao seu tamanho.
palestras e programas direcionados à prática da
O país devido a sua colonização foi durante muito
Umbanda. E como é uma religião relativamente
tempo
católico1,
nova e está em constante modificação, os diversos
devido a isso muitas manifestações que já existiam
dirigentes poderão nos dar um panorama dessas
e outras que surgiram ao longo da história, criaram
modificações, pois “... se a história oral é entendida
diversas religiões nesse imenso universo de fé,
como um método, ele deve incluir-se na história do
crendices e paixões.
tempo presente...” 2
considerado
extremamente
Dentre as várias religiões baseadas na crença na reencarnação
escolhemos
trabalhar
com
Ao falarmos da Umbanda, estaremos falando de
a
várias culturas, pois de acordo com Fedrick Barth, a
Umbanda e suas variações de acordo com a região
cultura nunca é pura e está em constante
do país. Vamos ver como surgiu essa religião, sem
modificação, pois está sendo agregada ou
fazer biografia de seu fundador- não é esse nosso
agregando outra.3 A Umbanda é uma religião
interesse-, quais as fusões que ocorreram nesse
brasileira e estaria ela com sua identidade ainda em
processo e quais outros fundamentos foram
formação? Ou a sua identidade é justamente essa
1
3
HOORNAERT. Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro 1550-1880, Petrópolis: Vozes, 1974, PP 31-65. 2 FERREIRA. Marieta de Moraes e AMADO. Janaína, Usos e abusos da história oral, Rio de Janeiro, FGV, 2006, P 34.
BARTH. Fedrick. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro: Tomke Lask UFPB, 2000, p 109.
G N A R U S | 201 capacidade de agregar outras culturas e religiões?
ainda não estavam inseridos na sociedade como
Se ela está em constante modificação, será ela
homens reallivres) buscavam a redefinição de sua
uniforme em todas as regiões do país? Vamos
cultura, principalmente a religiosa.6 E nesta busca
entender esse fenômeno que ultrapassou fronteiras
os pobres e principalmente os negros, abraçaram a
e quebrou barreiras religiosas com aglutinamento
Umbanda, já que sua religiosidade já estava
de tradições culturais.
mesclada com os santos católicos.
A Umbanda foi institucionalizada pelo médium
Então 15 de novembro de 1908, o médium Zélio
Zélio Fernandino de Moraes em 1908, que tinha
Fernandino de Moraes ao sentar-se a mesa onde
como guia incorporado o Caboclo das Sete
somente se manifestavam, segundo os kadercistas,
Encruzilhadas,4
o
espíritos “evoluídos” como médicos, engenheiros e
antropólogo Claudio Bertolli, “a Umbanda tem que
advogados, passaram a manifestar-se espíritos de
ser pensada numa perspectiva histórica”, pois no
indígenas e negros. Houve grande confusão e um
período colonial quando os escravos buscavam
dos médiuns-videntes fez a seguinte indagação:
porém
de
acordo
com
continuar sua religiosidade trazida da África,
“Afinal, porque o irmão fala nesses termos, pretendendo que esta mesa aceite a manifestação de espíritos, que pelo grau de cultura que tiveram quando encarnado, são claramente atrasados? E qual é o seu nome irmão?” E a resposta veio dando início a Umbanda. “Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios, devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho, para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem, e assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos encarnados e desencarnados. E, se querem saber o meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim.7 E assim se fez.
acabaram misturando suas tradições culturais e religiosas ao fundir-se com a cultura do branco.5 Após a Abolição e Proclamação da República, os negros ainda sentindo na pele a exclusão, (pois
E isso ocorre em um período que o Espiritismo de Alan Kardec (Hypolite Lion Léon Dénezard Rivail) está em grande evidência. Após ter surgido na França em 1857, o “Livro dos espíritos” chega ao Brasil e logo sua doutrina é difundida na década de Zelio Fernandino de Moraes, O precursor da Umbanda 4
AZEVEDO. Janaína. Tudo que você precisa saber sobre a umbanda, São Paulo, Universo dos Livros, 2010, p14. 5 CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014.
1860, criando-se vários grupos de adeptos ao espiritismo. 6
Vários
médicos
da
época
se
CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. 7 AZEVEDO, Janaína. Tudo que você precisa saber sobre a umbanda, São Paulo, Universo dos Livros, 2010, PP 18-19.
G N A R U S | 202 converteram a prática, mas talvez o mais famoso
isso temos que voltar ao período colonial de nosso
tenha sido o médico Adolfo Bezerra de Menezes. E
país, quando aqui já existiam ritos e práticas
de acordo com Emerson Giumbelli todos os
religiosas nas tribos indígenas, contrariando a
espíritos que se manifestavam, quando encarnados
Companhia de Jesus que ao chegar ao Brasil em
tinham profissões privilegiadas na sociedade,
1549, tendo como líder Manuel da Nóbrega, que
fazendo com que a classe média tivesse também
afirmaram a ausência de religião entre os
uma grande adesão à religião.8
indígenas.10
Do Kardecismo, a Umbanda herdou a fé em Deus
Pode-se dizer que a Umbanda tem ramificações
e Jesus Cristo, seguindo uma doutrina cristã, a
no culto a Jurema Sagrada (também conhecida
caridade e o amor ao próximo. A crença na
como Catimbó), pois a mesma origina-se das
reencarnação onde os espíritos estão em busca de
práticas de pajelanças que os indígenas se
evolução também é uma das doutrinas que foi
utilizavam antes da colonização. De acordo com
fundida à Umbanda. E segundo o sacerdote
Ronaldo Vainfas, o trabalho de Jean de Léry deixa
umbandista Rodrigo Queiróz, “a Umbanda teve que
claro que os índios em comemoração a alguma
se embasar naquilo que Alan Kardec já havia trazido
festividade, dançavam em ritmo cadenciado e
que
fumando uma erva de nome “petim” em volta de
foi
o
entendimento
universal
da
mediunidade.”9 A Umbanda apesar de ter nascido praticamente em uma mesa Kardecista teve com certeza outras influências na sua composição. Para entendermos
ídolos de pedras, fazendo menções a seus ancestrais.11 E pelas descrições de vários estudiosos do culto da Jurema Sagrada, como o Juremeiro Freitas, é uma religião de tradições nordestinas que se iniciou pelo uso da planta de mesmo nome (jurema), que para os indígenas é uma árvore sagrada. E esse culto deu-se em 1532, com a junção da pajelança, do catolicismo, bruxarias europeias e das divindades da natureza dos negros bantos12, que neste período já desembarcavam como escravos no nordeste brasileiro. Nos séculos XVI, XVII e XVIII as capitanias do nordeste como Bahia e Grão Pará sempre sofriam perseguições de
Mesas girantes no início do Espiritismo de Allan Kardec.
inquisidores que buscavam as práticas de feitiçarias e curandeirismo que ocorriam naquele lugar, e conforme afirma Daniela Buono Calainho, a
8
GIUMBELLI, Emerson. Kardec entre nós, História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 138. 9 CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. 10 VAINFAS, Ronaldo. Exércitos de Cristo - História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 99.
11
VAINFAS, Ronaldo. Índios, hereges e rebeldes - História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 302-303. 12 FREITAS, Juremeiro. Palestra Jurema Sagrada, TV Despertar, Natal Rio Grande do Norte, 2013.
G N A R U S | 203 como influências das forças da natureza e não como controladores. A sua liturgia tem uma dinâmica diferenciada do Candomblé, completa ele.15 Outras influências do Candomblé estão relacionadas à gastronomia, vestimentas e danças. E normalmente os Orixás cultuados pelos umbandistas são Oxalá, Ogum, Oxossi, Omulú, Xangô, Yemonjá, Nanã,
Dança Tapuia, própria dos indígenas no Brasil colônia, quando cultuavam seus Deuses.
Yasãn e Oxum que foram sincretizados com os santos católicos.
inquisição deixou vastos registros da presença de africanos no Brasil já neste período13 do surgimento do culto da Jurema Sagrada.
O catolicismo assim como o kardecismo, se tem Deus e seu filho Jesus Cristo como os seres supremos, e tendo a Umbanda essas influências
Outra influência que sofreu a Umbanda foi
também é uma religião cristã ao contrário do que
através das divindades africanas (Orixás, Nkisis e
muitos acreditam. Tem-se como base verdadeira o
Voduns), que os escravos trouxeram da África e
judaísmo, pois Deus é o ser superior e tem os santos,
cultuavam escondidos dos seus senhores nas
os anjos e arcanjos em uma escala inferior. E
senzalas das fazendas. Têm-se notícias de que o
mesclando mais uma vez com o Candomblé devido
primeiro Candomblé foi notificado no século XVIII
ao sincretismo religioso (Orixás com santos)16, a
com o nome de Calundu. E de acordo com João José
Umbanda toma essa fusão para si e tem seu culto
Reis, os praticantes do Candomblé sofriam
aos Orixás da seguinte forma: Oxalá=Jesus,
constantes perseguições, e apesar da maioria de
Ogum=São
chefes de terreiros serem libertos, por terem
Omulú=São Lázaro, Xangô=São João Batista,
nascidos livres ou conseguido sua alforria, sofriam
Yemanjá=Nossa
constantes investidas da polícia contrária às
Nanã=Senhora Santana, Yansã=Santa Bárbara e
Jorge,
Oxossi=São
Senhora
dos
Sebastião, Navegantes,
práticas de adivinhações e curandeirismo. O próprio Candomblé sofreu influências, pois com diferentes povos vindos do continente africano as culturas se mesclaram.14 De acordo com o sacerdote Rodrigo Queiróz, a influência do candomblé na Umbanda, é o culto aos Orixás advindos da nação Ketu, e que são cultuados como divindades e não como deuses. E ainda segundo
Imagens de santos Católicos com o sincretismo religioso.
Queiróz, essas divindades agem em nossas vidas 13 CALAINHO, Daniela Buono. Feitiços e feiticeiros, História do
Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 129. 14 REIS, José João. Candomblé para todos - História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 64-65-66-67.
15
CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. 16 AZEVEDO, Janaína. Tudo que você precisa saber sobre a umbanda, São Paulo, Universo dos Livros, 2010, p45.
G N A R U S | 204 Oxum=Nossa Senhora da Conceição. E cada um
entidades
com sua representatividade das forças da natureza.
Boiadeiros, Crianças e Cangaceiros.
Mas de acordo com a região o sincretismo pode ter suas variações, como por exemplo, na Bahia em que São Jorge é sincretizado com Oxossi e não com Ogum.
aparecem
também,
os
Baianos,
Com tantos elementos agregados fica inviável a Umbanda se manter uniforme, pois nem todas as casas se cultuam todos esses espíritos e mesmo tendo os seus princípios respeitados (“Amor e
A Umbanda com sua capacidade de agregar
Caridade”), a sua ritualística tem variações devido a
outras culturas e sempre aberta a receber outros
sua localização e diferentes influências. Diante
elementos em seus cultos, no decorrer de sua
disso a Umbanda no primeiro momento se revela
história absorveram outras entidades que passaram
uma religião sem identidade, sem uma definição ou
a se apresentar com o mesmo compromisso de
uma “cara”. Podemos verificar que existem “várias
caridade, e a busca pela evolução. Assim foi com os
Umbandas” pelo Brasil e mundo. Podemos
Marinheiros que
constatar
essa
trabalham
afirmação
no
na
linha de Yemanjá, como
documentário:
afirma
Umbanda,
Norberto
produzido
Peixoto, dirigente
pela
Universidade do
Católica
de
Grupo Umbanda
Pernambuco.
Triângulo
culto nesta casa
da
Fraternidade de
em
Porto Alegre, Rio
dirigida
Grande do
Sul17.
Culto na Umbanda reverenciando a Jurema Sagrada.
Assim como os
O
Pernambuco pela
sacerdotisa “Irmã” Graça, é feito sem
Marinheiros vieram os elementos da Linha do
o uso do atabaque e o único instrumento utilizado
Oriente que é extensa, e nesta lista estão os Povos
é o “maracá”, de origem indígena utilizado nos
Ciganos do Oriente, o Povo Hindu, o Povo Médico
cultos de pajelanças. Suas roupas são bem próximas
e Cientista, a falange dos Árabes e Marroquinos, os
as que eram usadas nos cultos kardecistas e notam-
Japoneses, Chineses, Mongóis e Esquimós, a
se poucas imagens e as que se percebem são apenas
Falange dos Egípcios, Astecas e Incas, a Falange dos
dos Caboclos e Pretos-Velhos. As imagens do
Maias e Toltecas, Falanges dos Índios Caraíbas,
sincretismo religioso da igreja católica não se
Gauleses, Romanos e antigos povos europeus,
encontram no templo. O culto ao “pau” sagrado
como descreve a umbandista e pesquisadora
também é visto no meio do salão, culto tradicional
Míriam Prestes.18 E para completar essa gama de
da Jurema Sagrada ou Catimbó. Fica claro que as
17
18
PEIXOTO, Norberto, Umbanda Linha dos Marinheiros, Porto Alegre, Grupo de Umbanda Triângulo da Fraternidade, 2013.
PRESTES, Míriam. Umbanda: Crença, Saber e Prática, Rio de Janeiro, Pallas Editora e Distribuidoras, 2010, pp182-183.
G N A R U S | 205 entidades cultuadas são os Caboclos e Pretos-
utilizados em grandes escolas de sambas e blocos
Velhos e não se faz uso de sacrifício de animais, se
carnavalescos.21
aproximando
mais
da
Umbanda
que
foi
institucionalizada por Zélio Fernandino de Moraes e apesar de cultuar os Orixás, se afasta da prática de sacrifício de animais trazida pelos africanos. 19
Nesta mesma linha também encontramos a Tenda Espírita Santa Bárbara também em Teresina, dirigida pela sacerdotisa Eufrásia de Iansã, que mantém oficinas de artesanatos e grupos de danças
No templo de Umbanda Guerreiros de Oxalá em
além de trabalhar a religiosidade com um
Curitiba Paraná, dirigido pelo sacerdote Jair Souza
diferencial segundo ela, de humanização do ser. E
de Oliveira Filho, se faz o uso dos atabaques e
como no terreiro acima citado, este também se
notam-se a presença de várias imagens da igreja
aproxima muito dos cultos do candomblé, com suas
católica sincretizando os Orixás do Candomblé.
danças próprias das divindades africanas. Não se
Também se utilizam do defumador (queima de
percebe imagens dos santos sincretizados e nem os
ervas
tradicionais Caboclos e Pretos-Velhos. Na parte
usada
para
limpeza
espiritual),20
diferentemente da casa citada acima. Não podemos esquecer o amparo social que a Umbanda oferece em diversas casas como, o Santuário Sagrado do Pai João de Aruanda dirigido pelo sacerdote Rondinele Santos, que é articulador da rede estadual de cultos afro brasileiros em Teresina no Piauí. Onde além da religiosidade se
musical podemos verificar a utilização de atabaques, maracás e triângulos, instrumentos usados normalmente no estilo musical conhecido como forró22. Ficando nítida a inserção de cultura regional na religião, ou seja, a Umbanda irá se comportar de acordo com a necessidade de cada localização.
trabalha o lado cultural regional, tirando crianças e adolescentes das ruas e das drogas, através da música e da dança. Nesta casa de Umbanda se mantém o grupo Afro-cultural Abá. E em relação à diferenciação desta casa além da ação social notam-se a ausência de imagens e a grande aproximação com o Candomblé, pois suas danças nos remetem aos cultos dos Vodouns e Nkisis. A parte musical fica a cargo de um grande grupo de percussão onde se encontram atabaques, surdos de
Umbanda com cultos voltados para divindades africanas (Orixás).
marcação, tarol, tantan e repique, instrumentos
19
PACHECO, Luca.Umbanda, Observatório Transdiciplinar das Religiões do Recife, Universidade Católica de Pernambuco, 2010. 20 TOLENTINO, Suyanne. Religare Umbanda Sagrada, Grupo Independente, Curitiba, 2011. 21 COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013.
22
COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013.
G N A R U S | 206 Na mesma cidade encontramos também a Tenda
Também em São Paulo precisamente em
São Francisco de Assis dirigido pelo Pai de Santo
Itanhaém, Pai Rivas de Ogiyan dirige a Tenda
Francisco das Chagas, um terreiro simples, mas
Umbandista Oriental que é outro segmento da
segundo ele de muita fé, onde suas características
Umbanda, a chamada Umbanda Esotérica, um
estão muito voltadas para o culto da Jurema
templo onde não se percebe imagens de santos, o
Sagrada ou Catimbó, onde são cultuados os
chão é coberto por areia e o altar é composto por
Mestres e Mestras da Jurema, ou Juremeiros.
uma cruz, flores, velas e alguns rabiscos que
Também se tem a ausência das imagens tradicionais
parecem palavras escritas em árabe. Na Umbanda
da Umbanda carioca, dos santos sincretizados. Na
Esotérica seguem-se três doutrinas, a doutrina da
música percebesse o uso de atabaques e
luz ou da sabedoria cósmica, a doutrina do som ou
triângulos.23
do amor cósmico e a doutrina do movimento ou da
Já na Tenda Coração de Jesus que fica em
ação cósmica.26
Uberlândia Minas Gerais, encontramos grande
Nesta mesma linha encontramos a “Tenda de
semelhança com a Umbanda praticada no Rio de
Umbanda Caboclo 7 Pena Azul”, dirigida pelo
Janeiro, pois no altar ou congar se encontram as
Mestre Alexandre B. de Oliveira onde questiona as
imagens sincretizadas da igreja católica, as dos
entidades que se apresentam na Umbanda.
Caboclos e Preto-Velhos, a defumação e a
Segundo ele as únicas entidades que realmente são
energização de água para ser distribuída entre os
de Umbanda, de acordo com a raiz de Pai Thomaz
médiuns e consulentes. Os instrumentos também
são, os Caboclos, os Pretos-Velhos, as Crianças e os
são os mesmos, o atabaque e chocalho.24
Exus. Onde as Crianças representam a pureza, os
Da mesma forma encontramos no Grupo Espírita Caboclo Cobra Coral em Santos, características semelhantes ao Rio de Janeiro, com imagens sincretizadas, imagens de Caboclos e PretosVelhos. Na música também é igual, onde se utilizam de atabaques, chocalhos e agogôs. E de acordo com o Pai de Santo Marcio de Ogum, na casa se cultuam além dos Caboclos, Pretos-Velhos, Crianças e Exus, se cultuam os Baianos, Marinheiros, Boiadeiros e
Caboclos a simplicidade, os Pretos-Velhos a humildade e os Exus representam o auxilio nos trabalhos dentro dos terreiros de umbanda. Oliveira se diz pertencente da Umbanda esotérica, adepto de uma Umbanda tradicional, mas ele se contradiz quando fala de entidades oriundas da Umbanda tradicional, pois na umbanda de Zélio Fernandino de Moraes, as únicas entidades eram Caboclos e Pretos-velhos.27
Ciganos. Percebesse também uma festa a Nossa
Oliveira afirma que todas as demais entidades não
Senhora de Aparecida, culto que raramente se é
são de Umbanda, e sim enfeixados, ou seja,
encontrado em outras casas.25
reunidos na Umbanda de acordo com cada região.
23
25
COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013. 24 ALUNOS, Comunicação Social, Brasilidade e Identidades, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2014.
FOSALUSA, Felipe, A Religião Brasileira, Santos, Camaleão Produções Audiovisuais, 2013. 26 OGIYAN, Pai Rivas de, Umbanda Esotérica, Santos, TUO, 2014. 27OLVEIRA, Alexandre B, Entidades de Umbanda “Enfeixados”, Tenda de Umbanda Caboclo “7 Pena Azul”, Cosmópolis, 2015.
G N A R U S | 207 E isso acabou dando um novo nome à religião, a
Quando alguém fala de Umbanda Nagô ou
Umbanda Popular, onde várias entidades se
Umbanda Angola, nada mais é do que herança,
juntaram aos que já estavam para trabalhar a
afirma Kaim. Isso ocorre em 1910 quando o culto a
caridade. Essas entidades seriam os Boiadeiros,
Umbanda está em grande crescimento, e muitos
Marinheiros,
Árabes,
pais e mães de santo do Candomblé migram para a
Cangaceiros entre outros. Outro questionamento é
Umbanda com o desejo de fazer a caridade através
a manifestação dos Orixás na Umbanda, para
dos espíritos e acabaram trazendo costumes e
Oliveira quem se manifesta são Caboclos da linha
tradições do Candomblé, como firmezas dos Orixás,
de cada Orixá e não o Orixá propriamente dito,
cores de velas, toques de atabaques, oferendas de
muitos afirmam que são falangeiros e não Orixás.
animais, danças africanas e formas litúrgicas de
Como por exemplo, um Caboclo de nome 7
conduzir uma casa de santo. Logo as nomenclaturas
pedreiras, ele se intitula Xangô 7 Pedreiras, assim
se deram de acordo com a nação que cada
como o Caboclo Beira- Mar, que trabalha na linha
sacerdote veio. Também se tornou muito comum,
de Ogum, ele será chamado de Ogum Beira- Mar.28
sacerdotes herdarem terreiros e nem saberem por
Médicos,
Ciganos,
Mas há quem discorde das nomenclaturas dadas às divisões da Umbanda, como o sacerdote Marcio
que a casa tem tal nomenclatura, só sabem dizer que é tradição da casa, afirma Kaim.30
Kaim, o qual afirma que Umbanda só tem uma e o
Depois de analisarmos documentários, vídeos de
que ocorre são variações de acordo com quem a
palestra e programas direcionados a Umbanda, nós
dirige. E independente da variação que se tenha na
podemos concluir que realmente a Umbanda é uma
Umbanda, o que vai importar é a manifestação do
só, porém o que existe é uma grande variação
espírito pela caridade. Kaim afirma ainda que as
características de acordo com a regionalidade e
nomenclaturas usadas como Umbanda Sagrada, Pé
formação religiosa de cada dirigente de terreiro.
no Chão, Carismática, Nagô, Angola entre outras,
Vale lembrar que existe uma necessidade de um
vão se dar por três motivos. O primeiro seria por
estudo mais profundo, para que possamos ter uma
uma busca de trabalhar com uma Umbanda sem
visão mais ampla sobre o assunto. Precisamos
influências de outros espíritos que não sejam
estudar os terreiros de todas as cidades do país,
aqueles do início da Umbanda de Zélio Fernandino,
individualmente, fazendo uso da micro-história,
essa Umbanda é chamada de Umbanda Limpa. O
pois de acordo com Ronaldo Vainfas, Geovanni Levi
segundo motivo seria a junção de pedras e cristais,
afirma que “... na micro-história prevalece no
o uso de cromoterapia que daria o nome de
tocante à delimitação do campo social estudado...”
Umbanda Carismática ou Esotérica. E o terceiro
“... mais do que a definição geral da classe ou de
motivo e o mais usual, a
28 OLVEIRA, Alexandre
herança.29
B, Entidades de Umbanda “Enfeixados”, Tenda de Umbanda Caboclo “7 Pena Azul”, Cosmópolis, 2015. 29 SEVERINO, Nilton Luiz, Tipos de Umbanda, Programa Umbanda de Boa, São João da Boa Vista ,2014.
grupo ao qual pertence.” 31
30
SEVERINO, Nilton Luiz, Tipos de Umbanda, Programa Umbanda de Boa, São João da Boa Vista, 2014 31 VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas Anônimos da HistóriaMicro-História, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2002, p 117.
G N A R U S | 208 Diante
desta
afirmação
constatamos
a
necessidade de se reduzir o foco de observação, com o objetivo de tentar localizar um aspecto não percebido antes por uma abordagem geral. Fazendo isso conseguiremos entender melhor os espíritos ou entidades que se manifestam em alguns terreiros ou templos que em outros não, como os Cangaceiros que se manifestam nos terreiros do nordeste, porém nos do sudeste e sul não se tem registro, com exceção de São Paulo que tem uma gama de terreiro onde essas entidades se manifestam. Poderemos entender as heranças na construção das casas de Umbanda, que tem características de Candomblé, Jurema, Kardecismo entre outras, mas temos também entender qual a concepção de Umbanda para os terreiros que afirmam ser de Umbanda, mas tem características de outros cultos. Seria mesmo Umbanda ou simplesmente uma variante de outro culto com interesses próprios de quem está dirigindo a casa? A Umbanda tem sim uma identidade, que é justamente
essa
democracia,
não
se
tem
preconceito com outras religiões e está sempre aberta a novos encontros e casamentos. A Umbanda tem sua identidade fixada na sociedade como democrática. Ela é uma fonte quase inesgotável de culturas, pois está em constante transformação,
absorvendo
novos
traços
e
informações. Não importa as variações que ela apresenta e sim a sua doutrina, que é trabalhar com os espíritos para o amor, a caridade e a humildade em prol da humanidade. Saravá, Axé! Marcelo Soares é licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen.
Bibliografia. AZEVEDO, Janaína, Tudo o que você precisa saber sobre a Umbanda, São Paulo, Universo dos livros, 2010. BARTH, Fedrick, O guru, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro, UFPB, 2000. CALAINHO, Daniela Buono, Feitiços e feiticeiros, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013. FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína, Usos e abusos da história oral, Rio de Janeiro, FGV, 2006. GIUMBELLI, Emerson, Kardec entre nós, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013. HOORNAERT, Eduardo, Formação do catolicismo brasileiro 1550-1880, Petrópolis, Vozes, 1974. PRESTES, Miriam, Umbanda: crença, saber e prática, Rio de Janeiro, Pallas Editora e Distribuidoras, 2010. REIS, José João, Candomblé para todos, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013. VAINFAS, Ronaldo, Os protagonistas anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2002. ___________________, Exército de Cristo, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013.
Documentários e Programas de Umbanda: ALUNOS, Comunicação Social, Brasilidade e Identidades, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2014. CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013. FOSALUSA, Felipe, A Religião Brasileira, Santos, Camaleão Produções Audiovisuais, 2013 FREITAS, Juremeiro. Palestra Jurema Sagrada, TV Despertar, Natal Rio Grande do Norte, 2013. OGIYAN, Pai Rivas de, Umbanda Esotérica, Santos, TUO, 2014. OLVEIRA, Alexandre B, Entidades de Umbanda
“Enfeixados”, Tenda de Umbanda Caboclo “7 Pena Azul”, Cosmópolis, 2015. PACHECO, Luca. Umbanda, Observatório Transdiciplinar das Religiões do Recife, Universidade Católica de Pernambuco, 2010. PEIXOTO, Norberto, Umbanda Linha dos Marinheiros, Porto Alegre, Grupo de Umbanda Triângulo da Fraternidade, 2013. SEVERINO, Nilton Luiz, Tipos de Umbanda, Programa Umbanda de Boa, São João da Boa Vista, 2014. TOLENTINO, Suyanne. Religare Umbanda Sagrada, Grupo Independente, Curitiba, 2011.
G N A R U S | 209
Monografia
OPOSIÇÃO NO DISTRITO FEDERAL EM TEMPOS DE GUERRA – 19321 Por Felipe Castanho Ribeiro RESUMO Este trabalho visa identificar setores de oposição na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, na guerra civil brasileira de 1932 entre o estado de São Paulo e o governo provisório de Getúlio Vargas. Esta investigação leva em consideração que o conflito de 1932 se insere num contexto maior do que o da sua duração, de modo que este se insira numa conjuntura política específica do Brasil na década de 1930, sobretudo entre os anos de 1930-1937na qual encontramos diferentes grupos disputando o poder político do país. Para atingir este objetivo concentramos os nossos estudos e pesquisa em indivíduos que realizaram este movimento de oposição, assim como também estudamos o jornal Diário Carioca periódico tradicional do Distrito Federal que publicava diariamente nesta cidade. Palavras-chaves: Governo Provisório, oposição, Distrito Federal, Diário Carioca.
1
Trabalho originalmente elaborado como trabalho de Conclusão de curso apresentado como requisito para aprovação no curso de pós-graduação em História do Brasil da Universidade Estácio de Sá, sob orientação da Professora Ms. Teresa Vitória Fernandes Alves.
G N A R U S | 210 Introdução
P
governo provisório e que questionava a sua legitimidade.3
odemos dizer que a história política do
Ao escolher este tema e a maneira como o
Brasil na década de 1930 foi agitada e
abordamos procuramos demonstrar que a guerra
extremamente complexa, só para citar
civil de 1932 se insere em um contexto maior que
podemos lembrar que logo de início já tivemos a
os seus 85 dias de duração, na verdade este
Revolução de 1930 que estabeleceria um governo
conflito reflete um longo período de tensões
provisório comandado por Getúlio Vargas, mais a
políticas na década de 1930, mais precisamente
frente, em 1932, teríamos uma guerra civil
entre os anos de 1930 e 1937 em que o Brasil
protagonizada pelo levante armado do estado de
poderia ter seguido caminhos diferentes do que
São Paulo contra o governo federal e para
aquele que desembocaria no golpe do Estado
completar a sucessão de grandes acontecimentos
Novo, seguimos assim a linha de raciocínio da
políticos teríamos o advento de um golpe que
historiadora Dulce Pandolfi que afirma que a
implantaria uma ditadura através do Estado Novo,
década de 1930 até certo ponto foi caracterizada
em 1937. A complexidade do período, assim como
pelas suas incertezas.4
a sucessão desses acontecimentos históricos
O arcabouço teórico deste trabalho se insere em
suscitaram ao longo dos anos o olhar atento dos
dois campos específicos, História Social e Política.
historiadores, de modo que hoje encontramos
Social porque procuramos observar um grupo
várias explicações para esses eventos.
específico da sociedade e como este reagiu num
Não obstante o presente trabalho visa analisar a
dado momento de conflito desta sociedade, tendo
guerra civil brasileira de 1932, que teve seu início
em vistas que os objetos da História Social
em 09 de julho de 1932 e se encerrou em 02 de
“coincidem com subconjuntos da sociedade
outubro do mesmo ano. Contudo não faz parte do
(grupos e classes sociais, categorias de excluídos,
objetivo central deste trabalho entender os
células familiares)”5. No caso deste trabalho
motivos
movimento
procuramos estabelecer um diálogo entre a
sedicioso, ou analisar as minúcias do conflito, até
História Social e a Política, de modo que a leitura
porque já existem excelentes pesquisas que
do social se relaciona com o mundo político e vice
procuram responder a estas questões2, a nossa
versa.
que
desencadearam
o
proposta é um pouco diferente. Na verdade, neste trabalho procuramos descobrir através de fontes específicas como a sociedade carioca, ou seja, do Distrito Federal, se comportou diante de um conflito que de certa forma representava uma insatisfação de setores da sociedade com o
3
Iremos abordar mais adiante esta questão da legitimação, contudo, pode se consultar também na dissertação de mestrado de LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões
provisórios: legitimação, mobilização e alistamento para uma guerra nacional (Ceará 1932). UFC, 2009. 4 2
Bons trabalhos que procuram responder a estas questões de formas diferenciadas são: CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981 e HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
Ver: PANDOLFI, Dulce. “Os anos 1930: as incertezas do regime”. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano II – O tempo do nacional-
estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Livro II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 5 BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 112.
G N A R U S | 211
indivíduo, não visa mais a excepcionalidade das grandes figuras políticas que outrora os historiadores positivistas acreditavam ser os grandes e únicos condutores da História.7
No caso da História Política não a abordamos da maneira tradicional inventada pelos gregos ou a positivista que surge mais ou menos em 1870, em
que
havia
uma
Tendo
valorização da narração de grandes eventos ou do estudo
do
poder em
figura
do
primeiros
positivista por enxergar
CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
primeiro
procuramos as
anos
do
eclosão do conflito em
de grandes personagens,
Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, pp. 61-85.
no
três
governo provisório até a
não só o poder estatal ou
6
em
ser oposição durante os
distinto da tradicional ou
Assim, enquanto a História Política do século XIX mostrava uma preocupação praticamente exclusiva com a política dos grandes Estados (conduzida ou interferida pelos “grandes homens”), já a Nova História Política que começa a se consolidar a partir dos anos 1980 passa a se interessar também pelo “poder” nas suas outras modalidades (que incluem também os micropoderes presentes na vida cotidiana, o uso político dos sistemas de representações, e assim por diante). Para além disto, a Nova História Política passou a abrir um espaço correspondente para uma “História vista de Baixo”, ora preocupada com as grandes massas anônimas, ora preocupada com o “indivíduo comum” e que por isto mesmo pode se mostrar como o portador de indícios que dizem respeito ao social mais amplo. Assim, mesmo quando a Nova História Política toma para seu objeto um
texto
o
características do que era
que possuí tratamento
históricos:
dividimos
os
presente
desvendar
a Nova História Política
cotidiana e se relaciona com outros campos
trabalho,
capítulo
Trabalhamos então, com
mas considera também os micro poderes na vida
do
capítulos;
Estado6.
vista
objetivos nosso
grandes homens ou na
em
1932,
dessa
forma
poderíamos identificar e entender melhor a oposição existente no Distrito Federal, ao mesmo tempo o primeiro capítulo procura contextualizar o período histórico dando ênfase para a tensão social e política do período. Elaboramos este capítulo dialogando com as bibliografias que se ajustavam a nossa teoria.8 Já no segundo capítulo realizamos a análise do jornal Diário Carioca, um dos principais periódicos em circulação no Distrito Federal e que exercia oposição ao governo provisório sendo inclusive empastelado ainda em fevereiro do ano de 1932. Analisamos assim, as edições do jornal durante os BARROS, op.cit. p. 107. Evocamos aqui o termo “teoria” com o significado a ele atribuído por José D’Assunção Barros em que “a teoria relaciona-se a um ‘modo de pensar’ (ou de ver)” in: Teoria e 7 8
Metodologia – Algumas distinções fundamentais entre as duas dimensões, no âmbito das Ciências Sociais e Humanas.
In: REVISTA ELETRÔNICA DE EDUCAÇÃO. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos, Programa de PósGraduação em Educação, 2007. Semestral. ISSN 1982-7199. Disponível em: http://www.reveduc.ufscar.br. Acesso 31/07/2014.
G N A R U S | 212 85 dias de duração do conflito com a finalidade de
No terceiro e último capítulo nos dedicamos a
identificarmos o posicionamento político deste
pesquisar personagens históricos específicos que
periódico através do seu discurso. O fato de
participaram direta ou indiretamente do conflito
termos escolhido um jornal como fonte não foi a
só que apoiando a causa paulista, diante das
esmo, o jornal enquanto fonte histórica é
especificidades de cada grupo dividimos a nossa
“portador de interesses e projetos de classes ou
análise em civis e militares. Nosso intento ao
frações de classe numa conjuntura dada”,9 para
estudar estes personagens foi de que pudéssemos
além deste fator os jornais de início do século XX
não só identificar quem eram os oposicionistas,
apesar de já possuírem características profissionais
mas também de que havia membros na sociedade
não perderam o seu caráter opinativo e de
que acabavam legitimando o discurso do Diário
intervenção na vida pública.10 Portanto analisar o
Carioca, mesmo que de fato não lessem o
discurso emitido pelo Diário Carioca significa
periódico.
compreender o posicionamento não só do próprio jornal como de uma parcela da sociedade. Na metodologia utilizada para análise do jornal
CAPÍTULO I
tivemos o cuidado de não procurar arrumar o discurso do jornal de forma homogênea, tendo em
Caminhando para uma oposição 1930-1932
vista que oscilações são comuns, podendo ser
A consciência para cujo tribunal inflexível apello neste instante, não me accusa de, como Chefe do Governo, haver deixado de cumprir estrictamente o dever que me foi imposto pela revolução. Mantendo-me inabalavel na defesa dos seus ideaes e arrostando, para realizar os compromissos assumidos, a animosidade e a oposição daquelles que, na ansia de conquistar predomínio e posições, se collocaram, aos poucos, à margem da situação, incapazes de condicionar suas paixões aos magnos interesses da nacionalidade.12 (grifo nosso)
vários os fatores que alteram o discurso desde a um momento diferenciado em que o jornalista ou editor possa estar passando até a própria inclusão do jornal sobre uma censura prévia, em outras palavras:
Mesmo esse tipo de jornal, porém, não é monolítico, deixando entrever ou passar falas diferenciadas de uma orientação central. Alguns jornalistas dizem ver sua profissão como “uma tarefa apressada”; obviamente não se procura nessa a racionalidade do trabalho acadêmico... Assim, ao se trabalhar com os jornais, é sempre preciso ter-se cuidado para não ficar tentado a arrumar tudo direitinho numa direção só.11
Na declaração acima destinada à nação, realizada logo após o início da guerra civil de 193213, Getúlio Vargas na condição de chefe do Governo Provisório, afirma estar defendendo os ideais da revolução de outubro de 1930, ao mesmo tempo em que os revoltosos são elementos que
M. do Pilar de A. Vieira et al. Imprensa como fonte para a pesquisa histórica. Revista PUCSP, consultado em < 9
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/124 95/9064>. Acesso em 29/07/2014. 10 LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. 11 BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992, p. 22.
12
Nota oficial do Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, publicada no jornal Diário Carioca, RJ, em 12 de julho de 1932, p. 4. 13 Existem várias nomenclaturas para o conflito entre São Paulo e o governo provisório, que ocorreu do dia 09 de julho à 02 de outubro de 1932, possuindo suas variações conforme a corrente historiográfica, contudo o presente trabalho não pretende enveredar por este caminho e por isso iremos nos referimos ao conflito simplesmente como guerra civil.
G N A R U S | 213
(...) sendo mensurada em 85 dias, iniciouse em 9 de julho e terminou em 2 de outubro do mesmo ano, ela teve complexas ligações com outros eventos mais longos, como a chamada “Revolução de 1930”, sua política administrativa, as diversas interventorias estaduais, os projetos de República e constituições que se confrontavam (...)16
não conseguiram acessar posições de poder no governo e acabaram se colocando a margem da situação já que eram incapazes de por as suas paixões abaixo dos interesses do país. Se analisarmos o contexto político do período que vai da Revolução de 1930 até a guerra em 1932 perceberemos que a nota oficial de fato traduz uma parcela da realidade, na qual a
Ao afirmar que a guerra de 1932 pertence a um
ascensão ao poder de um determinado grupo
contexto maior somos obrigados a conhecer o
acaba alijando deste, grupos políticos que
período anterior que desencadearia o conflito.
escreveram a história da primeira república no
Assim seremos capazes de entender as diversas
Brasil e consequentemente definiram os rumos da
oposições, em São Paulo e no Rio de Janeiro, que é
política nacional.
o principal objetivo desse trabalho, ao Governo
A guerra de 1932 seria gerada, então, pela
Provisório no momento do conflito. Para tanto
tensão e disputa pelo poder político destes grupos
devemos analisar o quadro político, social e
e também devido à política nacional adotada pelo
econômico do país no mínimo a partir do ano de
novo governo, que era baseada nos ideais da
1930, quando estas tensões serão potencializadas
revolução, em outras palavras:
devido à revolução de outubro.
(...) a Guerra de 1932 está intimamente relacionada com a política nacional adotada pelo novo governo, que chegou ao poder depois da campanha presidencial de 1930, mesmo tendo perdido as eleições. O maior movimento questionador do Governo Provisório, com armas nas mãos, estendeuse por todo o país, atraindo seus aliados ou congregando seus opositores, em um contexto de profunda instabilidade.14
1.1 A Revolução de 1930 e os partidos de oposição
Está victoriosa a revolução. Está victorioso o ideal democratico dos sonhadores de 1889. Não foi um movimento isolado de quarteis. Foi um movimento excepcional unico na historia dos povos latinoamericanos - iniciado ao mesmo tempo pelo norte e pelo sul, irmanados na gloria de salvar o Brasil das mãos dos cabotinos e dos aventureiros, dos ladrões e dos fraudadores da verdade eleitoral.17
Podemos assim afirmar que o conflito de 1932 se insere num contexto maior que o do seu ano de acontecimento, maior que o estado de São Paulo e com certeza maior que a questão da luta pela reconstitucionalização do país15 e mesmo a guerra de 1932:
A revolução de 1930 já suscitou e promoveu inúmeros debates historiográficos sobre sua natureza. As versões tradicionais correspondem ao período em que os historiadores brasileiros estiveram sobre influência da história marxista e que tendia a dualizar os diversos processos
14
LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões provisórios:
legitimação, mobilização e alistamento para uma guerra nacional (Ceará 1932). Dissertação de mestrado. UFC, 2009,
p. 15. 15A guerra de 1932 também é conhecida pela terminologia de Revolução Constitucionalista de 32, pois durante muito tempo a reconstitucionalização do país foi o motivo principal apontado pela historiografia como causa do conflito.
históricos, basicamente como uma luta de classes. Desta forma a Revolução de 1930 teria sido nas 16 17
LOPES, Raimundo Helio. Op. cit., p.17. Diário Carioca, RJ, 24/10/1930, p 1.
G N A R U S | 214 duas
explicações
mais
correntes
desta
produção agrícola. O café, principal produto de
historiografia dualista a ascensão da burguesia
exportação do país e principal fonte de riqueza do
industrial ao poder e, ou, a revolução da classe
estado
São
Paulo,
também
sentiria
as
média, mas sempre em oposição à outra classe
consequências da crise de
social, no primeiro caso burguesia versus elite
fundamental para desmentirmos a crença de que
latifundiária
a
1930 representou a ascensão da burguesia
polarização se daria entre classe média e as da
industrial ao poder, tendo em vista a crise
nação. Tal afirmação possuí embasamento no
econômica que atingiu ambos os setores ao
trabalho do historiador Boris Fausto, que ao
mesmo tempo.
enquanto
que
no
segundo
analisar a Revolução de 1930 partiu de:
[...] duas linhas principais que se cristalizaram na historiografia brasileira, procurando apreender seu sentido mais profundo: uma sintetiza o episódio revolucionário em termos de ascensão ao poder da burguesia industrial; outra o define como revolução das classes médias. De certo modo, as duas versões se relacionam com o modelo que procuro criticar. A primeira integra todos os seus elementos e com ele se identifica; a segunda implica a associação classes/tenentismo e, ao menos em certas formulações, refere-se ambiguamente ao que é subjacente ao modelo, isto é, a tese dualista.18 Contudo tal visão teleológica passa a sofrer revisões de modo que uma maior problematização dessa Revolução ocorre, levando agora em consideração a complexidade deste processo. Em
econômico, pois ela estava diretamente ligada à crise do sistema capitalista de 1929 e a política financeira adotada por Washington Luís19, que atingiria a indústria nacional e os setores de
Este fato é
Boris Fausto nos lembra, ainda, que se realmente havia uma indústria forte no Brasil esta era subordinada
aos
interesses
agrários
e
principalmente seu desenvolvimento maior era no estado de São Paulo.21 E, se o principal centro industrial do país se encontrava no estado paulista não seria de estranhar que estes apoiassem a candidatura de Júlio Prestes nas eleições de 1930, como de fato aconteceu. O mais importante para nos é notarmos que quando estoura a guerra em 1932 os industriais paulistas iriam aderir ao movimento sedicioso de modo que logo “após a eclosão da revolta, o órgão de classe dos industriais [FIESP] e a Associação Comercial, em manifesto conjunto, assinado em nome das classes conservadoras,
deram
sua
adesão
ao
movimento”.22 As constatações anteriores sobre o setor
relação à Revolução de 1930 a primeira observação que devemos realizar é de cunho
1929.20
industrial
também
são
relevantes
para
compreendermos o papel do Partido Democrático (PD) de São Paulo, que no primeiro momento apoiaria a Aliança Liberal (AL). Este fora fundado em 1926 em decorrência de disputas por cargos no Instituto do Café, dentro do estado de São Paulo.
Boris. A revolução de 1930: História e historiografia. São Paulo: Companhia das letras, 1997, pp. 0718FAUSTO,
10. 19 Washington Luís nasceu em Macaé no Rio de Janeiro no ano de 1869 e se elegeu presidente pelo Partido Republicano Paulista em 1926. Para mais consulte: Verbete: Washington Luís. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro CPDOC, doravante citado como DHBB/CPDOC. Acessado em 06 de março de 2014, <http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx >.
Era no início oposição do tradicional Partido Republicano Paulista (PRP) por abrigar os descontentes com a política adotada pelo partido perrepista. Após a vitória da Revolução o PD se FAUSTO, Boris. Op.cit. pp. 35 e 36. FAUSTO, Boris. Op.cit. pp. 37 e 38. 22 FAUSTO, Boris. Op.cit. p.48. 20 21
G N A R U S | 215 tornaria,
juntamente
com
a
Legião
frustrados, pois acreditava que Getúlio fosse
Revolucionária23, um dos principais partidos de
nomear Francisco Antônio de Almeida Morato26,
São Paulo.
presidente do partido, para a chefia do estado
O PD já foi relacionado pela historiografia à
paulista. Mas, ao encontrar com Getúlio no famoso
classe dos industriais e a classe média, quando a
Trem da Vitória27 este comunica a Morato que
revolução sai vitoriosa seriam estas classes que
quem assumiria a interventoria seria João Alberto
estariam assumindo o poder junto com o partido.
Lins de Barros.28 No caso da chefia do Estado em
Entretanto o Partido Democrático não estava
nenhum momento entre os anos de 1930 e 1932 o
vinculado a este setor mais dinâmico da sociedade
PD conseguiu pôr um membro seu na intervenção
e sim a setores agrícolas, e, pelo contrário os
do estado paulista.29
industriais possuíam maior conexão com o PRP.24A
No primeiro momento esse partido vai apoiar o
sua trajetória política no período que vai da
Governo Provisório, mesmo sem conseguir a
Revolução de 1930 a guerra civil em 1932 é um
posição de interventor. Mas, conforme o tempo
tanto conturbada, com a vitória da revolução o
passa seus membros encontram dificuldades para
partido ambicionava uma maior participação
por em prática seus planos de ascender ao poder
política, mas no momento da Revolução de 1930 o
em São Paulo a relação com o governo federal vai
PD não se articulou como os outros órgãos
se desgastando a ponto de, em janeiro de 1932,
revolucionários, pois:
realizar um manifesto que rompe com o governo federal.30 O Partido Democrático entraria na
A posição inicial de ambiguidade do PD em relação à sucessão se prolonga em relação ao movimento armado. A participação de seus membros na organização da luta é praticamente nula. Alguns poucos democráticos estabelecem contatos para a luta armada; alguns jornalistas do Diário Nacional são presos por suas posições, outros se envolvem na luta final pela vitória do movimento na cidade de São Paulo [...] Essa participação é tão reduzida que os articuladores do movimento jamais a esquecem ou desculpam. Posteriormente na luta pelo “espólio da revolução”, não perdem a oportunidade para lembrar ao PD sua ausência.25 Logo no início do Governo Provisório instalado após a revolução o PD já vê os seus planos 23A
Legião Revolucionária era um grupo político liderado por Miguel Costa, revolucionário ligado ao movimento tenentista e a revolução de 1930, posteriormente a LR se tornaria um partido o PPP, Partido Popular Paulista, possuía como princípio a defesa dos ideais da revolução. Para mais consulte: BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. 24 FAUSTO, Boris. Op. cit. pp. 49-56. 25 BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit. pp. 29 e 30.
guerra de 1932 como mais um opositor do Governo Provisório, não obstante ele não estaria sozinho neste caminho, havia ainda as forças tradicionais que tinham dominado o cenário político da Primeira República. Não podemos falar de oposições ao Governo Provisório sem citar brevemente o PRP, partido que dominou o cenário político na primeira república, e que apesar de ter ganhado as eleições em 1930 com Júlio Prestes, saiu derrotado pela revolução. A atuação do partido de 1930 a 1932 foi de fato discreta, até mesmo no próprio estado 26
Nome que havia sido inclusive escolhido pela junta militar, apenas esperava-se a confirmação de Getúlio Vargas. BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit. P. 34. 27 O Trem da Vitória foi o nome dado ao trem que levava Getúlio Vargas para assumir o poder no Rio de Janeiro. Idem. 28 O pernambucano João Alberto era revolucionário e ligado ao movimento tenentista, também esteve presente nas revoltas de 1922 e em 1924 como chefe de destacamento da coluna. BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit. P. 34. 29 Os interventores no período de 1930 a 1932 em São Paulo foram respectivamente: João Alberto Lins de Barros; Laudo Ferreira de Camargo; Manuel Rabelo e Pedro Manuel de Toledo. 30 BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit., p. 47.
G N A R U S | 216 de São Paulo a disputa pelo poder se dá
foram os motivos que levaram dois dos principais
principalmente
Legião
partido de São Paulo a vencerem as suas
Revolucionária, deixando o PRP de lado, a
diferenças e se unirem contra o governo federal?
historiadora Vavy Pacheco Borges define assim a
Que motivos fizeram com que o PD, partido que
atuação do partido após 1930:
entra em 1930 como aliado do governo
entre
o
PD
e
a
revolucionário, dois anos mais tarde a romper com
Após outubro de 30, a perda do predomínio político do PRP é indubitável; afastado do poder pela destituição de cargos executivos e pela extinção dos legislativos, oficialmente permanece num limbo político, mas continua lutando através da ação de seus membros.31
este mesmo governo? São questões que devemos responder para que possamos compreender os diferentes e complexos posicionamentos políticos durante o conflito. Como antecipamos a tese que aponta como causa da revolta paulista a luta pela constituição,
A historiadora destaca ainda que alguns membros
do partido de menor expressão
conseguiam cargos administrativos, sendo este fato constantemente denunciado pela imprensa. No entanto, devemos lembrar que apesar do PRP atuar discretamente durante este período o
prometida pelo governo revolucionário, não se sustenta mais. A guerra paulista inicia-se em 9 de julho de 1932, mesmo após Getúlio Vargas ter assinado em 24 de fevereiro a nova lei eleitoral que era o primeiro passo para a constituição, o que já era notório para os contemporâneos, pois:
mesmo ainda possuía forças, pois como vimos anteriormente, o setor industrial de São Paulo era
A sua promulgação abre as portas da estrada segura e larga, por onde os garimpeiros da redempção brasileira marcharão confiantes, a alcançar o objectivo final da obra revolucionaria, isto é, a rentegração do Brasil na posse de mesmo, com a garantia integral das suas liberdades e dos seus direitos, assegurados pelos dispositivos de uma Constituição moldada nos aspectos mais completos do espiríto e dos sentimentos da nossa raça.34 (grifo nosso)
vinculado a este partido além da tradicional elite cafeeira. Em 1932 o PRP vai unir forças com o PD, formando a Frente Única Paulista32 que acabaria sendo o centro político de São Paulo na guerra civil de 1932.
1.2 As insatisfações do Estado de São Paulo
São Paulo é a locomotiva que puxa os vagões velhos e atrasados da federação.33 Em 1932 PRP e PD se unem através da Frente
Posteriormente no dia 14 de maio o presidente da República leria para a nação o decreto nº 21.402 que fixava que:
Fica o dia três de maio de 1933 para a realização das eleições à Assembléia Constituinte e cria uma comissão para elaborar e anteprojeto da Constituição. O Chefe do governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil: Considerando que, com a constituição dos Tribunais Eleitorais, terá inicio a fase de alistamento dos cidadãos para a escolha dos
Única Paulista e após romperem com o governo federal levam o país à guerra civil. Mas, quais 31
Idem, p.29. Aliança política entre o Partido Democrático (PD) de São Paulo e o Partido Republicano Paulista (PRP), formada em 16 de fevereiro de 1932 para se opor à influência tenentista em São Paulo e ao Governo Provisório da República, chefiado desde 1930 por Getúlio Vargas. Verbete FUP In: DHBB/CPDOC, acessado em 26/07/2014. 33 ANDRADE, Oswald de. “Marco Zero”, apud CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 50. 32
34
Diário Carioca, RJ, 24/02/1932 p. 01.
G N A R U S | 217
seus representantes na Assembléia Constituinte; Considerando que, nesses termos, convem seja prefixado um prazo dentro no qual se habilitem a exercer o direito de voto; Considerando a utilidade de abrir desde logo, como trabalho preparatória as deliberações da Assembléia Constituinte, um largo debate nacional em torno às questões fundamentais da organizações políticas do país, DECRETA: Art. 1º É criada, sob a presidência do Ministro da Justiça e Negócios Interiores, uma comissão incumbida de elaborar o anteprojeto da Constituição. Art. 2º A comissão será composta de tantos membros quantos forem necessários a elaboração do referido ante-projeto e por forma a serem nela representadas as correntes organizadas de opinião e de classe, a juizo do Chefe do Governo. Art. 3º As eleições à Assembléia Constituinte se realizarão no dia 3 de maio de 1933, observados o decreto n.21.076 de 24 de fevereiro de 1932 e os que, em complemento dele, foram ou vierem a ser expedidos pelo Governo. Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário. Rio de Janeiro, em 14 de maio de 1932, 111º da Independência e 44º a República.35
Paulo, pelo Brasil, nacionalidade.36
governo para o retorno do país à legalidade, isto ocorria porque na verdade era através do ideal da luta pela constituição que os paulistas mascaravam as suas verdadeiras insatisfações, ao mesmo tempo
causa
da
Os próprios diretores do PD possuíam a opinião de que se o governo do Estado de São Paulo fosse entregue a eles a Constituição poderia ser protelada. Assim, o principal incômodo dos paulistas com relação ao governo federal era o cerceamento da sua autonomia. Não afirmamos com isto, que de fato não havia interesse por parte de São Paulo na promulgação da Constituição, até porque a sua publicação poderia resolver os seus problemas,
dependendo
do
seu
caráter
obviamente, mas concordamos com o historiador Stanley Hilton que pondera:
(...) se Getúlio Vargas, em novembro de 1930, tivesse entregue a direção do Estado a um proeminente civil paulista ligado à causa revolucionária, tal como um prócer do Partido Democrático, o país não teria estado à beira de uma guerra fratricida em julho de 1932.37 De certa forma a insatisfação do Partido
É interessante notar que os articuladores do movimento procuravam ocultar os esforços do
pela
Democrático com o Governo Federal se iniciaria ainda em 1930, quando Vargas contrariando a decisão da junta militar que optava por João Alberto a interventoria do Estado, apesar da Revolução ter encontrado no PRP o seu principal inimigo devido à escolha de um interventor
que:
estrangeiro38 não foi uma retaliação contra São
Em torno do tema da Constituinte, conseguiu-se grande mobilização não apenas em São Paulo, mas também em outros Estados, onde setores descontentes com a política do Governo Provisório acabaram apoiando a “causa de São Paulo”. [...] Afinal, a defesa da Constituição permitia à classe dominante paulista falar por São
Paulo, é verdade que o PD como aliado dos revolucionários seria o representante natural do movimento para a direção do estado, contudo o problema se encontrava na maneira como os democráticos
37
Decreto nº 21.402 consultado no <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/19301939/decreto-21402-14-maio-1932-518100publicacaooriginal-1-pe.html> em 25/07/2014.
site
a
sua
participação
na
CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 48 e 49. HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 21. 38 Estrangeiro pela escolha do interventor não ter recaído sobre um político oriundo do Estado de São Paulo. 36
35
viam
G N A R U S | 218 Revolução e a maneira como os revolucionários
sucesso e terminou com a prisão de mais de 200
viam a participação daqueles.
revoltosos.42
Na visão deste últimos os democratas agiram
Para além do agravante dos paulistas não
com certa passividade tanto nas eleições, quanto
conseguirem governar a si mesmos, há uma
na conspiração que derrubou Washington Luís, de
mudança
forma que o mineiro:
adotada pelo Governo Central, como é sabido a
fundamental
Constituição
[...] Virgílio de Melo e Franco, um dos principais elementos de ligação entre os conspiradores do centro-sul e os gaúchos em 1930, as prevenções dos revolucionários decorriam da convicção de que o Partido Democrático agira com excessiva passividade na época das eleições de 1930 e que, posteriormente, durante a conspiração contra o governo de Washington Luís, a ação do democráticos ficara, alegava-se, no terreno das palavras.39
de
1889
na
política
possuí
um
nacional caráter
descentralizador, mas desde a posse do governo revolucionário a União dá início a um processo de fortalecimento do poder central, que afetaria diretamente as receitas:
O Governo Provisório retira de do estado de São Paulo as receitas de exportação e o controle direto da política cafeeira, além de, entre outras medidas, a isenção de frete do açúcar paulista em estradas do estado. É imposta uma “taxa de 2% ouro” sobre o porto de Santos, são instituídos novos impostos sobre o café, sobre a propriedade territorial, sobre sua transmissão... .43
Não obstante os paulistas de uma forma geral não gostaram da decisão, os democratas não conseguiram o poder enquanto que para o restante dos paulistas o estado era agora
Diante de tais medidas os paulistas alegavam que
governado por um político estrangeiro e militar. Mesmo não alcançando o poder no primeiro momento o PD declararia o seu apoio ao Governo Provisório
e
aceitaria
João
Alberto
estavam sendo prejudicados pela política adotada pelo Governo Provisório. Apesar das ações tomadas pela federação,
como
interventor, entretanto o ressentimento dos democratas e algumas das medidas adotadas por João Alberto voltaria a abalar o cenário político do Estado em 1931. Entre as medidas se encontravam a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no Estado e em decorrência de manifesto lançado no dia 7 de abril onde o interventor ordena o fechamento da sede do partido assim
sobretudo as ligadas à economia, os paulistas não possuíam tantas razões para reclamar, o governo sabia que São Paulo era o estado mais importante para a economia do país, tanto que não faltaram esforços para recuperar a economia cafeeira, prova disso foi à compra de todo o estoque de café retido pelo Governo e que posteriormente seria queimado para preservar o valor do produto.44 A política econômica adotada pelo Governo
como a prisão do então chefe de polícia Vicente Rao.40 Em resposta os democratas, com o apoio do general Isidoro Dias Lopes41, organizam uma tentativa de golpe em 28 de abril, que não obteve
visando à recuperação da economia cafeeira e a ciência dos paulistas deste fato, reforçam a tese de que a principal
insatisfação
destes estava
relacionada ao cerceamento da autonomia do HILTON, Stanley E. Op.cit, p. 23. 40 CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 14 e15. 41 Isidoro Dias Lopes nasceu no Rio Grande do Sul em 1865 e era chefe da 2ª Região Militar, posteriormente participaria da Revolução de 1932 pelo lado dos paulistas. Mais em verbete: Isidoro Dias Lopes. DHBB/CPDOC. Acessado em 20/06/2014. 39
estado. Dos quatro interventores que passaram por 42
Idem. p. 14-15. BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit., p.185. 44 CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 21-22. 43
G N A R U S | 219 São Paulo entre 1930 e 1932 apenas dois eram
Este possuía uma longa carreira política já havia
paulistas e civis, para completar não possuíam
ocupado o cargo de ministro da agricultura entre
muita expressão no cenário político. Os outros dois
1910 e 1913, além de ter sido embaixador do
interventores eram oriundos de outros estados e
Brasil na Itália e Argentina, devido a desavenças
militares, o que era encarado como ocupação.
com o presidente Arthur Bernardes, foi demovido
Após a interventoria de João Alberto que se
do cargo de embaixador na Argentina em 1926 e
exonerou do cargo em 24 de julho de 1932 devido
aos 66 anos se afastou da vida pública. A escolha
a pressões políticas por estar vinculado ao
do nome de Toledo para o posto de interventor foi
movimento
tenentista45
quem assume é o juiz
claramente estratégica, devido ao afastamento da
Laudo Ferreira de Camargo.46 Pressionado pela
vida pública Vargas acreditava estar escolhendo
Legião Revolucionária de Miguel Costa e pelo
um nome neutro na disputa pelo poder no estado,
grupo tenentista encabeçado por João Alberto,
e que agradaria tanto a FUP quanto o movimento
Laudo Camargo se demitiria do cargo de
tenentista.
interventor em 13 de novembro de 1931.
Apesar de Pedro de Toledo não desagradar às
Neste mesmo dia o então coronel Manuel
elites paulistas não era exatamente o que
Rabelo47 assume a interventoria do estado apoiado
desejavam. A relação destas com o Governo
pelos mesmos culpados pela queda de Laudo de
Federal já estava extremamente desgastada de
Camargo, Miguel Costa e João Alberto. Mais uma
modo que a tensão gerada pelos acontecimentos
vez São Paulo estava em mãos de um chefe
anteriores fez estourar a guerra civil brasileira em
político de fora. Novamente os partidos de
9 de julho de 1932. Após a deflagração do
oposição pressionariam o Governo Provisório para
movimento
que entregasse São Paulo aos paulistas.
manifestaria seu desejo de renúncia, a opção pelo
Em 13 de janeiro de 1932 o PD lançava manifesto rompendo com o Governo Federal e a pressão
sedicioso
Pedro
de
Toledo
movimento armado não era aconselhada pelo interventor, contudo:
aumentaria quando o Partido Democrático se uniria ao tradicional PRP, na Frente Única Paulista (FUP) ou Frente Única de São Paulo (FUSP). A tensão política gerada pelos paulistas surtiu efeito, pois em 03 de março Getúlio Vargas exonerava o coronel Manuel Rabelo e nomeava o paulista civil Pedro Manuel de Toledo48 para o cargo de interventor.
45
Iremos abordar o movimento tenentista no presente trabalho mais adiante. 46 Laudo Camargo era paulista e nasceu em 1881 na cidade de Amparo. In: DHBB/CPDOC, acessado em 20/06/2014. 47 Manuel Rabelo havia nascido na cidade de Barra Mansa no Rio de Janeiro, e militar ligado ao movimento tenentista que não era tão popular entre os paulistas. In: verbete: Manuel Rabelo. DHBB/CPDOC. Acesso 26/06/2014. 48 Nasceu na cidade de São Paulo em 29 de junho de 1860, seu avô o coronel Joaquim Floriano de Toledo, havia sido
(...) a insistência dos líderes revolucionários levou-o a aceitar o cargo de governador do estado e chefe civil do movimento, sendo ele aclamado em seguida diante de grande concentração popular, descrita por Menotti del Picchia: “A multidão tomou-se de delírios pânicos que tornaram suas aclamações o reboar de um furacão desencadeado. As mãos acenavam; flabelavam-se os lenços; agitavam-se os chapéus. Comparecendo a uma das janelas do palácio cercado pelo general Isidoro Dias Lopes, coronel Salgado, dr. Francisco Morato, Pádua Sales e outros chefes militares e civis da revolução, foi o dr. Pedro de Toledo proclamado governador de São Paulo.” Pouco depois, Toledo enviou telegrama a Vargas, afirmando: “Esgotados secretário particular de dom Pedro I. In: verbete: Manuel Rabelo. DHBB/CPDOC. Acesso 26/06/2014.
G N A R U S | 220
todos os meios que a meu alcance estiveram para evitar o movimento que acaba de se verificar na guarnição dessa região, ao qual aderiu o povo paulista, não me foi possível caminhar ao revés dos sentimentos do meu estado.”49
1.3 A oposição ao tenentismo
A finalidade real do Club 3 de Outubro era sustentar pela violencia, um regime de poderes discricionarios, que o sr. Getulio Vargas, evidentemente, planejou prolongar no paiz.52
A adesão de Pedro de Toledo ao movimento sedicioso, obviamente, não agradaria a Vargas.
O
movimento
tenentista
enxergava
a
Nos escritos do seu diário que correspondem aos
necessidade de uma regeneração no país, isto
dias 12 e 13 de julho o chefe do Governo
porque a política nacional da Primeira República
escreveria “Em São Paulo, traição de Vasconcelos,
havia sido prejudicial para o Brasil. Para o
de todo o governo paulista, inclusive a velha
tenentismo a inspiração da constituição de 1891
múmia
gerava uma descentralização republicana, por se
que
exumei
interventor Pedro de
do
esquecimento,
o
Toledo.”50
basear em um liberalismo excessivo, que podia até
No caso de São Paulo ficou claro todas as
ser compatível com outros países, mas não possuía
dificuldades que Getúlio teve para administrar o
semelhança com o Brasil devido à especificidade
estado, basicamente a diminuição da tensão na
na sua formação. Para a solução fazia-se
região perpassaria pelo atendimento dos anseios
necessário à centralização do poder e a
do PD, mas a situação não era tão simples. Assim,
uniformização
no início do Governo Provisório Vargas possuía o
obviamente que tais ocorreriam através do
seu poder político mais limitado e, por isso,
Exército. Se havia uma crítica por parte dos
precisava de apoio neste sentido51. Logo, tinha que
tenentes com relação à excessiva autonomia que
responder por um dos principais aliados da sua
os Estados possuíam, consequentemente criticava
plataforma política nacional, o grupo dos
se o poder oligárquico, principal responsável pela
tenentes. De certa forma a instabilidade na
descentralização do poder, e mais, uma vez
política paulista neste período de 1930 a 1932 é
identificado pelo:
das
instituições
do
estado,
causada pela disputa do poder pelo PD com os tenentes que atuavam politicamente no estado,
(...) domínio das oligarquias com a predominância do Poder Executivo, que intervém na composição do Legislativo, fere a autonomia estadual, viola as liberdades individuais, com a contínua decretação de estados de sítio. Por isso, buscar a maior centralização não significa para os “tenentes” reforçar as atribuições do Executivo, mas, pelo contrário, acentua-se a necessidade de restaurar o equilíbrio entre os três poderes, admitido-se a hipótese de uma predominância do judiciário.53
principalmente João Alberto e Miguel Costa. Na verdade o movimento tenentista, que se iniciara no início da década de 1920 e em 1930 com a vitória da Revolução encontra o seu auge na participação ativa no Governo Provisório, esse foi o motivo do descontentamento de inúmeros setores da sociedade brasileira com o governo, inclusive no Rio de Janeiro. 49
Pedro Manuel de Toledo. DHBB/CPDOC. Acesso 27/06/2014 50 PEIXOTO, Celina Vargas do Amaral, Getúlio Vargas: Diário, Volume I (1930-1936). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995, p. 116. 51 HILTON, Stanley E. Op. cit., pp. 32-33.
Torre de Babel In: Diário Carioca, RJ, 24/02/1932, p. 1. O Club 3 de outubro representava os ideais do tenentismo, participavam tanto civis como militares ligados aos seus ideais. 53 FAUSTO, Boris. Op. cit, .pp. 86-88. 52A
G N A R U S | 221
Mato Grosso para onde fora banido seis meses após a Revolução de 1930, acompanhava com crescente desgosto e apreensão a onda de indisciplina que parecia estar erodindo os fundamentos da organização militar nacional.57
Dessa forma o tenentismo via nas oligarquias o principal obstáculo para o que acreditava ser o melhor para o país. O resultado seria os inúmeros embates entre grupos oligárquicos e os tenentes. Através dessa análise, podemos, ainda, concluir que o surgimento do tenentismo e o processo
A Frente Única Paulista (FUP) ciente da antipatia
político de São Paulo geram o atrito que
do general pelo tenentismo, e pelo governo, o
desembocou no movimento de 1932.54
convidaria para o levante em 24 de abril e no dia 1
Cabe ressaltar que a oposição ao governo provisório gerada pela presença dos tenentes no
de maio ofereceria o comando das tropas paulistas ao general Klinger.
governo, não significava que a política pós 1930
É digno de nota que alguns dos militares que
atendia aos interesses destes, pelo contrário, na
estavam na base do governo observavam com
prática
o
governo
cautela o movimento
atenderia
os
tenentista, é o caso,
interesses
de
por exemplo, do Gal.
oligarquias ligadas a
Pedro Aurélio de Góis
outros
Monteiro58 que em
Estados,
ou
seja, com a Revolução
carta
ao
general
teria ocorrido uma
Klinger afirmava que
troca no poder.55
algumas
guarnições
Não obstante, o que
estavam em franca
devemos considerar é
balburdia e no dia a
que
movimento
dia avolumava-se a
tenentista acentuaria
desorganização e a
uma
indisciplina.59 Apesar
o
oposição
ao
governo que além de estar excluída do poder não
de parecer contraditório a fundação do Clube 3 de
concordava com os novos rumos da política
Outubro por Góis Monteiro, a sua criação possuía
nacional do governo provisório.
o objetivo de fazer com que os tenentes não
Entretanto os críticos do tenentismo não se restringiam somente a setores civis da sociedade, dentro
do
próprio
exército
havia
levassem para os quartéis questões políticas, restringindo as ao clube.60
pessoas
A presença do general Leite de Castro61 no
descontentes com os tenentes. Este seria o motivo
ministério da guerra que era ligado ao movimento
de principal insatisfação do Gal. Bertoldo Klinger56
tenentista por pouco não fez com que o
com o governo e de seu posto em: HILTON, Stanley E. Op. cit., pp. 54 e 55. Pedro Aurélio de Góis Monteiro nasceu em São Luís do Quitunde (AL) no dia 12 de dezembro de 1889, e fazia parte da base do governo de Vargas. Góis Monteiro. In: DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 59 HILTON, Stanley E. Op. cit., pp. 54 e 55. 60 Idem, p. 55.. 61 O general José Fernandes Leite de Castro ocupou o posto de ministro de 3 de novembro de 1930 a 29 de junho de 1932. In: DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 57 58
BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit., p. 168. CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 51-52. 56 O General Bertoldo Klinger seria o comandante das tropas paulista na guerra de 1932. In: Verbete: Bertoldo Klinger. DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 54 55
G N A R U S | 222 interventor do Rio Grande do Sul, Flores da
CAPÍTULO II
Cunha62, não acompanhasse o posicionamento da Frente Única Gaúcha e aderisse ao movimento de
OPOSIÇÃO NO DISTRITO FEDERAL: O JORNAL
revolta do Estado de São Paulo – diga-se de
DIÁRIO CARIOCA
passagem, que o apoio do Rio Grande do Sul era considerado vital tanto para os paulistas quanto
Segundo
o
Dicionário
Histórico-Biográfico
para o Governo Federal. Somente após a
Brasileiro, José Eduardo de Macedo Soares teria
exoneração do ministro de guerra Leite de Castro
fundado o jornal Diário Carioca em 17 de julho de
e da insistência de Getúlio Vargas para que
1928 com a tarefa principal de fazer oposição ao
continuasse a frente da interventoria e garantisse a
governo do presidente Washington Luís. Ao todo o
ordem é que Flores da Cunha tomou uma decisão
jornal teve quatro proprietários e durante a gestão
e em 10 de julho afirmava que manteria a todo
de Horário de Carvalho Júnior64 o jornal chegou a
custo à ordem no Estado, e no dia seguinte
ter uma sede própria que ficava localizada na
declarava ao Rio Grande a nação através do jornal
Praça Onze no Rio de Janeiro.
A Federação que:
Durante sua existência esse periódico teve como foco principal a vida política do país. Seu estilo
Cumpre-me declarar ao Rio Grande e à nação que me conservarei fiel aos deveres de delegado do Governo Provisório… Ninguém me fará a injuria de suppôr que eu pudesse usar de minha autoridade para atraiçoar a quem m’a conferiu fiado na integridade do meu caracter e na capacidade da minha acção patriotica.63 Apesar de ser necessário neste primeiro momento para a sustentação política do governo, percebe-se que o movimento tenentista enquanto parte integrante do governo provisório gerava insatisfação
e,
sobretudo,
a
oposição
de
específicos setores da sociedade. O jornal Diário
Carioca, nosso objeto de estudo, representava um
moderno e inovador marcaram seus textos jornalísticos, ao introduzir novos padrões formais, que eram oriundos da Semana da Arte Moderna (1922).65 O Diário Carioca aos poucos foi eliminando, da sua linguagem, o excesso de adjetivos em sues textos e passou a utilizar preposições mais próximas da linguagem falada, contrariando a prática de boa parte dos periódicos da época. Isto ocorria porque era muito comum, naquele momento, a profissão de jornalista ser exercida
por
modificações
bacharéis realizadas
de pelo
direito66. jornal
As
foram
significativas já que houve:
destes setores de oposição não só ao tenentismo como ao próprio governo provisório. O jornal Diário Carioca iniciou as suas atividades no dia 17 de julho de 1928 e a sua última edição data de 31 de dezembro de 1965. Teve como fundador Macedo Soares. Seu segundo proprietário foi Horário de Carvalho Júnior e posteriormente seus proprietários serão Arnon de Melo e Dantom Jobim. LAGE, Nilson; FARIA, Tales e RODRIGUES, Sergio. Diário Carioca: o primeiro degrau para a modernidade. Estudos em Jornalismo e Mídia, Universidade Federal de Santa Catarina, Vol. I Nº 1 - 1º Semestre de 2004. Consultado em 11 de maio de 2014 <https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view /2195/3931>. 65 Idem, p. 132. 66 Idem, p.139. 64
62
José Antônio Flores da Cunha nascido no Rio Grande do Sul no dia 5 de março de 1880 possuía uma longa carreira política até ocupar o cargo de interventor do seu Estado, tendo sido eleito três vezes deputado federal e uma vez para senador, até se tornar revolucionário em 1930 e ulteriormente interventor do RS. In: DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 63 Ao Rio Grande do Sul e ao Brasil, In: A Federação, RS, 11/07/1932, p. 1.
G N A R U S | 223
[...] a supressão paulatina mas constante, das formas arcaicas de tratamento e referência (‘doutor’, ‘eminente jurista’, sua excelência’) e do jargão jurídico dominante em uma profissão até então exercida frequentemente por bacharéis em Direito, quando não contagiada pela vulgata de rábula de policiais e bandidos.67
do levante dos 18 do forte.69 Não obstante na sua primeira edição o jornal apregoava que:
Este jornal é antes de tudo, um instrumento absolutamente livre nas mãos de seu director: não tem ligações partidárias nem politicas, não representa nenhuma [...] de interesses commerciaes ou financeiros que pudessem de qualquer forma limitar a perfeita independencia de sua acção jornalistica. O seu objetivo é servir o país traduzindo [...] os seus sentimentos, esclarecendo e interpretando as correntes de opiniões, assumindo com honestidade e firmesa a parcella de responsabilidades que por ventura lhe caiba nas lutas da política nacional.70
Foi no Diário que:
[...] se eliminou o uso absurdo da palavra ‘indivíduo’ como sinônimo de criminoso e ‘indigitado (que quer dizer ‘apontado’) para mencionar exclusivamente o reú em um processo; trocou-se ‘homicídio’ por ‘assassinato’, latrocínio por ‘roubo’, ‘humilde’ por pobre (já que a humildade é subjetiva e a pobreza objetiva), ‘homem de cor’ por ‘negro’. As pessoas passaram a morar ‘na rua x’ e não ‘à rua x’; as esposas tornaram-se ‘mulheres, os advogados deixaram de ser ‘causídicos’, os médicos ‘facultativos’, os vereadores ‘edis’, os prefeitos ‘alcaides’, as prostitutas ‘damas da noite’, as casas de dois andares ‘mansões, os automóveis quando passam depressa ‘bólidos’ etc.68 Em 1950, o Diário foi o primeiro jornal a introduzir o sistema de lead americano - onde a chamada principal da notícia já deveria conter as informações de forma sucinta para que o leitor
O
foram
realizadas
por
leitor
que
era
representava interesses comerciais ou financeiros. Em segundo lugar procurava informar ao leitor sobre os seus objetivos de servir o país, traduzir e interpretar os seus sentimentos sobre as correntes de opiniões e, por fim, assumia com firmeza a sua parcela de responsabilidade. Na mesma edição o
Diário Carioca afirmava ainda que: Um jornal não é um partido que aspirando o governo da Republica deva publicar um programma de acção política: somos, pelo contrario, o orgão da Nação que observa, julga, applaude ou condemna os que pretendem dirigir os seus destinos. 71
consagrados como Humberto Campos, Virgílio de Melo Franco, Evaristo de Morais, Maurício de Lacerda, Marcial Dias Pequeno, Paulo Mota Lima e mais a frente durante um curto tempo o Diário Com relação ao seu posicionamento crítico
ao
possuía ligações partidárias e muito menos
redatores
contou com Carlos Lacerda para chefe de redação.
informava
absolutamente livre de influências, pois não
ficasse ciente do que se tratava. Boa parte dessas inovações
jornal
Enquanto jornal de oposição o Diário Carioca apoiaria a revolução de 1930. Dias antes da revolução ocorreu um encontro de líderes da
contra o governo de Washington Luís o jornal também criticava a estrutura política como um todo, de modo que a data prevista para o lançamento do jornal era 05 de julho de 1926, pois havia o intuito de comemorar o sexto aniversário 67 68
Idem, p. 139. Idem. p. 139.
Verbete Diário Carioca In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro CPDOC, doravante citado como DHBB/CPDOC. 69
Consultado em 01 de maio de 2014, <http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx >. 70 Ver: “Diario Carioca”, In: Diário Carioca, RJ, 17/07/1928, p. 3. 71 Ver: “Diario Carioca”, In: Diário Carioca, RJ, 17/07/1928, p. 3.
G N A R U S | 224 Aliança Liberal na sede do jornal, e entre eles se
oposição ao governo do presidente Hermes da
encontrava o próprio Getúlio Vargas. Nas páginas
Fonseca75. O periódico possuía moldes modernos e
do periódico a revolução seria o caminho a ser
foi o primeiro jornal do Distrito Federal a utilizar
adotado para solucionar os problemas do
país72
e
ilustrações.
no dia 24 de outubro de 1930, após a vitória da
Devido a sua projeção em 1915, Macedo Soares
revolução, na sua primeira página o jornal escrevia
é eleito deputado federal pelo estado do Rio de
“A Redempção Brasileira — victoriosa em todo o
Janeiro na legenda do Partido Republicano
paíz a Cruzada Santa da Liberdade Nacional”.73
Fluminense (PRF), cumpre o seu mandato até o
Entretanto em dezembro do mesmo ano o Diário
final em 1917 e é reeleito mais duas vezes nos anos
Carioca passaria a se posicionar como oposição do
de 1918 e 1921 respectivamente. No dia 04 de
governo provisório.
julho de 1920 participaria indiretamente do
Esta mudança no posicionamento político do
primeiro levante tenentista, aonde ocupou a
jornal se relaciona diretamente com o seu
Companhia Telefônica de Niterói, afim de, evitar a
fundador José Eduardo de Macedo Soares, isto
comunicação com o Rio durante o movimento, que
porque o periódico adotou o seu discurso político.
eclodiria no dia seguinte em Copacabana. Já em
Mesmo nos momentos em que não estava à frente
1921, Macedo Soares participaria da campanha de
do jornal e “embora não tenha sempre dirigido o
Nilo Peçanha a presidência da República num
Diário Carioca, Macedo Soares desempenhou
movimento que ficou conhecido como a Reação
durante todo o tempo o papel de eminência parda
Republicana.76
do jornal, dando seu tom político e definindo suas diretrizes.”74
Sua atuação na política rendeu dois atentados contra a sua vida. O primeiro foi realizado pelo gaúcho Flores da Cunha, que errou o alvo, e o
2.1 A trajetória do criador do jornal Diário Carioca José Eduardo de Macedo nasceu em 04 de
segundo foi em fevereiro de 1932 quando o Diário
Carioca foi empastelado por grupos tenentistas. Macedo Soares no início apoiou a Revolução de
setembro de 1882 na cidade de São Gonçalo no Rio de Janeiro era oriundo de uma proeminente família do norte fluminense de modo que muitos dos seus parentes possuíam ligação com a política. Macedo Soares matriculou-se na Escola Naval tornando-se aspirante a guarda-marinha em março de 1898, em 1908 foi promovido à primeiro-tenente e em 1912 deixou a marinha quando passou a se dedicar as atividades jornalísticas. No mesmo ano em que deixou a marinha fundou o jornal O Imparcial que fazia Verbete Diário Carioca in DHBB/CPDOC. Acesso 10/07/2014. 73In: Diário Carioca, RJ, 24/10/1930, p. 1. 74 Verbete José Eduardo de Macedo Soares in DHBB/CPDOC. Acesso 10/07/2014. 72
1930. Contudo, em dezembro retiraria o seu apoio, acusando o Governo Provisório de Getúlio Vargas de
“(..)
desenvolver
uma
administração
incompetente e uma política mesquinha”.77 O principal motivo para a mudança na posição política de Macedo Soares era por conta da sua antipatia pelo movimento tenentista, por mais de uma vez o Diário Carioca criticou os tenentes e foi 75
Hermes Rodrigues da Fonseca nasceu em 12 de maio de 1855 e entre 1910 e 1914 foi presidente do Brasil. in DHBB/CPDOC. Acesso 10/07/2014. 76A Reação Republicana foi uma campanha realizada pelo Partido Republicano Fluminense que lançava a candidatura de Nilo Peçanha contra o candidato da situação Artur Bernardes. Verbete Partido Republicano Fluminense (PRF) in: DHBB/CPDOC Acesso em 02/07/2014. 77 Verbete José Eduardo de Macedo Soares in DHBB/CPDOC. Acesso em 02/07/2014.
G N A R U S | 225 justamente devido a uma matéria de conteúdo
deparou, logo na primeira página, com a seguinte
crítico aos tenentes, que afirmava que a: “(...)
matéria:
finalidade real do Club 3 de Outubro era sustentar pela
violencia,
discricionarios,
um que
regime o
sr.
de
Getulio
O movimento revolucionario que explodiu ante-hontem no Estado de São Paulo vem interessando vivamente a população carioca. Máo grado os boletins e communicados officiaes, visando tranquilizar os espiritos, a inquietação é geral. E não só a população carioca, mas a Nação inteira acompanha, emocionada, a marcha dos acontecimentos, ansiando pela prompia terminação da luta, por forma a poderem todos os brasileiros, unidos num só pensamento, verem realizado o seu grande sonho de liberdade, á sombra de leis sabias e bem inspiradas, emanando de um codigo politico que seja bem a expressão dos sentimentos e da vontade do paiz. E tudo indica que não está muito longe essa grande hora.81
poderes Vargas,
evidentemente, planejou prolongar no paiz”78. O periódico foi empastelado em 25 de fevereiro de 1932. Contudo, no dia anterior, Macedo Soares participou da “(...) da fundação do Clube 24 de Fevereiro, criado em 16 de fevereiro de 1932 para defender a reconstitucionalização do país e se opor ao Clube 3 de Outubro (...)”79. Por ter sido fundador e proprietário do Diário
Carioca, o jornal acabaria refletindo os seus pensamentos e posicionamentos acerca da política nacional, mesmo quando este estava afastado do periódico, ao mesmo tempo. Ao analisarmos o
Percebemos, logo neste primeiro momento, o
periódico entendemos o sentimento de uma
posicionamento pró revolução do jornal, pois não
parcela da sociedade, que é de oposição,
só
justamente num momento crucial para o Governo
acontecimentos, mas a nação inteira acompanhava
Provisório
emocionada os acontecimentos e ansiava pelo seu
em
que
este
procurava
a
sua
legitimação no poder.
a
população
carioca
acompanhava
os
fim, já que iria trazer um governo com leis sábias e inspiradas, e principalmente que representasse os
2.2 O Diário Carioca em tempos de guerra A primeira notícia do movimento revolucionário de São Paulo no Diário Carioca, data do dia 12 de
sentimentos e vontades do país. Em outras palavras o jornal demonstrava claramente a sua insatisfação com o governo atual.
julho de 1932. Mas, como sabemos o movimento
Ainda na primeira página o periódico estamparia
irrompeu no dia 09 de julho – este delay ocorreu
as fotos dos principais personagens políticos e
por conta do tempo que as informações
militares da revolução paulista general Bertholdo
demoravam a chegar, e, também, pelo fato de no
Klinger, Pedro de Toledo e o general Isidoro Dias
dia 11 de julho não ter havido edição do jornal por
Lopes82. Além das imagens dos revolucionários o
se tratar de uma segunda-feira80. Ao pegar o
Diário Carioca colocou as fotos de Arthur
Diário Carioca de 12 de julho de 1932, o leitor se
Bernardes e Mario Brant83 que não participaram
Ver: S. Paulo em armas contra a Ditadura, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 82 Isidoro Dias Lopes era comandante da 2ª RM até ser substituído pelo general Góis Monteiro, era cotado para ser o comandante das tropas revolucionárias, contudo por questões políticas a escolha recaiu sobre Bertholdo Klinger. Verbete Isidoro Dias Lopes in: DHBB/CPDOC Acesso em 02/07/2014. 83 O político mineiro Arthur Bernardes fora presidente do Brasil entre 1922-1926, já o também mineiro Mario Brant 81
Ver: “A torre de Babel”, In: Diário Carioca, RJ, 24/02/1932, p. 1. 79 Verbete José Eduardo de Macedo Soares, Op. cit. Acesso em 02/07/2014. 80 Apesar de haver jornais na época que circulavam sem interrupção, boa parte dos periódicos da época não circulava na segunda-feira, já que no domingo era concedido folga para os funcionários. 78
G N A R U S | 226 diretamente
do
movimento,
mas
eram
A nosso ver há uma mínima intenção do jornal
oposicionistas do governo provisório atuando pelo
em depositar a culpa no governo provisório,
estado de Minas Gerais.
deixando a entender que o estado paulista não
Apesar de não podermos afirmar com precisão o
teve alternativa frente as decisões do governo
porquê de o jornal ter posto as fotos destes
federal, pois os paulistas haviam realizados
últimos, conjecturamos que possuía a intenção de
constantes apelos com o intuito de solucionar os
demonstrar
de
problemas. Entretanto, o jornal se cala quanto às
insatisfação geral contra o governo e por isso as
medidas tomadas pelo governo para tentar
imagens de dois políticos proeminentes no cenário
diminuir a insatisfação no estado86.
que
havia
um
sentimento
regional e nacional no caso de Arthur Bernardes.
No tangente as declarações envolvendo o
O Diário Carioca lembraria que há muito tempo
governo federal, observamos que o periódico
se falava na possibilidade de um levante por parte
praticamente se abstém, restringindo-se a publicar
de São Paulo e que inclusive os elementos
as notas oficiais emitidas pelo governo central e
sediciosos do estado vinham tentando resolver as
pelo líder da nação Getúlio Vargas. Com relação a
diversas questões com o governo:
estas notas identificamos neste primeiro momento dois objetivos centrais, no primeiro deles o
Desde muito tempo se vinha falando na possibilidade de um levante por parte de vários elementos políticos do Estado, bem como alguns militares. Nesse sentido, os elementos revolucionarios de S.Paulo vinham dirigindo constantes apellos ao Governo Provisório, para que fossem tomadas providencias que appareciam tanto mais urgentes, quanto mais decorria o tempo. 84
governo provisório procurava descredenciar as razões postas pelos paulistas para o levante militar, no segundo objetivo notamos que o governo procura passar tranquilidade para o restante dos estados, para que assim garantisse o apoio destes. No trecho em que o governo se dirige a nação o primeiro objetivo fica bem claro ao afirmar que:
Prosseguia afirmando que:
Se ao movimento sedicioso agora ateado no grande Estado, se pretende emprestar, como querem fazer crer seus promotores, o objetivo de levar a nação á normalidade institucional, nada ha que o justifique. Os propositos do Governo Provisório a respeito já não mais podem ser postos em duvida, sem má fé e declarado intento de illudir a opinião publica. Os actos mais do que as palavras estão a documentai-os com meridiana evidência: foi promulgada a lei eleitoral: marcou-se a data em que se devem effectuar as eleições: escolheram-se os juizes dos tribunnaes eleitoraes: nomearam-se os funccionarios que compõem as respectivas secretarias:
Apesar do ambiente de tranquilidade que era obsevado em todas as espheras da vida paulista, notava-se uma grande prepação secreta, disfarçada com as organizações de batalhões patrioticos destinados a defender a autonomia de S. Paulo, no caso de tentativa do Governo Revolucionario no sentido de modificar a organização do Governo Paulista.85
havia sido até o momento da guerra de 1932, deputado federal e presidente do Banco do Brasil. Ver respectivamente os verbetes Arthur Bernardes e Mario Brant in DHBB/CPDOC. Acesso em 27 /07/2014. 84
Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário
Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 85
Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário
Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1.
86
Fora adotado como estratagema político, por parte da imprensa pró revolução e constituição, a ocultação das medidas tomadas pelo governo revolucionário que visavam a resolução de diversos problemas, principalmente no que diz respeito aos paulista. CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 48.
G N A R U S | 227
abriram-se os creditos necessarios e acaba de ser designada a commisão incumbida de elaborar o projeto de Constituição.87
O governo provisório fazia questão de mostrar que com base no “civismo brasileiro” surgia
O governo federal afirmava que já havia tomado
solidariedade de diversos locais do país e
todas as providências para que o país voltasse à
demonstrava que já havia numerosos contingentes
normalidade constitucional, inclusive lembrando o
prontos para marchar contra os rebeldes.
fato de que já havia data para as eleições e a
Diante das declarações fornecidas pelo governo
comissão para a constituição já estava designada.
pudemos inferir que neste primeiro momento o
Mais a frente Getúlio Vargas lembraria que não
governo procurava em primeiro lugar deslegitimar
existiam motivos para o levante já que o governo
as ações de São Paulo, assim como demonstrar o
instituído pela revolução:
apoio maciço que o governo revolucionário possuía entre os estados.
(...) demonstrou sempre de modo innequivoco, todo interesse pelos seus destinos, amparando-o, quer na obra de reconstrucção de sua economia, com a solução de gravissíma crise do café, quer satisfazendo suas justas aspirações de ordem política, com a entrega do governo estadual aos proprios paulista.88 Com
este
pronunciamento
o
presidente
procurava demonstrar que desde a ascensão do governo revolucionário em 1930, procurava zelar
Basicamente no início do conflito o Diário
Carioca se restringia a narração dos fatos e as providências tomadas pelo governo provisório como a criação de cargos e corpos para a polícia mineira90, a abertura de crédito para o governo91 e a subordinação da Central do Brasil a pasta de Guerra92. Notícias desta natureza continuavam como “chefe do governo, em visita ás tropas, no campo das operações”93, encontros políticos. O jornal acompanhava de perto a situação
pelo destino de São Paulo, “reconstruindo” a economia cafeeira após crise e satisfazendo as aspirações políticas do estado ao entregar a interventoria aos próprios paulistas. Num segundo momento as declarações oficiais
política dos estados aonde havia políticos de destaque contrários ao regime e que poderiam vir a apoiar a causa paulista, notoriamente Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No caso do Rio Grande o Diário Carioca não
procuravam passar o sentimento de união do país contra o movimento sedicioso:
deixaria passar a oportunidade de publicar o manifesto de oposição ao governo provisório da
Honrando a clarividencia do civismo brasileiro de todos os pontos do paiz, desde o Rio Grande do Sul até ao Amazonas o Governo esta recebendo as mais vivas e inequivocas demonstrações de solidariedade. Ja se aprestam, a esta hora, numerosos contingentes para marchar contra os rebeldes.89
Frente Única do Rio Grande do Sul que foi publicado no dia 21 de julho, no qual afirmavam a sua solidariedade com a causa paulista já que a “identidade dos propositos que anima S. Paulo e Rio Grande na sua resistencia aos erros da ditadura
90
Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 88 Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 89 Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 87
Ver: “S. Paulo em armas contra a ditadura”, In: Diário
Carioca, RJ, 13/07/1932, p. 1.
Ver: “O movimento em São Paulo”, In: Diário Carioca, RJ,14/07/1932, p. 1. 92 Ver: “A Central do Brasil vae ficar subordinada à pasta da Guerra”, In: Diário Carioca, RJ, 20/07/1932, p. 1. 93 In: Diário Carioca, RJ, 19/07/1932, p. 1. 91
G N A R U S | 228 e ao seu animo deliberado de pôr entraves a volta
matéria sobre a riqueza do solo e o babassú, no dia
do paiz à ordem legal foi a causa inicial dessa
28 de julho nova matéria sobre bananas e no dia
solidariedade”94 (grifo nosso).
30 do mesmo mês a primeira página do Diário
Nas edições do jornal nos dias 22 e 23 fora
Carioca trazia uma propaganda cinematográfica
enfatizado os meetings políticos que estavam
sugestiva sobre o filme Chamado Accusador97 em
ocorrendo entre os próceres da política de Minas
que o seguinte diálogo era exposto, abaixo da
Gerais e que acabariam decidindo sobre a
propaganda se seguia uma matéria sobre laranjas:
participação política do estado mineiro na guerra
No seu odio ao homem que fizera morrer seu pae, ella se fez telephonista para lhe descobrir os segredos. Mas poderia falar? PROHIBIDA DE FALLAR”98. (grifo nosso)
civil.95 Entretanto a partir do dia 24/07/1932 o Diário
Carioca praticamente se cala sobre o conflito, fato este que estranhamos, pois no dia anterior o jornal
Com a exceção do período inicial e os dias finais
praticamente preenchera a sua primeira página
do conflito, em que as notícias sobre o movimento
com notícias vinculadas a situação política do
armado eram intensas, o Diário Carioca muito
estado de Minas Gerais e com a notícia do
pouco se pronunciou ou noticiou o conflito
encontro do ex ministro da justiça Maurício
armado que ocorria em São Paulo. Ao contrário,
Cardoso com Getúlio Vargas e no dia seguinte o
podemos dizer que as matérias sobre a questão do
jornal se limitasse a comentar reuniões que haviam
Chaco99 e a ascensão do partido nazista na
ocorrido no palácio do Catete e a uma extensa
Alemanha se fizeram mais presente no periódico
matéria na sua capa sobre “As bananas nas
que a guerra civil em andamento. Acreditamos que
colônias francezas”:
o jornal se encontrava sobre censura prévia e não
A administração da Africa Occidental Franceza emprega constantes esforços no intuito de abastecer de frutas tropicaes os mercados europeus, notadamente a banana. Ha cerca de trinta anos, essa fruta era considerada na França, como de luxo; hoje tornou-se de consumo corrente.”96.
seria coincidência que dias antes o jornal havia noticiado à criação de um órgão de censura no distrito federal de modo que:
O chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos do Brasil, considerando que o levante militar, de que foi theatro, ultimamente, a capital do Estado de S. Paulo, tem preoccupado, como era natural, a attenção da policia no Districto Federal, que como lhe cumpre, tem agido no caso com o maximo interesse, resolve criar naquella repartição, o Departamento de Censura e Publicidade.100
Como se não bastasse outras edições do jornal estampariam na sua capa matérias relacionadas a frutas e ao seu comércio, no dia 27 de julho
Ver: “Ao Rio Grande do Sul e á Nação”, In: Diário Carioca 21 de julho de 1932, p.1. 95 O estado de Minas Gerais por pouco não aderiu ao movimento armado contra o governo provisório, havia a corrente política que defendia a adoção do estado a revolução, corrente liderada por Arthur Bernardes, havia os que queriam que Minas Gerais apenas se defendesse, como era a opinião de Venceslau Brás, mas no final o estado aderiu ao conflito do lado de Getúlio Vargas representado no estado pelo interventor Olegário Maciel. Ver respectivamente os verbetes Arthur Bernardes, Mario Brant e Venceslau Brás in DHBB/CPDOC. Acesso em 27 /07/2014. 96 Ver: “As bananas nas colônias francezas”, In: Diário Carioca, RJ, 24/07/1932, p. 1. 94
97
Filme do ano de 1931, dirigido por Stuart Walker. Diário Carioca, dias 27, 28 e 30 de julho de 1932. 99 Conflito militar em torno da posse da região do Chaco, rica em petróleo, que envolveu a Bolívia e o Paraguai entre 1928 e 1935. Depois de longa e infrutífera tentativa de mediação diplomática, na qual o Brasil teve parte ativa, a guerra foi decidida nos campos de batalha, terminando em junho de 1935 com a vitória paraguaia. In. DHBB/CPDOC Acesso em 10/07/2014. 100 Decreto do chefe do Governo Provisório publicado no Diário Carioca, 14 de julho de 1932, p. 1. 98
G N A R U S | 229 No que diz respeito a este período sabemos que outros jornais sofreram intervenções e inclusive prisões foram realizadas, de maneira que não era incomum
encontrarmos
deste estava em jogo101. O que pudemos inferir durante este curto
que
período de tempo é que o periódico mantinha o
demonstravam algum tipo de censura por parte do
seu posicionamento de oposição. Isto fica claro na
governo, como o despacho noticiado no dia 30 de
sua primeira edição após o inicio da revolta. Por
agosto pelo Diário Carioca oriundo da Associação
motivos obscuros ao presente momento em que
Brasileira de Imprensa (ABI) que reivindicava a
realizamos esta pesquisa o jornal se cala durante
soltura de um jornalista maranhense que fora
uma boa parte do conflito, diante deste fato sem
preso contra a liberdade de imprensa, logo não
podermos confirmar, apenas podemos conjecturar
seria de espantar que o jornal que havia sofrido um
que o periódico se encontrava sobre censura
empastelamento em fevereiro do mesmo ano, pelo
prévia, a possibilidade existia não se tratando de
grupo tenentista, e que possuía posicionamento
nada paradoxal, já que o governo, como vimos,
político
havia
claramente
notícias
para o governo em questão, em que a legitimação
contrário
ao
governo
criado
para
o
Distrito
Federal
o
provisório estivesse sobre censura prévia, ainda
Departamento de Censura e Publicidade em 14 de
mais se levarmos em consideração que o governo
julho de 1932.
federal estava sendo questionado e precisava mais do que nunca de legitimidade.
E apesar do Diário Carioca ter se calado sobre o conflito, este continuava a criticar o governo,
A guerra civil somente voltaria a ter destaque no
mesmo que de forma sutil como na matéria do dia
jornal no dia 30 de setembro, ou seja, faltando
12 de agosto de 1932 intitulada “Dhesumanidade!
apenas três dias para o término do conflito. Nessa
Um pobre operario despejado, com sua familia, no
edição a matéria de destaque foi com relação ao
morro Babylonia, pela força militar”102. Na matéria
conflito noticiava o telegrama enviado pelo
o jornal explicava que esteve em sua redação:
[...] o operario Accacio dos Santos que residia no morro da Baylonia, á casa n. 23, de propriedade do sr. Eduardo Duvivier, desde 1925. O referido, que tem oito filhos, sendo o mais moço de seis mezes e o mais velho de oito annos, veiu relatar-nos uma violencia de que acaba de ser victima,pedidno para o caso uma providencia do ministro da Guerra. A queixa do operario Acccio dos Santos é a seguinte: como dissemos acima residia elle, com os seus, desde 1925, na casa referida. Sempre pagou, pontualmente, os modestos alugueis, do predio, ao dr. Duvivier, nunca havendo questões entre elle e o senhorio. Acontece que o morro da Babylonia foi occupado pelos militares e, sem uma razão que lhes assegure essa attitude, querem elles que os moradores lhes paguem os
general Bertholdo Klinger, que continha a proposta de armistício. No primeiro dia de outubro era apontado o fato dos emissários enviados pelo general Klinger não terem assinado a proposta de paz do governo provisório, e nos dias 02 e 04 de outubro era noticiado o encaminhamento do fim do conflito.
2.3 O Diário Carioca em 85 dias Ao longo deste capítulo nos propomos a analisar o jornal Diário Carioca durante os 85 dias de conflito entre os revoltosos de São Paulo e o governo provisório, no intuito de observamos como o jornal se pronunciou num momento chave
101
Para a questão da necessidade de legitimação do governo provisório vide a já citada obra de LOPES, Raimundo Helio, sobretudo o primeiro capítulo, Op Cit, 102 Ver: “DESHUMANIDADE!”, In: Diário Carioca, RJ, 14/08/1932, p. 3.
G N A R U S | 230
alugueres das suas residencias, em vez de fazei-os aos respectivos proprietarios. Os militares que haviam ocupado o morro
diversos motivos, razão pela qual no próximo capítulo pretendemos nos debruçar sobre alguns membros expoentes desta sociedade.
Babylonia, segundo o jornal sem justificativa, estavam cobrando dos seus moradores que os CAPÍTULO 3
aluguéis fossem pagos a eles ao invés do reais proprietários, contudo como o operário Accacio dos Santos não concordou com essa jurisprudência militar se recusou a pagar o seu aluguel, e diante da sua recusa o operário foi despejado com a sua família. Ainda na matéria o periódico afirmava que:
Numa época como essa, de atribulações, de difficuldades, de incertezas, quando o governo decreta a moratoria para o comercio e elastece o praso para vencimentos de titulos estrangeiros, não se póde justificar o quadro descripto acima, desse despejo cruel de um pobre pae de familia com filhinhos de tenra edade.103
OPOSIÇÃO NO DISTRITO FEDERAL: A SOCIEDADE Se pudéssemos destacar o grupo social da capital que se encontrava mais descontente com o governo provisório de Getúlio Vargas em 1932, certamente apontaríamos para os militares. Entretanto, civis como o José Eduardo de Macedo Soares fundador do jornal Diário Carioca, era um nome que representava a sociedade civil no que se refere ao descontentamento frente ao governo provisório. Neste capítulo iremos nos debruçar sobre algumas dessas personagens - militares e
Por fim o periódico cobrava uma medida enérgica do ministro da Guerra para a resolução
civis -, que se manifestaram em grupo ou individualmente.
do caso. No dia 30 de agosto do mesmo ano o Diário
3.1 Os militares
tornaria a criticar o governo desta vez na maneira
Os militares do Distrito Federal (Rio de Janeiro)
em que o governo ampara os seus jornalistas,
que aderiram ou simpatizavam com a causa
realizando inclusive, uma interessante comparação
paulista, possuíam motivos variados, dentre eles
com o governo argentino em que “Naquelle paiz,
destacamos um motivo em especial: a aversão de
como no Brasil, a situação pessoal e profissional
alguns militares pelo movimento tenentista. Este
jornalista é deploravel. Mas a compreensão dessa
era visto como o elo comum entre eles, porque
realidade, na Argentina, já é fruto sazonado.”104
consideravam que havia uma “(...) desmoralização
Percebemos que o Diário Carioca era por si só
do Exército, oriunda da confusão governamental e
um órgão publicitário que representava uma
da indisciplina tenentista reinante nos quartéis.”
oposição ao governo provisório, contudo como
105
jornal, devemos tomar nota de que este
do Rio de Janeiro teriam se iniciado após a
representava uma camada da sociedade carioca
indisposição do interventor tenentista João
que se encontrava insatisfeita com o governo por
Alberto com os paulistas.
Ver: “DESHUMANIDADE!”, In: Diário Carioca, RJ, 14/08/1932, p. 3. 104 Ver: “O jornalista, a sociedade, o governo”, In: Diário Carioca, RJ, 30/08/1932, p. 2.
A articulação dos militares de São Paulo com os
103
HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova 105
Fronteira, 1982, pp. 42-43.
G N A R U S | 231 Se pudéssemos apontar um líder da articulação
julho de 1930, a sua lealdade ao governo
realizada no Rio de Janeiro visando a deposição do
Washington Luís. Tal recusa ocasionaria na sua
governo provisório, sem dúvidas escolheríamos o
prisão durante a revolução de 03 de outubro de
coronel Euclides de Oliveira
Figueiredo106,
nascido
1930.109
na cidade carioca no ano de 1883, teve como
Contudo a definição da participação do Coronel
exemplo seu pai que também era militar, João
Euclides Figueiredo viria em 1931, a partir da visita
Batista de Oliveira Figueiredo107. No caso do
do seu irmão Leopoldo de Oliveira Figueiredo que
Coronel
seu
residia em Santos e era ligado ao Partido
descontentamento estava tanto no movimento
Democrático (PD). Este lhe informaria a delicada
tenentista quanto no fato de considerar o atual
situação de São Paulo, e após este encontro
governo ilegal.
Euclides Figueiredo passaria articular, tanto com
Euclides
Figueiredo
o
Em 1930, após a Aliança Liberal ter perdido as eleições
para
Júlio
Prestes
uma
Janeiro quanto com os paulistas. Na noite do dia
intensificação na articulação que culminaria no
08 de julho, um dia antes do levante, Euclides
golpe revolucionário de outubro de 1930 e para o
Figueiredo viajou de carro para São Paulo e no dia
primeiro momento os conspiradores haviam
10 de julho em carta conjunta com o general
escolhido o nome de Luís Carlos Prestes108 para
Isidoro Dias Lopes, assumia a responsabilidade
assumir o comando militar do golpe, contudo este
pelas forças revolucionárias empenhadas na
recusaria a proposta. Diante da sua recusa os
constitucionalização do país.
conspiradores ofereceram
o
houve
os setores descontentes da cidade do Rio de
comando
para
Durante o conflito Euclides Figueiredo assumiu
Euclides Figueiredo que a época comandava a 2ª
importante posição estratégica. Lhe foi delegado o
Divisão de Cavalaria sediada em Alegrete no Rio
comando da 2ª Divisão de Infantaria em
Grande do Sul. Contudo, ele também recusaria a
Operações (2ª DIO), que ficou encarregada de
proposta e afirmou em carta datada do dia 21
consolidar as posições no Vale do Paraíba. O objetivo era que esta frente avançasse sobre o
106
Filho Caçula, Euclides Figueiredo ficou órfão do pai ao seis anos de idade quando passou a ser criado pela irmã, entraria para o Colégio Militar em 1893, profissão que iria seguir até alcançar o posto de general de divisão. Participou da elaboração da constituição de 1946 e foi deputado federal entre 1946 e 1951. Faleceu em Campinas no dia 20 de dezembro de 1963. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro CPDOC, doravante citado como DHBB/CPDOC. Consultado em <http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx >. Acesso em 04/08/2014. 107 João Batista de Oliveira Figueiredo fora funcionário do Tesouro Nacional, participou da Guerra do Paraguai, quando ajudou a organizar o primeiro serviço de intendência do Exército brasileiro. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 108 Luís Carlos Prestes nasceu em Porto Alegre no dia 3 de janeiro de 1898, filho de Antônio Pereira Prestes, oficial do Exército da arma de engenharia, e de Leocádia Felizardo Prestes, professora primária. Ingressou no Colégio Militar no ano de 1909 aonde daria início a sua carreira militar. Participou da Revolta Paulista de 1924, da Coluna Prestes entre 1925 e 1927, da Intentona Comunista em 1935. Ingressa na vida política participando da elaboração da constituição em 1946, exercendo o cargo de senado nos anos 1946-1948. Veio a falecer no dia 07 de março de 1990. Verbete: Luis Carlos Prestes. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014.
Distrito Federal e derrubasse o governo provisório, o que demonstra a importância de Figueiredo para o movimento. Após instalar o quartel-general da sua unidade em Lorena Euclides Figueiredo aguardaria pelos reforços vindos do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Contudo, o apoio destes estados nunca aconteceu, tendo que combater sozinho as frentes federalistas dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.110 Diante do armistício entre as forças paulista e federal, Euclides Figueiredo tentaria fugir de São Paulo através de um barco de pesca em direção ao 109
Verbete: Euclides de Oliveira Figueiredo. DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 110 Verbete: Euclides de Oliveira Figueiredo, op. cit.
In:
G N A R U S | 232 Rio Grande do Sul, aonde esperava encontrar
colaborador do coronel Euclides Figueiredo
forças constitucionalistas em luta. Mas, o mau
ajudando este “na organização dos planos para o
tempo fez com que o navio aportasse em Santa
levante armado112.
Catarina o que levou a sua prisão. Posteriormente,
Antes da partida do coronel Figueiredo houvera
ele seria mandado em exílio para Lisboa (Portugal)
uma reunião no 08 de julho de 1932 entre os
ainda em novembro de 1932, aonde continuou
militares conspiradores do Rio de Janeiro, nesta
juntamente com outros 34 oficiais o planejamento
reunião ficara decidido que Figueiredo partiria de
de um novo movimento.
carro para São Paulo naquele mesmo dia enquanto
No Rio de Janeiro um dos colaboradores do
que Resende seguiria de trem, contudo Resende
coronel Euclides Figueiredo era o coronel
somente partiria no dia seguinte porque ficou
Palimércio de Resende, apesar de não ter nascido
encarregado de avisar aos outros conspiradores de
no Rio de Janeiro quando da eclosão da revolta
que o movimento teria início.
paulista este se encontrava de serviço no Distrito
Com a chegada de Resende em São Paulo este
Federal. Resende nascera no Rio Grande do Sul no
assumiu a chefia do estado-maior do quartel-
dia 13 de dezembro de 1880, ingressou na carreira
general revolucionário que era comandado pelo
em 1896 e em 1897 “matriculou-se na Escola de
coronel Euclides Figueiredo. Em praticamente
Tática e de Tiro de Rio Pardo, transferindo-se
quase todo o conflito Palimércio ficaria do lado de
depois para a Escola Militar da Praia Vermelha, no
Figueiredo, ora lutando e ora o apoiando em suas
Rio de Janeiro, então Distrito Federal, onde fez os
decisões, como no episódio em que o general
cursos de engenharia militar e de ciências físicas e
Klinger dá início às negociações com o governo
matemáticas.”111 Em 1901 Resende era aspirante-
provisório que levariam a assinatura do armistício
a-alferes sendo promovido a segundo-tenente em
e o coronel Figueiredo se opõe, Resende ainda
1907, a primeiro-tenente em 1911 e a capitão em
fazia parte do seu estado-maior.
1917. Consegue atingir o posto de major em 1923,
Com a derrota do movimento Palimércio
de tenente-coronel em 1926 e finalmente
também se exilaria no exterior ainda no ano de
chegando a coronel em 1928.
1932, só retornando ao país em 1934 após a
Na ocasião da Revolução de 1930, Resende
concessão da anistia pelo governo, Resende
servia na 2ª Região Militar do estado de São Paulo
participaria ainda de mais uma conspiração
e chegou a lutar contra os revolucionários no norte
visando derrubar o governo em 1935, entretanto
do Paraná, até a vitória do movimento. Seu
este golpe nunca aconteceu.113
posicionamento na Revolução de 1930, de não
Outro
colaborador
do
coronel
Euclides
aderir a esta, já dava indícios de que o governo
Figueiredo no Distrito Federal era o coronel Basílio
provisório não teria o seu apoio, e a sua posição na
Taborda, nasceu no Paraná no dia 20 de maio de
guerra civil de 1932 demonstra isso.
1877 e era filho de Manuel Paulino da Silva.
Em 1932 Palimércio Resende já se encontrava na
Taborda ingressou na carreira militar em 1894
cidade do Rio de Janeiro, e as vésperas da eclosão
atingindo o oficialato em 1909, chegaria ao Rio de
do movimento, Resende se tornaria um estreito 112 111
Verbete: Palimércio de Resende. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014.
Verbete: Palimércio de Resende. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 113 Verbete: Palimércio de Resende. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014.
G N A R U S | 233 Janeiro em janeiro de 1923 no posto de instrutor
onde participou do mesmo grupo do coronel
de
Euclides Figueiredo que tentava reorganizar o
armas
da
artilharia
da
Escola
de
Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), sendo
movimento armado contra Getúlio Vargas.116
promovido a major em abril do mesmo ano. No ano de 1924 após o rebento da segunda revolta
3.2 Os civis
tenentista de 05 de julho, Basílio Taborda
Havia no Rio de Janeira setores civis que estavam
apresentaria se no dia “13 de julho ao quartel-
descontentes com a situação política do país e
general da Divisão de Artilharia, por ter passado a
passaram a apoiar a causa constitucionalista,
servir como auxiliar de artilharia divisionária. No
através
dia 22 do mesmo mês foi nomeado chefe do
conspirando contra o governo. Foi o caso do
estado-maior da Brigada Coronel João Gomes, da
fundador do Diário Carioca José Eduardo de
Divisão de Operações de São Paulo, destinada a
Macedo
reprimir os revoltosos.”114
governo117.
No ano de 1931, Basílio Taborda é promovido ao
de
manifestações
Soares,
um
ou
até
grande
mesmo
opositor
do
Outro opositor foi o famoso jornalista e dono dos
posto de coronel e passa a exercer a função de
Diários
adido do Estado Maior do Exército (EME), posto
Chateaubriand
que lhe ajudaria na tarefa de recrutar adeptos para
encontrava-se conspirando contra o governo.
o movimento em constitucionalista de São Paulo.
Interessante notar a semelhança no caso de
Assim que eclodiu a guerra em julho Taborda
Chateaubriand com o de Macedo Soares, isto
viajou para São Paulo para se juntar aos paulistas
porque o primeiro havia apoiado a revolução de
em decorrência deste ato foi considerado um
1930 (como Macedo Soares) e, posteriormente se
desertor
desvinculou da base do governo provisório
e
posteriormente
reformado
administrativamente. No planejamento inicial o
Associados,
Francisco
Bandeira
de
de
Melo118,
Assis que
passando para o lado da oposição.
cel. Taborda deveria ficar no Rio de Janeiro e
O apoio de Chateaubriand iniciara antes mesmo
encabeçar o movimento constitucionalista no
da formação da Aliança Liberal (AL), pois este se
Distrito Federal, em reunião com o coronel
encontrava vinculado à política do estado de
Euclides Figueiredo, antes de este partir para São
Minas Gerais, que estava descontente pela escolha
Paulo, chegou a afirmar que em 48 horas a Vila
da candidatura presidencial de Júlio Prestes para
Militar responderia ao brado libertador de São
as eleições de 1930.119 Com a vitória de Júlio
Paulo,115 o que não ocorreu devido ao prévio
Prestes para a presidência, Chateaubriand seria um
estado de alerta do governo provisório que
dos membros da AL que apoiariam a ideia de
neutralizou o movimento armado no Rio de
atingir o poder pela revolução:
Janeiro. Já no final da guerra civil o coronel Basílio Taborda chegou a assumir o cargo de chefia da polícia de São Paulo. Com a derrota do movimento se exilou na cidade Argentina de Buenos Aires de 114
Verbete: Basílio Taborda. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 115 HILTON, op. cit. p. 76.
116
Verbete: Basílio Taborda. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 117 Para entender melhor a posição de Macedo Soares ver as páginas 28 e 29 deste trabalho. 118 Nascido no dia 05 de outubro de 1892 era filho de Francisco Chateaubriand Bandeira de Melo e de Carmem Gondim Bandeira de Melo. Bacharelou-se em 1913 e começou a trabalhar com jornalismo para sustentar seus estudos. In Verbete: Assis Chateaubriand, DHBB/CPDOC. 119 Os mineiros apoiavam e esperavam lançar a candidatura de Washington Luís.
G N A R U S | 234
Essa orientação foi reforçada quando do assassinato de João Pessoa, em julho de 1930, ocasião em que os órgãos dos Diários Associados acusaram formalmente o governo federal de responsável pelo crime. Dentro dessa perspectiva, Chateaubriand participou das articulações preparatórias da revolução e no momento da eclosão do movimento incorporou-se às fileiras revolucionárias, deixando o Distrito Federal com destino a Porto Alegre de avião, no dia 3 de outubro de 1930. Seu avião chegou a ser detido pelas forças legalistas em Florianópolis, mas ele escapou graças ao auxílio de Nereu Ramos e conseguiu alcançar o Rio Grande do Sul, juntando-se às tropas revolucionárias em sua marcha para São Paulo.120
de
Macedo
Soares
Chateaubriand conseguiria inúmeros favores do governo
provisório,
inclusive
“vultosos
empréstimos à cadeia dos Diários Associados, através
da
Caixa
Econômica
Federal.”121
Entretanto, ele demonstraria muita preocupação com a demora do governo provisório em iniciar a elaboração da nova constituição do país. Passou a conspirar contra o governo apoiando o levante de São Paulo. Em decorrência das suas atividades sofreria o confisco da sede e da maquinaria de O
Jornal, periódico que encabeçava a cadeia dos Diários Associados e recebendo ao mesmo tempo uma ordem de deportação. Mas antes de ser deportado Chateaubriand fugiu de barco que acabou o levando para o exterior e posteriormente este o levaria para o exterior e se refugiaria no interior do país só retornando para a vida pública na Assembleia Nacional Constituinte em 1933. Podemos inferir que tanto no caso de Assis
discordar
governo.122 Outro civil que participou ativamente no movimento contra o governo provisório foi o exdiretor do Departamento de Saúde Pública do Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Medicina doutor Manuel José Ferreira.123 O Dr. Ferreira não chegou a entrar em combate direto, contudo possuiu importante papel na luta clandestina do movimento, já que hospedava em sua casa oficiais que aderiam a causa paulista. Sua residência chegou
a
ser
chamada A
estadia
de
centro dos
constitucionalistas era temporária, porque Ferreira também elaborara o esquema de transporte dos oficiais para São Paulo: a princípio partiriam de avião de um sítio no Recreio dos Bandeirantes, também de propriedade de Manuel Ferreira. Contudo, esta opção foi logo abandonada pois na primeira tentativa houve um acidente onde morreram o piloto e os tripulantes. No final o transporte dos oficiais acontecia pelo mar, graças à amizade do médico com pescadores da região. Foi no primeiro grupo de oficiais que Ferreira ajudou no transporte que se encontra o coronel Basílio Taborda, e no “(...) total, Ferreira arranjou a fuga de mais de vinte oficiais e dois civis.” 125 Após concluir sua tarefa de ajudar no transporte dos oficiais para São Paulo Manuel Ferreira receberia uma nova missão, de vital importância para o movimento paulista. No início do mês de agosto ele fora contatado pelo general Klinger, que requisitara sua partida imediata para Nova
motivo que os levou a realizar oposição contra o governo provisório fora a demora deste no 122
Para mais vide páginas 18 e 19 do presente trabalho. HILTON, op. cit. p. 273. 124 Ibidem, p. 274. 125 Idem. 123
120 121
In Verbete: Assis Chateaubriand, DHBB/CPDOC. Verbete: Assis Chateaubriand, DHBB/CPDOC.
de
oficiais
Chateaubriand quanto no de Macedo Soares o
processo de reconstitucionalização do país, apesar
da
proximidade do movimento tenentista com o
conspiração124. Após a revolução se tornar vitoriosa Assis
também
G N A R U S | 235 York, nos Estados Unidos, com o objetivo de comprar material bélico para a causa paulista.126 No final a viagem de Manuel Ferreira para os Estados Unidos, terminou por ser
improdutiva127,
Para que pudéssemos responder se havia ou não uma oposição ao governo provisório no Distrito Federal durante a guerra civil de 1932. Antes de mais
nada,
precisávamos
identificar
as
mesmo com a estadia deste no país até o final do
insatisfações que levavam a tal posicionamento
conflito.
político no contexto histórico do período, diante
Ao término deste capítulo podemos inferir que o
da complexidade do momento político que o país
apoio direto ou indireto de alguns civis e militares
se encontrava na época. Assim, procuramos
do Rio de Janeiro, nos demonstra que havia
elencar as principais insatisfações de grupos
significáveis setores da sociedade civil se opondo
específicos da sociedade brasileira como um todo,
ao governo federal e apoiando a causa paulistana
pudemos observar então que, havia descontentes
ou no mínimo de que havia um descontentamento,
com a política de centralização realizada pelo
e ou desaprovação, da política realizada pelo
governo provisório, o que acabava diminuindo a
governo provisório. Outra possibilidade também e
autonomia
pudessem fazer parte de setores privilegiados da
desdobramento desta primeira insatisfação era o
primeira República e que acabaram perdendo as
fato de que a ascensão de Getúlio Vargas ao
suas benesses com advento da Revolução de 1930.
comando do governo provisório acabava alijando
dos
tradicionais
poderes
locais,
do poder político grupos que haviam dominado o CONCLUSÃO
cenário da primeira república. A questão da reconstitucionalização do país com
Acreditamos que um bom trabalho acadêmico, assim como em outras atividades do cotidiano, pode ser considerado satisfatório quando atinge os objetivos a que se propôs no primeiro momento, no nosso caso num determinado projeto. Diante de tal posição para concluirmos retomaremos as duas perguntas iniciais que nortearam este trabalho.
o passar do tempo de fato gerava um desconforto na sociedade, de modo que havia setores oposicionistas por conta disso, apesar de como vimos no primeiro capítulo deste trabalho que a ausência de uma constituição não era o principal motivo do levante militar em São Paulo e sim a perda
de
autonomia.
Todavia
a
reconstitucionalização do país era vital para alguns indivíduos
desta
sociedade
como
Assis
Chateaubriand e o fundador do Diário Carioca, 126
Para que os conspiradores se comunicassem com São Paulo fora montada no Rio de Janeiro na região de Jacarepaguá uma estação de rádio clandestina, que mais a frente seria descoberta pela polícia do estado. HILTON, Stanley E. A
Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, pp. 274-291. 127 Primeiramente Ferreira teria dificuldades em negociar devido a falta de dinheiro e posteriormente até conseguiu comprar armas e munições que seriam transportado via um navio, que também teve que ser adquirido, contudo a negociação demorara demais o que impediu que o carregamento chegasse a tempo, na verdade o navio zarparia de Nova York somente em dezembro de 1932 sendo que guiado por tripulantes do governo federal . HILTON, Stanley E. Op.cit, pp. 290-292.
José Eduardo de Macedo Soares. Entretanto um dos principais motivos de grande descontentamento tanto de grupos da sociedade civil quanto militar, era o movimento tenentista e a presença constante destes no governo provisório até então. Pudemos notar então que no caso específico do Distrito Federal, fica claro que o antitenentismo era fator preponderante, ao menos nos casos estudados por nós, tendo em vista que o
G N A R U S | 236
Diário Carioca havia sido empastelado em
Bibliografia
fevereiro de 1932 por ter criticado o Club 03 de
Arnon de Melo e Dantom Jobim. LAGE, Nilson; FARIA, Tales e RODRIGUES, Sergio. Diário
Outubro e também tendo em vista que houve um número significativo de militares do Distrito Federal que aderiram a causa paulista por desaprovarem o movimento entre outras o movimento tenentista. Depois de termos identificado às insatisfações da oposição pudemos encontrá-las no
Distrito
Federal tanto no periódico Diário Carioca, estudado por nós, quanto em determinado indivíduos desta sociedade. O que nos respondeu que sim havia uma oposição no Rio de Janeiro ao estado provisório e, também, inúmeros motivos que levaram a uma posição de oposição. No que diz respeito às formas de manifestação da oposição no período da guerra entre a união e São Paulo, podemos dizer que foram variadas, iam desde a participação direta no levante como fizeram os coronéis Basílio Taborda e Euclides Figueiredo, ajudando a transportar os militares sediciosos até o estado de São Paulo como foi o caso do Dr. Manuel José Ferreira ou até a publicação de matérias que punham a culpa do levante armado no governo provisório ou que criticavam indiretamente o governo e que em decorrência disso provavelmente teria sofrido uma censura prévia. Para além das questões acima terminamos este trabalho com outra constatação que consiste na necessidade de legitimação do governo provisório, e que o conflito de 1932 quando analisado de uma perspectiva do Distrito Federal nos demonstra que haviam outras possibilidades de governo que não aquela representada por Getúlio Vargas no poder. Felipe Castanho Ribeiro é Licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e especialista em História do Brasil pela Universidade Estácio de Sá.
Carioca: o primeiro degrau para a modernidade. Estudos em Jornalismo e Mídia,
Universidade Federal de Santa Catarina, Vol. I Nº 1 - 1º Semestre de 2004. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalis mo/article/view/2195/3931> consultado em 11 de maio de 2014. BARROS, José D’Assunção. Teoria e Metodologia –
Algumas distinções fundamentais entre as duas dimensões, no âmbito das Ciências Sociais e Humanas. In: REVISTA ELETRÔNICA DE
EDUCAÇÃO. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos, Programa de PósGraduação em Educação, 2007. Semestral. ISSN 1982-7199. Disponível em: http://www.reveduc.ufscar.br. Acesso 31/07/2014. _______________________ O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011 BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997 FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: História e historiografia. São Paulo: Companhia das letras, 1997. HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira:
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de mestrado. UFC, 2009. LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas.São Paulo: Contexto, 2005. M. do Pilar de A. Vieira et al. Imprensa como fonte para a pesquisa histórica. Revista PUCSP, consultado em <http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/arti cle/viewFile/12495/9064>. Acesso em 29/07/2014. PANDOLFI, Dulce. O anos 1930: as incertezas do regime. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano II – O
tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Livro II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Resenha
UM CONVITE A LEITURA DE “A FORMAÇÃO DAS
ALMAS: O IMAGINÁRIO DA REPÚBLICA NO BRASIL”
Por Fernando Gralha
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
P
odemos começar dizendo que José Murilo
um estudo da prática política desta mesma elite. No
de Carvalho, professor titular da cadeira de
livro seguinte “Os Bestializados – O Rio de Janeiro e
história da URFJ, e um dos mais respeitados
a república que não foi”, agrega à preocupação
estudiosos do processo da Proclamação da
com a construção do estado, o problema da
República brasileira, ao produzir o livro aqui
construção da nação, onde é discutida a atitude da
resenhado, compôs uma obra que envolve um vasto
população diante do poder, temática esta que tem
saber histórico e teórico, estilo claro e criatividade
continuidade na obra aqui resenhada, onde o autor
intelectual, onde o autor proporciona ao leitor uma
faz uma reflexão sobre a tentativa do novo governo
estimulante interpretação do período, que tem por
de recriar o imaginário nacional e da reação
objetivo
popular a essa tentativa.
principal
discutir
o
“porquê”,
e
fundamentalmente, “como” foi a disputa entre as elites na tentativa de submeter ao processo imaginário do país a justificação e legitimação racional da estrutura do novo regime republicano.
“A formação das almas: o imaginário da república no Brasil” apesar do título, não nos fala apenas sobre um, ou "o" imaginário da República, mas sim sobre o embate dinâmico para a construção de
A obra tem ligação com outras obras de José
imaginários e seus respectivos símbolos. Esse
Murilo de Carvalho cujo tema são a construção da
sentido, aliás, é essencial no desenvolvimento do
identidade nacional, em “A construção da ordem e
texto, que procura mostrar sempre as mediações e
Teatro de Sombras” 1 , o autor faz uma análise da
os conflitos existentes na criação e consolidação
constituição e composição da elite política
dos principais símbolos republicanos.
imperial, suas metamorfoses durante o período e
1
Livro já resenhado aqui na Gnarus número 3.
G N A R U S | 239 A obra, é composta por uma mistura de ensaios já
tratar do imaginário do "fato", ou seja, da
publicados ao lado de artigos inéditos, e mesmo
proclamação da República propriamente dita, José
assim apresenta extrema coerência interna,
Murilo analisa a construção de um mito de origem
conseguindo explorar muito bem o objeto
da República brasileira na figura de Tiradentes,
proposto.
resgatado como uma espécie de "Cristo cívico",
O livro é um excelente exemplo da renovação da historiografia tradicional ao se utilizar de diversos elementos formadores deste imaginário nacional, do trabalho interdisciplinar e do uso de fontes ainda
hoje
pouco
utilizadas,
como
telas,
símbolo de um herói criado sob medida para conquistar corações e mentes, além de elencar e refletir sobre as apropriações feitas por diferentes (e até mesmo divergentes) grupos sociais. A fase seguinte, mostrada na obra, tratam dos
monumentos, caricaturas,
esforços de elaboração de
charges, literatura, música
uma simbologia voltada
etc, ou seja, elementos
mais diretamente para a
ligados
produção
própria República, que
cultural. Talvez seja este o
fosse capaz de estabelecer
grande mérito da obra, a
uma
análise
República e Brasil, Estado
políticos
à
dos
conflitos
através
dos
ligação
entre
e Nação; isto implicou na
elementos simbólicos no
“importação”
papel de legitimadores de
"Marianne"
um
republicano francês, que
regime,
de
um
modelo
determinado status quo,
em
de
adquiriu a figura da musa
uma
determinada
organização social.
de
capítulo
um estudo minucioso dos políticos
República e o consequente impasse simbólico (advindo das lutas pela criação de um imaginário social entre as diferentes correntes políticofilosóficas) demonstrado no cenário da passagem do Império para a república e tendo como personagens, liberais, jacobinos e positivistas. Após
José
transformação
o positivismo, examinando tanto o processo de por
faz uma análise das diversas proclamações da
seguinte
então, a produção e\ou
filosóficos que nortearam
adaptação ocorrida neste processo. Em sequência,
Comte,
Murilo passa a discutir
e
em prática estes modelos no Brasil, como a
Auguste
ocasiões
Clotilde de Vaux. No
José Murilo de início faz modelos
várias
de
dos
símbolos formais do hino nacional e da bandeira, indispensáveis em qualquer Estado, que acabaram representando muito mais a imagem do Brasil enquanto nação do que da República enquanto Estado. Findando a obra, o autor retoma as questões anteriores, dando primazia a aplicação e influência dos modelos filosóficos de Comte no Brasil,
promovendo
uma
reflexão
sobre
a
construção de um imaginário da República capaz consolidar o Brasil enquanto Nação.
G N A R U S | 240 No
processo
de
construção
histórica
da
popular. Desta forma, o imaginário de República
República, o mais relevante não é a proclamação
criado e difundido pelos positivistas não teve
em si, mas sua construção, mediada politicamente
penetração popular, não apenas pela inexistência
enquanto memória, processo este demonstrado
de uma comunidade de sentido, como defende o
num percurso de criações simbólicas do fato, do
autor, mas, também, porque para a classe popular a
mito, da coisa em si e dos símbolos oficiais, nos
República em si pouco representou, uma vez que
quais as correntes políticos-filosóficos confrontam-
não foram agentes ativos do processo.
se em todos os momentos da construção do imaginário e dos símbolos da República do Brasil. Desta forma, o passado tangível perde espaço em relação às suas representações.
Por fim, os méritos da análise do Profº J.M. Carvalho se guardam, a nosso ver, em dois pontos: Primeiro, em estudar, através de uma nova ótica, uma realidade já bastante estudada, contribuindo
José Murilo de Carvalho deixa claro que todo o
assim, para a rediscussão de certas “verdades”
processo relativo à proclamação e consolidação da
sobre o período. Segundo, faz isso combinando
República foi idealizado pelas elites participantes
vasto instrumental teórico com erudição histórica.
do Estado, seja como dirigentes, seja como
É este último ponto que, unidas ao brilhantismo e à
opositores. A participação popular, quando ocorre,
profundidade já conhecidas de suas interpretações,
exerce
ou
torna os livros de José Murilo de Carvalho, algo bem
legitimadora do interesse de algum grupo. A
mais do que um relato de “como” as coisas
elaboração, os embates pela consolidação e o
aconteceram e, uma referência imprescindível para
próprio alcance do imaginário republicano, ficaram
a compreensão das complexas relações entre
limitados a seus idealizadores e participantes. O
Estado e Sociedade no Brasil.
apenas
uma
função
decorativa
resultado desejado, que deveria ser obtido com o imaginário republicano, capaz de fazer a junção entre Nação e Estado, não ocorreu, graças ao
Fernando Gralha é Editor da Gnarus Revista de História e Professor das Faculdades Integradas Simonsen, UCAM e UNIRIO.
distanciamento deste último para com a realidade
Specimen da cédula de 2 mil-réis da 11ª estampa do Tesouro Nacional – Brasil (1918-1950) impressa pela American Bank Note Company de Nova York - ABNCo
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Equipe de Redação: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS) Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Graduanda Cindye Esquivel (FIS)
Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Profº. Felipe Castanho (UGF/FIS) Prof. Dr. Julio Gralha (UFF) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Rodrigo Amaral (UCAM/FIS) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS)
Apoio: Faculdades Integradas Simonsen (FIS) Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP) GELHIS – Grupo de Estudos da Licenciatura em História