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ANO III - Nº 5 - AGOSTO - 2015

GNARUS

Revista de História - ISSN: 2317-2002

CAPOEIRA ROMANIZAÇÃO

HISTÓRIA PERSUASÃOAMÉRICA GUERRA

CIGANOS

SODOMIA

MÚSICA

FEMINILIDADES1932 IMPERIALISMOS OTAN

SANTO OFÍCIO

ANCESTRALIDADE CARNAVAL CONGRESSO DE VIENA

ENSINO

FOTOGRAFIA CINEMA

E.U.A.UMBANDA


GNARUS |2

Sumário Ao leitor .................................................................................................................................................................................................................. 3 Fernando GralhaError! Bookmark not defined.

ARTIGOS:

Impérios e Imperialismos. Uma breve história conceitual. ............................................................................................................................ 4 João Victor da Mota Uzer Lima Error! Bookmark not defined. As feminilidades no poema de Mio Cid .......................................................................................................................................................... 19 Lívia Maria Albuquerque Couto Capoeira e literatura: um panorama entre a ficção e a realidade .............................................................................................................. 26 Hugo Sbano A construção de um conceito: a romanização ............................................................................................................................................... 32 Alexandro Almeida Lima Araujo e Claudia Patrícia de Oliveira Costa Prática e punição da sodomia no século XIII através das Normativas Jurídicas Afonsinas: Las Siete Partidas ................................... 39 Bruna Oliveira Mota Ensino da História: teoria e práticas ................................................................................................................................................................ 41 Rennan de Azevedo Ramos As relações internacionais entre o Congresso de Viena e a grande guerra.............................................................................................. 49 Ricardo Luiz de Souza Um novo velho modelo no novo mundo: a república religiosa secularizada da Giovanni Italia........................................................... 63 Ricardo Cortez Lopes A cultura armamentista da sociedade estadunidense .................................................................................................................................. 70 Giancarlo Monticelli As câmaras municipais na América colonial: poder central e poder local nas instituições coloniais na América portuguesa ........ 73 Miguel Luciano Bispo dos Santos Transações comerciais mercantis: desestruturação social e o tráfico negreiro no reino do Congo no início do séc. XVI ............... 79 Lucenildo Souza Campos e Maria Gonçalves Campos Relações sino-afegãs: impactos da retirada das tropas da OTAN do Afeganistão.................................................................................. 70 Bernardo corais e Paulo Pulcherio Formas de persuasão e controle dos trabalhadores dos trabalhadores dos engenhos no imediato pós-abolição (Zona da Mata Sul de Pernambuco 1884-1893) ............................................................................................................................................................. 70 Maria Emília Vasconcelos dos Santos O carnaval carioca dentro da concepção da resistência do povo negro (desde 1850) .......................................................................... 70 Carlos Augusto Alves Santana Música: linguagem, contexto e recepção ....................................................................................................................................................... 70 Marília Luana Pinheiro de Paiva O culto à ancestralidade no Egito Antigo: uma estrutura africana ............................................................................................................ 70 Claudio Lourenço O tribunal do Santo Ofício português: Notas sobre sua consolidação e atuação ................................................................................... 70 Alex Rogério Silva

MINI-AULAS

Vários .................................................................................................................................................................................................................... 90 Cindye Esquivel e Germano Vieira

COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA

A imagem do sonho no cinema ........................................................................................................................................................................ 83 Rafael Eiras O Nuevo Cine Latino-Americano e uma Argentina memoriosa ................................................................................................................. 90 Renato Lopes

COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA

A fotografia na passagem do séc. XIX ao XX: a democratização da imagem .........................................................................................105 Fernando Gralha

PESQUISA

Ciganos no Brasil: cultura e preconceito no século XXI ............................................................................................................................... 94 Bianca Dias Umbanda, uma religião brasileira com características regionais ............................................................................................................... 97 Marcelo Soares

MONOGRAFIA

Oposição no Distrito Federal em tempos de guerra – 1932........................................................................................................................ 97 Felipe Castanho Ribeiro

RESENHA

Um convite a leitura de “A formação das almas: o imaginário da república no Brasil” ........................................................................117 Fernando Gralha


GNARUS |3

AO LEITOR

"C

ogito, ergo sum". "Penso, logo existo".

uma vez, através de nossos pensantes colaboradores um

Eis

o

cardápio bem variado das práticas e ideais humanos, juntos

fundamento racional, o ponto de

caminharemos por pecados e santidades, liberdades e

partida para a construção de todo o

escravidões, músicas e lutas, textos e imagens, ensino e

pensamento. A Gnarus chega ao seu

aprendizagens, gêneros e etnias, religiões e políticas,

quinto número priorizando assim como o filósofo, o sujeito

sempre dentro da máxima reflexão cartesiana, “cogito,

e não o objeto. E dessa forma, chamamos a atenção para o

ergo sun”.

aí,

segundo

Descartes,

primeiro e maior problema da produção do conhecimento

Acrescentando às intenções e pretensões reflexivas,

científico da História: o sujeito (o historiador) e o objeto (os

trazemos neste número duas novidades, primeiro o

homens no tempo) são o mesmo, isto é, homens. Um

lançamento da seção “Monografia”, na qual publicaremos

problema filosófico e metodológico, pois embora o

na íntegra trabalhos de historiadores recém pós graduados,

conceito de ideias claras e distintas que a metodologia

na estreia, temos o trabalho do Professor e Historiador

historiográfica nos dá e de como isso resolve alguns

Felipe Castanho nos convidando a uma viagem pelos

problemas com relação à verdade de parte do nosso

conturbados tempos de guerra de 1932 e do Brasil de

conhecimento, a complexidade e multiplicidade do pensar

Getúlio Vargas. A outra novidade vem através de nossos

não provê nenhuma garantia de que o objeto pensado

mais novos editores, Cindye Esquivel e Germano Vieira, são

corresponda a uma realidade fora do pensamento, o que

as já tradicionais em nossa página no Facebook, mini-aulas,

nos leva a outra grande questão: Como sair do próprio

pequenos textos sobre História e Historiografia que

pensamento e recuperar o mundo? Longe da pretensão de

trazemos aqui para a partir de micro textos, juntamente

responder a estas questões a Gnarus deste semestre

com todo o conteúdo da revista, reforçar nosso também já

pretende sim fomentar o cogito, o pensamento reflexivo

tradicional convite: uma nova viagem pelo rio da A-Letheia

tão necessário em momentos de crise, é nestes em que se

de nossa musa Mnemósyne.1

estabelece o momento de olhar para trás, recuperar e repensar nosso caminhar. Aspiramos ser um dos pontos de encontro desta reflexão. Para tanto, apresentamos, mais

1

Sobre o A-Letheia e Mnemósyne ver “Ao Leitor” Gnarus, nº 1.

Fernando Gralha


GNARUS|4

Artigo

IMPÉRIOS E IMPERIALISMOS. UMA BREVE HISTÓRIA CONCEITUAL. Por João Victor da Mota Uzer Lima

RESUMO Um conceito é definido por ser uma palavra polissêmica, ou seja, passível de múltiplas interpretações. Uma palavra, por definição, é um vocábulo usado para denominar um objeto, ação ou ideia: um “significante” com um “significado”, um conceito, por outro lado, seria um “significante” com diversos “significados”. Essa polissemia de pelo fato de que um conceito é apropriado por diversas sociedades distintas, e de formas distintas por uma mesma sociedade, durante a história. Sendo assim, um conceito está diretamente ligado à sociedade que o cria ou que o ressignifica. Por isso, a história conceitual (Begriffsgeschichte) e a história social partilham uma coexistência complexa, uma atua no campo da outra de forma que se complementem. O estudo de uma implica – quase que invariavelmente – na outra. O presente trabalho procura explorar esta relação entre as disciplinas através do estudo do conceito de imperialismo, apresentando a forma como o termo fora ressignificado por diversas sociedades distintas e por momentos distintos de uma só sociedade, evidenciando os momentos históricos através da forma como esta se apropria da ideia de Império, Imperialista e Imperialismo alem de problematizar e relativizar os mesmos conceitos. Palavras Chave: Imperialismo. Império. História Conceitual

D

avid Kenneth Fieldhouse escreveu um livro

Capitalist

popular, o termo é empregado na sua definição marxista

Imperialism”, em 1967, parte da serie

de dominação econômica dada pela evolução do

intitulado

“The

Theory

is

“Probems and Perspectives in History”, da editora Longman, onde logo na introdução procura exaltar a dificuldade de se discutir o imperialismo. Diz o autor – famoso pelo seu livro “Economics and Empires, 1830 -

1914” de 1973 e por ser um grande estudioso das políticas econômicas imperiais – que a grande dificuldade na discussão sobre o tema se dá pelas formas em que a palavra é empregada, sendo usada para denominar

expansionista territorial além do evento, ou, no mais

um

evento

histórico,

um

impulso

capitalismo (FIELDHOUSE, 1967). Esse

fenômeno

ocorre

pelo

fato

do

termo

“imperialismo” ser mais que uma palavra, ser um conceito. Por tanto, para compreender a forma como a apalavra é empregada deve-se primeiro compreender a definição de conceito e a diferenciação de uma palavra. Um conceito é definido por ser uma palavra passível de múltiplas interpretações. Uma palavra, por definição, é um vocábulo usado para denominar um objeto, ação ou


GNARUS|5 ideia, um conceito seria um

Latim/Português,

conjunto de ideias que só

Ministério da Educação –

poderiam ser expressas a

como: 1) Poder soberano

partir

de

do

um

mesmo

(Como o de um pai sobre os

logo

“Todo

filhos, ou do senhor sobre os

Conceito se prende a uma

escravos). 2) Supremo poder

palavra, mas nem toda

(de tomar todas as medidas

palavra é um conceito social

de

e

mesmo fora das leis), mando,

vocábulo,

político”

(KOSELLECK,

utilidades

públicas,

1979), de forma que os

autoridade

conceitos sejam vocábulos

domínio, soberania. 3) Poder

com uma multiplicidade de

supremo (atribuído a certos

significados.

Podem-se

magistrados), magistratura.

destacar os conceitos sociais

Em sentido especial: 4)

e políticos em três grandes

Comando

grupos:

Conceitos

Autoridades, magistrados ou

tradicionais cujo significado

comandantes generais. 6)

1)

suprema,

militar.

5)

persiste em partes; 2) conceitos cujo significado tenha

Comando, ordem, autoridade. 7) Estado, império,

mudado de tão forma drástica que, mesmo com a

governo imperial (FARIA, 1962). Sendo assim, império,

permanência da mesma palavra, uma comparação se

etimologicamente, não se caracteriza unicamente por

torna difícil; e 3) Os neologismos, palavras criadas para

um regime político – muito menos econômico – e sim por

causar impacto e novidades, como fascismo, comunismo

uma ação, a ação de dominar, de exercer posse e

(JASMIN; FERES JUNIOR, 2006) e imperialismo.

autoridade.

O que se destaca no estudo dos conceitos e da história

O termo fora introduzido na Inglaterra por volta de

conceitual como disciplina é a noção de “faixas

1870 e foi popularizado como vocábulo para denominar

temporais”. Uma vez que os conceitos não variam,

a expansão territorial e econômica somente por volta de

unicamente, de acordo com seu campo semântico, mas

1900 com a apropriação do termo por parte dos

também de acordo com os suportes temporais

intelectuais, antes disso, era usado na Inglaterra para

embutidos em si, os conceitos evidenciam uma possível

denominar a política da França de Napoleão Bonaparte,

continuidade ou descontinuidade histórica social,

o termo pouco a pouco foi substituído, a política imperial

refletidas na linguagem, fazendo com que o conceito

Francesa

carregue em si “uma referência ao intervalo de tempo

“Bonapartista” (Bonapartiste) – ou “Bonapartismo” – e os

que ele projeta” (MOTZKIN, 2006).

“imperialistas” – e consequentemente o “Imperialismo”

Desta forma, o termo “Imperialismo”, precisa ser

começou

a

ser

denominada

como

– ganharam uma nova conotação.

destacado e analisado diacronicamente desde a sua

A herança deste pensamento “anti-imperialista” que

formação até a sua utilização nos dias atuais, de forma

daria lugar ao termo “bonapartismo” na língua inglesa

que seja possível observar o seu contexto de criação e as

remete à Inglaterra renascentista. Patricia Springborg,

suas apropriações por parte dos escritores, dos

analisando como o conceito de império foi disseminado

intelectuais e da sociedade.

na Inglaterra afirma que os renascentistas ingleses

O termo Imperialismo é derivado do termo Império, do Latim Imperium. Sendo este definido – pelo dicionário

reconheciam-se como “Imperialistas Cosmopolitas” – ou seja, possuíam uma política imperial, mas não se


GNARUS|6 compreendiam como súditos ou submissos, gozavam de

a China ou Índia) e as colônias estabelecidas por

direitos e eram cidadãos, em contrapartida, em um

imigrantes brancos (como a America). Esta segunda

regime imperial “a civilização é o ethos do império”, de

forma de colonização seria a responsável pela criação

forma que a comunidade não funcionaria por si, não teria

desta forma de pensar o imperialismo.

estruturas ou instituições próprias (SPRINGBORG, 2007). Daí a negação inglesa ao uso dos termos “Império”, “Imperialista” e “imperialismo” em primeiro lugar.

Mesmo que a Índia fosse governada por uma empresa e não por um estado – diz Benedict Anderson – “quando

a Companhia das Índias Orientais pediu a renovação da

A ressignificação do termo, na Inglaterra, para a ideia

sua concessão em 1813, o parlamento determinou que

de dominação econômica só ocorreu na virada do século

fossem alocadas 100 mil rupias por ano para a educação

XVIII para o XIX devido a necessidades econômicas. Com

nativa.”. Implantou-se um sistema de educação todo em

a revolução industrial e a necessidade da exploração do

inglês, criando uma “miscigenação mental”, pessoas

mercado externo o termo Imperialismo foi lentamente

hindus “no sangue e na cor”, mas culturalmente inglesas.

transformado, de um termo pejorativo, em um adjetivo

(ANDERSON, 1983) Quanto ao prestígio, Leopold II diz:

elogioso e apreciado de tal forma que em certo ponto

“A Índia Britânica, por tempos, posse da Companhia, nunca custou à pátria mãe ‘um centavo’. A última guerra na índia, uma grande luta que foi mantida pela energia de toda a nação britânica e escrita com seu preciosismo sangue, prova quão alto a Inglaterra avalia a sua possessão.”

“promoveu um chauvinismo nacional de auto-justiça e

presunção” alegando “que o Império Britânico foi o benfeitor de toda a humanidade” (HODGE, 2008) e posteriormente levaria à compreensão de que o Imperialismo seria necessário e benéfico ao mundo, fazendo com que as nações se autodenominassem como

Esta utilização da palavra “imperialismo” para definir

imperialistas. Com o crescente número de publicações usando-se do termo – as mais relevantes talvez sejam “Imperialismo,

um Estudo” de John Hobson e “Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo” de Vladmir Lênin – a palavra “imperialismo” ficou popularizada por exprimir uma ideia de dominação político-econômica de uma

um sentimento de “preocupação na manutenção de um prestígio nacional”, então compreende o imperialismo como uma política expansionista, mas delega a ele um caráter menos econômico e mais cultural – embora não seja um “Imperialismo Cultural” propriamente dito. Na mesma época, devido ao crescimento do

empresa ou nação por sobre outra, através da

capitalismo,

exportação de capital financeiro, sendo assim, o que

“monopólio”, “exportação de capital” entre outros,

hoje é denominado “Imperialismo Monopolista” – nos

foram

termos Leninistas – no início do século XIX era chamado

“imperialismo” do “império” e vinculando-o ao

apenas de “Imperialismo”. “O império e os imperadores

capitalismo. A apropriação do termo por parte dos

antigos,

novíssimo”

economistas é refletida na quantidade de publicações

(HOBSBAWM, 1988). Sendo assim, os impérios antigos

sobre o tema a partir dos anos 1900: John Hobson

não seriam imperialistas? Seria possível a existência de

“Imperialismo. Um Estudo” em 1902, Rudolf Hilferding

um império que não praticasse alguma política

“O Capital Financeiro” em 1910, Rosa Luxemburgo “A

imperialista?

Acumulação do Capital” em 1913, Nikolai Bukharin

mas

o

imperialismo

era

O Rei Leopold II – então duque de Brabant – descreveu, em 1863, três diferentes tipos de colônias: A escravocrata (como Cuba), a colônia habitada por vários nativos e dependentes de algum estado europeu (como

termos

adicionados

como

“capital

lentamente,

financeiro”,

desvinculando

o

“Imperialismo e a Economia Mundial” em 1915, e Vladmir Lenin

“Imperialismo,

Fase Superior do

Capitalismo” em 1917, em meio à Primeira Guerra Mundial, cada um procurando explicar o fenômeno a partir de premissas diferentes.


GNARUS|7 Desta forma, o debate apresentado não contempla o

habitantes, a comunidade tem seus limites bem

conceito do termo, mas sim sua conotação e sua relação

estabelecidos, fronteiras determinadas e partilhadas por

e função dentro do capitalismo. O conceito de

todos, mesmo que elásticas; e é vista como soberana

imperialismo dado por Lênin, e por muitos outros, delega

devido ao seu contexto de criação, a noção de “nação”

ao termo uma função puramente econômica, sendo

foi criada em um momento em que a legitimidade dos

fundamental para a evolução do capitalismo, por outro

reinos monárquicos estava sendo atacados por

lado, os autores não marxistas, afirma Hobsbawm,

revoluções e pelos pensadores iluministas, portanto,

tentavam negar a relação da ação político-econômica

havia a necessidade ideológica de destacar o Estado de

dos Estados europeus no século XIX com o capitalismo

uma ordem divina, garantindo a liberdade e autonomia.

em geral. (HOBSBAWM, 1988) Portanto, esse debate

“as nações sonhavam em ser livres”. (ANDERSON, 1983)

procura discutir a natureza de um “Imperialismo

Portanto, quando Anderson observa no imperialismo

Econômico”, contemplando apenas uma das múltiplas

uma política de dominação onde há naturalmente um

interpretações do conceito.

conflito, já que a comunidade colonial, os nativos, não

Benedict Anderson em “Comunidades Imaginadas” de 1983 apresenta a importância da necessidade de um “nacionalismo oficial” para a manutenção de um império, Anderson apresentou o uso da cultura, através da língua e da educação, para a formação do império. Benedict Anderson não apresenta claramente a concepção de “cultura” adotada em sua obra, no entanto, a sua análise principal está na formação da consciência nacional e da nacionalidade. Segundo Anderson, “nação” seria definida por ser “uma

comunidade política imaginada – e imaginada como

carregaria em si a noção de pertencimento que os membros da metrópole, de forma que, para manter uma hegemonia,

seria necessária a

criação

de um

Nacionalismo Oficial. Anderson não denomine claramente o que toma como “cultura”1 – até mesmo porque não utiliza desta palavra – mas pode-se compreender que o nacionalismo oficial tinha como objetivo manter a unidade cultural do império, uma vez que ensinando a língua e as práticas da metrópole nas colônias, o Nacionalismo Oficial difundia as crenças, normas e atitudes da metrópole.

sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo,

Edward Said, observando na cultura uma forma de

soberana.” Imaginada porque os membros que

identidade, destacou um diálogo entre “dominado e

compõem esta comunidade, por menor que seja, nunca

dominador” através das produções culturais. Said

conhecerão todos os seus companheiros; é limitada

compreende “cultura” como um conjunto de práticas,

porque independente de seu tamanho ou número de

como as comunicações, as representações e descrições

1 O termo “Cultura” é originário da palavra germânica “Kultur”,

campos da antropologia e etnografia com um significado distinto do elaborado em sua origem. Na tentativa de modernizar o obter uma melhor previsão conceitual, o antropólogo Roger Keesing, em 1974, definiu cultura – ou melhor, “culturas” – como: “Sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos biológicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante.” Com o estudo das ciências políticas, houve a apropriação do conceito de cultura por esta ciência, desenvolvendo o conceito de “Cultura Política”, que por sua vez viria denominar um conjunto de normas, crenças e atitudes difundidas pelos membros de uma unidade social, tendo como objeto fenômenos políticos (BOBBIO, 1991).

que era empregada para denominar conjunto de fatos intelectuais, artísticos e religiosos de uma comunidade1. No século XVIII os termos “Kultur” e “Civilization”, sendo o primeiro germânico e o segundo de origem francesa, apresentavam uma antítese: Enquanto um era usado para simbolizar os aspectos intelectuais e espirituais de um grupo; o outro expressava uma noção concreta, referindo-se as realizações materiais ou ao comportamento dos indivíduos (ELIAS, 1962). Enquanto o conceito de “civilização” enfatiza o que há de comum entre os seres humanos – ou segundo aqueles que se denominam “civilizados” – deveria haver, argumenta Norbert Elias, o conceito de “Kultur” enfatiza as diferenças nacionais e as peculiaridades de um determinado grupo. Ou seja, enquanto um tenta dar conta do que deveria ser igual a todos, o segundo denomina o que é específico de cada grupo, devido a tal compreensão, o termo germânico fora apropriado nos


GNARUS|8 elaboradas por um determinado grupo que gozem de

descrever o desconhecido, demonstrando um grande

certa

poder criativo e uma mobilidade social interna e uma

autonomia

perante

os

campos

políticos,

econômicos ou sociais, sendo uma fonte de identidade. Mas Said se limita a chamar de “cultura” as produções bibliográficas, principalmente os romances, que em sua compreensão, exerceram forte papel no fenômeno do imperialismo.

autoridade por sobre o outro. (SAID, 1993) Said define Imperialismo como “a pratica, a teoria e as

atitudes de um centro metropolitano dominante governando

um

necessariamente

território em

uma

distante”, dominação

não plena;

Embora compreendesse o imperialismo como uma

compreende a necessidade do lucro, mas defende que a

forma de dominação, e que "O principal objetivo da

dominação imperialista não se limitava unicamente ao

disputa no imperialismo é, evidentemente, a terra ",

comércio, havia uma “cultura imperial”, um conjunto de

(SAID, 1993) Said destaca

experiências

que esta dominação nunca

dominador

foi

um

dominado. Said destaca

ocidental intruso e um não

ainda que "os poderes de

oriental nativo, sempre

representar o que está

houve alguma resistência.

além

passiva,

entre

imperialismo

destacado

Econômico”, afinal, não traz

palavra

raças, selvagens, chegando

esse diálogo; e 5) a capacidade de criar a imagem do outro, não pela “invenção da tradição” mas pelo grande poder que os intelectuais e escritores possuíam de

concepção

de

monopolista

ou nem mesmo traz a

sendo denominadas de

artísticos, literários, arquitetônicos e outros, evidenciam

a

capitalismo

decodificadas,

surgimento de novas elites culturais, novos estilos

do “Imperialismo

Etnografia essas diferenças

de forma que a dominação não se apresentava inerte. O

Said

imperialismo, mas não um

2) Com o advento da

4) a cultura metropolitana é afetada pelo imperialismo,

imperial".

econômico

facilidade em percebê-las;

“obrigação” na colonização para o benefício dos nativos;

mesmo

compreende um caráter

eram absolutas, devido à

cientificamente, causando a criação do discurso de

fronteiras

Portanto,

entre Oriente e Ocidentes

ocidente por sobre o oriente passa a ser aceita

das

sociedade

fronteiras físicas e culturais

à dicotomia: civilizado e primitivo; 3) a dominação do

do

deriva do poder de uma

o

em cinco momentos: 1) As

foram

quanto

em conversas informais,

participante do fenômeno sendo

do

metropolitanas,

Para Said a cultura é imperialista,

tanto

compreende

monopólio; no

imperialismo uma característica dominante, mas não como de um “Imperialismo Clássico” – no sentido etimológico, do governo de um Imperador – afinal não há um imperador ou rei soberano exercendo uma dominação ou expandindo seu Estado Imperial. Há uma dominação, mas de uma nação sobre a outra e não de um Estado liderado por um imperador, exercendo uma dominação física. Tão pouco Said expressa um “Imperialismo Cultural”.


GNARUS|9 A tese do “Imperialismo Cultural” defendia a existência

idêntica à soma das rendas da Grã-Bretanha, Alemanha

de uma nova forma de dominação e dependência, fruto

e França, chegou, em 1948, ao dobro da soma das rendas

de uma série de interesses de corporações, governantes

dos países citados e a mais de seis vezes mais que a renda

e

Unidos.

da União Soviética (ARRIGHI, 1996), com um novo

(THOMPSON, 2002) Segundo a teoria do “Imperialismo

sistema monetário mundial e com uma nova ordem

Cultural” A exportação de valores ocidentais por parte

mundial estabelecida devido ao novo meio de guerra

dos meios de comunicação em massa subjugam a cultura

com as bombas atômicas.

militares,

centralizados

nos

Estados

local criando então uma nova forma de dominação, fazendo com que a nação “dominada” necessite cada vez mais da importação de mercadorias e hábitos que correspondam a um novo padrão de vida que é vendido pelos valores exportados. Desta forma, o Imperialismo Cultural não se coloca no século XIX como as demais interpretações do fenômeno, e sim no século XX, no póssegunda guerra mundial, o conceito não faz referência ao período histórico do “neo-colonialismo”, situado no período convencionalmente denominado de “era do Imperialismo (1800 – 1914)”, e sim a um novo uso do termo imperialismo, o termo foi introduzido por Herbert Irving Schiller, sociólogo e teórico da comunicação, na publicação do livro “O Império Norte Americano das

Segundo Schiller, com o fim dos impérios coloniais, um novo império assumiu e os substituiu, o império americano que trazia em si duas bases: O seu caráter fundado

em

grandes

corporações

internacionais, e no monopólio da tecnologia de comunicação

e

de

império – construído no período entre guerras e predominante no cenário mundial no final do conflito – que assume o papel dos antigos impérios coloniais não se caracteriza como um governo imperial clássico governado por um imperador, como um “Imperialismo

Clássico” e não traz em seu seio um caráter expansionista militar aos moldes do “imperialismo continental” ou uma dominação econômica industrial monopolista aos moldes do “Imperialismo Econômico”, sua expansão e sua dominação se dão de forma diferente e por razões diferentes. O “Imperialismo Cultural” é visto como uma política de dominação que atua em um contexto ideológico cultural

Comunicações” em 1969.

econômico

É neste contexto em que Schiller escreve. Este novo

novos

sistemas

eletrônicos,

e não militar, territorial ou econômico. Tem seu inicio no meado do século XX por consequência do colapso dos antigos impérios colônias. Portanto, a “Cultura e o

Imperialismo” – como utiliza Said e Anderson – não deve ser confundida com o “Imperialismo Cultural”. É dado como certo que o final da Segunda Guerra

(THOMPSON, 2002) por onde seria veiculado, em forma

Mundial

decretou

de propaganda, a cultura e a ideologia de uma nação,

dominações imperialistas, o “velho imperialismo” não

mas não como um império, de forma que o “Imperialismo

era mais aceito e verificou-se uma nova forma de

Cultural” seja apresentado, ainda como dominação, mas

dominação econômica internacional, uma nova política

com um teor ideológico e não territorial, e fruto de uma

de

hegemonia americana resultante do término da segunda

Imperialismo”.

“reajuste

uma

mudança

drástica

espaço-temporal”,

um

nas

“Novo

guerra mundial, onde a necessidade propagandista se

Em 2005, o economista Egípcio Samir Amin apontou

elevou devido à conjuntura internacional da Guerra Fria.

cinco grandes objetivos econômicos dos Estados Unidos

Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos

de sua época, eram eles: 1) Neutralizar e subjulgar os

agiram como “oficina do esforço de guerra aliado” e

parceiros da tríade [bloco composto pela Europa, Japão

como o “celeiro e oficina de reconstrução europeia do

e Estados Unidos] e minimizar a capacidade do bloco de

pós-guerra” por consequência, a renda nacional dos

agir por fora das influencias americanas; 2) Exercer

Estados Unidos, que já em 1938 era aproximadamente

controle

militar

sobre

a

OTAN

e

a

“Latina-

Americanização” dos países periféricos que compunham


G N A R U S | 10 a antiga União Soviética; 3) Controlar o Oriente Médio

Unidos então criaram um sistema distinto baseado em

sem promover qualquer partilha; 4) Impedir a construção

uma combinação de acordos internacionais e financeiro-

de blocos regionais e garantir a subordinação dos

institucionais e centralizaram o poder econômico

Estados do BRIC; e 5) Marginalizar as regiões que não

financeiro em Wall Street. (HARVEY, 2005)

apresentem qualquer interesse econômico. Segundo Amin, o objetivo final era “fazer de Washington o senhor,

em última instância, de todas as regiões do planeta .” (AIMIN, 2005)

Portanto, o conceito de Imperialismo – e por consequência o de Império – se adaptou a um novo mundo adquirindo uma nova definição em uma compreensão banhada em globalização, lançando mão

Este “Novo Imperialismo” – embora Amin não utilize

de um termo centenário para denominar fenômenos

deste termo – se caracterizaria por ser uma dominação

modernos. Apesar do apelo ao ineditismo evocado pelo

econômica entre estados, mas não por empresas ou pelo

uso do “novo” Harvey se apropria de um termo que já

monopólio de bens, mas através de um novo sistema.

havia sido usado para denominar um fenômeno de

Com o advento da globalização, houve uma renovação

dominação.

no antigo método na relação entre “devedores e credores”, o processo de endividamento acarretou no desenvolvimento de um capitalismo tributário e na submissão financeira de países dependentes, em um nível macroeconômico mundial. (CASANOVA, 2005). David

Harvey

compreende

o

fenômeno

do

imperialismo como uma política de reajuste espaço-

Imperialismo ou imperialista e tomado hoje quase que como sinônimo de “dominação” e/ou de “dominação ilegítima” o que foge por completo de sua origem etimológica. João Victor da Mota Uzer Lima é formado em História e mestrando do Programa de pós-graduação em História social da UERJ. joao_uzer@hotmail.com

temporal proporcionada por uma “sobreacumulação”, fenômeno este que gera investimento, o excedente – de capital ou de trabalho – pode ser absorvido por: 1) deslocamento temporal através de investimentos em projeto longo prazo ou gastos sociais que preparem o futuro; ou 2) deslocamentos espaciais de abertura de novos mercados. (HARVEY, 2005) O imperialismo do século

XIX,

teria

sido

um

efeito

de

uma

sobreacumulação europeia, resultando na Primeira Guerra Mundial e posteriormente na crise dos anos 30. Esse sistema – segundo Harvey – foi substituído em 1945 por um novo, liderado pelos EUA. Segundo Harvey, uma aliança global entre os principais poderes capitalistas – o que Amin chamou de “tríade”

foi

sobreacumulação,

desenvolvida mas

para

tal

para era

evitar

a

necessário

compartilhar os benefícios da intensificação de um capitalismo, integrado as regiões centrais e se envolver em

uma

expansão

geográfica

sistemática. Esta

conjuntura foi alterada nos anos 70 quando os dólares excedentes inundaram o mercado mundial. Os Estados

Bibliografia ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. 1983. Ed. Brasileira: São Paulo: Companhia das Letras, 2008. AMIN, Samir. O Imperialismo, Passado e Presente. Revista Tempo: Rio de Janeiro, nº 18, pp. 77-123. 2005. ARRIGHI. Giovanni. O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo; Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Contra Ponto. 1996. BOBBIO, Norberto; MATTUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen Varriale. Brasília: Editora Universidade de Brasília/Linha Gráfica, 1991. Vol.1. CASANOMA. Pablo González. O Imperialismo, Hoje. Revista Tempo: Rio de Janeiro, nº 18, pp. 65-75. 2005 ELIAS. Norbert. O Processo Civilizador: Uma História dos Costumes: Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994. Vol. 1. FARIA. Ernesto. (Org). et al. Dicionário Escolar Latim – Português. Ministério da Educação e Cultura – Departamento Nacional de Educação. 1962. FIELDHOUSE. David Kenneth. The Theory of Capitalist Imperialism. Londres. Longman Group Limited. 1974. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005. HOBSBAWM. Eric. A Era dos Impérios, 1875 – 1914. 1988. Ed. brasileira: Trad. Sieni Maria Campos e


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G N A R U S | 12

Artigo

AS FEMINILIDADES NO POEMA DE MIO CID Por Lívia Maria Albuquerque Couto

Resumo: Neste artigo analisaremos a construção das feminilidades de alguns personagens por nós selecionados no Poema de Mio Cid à luz dos Estudos de Gênero. Apesar da problemática em torno de sua autoria, defendemos que tal documento foi escrito em 1207, pelo clérigo Per Abbat, e destinado às cortes castelhanas da época ao narrar os sucessos militares de Rodrigo Díaz de Vivar, conhecido como El Cid. Cabe salientar que este estudo busca especificidades dentro da referida região e nossas conclusões aqui apresentadas

baseiam-se

na

comparação

de

personagens históricos-literários criados por um autor que viveu no âmbito do reino de Castela no século XIII. Nesse contexto, veremos os tipos de mulheres apresentadas pelo autor neste documento medieval. Para tal, partimos do pressuposto de que as representações sociais estão calcadas nos interesses de grupos específicos. Sendo assim, a maneira como se dão suas construções, para nós, ajudam a entender como as mulheres estavam ou deveriam estar inseridas na sociedade castelhana dos séculos XII-XIII na perspectiva, especificamente, deste clérigo.


G N A R U S | 13

Bodas das Filhas do Cid (Cantar II) e A Afronta de

Introdução:

Corpes (Cantar III). Importante destacar que

E

m nosso artigo preocupamo-nos em analisar, à luz dos Estudos de Gênero e através do Método Comparativo em

História, como foram construídas as feminilidades no Medievo Ibérico, utilizando como documento o

Poema de Mio Cid. Ele foi redigido a partir de fatos históricos sobre a vida de Rodrigo Díaz de Vivar, o EI Cid, cavaleiro que viveu no século XI na região de Castela. Levaremos em consideração na obra o seu momento de produção e o contexto social, nos quais, o autor estava inserido e o tipo de posicionamento dado por ele às mulheres presentes

no

Poema.

A

metodologia

de

comparação histórica a ser utilizada será norteada pelo

historiador

alemão

Jürgen

Kocka,

principalmente no artigo Comparison and Beyond1 e também no trabalho da historiadora americana Joan Scott, em especial, o texto Gender: A Useful Category of Historical Analysis2, presente em seu

usamos como base a versão elaborada por Colin Smith (2001) e a versão traduzida por Maria do Socorro Correia Lima de Almeida (1988). O primeiro cantar – O Desterro do Cid - começa com o El Cid sendo exilado, por ordem de Afonso VI. O infanzone deixa sua esposa, Doña Jimena, e filhas, Doña Elvira e Doña Sol, no Monastério de São Pedro de Cardeña, aos cuidados, devidamente patrocinados, do Bispo Don Sancho, o qual deve zelar sempre pela segurança e saúde de sua esposa e

filhas.

Daí

em

diante,

El

Cid

parte

tranquilamente para às suas empreitadas militares. Neste primeiro momento, podemos destacar um evento singular disposto na gesta, isto é, a despedida de Donã Jimena frente ao seu marido El

Cid, esta se prostra diante dos seus pés e daquele momento em diante verbaliza uma singular oração religiosa, pedindo a Deus pelo sucesso de seu marido em suas campanhas.

livro Gender and Politics of History. Neste, Scott

O segundo cantar – As Bodas das Filhas do Cid –

apresenta os vários sentidos em que a palavra

é iniciado retratando as primeiras e grandiosas

gênero pode ser apresentada e o referente uso

conquistas do Cid, em suas campanhas na região

feito tanto por historiadores homens como

do Levante e posteriormente, com os processos

pesquisadoras feministas, demonstrando assim,

que levam à conquista de Valência. Este cantar se

das mais simples às mais complexas, suas

encerra com um evento paradigmático para a

diferentes conotações.

nossa pesquisa, sendo então a narração dos

O Poema de Mio Cid, escrito em 1207, por um clérigo poeta de nome Per Abbat, encontra-se hoje dividido, para fins de estudo, em três núcleos

eventos que levam o Cid a aceitar as bodas de suas filhas com os Infantes de Carrión, através de uma mediação do soberano Afonso VI.

narrativos, aos quais, com frequência costumam

O terceiro cantar – A Afronta de Corpes –

ser denominados como: Desterro do Cid (Cantar I),

encerra a trama apresentando o desfecho da

KOCKA, Jürgen. Comparison and Beyond. History and Theory, n. 42, p. 39-44, fev. 2003. 2 SCOTT, Joan Wallach. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: _____. Gender and Politics of History. New York: Columbia University Press, 1999. p. 28-50. 1

afronta através da restituição moral e financeira do Cid, obtida por meio de um torneio realizado neste sentido, pela convocação das cortes em


G N A R U S | 14 Toledo. O Campeador consegue recuperar sua

quando esta se encontra pedindo proteção para El

honra e seu prestígio frente ao Soberano e às

Cid, que fora desterrado:

cortes. Posteriormente retornou à Valência onde viveu com alegria até a sua morte. É importante

[...] Longuinhos, cego de nascença, feriute com a lança, e o sangue correu por ela abaixo e ensopou-lhe as mãos e, tendo-as levado ao rosto, abriu os olhos, olhou ao redor e acreditou em ti, que assim o curavas de seu mal; senhor, que ressuscitaste do sepulcro, foste por tua vontade aos infernos, arrombaste suas portas e livraste os santos padres, tu que és rei dos reis e pai e senhor do mundo, a ti adoro e em ti creio de coração e rogo a São Pedro que me ajude a implorar-te para que guardes de todo o mal o meu Cid Campeador e, posto que agora nos separamos, permite-nos voltar e encontrar-nos nesta vida4.

frisar que o clérigo Per Abbat informa que as Filhas do Cid conseguem atar uma segunda boda, com infantes oriundos de uma família dinástica mais poderosa, sendo estes de Navarra. Os motivos desta consideração por parte do clérigo será parte importante de nossa análise.

Análise das Feminilidades: Baseados nos Estudos de Gênero, na ótica de Joan Scott, vemos como é necessário conceituá-lo enquanto uma categoria útil à História e não apenas à História das Mulheres. O Gênero é tratado tanto para História das Mulheres quanto para a dos Homens, podendo também ser usado nas relações entre homens e mulheres, dos homens entre si e igualmente das mulheres entre si. Esse conceito

foi

criado

para

opor-se

a

um

determinismo biológico nas relações entre os sexos, dando-lhes um caráter fundamentalmente social3.

Essa seria a única parte na qual Doña Jimena tem participação efetiva, e estaria relacionada com a visão dualística da época, quando não vistas como objeto de pecado estariam relacionadas a santas ou mártires. Contudo, a personagem histórica – e, neste caso, a não literária – Doña Jimena foi tão excepcional frente aos entraves de seu tempo, que após a morte de seu marido em 1099, a mesma conseguiu governar o território de Valência por quase três anos, rendendo-se apenas, quando não mais conseguiu resistir às ameaças almôadas.

No entanto, é necessário destacar o fato de que

Através da omissão desta situação no Poema de

não existe consenso sobre a definição de gênero.

Mio Cid podemos constatar que a intenção, ou

Assim, podemos considerar que o feminino e o

melhor, na visão destes clérigos ao exercer um

masculino se definirão em cada sociedade, ou seja,

papel ativo, governando suas casas e bens, elas, as

são conceitos em construção. Mas, em nossa

mulheres, estavam ultrapassando a função do seu

análise enfatizamos que utilizaremos a definição

sexo, normalmente fraco e tentado ao mal.

elaborada por Joan Scott.

Logo, percebemos que o modelo ideal feminino

Não obstante, o primeiro evento a ser analisado

para época e ditado por um grupo especifico, isto

no Poema com relação aos tipos de feminilidade é

é, eclesiásticos, baseava-se numa visão dualística

a descrição de uma Oração feita por Doña Jimena,

do feminino, ou visto como santa, comparada a figura de Maria, ou a responsável pela perdição da

3

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 20, nº 2, jul./dez/. 1995. p. 71-99

ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Tradução de Maria Socorro Almeida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. Versão em prosa. p. 14. 4


G N A R U S | 15 humanidade, se comparada a Eva. Sendo que, isso

voltada a procriação e ao respeito subserviente

era perpassado em escritos oficiais, já que estes

dos intentos de seu marido.

tinham por função o "exemplum". Esses tinham função pedagógica, ou seja, enunciam uma moral e todos mesmo os destinados a divertir, como, por exemplo, os romances, as canções, os contos satíricos,

tinham

a

função

de

ensinar.

É

interessante destacar que a partir de toda a descrição que se segue durante o momento desta oração, é interessante destacar como neste momento – e ademais em toda a gesta – há uma construção de relação matrimonial entre Doña Jimena e El Cid, envolta em caracteres puramente assexuados, não sendo possível assim, enxergar em

Tão substancial quanto este primeiro evento, encontramos nas referidas "Bodas das filhas do Cid" (O Segundo Cantar do Poema), com os Infantes de Cárrion, um evento revelador destas questões de Gênero no Medievo. Curiosamente, o casamento é realizado ainda que a despeito das desconfianças nutridas pelo Cid em relação àqueles jovens infantes. Este matrimônio, contudo, só aconteceu graças à mediação do soberano Afonso VI, o qual suserano frente ao vassalo Campeador se interpõem como verdadeiro responsável por aquela união.

momentos da gesta, demonstrações de carinho e amor

envolvendo

o

casal.

Apesar

de

se

preocuparem um com o outro, a relação descrita entre o Cid e sua esposa é sempre feita de cima para baixo, quase como uma relação de vassalagem que envolve o casal. Doña Jimena interpela seu marido, e o trata, em palavras e gestos, como os demais pertencentes do séquito

Na entrega das mãos de Doña Elvira e Sol para o Rei efetuar o matrimônio, podemos perceber imediatamente como as mulheres se tornavam um instrumento de feudalidade, isto é, verdadeira moeda de troca, mais um item do enumerado jogo de ampliação de poderes que envolviam as relações de vassalagens nas cortes. Desta maneira:

A partir de ahora las hijas del Cid constituyen – en la mente de todos, incluido el rey – los peones en la lucha por el poder: el Cid siente por ellas una gran ternura, pero conmovedoramente obedientes, las mueve en el tablero como hacía cualquier otro señor medieval con sus mujeres. La acción en la corte se basa en el perjuicio económico que ha sufrido el Cid, y el detrimento a su honor, no en el daño físico causado a las mujeres en Corpes, ni en el hecho de que ellas han perdido a sus maridos6.

cidiano. Podemos perceber segundo Smith:

Lo que más pone de manifiesto las cualidades morales del Cid en el poema es, quizá, la frecuente presencia de los personajes femeninos. Éstos no toman iniciativas y rara vez tienen voluntad propia, pero dicen mucho y reaccionan con frecuencia; a veces, incluso vemos al Cid a través de sus ojos5.. Esta menção nos ajuda a corroborar com uma hipótese que defenderemos no decorrer de nossa pesquisa, se relacionando ao fato de um clérigo ter escrito o Poema, ao idealizar o tipo de amor a ser propagado em Castela, ou seja, um amor espiritual, sendo que, podemos considera-lo vassálico. Evidenciando assim a costumeira função

Quando as filhas do Cid são ultrajadas após o casamento, sendo abandonadas na Floresta, além da honra do Cid ficar “manchada”, a sua relação de vassalagem e suserania com soberano fica

matrimonial da mulher no Medievo, quase sempre ANÔNIMO. Introducción. In: Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. p. 85-86. 5

ANÔNIMO. Introducción. In: Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. p. 80. 6


G N A R U S | 16

ele. Nessa situação, até pensaríamos que a atitude

felicidad o compatibilidad, a pesar del primer fracaso (3720-3724); pero lo contrario, repetimos, sería, más sorprendente en una narración medieval7.

imediata do Cid seria cingir a espada e defender

Com base em tudo que foi visto podemos

sua honra e a de suas filhas, frente aos Infantes de

assegurar que a Idade Média foi um período de

Carrión, mas o ideal que envolve o Cid é descrito

intensa misoginia. Ressaltando o papel que a Igreja

de forma tão perfeita que o clérigo descreve suas

Cristã Medieval teve para a propagação desta

ações de forma totalmente contrária. Logo,

visão. Dessa maneira, esta instituição estabeleceu

percebemos também como o clérigo atribuía

funções para a feminilidade, fundamentadas na

modelos de masculinidades no Poema.

sua concepção do que era certo para a sociedade.

estremecida, já que, se atribui a Afonso VI reparar um erro que, indiretamente pode ser atribuído a

É justamente por saber o peso de uma grande moeda política que tem em mãos, que o Cid consegue fazer com que

o

Podemos observar algumas destas no Poema do

Mio Cid, quando, por exemplo, a esposa e filhas do Cid necessitam de constante proteção, ou seja, estão

soberano

"voz

em Toledo, e naquele justiça

Castelhana,

este

Cid. Segundo, Georges Duby materna

este

Filhas do Cid, um casamento “melhor”, tornandoas senhoras dos Infantes de Aragão e Navarra, oriundos de uma casa dinástica mais poderosa e respeitada que os seus primeiros maridos. Com isso, mais uma vez, percebemos a intenção do

funerária, ao

que

reger as ‘obséquias’, os

no

patrocínio daquele matrimônio, consegue para as

“duas

parece, a dama para

reparando o erro que cometido

e

designavam,

último, de certa forma, havia

havia

funções da feminidade,

honra frente às cortes e soberano,

se

tratando das filhas do

consegue restituir sua ao

ativa",

essencialmente

momento, respeitando a

sob

custódia e não tinham

convocasse as cortes

toda

sempre

serviços que os ancestrais exigiam dos vivos”8. Este autor coloca em foco o ponto em que as mulheres não tinham escolha nas decisões tomadas para suas vidas. Eram tratadas como “joguetes” nas mãos dos homens, que poderiam ser seus pais, irmãos ou maridos.

clérigo ao demonstrar que casamento e amor não

Vemos ainda, que não deveria existir amor no

estariam necessariamente relacionados, e que o

matrimônio, já que ambos, marido e mulher,

dinheiro, basicamente, move toda a história do

deveriam apreciar somente à Deus. Nesse

Poema, pois as relações sociais e políticas estariam

contexto, os eclesiásticos apresentam o casamento

intercaladas. De maneira que:

se valora todavía la segunda boda de las muchachas por su posición social, no por la

ANÔNIMO. Introducción. In: Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. p. 80. 8 DUBY, Georges. Damas do Século XII: a lembrança das ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 21. 7


G N A R U S | 17 como um "mal-menor". Podemos ressaltar que no

dos documentos medievais que temos acesso

discurso dos teólogos sobre o amor, este residia na

foram escritos à luz do olhar masculino e clerical.

relação com Deus, sendo assim, sinônimo da busca

Este fator adicionado à misoginia eclesiástica

do

do

medieval, baseada, principalmente, na explicação

afastamento do mundo e da renúncia aos prazeres

bíblica para o surgimento da mulher, fez com que

associados à vida terrena. Amar significava

esta fosse considerada um ser inferior, portador do

entregar-se a Deus com alma piedosa e corpo

"pecado original". Em contraponto, o exemplo

imaculado. Desse modo, estes introduziram no

ideal seria o de Maria, mãe de Jesus, que

casamento os valores da ascese, equilibrando o

engravidará virgem e foi escolhida para ser mãe do

“mal” da cópula com o “bem” da oração e com a

redentor da humanidade.

aperfeiçoamento

espiritual

através

ideia de cópula justa. “Casar-se no Senhor” significava não apenas unir-se com a bênção sacerdotal, mas seguir as interdições do tempo sagrado e das épocas inférteis (menstruação, gravidez). O amor no casamento só era, assim, “verdadeiro” quando submetido à disciplina da continência e os valores da hierarquia9.

Por conseguinte, a imagem feminina era pensada diante de uma dualística representação, sendo por muitas vezes construída pelos clérigos, como um ser inferior, fraco e auxiliar do homem e que por isso necessitavam da presença masculina ao seu redor. Sendo assim, segundo a Igreja, a mulher só teria valor pela virgindade, nesse caso, estariam às

Assim, ressaltamos os modelos de feminilidade

santas e mártires. Então, a forma mais pura de

perpassados neste documento medieval, já que as

amor entre homem e mulher seria o amor

mulheres no Poema de Mio Cid são protótipos

espiritual, que propagava a abstinência sexual,

femininos típicos da Igreja Cristã Medieval: são

pois dessa forma não haveria contaminação dos

passivas, raras vezes têm vontade própria e sempre

corpos e as mulheres estariam mais próximas do

têm que obedecer a seu senhor, marido ou pai.

amor divino.

Nisto, o autor reflete os costumes de sua época, representando às mulheres como instrumentos para descrever o Cid como esposo e pai, lhe dando uma dimensão de amor, ternura e vida doméstica ao lado da guerra e da honra. Logo, os modelos que todas as mulheres deveriam seguir. Aliás não só modelos de feminilidade, mas padrões comportamentais para toda a sociedade.

Contrapondo esta visão clerical e misógina sobre a mulher, se revelava o Amor Cortês, o qual “tratase do amor exclusivo, total, apaixonado que um jovem cavaleiro devota a uma dama de uma posição mais elevada que a sua, na maioria das vezes casada, às vezes com seu próprio senhor”, de forma

que

o

amor

e

casamento

seriam

incompatíveis numa mesma esfera10. Falando especificamente da presença feminina

Considerações Finais: A figura da mulher na Idade Média, ainda hoje, é pouco abordada pela historiografia. Grande parte

no Poema de Mio Cid, este por sua vez escrito quando a sociedade necessitava de “modelos de comportamentos”, principalmente, em se tratando 10

VAINFAS, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Editora Ática, 1996. p. 50. 9

FLORI, Jean. A Cavalaria: A Origem dos Nobres Guerreiros da Idade Média; tradução Eni Tenório dos Santos. São Paulo: Madras, 2005 p. 146.


G N A R U S | 18 da Cavalaria. Observamos, enfim, qual seria o modelo ideal a ser seguido pelos sexos femininos e masculinos, isto é, como estes deveriam se comportar perante a sociedade.

Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. DUBY, Georges (Org.). História da Vida Privada 2: Da Europa Feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. DUBY, Georges. Eva e os Padres: Damas do Século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

Lívia Maria Albuquerque Couto é Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe e Integrante do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste).

Referências Bibliográficas: Documentos medievais impressos: ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Edición de Colin Smith. 22 ed. Madrid: Catedra, 2001. ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Tradução de Maria Socorro Almeida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. Versão em prosa. Obras de caráter teórico-metodológico: BUSTAMANTE, Regina Maria da Cunha; THEML, Neyde. História Comparada: Olhares Plurais. Revista de História Comparada, v. 1, n. 1, jun. 2007. Disponível em: <http://www.hcomparada.ifcs.ufrj.br/revistahc/ vol1-n1-jun2007/olharesplurais.pdf>. Último acesso em: 07/10/2007. KOCKA, Jürgen. Comparison and Beyond. History and Theory, n. 42, p. 39-44, fev. 2003. SCOTT, Joan Wallach. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: _____. Gender and Politics of History. New York: Columbia University Press, 1999. p. 28-50. _____. Prefácio a Gender and Politcs of History. Cadernos Pagu, n.3. 1994. p. 11-27. _____.História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: Unesp, 1992. p. 63-96. Obras gerais:

A Construção das Masculinidades em Castela no Século XIII: Um Estudo Comparativo do Poema de Mio Cid e da Vida de Santo Domingo de Silos. Rio de

ALVARO, Bruno Gonçalves.

Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de Filosofia e

FLORI, Jean. A Cavalaria: A Origem dos Nobres Guerreiros da Idade Média; tradução Eni Tenório dos Santos. São Paulo: Madras, p.141171, 2005.FLETCHER, Richard. Em Busca de El Cid. São Paulo: Unesp, 2002. TERESA LEÓN, María. Doña Jimena Díaz de Vivar: Gran Señora de Todos los Deberes. Madrid: Editorial Castalia, 2004. VAINFAS, Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Editora Ática, 1996.


G N A R U S | 19

Artigo

CAPOEIRA E LITERATURA: UM PANORAMA ENTRE A FICÇÃO E A REALIDADE. Por Hugo Sbano

Resumo O trabalho realizado tem como objetivo utilizar as fontes literárias que retratavam aparições de movimentos da capoeira no século XIX. Construindo um panorama com a nova historiografia que defende a tese de que a capoeira não é uma luta criada por negros contra o sistema escravista e que seu aparecimento se deve as grandes formações urbanas e não ao seu vínculo com o campo. Elaborando de forma sucinta uma idealização de como a sociedade via o capoeira e como ele transitava por ela.

D

iversas obras literárias registraram a

urbanas1, que ocorreram com a cidade do Rio de

presença de indivíduos praticantes de

Janeiro depois da vinda da família real e a ascensão

capoeira na capital do Rio de Janeiro.

de imigrantes.2

Obras como O Cortiço, Memórias de um Sargento de Milícias, Camélias e Navalhas são alguns registros literários que enquadram relatos históricos das atividades de capoeiragem na Corte. Foram

Através da análise das obras literárias que relatam aquela época como, por exemplo, neste artigo que visa os personagens retratados na sociedade do Rio de Janeiro no século XIX, podemos entender como a

mencionados, tanto nos jornais como nos periódicos literários, recortes de situações em que a capoeira estava interligada com as grandes movimentações

1

LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), P. 77 2 SILVA, Alberto da Costa - História do Brasil Nação Vol I, As marcas do período P. 30


G N A R U S | 20 presença da capoeira foi fundamental para o Brasil

Filtrando os fatos históricos e as representações

neste século. Pois, dessa forma, entendemos o que

literárias percebemos que a capoeira estabelece sua

Sandra Pesavento defende como representações

presença cotidiana na sociedade do século XIX.

construídas sobre o mundo e sua ligação com a

“Os literatos, por meio de seus textos, intencionalmente ou não, expressavam os dilemas e impasses vivenciados por sujeitos e grupos sociais em distintas situações, além de possibilitar o entendimento sobre os modos de vida, costumes e visões de mundo em um determinado período.”8

literatura3. No programa Roda Viva4 o escritor José Murilo de Carvalho relata que é extremamente necessário para um historiador realizar a leitura de obras literárias, e

Ao utilizarmos as obras literárias como fontes,

entendimento sobre um determinado momento

podemos enquadra-las para verificar que tipo de

histórico se torna mais abrangente.

mentalidade existia na sociedade e qual era a

pois através delas o campo de estudo

Segundo Sandra Pesavento toda a literatura da época

é

um

registro

histórico

sobre

uma

determinada visão que a sociedade tinha sobre

característica de um capoeirista do século XIX. Utilizando primeiro as referências fornecidas por Manuel Antônio de Almeida:

“Ser valentão foi em algum tempo ofício no Rio de Janeiro; havia homens que viviam disso: davam pancada por dinheiro, e iam a qualquer parte armar de propósito uma desordem, contanto que se lhes pagasse, fosse qual fosse o resultado. Entre os honestos cidadãos que nisto se ocupavam, havia, na época desta história, um certo Chico- Juca, afamadíssimo e temível.”9

aquele fato específico5. A grande movimentação de consumo literário de uma sociedade pode explicar seus sonhos, medos, receios e estado de mentalidade. Graças à nova variante de fontes primárias que as novas gerações de historiadores abarcaram a literatura ganha

Recortando este relato percebemos que Chico-

grande força de edificação histórica6:

“A problemática do “mundo como representação”, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e pensar o real. ”7

Juca deveria ser mais um valentão desordeiro como

3

PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 39 4 RODA VIVA. José Murilo de Carvalho. 22/09/2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=U8sM-Pwa8Sw>. Acesso em: 12, mar. 2015 5 PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 42 6 Idem, p. 37 7 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações, Lisboa: Difel, 1990, p. 23-24

8

AlMENDRA, Renata Silva – Entre Apartes e Quiproquós: Teatro e malandragem na capital do império, p.15 9 ALMEIDA, Manuel Antônio de – Memória de um Sargento de Milícias, p.76


G N A R U S | 21 muitos outros que existiam naquele século, todavia,

estruturam o tipo capoeira da época. Suas atividades

Chico-Juca no decorrer da história se enquadra nas

de baderna, habilidades em confrontos bélicos e

características dos temidos capoeiras:

qualidades

“O Chico-Juca era um pardo, alto, corpulento, de olhos avermelhados, longa barba, cabelo cortado rente; trajava sempre jaqueta branca, calça muito larga nas pernas, chinelas pretas e um chapelinho branco muito à banda; ordinariamente era afável, gracejador, cheio de ditérios e chalaças; porém nas ocasiões de sarilho, como ele chamava, era quase feroz. Como outros têm o vício da embriaguez, outros o do jogo, outros o do deboche, ele tinha o vício da valentia. Mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que lhe desse na cabeça, armava brigas e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse muito bem.”10

sedutoras

registram

as

grandes

características do capoeira do século XIX e da sua mentalidade12. Notamos que a presença do personagem já estava vinculada ao cotidiano da sociedade. Entretanto, ao passar dos anos, um sentimento de medo vai tomando conta da população que não estava interligada com os capoeiras, que eram temidos, valentes

e

muita

das

vezes

mortais.

Esses

personagens vão transformando a cidade carioca em duas13. A terra carioca recebeu uma grande massa populacional de vários locais e inclusive, de maior importância, os negros vindos da África.

Ao decorrer da obra, Chico-Juca é requisitado para A capoeira tem uma grande ligação com os

resolver um problema pessoal de cunho amoroso do personagem

chamado

Leonardo

que

estava

necessitado das habilidades de combate e confusão que o mestiço sabia aplicar. Entretanto, dentro do

escravos, pois mais do que uma prática de pessoas marginalizadas, negras, mestiças e pobres ela estava atrelada e arraigada às práticas escravas14. Segundo Carlos Eugênio Líbano, a capoeira tem

diálogo na leitura é que enquadramos o personagem como um capoeira:

uma relação total com a expansão do meio urbano e

“Estava na porta da taverna sentado sobre um saco quando apareceu-lhe o Leonardo. - Olá mestre Pataca! Disse ele apenas o viu, pensei que ainda estava de xilindró tomando fortuna por causa da cigana... - É mesmo por causa desse diabo que te venho procurar. - Homem, cabeçada e murro velho sei eu dar, porém fortuna! Nunca tive tal habilidade. - Não se trata de fortuna, disse-lhe o Leonardo baixinho, trata-se de pancada velha.11 Observamos que a relação de atitudes, vestimentas e questões, tanto biológicas como psicológicas, 12 10 11

Idem, p. 76 Ibidem, p. 77

LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), P. 36 13 Idem, p.232 14 Ibidem, P.126


G N A R U S | 22 sua criação foi estabelecida através da necessidade

para solucionar alguns problemas, exemplo disso, a

que o escravo de ganho possuía de sobreviver ao dia

Revolta dos Mercenários e a Guerra do Paraguai17.

a dia nas ruas da cidade.

Efeito esse que criou um grande fortalecimento

Qual necessidade existia para um escravo desenvolver um método de sobrevivência nas terras cariocas? A rixa dos próprios negros vindos de

sobre a presença que a capoeira tinha como força bélica da época. O medo estava registrado dentro da população:

Os escravos de ganho tinham como ofício principal

“Além disso, o Rio revelava-se uma cidade ameaçadora, mormente nesse horário tardio. A área era insegura, e pos capoeiristas, quase sempre mulatos ou mestiços, estavam por todos os lados, demonstrando estar permanentemente interessados em se confrontar com alguém18.”

as atividades de lucro na cidade15, essas atividades

À noite as ruas da cidade carioca ganhavam uma

davam ao escravo uma livre movimentação nas ruas,

presença mais fortificada das práticas de capoeira.

facilidade para trocar informações com seus

Não incomum os confrontos pessoais eram, em sua

semelhantes

confrontar

maior parte, resolvidos ao véu dos ares noturnos,

determinados desafetos. Também não esquecendo

pois os praticantes poderiam se movimentar e fugir,

que pela necessidade de pagamento ao senhor, os

caso fosse necessário, com maior facilidade.

diversas partes do continente africano, reforçadas pelas novas tendências de superioridade de um escravo contra o outro, são alguns dos fatores que impulsionaram uma relação de conflito entre eles.

e

também

para

escravos em diversos momentos lutavam entre si para dominarem os pontos lucrativos da cidade, por exemplo, as fontes de água, locais de feira e com maior aglomeração social para obter bons lucros16.

Na obra de J. Natale Netto, Camélias e Navalhas, também são retratados a grande presença das maltas de capoeira relacionada com as atividades do período

regencial.

Momento

este,

deveras

A mentalidade da época registrada no livro de

complicado, da política da corte que passava por

Manuel Antônio de Almeida exemplifica que existia

diversos conflitos, em sua maior parte, pela

uma relação entre os praticantes de capoeira e a

necessidade de uma decisão entre qual caminho

sociedade.

político o Brasil iria seguir19. Ocorrendo nesse

Demonstração

essa,

muito

bem o

momento uma maior preocupação por conta de

personagem Leonardo tinha ao recrutar os serviços

existirem duas maltas de capoeiras que possuíam um

de desordem do Chico-Juca.

grande poder nas ruas. As cores brancas da malta

evidenciada,

feita

pela

necessidade

que

A relação que existia entre a sociedade e as práticas de capoeira eram bem presentes. Inúmeras foram às vezes em que os membros do Estado tiverem que recrutar as habilidades dos capoeiras 15

SILVA, Alberto da Costa - História do Brasil Nação Vol I, As marcas do período, P. 45 16 LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), P. 111

17

SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres,p.19 18 NATALE, Netto J. Camélias e navalhas: histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX, p.49 19 GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (1888-1937), p.18


G N A R U S | 23

- Canalha! Berrou possesso. E ia precipitarse em cheio sobre o mulato, quando uma cabeçada o atirou no chão.

dos Nagoas e o vermelho dos Guayamus ficariam visíveis e costumeiros pelos anos do século XIX20:

“No jornal eram comuns os comentários sobre a capoeira, e Teodoro sabia que, de certa forma, a cidade era dominada por dois grandes grupos de capoeiristas: os nagoas, ligados aos monarquistas do Partido conservador, e os guaiamus, adeptos dos republicanos do Partido Liberal. Os primeiros usavam como distintivo, a cor branca; os segundos, a vermelha.21”

- Levanta-te, que não dou em defuntos! Exclamou o Firmo, de pé, repetindo a sua dança de todo o corpo.

O confronto e o pavor, demonstrados pelos

As atividades das maltas possuíam uma grande e

membros que estavam presenciando o conflito,

conturbada ação na sociedade. O medo era

retratam o temor causado pelo capoeira quando

alastrado de forma quase que potencial dentro da

este entrava em ação. Era costumeiro o uso dos

cidade do Rio de Janeiro. Não muito incomum era a

golpes peculiares, registrados na época, como a

grande presença de capoeiras nas forças policiais ou

cabeçada, a rasteira, o pontapé e a tapoa24. A

de certa forma da mão leve que o Estado tinha

navalha era outra das grandes e mais perigosas

quando o assunto era controlar a presença e

surpresas dos capoeiristas, uma das armas mais

O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na orelha.”23

O pânico e medo eram

temidas, pois a grande habilidade que os capoeiras

características causadas na população evidentes na

tinham ao utilizar este objeto era o temor da

aparição que o personagem Firmo tem registrado no

sociedade. Armamento este que foi anexado pela

livro O Cortiço:

cultura

movimentação da

capoeira22.

“– Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! Respondeu Firmo, frente a frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e bamboleando todo o corpo e meneando os braços como preparado para agarrá-lo.

escrava

através

da

aglutinação

dos

portugueses marginalizados que foram inseridos no mundo da capoeira:

“Então o mulato, com o rosto banhado de sangue refilando as presas e espumando de cólera, erguera o braço direito, onde se viu cintilar a lâmina de uma navalha.

Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com um soco armado; o cabra, porém deixou-se cair de costas, rapidamente, firmando-se nas mãos, o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco passou por cima, varando o espaço enquanto o português apanhava no ventre um pontapé inesperado.

Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa, cheia de pavor. Mulheres e homens atropelavam-se caindo uns por cima dos outros. Albino perdera os sentidos. Piedade clamava, estarrecida e em soluços, que lhe iam matar o homem. A das Dores soltava censuras e maldições contra aquela estupide de destriparem por causa de entrepernas de mulher25.” Notamos dentro destes registros literários grandes

20

SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres,p.18 21 NATALE, Netto J. Camélias e navalhas: histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX, p.206 22 MATTOS, Augusto Oliveira. Guarda Negra, A redentora e o Ocaso do Império, p.96

informações sobre como era vista e temida o uso das 23

AZEVEDO, Aluísio- O Cortiço, P.125 SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres,p.19 25Idem, p.126-127 24


G N A R U S | 24

parecia responder à música bárbara que entoavam lá fora os inimigos.26”

armas e das artes da capoeira pela sociedade da época. Existiam muitos outros talentos e atividades que os capoeiristas exerciam dentro da sociedade, porém o que mais assustava a população em si não era somente a presença desses indivíduos. O fato de que ao arrumar confusão com um praticante, os membros da sua malta também iriam ser os inimigos

Notamos que a grande formação das maltas de capoeira traziam uma identidade de pertencimento aos seus harmoniosos grupos, pois em sua maior relação

era

de

criar

um

sentimento

de

pertencimento e identidade frente as novas situações que foram ocorrendo no Rio de Janeiro e na sua sociedade.27

do desafeto criado. Registrando esta situação Aluízio Azevedo relata o acontecimento em outra parte do seu livro, após o confronto entre Jerônimo e Firmo, o

Conclusão

português recuperado da navalhada que levou no primeiro combate vai buscar revanche e consegue liquidar o seu oponente amoroso, entretanto ao matar Firmo, seu outro companheiro de malta,

O grande impacto da evolução urbana também foi registrado nas obras literárias a partir do momento em que a cidade vai crescendo e a capoeira vai se unindo a população em expansão.

Porfiro junta sua malta para ir atrás do português e aí temos um registro de como era um confronto de maltas visto de acordo com a mentalidade do escritor:

“Mas, no melhor da luta, ouviu-se na rua um coor de vozes que se aproximava das bandas do Cabeça de Gato. Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, para vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de Malta. Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de um improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do ferro, pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só partido que ia ser atacado pelo partido contrário. Os que se batiam ainda há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas da mão o sangue das férias. Agostinho, encostado ao lampião do meio do cortiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe

Arraigada a formação da cidade, como defende o historiador Carlos Eugênio Líbano, a capoeira possuía fatores que estabeleciam uma relação de sedução com seus praticantes, por exemplo, o sentimento de inclusão dentro de uma camada social, sentimento de pertencimento este que estava estabelecido

no

grupo

de

capoeiragem

(posteriormente a sua malta), o temor que o indivíduo criava dentro da sociedade e suas regalias frente ao seu senhor, afinal era fundamental para o senhor ter um escravo que sobrevivesse nos climas tensos em que a cidade estava:

26 27

AZEVEDO, Aluísio- O Cortiço, p.190-191 GOMES, Flávio, Negros e política, p. 41


G N A R U S | 25 com padrões de hierarquia que era estabelecido na Corte30. Segundo Pesavento, podemos entender uma sociedade de acordo com a sua literatura:

“A literatura é tomada a partir do autor e sua época, o que dá pistas sobre a escolha do tema e de seu enredo, tal como sobre o horizonte de expectativas de uma época31.” Observando as obras literárias identificamos que a capoeira tinha muito mais um papel de interesses de cunho territorial e status do que uma simples luta/dança, criada pelos negros escravos para lutar como forma de resistência contra as garras da

“Para os escravos, a complacência senhorial logicamente era bem-vinda. Ter um escravo capoeira não era tão mal para o dono. Em um clima de violência urbana crônica - como vimos nos idos do período joanino -, as habilidades da capoeira forjavam um cativo que sabia se defender, podia ir para as ruas com mais segurança de que voltaria inteiro, em vez de um débil boçal, incapaz de entrar numa turbulenta fila de chafariz.28 Assim, como é sugerida pela historiadora Sandra Pesavento, a relação de aproximação entre a Literatura e a História estrutura que ambas guardam distintas possibilidades de serem interligadas para analisarmos o mundo real29.

Através

dessas

obras, podemos buscar outras formas de entender como a nova historiografia retrata os estudos a respeito das práticas e desenvolvimentos da capoeira no Rio de Janeiro. Sua aparição está diretamente ligada com os meios sociais urbanos, o sentimento

de

pertencimento

e

a

relação

senhor/escravo que existiam dentro da sociedade

28

LÍBANO, Eugenio Carlos – A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850), p.502 29 PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 80

escravidão. Hugo Sbano é Graduado no curso de Letras Português/Literatura e História- Faculdades Integradas Simonsen. Vinculado ao Gelhis (Grupo de Estudos da Licenciatura em História).

Referências ALMEIDA, de Manuel Antônio. Memórias de um sargento de milícias - São Paulo: Melhoramentos Ltda Ed., 2011. NATALE, Netto J. Camélias e navalhas: histórias de amor e sexo num cenário de grandes modificações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX. - Barueri, SP: Novo Século Editora, 2012. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Porto Alegre: L&PM, 1998. GOMES, Flávio dos Santos. Negros e política (18881937). - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural – 2. ed.2.reimp- Belo Horizonte: Autêntica, 2008. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850) 2ª ed. rev. E ampl. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. 30

FARIA, Sheila de Castro- Identidade e comunidade escrava: um ensaio 5 31 PESAVENTO, Sandra Jatahy, História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 83


G N A R U S | 26 MATOS, Augusto Oliveira. Guarda Negra: a redemptora e o acaso do império. - Brasília: Hinterlândia Editorial, 2009. ALMENDRA, Renata Silva. Entre apartes e quiproquós: teatro e malandragem na capital do império. – Brasília: Hinterlândia Editorial. 2009. SILVA, e Alberto da Costa. História do Brasil Nação: 1808- 2010: Volume 1: Crise colonial e independência (1808-1830). – Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. CARVALHO, de José Murilo. História do Brasil Nação: 1808-2010: Volume 2: A construção nacional (1830-1889). – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. SCHWARCZ, Lilia Moritz. História do Brasil Nação: 1808-2010: Volume 3: A Abertura para o mundo (1889-1930). – Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

MOURA, Jair. Evolução, apogeu e declínio da capoeiragem no Rio de Janeiro, Cadernos Rioarte Ano I nº 3. Rio de Janeiro: 1985. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A negregada instituição, os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, Prefeitura do Rio de Janeiro, 1994. MARCOS, Luiz Bretas "Navalhas e Capoeiras – Uma Outra Queda", Ciência Hoje – Especial República, Rio de Janeiro, n. 59, novembro de 1989. SOARES, Carlos Eugenio Líbano. Nossa História. Golpes de Mestres. Biblioteca nacional, São Paulo, 2004. FARIA, Sheila de Castro. - Identidade e comunidade escrava. Um ensaio. CNP. 2006. 122-146. CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações, Lisboa. Difel 1990.


G N A R U S | 27

Artigo

A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO: A ROMANIZAÇÃO Por Alexandro Almeida Lima Araujo Claudia Patrícia de Oliveira Costa Resumo: O presente artigo tem como finalidade abordar um conceito bastante difundido durante o século XIX, a Romanização. A historiografia do século XIX construiu e apontou para uma visão de imposição de um ethos romano durante e após o processo de expansão territorial da capital do Imperium Romanum¸ Roma, sobre os demais grupos étnicos ditos “incivilizados”. Logo, Roma seria a luz civilizatória e as demais culturas vizinhas do Império seriam “inferiores”, necessitando, assim, da “luz civilizatória” dos romanos, uma cultura “superior”. Portanto, houve a “necessidade” de romanizá-los. Essa construção do XIX foi uma justificativa para que as potências européias buscassem e dominassem territórios. Por exemplo, as pinturas do século XIX foram meios usados para sustentar e representar uma política de dominação através de imagens de combates de gladiadores, naumáquias e venationes, em que os anfiteatros e as arenas romanas seriam utilizados como um locus de romanização. Entretanto, nesta conjuntura, a imposição e homogeneidade cultural de uma “Roma superior” ficam apenas no campo do discurso suscitado pelo XIX, haja vista que, na prática, os grupos culturais díspares que foram ou se deixaram incorporar ao Império não deixaram de cultuar seus deuses, de falar em sua língua nativa, ou de praticar sua cultura de modo geral, para abraçar à romana. Neste sentido, a heterogeneidade cultural se fez presente no Imperium, que se estendeu de um domínio de Roma sobre a Península Itálica, a posteriori, da península itálica às demais regiões que margeiam o mediterrâneo e além. Palavras-chave: Romanização. Ethos romano. Heterogeneidade cultural. Império romano.

O

Império romano abrangeu áreas bem longínquas de sua capital, Roma. Houve, primeiramente, uma “extensão de Roma à Itália, depois à

bacia mediterrânea e além”. (CABANES, 2009, p. 195). De acordo com Guarinello, “o Império foi o resultado de um lento processo de conquista militar e centralização política, primeiro da cidade de Roma sobre a Itália, depois da própria península sobre as demais regiões que margeiam o Mediterrâneo”. (2009, p. 149). O processo de expansão do Império foi fundamental para

estudiosos de Antiguidade Clássica, no século XIX, criarem meios que justificassem o interesse de grupos culturais nos processos de Imperialismo e partilha afro-asiática. Por exemplo, a França se utilizou do discurso de Romanização para legitimar sua ação durante a busca incessante imperialista do XIX. “Assim, as nações que se formavam no século XIX como Inglaterra, França ou Itália, só para citar alguns exemplos, buscaram no Império romano

sua maior

fonte

de

legitimação”.

(GARRAFFONI e SANFELICE, 2013, p. 67).


G N A R U S | 28 A

historiografia

“revisionista”

ou

“nova

Imperial, se deu, segundo a historiografia

historiografia”, da segunda metade do século XX e

“tradicional”, mediante o poder bélico e militar

a mais recente, do XXI, tem se preocupado em

romano. Essas conquistas eram fomentadas pelas

rever certos conceitos construídos por uma

legiões do exército romano, a fim de incorporar ao

historiografia “tradicional”, do século XIX e da

Império os povos subjugados e, assim, romanizá-

primeira metade do século XX. O arcabouço

los. Muitos desses grupos conquistados eram

conceitual defendido por historiadores do século

levados ao “centro” da Romanização: o anfiteatro.

XIX foram difundidos e incorporados por uma parte da historiografia do início do século XX. A

linha

mais variadas etnias. Por conseguinte, para a

especificamente aquela do XIX, estabeleceu um

historiografia do XIX, o anfiteatro era o local ideal

Romanização.

para Roma impor sua cultura aos que não eram

Romanização, portanto, “é um termo que surge na

romanos. Assim, no que concerne o combate

historiografia de fins do século XIX para significar

gladiatorial, os nomes de algumas categorias de

o contato entre os Romanos e os outros povos”.

gladiadores – gaulês e trácio, por exemplo – que

(MENDES, 2007, p. 2). Esse era o período em que

lutaram nas areias dos edifícios de pedra no

se assinalava a necessidade de criação de um

período imperial seriam orquestrados para se

discurso legitimador para que as potências

referenciar aos territórios agora sujeitados por

colonialistas

Roma: as regiões da Gália e da Trácia.

conhecido

europeias

“tradicional”,

onde, neste âmbito, se reuniam guerreiros das mais

conceito

argumentativa

Por que o anfiteatro? Porque esse era o local

como

conquistassem

áreas

territoriais de grupos culturais considerados inferiores, como africanos, indígenas americanos ou asiáticos. Logo, Roma e seu processo civilizacional expansionista foram atrelados aos discursos dessas nações europeias para galgarem e controlarem novos territórios, sob o discurso de se levar a “civilização aos incivilizados”. Nas palavras da historiadora Norma M. Mendes:

discursos

ideológicos

das

como batalhas navais, que ocorriam com o anfiteatro parcialmente inundado, havia uma simbologia de representação pautada numa ideologia de domínio romano através do poder militar

e

naval.

Segundo

a

historiografia

tradicional do século XIX, as naumáquias eram, portanto, encenações de batalhas vencidas por

A experiência imperialista romana foi apropriada pelos

A respeito das naumáquias, também conhecidas

potências

coloniais, que a utilizaram para justificar e legitimar o direito de conquista, vinculando a ação imperialista da Inglaterra, França, Itália como herdeiras de Roma e como uma forma legítima de disseminar entre os nativos o que os Romanos chamavam de civilização. (MENDES, 2007, p. 2). Neste sentido, a imposição cultural romana

Roma, demonstrando aos espectadores toda a glória que o Império possuía, de ser superior a quaisquer outras culturas e exércitos. Do mesmo modo, não podemos nos esquecer das

venationes, espetáculos em que animais exóticos eram exibidos nos anfiteatros para um público que, em alguns casos, jamais tinha visto tais animais, o que causava surpresa. Esses animais, provenientes

das

mais

variadas

regiões

sobre demais grupos étnicos culturais que não

conquistadas por Roma durante o processo de

falavam o latim e que circundavam a Roma

expansão territorial eram caçados nas arenas por


G N A R U S | 29

venatores: homens livres ou escravos que atuavam

modos de agir e pensar para abraçarem o modo

como caçadores. Muitos animais foram mortos

comportamental dos romanos.

neste tipo de espetáculo e a simbologia presente era o controle do civilizado sobre o animal, tido como selvagem e incivilizado. Logo, o domínio de um Império sobre territórios que possuíam amplamente animais selvagens, como o norte da África,

e

a

captura

destes

para

serem

transportados até Roma para fazerem parte dos espetáculos públicos fornecidos pelos Césares, seriam

formas

de

Romanização.

Portanto,

combates de gladiadores, batalhas navais e caçadas demonstrariam ao público o controle e domínio sobre “o outro”.

A ROMANIZAÇÃO E O DISCURSO HOMOGENEIDADE CULTURAL.

DE

Renata Garraffoni (2006) destaca as potências europeias que, de uma forma ou de outra, buscaram na Roma expansionista, um modelo eficaz de militarização e de conquistas de novos territórios. Glaydson José da Silva (2005) concorda com Garraffoni, ao denotar que países europeus buscaram uma legitimação para conquistar novos territórios. Tal legitimação foi construída tomando Roma como modelo, isto é, Roma transmitiu um

Com efeito, abordaremos neste artigo, além da

ideal de missão imperial civilizatória para os

historiografia, três pinturas que demonstram estas

“europeus civilizados” (SILVA, 2005, p. 93). Regina

três formas de espetáculos. Em nossa opinião, as

Bustamante também concorda com o olhar

pinturas do XIX também foram formas de

interpretativo esboçado pelos dois historiadores e

reafirmar um discurso de romanização, segundo o

afirma que, no decorrer do “processo de

qual, Roma era ”a senhora toda poderosa”, padrão

‘civilização/romanização’, Roma parecia também

a ser copiado pelos europeus daquele século.

ter transmitido seu próprio espírito imperial para

Desta forma, vamos analisá-las segundo a ótica

os europeus. Procurava-se estabelecer uma linha

prevalente na historiografia mais recente, já que as

de continuidade entre os expansionismos romano

referidas imagens estão imbuídas e fazem parte de

e o europeu” (BUSTAMANTE, 2006, p. 110).

um discurso tido, para nós, como tradicional. Para tanto, nossa hipótese está ancorada na visão de que não havia uma unidade cultural no império1. Havia grupos heterogêneos que dividiram espaço e não necessariamente deixaram de lado seus

Dessa forma, era necessário acreditar e difundir a ideia de que Roma criou uma política de homogeneidade cultural através das conquistas e que a Europa era a continuidade desta política de conquista e eliminação de heterogeneidades culturais mediante um forte poderio militar. Assim, “a cultura clássica, em especial os textos

1

É importante ressaltar que “o vasto território que compôs a sociedade romana dos séculos I e II d. C. circundava todo o mar Mediterrâneo e integrava inúmeras regiões anexadas ao longo do processo de conquista, com grande variedade de povos. Esse imenso império emaranhado de latinos, gálatas, egípcios, béticos, germanos, dácios, gregos, entre tantos outros, apresenta diversidades jurídicas, econômicas, étnicas, de idade, sexo, profissão e língua que acabam sendo camufladas e simplificadas pela expressão ‘povo romano’”. FEITOSA, Lourdes Conde. Masculino e Feminino na sociedade romana: os desafios de uma análise de gênero. In: CANDIDO, Maria Regina. (org.). Mulheres na Antiguidade: Novas perspectivas e abordagens. Rio de Janeiro: UERJ/NEA; Gráfica e Editora – DG ltda, 2012. p. 208

produzidos pelos antigos romanos da elite imperial, foi importante no período de formação dos estados nacionais por apresentarem um caráter de autoridade e poder”. (HINGLEY apud GARRAFFONI e SANFELICE, 2013, p. 68). Lourdes Conde Feitosa (2006) demonstra a importância de novas abordagens críticas acerca


G N A R U S | 30 do entendimento propagado por pesquisadores

traços culturais de uma sociedade, mesmo se essa

adeptos do conceito de Romanização. Em

sociedade esteja contida em uma sociedade

Gladiadores na Roma antiga: dos combates às

geográfica e politicamente mais ampla. “O

paixões cotidianas (2005), Garraffoni se desvincula

chamado ‘processo de romanização’, muito

destas linhas normativas, refutando visões como

debatido atualmente, nunca teve a profundidade e

“pão e circo”2 e “romanização”. Segundo Feitosa

extensão que lhe atribuía à historiografia mais

(2006), a respeito da abordagem da Garraffoni, “as

antiga. Durante séculos, povos montanheses

interpretações [classicistas ou tradicionais], em sua

mantiveram-se arredios à influência romana, no

imensa maioria, apresentam os combates [de

próprio coração do Império”. (GUARINELLO, 2006,

gladiadores] como

e

p. 14-15). Guarinello (2010) aprofunda, ainda, essa

homogêneo, relacionados ora a uma ‘política do

discussão em um ensaio intitulado Ordem,

pão e do circo’, ora ao processo de ‘romanização’”

Integração e Fronteiras no Império. Nesse ensaio,

(FEITOSA, 2006, p. 213).

o autor aborda o conceito de romanização e seu

um fenômeno

único

No entanto, consideramos que, esse “domínio” militar e político não significam dizer que as etnias e culturas diferentes que Roma encontrou durante o processo de expansão foram extirpadas, sobrepondo-se assim uma “cultura soberana”, a

desdobramento no pensamento europeu do século XIX. Ao discutir o conceito de identidade, defende a tese de que as “resistências enfrentadas pelo Império contra diferentes populações” não devem ser reduzidas. (GUARINELLO, 2010, p. 114).

romana. “Visto em seus próprios termos o Império

É neste sentido que os historiadores Erick Otto

Romano não circunscrevia uma organização social

Gomes e Luciane Munhoz de Omena (2014)

homogênea e singular, mas agrupava ‘sociedades’

pautam-se, haja vista que o Imperium em nenhum

completamente distintas”. (GUARINELLO, 2009, p.

momento

149).

universalmente homogêneo, pelo contrário, pois

A pesquisadora Marina Regis Cavicchioli (2009) afirma, por exemplo, que “Pompéia foi formada por vários povos e várias culturas – assim como a própria Roma, por uma fusão e mescla de identidades, (CAVICCHIOLI,

provavelmente 2009,

p.

61).

fluidas”. Essas

novas

interpretações derrubam a ideia de romanização, pois não há uma cultura superior que anule demais

as

foi

constituído

heterogeneidades

dos

em

um

povos

“manobra política para a manutenção da ordem e afastar a plebs das decisões políticas, [em que] as autoridades davamlhe o pão e o circo. Esta concepção se enraizou no senso comum e presenciamos hoje, no público não especializado, formulações de que a plebe era sanguinária, despolitizada, ociosa e desinteressada pelo trabalho”. OMENA, Luciane Munhoz de. Os ofícios: meios de sobrevivência dos setores subalternos da sociedade romana. In: Revista de História e Estudos Culturais. vol. 4. Ano 4. nº 1. Jan/Fev/Mar. 2007. p. 12. Entretanto, é “impensável imaginá-los como setores sociais omissos, preocupados apenas com o seu pão e divertimento, vivendo de forma ociosa, e dependentes das distribuições de trigo oferecidos pelo imperator ou elite”. et al. Idem. p. 13.

suas

particularidades linguísticas, culturais, militares, religiosas, entre outras, não foram sobrepujadas por um domínio cultural civilizacional romano. Neste sentido “os elementos culturais poderiam sobreviver na pluralidade, um ao lado do outro, levando-se em consideração a coexistência de identidades discrepantes ou paralelas”. (OMENA e OTTO GOMES, 2014, p. 66). Com efeito:

2

e

meio


G N A R U S | 31

Pollice Verso, de Jean-Léon Gérôme, 1872, Óleo sobre tela. (In: ROBERT, 1995, p. 114-115.) Era

um

Estado

profunda

Dessa forma, a identidade romana não era

heterogeneidade. A unidade linguística conferida

fechada e/ou única, ou seja, não pode ser

pelo uso oficial e literário do latim e do grego era

considerada homogênea e unificada, pois a

apenas aparente e superficial. Latim e grego eram,

identidade

com efeito, línguas francas, usadas pelas elites e

GARRAFFONI, 2005.). Isto é, “o Império Romano

pela administração. Mas as populações locais

não exigiu que indivíduos ou mesmo comunidades

continuavam se expressando em seus idiomas de

adotassem uma identidade distintamente romana

origem: o celta na Gália, o púnico no norte da

pela exclusão de qualquer outra identidade. As

África, o copta no Egito, o aramaico no Oriente

identidades locais sobreviveram e floresceram sob

Próximo,

início,

o Império”. (LAURENCE apud MENDES, 2011, p.

uniformidade étnica ou cultural. O império

429). Logo, “Roma, surgida de uma união de povos,

estendia-se por dezenas de povos e comunidades

sabia conviver com as diferenças”. (FUNARI, 2011,

que

p. 86). Dessa maneira, “diante da diversidade

etc.

marcado

Tampouco

preservaram

suas

por

havia,

tradições

de

culturais,

é

plural3.

(CARVALHO,

2009;

alimentares, familiares, suas roupas e moradias, seus modos de enterrar os mortos, suas crenças religiosas, em suma, suas culturas particulares. (GUARINELLO, 2009, p. 150-151. Grifo nosso.).

3

“(...) os historiadores mais antigos, da primeira metade do século XX, descreviam a aparente homogeneidade cultural do Império através do conceito de romanização e helenização, como se as populações conquistadas tivessem acolhido de braços abertos as benesses de civilizações superiores: romana no Ocidente, grega no Oriente. São idéias ultrapassadas”. GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013. p. 143.


G N A R U S | 32 socioeconômica, política e cultural das províncias

houvesse a manutenção de sua vida. Vejamos que,

e no interior das províncias, houve mais de um tipo

nesse sentido, o levantar dos dedos pedindo para

de romano”. (MENDES, 2011, p. 429).

poupar sua vida procura representar o olhar intelectual do século XIX sobre a perspectiva

A ROMANIZAÇÃO E AS REPRESENTAÇÕES DOS ESPETÁCULOS GLADIATÓRIOS NAS PINTURAS DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX.

romana da morte digna, não temer e não fugir de um destino iminente, ao sucumbir corajosamente a um adversário mais forte, respeitando a honra do

Os combates de gladiadores foram formas que,

combate. Nessa configuração de se estabelecer

segundo alguns autores do século XIX e XX,

uma identidade dos cidadãos romanos está a

demonstravam o “ideal do ser romano” e,

aversão a ser covarde. Bem como o gladiador que

consequentemente,

vence a batalha representa o ser destemido e

a

efetivação

de

uma

romanização. Ou seja: os combatentes assumiam e divulgavam características de como deveria ser um romano. Por exemplo: o desprezo pela morte, não fugir do seu destino ao perder uma luta na arena e oferecer o pescoço a seu adversário, de forma honrosa, para que fosse cravado o gládio e ter uma morte digna, caso assim fosse decidido pelo público, que se manifestava acenando com o polegar para baixo ou para cima. O combate apresentava em sua essência a virilidade, que também estava ligada a um valor relacionado ao

ethos romano. A imagem a seguir, uma pintura do século XIX, representa a leitura que se fez acerca dos jogos de gladiadores e sua representatividade enquanto poder de fomentar um ideal identitário romano.

estendidos

A mensagem visual representada pelos jogos de gladiadores

nos

remete

ao

sistema

de

representações que definiam o cidadão romano, e consequentemente, o projeto imperial romano. A sociedade romana era altamente militarizada e necessitava demonstrar aos concidadãos e aos estrangeiros presentes às arenas seu poderio bélico, sua repugnância à covardia, a destreza, técnica,

coragem

e

habilidade

de

seus

combatentes. Compreendemos este simbolismo presente nos Jogos como mensagens visuais para a população, já que demonstram entre outros signos a conquista frente aos demais povos – que eram trazidos e representados nas arenas como categorias de combatentes – e mantém viva a

A construção de uma identidade romana é percebida

corajoso, isto é, o ser “romano”. Dessa maneira:

na do

imagem

quanto

gladiador

aos

dedos

caído,

uma

representatividade de súplica ao público para que

historicidade

do

povo

romano

através

de

representações de batalhas antigas. (FERREIRA, 2006, p. 24).


G N A R U S | 33 A conquista e expansão estariam atreladas ao

eram superiores frente a outros grupos étnicos. Em

conceito de Romanização, já que os povos

outras palavras, a cultura romana se impondo

“conquistados”, alguns deles tidos como inimigos

sobre outras culturas e isso estava em evidência

de Roma, tornaram-se categorias de gladiadores,

através dos prisioneiros de guerra que eram

por exemplo, os trácios4 e mirmiliões, também

capturados no processo de expansão do Império e

conhecidos como gauleses5. Neste sentido, para os

levados para o as arenas dos anfiteatros.

autores adeptos do conceito de Romanização, há um domínio sobre o outro, evidenciando,

Outro ponto importante é a representatividade das

batalhas

navais

que

aconteciam

nos

La Naumaquia, de Ulpiano Checa, 1894. Fonte: http://www.thecult.es/Arte/ Ulpiano -Checa-el-pintorepico.html portanto, a cultura e a sociedade romana como as

anfiteatros. Essas eram representações de batalhas

mais fortes. Isso demonstraria o quão os romanos

que foram vencidas por Roma sobre territórios até então dominados por outros grupos socioculturais.

4

Armado de um pequeno escudo redondo, capacete, duas perneiras, braçadeira direita e uma espécie de sabre curto e curvo (sica). Cf. HARCQUARD, G. DAUTRY, J. MAISANI, O. Guide Romaine Antique. Apud. COSTA, Claudia Patrícia de Oliveira. Táticas e Estratégias: o gladiador na Roma imperial de meados do I. d. C. a meados do II d. C. Rio de Janeiro, 2005. p. 57. Segundo Jérôme Carcopino, “os trácios se protegem com o escudo circular (parma) e manejam o punhal (sica)”. CARCOPINO, J. A Vida Cotidiana: Roma no apogeu do Império. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990. p. 279. 5 Era relativamente pouco armado. Pequeno escudo retangular e um capacete em forma de um peixe (murmo), que justificava sua denominação. Ibidem. Segundo Jérôme Carcopino, “os murmillonnes, usam capacete com a figura de um peixe marinho, a murma”. Ibidem.

Essa encenação de uma batalha épica que acontecia dentro do anfiteatro demonstrava o poderio militar romano sobre as sociedades que enfrentaram Roma. Buscavam demonstrar aos presentes nas arquibancadas o que era ser um romano, evidenciar as glórias do Império e unificar valores que o romano deveria absorver, tornandose uma cultura homogênea pautada numa


G N A R U S | 34 ideologia de domínio. A imagem a seguir, também

apud FERREIRA, 2006, p. 22). De acordo com

datada do final do século XIX, representa uma

Pierre Grimal, um pesquisador latinista que possui

naumáquia, segundo a referida perspectiva.

produções difundidas no início do XX, com

As naumáquias eram os espetáculos mais complexos

em

sua

organização,

pois

era

necessário inundar até certo ponto a arena e, dessa

forma,

propiciar

a

navegação

das

características historiográficas peculiares do XIX, “a atracção que esses divertimentos exerciam sobre as populações rudes constituía um meio poderoso de romanização”. (GRIMAL, 2003, p. 69).

embarcações. No caso da capital, havia um sistema

É um ponto crucial do conceito de Romanização,

que enchia o anfiteatro, deslocando a água do rio

pois a “identidade romana” é construída mediante

Tibre. Por sua vez, havia também, um sistema de

os valores de civilização difundidos no âmbito da

drenagem que escoava a água e deixava o

arena, ou seja, a “Roma civilizada” mostra seu

anfiteatro em condições para combates de

domínio sobre os mais variados espécimes de

gladiadores ou caçadas. Estas pinturas procuravam

animais. Seria o controle do civilizado sobre o

evidenciar a grandiosidade dos espetáculos

incivilizado, ou melhor dizendo, sobre as feras

romanos, ou como a intelectualidade do século

apresentadas nas arenas.

XIX imaginava ser. Desta forma, acreditamos poder acessar a concepção de romanização, como ela foi construída.

caráter

da

Romanização

que

os

pesquisadores do século XIX enfatizaram e que está presente, em particular, na pintura intitulada

foram

La rentrée des félins de autoria de Jean-Léon

representadas por pinturas durante os séculos XIX

Gérôme exposta a seguir, é a ideia de identidade

e início do XX, as caçadas apresentadas nos

civilizatória romana mediante a execução de

centros das arenas foram objetos dos pintores que

condenados da justiça. Esse tipo de execução

apontavam para a diversidade de animais que

acontecia em um determinado turno do dia no

Roma apresentava nos Jogos Gladiatórios. Isso

anfiteatro, comumente ao meio-dia. Além das

demonstrava o poder de conquista de Roma sobre

penas em que os condenados eram atirados às

as demais regiões, por exemplo, norte da África e

feras, na obra de Gérôme ainda podemos observar

do restante Mediterrâneo. Como se “o papel social

outras formas de execução para criminosos

dos jogos estivesse intimamente relacionado com

comuns, como a crucificação.

As

venationes

Outro

(caçadas)

também

a formação do ethos social e a ideologia da glória e do prestígio, vinculado à vitória militar”. (HARRIS


G N A R U S | 35

La rentrée des félins, de Jean-Léon Gérôme, Óleo sobre tela, 1902. (In: GARRAFFONI, 2005, p. 202) Entretanto, não entendemos as ações que

edifícios de pedra da Roma Antiga. Como bem

ocorreram nos anfiteatros como um modo de

explica a historiadora Renata Garraffoni, “poucos

imposição de uma romanização. Além do que, os

[pesquisadores do XIX] fazem distinção entre uma

pesquisadores e, principalmente os pintores do

luta de gladiadores e as execuções de criminosos”.

século XIX e início do XX, veem os combates

Havia, portanto, “o cumprimento de uma das

gladiatórios na arena como um local de extrema

penas capitais presentes na legislação romana”.

violência, onde aconteciam as mais variadas

(GARRAFFONI apud OMENA, 2009, p. 99).

atrocidades. É notório o enfoque à violência na imagem acima: há sangue por toda a arena, o que normalmente, os autores classicistas classificaram como “verdadeiras carnificinas”. É como se o anfiteatro tornasse um símbolo de massacre e, por conseguinte

de

ordem,

ressaltando

uma

identidade romana através da conquista.

Não podemos esquecer que as arenas eram locais onde os mais variados grupos étnicos encontravam-se para assistir aos combates de gladiadores,

isso

fica

claro

com

a

linha

interpretativa que seguimos, a da historiadora Renata Garraffoni (2005), haja vista que a pesquisadora evidencia que os anfiteatros estavam

Porém, os combates que ocorriam nos anfiteatros

próximos às fronteiras, o que facilitava a circulação

podem soar muito mais violentos para nós, do que

de pessoas de diversas regiões que compunham o

propriamente para os romanos da época imperial.

império. A mesma aponta para os conflitos de

A violência parece ser mais uma preocupação

identidades e culturas num espaço como um

moderna do que para aqueles que adentravam os


G N A R U S | 36 anfiteatro, já que a singularidades de cada

caracterizou o Império Romano em seu auge

indivíduo deve ser ressaltada.

expansionista, entre os séculos I e II d.C.

Em face do debate esboçado, adotamos em nossa pesquisa os conceitos de táticas e

estratégias, como concebidos por Michel de Certeau. Para Certeau, a intricada rede de relações estabelecida entre os integrantes de dada comunidade pode ser definida como um complexo jogo de táticas, na qual o indivíduo ou mesmo determinados grupos sociais possuem variáveis formas de reagir ou interagir com as imposições ou convenções

desta

sociedade,

que

segundo

Certeau, seriam as estratégias (1996, p: 46). Logo, ao enfocarmos o expansionismo romano e os reflexos desse processo na composição dos espetáculos de anfiteatro, rejeitamos as teses que enfocam tão somente a arena como um espaço de propaganda da dominação romana sobre o outro, submisso.

Certeau, consideramos que o fomento aos espetáculos, quer por iniciativa pública ou privada, configuraria

Buscamos nesse artigo, discutir os limites do conceito de romanização, consolidado como lugar comum entre a historiografia de finais do século XIX e primeira metade do século passado. Em face dos recentes debates, mobilizamos conceitos de

tática e estratégia para buscar uma alternativa para a análise das relações de poder estabelecidas entre Roma e povos conquistados. Nessa chave, impõe-se

a

necessidade

de

repensar

os

espetáculos de arena, parte do ethos cultural romano, sob perspectivas mais abrangentes. Essas perspectivas, que vêm ocupando cada vez mais espaço nos estudos clássicos, procuram levar em conta a pluralidade étnica, cultural e social incluída sob a égide do Império Romano entre os

Ao nos apoiarmos no arcabouço teórico de

se

CONSIDERAÇÕES FINAIS

em

estratégia

do

poder

constituído. Nesse sentido, para além de cumprir uma função religiosa, qual seja a de apaziguar os mortos, ainda eram simulacros da dominação romana sobre outros povos. Entretanto, essa não é a única interpretação possível e nem essa mensagem era absorvida de forma homogênea por aqueles que assistiam a tais espetáculos e nem mesmo por aqueles que os protagonizavam. Com base no conceito de tática, acreditamos que a pluralidade cultural que vivia sob o controle de Roma possuía variáveis formas de reagir e interagir com as imposições do tipo estratégia. As

séculos I e II. Não por acaso, esse período assinala o maior impulso expansionista do império e foi apropriado pela historiografia do século XIX para forjar os argumentos que visavam à legitimação da política imperialista encetada, então, pelas potências europeias.

Nesse

modelo

de

colonização,

procurava-se difundir a imagem do europeu, herdeiro presumível da potência dos antigos romanos, imbuído da missão civilizadora que desde a Antiguidade lhe competia. Ao enfocar o europeu sob essa perspectiva, tais análises se ancoravam em pressupostos de uma historiografia etnocêntrica e totalizante. Porém, os recentes estudos, inscritos na chave de

interações, tensões e negociações ocorridas a

pesquisas

que

propõem

alternativas

partir das operações de táticas e estratégias

interpretativas para os trabalhos centrados em

compunham o mosaico social e cultural que

macro análises, têm procurado enfocar as relações


G N A R U S | 37 estabelecidas entre gladiadores e sociedade romana, bem como as variadas formas de integração das populações dominadas por Roma ao conjunto de normas que determinavam o “ser romano”. Nossas investigações sobre esse assunto estão

em

consonância

a

essa

renovação

historiográfica e pretendem abordar os jogos de anfiteatro, pondo em questão as múltiplas identidades culturais abarcadas pelo Império Romano, suas tensões, atrações, repulsas e interpolações.

Alexandro Almeida Lima Araujo é Graduado em História Licenciatura pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Integrante do grupo de pesquisa “Mnemosyne” – Laboratório de História Antiga e Medieval do Maranhão, UEMA. E-mail: alexandroaraujo12@yahoo.com.br e Claudia Patrícia de Oliveira Costa é Doutoranda em História Social junto à Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ). Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Ensino de História e Patrimônio Cultural da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (LEEHPaC/PUC-Rio). Professora de História da rede pública estadual do Rio de Janeiro. E-mail: cliouerj@yahoo.it

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G N A R U S | 39

Artigo

PRÁTICA E PUNIÇÃO DA SODOMIA NO SÉCULO XIII ATRAVÉS DAS NORMATIVAS JURÍDICAS AFONSINAS: LAS SIETE PARTIDAS1 Por Bruna Oliveira Mota

Introdução

O

freira, um parente, uma mulher casada, um animal presente artigo tem como objetivo a análise das práticas sexuais por meio das

Siete Partidas, compêndio jurídico

ou até por meio da manipulação, também foram considerados pelo clero medieval como algo abominável.

castelhano. Enfatizaremos, de maneira geral, a

Ainda segundo Vainfas, o conceito de sodomia,

prática da sodomia, conceituando e analisando o

durante toda Idade Média, adquiriu alguns

rigor da sua condenação no século XIII, a partir da

sentidos. O primeiro grande significado da sodomia

referida documentação.

pertencia ao campo da animalidade, pois

Segundo Ronaldo Vainfas,2 o conceito de sodomia é um ato condenado conforme a época. Por muito tempo a sodomia permaneceu no mesmo âmbito de qualquer ato contra naturam, nos quais também estavam inseridos neste conceito de “contra a natureza” a retro canino (mulher de costas

sodomitas eram todos aqueles que cediam aos apelos da carne sem atentar para os costumes humanos em matéria sexual. O segundo significado advém da prática da sodomia marcada pelos

desvios da genitalidade, ou seja, o coito anal e as poluções orais.

para o homem) e a mulher super virum (homem

Com o decorrer do tempo, o conceito de sodomia

embaixo da mulher). A emissão de sêmen com uma

passou a ser identificado de forma individual, como

Entre o Pecado e o Prazer: As práticas sexuais em Castela no Século XIII (PVD2567-2014) financiado com bolsa remunerada pela COPES-UFS e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Álvaro. 2 VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no Ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986.p. 66 e 67. 1 O presente artigo está atrelado ao Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica


G N A R U S | 40

A Punição dos Sodomitas, Nicholas Hogenberg (séc. XV) um intercurso sexual entre homens e punidos

Partidas, especificamente a Setima Partida, como

violentamente com a mutilação ou a morte. Porém,

parâmetro para nossa análise.

ainda assim, como um ato contra naturam. O rigor à prática da sodomia, ao que tudo indica, se intensificou a partir do século XIII e XIV com os

A Sodomia na Documentação

testemunhos de inúmeros códigos ocidentais que

No Título XXI da Setima Partida, intitulado De los

estabeleceram a pena de morte na fogueira para os

que fazen pecado de luxuria contra natura,3

homens acusados dessa prática.

podemos ler:

O que tem nos instigado nesse artigo é entender o porquê desse rigor nesses séculos, sendo que nos anteriores a prática da sodomia era punida com a mesma intensidade de uma fornicação simples, ou seja, a sua condenação não era tão rigorosa a ponto de levar seu praticante à morte. Tentaremos ao longo desse trabalho elencar alguns fatores para a severidade na punição da sodomia durante o século XIII, utilizando a Siete ALFONSO X. Las siete partidas de Don Alfonso X. Barcelona: Impresta de Antonio Bergnes, 1843-1844. IV Tomos. Tomo IV. p. 329. 4 Idem. p. 329 e 330. 3

Sodomitico dizen al pecado, en que caen los omes yaziendo unos com otros, contra natura, e costumbre natura. E porque de tal pecado nacen muchos males em la tierra do se faze; e es cosa que pesa mucho a Dios con el, e sale ende mala fama, non tan solamente a los fazedores, mas aun a la tierra do es consentido; porende, pues que em los otros titulos ante deste fablamos de los otros yerros de luxuria, queremos aqui dezir apartadamente deste, e demostraremos, donde tomo este nome; e quien lo puede acusar, e ante quien. Et que pena merescen los fazedores e los consentidores.4


G N A R U S | 41 conquistadas e reconquistadas no período de seu O compêndio jurídico Las Siete Partidas, previa a

reinado.

morte àquele que fosse acusado de sodomia, seja

A condenação da sodomia estabelecida pelo víeis

ele ativo ou passivo, mas não àqueles que foram

religioso se dá no pressuposto básico da Igreja

forçados a praticar tal ato e nem àqueles que eram

considerar qualquer prática sexual fora do âmbito

menores de 14 anos.

conjugal e afastado do seu fim único que é a

A sodomia é considerada por Alfonso X um mal que põe em perigo não só a vida de quem a pratica,

procriação,

como

uma

prática

totalmente

abominável.

mas também a comunidade como um todo, pois

De igual maneira, sendo necessário um aumento

traz a ira de Deus. Sabemos que tal prática é

populacional no jogo político e estratégico de

condenada

mediante

Alfonso X, a prática da sodomia se caracterizava

argumentos religiosos, mas percebemos que não se

como um obstáculo importante para o alcance dos

é censurado somente o ato em si, mas sim a sua

seus objetivos. É importante pontuar que não

atuação

na

Setima

contra

sociedade

e

Partida

a

seus

interesses. várias para

punição

a e

condenação

tão

rigorosas da sodomia por parte de Alfonso X,

entre

universal

daquele período, mas entendemos a sua prática como algo que

colocava

do monarca. A validação de tal

pontuamos a questão

hipótese

religiosa, o aspecto

severidade

de

sodomia

político

e

o

para

a da

como

estratégica para a

pressuposto que o

uma

interesse

populacional

de

em

xeque os interesses

elas

fundamento

a

sodomia como uma prática

Temos hipóteses

consideramos

preservação por

combater a sodomia

Alfonso

e a bestialidade por

evidenciada na obra

ele estava atrelado a

Sexo, Pecado, Delito.

uma necessidade de

Castilla de 1200 a

um

1350,5 de Ana E.

aumento

populacional povoar

para

as regiões

ORTEGA BAÚN, Ana Estefanía. Sexo, Pecado, Delito. Castilla de 1200 a 1350. Madrid: Bubok Publishing, S.L., 2011. 5

X

é

Ortega Baún, quando a

mesma

pontua


G N A R U S | 42 sobre a legitimação e reconhecimento do concubinato clerical pelo monarca, permitindo que os filhos desses clérigos tivessem direito a herança dos seus pais, segundo ela, com o objetivo de repovoar o mais rapidamente possível o extenso e vago território conquistado pelos castelhanos. Segundo Jeffrey Richards,6 a preocupação latente com o problema da sodomia nas cidades foi exacerbada pela peste pandêmica e o consequente declínio da população que combinava com o hábito dos homens se casarem tarde ou sequer fazê-lo, em parte devido ao alto custo dos dotes e do casamento. Com relação à prática da sodomia o autor ressalta “A utilização de acusações de prática desviante para se livrar de inimigos era parte habitual da política medieval, e a sodomia era frequentemente vinculada à bruxaria e ao culto do Diabo”.7 Como dito, percebemos assim que a condenação da sodomia não adivinha somente de uma questão religiosa, ou seja, um ato que ia de encontro aos postulados da Igreja Medieval. Ela também se chocava com os interesses políticos da sociedade e

este acusamiento puede ser fecho delante del Judgador do fiziessen tal yerro. E si fuere provado, deve morir porende tambien el que lo faze, como el que lo consiente. Fueras ende, si alguno dellos lo oviere a fazer por fuerça, o fuere menor de catorze años. Ca estonce non deve recebir pena, porque los que son forzados non son en culpa; otrosi, los menores non entienden que es tangran yerro como es, aquel que fazen. Essa misma pena deve auer todo ome, o toda muger, que yoguiere con bestia; e deven demas matar la bestia para amortiguar la remembrança del fecho.8

Podemos notar através deste trecho documental, que todo acusado de sodomia e bestialidade teria como pena a morte, sendo, simplesmente, necessários testemunhos que explicitassem a veracidade do ato praticado. No entanto, convém destacar que nem sempre a condenação da sodomia foi realizada seguindo esse mesmo

víeis,

se

recuarmos

um

pouco

documentalmente perceberemos que no Fuero

Real, no Livro Cuarto, Título IX, intitulado De los que dejan La órden, e de los Sodomitas, em sua “Ley 2“ essa condenação tinha outra descrição:

do monarca castelhano Alfonso X.

Punição da Sodomia A punição da Sodomia estabelecida na Setima Partida, em sua Ley 2 intitulada “Quien puede

acusar a los que fazen el pecado sodomítico, e anti quien, e que pena merecen auer los fazedores del, e los consentidores” estabelece:

Maguer que nos agravia de fablar en cosa que es muy sin guisa de cuydar, e muy mas sin guisa de facer: pero porque mal pecado alguna vez aviene que un orne cobdicia a otro por pecar con el contra natura, mandamos que cualesquier que sean que tal pecado fagan, que luego que fuer sabido, que amos a dos sean castrados ante todo el pueblo, e después al tercer dia que sean colgados por las piernas fasta que mueran, e nunca dende sean tollidos.9

Cada uno del pueblo puede acusar a los omes que fiziessen pecado contra natura, e RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.p. 148 e 149. 6 7

Idem. p. 147. 8 ALFONSO X. op.cit.,p. 330 e 331. 9 FUERO REAL DEL REY DON ALONSO EL SABIO. In: Opusculos

Legales del Rey Don Alfonso el Sabio, publicados y cotejados

con varios códices antiguos por la Real Academia de la Historia. Madrid: Imprenta Real, 1886. Vol. 2: El Fuero Real, Las leyes de los Adelantados mayores, Las nuevas y El Ordenamiento de las Tafuererias, y por apendice Las Leyes del Estilo. p. 3-169. p.134. Disponível em: https://archive.org/details/opusculosle gales02cast. Última consulta em: 20 de março de 2015.


G N A R U S | 43 O que tem nos instigado, é entender o porquê da

entende essa atitude do monarca como uma

mudança na punição da sodomia por parte de

estratégia política, um pretexto convenientemente

Alfonso X. O que levou o monarca a mudar uma

válido, utilizado para afastar um inimigo declarado

estrutura jurídica já vigente? É importante ressaltar

do reino, posto que, segundo ele, o caráter rápido

que não pretendemos propor aqui respostas para

e violento da punição da sodomia presente na Siete

tal ato, mas sim, a construção de argumentos que

Partidas poderia servir de parâmetro para validação

possibilitariam lançar possíveis explicações sobre o

da sua hipótese.

caso.

Por fim, acreditamos que todas as abordagens

Analisando os dois aspectos punitivos da sodomia

em relação à prática da sodomia podem ser

em momentos diferentes do Governo de Alfonso X,

consideradas válidas, por isso não devemos

notamos

na

conceber as atitudes do monarca castelhano-

aplicabilidade da pena. Como tentativa de

leonês sobre um único víeis, já que as relações

explicação para essa mudança, são levantadas

naquele

algumas hipóteses, construídas por especialistas

entrelaçadas, ou seja, não podendo se separar o

sobre a vida e a obra de Alfonso X, entre eles,

âmbito religioso, do político, do econômico e

destacamos o trabalho de Salvador Martínez.

nem do cultural. Julgar que Alfonso X instituiu a

uma

acentuada

modificação

No livro Alfonso X, the learned: a biography,10 este autor institui como hipótese para tal mudança, o caso mais enigmático do governo do monarca: a morte de seu irmão Fadrique. Segundo Salvador Martínez ele foi punido pela pena capital sob a

momento

estão

completamente

punição da sodomia utilizando somente um desses pressupostos

seria cair em

erro

anacrônico muito grave, pois sabemos que no contexto medieval essas instancias não se separavam.

acusação de sodomia. É válido lembrar que não nos deparamos até o momento com algum documento que ateste tal hipótese, mas consideramos o caso aqui, não pela veracidade ou não do ato, e sim, pelas suposições acerca da punição de tal prática estar intimamente vinculada às disputas de poder no período. Como ferramentas para tal afirmativa, Salvador Martínez utiliza como pressuposto alguns aspectos nebulosos acerca desse ato, entre eles, o sigilo em torno da real causa da morte do acusado, a forma como o mesmo foi morto, sem direito a um funeral digno de um nobre e as circunstâncias entorno do ato. Ressaltamos que o próprio autor não acredita na prática da sodomia por parte de Fadrique, ele 10 MARTÍNEZ, H. Salvador. Alfonso X, the learned: A biography.

Leiden/Boston: Brill, 2010.

Considerações Finais Quando se trata da Idade Média, de maneira geral, o sexo é visto por nós contemporâneos como uma das práticas mais reprimidas daquele período. Essa perspectiva, carregada de uma série de interpretações simbólicas equivocadas, está atrelada ao fato de, indiscutivelmente, ter sido aquele um período da História no qual a Igreja media forças na tentativa de normatizar práticas

comportamentais

procuramos,

em

tese,

que, compactar

hoje, em

classificações que facilitem nossas análises:


G N A R U S | 44 política, religião, religiosidade, instituições, economia, cultura, etc. Como afirma Jérôme Baschet:

Embora a religião no sentido contemporâneo do termo não existia na Idade Média, as questões relativas à organização da Igreja, quer dizer, às relações entre os clérigos e os laicos, de um lado, entre os homens e o mundo celeste, de outro, são evidentemente centrais, mas nem por isso formam, em decorrência, um setor autônomo e separado do restante da atividade coletiva. Elas são, pelo contrário, inseparavelmente imbricadas no conjunto das realidades sociais. É preciso, então, cessar de pôr o estudo da Igreja à margem da análise do feudalismo, sob o pretexto de que ele diria respeito a um capítulo “religião”, que tivesse apenas relações acessórias com as estruturas sociais. Repitamos ainda uma vez: a Idade Média ignora toda a autonomização do domínio religioso, pois a Igreja, como comunidade, é a sociedade em sua globalidade, enquanto, como instituição, ela é sua parte dominante, que determina suas principais regras de funcionamento.11

Diante de tudo que foi exposto, reforçamos a prerrogativa de que não existe um único postulado em voga da prática da sodomia. Entendemos essa prática e a sua punição por todas as estruturas que norteiam e normatizam a sociedade daquele momento intimamente vinculada às relações senhoriais.

Bruna Oliveira Mota é Mestranda pela Universidade Federal de Sergipe e pesquisadora do Projeto de Pesquisa de Iniciação Científica Entre o Pecado e o

Prazer: As práticas sexuais em Castela no Século XIII

(PVD2567-2014) financiado com bolsa remunerada pela COPES-UFS e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Álvaro (UFS).

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 168. 11


G N A R U S | 45

Artigo

ENSINO DA HISTÓRIA: TEORIA E PRÁTICAS Por Rennan de Azevedo Ramos

Resumo: O presente artigo tem como proposta elucidar os usos realizados pelo presente sobre a memória e a identidade, bem como entender a relação existente entre essa tríade na pratica de ensino da história, na formação do processo de consciência histórica e suas aplicações no ensino da história local. Palavras-chaves: Memória; Identidade; Ensino de História; História Local; Regimes de Historicidade; Consciência Histórica; História Oral. reflexão sobre a melhor forma de compreender a 1. Regime de Historicidade, Memória e

futuro, relacionando, segundo suas palavras, a

Identidade

V

relação existente entre a tríade passado, presente e

ivemos o consumo do imediato; há uma valorização cada vez mais significativa de datas comemorativas e do patrimônio. O foco está em um

presente contínuo, único, marcado pela “tirania do instante e a estagnação de um presente perpétuo” (HARTOG, 2013, p. 11). O culto ao presente apresentado por Hartog marca uma ruptura com uma visão progressista da história que entende o futuro, com sua ampliação do horizonte de expectativa e seu afastamento do campo de experiência, como a melhor forma do homem lidar e representar seu tempo. O conceito de regime de historicidade proposto pelo autor supracitado aborda justamente uma

“memória (presente do passado), a atenção (presente do presente) e a expectativa (presente do futuro)” (Ibidem, p12. ) com a forma com a qual o homem lida com o tempo e o representa. O próprio termo regime de historicidade é passivo de análise na medida em que falar de “regime de temporalidade em vez de historicidade teria o inconveniente de convocar o padrão de um tempo exterior” (KOSELLECK, 2006, apud HARTOG, 2013) e não aquele construído pela observação do historiador que busca uma naturalização e instrumentalização do tempo. Sendo assim, entendemos que a forma como o homem se relaciona com o tempo apresenta duas fases concluídas: história magistra vitae e história


G N A R U S | 46 moderna. Estaríamos, segundo Hartog, em uma

de linearidade, sendo a “seta” seu símbolo

nova fase, o Presentismo.

característico. A busca pela evolução leva, nesse

A história magistra vitae usa a história como instrumento de legitimidade, buscando no passado, através do exemplo de vida, sua força. Ela entende o passado como uma construção de exemplos a

momento, a uma eclosão de narrativas nacionais, visando à construção de um projeto de futuro da nação e realizando uma releitura do passado através da necessidade do presente.

serem seguidos, a partir de cujos ensinamentos

Já no presentismo, o futuro deixa de ser o símbolo

devemos instruir para o futuro. Para Koselleck “o

máximo das aspirações do progresso e passa a

papel magistral da história era ao mesmo tempo

exercer um sentido escatológico. “A isso deve-se

garantia e sintoma de continuidade que encerrava

ainda acrescentar outra dimensão de nosso

em si, ao mesmo tempo, passado e futuro”

presente: a do futuro percebido não mais como

(KOSELLECK, 2006, p. 43), apresentando seu campo

promessa, mas como ameaça; sob a forma de

de experiência muito próximo de seu horizonte de

catástrofes, de um tempo de catástrofes que nós

expectativa. Seu recorte temporal dataria desde a

mesmos provocamos” (HARTOG, 2013, p. 15). O

antiguidade até o marco da modernidade. Com a

conceito de presente se sobrepõe aos do passado e

eclosão da revolução francesa

do futuro, havendo uma perpetuação do imediato.

Até o século XVIII, o emprego de nossa expressão permanece como indício inquestionável da constância da natureza humana, cujas histórias são instrumentos recorrentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas ou políticas. (ibidem, p.43) O regime de história moderna, por outro lado,

A história perde seu status de dona absoluta de “verdades” e “voltou a ser esse túnel na qual o homem entra na escuridão, sem saber aonde suas ações o conduzirão, incerto de seu destino, da segurança ilusória de uma ciência do que ele faz” (ibidem, p. 20).

entende a história como algo passivo de ser

Neste cenário marcado pelo “boom memorial”,

ensinado, em que os “homens conhecem seu

entendemos a memória como um objeto de poder,

presente e são capazes de iluminar o futuro”

que motiva disputas na medida em que, através de

(ibidem, p.45). Diferente do regime anterior, o de

construções do presente, tem o poder de formar e

ponto de vista moderno apresenta uma nova forma

legitimar identidades. A “memória tornou-se, em

de representar o tempo. Há uma nítida distinção

todo caso, o termo mais abrangente: uma categoria

entre passado, presente e futuro promovendo um

meta-histórica.Pretendeu-se fazer memória de

afastamento entre o campo de experiência e o

tudo e, no duelo entre a memória e a história, deu-

horizonte de expectativa, negando a proposta de

se rapidamente vantagem à primeira” (ibidem,

história exemplar do anterior. Não há como pensar

p.25)

a repetição em história, o que não quer dizer que não podemos retirar algo dela para o futuro.

A memória fornece a ligação que o historiador precisa para entender o passado: ela é uma

A maior marca do regime moderno se configura

construção mutavel que atende as necessidades do

pela busca incessante pelo progresso. Sua

presente. No século XIX, com a explosão do espírito

representação do tempo está marcada pela ideia

comemorativo e seus elementos de suporte, como


G N A R U S | 47 criação de medalhas, selos de correios, museus e

que acarreta de fato uma representação seletiva do

bibliotecas, temos o marco inicial do forte apelo

passado, um passado que nunca é aquele do

pelo uso da memória. Nos séculos XX/XXI foi a vez

indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido

das guerras mundiais e a popularização da

em um contexto familiar, social, nacional”

fotografia, que se apresentou como uma forma de

(ROUSSO, 2010, p. 94). A memória se constrói,

democratização do instante. Apesar de discordar

dessa forma, como a soma das experiências vividas

de Hartog a respeito da perpetuação do presente,

pelo indivíduo. Para Le Goff, devemos entender a

o historiador Andreas

Huyssen1

concorda que

memória

não

como

uma

propriedade

da

estamos passando por um momento de “boom das

inteligência, mas sim como “a base na qual a qual se

modas retrôs e a comercialização em massa da

inscrevem as concatenações de atos” (LE GOFF,

nostalgia e a obsessiva automusealização através da

1990, p. 123). Esse autor complementa o conceito

câmera de vídeo e de fotografias” (HUYSSEN,

de memória apresentando-a como “um elemento

2000, p. 14), entendendo a memória ligada a uma

essencial do que se costuma chamar identidade,

sociedade de consumo vinculada aos processos de

individual e coletiva” (ibidem, p. 135).

globalização.

Em seu artigo “Não basta a história de

Ao falarmos de memória, faz-se necessário

identidade”, Hobsbawn (1998) nos relata a respeito

elucidar o binômio inseparável que este conceito

de uma conferência internacional sobre os

forma com o esquecimento, sendo ambos os

massacres alemães ocorridos durante a Segunda

conceitos intermediários na análise do tempo e do

Guerra Mundial. A conferência foi realizada na

espaço. Só se faz possível rememorar se possuirmos

província de Erezzo, localizada ao norte da Itália,

a capacidade de esquecer. Huyssen nos lembra

onde 50 anos antes um dos massacres havia

“que a memória e o esquecimento estão

acontecido. A memória sobre o ocorrido, que

indissoluvelmente e mutuamente ligados; que a

outrora estava apenas relegada à lembrança dos

memória

de

sobreviventes, foi posta em cheque por um grupo

esquecimento e que o esquecimento é uma forma

formado não apenas por historiadores, mas

de memória escondida” (HUYSSEN, 2000, p. 18).

também por cientistas sociais de múltiplas

é

apenas

uma

outra

forma

O esquecimento e o silêncio são fortes reveladores dos mecanismos de manipulação da memória coletiva e consequentemente de sua formação no processo das identidades, na medida em que ela colabora para a desconstrução das memórias particulares em detrimento de um todo. A ligação da história com o passado nunca é espontânea: é ligada a uma objetividade, uma visão parcial do passado proveniente da memória. “A memória é uma reconstrução psíquica e intelectual Em oposição ao presentismo, Huyssen entende existir um alongamento do passado através do processo de 1

nacionalidades. Na ocasião pretendia-se inaugurar uma piazza em homenagem aos mortos na tragédia de 1944. Lá se ouvia uma narrativa comemorativa construída pelos habitantes locais sobre o ocorrido, que não só não correspondia à proposta apresentada pela equipe da conferência, como em alguns casos exibia contradições. A pergunta lançada por Hobsbawn foi a seguinte: “Qual a natureza da comunicação entre o historiador que entregou ao prefeito da aldeia a transcrição do construção da memória em detrimento de uma diminuição do presente.


G N A R U S | 48 inquérito sobre o massacre, realizado pelo exército

cede do “momento agora”, do consumo extremado

inglês dias depois de sua ocorrência, e o prefeito

da memória. Tentaremos demostrar como o

que a recebeu” (HOBSBAWN, 1998, p. 283) O

professor em sala de aula se apropria destas

próprio autor a responde: “para um era uma fonte

questões de temporalidades para compreender as

primária de arquivo, para outro, um esforço do

carências de interpretação do passado que levam a

discurso comemorativo da aldeia” (ibidem, p.283).

formação

Hobsbawn deixa claro com esse relato o processo

consequentemente na formação das consciências

de formação da identidade coletiva em torno de

históricas.

uma memória construída pelo presente. Podemos identificar de forma nítida as características de construção da memória coletiva, que faz os habitantes da região criarem laços de identidade com o ocorrido, e dos historiadores, que, distanciados do objeto em análise, apresentaram uma outra versão dos fatos baseados nas fontes. Ainda sobre o presentismo e suas relações com a memória e a identidade, Hartog afirma:

O presente descobre que o solo desmorona sob seus pés [...] três palavras chaves resumiram e fixaram esses deslizamentos de terreno: memória, mas trata-se na verdade de uma memória voluntária, provocada (a da história oral) reconstruída (história que conta sua história), patrimonial ( a defesa, a valorização, a promoção do patrimônio), comemoração. Os três apontam para um outro: Identidade” (HARTOG, 2013, p. 156) Ao relacionar o presentismo com o “boom memorial”, com a valorização do patrimônio e das datas comemorativas, com a história oral e com a construção da identidade, Hartog nos deixa claro que vivemos um momento de grande alargamento do presente e de tensões derivadas da disputa da memória proveniente desse alargamento.

das

narrativas

históricas

e

São muitos os desafios encontrados hoje para aqueles que se dedicam à pratica do ensino da história.

Os

problemas

vão

desde

uma

desvalorização latente do profissional da área, somada às péssimas condições de trabalho, problemas

de

formulação

de

currículos

e

desmotivação do professor. Afinal, o que é ensinar história? Seria o ensino da história uma mera reprodução dos saberes acadêmicos? Uma “função didática de orientação da teoria da história que pode ser exemplificada como o ensino de história nas escolas”? (RÜSEN, 2001, p. 50) Trata-se de um equívoco comum organizar a disciplina história, nas escolas, como uma miniatura da especialidade científica. Dominique Borne “denuncia a ‘a aula magistral’ e preconiza a atividade do aluno, que deve construir, ele próprio, seu saber” (BORNE, 1998, p. 136).Dessa forma, transforma-se o aluno em um agente ativo de sua prática de ensino/aprendizagem, levando-o a uma reflexão sobre o conhecimento. O papel do professor é levantar “problemáticas em lugar de desenvolver uma única narrativa cronológica narrando os fatos históricos”

(ibidem,

p.136).

A

abordagem

cronológica deve ser seletiva, para evitar o 2. O Ensino da História e a formação da Consciência Histórica Ainda sob a égide do conceito supracitado do Presentismo, vamos buscar compreender o papel do ensino da história neste mundo marcado pela

“enciclopedismo”, porém ainda se apresenta como ferramenta fundamental para situar nossos alunos com noções importantes referentes a tempo e espaço. Borne defende uma maior abertura nos programas para “um lugar natural para a história


G N A R U S | 49 nacional, patrimônio comum de um povo” (ibidem,

tempo, deixando em evidência seu potencial

p 136), deixando claro que a melhora do ensino

didático, assumindo no campo de formação um

parte necessariamente de uma mudança curricular

papel puramente de orientação.

que abra um maior espaço para história nacional e a identidade enquanto nação, priorizando uma história da tolerância e da liberdade. Para Borne, deve haver necessariamente uma maior valorização do senso crítico. A identidade não pode ser construída sem o somatório da racionalidade e do inconsciente. Não se pode controlar a identidade sem entender o valor que existe entre o binômio memória e história.

A relação de Jörn Rüsen com a temporalidade se dá de duas maneiras. O tempo natural, sendo aquele que independe da ação do homem para existir, aparece como um obstáculo ao agir, vivendo como uma mudança que não pode ser ignorada se o homem tem a pretensão de buscar suas intenções; e o tempo humano aquele em que as intenções são representadas e formuladas como um processo temporal organizado da vida humana prática. O ato

Um dos pontos importantes do ensino da história

da formação da consciência histórica está

é a tentativa por parte do professor de despertar

intimamente ligado à forma que ele entende e lida

em seu corpo discente um novo olhar para história.

com o agir referente ao tempo. Essa intenção pode

Refiro-me à reconstrução do processo lógico-

ser descrita como transformação intelectual do

dedutivo, no qual “o melhor ponto de partida

tempo

parece ser aquele que, na vida corrente, surge

“naturalmente, a divergência entre tempo como

como

pensamento

intenção e tempo como experiência não deve ser

histórico. Esse ponto de partida instaura-se na

pensado de forma dicotômica” (ibidem, p.59); o

carência humana de orientação do agir e do sofrer

autor mescla essas experiências de consciência no

os efeitos das ações no tempo” (RÜSEN, 2001).

tempo entre a experiência e a intenção onde ambos

Essas carências de orientação no tempo devem ser

se encontram decisivos e correlacionados.

consciência

histórica

ou

dirigidas ao passado, pois é justamente dessa necessidade de interpretação do vivido que surge a matriz disciplinar da ciência da história. No entanto, não se pode ignorar a relevância propedêutica da teoria da história no processo de ensino-aprendizagem, na medida em que “se pensa que a teoria da história é, para a ciência da história, justamente a especialidade que reflete sobre seu enraizamento na vida prática e sua função nela ― a partir da qual a ciência história, por si em sua autocompreensão, se abre para todos os processos que se designam, aqui, pela expressão ‘formação histórica’” (ibidem, p. 50). Isso fica claro quando notamos que a teoria da história serve de ponte entre a história como ciência e a vida prática do seu

natural

em

tempo

humano.

Então

A lembrança é outro fator primordial quanto à formação do processo de consciência histórica. “A lembrança é, para constituição da consciência, por conseguinte, a relação determinante com a experiência do tempo” (ibidem, p.67). Sua narrativa se constitui na interpretação das experiências atuais no tempo, que são, basicamente, as lembranças vividas pelo auditório social que o cerca. Essa interpretação é, segundo Rüsen, transportada para o processo de tornar presente o passado mediante o movimento narrativo. Transportando a experiência da formação da consciência

histórica

para

a

história

local

entendemos, tomando por empréstimo a fala de


G N A R U S | 50 Maria Auxiliadora Schmit, que a “compreensão que

perceber que, apesar de a história oral ser uma

os conteúdos, ressignificado a partir da experiência

ferramenta fundamental, principalmente quando

dos sujeitos na localidade, podem passar a compor

atrelada às práticas sobre a história dos excluídos,

aos currículos e aos materiais didáticos. ” (SCHMIT,

ela ainda aparece como suscitadora de questões,

2007, p. 193) Documentos e lembranças extraídas

sem jamais ter como pretensão apresentar

pela história oral ganham status históricos, fazendo

respostas para essas perguntas.

com que as pessoas comuns se entendam agentes ativos da produção de suas próprias narrativas históricas criando laços de identidade com a história local e a resinificando.

Outro ponto bastante controverso levantado pelos historiadores que lidam com essa pratica metodológica se encontra na sua ligação com a história do tempo presente. “A história do tempo

Não menos interessante é entender a relevância

presente tem de lidar com testemunhas vivas,

de iniciativas como as da micro-história e a do

presentes no momento do desenrolar dos fatos, que

estudo da história local, para nossa prática

podem vigiar ou contestar o historiador” (ibidem,

pedagógica em sala de aula, na medida em que ela

p.XXIV). Há ainda aqueles que refutam sua validade

quebra antigos paradigmas de poder, trazendo,

histórica, alegando que é impossível para o

como apresenta a autora, aquilo que estava

pesquisador que se propõe ao trabalho nesta

guardado em uma memória individual, de âmbito

categoria realizar sua pesquisa, na medida em que

puramente afetivo para uma identificação coletiva,

a ausência de um distanciamento entre o objeto e

passando pelo crivo crítico de nossa matéria.

sua análise não permite um real entendimento dos conceitos sem que estes estejam banhados pela

3.História Oral como ferramenta, estudo de caso de Realengo

realidade, crenças e entendimentos de quem o lê. Porém, o que faz do pesquisador que lida com história antiga alguém que seja capaz de realizar

A história Oral se configura como uma

tais abstrações, se retirando de suas leituras de

metodologia de pesquisa, uma ferramenta que

mundo que garantiriam a ideia de imparcialidade e

abala o modelo tradicional, pautado unicamente

manchariam o processo objetivo da pesquisa?

em fontes documentais, permitindo dar voz a

noções convencionais do que vale a para história”

Na história do tempo presente, o pesquisador é contemporâneo de seu objeto de estudo e divide com ele os que fazem a história, seus autores, as mesmas categorias e referências. Assim a falta de um distanciamento, ao invés de um inconveniente, pode ser um instrumento da realidade a ser estudada” (ibidem, p. XXIV)

(THOMSON, FRISCH, & HAMILTON, 2010, p. 76).

O historiador então passa a exercer um papel

Refiro-me à história oral como uma metodologia,

central e ativo na construção daquela realidade

pois entendo que essa prática “apenas estabelece e

historiográfica com a qual vai trabalhar; divide com

ordena procedimentos de trabalho, funcionando

sua fonte um papel fundamental na construção do

como uma ponte entre a teoria e prática”

processo

(FERREIRA & AMADO, 2010, p. XVI). Podemos

característica meramente investigativa, para se

setores sociais antes esquecidos pelos vieses tradicionais da história. “A história oral, juntamente com outros artefatos, dados e textos culturais, provou-se crucial para superar o processo de

histórico,

deixando

de

lado

sua


G N A R U S | 51 tornar um agente ativo de sua própria produção. A

Foram entrevistados três adolescentes de idades

história oral está para o tempo presente, como uma

entre 15 e 18 anos, alunos e moradores do bairro de

ferramenta

e

Realengo, questionados dentre outras coisas sobre

necessária quanto a arqueologia se apresenta para

sua relação com a história, com o tempo e com a

os historiadores especialistas em história antiga.

história local. Ao mesmo tempo foram convidados a

fundamental,

tão

importante

Ao relacionarmos a história oral com a prática de ensino em história, entendemos que os conceitos de memória e representações se fazem presentes, enquanto construções coletivas, significados e ressignificados.

A

história

necessariamente

com

as

oral

lembranças

joga e

os

esquecimentos evocados ou silenciados pelos sujeitos naquele momento, reportando-se a

enriquecer o trabalho com sua fala cinco professores, que atuam no bairro e têm, em maior ou menor grau, alguma relação com ele. Desses professores,

dois

aceitaram

o

convite

e

disponibilizaram seu tempo, mesmo se tratando do período de suas férias. Aos professores foram levantadas questões referentes a sua prática de ensino e suas relações com o ensino da história local em sala de aula.

acontecimentos passado.

qual se prioriza um caráter qualitativo em

A escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos , por uma preocupação com amostragem, e sim a partir da posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência. Assim, em primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou situações ligados ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos. (ALBERTI, 2013, p. 40)

detrimento do quantitativo. As entrevistas de

A primeira parte da entrevista com os alunos,

Para a presente pesquisa, foram colhidos depoimentos, a fim de elucidar, através do estudo de caso, os usos da metodologia em questão, para entender e ampliar a experiência do professor no ensino da história. Devido ao pouco tempo de preparo, optamos por um modelo de entrevista pensada através da pesquisa semi-estruturada, na

história oral podem ser dividias em dois tipos. As de

tinha

história de vida, que priorizam relatos do depoente

estabelecida entre eles e a história, portanto foi

com relação a sua trajetória e seus envolvimentos

perguntando qual a importância atribuída por eles

com o passado e as entrevistas temáticas, onde se

a estudar essa matéria e uma rápida explicação do

questiona

e

que eles entendiam como história. Os três alunos

acontecimentos relacionados a um determinado

apresentaram respostas muito semelhantes, todas

tema. As entrevistas de história de vida, podem

pautadas

contar em sua formatação com o número de

configurando

entrevistas temáticas que forem necessárias para

temporalidade deste grupo como uma consciência

englobar toda a trajetória de vida de quem concede

histórica exemplar, onde busca-se estudar o

o depoimento. As entrevistas realizadas para essa

passado para compreender o presente e entender o

pesquisa se enquadram no grupo de entrevistas

futuro. “ Eu acho que conhecendo o passado você

temáticas.

tem uma boa base para solucionar seus problemas

o

entrevistado

sobre

fatos

como

objetivo

na

ideia a

entender

magistra

maneira

de

a

da lidar

relação

história com

a

no futuro . Porque uma boa parte das coisas que vão acontecer pode encontrar no passado uma solução


G N A R U S | 52 prévia que acaba sendo esquecida” (Aluno 1; 2015)2

alegou ser importante essa modalidade de estudo

ou ainda “ A história vai nos mostrar uma série de

dizendo: “Acho importante estudar história local

problemas

na

para estudarmos o meio em que vivemos. Como ele

humanidade no passado que vão nos ensinar a não

é agora e como ele era no passado, como se tornou

cometer os mesmos erros no futuro”. (Aluno 2;

o que é hoje. Só que eu acho que isso não é muito

2015)3.

estudado. Estudar isso seria muito legal, até mesmo

e

erros,

que

aconteceram

Já sobre sua relação com tempo destaco a fala do

para nosso entendimento”. (Aluno 3 ; 2015)6

primeiro entrevistado que diz: “vejo o tempo como

Essa carência apresentada pelo aluno 3 referente

algo muito complexo que foge ao nosso controle e

ao estudo da localidade em sala de aula, motivou a

como algo que temos que aprender o mais rápido

realização

possível utilizar bem. Pois não podemos evitar

importância da história local, também aos

questões naturais como a morte e precisamos usar

professores que passaram pela captura de

nosso tempo para atingir nossos objetivos.” (Aluno

depoimentos. Ambos os professores concordam

1; 20154). O aluno se apropria do tempo proposto

que o estudo da história local é de uma importância

por Rüsen, marcando a transição do tempo natural,

vital na formação da identidade do aluno e no seu

imutável, representado na resposta pela morte com

reconhecer como parte integrante da história.

a necessidade inerente do ser humano de agir em

Porém ao questioná-los sobre quais os mecanismos

prol de seus objetivos.

didáticos usados para ensinar esse tipo de história

Conforme os questionamentos sobre a história local foram surgindo, ficou aparente por parte dos alunos, um desinteresse de conhecer sobre o bairro em que moram, sendo no entender de dois dentre os três questionados a respeito , estudar história local ser algo “trivial” ou “sem muita importância”.

devido a pressão com as questões que envolvem o vestibular.

A gente acaba não tendo muito tempo de trabalhar assuntos fora do currículo. Vou citar o meu caso, eu trabalho um tempo de aula de história na semana. Então fica uma coisa bem complicada de você puxar assuntos de fora do currículo para conseguir trabalhar em sala de aula. (PROFESSOR 1, 2015)7

diferença é algo trivial”. (Aluno 2; 2015) 5. Isso reflete na forma com que eles se identificam com o

histórica. O aluno 3 foi o único entrevistado que Arquivo pessoal do entrevistador ibidem 4 ibidem

a

maneira com a qual se deveria esse tipo de proposta

grandioso. Na minha opinião. Acho que não faz

seus estudos, porém nenhum grau de identificação

quanto

médio, não permite trabalhar, pelo menos na

explicar isso? Eu não acho que seja algo tão

enquanto local de residência ou lugar onde fazem

pergunta,

currículo de história hoje, principalmente no ensino

história local) sim, mas (pensativa) como posso

identidade com a região representam identificação

mesma

em sala eles foram unanimes em alegar, que o

“ Eu acho que tem uma importância (estudar

bairro. Podemos observar que os laços de

da

Cabe então por parte desses profissionais, reinventar suas práticas para adequar a carência sobre a história local com o pouco tempo do currículo, fazendo links entre a história local e a narrativa histórica nacional.

ibidem ibidem 7 ibidem

2

5

3

6


G N A R U S | 53

Volto a afirmar, a importância do quartel de Realengo com os presos militares. Se eles (alunos) entendem essa parte que durante a ditadura militar algumas pessoas foram presas no quartel de Realengo, ele vai começar a assimilar essa questão do processo histórico. Ele vai entender um pouco melhor o local da formação de uma identidade local. Ele já vai ter o conhecimento prévio para um conhecimento mais abrangente que é a questão sobre o conhecimento sobre a ditadura. (PROFESSOR 1; 2015)8

percepções

dos

seus

alunos

através

da

interpretação em busca de uma orientação em prol de uma maior consciência histórica. Jöel Candau (2011), em seu livro Memória e Identidade, trabalha a memória á dividindo em três fases básicas: proto-memória, memória propriamente dita e meta-memória. A protomemória é aquela derivada da memória social, são

Ou ainda relacionar a história local com os

os gestos, as práticas e a linguagem. São todos os

assuntos cobrados no Exame Nacional do Ensino

aspectos da vida em sociedade adquiridos através

Médio:

do habito de forma inconsciente. A memória

Em sala de aula? Sem condições. Diretamente não. Eu acabo tendo que jogar dentro da perspectiva do ENEM. Você acaba fazendo um grande “mix”. Trabalhar o tempo, a história local e o conteúdo propriamente dito. Então trabalho a perspectiva do tempo através do conteúdo. Por exemplo, o imperialismo, dentro do conceito de imperialismo vou trabalhar a relação do homem com o tempo propriamente dito. (PROFESSOR 2, 2015)

propriamente dita, vem de nossas recordações,

Ambas as falas apresentam críticas severas ao

alunos uma resposta que se encontra nestes três

currículo de história, alegando ser ele o maior culpado pela falta do tempo necessário para abordar assuntos como tempo e história local.

lembranças do vivido, aquilo que realmente participamos. E a meta-memória está ligada ao processo de representação, na medida que ela se configura pela forma que nos enxergamos nos processos de memória. Ao serem questionados sobre

as

lembranças

marcantes

entre

os

entrevistados e o bairro, obtivemos de um dos aspectos de memória.

Tem uma notícia marcante, não me envolve mais foi algo que aconteceu em Realengo – a Chacina que ocorreu no Colégio. Isso de fato marcou a gente, todo mundo lembra da repercussão que aquilo teve [...] Eu consigo lembrar do nome do responsável pela chacina, consigo lembrar do nome do colégio e da forma como as pessoas relataram o caso nas entrevistas de televisão [...] No momento da chacina eu estava assistindo uma programação na Tv Globo e ela foi interrompida para que fosse passado as informações do ocorrido. (ALUNO 1, 2015)

No mundo ideal hoje, você trabalha com 4 tempos de história. Você trabalha com dois tempos de história do Brasil e dois tempos de história Geral em 3 anos de Ensino Médio. Que é onde você vai ter mais tempo para trabalhar essas questões mais a fundo tanto os conceitos quanto os conteúdos propriamente ditos. Onde eu trabalho não é assim. Eu tenho dois tempos semanais para abordar todo o período histórico cobrado no ENEM. Da história Antiga á Era Lula no Brasil. Não tenho tempo nenhum para abordar conceitos, muito mal tenho tempo para fazer chamada. (PROFESSOR 2 . 2015)

conhecido a tragédia ocorrida no dia 07 de abril de

Ao professor sobra a responsabilidade de encarar

2011 no bairro de Realengo, zona oeste do Estado

a adversidade com criatividade, as carências com

do Rio de Janeiro. Na ocasião Wellington Menezes

respostas,

de Oliveira, 23 anos, invadiu a Escola Municipal

8

ibidem

buscando

sempre

modificar

as

O massacre de Realengo, foi como ficou


G N A R U S | 54 Tasso da Silveira e com um revolver em punho,

com respeito as questões que envolve a história

assassinou a sangue frio doze alunos com idades

local, trabalhar a memória é o primeiro passa para

entre treze e dezesseis anos se matando ao final.

o entendimento das questões que envolvem as

Mesmo tendo apenas 12 anos de idade na data da

disputas do tempo presente.

chacina, o aluno 1 apresenta o fato como sua lembrança mais marcante com o bairro, em seu relato apresenta dados da memória social, na medida que apresenta fatos do conhecimento

Rennan de Azevedo Ramos é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen, Mestrando pela UFRRJ e Professor de História do Colégio Francisco de Assis. rennan.azevedo. ramos@gmail.com

coletivo, colhidos não de suas próprias lembranças mais da cobertura da mídia, das entrevistas, dos relatos dos jornais e revistas. Ao mesmo tempo tem a lembrança do que estava fazendo no momento em que soube do fato “a programação foi interrompida “ e ainda relata como se sentia no momento “uma notícia marcante” ou “não me envolve, mais isso realmente marcou a gente” realizando um processo de identificação e solidarizando com as vítimas. Já o aluno 2 ao ser questionado sobre possuir lembranças com o bairro responde: “sim, porque faz parte do passado da minha família, minha mãe passou a adolescência em Realengo”(ALUNA 2, 2015). Nesse caso entendemos que seus laços de identidade com a região estão marcados pela égide do conceito da pós-memória, aquelas que é marcada

pela

geração

seguinte

de

quem

presenciou a memória propriamente dita, memória de pai para filho. Segundo Sarlo:

Nessa dimensão identitária, a pósmemória cumpre as mesmas funções clássicas da memória: fundar um presente em relação com um passado. A relação com esse passado não é diretamente pessoal, em termos de família e pertencimento, mas se dá através do público e da memória coletiva produzido institucionalmente. (SARLO, 2007) Ela se apropria das lembranças dos pais e retira delas seus laços de identidade com o bairro. É importante a inteiração entre alunos e professores

Referências ALBERTI, V. (2013). Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV. BORNE, D. (1998). Comunidade de Memória e Rigor Crítico. Em J. D. Jean BOVTIER, Campos e Canteiros da História. Rio de Janeiro: UFRJ. FERREIRA, M. d., & AMADO, J. (2010). Apresentação. Em M. d. FERREIRA, & J. AMADO, Usos e Abusos da História Oral (pp. vii -xxv). Rio de Janeiro: FGV. HARTOG, F. (2013). Regimes de Historicidade: Presentismo e experiências do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica. HOBSBAWN, E. (1998). Sobre historia: Não basta a história de identidade. São Paulo: Companhia das Letras. HUYSSEN, A. (2000). Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos e midia. Rio de Janeiro: Aeroplano. KOSELLECK, R. (2006). Futuro do passado. Rio de Janeiro: editora PUC-Rj. LE GOFF, J. (1990). História e Memória. São Paulo: UNICAMP. ROUSSO, H. (2010). A memória não é mais o que era. Em J. A. Marieta de Moraes FERREIRA, Usos e Abusos da História Oral (pp. 94-101). Rio de Janeiro: FGV. RÜSEN, J. (2001). Razão Histórica. Brasilia: UnB. SARLO, B. (2007). Tempo passado: Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras. SCHMIT, M. A. (2007). O Ensino de História Local e os desafios da formação da consciência histórica. Em A. M. Ana Maria MONTEIRO,

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(pp. 187-197). Rio de Janeiro: Mauad. THOMSON, A., FRISCH, M., & HAMILTON, P. (2010). OS debates sobre memória e história: alguns aspecto internacionais. Em J. A. Marieta de Moraes FERREIRA, Usos e Absus da História Oral (pp. 66 - 94). Rio de Janeiro: FGV.


G N A R U S | 55

Artigo

AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ENTRE O CONGRESSO DE VIENA E A GRANDE GUERRA. Por Ricardo Luiz de Souza

Resumo: O presente artigo tem por objetivo realizar um debate historiográfico acerca das relações internacionais entre as grandes potências europeias e mundiais entre o congresso de Viena e a primeira Grande Guerra. Como metodologia de trabalho, serão utilizados alguns autores que trabalham com esse recorte histórico que vai de 1815 até 1914, buscando assim com esse debate, corroborar quais os principais nuances e fatos que ocorreram nesse período, no que concerne principalmente as relações entre as nações e o grande equilíbrio de poder demonstrado nesse período. Palavras-chave: Equilíbrio, finanças, Revolução, Paz.

Introdução

suas dissertações, teses e projetos de pesquisa. Esse período compreendido entre o fim das guerras

O

mundo no século XIX apresentou momentos únicos na história da humanidade, sendo um século vultoso que vai deste as grandes revoluções e

transformações sociais, mudanças de guinadas econômicas e políticas. Enfim, é um dos séculos mais fecundos na história da humanidade, pois esse período é uma espécie de quebra de paradigma entre o velho e o novo, o arcaico e inovador. Século em que inúmeros autores e pesquisas acadêmicas das mais diferentes áreas debruçam

napoleônicas que sacodem a Europa e o começo do grande morticínio da Primeira Grande Guerra, produziu e produzirá ainda novas pesquisas e perspectivas novas acerca de seus inúmeros nuances e desenvolvimentos. O presente trabalho possui por objetivos principais realizar um debate historiográfico acerca dos fatos e nuances desse século tão fértil. Assim, procuraremos explicitar o arcabouço teórico de acordo com autores consagrados da historiografia mundial nacional. Nesse período conhecido como


G N A R U S | 56 o século da paz de cem anos, as relações entre as

grande frequência de choques revolucionários.

nações

o

Nesse respectivo século, o volume de levantes,

desenvolvimento do comércio, dos investimentos e

insurreições e guerras civis foi tão grande que pode

da indústria. Um dos objetivos desse trabalho é

ser considerado o século mais fértil da história

esmiuçar ao leitor, o quanto essa complexa rede de

humana no plano revolucionário, Acerca disso o

relações era complexa e atrelada ao objetivo da

autor descreve:

se

tornam

primordiais

para

nova classe emergente após a revolução francesa: a Burguesia. Assim, nas próximas páginas trataremos alguns dos principais fatos desse recorte histórico e suas principais características, e os fundamentais desdobramentos desse longo período causaram no mundo. O objetivo desse trabalho é procurar explicitar assim, de forma sucinta mais coesa, quais são esses nuances principais.

Essas revoluções têm como pontos comuns o fato de quase todas serem dirigidas contra a ordem estabelecida (regime político, ordem social, às vezes, domínio estrangeiro), quase todas feitas em favor da liberdade, da democracia política ou social, da independência ou unidade nacionais. É esse o sentido profundo da efervescência que se manifesta continuamente na superfície da Europa, a que não ficou imune nenhuma parte do continente: tanto a Irlanda como a península ibérica, os Bálcãs como a França, a Europa Central e a Rússia, foram afetadas por essa agitação, uma ou mais vezes.(Remond, 1997,p. 05)

O panorama geral Europeu entre 1815 e 1914. De acordo Remond (1997), O século XIX, tal como os historiadores o delimitam, ou seja, o período compreendido pelo referido autor entre o fim das guerras napoleônicas e o início do primeiro conflito mundial, é um dos séculos mais complexos, mais cheios de nuances e percalços que existem na história humana. Hobsbawm (1981) salienta que, através da grande onda da ideologia pregada pelo forte movimento Iluminista do séc. XVIII, surgem os princípios universais que guiariam a Revolução Francesa: (liberdade, igualdade e fraternidade). Fato é que este mesmo pensamento, apesar de inovador, repleto de ideias humanitárias, de racionalidade e de progresso, ainda que indiretamente, favoreceu à consolidação do grande ideal do capitalismo (anseios do vitorioso mundo Burguês). René Remond assinala também que o século XIX foi fértil no terreno das revoluções, o autor também aponta que nesse período o traço mais evidente é a

Polany (2000) atenta para o fato que a civilização do século XIX, manter-se-ia em quatro grandes parâmetros: O primeiro parâmetro era o “sistema de equilíbrio de poder” equilíbrio este que, durante um século, impediu a ocorrência de qualquer guerra prolongada e devastadora entre as Grandes Potências” (POLANY, 2000, p.01). O segundo parâmetro era o uso e propagação do padrão internacional do ouro que simbolizava uma organização exclusiva na história econômica mundial. A terceira era o mercado auto-regulável, que produziu um bem-estar material sem precedentes

para

crescentes

indivíduos

consumidores. O último parâmetro era o estado liberal, com menor intervenção do Estado nas atividades

econômicas.

Classificando

esses

parâmetros de modo mais quantitativo, verificamse dois parâmetros econômicas e dois políticos. Com relação a Europa pós napoleônica, Remond (1997) atenta para o fato de que após a derrota dos exércitos franceses em Waterloo (1815), os


G N A R U S | 57 processos de restauração encabeçados pelas

Esse foi, portanto, um grande avanço da

potências centrais são intensificados, com o

revolução francesa, pois agora o movimento liberal

objetivo de se restaurar todo o processo

se consolidara no cenário europeu, e as classes

monárquico abolido pelos ideais da revolução. É

burguesas estavam se garantindo cada vez mais, no

restaurado o poder monárquico nos países onde os

centro do poder europeu e de suas decisões

ventos revolucionários franceses passaram (França,

institucionais. De acordo com Hobsbawm (1981) é

Espanha, Portugal) baseando-se nas voltas das

observado que a cultura do campo, assim como a

famílias e de seus aristocratas. Mais, porém, essa

religião deste, sofre uma grande refração no

nova monarquia, se baseia agora numa verdadeira

decorrer de todo o séc. XIX, se tornando o mundo

“corda bamba’, pois com o acesso de certos extratos

mais cético, cientifico e com uma população mais

sociais dantes negligenciados, são criadas cartas

esclarecida (devido ao avanço na educação das

constitucionais que limitam os poderes dos chefes

massas) e principalmente pela vitória evidenciada

de Estado. Acerca desse importante processo o

da cidade (liberal) sobre o campo (tradicional).

autor destaca esse processo no caso da França:

Outro ponto bastante preponderante no bojo

[...] O caso da França — de onde partiu a Revolução — é, na espécie,particularmente exemplar, já que Luís XVIII não viu possibilidades de voltar ao Antigo Regime e outorga a seus súditos uma Carta Constitucional, fazendo concessões importantes à experiência e às aspirações dos franceses. A existência de uma Carta já é por si mesma uma concessão importante. O Antigo Regime caracterizava-se pela ausência de constituição. Com a Carta Constitucional há, agora, um texto, uma regra, à qual se pode fazer referência, uma constituição disfarçada. Com efeito, apesar do preâmbulo, que insiste na concessão unilateral feita pelo rei, trata-se na verdade de uma constituição, uma espécie de contrato passado entre o soberano restaurado e a nação.[...]

desses momentos, foi a grande evidência de que a

[...] A análise do conteúdo da Carta dissipa, a esse respeito, todas as dúvidas. Ela prevê instituições representativas, uma Câmara eletiva (trata-se de uma homenagem ao princípio eletivo) associada ao exercício do poder legislativo, que vota o orçamento, em aplicação do princípio da necessidade do consentimento dos representantes da nação ao imposto. Trata-se, de algum modo, vinte e cinco anos depois, da legitimação das pretensões dos Estados Gerais. Enfim, a Carta reconhece explicitamente certo número de liberdades que a primeira Revolução havia proclamado: liberdade de opinião, liberdade de culto, liberdade de imprensa, isto é, quase toda a essência do programa liberal [...] (Remond, 1997, p.11).

nos códigos napoleônicos ficam em vigor por um

restauração dos antigos poderes absolutistas estava muito longe, de ser e conseguir, ser absoluta. Não obstante, impulsionaram-se pesadas pressões no que diz respeito às transformações sociais. De acordo dom Rémond (1997), por todo rincão de terra onde a Revolução passou, ela abalou profundamente as estruturas sociais e por toda parte verifica-se a conservação essencial de suas concepções originais, e de suas transformações- na França, onde a Carta reconhece as liberdades civis, nos Países Baixos, na Alemanha Ocidental, no Norte da Itália e até na Polônia, onde códigos inspirados tempo indeterminado. Algumas mudanças ocorrem em grandes áreas, tais como: O regime de servidão é abolido, os privilégios de certas classes são suprimidos e a mãomorta eclesiástica desapareceu. A equidade civil de todos diante da lei, diante da justiça, diante dos impostos, para o acesso aos cargos públicos e administrativos, é agora a norma para uma boa parte do continente Europeu. Todas essas reformas favorecem principalmente a classe burguesa, e de


G N A R U S | 58 fato, verificou-se a transição de sociedade

dos Estados está visivelmente reduzido”. Países

aristocrática para uma sociedade burguesa. Essas

como a Polônia, Suécia e Finlândia serão

transformações e sua conservação aproximam

abocanhadas pela crescente potência da Rússia. A

demasiadamente, os territórios dos países nos quais

Prússia consegue aumentar substancialmente seus

elas ocorrem, sendo bem acima das diferenças

territórios, nesse ínterim a Áustria também perde

ethos

parte de seu grande território, fracionados nos

existentes

no

passado

regido

pelo

nobiliárquico. Nesse ínterim, essas reformas lançam

Países Baixos1

uma linha de união e colaboram para unificar a Europa Ocidental, fazendo dessa parte da Europa ficaria bastante diferente da Oriental, no que tange

As finanças como protetoras da “paz”.

os aspectos sociais, políticos e econômicos. Outro

Percebe-se uma grande aclamação pela paz nas

importante marco do século XIX,é o movimento das

potências industriais e nas economias arrasadas

nacionalidades. Esse processo procede da herança

pelos conflitos. É dentro dessas perspectivas que

da Revolução, pois ao enumerar as consequências

incluem-se o período descrito por Karl Polany como

da Revolução sobre a ideia de nacionalidade. Nisso,

“cem anos de paz”. O autor trabalha com a ideia de

surgem dois importantes Estados que iram fazer

que era necessário para se conservar as economias

parte do rolo das nações protagonistas nos

em plena ascensão, e no caso a maior potência do

processos econômicos, políticos e sociais europeus

Globo - a Inglaterra - evitar ao máximo, grandes

e mundiais: Alemanha e Itália. No que concerne o

confrontos armados. É necessário que o comércio,

movimento das nacionalidades, Rémond (1997)

as finanças e as atividades manufatureiras

descreve:

prosperem, e para isso, é necessária a paz. A Europa

Enfim, o movimento das nacionalidades, que não se segue cronologicamente aos três precedentes, mas corre por todo o século XIX, constitui o último tipo de movimento. Ele procede da herança da Revolução, como vimos ao enumerar as consequências da Revolução sobre a ideia de nacionalidade; ele também é contemporâneo tanto dos movimentos liberais como das revoluções democráticas, e mesmo das revoluções sociais, e mantém com essas três correntes relações complexas, cambiantes, ambíguas, sendo ora aliado, ora adversário dos movimentos liberais, ou das revoluções democráticas e socialistas.(Rémond, 1997, p.04). Após a grande destruição causada pelas Guerras Napoleônicas, o mapa Europeu redesenhou-se em suas fronteiras em 1815. Conforme Remond (1997 :10), “O mapa está muito simplificado; o número

1René

Remond salienta que, geograficamente o mapa europeu foi modificado de maneira profunda a partir de 1815.

passará por um grande período sem um grande conflito armado, a não ser por pequenos e esporádicos conflitos como, por exemplo, a Guerra da Criméia. Acerca disso, Polany descreve:

O comércio se unira definitivamente à paz. No passado, a organização do comércio fora militar e guerreira; era um conjunto de piratas e bucaneiros, era a caravana armada, o caçador e o que colocava armadilhas, o mercador com a espada, a burguesia armada das cidades, os aventureiros e os exploradores, os plantadores e os conquistadores, os caçadores de homens e os comerciantes de escravos, os exércitos coloniais e os navios fretados. Tudo isto já havia sido esquecido. O comércio dependia agora de um sistema monetário internacional que não podia funcionar numa guerra generalizada. Ele exigia a paz e as Grandes Potências se esforçavam por mantê-

Estando a Europa, muito longe de uma restauração dos Estados e dos soberanos no status quo anterior a 1789.


G N A R U S | 59

Ia. Todavia, o sistema de equilibro de poder, como vimos, não podia garantir a paz por si mesmo. Isto foi conseguido pela finança internacional, cuja própria existência incorporava o princípio de uma nova dependência do comércio à paz. (Polany, 2000,p.30).

internacional, a haute finance propriamente dita, criou uma nova classe de homens ligados a aproximar as nações no que diz respeito aos negócios e a paz, esses profissionais eram os diplomatas que zelavam pelos interesses de suas elites e governos mundo afora. Houve também

Nesse ínterim, essa nova sociedade burguesa central europeia irá tecer sua nova organização da vida econômica e fornecer o pano de fundo para a Paz dos Cem Anos. Num primeiro momento, devido as grandes percas materiais causadas pelas guerras napoleônicas, criaram nas classes mais abastadas e dirigentes a perceber que, para o pleno desenvolvimento econômico, a manutenção da ordem social e a paz são extremamente

alguns centros nacionais gravitando em torno dos seus bancos de emissões de moeda e suas bolsas de valores. Os banqueiros internacionais não se limitavam a financiar governos em suas aventuras de guerra e paz, realizando polpudos investimentos externos na indústria, nos serviços públicos e bancos, bem como empréstimos a longo prazo à corporações públicas e a Estados dos mais diferentes lugares do globo.

necessários. Assim, a partir dessa nova perspectiva

Arrighi (1996) descreve que com a súbita e

econômica vigente, o modelo da “paz” estava

irreversível expansão do capitalismo, verifica-se

vitorioso. As classes médias eram o sustentáculo do

formar no mundo Europeu os chamados “hegemons”

interesse na paz, muito mais poderoso do que o de

que são nada mais, nada menos do que países que

seus predecessores reacionários, e alimentado pelo

possuem

caráter nacional internacional de uma nova

anteriores, e que controlam os meios sociais e

economia. Entretanto, “o interesse pela paz” só se

políticos, fato esse o que os torna fundamentais no

tornou efetivo porque foi capaz de fazer o sistema

jogo político mundial existente.

de equilíbrio de poder servir à sua causa, fornecendo àquele sistema os órgãos sociais capazes de lidarem diretamente com as forças internas ativas na área da paz. “2.

mais poder e recursos que os

Giovanni

Arrighi

(1996)

adverte

seus

que

o

Imperialismo de livre comércio, marca do sistema mundial organizado e mantido pelos britânicos, tinha

por

principais

premissas,

guardar

a

De modo organizacional, a haute finance foi o

importância das comunidades nacionais e da

epicentro de uma das mais intricadas instituições

propriedade privada a extensa centralização do

que a história do homem já produziu. Apesar de

poder mundial no Reino Unido. O equilíbrio de

transitória, ela só é comparável, em universalidade

poder entre as potências, consistiu num modo em

e pela profusão de formas e instrumentos, com o

que nenhuma grande potência se destacasse mais

montante das atividades humanas na indústria e no

que a outra, política essa materializada no

comércio do qual se tornou, de alguma forma, a

Concerto Europeu, contando com o apoio

frente e o verso de um sistema. Além do centro

fundamental da Haute Finance, Não obstante, o

2Karl Polany também afirma que Durante a paz dos Trinta Anos,

pelos negócios, e mesmo a Santa Aliança não desdenhava a crucial ajuda dos Rothschilds.

1816-1846, a Grã-Bretanha já pressionava muito pela paz e


G N A R U S | 60 uso do padrão ouro nas transações comerciais e constitucionalismo nas políticas nacionais também se caracterizaram como característica dessa hegemonia economia britânica nos quatro cantos do mundo. No que diz respeito à Hegemonia inglesa no mundo, Arrighi (1996), descreve o conceito de hegemonia como “à capacidade de um Estado exercer funções de liderança e governo sobre um sistema de nações soberanas” (Arrighi, 1996, p.27).

harmoniosa, duas vias de desenvolvimento aparentemente divergentes , que tinham sido abertas muito antes pelos grupos dominantes de outros Estados. O que houve de diferente foi a combinação entre essas vias, e não as vias em si.(Arrighi, 1996, p.57).

Hobsbawm (1981), descreve que a primeira fase da industrialização britânica se baseou na indústria têxtil, principalmente a do algodão. Dona de um monopólio comercial imenso no escoamento e produção

Essa dominação não necessita ser só de cunho físico, mais também pode se apresentar como dominação ideológica 3 , dominação essa que a Inglaterra passará a exercer no mundo no século XIX e os E.U.A passaram a exercer no século, mais precisamente após a destruição da Primeira Grande Guerra.

desse

produto

na

América

(principalmente os Estados Unidos) e Ásia. Com o monopólio cada vez maior da venda e compra de algodão mundial, os industriais ingleses assim entravam nessa empresa com certeza de venda de seus produtos e lucro imediato e certo. Enquanto isso paisagens de cidades como Manchester e Liverpool iam mudando, se tornando mais cinzas,

Segundo Kennedy (1989) o controle da haute

horizontais, com inúmeras fábricas, além de um

finance pelos ingleses, sua supremacia marítima,

exército

posição

influências

maltrapilhos, sendo que, a mentalidade acerca do

continentais e comerciais a fizeram tornar uma

trabalho e do tempo é transformada 4 . Com o

nação com poder sem precedentes. Sua hegemonia

desenvolvimento dessas cidades a indústria

global exercia influência em todo o globo e era

alimentícia foi em seguida alavancada com o

interessante para a manutenção desse poderio que

desenvolvimento e aumento demográfico das

o mundo todo fosse uma grande extensão do

cidades, causando no campo uma espécie de

pensamento liberal, que esse pensamento passasse

“revolução” na produtividade das culturas, com o

a sobrepor as decisões dos Estados. No que

implemento de novas técnicas agrárias e pastoris

pertence essa afirmação, Arrighi (1996) descreve:

como a fertilização dos campos, revezamento de

insular,

poderio

militar,

O poder mundial da Grã-Bretanha no século XIX não teve precedentes. Mas a via de desenvolvimento que levou a essas conquistas não deve ser considerada totalmente inédita. Pois o imperialismo de livre comércio da Grã-Bretanha simplesmente fundiu, numa síntese 3De acordo com o pensador italiano Gramsci, para um povo ter

preponderância sobre outro, somente a ação e repressão militar não são necessários, ficando o campo ideológico com muita importância para legitimar e coordenar as ideias de submissão de um Estado mais fraco ante um mais forte. 4 De acordo com Eduard Palmer Thompson, os costumes dos trabalhadores que antes de entraram no mundo fabril, não são

de

trabalhadores

famigerados

e

culturas, novas culturas adotadas (como o caso da Batata, vinda da América do Sul). Todas essas inovações que incrementaram o aumento da população e consequentemente mais braços para as fábricas. A Indústria alimentícia foi abastecida de

totalmente suprimidos, tendo esses homens e mulheres costumes que perfazem boa parte do tempo. A percepção acerca do tempo é totalmente transformada pela noção capitalista segundo a ótica de tal autor, mais de uma forma lenta e gradual e não totalmente abrupta.


G N A R U S | 61

novas técnicas de produção de bebidas e comidas,

investimentos maciços em qualquer atividade de

se tornado essas mais dinâmicas para a vida corrida

cunho industrial ou afins. As Expansões industriais

do trabalho fabril. Outra indústria vital para o

em torno das atividades têxteis eram facilitadas

abastecimento energético das fábricas foi à

pela grande soma de lucro que adivinha de sua

extração do carvão vegetal, sendo usado de forma

venda, e assim, novas máquinas e tecnologias eram

tanto industrial como doméstica devido à fraca

adquiridas podendo ser pagas em torno de pouco

vegetação arbórea Inglesa. O carvão mineral se

tempo,

tornou a mola central no abastecimento das

consumidores como a América Espanhola, Ásia e

máquinas a vapor tanto das indústrias, como

África.

devido

ao

ganho

de

mercados

também das ferrovias mundo afora. Foi o combustível da revolução.

Um mundo em constante movimento

Todo o mercado financeiro e especulativo teve que se reformular se tornado mais proativo para suplantar cada vez mais os altos capitais circulantes no mundo, não havendo dificuldade quanto às técnicas comerciais e financeiras. Os bancos e todos os seus artífices, estavam cada vez mais interligados

com

a

oferecendo

facilidades

industrialização, a

empréstimos

seja e

Segundo Arrighi (1996), após um século inteiro de hegemonia britânica mundial, verifica-se a partir dos anos de 1870 a ascensão de dois concorrentes implacáveis, Estados Unidos da América e Alemanha. Os E.U.A, grande nação de dimensões continentais possuía recursos naturais, potencial humano, economia nacional maiores que os da


G N A R U S | 62 terra da rainha. Essa guinada na mudança da grande

compromissos que pudessem forçar a Alemanha

potência mundial irá se propagar com maior ênfase

para fora de seus anseios de manutenção de paz,

após a Grande Primeira Guerra Mundial. Os Estados

pois com essa paz, os negócios, indústria e

Unidos segundo Kennedy (1989), preferiram após a

comercio alemães prosperavam. Nessa mesma

guerra de Secessão, concentrar suas energias e

ideia, mais do outro lado do Atlântico,

forças no aparelhamento de sua economia no que diz respeito ao comércio, a indústria, e a sua crescente influência no continente americano em detrimento dos gastos militares. O número de militares regulares dos Estados Unidos era de certa forma no século XIX, menor que potências médias europeias, como a Hungria e a Áustria. O antagonismo da E.U.A e da Rússia era enorme frente aos exércitos regulares, mais era muito maior no aspecto econômico, Trocando em miúdos, a Rússia se mantivera entre as grandes potencias por sua alta capacidade militar, mas não pela sua econômica frágil.

Hobsbawm (2004) descreve que os últimos anos do século XIX foram vistos até hoje na história da civilização

humana

como

estabilidade social e política.

um

período

de

Foram anos de

intensa prosperidade econômica e crescimento constante das nações mais abastadas do Globo. Os governos se mostraram mais experientes na arte de conter agitações políticas e sociais. Época conhecida como belle époque, onde o mundo de certa forma estava mergulhado num mundo de intensa prosperidade. Apesar de todo esse otimismo e ar próspero, algumas áreas mundiais estavam passando por momentos de muita

Já na Europa, surge uma nação que irá acirrar

instabilidade e com grande eminência de

ainda mais o concerto europeu, a Alemanha

revoluções até que em 1914 o mundo assistir a

unificada por Otto Von Bismark em 1870, angariava

segunda guerra mundial afetando a paz em todo o

seu poderio em sua grande e expoente indústria

globo. Áreas como o Império Otomano, Rússia e o

química e siderúrgica, assim percebeu-se que o

Império Habsburgo tiveram como a primeira

concerto da Europa estava em seu auge. “Nas duas

guerra mundial uma espécie de desencadeamento

décadas que se seguiram imediatamente à

de conflitos internos e instabilidade política. É bem

ascensão da Alemanha à categoria de Grande

lógico que a belle époque não estava inserida de

Potência, ela foi a principal beneficiária do

forma continua em todo o mundo, vários países

interesse pela paz” (Polany, 2000, p.35). Kennedy

como o México passavam por serias revoluções,

(1989) salienta que essa nova potência central

Países como China e a Rússia passariam por

forçou seu caminho até as primeiras fileiras

transformações profundas na sua concepção tanto

mundiais à custa do relativo atraso econômico da

política, ideológica e econômica, as grandes crises

Áustria e da França pois para os franceses era mais

sociais que esses países passaram por vários anos e

vantajoso para manter seu grande status quo e

as grandes pressões internas devido a sua

evitar uma guerra mortífera com a poderosíssima

amplitude

Alemanha de Bismarck. O alto escalão do Governo

mudanças na virada do Séc. XX.

alemão favoreceu deliberadamente a paz com a colaboração conjunta das outras Grandes Potências (Áustria, França, Inglaterra e Rússia) evitando

geográfica,

trouxeram

grandes


G N A R U S | 63 O colapso de um sistema frágil

Praticamente na mesma época, os sintomas de

Entretanto, de acordo com Polany (2000) no final da década de 1870, o episódio do livre comércio estava no seu final, e a utilização do padrão ouro pela Alemanha marcou o início de uma extensa rede de protecionismo e expansão colonial mundo afora. A Alemanha passava agora, a reforçar sua posição através de uma união com a ÁustriaHungria e a Itália. A partir daí, a Grã-Bretanha passou assim, a ser o principal líder do interesse pela paz em uma Europa onde ainda permanecia um grupo de estados soberanos independentes e

dissolução das formas existentes de economia mundial como a rivalidade colonial na África e Ásia, e a competição por mercados exóticos tornaram-se aguçados. A habilidade da haute finance em contornar a disseminação das guerras diminuía rapidamente. A paz ainda se arrastou durante os sete anos seguintes, mas era apenas uma questão de tempo para desmoronar-se, e que, de fato a teia da organização econômica do século XIX ruísse e acabasse por completo com a Paz dos Cem Anos. Da paz a uma guerra sem precedentes históricos.

portanto, sujeitos ao tão desejado equilíbrio de poder. Na década de 1890, a haute finance estava no seu apogeu e a paz parecia mais segura do que nunca. Os interesses britânicos e franceses diferiam entre si na África, os britânicos e os russos competiam uns com os outros na Ásia. O Concerto, embora capengando, continuava a funcionar. A despeito da Tríplice Aliança, ainda havia mais de duas potências independentes para vigiar uma a outra ciumentamente. Mas isso não durou muito tempo. Em 1904, a Grã-Bretanha fez um acordo com a França sobre o Marrocos e o Egito, e alguns anos mais tarde entrou em acordo com a Rússia sobre o território Persa. Estava ai formada a contraaliança. O Concerto da Europa, essa federação frouxa

de

potências

independentes,

foi

subitamente substuído por dois agrupamentos antagônicos e o desejado e complexo “castelo de areia” que era equilíbrio do poder, chegara a seu final. Com apenas dois grupos de poder em extrema competição acirrada pelo imperialismo, seu

Conclusão. Percebemos preocupações

que das

uma

potências

das

grandes

europeias

foi

justamente se evitar uma guerra de alta deflagração, pois um conflito de alto custo humano e material nesse período era muito ruim para a prosperidade dos negócios e das finanças. O mundo do século XIX é completamente diferente depois da sacudida institucional que a Revolução Francesa trouxe ao mundo europeu. O século XIX também é apresentado como um século de unificações nacionais de países como a Alemanha e a Itália, que serão importantíssimos nos decorreres dos anos nos cenários europeu e mundial. O período analisado nesse trabalho também demonstra a guinada na mentalidade europeia no que concerne a política, ciências e artes nesse período conhecido como a paz de cem anos. Como grandes baluartes da “paz de cem anos”

mecanismo deixara de funcionar de forma

verificamos que as finanças e os governos tiveram

harmônica, como funcionara em tempos atrás.

uma importância primordial, pois a guerra entre as

Nisso, já não havia mais um terceiro grupo que se unisse a um ou outro para frear aquele que buscasse aumentar o seu poder e ser o fiel da balança.

grandes potencias, era vista como essencialmente danosa para a burguesia industrial, comercial e financeira das maiores potências do globo. Essa teia de compromissos e equilíbrio finalmente rui a partir


G N A R U S | 64 do final do século XIX, pois com o fenômeno do imperialismo, a competição por produtos exóticos, matérias-primas e mercados nos países africanos e asiáticos, traz por terra todo o arcabouço feito pelas finanças. Para um conflito de grandes proporções e intensa carnificina, seria só uma questão de tempo. Infelizmente para boa parte da humanidade. Ricardo Luiz de Souza é Aluno do 9º período do Curso em Licenciatura em História da UFRRJ, campus Nova Iguaçu. ricardoluisouza@gmail.com

Bibliografia GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. _______________. A Era dos Impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. _________________ . A Era do Capital. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2004. POLANYI, Karl. A Grande Transformação - as origens de nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000. KENNEDY, Paul. Ascensão e queda das grandes

potências: transformação econômica e conflito militar entre 1500 e 2000. Rio de Janeiro, Editora

Campus, 1989. REMOND, Rene. O século XIX – 1815-1914. São Paulo, Editora Cultrix, 1997.

DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. O projeto prussiano de Império Alemão. IN: DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira, CABRAL, Ricardo Pereira e MUNHOZ, Sidnei J. Impérios na História. Rio de Janeiro, Elsevier, 2009. THOMPSON, Edward P. “Tempo, disciplina do trabalho e o capitalismo industrial”. In: Costumes

em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.


G N A R U S | 65

Artigo

UM NOVO VELHO MODELO NO NOVO MUNDO: A REPÚBLICA RELIGIOSA SECULARIZADA DA GIOVANNI ITALIA Por Ricardo Cortez Lopes

Resumo: Esse trabalho busca expor um dos projetos da modernidade política que fracassaram diante do modelo moderno vencedor após a queda do Antigo Regime. Este projeto seria o da república proposta pelo movimento Giovanni Italia, que foi exposto e defendido no contexto social da nascente República Rio Grandense Farroupilha pelo italiano Luigi Rossetti (1800-1840) nas páginas do jornal “O Povo” (1838-1840). Esta república, no entanto, não se assentaria na secularização da esfera pública, como ocorreu historicamente no processo de formação da grande maioria dos estados modernos. Apreendemos e sistematizamos esse modelo a partir da Teoria das Representações Sociais, coletando os dados no jornal com o objetivo de compreender a estrutura funcional dessa proposta republicana-religiosa. Assim, buscamos as representações sociais sobre os seguintes conceitos e apresentamos parcialmente alguns resultados da análise: a legitimidade do poder (deísta, e não emancipatória do ponto de vista individualista), o laço social democrático (pela fraternidade cristã), o modo como se processa a dinâmica social (pelo progresso do igualitarismo) e o papel da Religião (concebida como esfera autônoma do jogo político e que, coerentemente com a argumentação do autor, estava e não estava incluída no modelo ao mesmo tempo). Palavras-chave: Modelo Republicano. Teoria das Representações Sociais. Modernidade Religiosa


G N A R U S | 66 Introdução

É

estruturantes deste, a saber: a) legitimidade do

mile Durkheim distingue, quando de suas considerações sobre o estudo do fenômeno moral, entre um “ser” e um “dever ser”: “a realidade moral, como qualquer espécie de

poder,

b)

laço

social

democrático,

c)

processamento da dinâmica social e d) papel da Religião. Essas representações sociais emergiram a partir da análise de conteúdo.

realidade, pode ser estudada de dois pontos de

O movimento Giovanni Italia surgiu em uma

vista diferentes. Pode-se tentar conhecê-la e

conjuntura complexa da história italiana, situada no

compreendê-la. Ou, então, dispor-se a julgá-la”

século XIX, em que a unificação territorial ainda

(DURKHEIM, 1970: p. 50). Entre o que seria de fato

não havia sido levada a cabo. Há, neste período,

e o que se projetaria (emprestamos a expressão de

uma proliferação de sociedade secretas, entre elas

Freud) de ideal para substituir o que seria um fato

a célebre Carbonaria, criada por Mazzini (que criou

social. Esse trabalho trata um pouco de um “dever

a Jovem Itália posteriormente). A sociedade Jovem

ser”: o de um modelo

Itália (Giiovanni Italia),

político que se buscou

radicalmente republicana

irradiar para o mundo a

e

partir de um epicentro

estender seus tentáculos

específico.

Mais

para uma série de países,

especificamente,

essa

entre

nacionalista,

eles

o

vai

Brasil

pesquisa trata do projeto

(LEITMANN,

de república – o dever ser

100).

de uma república secular

manifestação oficial dela

e

tempo

em território brasileiro foi

religiosa - nutrido por um

no Rio de Janeiro, onde

ator político – o jornalista

houve uma seção (na qual

pertecente

ao

Rossetti

movimento

Giovanni

ao

mesmo

Italia Luigi Rossetti (1800-

A

a

farroupilha).

Aproximadamente

italianos

um epicentro específico – a nascente república

farroupilhas

farroupilha. Para o italiano, a república recém

esperançosos de que a revolução republicana

fundada estava se afastando dos ideais de sua

popular espalhasse-se pela América a partir da

agremiação política original, de modo que a

província gaúcha. A república, na perspectiva desse

maneira encontrada para trazer de volta esses

movimento, não se legitimaria politicamente na

ideais perdidos seria através dessa publicação

liberdade do homem como indivíduo, mas sim no

jornalística.

homem como uma criação divina que precisa ser

projeto a partir de algumas representações sociais

juntaram-se

50

1840) no jornal “O Povo” (1838-1840) – dentro de

Portanto, o foco desse trabalho será apreciar esse

mazzinianos

p.

primeira

conheceu

causa

Lenço Farroupilha

1985,

(LEITMANN,

1985,

às

forças

p.

105),

igual aos seus irmãos –igualitarismo que não proviria da noção de um contrato social (PANERAI, 2009, p. 24). Ou seja, é o Estado que serviria a uma


G N A R U S | 67 finalidade religiosa, e não a religião que

católica como fator aglutinador dos diferentes

administraria o Estado.

atores. Uma série de projetos de secularização do espaço público foram formuladas no bojo desta

A separação da esfera pública da esfera privada A política moderna se caracteriza pela sua tentativa ostensiva de se autonomizar do campo religioso (HERVIEU-LEGER, 1999: p. 41), como demonstra a concepção de privatização da religião. A partir daquele momento, criar-se-ia uma esfera pública, objetiva e laica, espaço de circulação de ideias, e uma esfera privada para cada um dos cidadãos, subjetiva e de celebração religiosa. Dentro da discussão sobre modernidade e tradição,

conjuntura social específica, de modo que este breve artigo intentará expor uma dessas propostas, o do jonalista Luigi Rossetti. O projeto que foi o “vencedor”, e que muitas vezes é confundido com a própria concepção de laicismo é aquele que diz que a religião é uma atividade privada, de modo que diz respeito apenas ao indivíduo, e que busca romper radicalmente com a religião (SANCHIS, 2001: p. 38). Não é o que observaremos na proposta que analisaremos.

essa nova concepção tornou-se base para a formulação de diferentes teorias da secularização, tomadas a partir daí de uma perspectiva historicista.

Representações sociai1 Nesta seção vamos definir o conceito de

A discussão sobre o laicismo (vital para se discutir o avanço do processo de secularização) adquiriu contornos

decisivos

quando do advento da Revolução Francesa, após o Iluminismo (CIPRIANI, 2012: p. 16). Dentro do clima de derrubada do Antigo Regime, muitos intelectuais empreenderam

um

esforço no sentido de fundar uma nova moral que pudesse dar início a um princípio de coesão, capaz de integrar os indivíduos

em

uma

sociedade moderna não baseada

1

na

religião

Não vamos referenciar as obras dos autores da Psicologia Social por conta da falta de espaço

representações sociais, ancorados em Denise Jodelet, Mary Jane Spink, Maria Manuel Baptista e Serge Moscovici. A teoria de

Representações

Sociais

visa

analisar

modalidades conhecimento dirigidas

de prático para

a

comunicação e para a compreensão do contexto social. São formas de conhecimento manifestam

que

se

como

elementos cognitivos tais como imagens, conceitos, categorias, teorias - mas que não se reduzem aos seus

componentes


G N A R U S | 68 cognitivos. Ou seja, segundo Spink, são maneiras representacionais

socialmente

Esse trecho se refere a dimensão (a). Aqui é

compartilhadas

possível perceber que a luta pela democracia é

estruturantes e estruturadas, de se explicar o

igualitária e leva em consideração o interesse de

mundo revestidas da dinâmica própria que envolve

todos os homens de maneira igual. É, portanto,

os mecanismos do meio social, criando, assim, uma

avessa

realidade comum, segundo Batista. Vamos chegar à

provisoriamente, de “privilégios nobres”.

essas Representações através da técnica de Análise de Conteúdo. Nossa análise será temática, e procederemos a partir da categorização em volta de determinadas unidades de significação, que serão as que estarão expostas no começo de cada sessão. Legitimidade do poder A questão da legitimidade é abordada em duas dimensões pelo jornal: a) como o que já é e vai permanecer e b) como o que foi e está sendo substituído. O poder que é legítimo aos olhos de Rossetti é o poder que emana da fraternidade cristã, e dela se origina a democracia igualitária,

a

privilégios,

que

chamaremos,

“Justo José Vieira, cazado, com filhos, ja naó existe! Huma partida de 16 ferozes ladrões, assassinos pertencentes a [ilegível] sujeita e imunda que se intitula legal [grifos meus].” (O Povo, 1838, p. 483). Neste trecho, é possível se apreciar (b). “Ladrão” seria o não-democrático, pois seria usurpador (na medida em que utiliza da força para desequilibrar a distribuição de posses justas), “assassinos” (pois também se utiliza da força para impingir uma morte violenta a alguém, que tornaria uma morte não legítima, pois seria realizada por devoção a uma figura pessoal). Cônscios de seus crimes, e da vendita nacional que

ilustrativa da maior dignidade humana possível.

os

Esse é o poder estável, pois respeita a Lei Natural

indignamente tem lançado aos braços de

divina. A pesquisa completa dá conta que o que está

mercenários

em jogo é um conflito contra a figura do rei

[provavelmente “cúmulo”] da ignomia e de eterno

absoluto, que traria a legitimidade para a sua figura

opobriu, conseguiraó da camara temporária

pessoal e desviaria a prática política do verdadeiro

permisaó para engajar hordas destes janizaros, e

centro de sua imanência: Deus, cultuado através do

como na América naó poderão encontrar homens

exercício da Igualdade (daí o nome do jornal, “O

que degradem a sua razão a ponto de combater

Povo”). A nobreza também seria um traço de

princípios que hão jurado é estabelecido sobre

distinção de berço que afetaria essa igualdade

montões de cadáveres, terão sem dúvida de

entre os seres humanos, que é um projeto

recorrer à caduca Europa, e he desta que novos

intrinsicamente moderno (TAYLOR, 2010: p. 26).

vândalos conduzirão a escravidão e a morte aos

No dia 20 de setembro lançamo-nos n’huma carreiras muito mais vasta, muito maior do que talvez se pense. Quando proclamamos o systema democrático, jà não foi huma simples luta pela independencia que assumimos; desde aquelle momento entramos nas fileiras do exercito humanitário, e a nossa causa tornou- se a cauza de todos os homens (O POVO, 1838, p. 108)

espera

[refere-se estrangeiros,

aos e

monarquistas], para

comola

filhos do novo mundo (O Povo, 1838, p. 149) Ainda há referência a (b). Há um antinacionalismo por parte dos não-democráticos, que apenas se curvam aos desejos egoístas do soberano. Por isso são “hordas” que “degradam a sua razão”, e que, por isso, utilizam-se da sua violência, o que


G N A R U S | 69 gera “cadáveres”. Talvez por conta das Reformas

uma uniformidade baseada na cooperação, e não

Protestantes, a Europa se mostra caduca, em

na competição narcísica entre tiranos.

oposição ao novo mundo, que pode ser algum vento de renovação ao estar longe desses movimentos políticos.

Em hum de nossos números anteriores expozemos parte de nossos pensamentos sobre a relação natural que existe entre a actual luta da republica rio grandense contra o império dos argentinos contra o malvado Rosas. Patenteamos nossas ideias como homens do povo, como homens da liberdade, como homens que simpathisaó com todos os que arvoraó o pendão da igualdade tenha o nome que tiver a terra em que nascerão (O POVO, 1838, p. 563) Neste trecho, há (a) e (b). Há, em (b) um império regido por outro líder pessoalizado, no caso Rosas, que é “malvado”. No sentido (a), há a liberdade e a igualdade independente do local de nascimento, o que reforça o igualitarismo (e a meritocracia).

Hum throno não pode aqui subsistir – he uma mancha que todos devemos concorrer para apagá-la. A época em que as republicas do sul tem de convergir em um só centro já a entrevemos, e bem depressa chegará – o tempo dos impérios e dos reis pode se considerar acabado. (O POVO, 1838, p. 109) Em (b), podemos ver que o trono produz fragmentação dos centros de poder, com impérios e reis. No sentido (a): as repúblicas, ao se focarem em Deus (e por extensão no ser humano), trazem

“Vimos rotos os liames da sociabilidade, violadas todas as suas leis, enthronadas a violência, coroado o delicto, e a virtude nos ferros”(O Povo, 1838, p.

15). Novamente, (b): a Lei, que é decorrente do consenso entre os cidadãos, não pode querer ser respeitada pelo tirano, o que degradaria a sociabilidade.

Laço social democrático Uma vez estabelecida a legitimidade do sistema democrático igualitário (calcada na ideia de Deus), passa a ser importante que esta se estabeleça segundo uma Lei Natural. O laço social é como se fosse uma repetição do laço realizado entre Deus e a humanidade (HERVIEU-LEGER, 1997: p.55) entre os próprios homens. Isso só pode se realizar com a destruição das heresias dos outros sistemas, para que se possa purificar novamente a prática política. Portanto, há uma espécie de evolucionismo, obviamente o cristão no sentido de conhecimento da doutrina cristã.

[...]bater e diperçar algum grupos inimigos que vagavao pelos matos dos campestres e rolante: elles prevenidos da entrada de nossa força haviaó feito 3 emboscadas, as quaes


G N A R U S | 70

apenas carregadas se puseraó em precipitada fuga deixando armamentos e outros objetos que atestaó o seu terror (O POVO, 1838, p. 563) O terror aqui pode ser entendido por duas vias. O terror que os soldados inimigos sofrem por parte do tirano; ou o terror como a falta de fibra em situação de combate por não se estar lutando por uma causa justa, daí a fraqueza na vontade. É, portanto, um arquétipo de não repetição. “Rio-grandenses! Dirigi ao cêo [céu] sinceros votos de gratidão por tervos livrados dos abutres que correm o Brasil! Vós sois o povo por deos escolhido para salvá-lo [salvar o Brasil]!” (O POVO,

dessa disposição (na expressão emprestada por nós de Pierre Bourdieu). Publicar de preferência artigos de doutrina, propagar princípios, apregoar as virtudes que devem ornar a alma do verdadeiro republicano, educar finalmente, se nos he permitida à expressão, nossos concidadãos ao novo modo de política (O POVO, 1838, p. 19) Há uma alma genuinamente republicana (que se constrói pela educação, e não pela cegueira causada pelo tirano) que é capaz de compreender o novo modo da política, que remete a adoção desse laço.

1838, p. 387). O Céu é o intermédio dos votos direcionados a Deus. A batalha é contra os “abutres” (e o abutre é um animal que não busca o confronto com suas presas). O laço social se estabeleceu verdadeiramente entre o povo rio grandense por esse ser escolhido por Deus para iniciar a execução de sua vontade.

A hum simples golpe de vista se patenteia o despotismo atroz e tyrannico que opprime o malfadado Brazil: as sympathias que nos merece esta desditoza nação, de que outr’ora fizemos parte; sua tendência ao systema democrático que havemos jurado; a surda guerra que simultaneamente nos fazem detestáveis e torpes luzitanos, sobre tudo a intima convicção que a antolha á feliz épocha em que o laço federeal com indissolúvel nó ligará todo o continente brasileiro; tão sagrados e respeitáveis títulos impelem nos a tomar parte nos males que dilaceraó e oprimem ao brazileiros livres [...]”(O POVO, 1838, p. 149)

Processamento da dinâmica social A dinâmica social é a descrição das consequências da adoção ou não da Aliança com Deus. Há uma situação anterior que pode ser descrita a partir de alguns fatos e uma situação posterior da mesma monta.

Essa

dinâmica

é

ilustrada

pelos

acontecimentos que serão descritos em seguida.

Que monumento de degradaçaó, immoralidade, e depravaçaó tem o governo do Brasil transmittido às gerações futuras, no segredo de enviar ao túmulo o innocente fructo da fraqueza humana!!!! Quando e em que tempo se imaginou o meio de Mattar crianças por via das mamadeiras! Santo Deus: consintis, e tolleraes ainda que monstros que mandão, e aos escravos que obedecen ordens taes” (O POVO, 1838, p. 302) A situação da ausência de Aliança se prolonga

Portanto, até aquele momento, há um depotismo

através de acontecimentos como esse da morte das

tirânico, que provém dos “detestáveis e torpes

crianças em orfanatos: degradação, imoralidade.

luzitanos”. A tendência ao sistema democrático do

Isso porque há monstros que mandam e escravos

Brasil (a partir do Rio Grande do Sul) conduz o

que os obedecem.

continente brasileiro a uma época em que se estabelecerá um laço federal como consolidação

Unamo-nos [referindo-se a República RioGrandense e às Repúblicas do Rio Prata] para fazer frente ao despotismo, que contra nós arremessa o reino da escravidão! Hum dia,


G N A R U S | 71

huma hora só de perplexidade nos pode perder! Attentai no procedimento da corte do Brasil, na sua impotencia e arrogância, e decidi- vos!!!” (O POVO, 1838, p. 108) A Aliança permite que se perceba a situação e se faça frente à toda essa injustiça, o que desenrola o processo de luta. Esse seria o inimigo a ser batido: o reino da escravidão, o cindimento do Brasil, a impotência e a arrogância.

Papel da Religião Deus, como já pudemos observar, pode ser considerado como o centro de imanência da democracia republicana proposta por Rossetti. A religião que deriva desse culto é considerada (a) como interior a prática política (pois a fraternidade é a celebração mais endêmica dessa religião) e (b) excluída ao mesmo tempo, pois ela pode ser

Combatendo pela independencia vingávamos as injurias e as perseguições aturadas, que suportamos sob a dominação de um governo tirânico: combatíamos unicamente por nos; mas apresentando-nos a face do mundo, como republicanos, novos deveres nos érão impostos: já naó éramos uma simples associação de homens, que cansados de sofrer levantando-se em um momento de desespero contra seus oppressores – offereciamo nos ao contrario como huma sociedade de homens livres, como um povo de irmãos incubidos de uma missão solenne de civilização e de gloria. (O POVO, 1838, p. 108)

deturpada para conferir poder a uma linhagem

A partir daí, inicia-se a descrição do levante

preocupa com a humanidade, e sim com o seu ego.

daqueles que se rebelaram contra os seus opressores: já não era uma batalha localizada (a de associação de homens), mas uma batalha pela civilização, pelo projeto universal, um povo de irmãos.

“nenhum fructo da fatricida, e brutal guerra que contra nós tem injustamente sustentadi aquelle governo inhumano, e os dissecados meios que deve contar para continuá-la […]” (O Povo, 1838, pg. 225). Aqui é possível se perceber o sentido (b). O governo não-democrático é inumano por conta da adoção deturpada da religiosidade, que concede poderes sobrehumanos ao tirano, que não se

“Hum estabelecimento dessa espécie [a Igreja], considerado em si mesmo, vem a ser uma mera chama de instrucção; porque o seu fim principal he a comunicação e a conservaçaó do dogma, e da moral na sua verdadeira pureza” (O POVO, 1838, p.

A época em que os princípios democrático humanitários deviao espalhar-se em todo o nosso continente era chegada, e o altíssimo fazia ensoberbacer os tiranos, e os homens, para que indignados levantássemos o braço, que tão poderozamente tem cartigado os prepotentes que antepõem obstáculos ao seu progressivo desenvolvimento (O POVO, 1838, p. 109) A percepção da existência da Aliança concomitou com o ensoberbecimento divino da natureza dos tiranos. Iniciou-se o progressivo desenvolvimento dessa

nobre.

dinâmica

solidariedade.

de

aumento

do

laço

de

387). Neste trecho, é possível perceber a separação entre religião e estado, a característica principal da política moderna. A Igreja deve permanecer em sua dimensão moral, e não na dimensão política. Esta seria a dimensão excludente da religião (a).

Nos o temos proclamado a face de Deos e dos homens, e cumprimeros a promessa – os homens são iguaes e irmãos – toda a humana família tem uma mesma origem. Mas Deos, dando-nos uma linguagem diferente, e colocando-nos em diferentes pontos da Terra, confiou a cada Nação huma missão igualmente diferente, porém harmonizante afim de concorre-mos accordes nos differentes meios de desenvolvimento (O POVO, 1838, p. 108)


G N A R U S | 72 Referências É possível perceber a fundação das nações decorrendo da missão dada por Deus, e não por conta da vontade de algum tirano específico. Nesse caso, a religião acaba sendo incluída na política, pois é através do dogma da igreja que se mantém a fraternidade que dá a imanência do sistema político. E sem essa imanência, a Aliança se esvai, pois os cidadãos se desumanizam e se submetem a autoridades ilegítimas.

Conclusão Este trabalho procurou mostrar as representações sociais sobre a justa governança de um jornalista pertencente ao movimento Jovem Itália que participou física e ideologicamente do conflito farroupilha, buscando-se essas representações através da análise de conteúdo. A chamada Revolução Farroupilha instalou uma república no Rio Grande do Sul. Todavia, o “referencial teórico” desta, que Rossetti esperava que fosse ser seguido pelos formadores da república, efetivamente não foi seguido e mantido, mesmo que o jornalista propagasse em seus escritos que efetivamente o fora. Portanto, há aqui um exercício interessante de Rossetti: convencer através de seus escritos que o caminho a seguir era aquele tanto para aliados quanto para inimigos, pois o perigo da fuga desses ideiais seria a volta ou o reforço do mando monárquico-nobre, tão danoso para a dignidade humana. Ricardo Cortez Lopes é Licenciado e Bacharel em História e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). rshicardo@hotmail.com

CIPRIANI, Roberto. A Religião no Espaço Público. In: ORO, Ari, STEIL, Carlos Alberto. A Religião no Espaço Público. São Paulo: Terceiro Nome, 2012. DURKHEIM, Émile. Sociologia e filosofia. Rio de Janeiro: Forense, 1970. HERVIEU-LÉGER, Danièle. Croire en modernité: audelà de la problématique des champs religieux et politiques. In: MICHEL, Patrick (org). Religion et Démocratie: nouveux enjeux, nouvelles approches. Paris: Albin Michel, 1997. LEITMAN, Spancer. Revolucionários Italianos no Império do Brasil. In: PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Império. Passo Fundo, RS: Méritos, 2006. MUSEU E ARQUIVO HISTÓRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Documentos interessantes para o estudo da Grande Revolução de 1835-1845, 1º volume: O Povo, 2º volume: O mensageiro, O americano. PANERAI, Fernanda Bitencourt. A presença de elementos políticos da Jovem Itália no periódico O Povo 1838-1840. Trabalho de Conclusão de Curso para a obtenção de grau em Licenciatura em História. 2009. SANCHIS, Pierre. Desencanto e formas contemporâneas do religioso. In: Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião, Porto Alegre, ano 3, n. 3, p. 27-43, oct. 2001 TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.


G N A R U S | 73

Artigo

A CULTURA ARMAMENTISTA DA SOCIEDADE ESTADUNIDENSE. Por Giancarlo Monticelli

A

Unidos,

para a vida urbana nos grandes centros industriais,

especificamente à época da colonização,

o que tornou a vida nestes grandes centros

nos traz à luz, o quão difícil e sacrificante

industriais bastante difícil. Para a Coroa inglesa e

sua

da

estas pessoas, a solução para este enorme

colonização da América portuguesa e espanhola,

problema seria a aventura colonizadora para as

onde a Coroa destes países teve presença

novas colônias na América, o novo eldorado.

foi

a

história

dos

ocupação.

Estados

Diferentemente

marcante, a Coroa inglesa terceirizou esta colonização devido a sua situação financeira precária, e por conta deste fato os colonizadores ingleses, por muitas vezes foram abandonados a própria sorte. O panorama da Inglaterra estava abalado pelas guerras internas e externas na Europa da Era Moderna. Com o início da Revolução

Industrial

e

seu

sistema

de

“Enclosures”(cercamentos), empurrava a grande população rural inglesa, que havia perdido suas terras, para as grandes cidades industriais, que, diante deste processo, mostrou o obvio: a total falta de estrutura para receber um enorme contingente de pessoas sem qualquer qualificação

A fome, o clima, os índios e o abandono da ajuda oficial, seriam, pelo menos inicialmente, os grandes obstáculos a esta empreitada. Mas a nova terra era a melhor opção naquele momento e esta chance seria aproveitada e defendida a todo custo, e, a sua defesa, como se diz popularmente, seria “armada até os dentes”, e, como conseqüência desta atitude, inicialmente, a independência da metrópole. Os que para lá foram, foram para ficar, sem dúvida, daí a necessidade e o incentivo de se armar como no comentário do historiador André Maurois no seu livro História dos Estados Unidos:


G N A R U S | 74 “O arrojo dos exploradores franceses era digno de admiração, mas por isso mesmo inquietava as colônias inglesas da costa. Principalmente Nova Iorque, que comunicava diretamente com o Canadá por vias líquidas que poderiam tornar-se rotas de invasão. Os franceses do Canadá desejavam Nova Iorque e Nova Iorque, que não ignorava este desejo, via nele uma causa de perigo permanente” (Maurois, 1946: p. 63).

expediente normal, isto é, era realizado de forma

A defesa do território era o grande mote inicial

ficava a cargo de cada colônia sustentá-los. Esta

e as guerras coloniais iniciadas na Europa por

prática de formação miliciana foi de grande

Londres, rapidamente chegavam à América e

importância

foram bastante perigosas para a soberania dos

estadunidense tem o direito de portar uma arma

territórios colonizados. Este contínuo estado de

de fogo, a formação deste grupo também foi

guerra serviria para a formação permanente de

garantida constitucionalmente. Diz a Constituição

milícias

no artigo I / seção VIII:

armadas

nas

colônias,

formadas

automática, no qual cada cidadão, fazendeiro e homem branco livre, com a capacidade de portar e disparar uma arma de fogo seria parte integrante deste grupo,

pois a presença de soldados

profissionais da Coroa Britânica era raro e custoso, e quando ocorria, era bastante problemático, pois

assim

como

cada

cidadão

basicamente por fazendeiros e exploradores que mesmo

não sendo de forma uniforme e

organizadas, serviriam atender aos interesses de cada colônia especificamente. Estes grupos armados, não oficiais, posteriormente lutariam pela independência e seriam naturalmente usados para conquistar novas terras. Com o tempo e a exaustão da exploração das áreas já colonizadas, notou-se a necessidade de expansão e conquista de

novas

terras

altamente

produtivas

e,

“Regular a convocação da milícia, a fim de garantir a execução das leis da União, reprimir insurreições e repelir invasões; Promover a organização, armamento e treinamento da milícia, bem como a administração das partes desta empregada no serviço dos Estados Unidos, reservando-se aos estados a nomeação dos oficiais e a obrigação do treinamento de acordo com a disciplina prescrita pelo congresso” (Constituição América).

dos

Estados

Unidos

da

sabidamente existentes ao sul, ao norte e,

O início turbulento do relacionamento com os

principalmente a oeste. O uso constante e

autóctones, donos da terra antes da chegada do branco europeu,

fortemente

foi

defendido

armas de fogo

com

as

por grande parte

existentes,

dos colonos era

seja, armas de

uma

fogo. A Guerra

incentivado

de

prática

rotineira,

não

armas ou

de

somente nestes

Independência, a

conflitos, mas no

qual

próprio dia a dia.

colônias lutaram

A

de

destes

formação grupos

armados era um

todas

as

forma

uniforme contra um

inimigo


G N A R U S | 75 comum, os britânicos, com as suas já bastante

lutaram entre si, numa guerra fraticida sem

experimentadas, milícias, defendiam os interesses

precedentes e com milhões de pessoas armadas e

separatistas. Enfim todas as colônias armadas com

treinadas para um conflito por quase 6 (seis) anos

um enorme contingente humano armado e um

,e, a respeito desta guerra os número de pessoas

inimigo comum.

envolvidas até hoje não está esclarecida. Maurois

A consequência deste conflito foi, além da Independência, a homologação de uma carta magna, a qual, a defesa do porte de armas pelos cidadãos foi garantida de forma jurídica e oficial. Guerras e mais guerras, esta foi a temática por bastante tempo, defendendo posses da Coroa Inglesa, mas agora seriam por mais terras e o vizinho ao sul sofreria as consequências do desejo expansionista, encabeçado pelo sentimento de levar “civilização” aos povos, o chamado de “Destino Manifesto”. O México sofreria com 2 (duas) guerras., contra o poderoso, e mal intencionado e muito bem armado vizinho, perdendo inicialmente o território do Texas ,e, finalmente, o Novo México e a Califórnia inteira, dando aos Estados Unidos a abertura coast to coast, isto é, de um oceano (Pacífico) a outro (Atlântico). A esse respeito nos fala Leandro Karnal na sua obra História dos Estados Unidos: das

origens ao século XXI: “Resolvida a “questão do Texas”, o presidente James K. Polk (1845-1849) dedicou-se a uma nova linha de expansão, que se estendia das Montanhas Rochosas até o Pacífico. A próxima conquista seria a Califórnia mexicana, devido ao interesse norteamericano no comércio marítimo da região. Os mexicanos sequer tentaram saídas diplomáticas e os americanos entenderam isso como motivo para mais uma guerra. O fim do conflito, em 1948, os mexicanos assinaram o Tratado de GuadalupeHidalgo, reconhecendo a fronteira do Rio-Grande e cedendo o Novo México e a Califórnia aos Estados Unidos.” (Karnal, 2007: p.128)

diz que:

“Que forças se enfrentavam? O norte tinha cerca de vinte e dois milhões de habitantes; e o sul cinco milhões de brancos e quatro milhões de escravos. Quanto ao número total de soldados em luta, não existe acordo entre historiadores. Os do Sul dizem que a Confederação mobilizou seiscentos mil homens contra dois milhões e quinhentos mil da União” (Maurois, 1946: p. 346) A consequência ao fim do maior conflito ocorrido no território do país foi a fundação, em 1871, da N.R.A. (National Rifle Association) , Associação Nacional do Rifle, criada para defender a segunda emenda constitucional e o direito de uso e porte de armas de fogo por qualquer cidadão. A partir deste artigo poderemos entender que o significado, hoje, da formação da Guarda Nacional daquele país, que foi explicitada no documentário de Michael Moore, Tiros em Columbine, no qual poderemos perceber que como a legislação administrativa destes grupos é regulada pelos estados da federação. Existem estados, como por exemplo, Michigan, que se um cidadão não for portador de uma arma de fogo é considerado um mau cidadão, não capaz de defender a sua pátria já que grande parte da sua população é integrante de uma milícia armada, e , em contrapartida, outros estados, como a Filadélfia, este porte de arma sem um registro controlado, se torna um crime grave. Na realidade o princípio filosófico desta atitude armamentista é: Partindo da

Mas o país se armaria ainda mais para o maior

premissa que o outro é sabedouro que eu tenho

conflito já ocorrido em seu território: a Guerra da

uma arma de fogo, não serei atacado pois também

Secessão, quando muitos de estadunidenses

poderei

responder

à altura.

Dentro

desta


G N A R U S | 76 perspectiva elucidaremos a questão do porte de

exemplo abrindo uma conta bancária no Estado de

armas de fogo garantida pela própria constituição,

Michigan ganha – se de prêmio um rifle

direito esse adquirido de forma natural pelo fato

automático.

de uma constante defesa de sua área, guerras ou conquistas de territórios, na enorme expansão para o oeste, na qual o país dobrou seu tamanho. Não é difícil imaginar John Wayne, Kirk Douglas,ou

Gregory

Peck

ou

até

O poeta, pacifista e músico Robert Zimmerman (Bob Dylan) na sua obra “Hurricane” inicia uma de suas canções mais famosas e emblemáticas em plena década de 60 desta forma:

mais

sem mencionar a Guerra do Vietnam com seus

“Pistols shots ring out in the barroom night Enter Patty Valentine from the upper hall She sees the bartender in a pool of blood cries out, “My God, they killed them all!” (“Tiros de pistola ouvidos no bar Patty Valentine entra pelo corredor de cima Ela vê o balconista do bar em uma poça de sangue Grita: “Meu Deus, eles mataram todos eles!”)

Rambos e Braddocks infalíveis e invencíveis

A canção nos fala do contexto de um crime

empunhando poderosas automáticas de 800 tiros

ocorrido naquela década com uma condenação

ou mais por minuto. Não é de se estranhar que um

injusta ligada ao racismo, porém o início da canção

país assim com esta mentalidade crie uma

deixa bastante clara a intimidade da sociedade

constituição toda particular defendida até hoje

estadunidense com as armas de fogo.

recentemente, Clint Eastwood empunhando a clássica Colt 45 nos clássicos filmes de faroeste ufanistas,

aos

quais,

desde

criança,

nos

acostumamos a assistir bombardeados pela TV aberta e o cinema com seus enlatados vips, isto

pela grande maioria das pessoas que lá vivem.

Esta matéria nos demonstra que a consolidação

Na constituição estadunidense estão inseridas

de uma cultura armamentista que perdura até os

22 emendas em formas de artigos, o artigo II nos

dias de hoje e que também se tornou uma das

diz:

grandes características deste povo é fruto de um

“Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, não se impedirá o direito do povo de possuir e portar armas” (Constituição dos Estados Unidos da América).

perfil histórico belicista. A inserção cultural do porte de armas e de uma política armamentista tem toda a significação arraigada no âmago desta cultura, por assim dizer, nesta fase supracitada inicialmente. Dentro desta visão poderemos

Esta emenda constitucional, hoje, nos Estados Unidos, é extremamente debatida dentro da sociedade daquele país pelas suas consequências como os massacres nas escolas, cinemas e lojas de fast food feitos por ex-militares paranoicos (estes habilitados

pelas

próprias

forças

armadas),

milicianos ou até mesmo civis que atiram com extrema habilidade, na população indefesa. Outro ponto a ser abordado é a facilidade de como se adquire uma arma de fogo legalizada, por

observar que a importância histórica de se compreender que o nascimento e o procedimento de um determinado povo, é de enorme influência sobre

este,

incluindo

também,

uma

compreensão sociocultural das atitudes e do “Modus Operandi” de um determinado raciocínio em relação às políticas internas e principalmente externas que os estadunidenses praticam há bastante tempo. Inicialmente no século XIX na América Central e do Sul e após a 1º e 2º Grande Guerra, expandindo – a para o mundo, como se


G N A R U S | 77 fosse a verdade absoluta de uma conduta sua economia e o American Way of Life como um conceito de civilização. Para nós latinos, que estamos em eternas campanhas de desarmamento da população, nos parece bastante estranho esse povo ao norte que adora se matar sem motivos. Porém os brasileiros nada podem criticar, pois vivemos uma guerra civil não declarada e que também não somos exemplo de nada. Giancarlo Monticelli é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e membro do GELHIS.

BIBLIOGRAFIA KARNAL, Leandro (org.). História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2007. MAUROIS, André. Trad. Godofredo Rangel. História dos Estados Unidos. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946. PADOVER, Saul K. Trad. A. Della Nina. A Constituição Viva dos Estados Unidos. 2. ed. São Paulo: Ibrasa, 1987. Tiros em Columbine (filme). Dir. Michael Moore. 2001, 120 min. son. color. 16mm. United Artists. E.U.A.


G N A R U S | 78

Artigo

AS CÂMARAS MUNICIPAIS NA AMÉRICA COLONIAL: PODER CENTRAL E PODER LOCAL NAS INSTITUIÇÕES COLONIAIS NA AMÉRICA PORTUGUESA. Por Miguel Luciano Bispo dos Santos.

RESUMO: Nos últimos anos, a pesquisa histórica sobre o nosso período colonial conheceu significativos desenvolvimento, seja pela recuperação de antigos objetos de estudo, analisados sob novas perspectivas, seja pelo surgimento de novas temáticas, que conferiram maior dinamismo a relação metrópole-colônia. Acreditamos que o nosso Artigo esteja inserido nessa renovação e avanços da historiografia sociopolítica do “Brasil-Colônia”, que evidencia que o mundo colonial não era “passivo” e obediente do mando da Coroa, mas uma célula atuante, os quais vários micropoderes se faziam representar. Logo, o presente trabalho propõe desenvolver uma reflexão sobre o sistema administrativo do Império português, sobretudo, das Câmaras Municipais, assim como a relação de poderes entre a metrópole portuguesa e suas possessões ultramarinas.

O

sistema administrativo do Império

ultramarinas, que era composta da seguinte forma:

português fora constituído em

Mesa de consciência e ordens (órgão responsável

quatro planos distintos, apesar de

por questões que envolvia aspectos morais,

ligadas entre si (administração

religiosos e política indígena na colônia); Casa de

central

metrópole,

Suplicação (instituição ligada ao sistema judiciário);

administração central na colônia; administração

Conselho da Fazenda (instituição responsável pelas

regional; administração local). A administração de

finanças e arrecadação de impostos), Casa das

Lisboa, sede metropolitana do Império, era

Índias ou Conselho Ultramarino (órgão responsável

composta

da

pela administração das possessões ultramarinas) e a

administração central da coroa, com atribuições

Mesa do Desembargo do Paço (instituição ligada

tanto na metrópole quanto nas possessões

também ao sistema judiciário).

por

órgãos

na

encarregados


G N A R U S | 79

jurídico entre o rei de Portugal e os donatários eram estabelecidos em dois documentos, Carta de Doação e Carta Foral. Nas últimas décadas do século XVI, existiam dezessete capitanias hereditárias e quatro capitanias reais (Bahia, Rio de Janeiro, Paraíba e Rio Grande), entre ocupada e não ocupadas. “No século XVIII a política de centralização de Dom João V e do marques de Pombal levaria a extinção das Capitanias particulares, por compra, abandono ou confisco”. (WEHLING, 2005: pp. 304) A administração local era representada pelas Câmaras Municipais, cuja instalação dependia de autorização régia, que atendiam os interesses da sociedade local perante ao poder central, representado pelas instituições reais.

Já a administração central na América portuguesa era representada pelo o Governo-Geral da Bahia, instituído em 1549. Para assessorar diretamente o

“Menor divisão administrativa da Colônia, o município ou termo, era dirigido por um órgão colegiado, a Câmara Municipal, com funções político-administrativas, judiciais, fazendárias e de polícia. Dentre as várias instituições portuguesas transplantadas para estes lados do ultramar, a municipalidade colonial regia-se pelas mesmas leis metropolitanas – as Ordenações -, que regulamentaram legalmente os concelhos em seu funcionamento das Câmaras Municipais durante o período colonial.” (SALGADO, 1997: pp. 69)

Governador-Geral foram instituídos alguns cargos régios, os mais importantes foram: Ouvidor-mor Provedor-mor

As estruturas das Câmaras Municipais na América Portuguesa:

(responsável pelas finanças e arrecadação de

A Câmara Municipal fora um dos pilares da

impostos) e o Capitão-mor (responsável pela defesa

sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos

da colônia).

do mundo, isto é, um elemento de unidade e de

(responsável

pela

justiça),

As capitanias hereditárias e reais eram o terceiro plano

administrativo,

isto

é,

administração

regional. No caso das capitanias particulares, os capitães donatários eram a autoridade máxima dentro

da

Capitania,

com

sua

morte,

a

administração passava para seu herdeiro. O vínculo

continuidade entre o Reino e seus domínios, assim como a Santa Casa da Misericórdia. Apesar da universalidade

das

Câmaras

no

Império

Ultramarino, existiam diferenças singulares entre elas, devido às condições socioculturais de cada região. Como salienta Charles Boxer:


G N A R U S | 80

“Entre as instituições que foram características do império marítimo português e que ajudaram a manter unidas as suas diferentes colônias contavam-se o Senado da Câmara e as irmandades de caridade e confrarias laicas, a mais importantes das quais era a Santa Casa da Misericórdia. A Câmara e a Misericórdia podem ser descritas, apenas com um ligeiro exagero, como os dois pilares da sociedade colonial, do Maranhão a Macau. Garantiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados passageiros não podiam assegurar.[...]” (BOXER, 2011: pp. 267)

As Câmaras eram instituídas nos locais com estatuto de vila e podiam ser criadas por um decreto real ou por meio de uma petição dos moradores locais ao rei. O sistema político dos Conselhos Municipais surgiu nos finais da Idade Média e constituía a forma racionalizada de um sistema político-administrativo mais arcaico, que Antônio Manuel Hespanha (1986) designa como patriarcal

comunitário

(baseado

num

reconhecimento natural e ilimitado da autoridade dos líderes da comunidade).

“Na verdade, o sistema político concelhio, tal como estava institucionalizado no século XVII, remontava aos finais da Idade Média e constituía a forma racionalizada de um sistema político-administrativo mais arcaico, que aqui designamos por patriarcal comunitário. Os funcionários honorários dos concelhos são, pela sua forma de designação e pelas suas funções, os honoratiores (os homens bons, vizinhos honrados, old men, great men) das comunidades camponesas tradicionais.” (HESPANHA, 1986: pp. 46)

pequena parcela de moradores da vila que poderiam participar desse sistema político, isto é, os homens bons, aqueles que não estavam ligados a nenhuma atividade manual, ser um dos principais da terra, andar na governança, viver à lei da nobreza e ser limpo de sangue. Dessa forma, o voto ficou restrito aos proprietários de terras e de escravos, com a exclusão, durante muito tempo, dos comerciantes, camponeses e artesãos. No que diz respeito à composição classista e racial das Câmaras coloniais, é evidente que as exigências respeitantes à “pureza de sangue” não podiam ter sido estritamente observadas em locais como São Paulo, com uma reduzida população branca. A necessidade de ocupar e de organizar a administração local forçou a relativização da observação a essas regras. Não que tenham sido questionadas, mas foram ignoradas devido à impossibilidade prática de cumpri-las. Segundo as Ordenações Filipinas, de 1603, o processo eleitoral da Câmara Municipal, sob a superintendência de um juiz da Coroa, deveria ocorrer em três em três anos, e nessas votações eram escolhidos os indivíduos que, ao longo de um ano, alternadamente, serviriam nos cargos de juízes ordinários, vereadores e procuradores. A eleição anual sucedia-se geralmente no dia ou na véspera de Ano Novo, sendo indicado um rapaz de forma aleatória entre o povo para retirar da urna os nomes dos eleitos. As listas de voto trienais eram compiladas

O sistema administrativo por Câmaras Municipais foi implantado logo no início do processo de colonização portuguesa na América, sendo São Vicente o primeiro município, fundado em 1532. A formação dos Conselhos era realizada através de um processo eleitoral, no entanto, somente uma

confidencialmente

por

seis

representantes eleitos para esse fim através de uma reunião de todos os chefes de família abastados e respeitáveis que estavam habilitados a votar. Outrossim, esses oficiais eleitos deveriam ser confirmados pela administração central da Coroa


G N A R U S | 81

ou pelo senhor da terra, caso a vila ou cidade se

confiscadas para serem utilizados ao serviço da

localizasse no interior de um senhorio.

Coroa. Estavam isentos também do serviço militar,

A documentação encontrada no livro de “Registro geral da Câmara Municipal de São Paulo”

exceção em situação que a sua vila fosse atacada diretamente.

exemplifica de forma bem pontual como era

Nessa perspectiva, a ocupação de cargos na

registrado o processo eleitoral de tal instituição

administração das Câmaras Municipais tinha

administrativa no século XVII.

grande significação social e política no Antigo

“E logo, a primeiro de janeiro de 1629, no mesmo dia e ano acima escrito e declarado nesta vila de São Paulo na casa do conselho, estando ali os oficiais dela, por eles foram aberto o cofre dos pelouros e sendo aberto, chamaram um menino e baralhados os pelouros saiu por juizes: Antônio Pedroso e Henrique da Cunha e vereadores Gaspar Cubas e Domingos Cordeiro e Francisco João e procurador Gressotimo Alves e por todos sobreditos tirado Francisco João se irem ao sertão contra as leis de sua majestade e títulos de correição, pela qual razão se lhe não foram dados os cargos até o senhor governador mandar, os que lhe for de justiça e logo mandaram chamar a Francisco João para efeito de receber juramento para que ele faça logo eleição dos oficiais que faltam, conforme sua majestade manda e logo se entregou as chaves do cofre aos oficiais da Câmara. As receberam Baltazar de Godoi e Francisco Jorge e Luis Fernandez Bueno e se assinaram aqui Manoel da Cunha escrivão da Câmara o escrevi. Votos que se tomaram para se fazer dois juizes e dois vereadores e um procurador.” (REGISRO GERAL DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Apud LIMA, 2006: pp. 61)

Ser membro camarário significava possuir determinadas prerrogativas no exercício da função, como: isenção de prisão arbitrária; tortura judicial; e de ser acorrentado. No entanto, essas prerrogativas eram revogadas em casos de alta

Regime português. No Brasil, o controle do acesso a cargos da vereação era um objeto de disputas entre grupos economicamente influentes nas vilas e cidades. Estas disputas podem ser entendidas, segundo Maria Fernanda Bicalho (2000), como um dos fatores que indicam a centralidade daqueles cargos enquanto espaço de distinção e de hierarquização dos colonos tanto social quanto politicamente. A composição das Câmaras Municipais na colônia variava de acordo com a importância da vila ou cidade.

Normalmente,

os

Conselhos

eram

compostos por 02 (dois) juízes ordinários, de 02 (dois) a 06 (seis) vereadores e 01 (um) procurador. O Fernando Ribeiro considera que, por não serem remunerados e pelo prestigio da função, os membros dos Conselhos não separavam entre a propriedade pessoal e do patrimônio da Câmara.

“Por não serem remunerados, e por representarem os elementos mais destacados da sociedade, não é de se espantar que considerassem essa situação, somada ao cargo que ocupavam, como privilégios. Esses privilégios levariam à confusão entre público e privado na administração municipal. Isto é, não haveria separação entre a propriedade pessoal dos oficiais da Câmara e o patrimônio dessa.”(RIBEIRO, 2010: pp. 3)

traição, nessas situações, a punição implicava até a pena de morte. Além disso, estavam dispensados de ter militares, praças ou oficiais, alojados em sua residência e de ter seus cavalos, carroças

Até o final do século XVII, o cargo da Câmara mais prestigiado era o de Juiz Ordinário, constituído em número de dois, sendo que um deles acumulava a


G N A R U S | 82

função de presidente da Câmara. O juiz ordinário

fixação dos pesos e medidas e pela vigilância sobre

tinha como atribuições: aplicação da lei em

os preços), e os juízes dos órfãos (responsáveis pelos

primeira instância (apesar de sua alçada ser

inventários, partilhas e administração dos bens dos

reduzida, pois cabia recurso ao ouvidor de

órfãos), estes últimos em apenas alguns municípios.

capitania de grande parte das causas julgadas); a

O escrivão, se bem que não tivesse inicialmente

fiscalização dos outros funcionários (os almotacés,

direito de voto, era frequentemente incluído entre

quadrilheiros,

alcaides-pequenos,

os oficiais. O mesmo acontecia com o tesoureiro,

tabeliães, escrivães e outros); da manutenção da

nos casos em que a sua tarefa não era, como

ordem, da defesa da jurisdição real, da contensão

acontecia muitas vezes, preenchida rotativamente

dos abusos dos poderosos, da polícia (das

pelos vereadores. Os oficiais subordinados da

estalagens, das batidas aos lobos); exercer a função

municipalidade, no entanto, não tinham direito de

de juiz dos órfãos, no caso de ausência de alguma

voto.

meirinhos,

pessoa exercendo tal função. Além dessas, os juízes ordinários teriam que realizar audiências em dois dias na semana nos Conselhos, vilas e lugares com sessenta vizinhos, e em um dia nos lugares com menor número de moradores.

De acordo com Boxer (2011), determinados Conselhos

Municipais

configuração

de

ainda

possuíam

representação

das

uma classes

trabalhadoras que se fundamentava no sistema das corporações. Os comerciantes e artesãos (ourives,

Já os vereadores assumiam o papel administrativo

armeiros, pedreiros, tanoeiros, alfaiates, sapateiros,

da Câmara, tinham as seguintes atribuições:

etc.) todo ano votavam, entre seus pares, 12 (doze)

determinação dos impostos; fiscalização dos

representantes. No caso de Lisboa e Porto, 24 (vinte

oficiais da municipalidade; aplicação da lei pelos

e quatro); onde formavam a Casa dos Vinte e

juízes ordinários; zelar pelas obras e pelos bens do

Quatro. Estes eleitos, por sua vez, nomeavam

lugar; determinação dos preços de alguns produtos;

quatro de entre eles, os chamados procuradores

garantir o suprimento de carne e pão; ordenação

dos mestres, para representarem os seus interesses

dos oficiais mecânicos, jornaleiros e moças de

na Câmara Municipal.

soldada; lançar fintas, além de despachar com os juízes os feitos provenientes dos almotacés. Igualmente,

“eram-lhes

destinadas

às

competências de caráter normativo das Câmaras, modernamente conhecidas como legislativas: fazer as posturas e os editais.” (SALGADO, 1997: pp. 7071)

“[...] Estes quatro representantes tinham o direito de assistir a todas as reuniões do Conselho e a votar em todos os assuntos que afetassem as guildas e corporações de artífices, e a vida econômica da vila ou cidade. Avisavam a Câmara dos preços que os artífices e jornaleiros deviam levar pelos seus respectivos serviços, e estabeleciam também as condições de aprendizado, de membro das guildas. [...]”(BOXER, 2011: pp. 268-269)

As Câmaras também tinham nos seus quadros

A Câmara tinha como funções administrativas na

funcionais os oficiais subordinados, seus números

vila de tributar e executar as leis na sua jurisdição

variavam de cidade para cidade, mas incluíam

de uma área de 06 (seis) léguas ao redor da vila;

geralmente os almotacés (responsáveis pela

intervir no mercado controlando os preços e

regularidade do abastecimento dos gêneros, pela

serviços ligados ao abastecimento da cidade;


G N A R U S | 83

supervisionar a distribuição e o arrendamento das

ligações com as bandeiras, e mesmo com o caminho

terras municipais e comunais; conceder o usufruto

do mar podiam ser responsáveis pelo afastamento

exclusivo de bens e serviços essenciais à vida

temporário de um homem bom de seus ofícios

comum da cidade, a exemplo do açougue público;

camarários.

determinar a construção de povoados; assegurar a manutenção de estradas, pontos, fontes, cadeias e outras obras públicas; regulamentar os feriados públicos e as procissões; responsável pelo policiamento da cidade, pela saúde e sanidade públicas; eleger os capitães-mores das Ordenanças (com a necessária presença do ouvidor ou provedor da capitania), seus sargentos-mores e outros postos dessa força auxiliar; além disso, era incumbida de proteger a terra às suas custas, como aponta o

O rendimento camarário provinha das rendas da propriedade municipal, incluindo as casas alugadas como lojas e dos impostos sobre as mercadorias que eram negociadas em sua jurisdição. Outra fonte de recursos financeiros eram as multas aplicadas pelos funcionários

da

Câmara.

Em

situações

emergenciais, o Conselho podia deliberar uma coleta por cabeça aos moradores da vila, o valor era estipulado conforme a capacidade real ou presumível de cada um para pagar.

Boxer:

“As Câmaras coloniais eram também, totalmente ou em parte, responsáveis pela manutenção, alimentação e vestuário das suas guarnições e pela construção e manutenção das suas fortificações, tal como pelo equipamento de frotas costeiras contra os piratas, etc. quando considerados estes encargos obrigatórios mas extremamente pesados e as suas receitas, não é de surpreender que raras vezes fossem capazes de equilibrar as suas receitas e despesas, e que encontrassem, de um modo geral, profundamente endividadas. Uma vez que as festividades religiosas e as despesas navais e militares tinham precedência sobre tudo o resto, a manutenção das estradas, pontes e sistemas de esgoto era, frequentes vezes, tristemente negligenciada [...]”.(BOXER, 2011: pp. 277)

O papel das Câmaras Municipais na dinâmica e relação de poderes do Império Português: Por um longo tempo, o tema das relações de poderes entre a colônia e a Metrópole no Antigo Regime foi marcado por abordagens divergentes entre os seus especialistas. Para uns, de inspiração weberiana, como Raymundo Faoro (1975), o Estado sempre foi maior que a sociedade, tendo por isso prevalecido o interesse estatal sobre o privado. Para outros, de inspiração marxista, como Caio Prado Jr (1942), afirma-se que o poder local, constituído a partir do latifúndio e da família patriarcal, foi maior e mais forte do que ação do Estado, diluindo a autoridade deste a ponto de

As

reuniões

da

maioria

dos

Conselhos

realizavam-se geralmente duas vezes por semana, às quartas-feiras e aos sábados. Os vereadores que não cumprissem com suas responsabilidades eram multados, a não ser mediante justificativa válida. Em São Paulo, era comum o descumprimento das reuniões ordinárias, cujo motivo decorria sempre dos oficiais viverem fora da vila. As possíveis

fragmentá-la por completo. Temos que destacar também o livro “Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808)” (1979), de Fernando A. Novais. Influenciado por teorias marxistas e, em grande medida, fundamentado nas teorias do “sentido da colonização” de Caio Prado Jr. Novais (1942) objetivou dar conta dos processos e estruturas da


G N A R U S | 84

colonização europeia no início da chamada Época

século XX, ocorreu uma viragem historiográfica da

Moderna, mas especificamente a colonização

relação de poder entre a metrópole portuguesa e

portuguesa na América. O sentido de Antigo

suas colônias ultramarinas. O campo da história

Sistema Colonial, de forma resumida, denota a

política e institucional da Europa meridional sofreu

estrita relação metrópole-colônia no qual, o

uma radical mudança de paradigma. “Categorias

exclusivo comercial, o mercantilismo, a dominação

como as de ‘Estado’, ‘centralização’ ou ‘poder

política da metrópole sobre a colônia, o tráfico

absoluto’, por exemplo, perdera sua centralidade

negreiro e a escravidão foram formas de

na explicação dos equilíbrios de poder nas

apropriação de riquezas e acúmulos de capital que

sociedades

só beneficiaram Portugal. A relação política entre

(HESPANHA, 2010: pp. 165). Em Portugal, podemos

Lisboa e as possessões ultramarinas era definida em

citar

termos econômicos: as colônias serviam de

Hespanha, Nuno G. F. Monteiro e Fernanda Olival,

mercados para os bens da metrópole, constituíam-

que propuseram uma revisão historiográfica sobre

se em espaços abertos de áreas de atividades para

a centralização da monarquia portuguesa ente

o comércio e negócios e de fornecimento de certos

séculos XVI e XVIII.

artigos a Portugal. Desse modo, a estrutura de governo era centralizada na metrópole, isto é, autoridade absoluta estava nas mãos do monarca.

“Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política mercantilista, expansão ultramarina e colonial são, portanto, partes de um lado, interagem reversisamente neste complexo que se poderia chamar, mantendo um termo da tradição, Antigo Regime. [...] O Antigo Regime Político – essa estranha e aparente projeção ao do poder para fora da sociedade – representou a fórmula de a burguesia mercantil assegurar-se das condições para garantir sua própria ascensão e criar um quadro institucional do desenvolvimento do capitalismo comercial. Tratava-se, em última instância, de subordinar todos ao rei, e orientar a política da realeza no sentido do progresso burguês, até que, a partir da Revolução Francesa e pelo século XIX afora, a burguesia pudesse tornar, como diria Charles Mozaré, conquistadora e modelar a sociedade à sua imagem, de acordo com sues interesses e segundo os seus valores.[..]” (NOVAIS, 2011: pp. 66-67)

Baseado

renovação

epistemológica

políticas

historiadores

de como

Antigo António

Regime” Manuel

Destacamos as abordagens de Antonio Manuel Hespanha, que propõe uma análise do poder no Antigo Regime português seiscentista a partir da noção de monarquia corporativa, onde o rei é a cabeça desse corpo político, caracterizado pelo policentrismo e pluralismo jurídico- político. O pesquisador lusitano deu ênfase às limitações do poder e dos recursos reais e à contínua autoridade da nobreza, dos Conselhos Municipais e das autoridades eclesiásticas. Tratava-se de um compartilhamento de poder, que obrigava a Coroa a governar por intermédio de um sistema de recompensa e incentivos, uma economia de mercês, e não do exercício da força e da autoridade. Tal interpretação implicava uma extensão do Estado patrimonial até uma fase adiantada do século XVIII, e sublinhava o contínuo vigor

da

estrutura

feudal-corporativa

de

recompensa e serviço ao Estado. da

historiografia política, a partir dos anos 70 do

A respeito da hierarquia dos poderes no Império português, Antônio Manuel Hespanha (2010) explana que o poder central devia respeitar,


G N A R U S | 85

enquanto característico de um Antigo Regime, os direitos e jurisdições que são prescritas como inmemoriais. Os súditos podiam questionar legalmente as determinações da Coroa que ia de encontro às práticas do costume do reino, o chamado direito comum. O monarca em seu papel

responsabilidade de governarem o Império Português. De qualquer modo, a Coroa e os seus conselheiros quase sempre dedicavam uma atenção cuidadosa aos pedidos e exigências que lhes eram feitos pelas principais Câmaras coloniais, mesmo nos casos em que a decisão final lhes era desfavorável.” (BOXER, 2011: pp. 277-278)

de governante tinha a obrigação de guardar o direito do bem comum do seu povo. Logo, as ordens

Maria Fernanda Bicalho (2010) considera que a

régias podiam ser contestadas quando ia contra as

“nobreza da terra” viam os cargos da Câmaras

leis de usos e costumes do reino.

Municipais como “lugar e veículo de noblitação, de

Pautado na ideia da garantia do bem comum e obediência aos interesses coletivos, a Câmara Municipal era um órgão institucional que ratificava seu poder e legitimava uma autoridade local que ora unia-se a voz dos centrais e ora contrapunha-se as determinações do poder central na defesa de seus próprios interesses. Nesse contexto, as Câmaras Municipais constituíam um poderoso órgão da administração colonial. Os Conselhos das vilas mais relevantes do Império português ainda tinham a prerrogativa de se corresponderem diretamente com a metrópole. Era nessa condição que se opunham muitas das vezes ao poder central representado

pelo

governo-geral.

Como

argumenta Charles R. Boxer:

“[...] em muitas ocasiões, puderam (Conselhos Municipais) influenciar a política da Coroa e conseguir a revogação ou a modificação de decretos reais impopulares. Esta correspondência forneceu também à Coroa uma oportunidade útil de verifica os relatórios dos vice-reis, governadores e arcebispos. Sucessivos monarcas da dinastia de Avis, Habsburgo e Bragança agradeceram à Câmara de Goa a informação objetiva que lhes fornecia. Por outro lado, a Coroa pensava por vezes que a Câmaras iam demasiado longe ao protestarem contra decretos impopulares ou contra decisões governamentais. Os vereadores municipais da Bahia foram severamente repreendidos em 1678, por atuarem como se partilhassem com o príncipe regente D. Pedro a

obtenção de privilégios e, principalmente, de negociação com o centro – com a Coroa – no desempenho do governo político do Império” (BICALHO, 2010: pp. 220). Ainda segundo a autora, os títulos e honras concedidos aos membros dos concelhios podem ser analisados como elemento instituidor de uma “economia moral do dom, de acordo com a qual aqueles beneficiados passariam a estar ligados ao monarca através de uma rede baseada em relações assimétricas de troca de favores e serviços” (BICALHO, 2010: pp. 206). Por meio dessa prática estabelecia-se um pacto político entre os súditos e o soberano. O indivíduo ou grupo que prestava serviço à Coroa (acima de tudo na conquista e colonização do ultramar) esperava ser retribuído com mercês, privilégios e honras. Havia, pois, uma obrigação tácita de reconhecimento e retribuição pelos serviços por parte do rei. Em contrapartida, o súdito agraciado estreitava sua vassalagem. Nesse contexto, os Conselhos Municipais eram de grande importância na estrutura administrativa do Império português, pois exerciam um papel de destaque na administração das vilas e na defesa dos interesses dos colonos perante a Coroa. Dessa forma, a administração portuguesa não é mais vista como centralizada, um poder absoluto, e


G N A R U S | 86

teve como efeito pôr em dúvida o papel predominante da Coroa e de um sistema colonial em

que

os

interesses

da

metrópole

necessariamente ordenavam o sistema político. No entanto, isso não significa que não houvesse uma centralização no aspecto político do Império português, a negociação é uma forma de manter a centralização, o controle político sobre a Colônia. Nesse sentido, a ideia da centralidade e da centralização está unida. A centralidade do rei está relacionada no aspecto social, do fato de todo mundo se remeter ao rei para conseguir algum privilégio, já a centralização é o aspecto político que passa pela dinâmica de negociação, e não mais como uma via de mão única. Sendo assim, a política centralizadora do soberano tinha como função manter a unidade, a harmonia, fazendo atribuições e dando garantias. Partimos, portanto, do princípio de que o Antigo Regime

estava

equilibrado

pela

ideia

de

“autonomia limitada”; coexistindo no corpo social, apesar da centralização, vários níveis de poder e campos de equilíbrio social. O Estado precisava dos corpos administrativos, e estes necessitavam do Estado. Isso nos leva a pensar que a colônia tinha suas dinâmicas particulares, porém com modelos jurídicos e político-administrativos característicos da Metrópole. Miguel Luciano Bispo dos Santos é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. miguellucianobispo@hotmail.com

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O Império Português século XV a XIX


G N A R U S | 88

Artigo

TRANSAÇÕES COMERCIAIS MERCANTIS: DESESTRUTURAÇÃO SOCIAL E O TRÁFICO NEGREIRO NO REINO DO CONGO NO INÍCIO DO SÉCULO XVI. Por Lucenildo Souza Campos e Maria Gonçalves Campos

RESUMO Este artigo propõe pesquisar o tráfico de escravos africanos entre o continente africano (Reino do Congo) e o Brasil. Para isso, a pesquisa focará os conceitos políticos e econômicos presentes na formação do Brasil. Conceitos de escravidão do período, a relação entre portugueses e congoleses e os relatos deste tráfico no início século XVI. Palavras-chave: Tráfico de escravos, Escravidão, História do Brasil, História da África.

Formação do território brasileiro e o cenário político-econômico europeu

P

população levando-os a miséria. Os europeus se viram obrigados a se lançarem a novas empreitadas comerciais, com intuito de ampliar sua economia.

ara compreendermos melhor o tráfico de

De início procuravam ampliar suas rotas na Europa,

escravos entre o continente africano e o

mas acabaram ampliando para novos territórios

Brasil necessitamos, a priori, retomarmos

fora de seu continente. É neste contexto que temos

qual o conceito em que a formação do Brasil se dá tanto no âmbito histórico quanto políticoeconômico.

a chamada “expansão marítima europeia”. A expansão marítima dos países da Europa, depois do séc. XV, expansão de que o descobrimento e

O período abordado, fins do século XV e início do

colonização da América constituem o capítulo que

XVI, encontramos uma Europa que transita da

particularmente nos interessa aqui, se origina de

Idade Média para a Idade Moderna. Devido a

simples empresas comerciais levadas a efeito pelos

epidemia da “Peste Negra” que dizimou boa parte

navegadores

da população europeia, e ainda por encontrarem-

desenvolvimento

se em uma crise econômica que assolava a sua

europeu, que até o séc. XIV é quase unicamente

daqueles do

países. comércio

Deriva

do

continental


G N A R U S | 89 terrestre, e limitado, por via marítima, a uma

econômicos ou a uma órbita de poder que lhe

mesquinha navegação costeira e de cabotagem,

escapa naquele momento. (Cf. MORAES, 2009).

(PRADO JR. 1994. p. 9).

Em meados do início do século XVI, os

Portugal privilegiado pela sua posição geográfica

portugueses limitaram-se assentar poucas e frágeis

se lançará ao oceano em sua empreitada

bases em seu domínio, representadas por algumas

mercantilista procurando empresas em que não

feitorias, pequenos e dispersos, entrepostos de

encontrassem concorrentes mais antigos e já

escambo e comercialização de pau-brasil. Mas no

instalados [...] buscarão a costa ocidental da África,

decorrer a Coroa Portuguesa devido a carência de

traficando aí com os mouros que dominavam as

colonizadores dispostos a ocupar o território, optou

populações indígenas. Nesta avançada pelo oceano

pela colonização semi-privada concedendo aos

descobrirão as Ilhas (Cabo Verde, Madeira, Açores)

colonos o máximo possível de autonomia. Assim, os

e continuarão perlongando o continente negro

grandes empreendimentos agrário-mercantis serão

para o sul. (Idem, p.10).

latifúndios canavieiros e engenhos, esta também

Inserido neste contexto é que se dá o “descobrimento” do Brasil, para o historiador Caio Prado Jr. a chamada época dos descobrimentos nada mais era do que a expansão da história do comércio europeu. “É sempre como traficantes que os vários povos da Europa abordarão cada uma daquelas empresas [...] Os portugueses traficarão na costa africana com marfim, ouro, escravos [...]”. (Idem, p.11). Ao ocuparem o território que viria a ser o Brasil os portugueses necessitavam criar uma estrutura para dominarem sua conquista, um vasto território ermo, instituído como sertão. O sertão não se define por características geográficas

clássicas,

muito

menos

pela

intervenção da sociedade sobre a superfície, mas sim uma realidade simbólica: uma ideologia geográfica. Definir um lugar como sertão significa projetar uma valorização futura em moldes diferentes dos vigentes no mesmo momento dessa ação. O sertão é comumente concebido como um espaço de expansão, como objetivo de um movimento expansionista que busca incorporar aquele novo espaço, assim denominado, a fluxos

será a espinha dorsal da economia colonial e principais núcleos populacionais. (Cf. COSTA, 1988). Portanto, a colonização do Novo Mundo

poria á disposição, em tratos imensos, territórios que só esperavam a iniciativa e o esforço do homem. É isto que estimulará a ocupação dos trópicos americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu não traria com ele a disposição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contra gosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele. (PRADO JR, 1994 p. 17).

Conceitos de escravidão presentes na África antes do início do século XVI E é nesta condição que o europeu em sua expansão marítima e mercantilista, com vasto território conquistado, com ambições políticas, financeiras e pessoais. Com baixa população, pois esta fora devastada pela peste, em seu continente, decide pela opção da escravidão como maneira eficiente para atender a seus projetos e obter mão


G N A R U S | 90 de obra necessária. Em primeiro momento procura

A escravidão no continente africano, utilizaremos

utilizar-se do indígena americano, entretanto, este

como base aqui o Congo quando iniciou contato

por

com os portugueses,

diversos

fatores,

culturais,

sociais

e

estranhamento a rotina de trabalho, que lhe era

[...] a escravidão seria do tipo doméstico. [...] não havia uma classe escrava no Congo, antes da chegada dos portugueses, mas, sim um grupo servil transitório – gente de origem estrangeira, capturada na guerra ou em razias, criminosos proscritos ou retirados da sociedade, pessoas que tinham perdido a proteção dos seus ou incorrido em fortes dívidas. Eram “escravos”, mas os seus filhos ou netos tinham por destino ser absorvidos na sociedade, ainda que de modo parcial, pois formariam um ramo inferior, de exescravos, da linhagem do “antigo dono”. (SILVA, 1998 p. 369).

estranha, recusa-se a tal situação de submissão. Além de que uma característica da escravidão era a submissão de um estrangeiro, pois o mesmo seria um estranho aos costumes e a geografia de onde seria cativo. Neste caso, o indígena americano não estaria em território hostil, pelo contrário este seria senhor destes territórios conhecia todas as suas especificidades geográficas, tanto que no decorrer dos séculos o europeu só dominara esse território inóspito utilizando-se do conhecimento indígena. E

para

resolver

esse

contra

tempo,

os

colonizadores europeus decidem recorrer à escravidão do povo africano. Deve-se aqui reinterar que o conceito de escravidão deste momento terá uma característica própria, que diferenciará da praticada pelas sociedades antigas e da que era conhecida e praticada no continente africano. Podemos dizer

Portanto, essa escravidão se assimilava muito as características da efetuada nas sociedades da Antiguidade. Outra característica conhecida pelos africanos seria a escravidão efetuada com características islâmicas que também era efetuada no continente. Os

Estados

muçulmanos

desse

período

interpretavam a antiga tradição escravista de acordo com a sua nova religião, os escravos eram

que

A escravidão era uma forma de exploração. Suas características específicas incluíam a ideia de que os escravos eram uma propriedade; que eles eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções judiciais ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção poderia ser usada á vontade; que sua força de trabalho estava á completa disposição de um senhor; [...] Enquanto propriedade, os escravos eram bens móveis; o que significa dizer que eles podiam ser comprados e vendidos. Os escravos pertenciam aos seus senhores que, pelo menos teoricamente, tinham total poder sobre eles. (LOVEJOY, p. 29-30. 2002)

utilizados nos serviços militar, administrativo e doméstico.

Inicialmente

os

escravos

eram

prisioneiros capturados nas guerras santas que expandiam o Islã da Arábia pelo norte da África e através da região do golfo Pérsico. A escravidão era justificada com base na religião. A natureza da demanda por escravos revela alguns aspectos importantes do comércio. As mulheres e crianças eram preferidas em maior número do que os homens. Tinham também mais probabilidades de serem incorporadas á sociedade muçulmana. Os meninos, fossem eunucos ou não, eram treinados para o serviço militar ou doméstico, e alguns dos mais promissores eram promovidos. As mulheres


G N A R U S | 91 também tornavam-se domésticas e as consideradas

tradicionais dessa sociedade, do reino do Congo,

mais belas eram colocadas em haréns. (Cf.

derivada deste contato.

LOVEJOY, 2002).

O contato inicial entre portugueses e congoleses se dá em 1483 quando uma embarcação

O contato português com os africanos, aqui no caso do Congo, fez com que esse conceito de escravidão, fosse alterado, assim como alguns conceitos sociais aos quais estavam relacionados com a escravidão se desestruturaram. Ao iniciarem o contato mercantil baseado em troca pagava-se

“os navios portugueses em marfim, panos de ráfia, peles, cera, mel e cobre [...] Embora, de vez em quando, alguns escravos, procurava reservá-los para os presentes que remetia ao rei de Portugal.” (SILVA, 1998. p. 370).

portuguesa ancora em Pinda (Mpinda) na margem sul da embocadura do Zaire. Os portugueses são acolhidos pelo mani ou senhor do Sônio (Sonho, Sono, Soio ou Soyo) em contato regido mais pelos gestos, acenos e mímicas do que uma comunicação verbal em si. Os portugueses talvez aconselhados pelo manisônio enviam mensageiros com presentes a Banza Congo (Mbanza, Umbanza ou Ambasse Kongo) aonde vivia o grande rei, o manicongo Nzinga a Nkuwa.1 Deste contato inicial o português, Diogo Cão leva consigo quatro congoleses para que estes fossem

Primeiros contatos entre congoleses e portugueses

“visitar”

Portugal

prometendo

que

estes

É interessante notar que o contato do europeu

regressariam dentro de algum tempo. Em 1485,

branco com o africano negro é revestido por uma

estes mesmo voltam vestidos à moda europeia e

áurea mítica, onde surgem menções que o africano

falando português. E relatam o que viram para o

acreditava que: o europeu por vir das águas,

manicongo.

considerada como divisora do mundo dos vivos e dos mortos (nas tradições religiosas africanas); e pela sua cor branca - cor essa que os mortos encarnavam em seus novos corpos após cruzarem as águas no mundo dos mortos - fossem seres vindos do além, antepassados, entes sobrenaturais, deuses... Devemos ressaltar que tal imaginário com certeza surge para reforçar e legitimar uma supremacia

europeia

“civilizada”

perante o

africano “primitivo” e este fato sendo verossímil ou não, o que não podemos deixar de analisar como

Neste

momento

teremos

o

seguinte

desenvolvimento de fatos que propiciam o início desta interação entre portugueses e congoleses: Primeiro, o manicongo anima-se com a ideia de ter os portugueses como aliados devido aos seus arcabuzes, bombardas, bestas; pois assim seu reino se tornaria muito mais forte perante aos reinos vizinhos através de um apoio português e ainda seus súditos relatavam que os mesmos contavam com um deus poderosíssimo.

um fato real e concreto é a desestruturação social,

Segundo, o monarca português D. João II

política e econômica, que se dará nas conjecturas

ambicionava compor aliança com um rei poderoso,

1

Sobre o reino do Congo, Alberto da Costa e Silva, A enxada e a lança: a África antes dos portugueses, 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 491-8.


G N A R U S | 92 o manicongo poderia ser esse monarca, este deveria ser ou poderia vir a ser cristão. Assim o manicongo entendia que

“por meio da ajuda portuguesa poderia levar a cabo o que hoje chamaríamos de modernização do país, importando novas técnicas, alterando processos produtivos, modificando comportamentos sociais e inserindo o Congo na economia do Atlântico.” (SILVA, 1998. p. 362). O manicongo embarca nos navios de Diogo Cão uma embaixada repleta de presentes para D. João II, tais como: dentes de elefante, panos de ráfia congoleses, damasco, objetos de marfim; chefiada pelo quitome manivunda (Mani Cabunda), pois por ser o sacerdote dos espíritos da terra e das águas, tinha jurisdição sobre o que ficava do outro lado do mar.2

Esta aceitação do cristianismo no Congo, dos manicongos, é tida como uma estratégia de política interna, pois o rei não controlava o culto dos antepassados, nem dos espíritos da terra e das águas no culto da religião tradicional, o que mudaria com a religião católica. Poderia assim, legitimar seu poder independentemente do apoio dos quitomes e gangas (sacerdotes), dos chefes das

candas (clãs e linhagens matrilineares). Houve

naturalmente

quem

rejeitasse

o

cristianismo e a ele se opusesse. A hostilidade provinha não somente dos sacerdotes e dos devotos das crenças tradicionais, mas também das linhagens matrilineares. [...] Como o manicongo tinha muitas mulheres e pelo casamento se vinculava à maioria das candas, o poder tendia a circular entre várias linhagens.

Primeiras influências: Os reis católicos Quando as caravelas portuguesas retornam comandadas por Rui de Sousa, começamos a ter as primeiras mudanças. O manisônio foi batizado, em uma igreja construída para a ocasião, recebendo o nome de Manuel. Após seguirem para Banza Congo, o manicongo deu ordens para que os portugueses ajudassem a construir uma igreja de pedra e cal aonde ele também viria a ser batizado. Devido a conflitos contra os angicos, e tiquês acabou sendo batizado antes da construção da igreja e passou a chamar-se João, D. João I. Saiu-se vitorioso do conflito utilizando-se de arcabuzeiros e barcos portugueses; e levava consigo uma bandeira de cruzado enviada pelo rei de Portugal e benta pelo papa Inocêncio VIII.

2 Padre Francisco de Santa Maria, O Ceo aberto na terra, Lisboa,

1597, reproduzido em Pe. Antônio Brásio, Monumenta

Ora, a religião e os novos costumes trazidos pelas caravelas alteravam isso. Ao opor-se à família polígama e ao exigir que cada converso, fosse rei, nobre ou plebeu, tivesse uma única mulher, o catolicismo quebrava um dos alicerces da harmonia da sociedade e do estado. (SILVA, 1998. p, 379). O cristianismo foi adequado e reinterpretado de acordo com as crenças locais pelo povo. Alguns aderiram à religiosidade sendo tocados pela fé cristã e outros por conveniência. Nzinga a Nkuwa tornou-se D João I e aceitou o cristianismo devido a necessidade de obter aliança com os portugueses e não por uma aceitação pura dos dogmas cristãos o que fez depois com que ele tenha se afastado da fé católica. O contrário do que se pensa sobre o príncipe Mbemba Nzinga, que tudo indica foi um

Missionaria Africana: África Ocidental, I. série I, v. I, Lisboa, 1952, p. 91.


G N A R U S | 93

Missão capuchinha no reino do Congo, em gravura do século XVII. fervoroso católico e veio a se tornar o sucessor de D. João I que morreu em 1506. Mbemba Nzinga utilizou-se do cristianismo, pois era o primogênito, ou seja, o herdeiro natural ao trono dentro do conceito europeu. Mas, no conceito tradicional seria seu irmão Mpanzu a Kitima, o herdeiro natural, que era apoiado pelos adversários do modelo europeu de governo.

Tráfico de escravos entre congoleses e portugueses Neste processo de modernização do país o rei redistribuía

a

riqueza

que

destinava

aos

governadores provinciais, que distribuíam aos chefes de distrito, que por sua vez distribuíam para os líderes de aldeias e cabeças de linhagens. Devido a isso se criou entre as elites congolesas o gosto pelos artigos que vinham nas caravelas.

Mbemba Nzinga venceu e matou seu irmão com

Os portugueses traziam em suas embarcações lã,

auxilio dos portugueses e se tornou D. Afonso I. Era

algodão, seda, rendas, contas de vidro, porcelanas,

tido além de um católico devoto como um

espadas, pistolas e diversas armas de luxo. Com a

europeizador. Durante todo o seu reinado de 1506

ampliação

á 1543 procurou “modernizar” o seu país através do

impossibilitou-se o pagamento com apenas cobre e

contato com os portugueses.

peles. Os portugueses manifestaram o desejo de

das

importações

transatlânticas,

receber em escravos, estes viravam meio de conversão da moeda nativa para a portuguesa. (Cf. SILVA, 1998).


G N A R U S | 94 A

partir

deste

momento

aqueles

que

bercantim português transportava no máximo 200

comercializavam como os portugueses, utilizaram-

escravos, uma caravela 500, um navio grande até

se de campanhas militares para resolver conflitos

700.

com seus vizinhos, apreendendo grandes números de pessoas para submeterem-nas à escravidão. Ocorriam guerras fúteis, apreensão de vassalos uns dos outros, quem cometesse pequenos delitos também estava sujeito a se tornar escravo. Esta virou a grande mola do comércio entre portugueses e africanos. Portugueses de diversas áreas fossem missionários, leigos ou membros da Coroa transformaram-se também em grandes traficantes de escravos, esses juntamente com negros e mulatos ficaram conhecidos como “pombeiros”.

A ânsia por escravos viciou todo o diálogo entre o Congo e os portugueses. Ao exportar gente, aquele país perdia mão de obra. E cada vez mais, pois, se na terceira década do século XVI, saía pelo porto de Pinda, entre dois mil e três mil escravos por ano, na quarta, o número aumentara para entre quatro mil e cinco mil, e em 1548, atingia os seis ou sete mil. (SILVA, 1998. p, 379). Os dados sobre esse transporte de escravos no século XVI, ainda é escasso, apenas podemos

Essas viagens em condições normais levavam de trinta e cinco dias, ao Pernambuco, quarenta até a Bahia e cinquenta ao Rio de Janeiro. As taxas de mortalidade dos escravos eram elevadas. Temos como exemplo, em 1569, Frei Tomé e Macedo citando o caso de uma embarcação que transportava 500 cativos. Somente em uma noite morreram 120, ou seja, 24% do carregamento. (Cf. MATTOSO, 2003). Quando a viagem prolongava-se além do período comum, a mortalidade de escravos aumentava consideravelmente, pois

“O cativo abordo dos negreiros está sujeito a todos os riscos e não tem defesa contra a morte, seu regime alimentar foi mudado bruscamente. Sente falta do exercício físico, mesmo se é obrigado a andar ou dançar no convés durante a viagem; a promiscuidade nos porões é insuportável. Medo e desesperança tomam seu coração. A higiene a bordo é, em regra geral, medíocre.” (MATTOSO, 2003 p. 52)

utilizar informações de casos isolados. Apenas o período referente aos séculos XVIII e XIX são mais concisos, pois contam com largas informações obtidas por Pierre Verger e de Herbert Klein.

A promiscuidade e o horror desse confinamento também têm servido de tema ás descrições de cortar o coração do leitor sensível, e é bem verdade que as condições do aprisionamento dos cativos eram horríveis. É preciso, porém, evitar as generalizações, pois o tratamento aos cativos variava de um navio a outro (MATTOSO, 2003 p. 46). Não podemos obter dados exatos da quantidade de escravos carregados, quantidade de viagens, faixa etária ou sexo dos escravos, mas pelos parcos dados sabemos que em média um pequeno 3

Castro Alves – Navio negreiro (trechos)

Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar...3


G N A R U S | 95 Considerações Finais

Atlântico, onde tal ruptura se deu no seu interior,

A necessidade de expandir o seu comércio devido

na sua condição física e psicológica.

à crise econômica oriunda do final da Idade Média fez com que os europeus se lançassem em busca de novos empreendimentos. Ao se depararem com novos territórios, e pela sua população ter sido

Lucenildo Souza Campos e Maria Gonçalves Campos são Graduandos em licenciatura em História pela UNIESP – Centro Novo. camposlsc@hotmail.com; m_goncalvescampos@ yahoo.com.br

drasticamente reduzida devido à “peste negra” utilizou-se da mão de obra escrava para poder atender

os

seus

interesses

financeiros

e

expansionistas. Neste contato dos europeus com novos povos, no caso africano, houve uma desestrutura do padrão social, estabelecido naquelas terras, antes da sua chegada àquele continente. Isto fez com que estruturas escravocratas surgissem para suprir a necessidade europeia de mão de obra escrava. Essa desestruturação se deu tanto no território africano, com desestruturações sociais, política econômica, financeiras, eclosão de diversos conflitos locais, intensificação de número de escravos. Como também se fez presente nos indivíduos que foram trazidos para o outro lado do

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALVES, Castro. Os escravos. 1ª ed. São Paulo: L&PM, 1997. COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. São Paulo: Contexto, 1988. LOVEJOY, Paul. A África e a escravidão. In:_____A escravidão na África: uma história de suas transformações. Trad. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2002 MATTOSO, Katia M. de Queirós. No Brasil: ser uma mercadoria como as outras. In:_____ Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003. MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia Histórica do Brasil: Capitalismo, território e periferia. São Paulo: Annablume, 2009. PRADO JR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 23. ed. São Paulo: Brasiliense,1994. SILVA, Alberto da Costa e. No reino de Congo e Angola. In_____: A Manilha e o Limambo de 1500 a 1700. São Paulo: Nova Fronteira, 1988.


G N A R U S | 96

Política – Tempo Presente

RELAÇÕES SINO-AFEGÃS: IMPACTOS DA RETIRADA DAS TROPAS DA OTAN DO AFEGANISTÃO Por Bernardo Corais e Paulo Pulcherio

Resumo A China recentemente intensificou sua ajuda econômica ao Afeganistão que, junto com investimentos comerciais, são importantes para a estabilidade do país depois de 13 anos de guerra. Este artigo tenta responder o porquê dessa intensificação. A China compartilha uma fronteira com o Afeganistão, de pequena extensão em comparação com seus outros vizinhos. Porém, essa fronteira liga o Afeganistão à Xinjiang, uma parte da China habitada por muçulmanos com os quais o governo chinês tem preocupação que a instabilidade do Afeganistão fomente separatismo, extremismo e terrorismo dentre eles. Este artigo argumenta que a assistência econômica e os investimentos chineses se devem principalmente pelo medo de separatismo. Iremos argumentar também que, com o fim da missão da OTAN no Afeganistão em 2014, a China intensificou sua ajuda para que a saída das tropas ocidentais não abale a frágil estabilidade do país e não possibilite a insurgência de grupos terroristas, ao mesmo tempo em que é uma oportunidade para a China aumentar sua influência na Ásia Central. PALAVRAS-CHAVE: China. Afeganistão. Separatismo. Xinjiang. Cooperação.


G N A R U S | 98 A garantia de estabilidade em um país é motivada por diversos fatores e, ao logo da história, esses

INTRODUÇÃO

fatores variaram dependendo do contexto histórico e

O

dos Estados envolvidos. Na política internacional, as ano de 2001 foi marcado pelo maior

motivações podem envolver tanto motivos idealístico

atentado terrorista sofrido pelos Estados

e morais quanto motivos definidos por interesses de

Unidos. Os atentados de 11 de setembro

poder. “É tão fatal, em política, ignorar o poder

foram seguidos pelo início da guerra ao terror e pela

quanto ignorar a moral” (CARR, 1981, p. 130). Na

invasão

no

história vemos políticas traçadas por Estados que são

Afeganistão. O objetivo era desmantelar a Al-Qaeda

motivadas mais por ideias, às vezes mais por

e destituir o Talibã do governo afegão. Das tropas no

interesses de poder e, finalmente, misturando os dois.

Afeganistão, os Estados Unidos lideravam em

É importante ressaltar, como Carr o faz, que os termos

números: em 2011, apresentavam um contingente de

de poder estão hierarquizados acima de motivações

101,000 soldados no país (LANDLER, 2014). O custo

idealísticas (CARR, 1981). Os distúrbios causados no

semanal referente a manutenção das tropas norte-

Oriente Médio a partir da criação do Estado de Israel

americanas ficava em torno de 2 bilhões de dólares

foram em parte por motivos morais. Países árabes

(BBC, 2011). O presidente norte-americano Barack

como Egito, Síria, Transjordânia, Iraque e Líbano

Obama, em 2011, anunciou um plano para a retirada

ingressaram em uma guerra contra o Estado recém

de tropas norte-americanas do Afeganistão. Ao final

criado visando a libertação da Palestina. No entanto,

de 2014, a missão no Afeganistão estaria oficialmente

nesse contexto, as motivações definidas em termos

acabada e a segurança passaria a ser uma tarefa dos

de poder podem ser encontradas: um novo

oficiais afegãos. No entanto, a retirada de tropas não

competidor no Oriente Médio ameaçaria o equilíbrio

é total: o plano consiste em diminuir gradualmente o

de forças da região. Pode ser inferido que na relação

contingente para que permaneça no país um número

da China com o Afeganistão há a presença dos dois

necessário para proteger a embaixada norte-

tipos de motivações. No caso específico da retirada

americana em Cabul e para ajudar o exército afegão

de tropas da OTAN e de tropas norte-americanas, a

em assuntos de segurança. Até o final de 2014, é

China se vê diante um dilema. Ao mesmo tempo que

pretendido diminuir as tropas de 32,000 para 9,800,

a retirada de tropas ocidentais é um ponto positivo

e em 2015 diminuir para a metade desse número.

para um aumento da influência chinesa na Ásia

Além das tropas norte-americanas, a OTAN planeja a

Central, uma vez que abre uma janela de

retirada total das tropas da ISAF (Força Internacional

oportunidade para o país avançar seus interesses na

de Assistência para Segurança, em inglês) ao fim de

região, essa retirada pode significa um abalo na frágil

2014. É esperado que o Afeganistão consiga manter

estabilidade do Afeganistão. Garantir a estabilidade

a estabilidade do país depois de vários anos de

do Afeganistão tem motivações morais, porém as

guerra.

intenções de garantir a integridade territorial da

liderada

pelos

norte-americanos

China são baseadas em interesses de poder. Não


G N A R U S | 99 podendo mais depender das forças ocidentais para a

econômica e os investimentos da China no

estabilidade necessária para impedir que insurgentes

Afeganistão se dão a partir da análise anterior.

no Afeganistão incitem movimentos separatistas na província de Xinjiang, como será argumentado nesse artigo, a China recentemente intensificou a

RESENHA DE LITERATURA

assistência econômica ao Afeganistão. O presidente

Tomar medidas visando a integridade territorial do

afegão Ashraf Ghani, eleito em setembro de 2014,

território chinês não é uma política nova. Na verdade,

visitou pela primeira vez a China em outubro desde as

a preocupação com a integridade territorial data

eleições para estreitar os laços diplomáticas e assinar

desde 1949, ano da proclamação da República

um acordo no qual a China prover mais de 330

Popular da China. Não só a província de Xinjiang faz

milhões de dólares de assistência econômica nos

parte dessa preocupação, mas também a região do

próximos três anos ao Afeganistão (PANDA, 2014).

Tibete e o Taiwan, que até hoje não é reconhecido

Este artigo argumenta que a intensificação da assistência econômica chinesa ao Afeganistão se dá pelo medo de separatismo do Partido Comunista Chinês em relação a região de Xinjiang. A região é habitada por muçulmanos em sua maioria sunitas da etnia Uigur, e a China teme que insurgentes afegãos causem um efeito spill-over sobre a região, o que intensificaria

movimentos

separatistas

e

atos

terroristas. Este artigo argumenta também que esse medo é intensificado com a aproximação da saída das tropas da OTAN do Afeganistão em 2014. A saída das tropas ocidentais do Afeganistão significa que a manutenção da estabilidade do Afeganistão, que já é frágil, poderá ser prejudicada. À China, que tem muitos investimentos no país que são prejudicados

como independente pelo Partido Comunista Chinês. O realismo de Edward Carr nos proporciona uma maneira de olhar para a assistência e os investimentos promovidos pela China no Afeganistão: ela é movida por motivos morais e também por motivos definidos em termos de poder. E o que é importante nesse olhar é o fato que interesses definidos em termos de poder são privilegiados em detrimento dos motivos morais (CARR, 1981). Por mais que a ajuda chinesa no Afeganistão seja para ajudar um Estado falido a se recompor, os motivos que são privilegiados são aqueles que são relacionados ao poder: o Partido Comunista Chinês quer garantir a estabilidade do Afeganistão para que grupos insurgentes não ameacem a integridade territorial da China.

por atos terroristas e, mais importante, que divide

Promover a estabilidade do Afeganistão não é uma

uma fronteira com o Afeganistão, interessa muito

tarefa tão simples e uma série de outros fatores estão

garantir a estabilidade do seu vizinho.

presentes nessa questão. As relações da China com o

A análise no artigo será estruturada em duas seções. A primeira seção será dedicada a uma discussão sobre como a China, Xinjiang e o Afeganistão se relacionam no contexto de defesa de integridade territorial. Na segunda seção analisaremos como a assistência

Afeganistão têm implicações nas relações da China com o Paquistão, cujo governo apoia os Talibã. A manutenção de uma boa relação com o Paquistão é vantajosa à China, pois o Paquistão exerce um papel de contrapeso à Índia no equilíbrio de forças da Ásia Central. A China, por sua vez, tem uma série de


G N A R U S | 100 disputas de fronteiras com a Índia. Assim, a China se

técnica, e também o apoio de ambos os países ao

vê diante de mais um dilema: ao mesmo tempo que

combate contra o terrorismo, extremismo e

vê como necessária a contenção dos insurgentes no

separatismo (EMBASSY OF THE PEOPLE’S REPUBLIC

Afeganistão para que o país deixe de abrigá-los e

OF CHINA IN THE ISLAMIC REPUBLIC OF

treiná-los ou pelo menos dificulte a ação de

AFGHANISTAN, 2012). Em 2014, a China anunciou

organizações terroristas em seu território, a China

que fornecerá uma ajuda de 330 milhões ao longo

não pode fazê-lo de modo a abalar suas relações com

dos próximos três anos, mais do que a quantidade

Paquistão, pois este é um contrapeso geopolítico à

total de assistência providenciada entre 2001 e 2011,

Índia, devido a sua disputa de fronteiras com ela

mostrando a disposição chinesa a se aproximar do

(Caxemira sendo o exemplo mais marcante).

Afeganistão mais do que somente na retórica.

Complicando mais ainda esse dilema, a China também procura deve manter relações saudáveis com a Índia, uma vez que o país é uma parte importante dos BRICS, parceiro da China na arena global.

primários da China quando se diz respeito ao Afeganistão, que se assemelham à política da China quanto

a

outros

países

da

Ásia

Central.

Primeiramente, a China quer garantir a segurança da

O foco deste artigo, contudo, será a assistência econômica

Michael Clarke escreve sobre três objetivos

chinesa

no

Afeganistão,

província de Xinjiang; em segundo lugar, a China

que

quer garantir o desenvolvimento de maiores laços

recentemente foi intensificada, o que é um marco

econômicos e investir em recursos naturais; em

importante que evidencia a disposição da China em

terceiro lugar, a China tem interesse em combater a

engajar no Afeganistão. A elevação do status das

influência dos Estados Unidos e da Índia na região

relações sino-afegãs para um parceria estratégica e

(CLARKE, 2013). Segundo Zhao Huasheng, o objetivo

cooperativa em 2012 inicia uma nova fase do

primário da China no Afeganistão é de fortalecer a

engajamento chinês no Afeganistão. Esse novo status

cooperação, fornecendo ajuda e investimentos e

das relações sino-afegãs entrou em vigor um ano

ajudando o Afeganistão a se integrar na região da

após o anúncio da retirada de tropas norte-

Ásia Central. Não é a toa que as relações Pequim-

americanas do Afeganistão, quando haverá a entrega

Cabul foram elevadas ao status de parceria

da responsabilidade pela segurança para os oficiais

estratégica e cooperativa em 2012. Além disso, para

afegãos (COOPER e LANDLER, 2011). Em junho de

conseguir esse objetivo, entre 2011 e 2013 a China

2012, após um encontro entre os então presidentes

deu 200 milhões de dólares em ajuda para o

Hu Jintao, da China, e Hamid Karzai, do Afeganistão,

Afeganistão. Ao ajudar o Afeganistão, a China espera

os dois assinaram um joint statement que define a

garantir a estabilidade do país, principalmente na

cooperação política, econômica, militar, cultural e

relação do Talibã com o governo afegão. Apesar da

também no cenário regional e internacional como os

China reconhecer o Talibã como um ator político, é

cinco pilares da relação bilateral sino-afegã. Além

totalmente

disso, o documento deixa clara a intenção de ambos

extremismo (HUASHENG, 2014). De acordo com a

os lados em continuar e expandir a cooperação

análise de Dirk van der Kley, a China não quer que a

contra

terrorismo,

separatismo

e


G N A R U S | 101 instabilidade do Afeganistão e nem o terrorismo

transporte do minério. Segundo Ron Synovitz, muitos

propaguem

Xinjiang,

residentes da região estão felizes com esse

majoritariamente habitada por muçulmanos sunitas

investimento, já que o empreendimento criará vários

da etnia Uighur, e esse é o principal motivo para que

empregos.

a China ajude o Afeganistão (KLEY, 2014).

preocupam com sua segurança. Temem pelo perigo

para

a

província

de

Contudo, Richard Weitz escreve sobre uma visão diferente quanto ao papel da China no Afeganistão. Ele cita que muitos observadores norte-americanos acham que a China está free riding nas costas dos mortos das tropas da OTAN. Ou seja, Os Estados Unidos e seus aliados gastam bilhões para manter suas tropas no Afeganistão, além de ter várias baixas ao longo da missão de derrotar os radicais islâmicos, porém quem se beneficia desse clima mais propício para desenvolvimento e investimento são os chineses, e não os aliados ocidentais. A China investiu em 2007 mais de 3 bilhões de dólares em um acordo feito pela China Metallurgical Group Corporation (CMGC) para explorar enormes jazidas de cobre em Mes Aynak, ao sudeste de Cabul, que dificilmente teria acontecido se as forças ocidentais não estivessem garantindo segurança no país. A China estaria free riding justamente porque se beneficia da segurança das forças ocidentais ao passo que não oferece quase nenhuma ajuda militar direta para as operações no Afeganistão (WEITZ, 2011). O caso do investimento chines nas jazidas de cobre em Mes Aynak nos leva à um outro fator importante a ser considerado na análise sobre a assistência econômica chinesa no Afeganistão: a voz afegã. Apesar de ser estimado que o minério possa valer até 88 bilhões de dólares, o local precisa de infraestrutura. É necessário a construção de uma usina para o fornecimento de energia elétrica para as operações de extração e de uma ferrovia para o

No

entanto,

esses

residentes

se

de gases perigosos devido às explosões necessárias para começar a extração do cobre e temem pela água que pode ser contaminada por toxinas. Também temem principalmente pela corrupção no país que pode

afetar

esse

investimento

porque,

no

empreendimento, milhares de dólares estão em jogo (SYNOVITZ, 2008). Não só sobre problemas ambientais e de saúde são as preocupações quanto ao investimento chines, mas também de teor cultural. Valerie Plesch, do Al Jazeera, escreve que vários arqueólogos estão precupados porque, além do cobre, várias estátuas budistas que datam da época de Alexandre, o Grande, estão enterradas em Mes Aynak. Arqueólogos estão tentando cavar o máximo que podem para salvar esses artefatos, porém dizem que precisariam de no mínimo 25 anos para poderem completar

a

escavação.

O

governo

afegão

dificilmente esperaria esse tempo todo, em vistas do seu acordo com a CMGC para exploração e extração do cobre. Inclusive os chineses já irão tomar conta do local até o final de 2014. Há praticamente uma corrida para terminar a escavação, ao passo que os arqueólogos afegãos lamentam a perda de um importante patrimônio cultural (PLESCH, 2014). No meio de todos esses fatores envolvendo Mes Aynak, ataques terroristas tem seu espaço. O Talibã, segundo Jessica Donati e Mirwais Harooni da Reuteurs UK, tem como uma de suas prioridades bloquear o projeto nas jazidas de Mes Aynak, alegando que todos os governos são corruptos e que os afegãos não iriam ser beneficiados pelo dinheiro vindo do


G N A R U S | 102 investimento chinês. O porta-voz do Talibã inclusive

e integridade territorial, e não permitir que os seus

diz que, se os chineses conseguirem pemissão do

respectivos

grupo, suas vidas podem ser poupadas (DONATI e

quaisquer atividades dirigidas contra o outro lado” e

HAROONI, 2012).

que “os dois lados expressaram forte rejeição a todas

No entanto, apesar de todos os motivos para a China se engajar no Afeganistão, Elizabeth Wishnick escreve que a China, mesmo com interesse em manter a segurança em Xinjiang, tem relutância em cooperar com o Afeganistão em termos de assistência econômica, preferindo focar em investimentos comerciais. Compara que, logo após a elevação do status das relações sino-afegãs para uma parceria estratégica e cooperativa, a China garantiu modestos 1,5 milhões de dólares para o Afeganistão. Alguns dias depois, a China deu ao governo do Tajiquistão 1 bilhão de dólares em ajuda econômica para a construção de uma fábrica de cimento e uma usina (WISHNICK, 2014). Van der Kley escreve que, a partir de 2012, a China começou a ter um papel mais proativo em relação ao Afeganistão, principalmente no campo diplomático, conforme o fim da missão da OTAN no Afeganistão se aproxima. No entanto, concorda com Wishnick sobre a modéstia da assistência chinesa, escrevendo que a ajuda provida pela China para a reconstrução do Afeganistão desde 2001 “tem sido de modestos 250 milhões de dólares” (KLEY, 2014). Apesar da modéstia em relação a assistência econômica, a China de fato começa a ter um papel proativo a partir de 2012. Além da elevação das relações Pequim-Cabul ao status de parceria estratégica e cooperativa em 2012, em um documento que deixa claro que “os dois lados se comprometeram a apoiar firmemente um ao outro nas questões relativas à soberania nacional, unidade

territórios

sejam

utilizados

para

as formas de terrorismo, extremismo, separatismo e crimes organizados” (EMBASSY OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA IN THE ISLAMIC REPUBLIC OF AFGHANISTAN, 2012), o governo sob a presidência de Xi Jinping deixa claro a ênfase na vontade de um Afeganistão estável. Shannon Tiezzi, do The

Diplomat, escreve que a Organização para Cooperação de Xangai (OCX), uma organização para cooperação regional cujos membros são a China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão, mas que é liderada de facto pela China, tem como uma das suas maiores preocupações os assuntos de segurança, sendo o terrorismo o item mais importante da agenda da organização. A China põe muita enfase na segurança, principalmente em relação a Xinjiang, como evidenciado quando o presidente chines Xi Jinping disse, no encontro da OCX no Tajiquistão no dia 12 de setembro de 2014, que os membros da OCX deviam se esforçar para combater os três maiores males: terrorismo, extremismo e separatismo. O Afeganistão é um dos temas de maior relevância para a OCX, pois os membros temem pela estabilidade do país após a retirada

da

OTAN.

Além

de

segurança,

a

preocupação é grande com assistência econômica, para que se obtenha estabilidade regional, incluindo nisso o Afeganistão (TIEZZI, 2014). Não só em foros multilaterais, Xi Jinping deixa claro sua ênfase também em combater os três maiores males internamente. Em uma sessão de estudos em grupo sobre segurança nacional e estabilidade social do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, em


G N A R U S | 103 abril de 2014, o presidente disse: “(Nós devemos)

líderes chineses e afegãos (o primeiro nível de

fazer terroristas se tornarem como ratos correndo

análise), porque apesar da importância a qual damos

através de uma rua, com todos gritando ‘batam

para os joint statements e para as declarações oficiais

neles!’" (WEN, 2014).

de cada um dos chefes de Estado, a mudança que

Em setembro de 2014, a China garantiu 330 milhões de ajuda para ao Afeganistão ao longo dos próximos três anos. As relações Pequim-Cabul não são torneadas apenas por ajuda econômica, mas também de importantes investimentos comercial. Este artigo tenta resolver a questão quanto aos motivos da recente intensificação da assistência econômica promovida pela China no Afeganistão, que contrasta com a “modéstia” citada por Wishnick e van der Kley.

estamos

analisando

não

é

cronologicamente

correspondente com uma mudança de governo específica. O nível sistêmico (o terceiro nível de análise) também se exclui pois o problema é, de certa forma, limitado geograficamente. A guerra ao terror, claro, é uma política mundial, mas a sua intensificação no pós-2001 não foi o gatilho para o aumento da intervenção chinesa no Afeganistão (à época do Talibã no governo), e a parceria estratégica aconteceu não em função de uma disputa com outra grande potência na região, mas sim da necessidade

METODOLOGIA As

informações

de apoiar um governo que se põe contra o terrorismo contidas

no

artigo

vêm

majoritariamente de artigos científicos, de artigos e

e livra os chineses de arcar com os custos da manutenção da estabilidade na região.

notícias de periódicos, discursos e de documentos

Neste artigo usaremos alguns conceitos que devem

oficiais. Para melhor estudar o nosso objeto de

ser definidos para facilitar a leitura. Um deles é o

pesquisa, usaremos o segundo nível de análise

conceito de spill over que é a ideia de que um

proposto por Waltz em seu livro "O Homem, o Estado

processo pode se espalhar de um país para o outro.

e a Guerra" (WALTZ, 2004). Usaremos o nível do

Não só a cooperação pode sofrer o spill over, mas as

Estado para analisar a relação entre China e

guerras também podem e em especial as guerras

Afeganistão, pois vemos esta como a melhor forma de

irregulares. Outros conceitos importantes são os três

analisar o porquê da mudança das políticas chinesas.

grandes males dos quais a China fala em seus

O objetivo ao usar esse nível de análise é entender as

discursos: o separatismo, terrorismo e extremismo,

condições que levaram a essa mudança e, tendo isso

que estão intimamente ligados. O terrorismo é o

em vista, o segundo nível de Waltz nos fornece a

meio pelo qual os separatistas que têm uma visão

lente que precisamos para olhar para dentro do

extremista do Islã procuram se fazer ouvidos. A

Estado chinês e entender quais os motivos que

estabilidade é um conceito que diz respeito à força

levaram à guinada nas relações sino-afegãs de 2012,

das instituições nacionais, a capacidade delas de

sem deixar de analisar as razões pelas quais Cabul

perpetuarem sua existência sem depender quase que

precisa de Pequim, sobretudo após a retirada da

só de ajuda estrangeira, e a instabilidade é um

maior parte da ISAF ao fim de 2014. Acreditamos que

conceito derivado desse, sendo a incapacidade das

essas razões transcendam a visão de mundo dos

instituições governamentais de um certo país se


G N A R U S | 104 manterem funcionando e provendo os serviços

internacionais com a Mongólia, Rússia, Cazaquistão,

básicos que um governo deve prover à sua população.

Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão e com a região

Outro conceito que a China usa em seus discursos

da Caxemira. É lar da minoria uigur que são em sua

com certa frequência é o peaceful rise ou peaceful

grande maioria muçulmanos sunitas e falam a língua

development, que é o caminho escolhido pelo comitê

uigur. Desde os primórdios da proclamação da

central do Partido Comunista Chinês para consolidar

República Popular da China (RPC), uma das principais

a China como uma grande potência sem entrar em

preocupações

conflito com as já existentes, e sempre buscando

consolidação do território. Xinjiang recebeu uma

cooperar para gerar benefícios para todos. Quando

atenção especial, já que muitos uigures queriam

usamos o termo assistência econômica queremos

autonomia territorial. O interesse na região, além de

dizer quando um país dá uma ajuda de custo a outro

consolidação territorial, também vem dos recursos

sem esperar receber de volta ou quando faz um

minerais. Xinjiang corresponde a um sexto de todo

empréstimo a juros irrisórios e prazo para pagamento

território chinês, possui 38% do carvão nacional e

longo. Esse conceito se difere de investimento na

25% das reservas de petróleo e gás, além de 730

medida em que neste último o governo do país

milhões de toneladas de minério de ferro, fazendo da

provedor ou suas empresas (estatais ou não) investem

província uma importante fonte de recursos minerais

em outro em busca de lucro, um negócio de fato.

dentro da China (CHINA, [s.d.]). Além disso, sempre

Investimentos também trazem benefícios para o país

houve o medo do efeito dominó: se o separatismo

onde se está sendo feito o investimento, como

vencesse em Xinjiang, regiões como o Tibete

fortalecimento da economia e geração de empregos.

poderiam seguir o mesmo rumo.

Também é importante definir free riding, que usamos quando nos referimos à alegada “carona” que a China pega na segurança provida pelas tropas da OTAN. Assim, apesar de ter contribuições muito pequenas à segurança afegã, a China se aproveita dos gastos dos EUA e de seus aliados para desenvolver suas atividades

econômicas

com

segurança

no

Afeganistão.

do

Partido

Comunista

era

a

A relação entre os uigures com a RPC foi marcada pelo ressentimento principalmente devido a dois eventos importantes da história da RPC: o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, que resultaram na morte de vários uigures e na destruição da cultura uigur. Na era pós-Mao, houve a abertura econômica sob o governo de Deng Xaoping e a criação das Zonas Econômicas

Especiais

(ZEEs).

Essas

reformas

transformaram a vida de muitos chineses, ao passo ANÁLISE Seção 1: As relações entre China, Xinjiang e Afeganistão sob a luz da integridade territorial Xinjiang, oficialmente Região Autônoma Uigur do Xinjiang, é uma região autônoma localizada no noroeste da China. A região tem fronteiras

que a qualidade de vida aumentou. Porém, essas transformações ocorreram somente nas áreas das ZEEs, predominantemente habitadas pela etnia Han, enquanto que as desigualdades sociais entre áreas urbanas e rurais aumentaram. Enquanto o litoral da China se beneficiava da liberalização econômica, o oeste ficava esquecido. No caso de Xinjiang, havia


G N A R U S | 105 grande preocupação por parte do governo de que

seria tolerado. Um exemplo foi após militantes

essa

e

uigures explodirem uma bomba em uma estação de

autodeterminação. O governo então engajou em

trem em Urumqi, capital de Xinjiang, e matar três

políticas de homogeinização, de liberalização

pessoas e ferir 79. O ataque coincidiu com uma visita

econômica e de investimento em infraestrutura para

de Xi Jinping à Xinjiang. O presidente ordenou que as

que a população uigur de Xinjiang ficasse contente

tropas chinesas em Xinjiang dessem um “golpe duro”

devido ao crescimento econômico. O Partido

no terrorismo (BRANIGAN, 2014). No encontro da

Comunista acreditava que, contanto que a população

Organização para Cooperação de Xangai (OCX) no

estivesse contente e se sentisse integrada ao resto da

Tajiquistão, no dia 12 de setembro de 2014, Xi

China, isso inibiria protestos por autodeterminação.

Jinping anunciou que os membros da OCX deveriam

Era a “Marcha para o Oeste” chinesa. De modo

se esforçar para combater os três maiores males:

complementar a essa política doméstica, a China

terrorismo, extremismo e separatismo. O presidente

passou a procurar parceiros econômicos na Ásia

pediu, como escreveu Shannon Tiezzi, do The

Central, com a qual Xinjiang divide grande parte de

Diplomat, para haver foco no combate ao

suas

resultaram

extremismo que envolve religião e que os membros

oleodutos, ferrovias e desenvolvimento econômico

da OCX deveriam se responsabilizar em garantir a

na região antes marcada pela pobreza e o abandono.

segurança regional e a estabilidade. As preocupações

desigualdade

fronteiras.

fomentasse

Dessas

separatismo

parcerias

A partir dos ataques de 11 de setembro, com o início da guerra ao terror e com a invasão liderada pelos norte-americanos no Afeganistão, a China passou a aplicar o discurso de guerra ao terror aos uigures. A questão da autodeterminação começou a ser tratada como uma questão de segurança e o governo passa a chamar separatistas de terroristas, além da repressão ser maior e passar a focar também

com Xinjiang ficam bem evidentes nesse discurso. Outro exemplo foi em uma sessão de estudos em grupo sobre segurança nacional e estabilidade social do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, em abril de 2014 onde Xi Jinping disse: “(Nós devemos) fazer terroristas se tornarem como ratos correndo através de uma rua, com todos gritando ‘batam neles!’".

em elementos do Islã. Desde então, os uigures são

Feita essa primeira análise da relação entre o

vigiados mais cautelosamente e qualquer indício de

governo chinês e Xinjiang, temos que levar em conta

separatismo

combatido

um outro importante ator: o Afeganistão. Com a

violentamente. Por exemplo, no mês do Ramadã de

invasão soviética e com a guerra civil, o Afeganistão

2014, um dos cinco pilares do Islã, o governo chinês

se tornou um covil para vários grupos terroristas,

intensificou uma campanha contra terrorismo e

entre eles o Talibã. Com muito de seus combatentes

separatismo, ao passo que proibia qualquer coisa que

vindos de campos de refugiados das guerras e com

parecesse ser muito conservador, como jejuar e, no

financiamento de países como o Paquistão e a Arábia

caso das mulheres, usar véu (DENYER, 2014). Sob o

Saudita, o Talibã tem uma interpretação rigorosa do

governo de Xi Jinping, em várias ocasiões o

Islã. E essa interpretação extremista é tudo aquilo que

presidente chinês deixou claro que o separatismo não

o governo chinês repudia em suas políticas, ainda

e

terrorismo

é


G N A R U S | 106 mais quando o Talibã oferece guarida para membros

que preocupa mais ainda a China em relação ao MITO

do Movimento Islâmico do Turquestão Oriental

(KECK, 2014).

(MITO), um movimento que quer a independência de Xinjiang, assim como de outras áreas próximas. Contudo, a China reconhece o Talibã como um ator político legítimo, e isso complica a situação, já que, ao mesmo tempo que a China quer manter boas relações com o Paquistão, o governo chinês não quer um spill over de terrorismo do Afeganistão para Xinjiang. Apesar do Talibã ser considerado um ator político legítimo, o MITO não é, sendo na verdade considerado um grupo terrorista, ao qual a China usa o discurso de guerra ao terror. Inclusive, o governo chinês alega que o MITO mantém ligações com a alQaeda (KAIMAN, 2013). Além disso, recentemente a Al-Qaeda e o Estado Islâmico declaram uma jihad contra a China por alegarem que a China ocupa a região de Xinjiang e oprime os muçulmanos dali, o

Diante dessa relação complicada, a China tem muitos motivos para investir e ajudar o Afeganistão. Para a China é essencial manter um Afeganistão estável. Uma guerra civil no país poderia resultar no

spill over do conflito para dentro de Xinjiang, que é um dos maiores medos do Partido Comunista Chinês. Porém, essa ajuda até 2012 era menos intensa quando comparada com as recentes intensificações da assistência econômica chinesa ao Afeganistão. Vimos que a assistência provida por Pequim ao Afeganistão entre 2001 e 2011 é menor do que a quantidade de ajuda que foi prometida para os próximos três anos em pelo menos 80 milhões de dólares. A pergunta é: qual a diferença entre a situação atual e a anterior que leva o governo chinês a mudar sua postura e ser mais proativo no


G N A R U S | 107 Afeganistão? A resposta é o anúncio da saída das

estratégica. Segundo a declaração, “a situação

tropas da OTAN no fim de 2014. A situação do

regional e internacional estava passando por

Afeganistão no começo da década a partir da

mudanças profundas e complexas”. O encontro se

intervenção dos norte-americanos e seus aliados era

deu no dia 8 de junho de 2012, um ano após o anúncio

de um reduto para grupos extremistas, e pode ser

do presidente norte-americano Barack Obama de

comparada com um ninho de vespas que aparece em

que as tropas norte-americanas iriam ser retiradas do

uma casa há muito tempo abandonada e que agora

Afeganistão até 2014, um claro motivo para a China

voltou a ser habitada: derrubar o ninho não é uma

engajar mais no Afeganistão. A declaração diz

tarefa segura ou simples de completar, no entanto

também que essa nova parceria colaboraria para que

alguém precisa resolver o problema. Como a OTAN

houvesse “paz, estabilidade e desenvolvimento na

sentiu a necessidade de resolver o problema, Pequim

região e além”, que “os dois lados se comprometeram

não precisava conter as organizações terroristas

a apoiar firmemente um ao outro nas questões

baseadas no Afeganistão e preferiu ainda se manter

relativas à soberania nacional, unidade e integridade

longe da intervenção militar. Porém, com a saída da

territorial, e não permitir que os seus respectivos

OTAN e o aumento da responsabilidade do governo

territórios sejam utilizados para quaisquer atividades

afegão de lidar com a segurança em relação às

dirigidas contra o outro lado”, que “os dois lados

organizações terroristas baseadas em seu território, a

expressaram forte rejeição de todas as formas de

China se vê impelida a ajudar o governo afegão. Se na

terrorismo, extremismo, separatismo e crimes

primeira década do presente século o governo chinês

organizados”, e que “continuariam a explorar novos

procurou manter uma ajuda modesta ao Afeganistão,

canais e métodos para expandir acordos e

em parte com o objetivo de não chamar a atenção das

investimentos bilaterais e a intensificar a cooperação

organizações terroristas para o seu país, agora essa

econômica”. Em segundo lugar, é importante notar

ajuda passou de modesta para mais ativa.

que também em 2012, na mesma reunião de membros da OCX, o Afeganistão foi admitido como

Seção 2: Um novo patamar para as relações sinoafegãs Identificamos quatro evidências principais que comprovam o engajamento mais proativo da China a partir de 2012. Em primeiro lugar, a elevação do status das relações sino-afegãs foi um dos primeiros passos da postura mais proativa da China em relação ao Afeganistão. Resultado de um encontro bilateral entre os então presidentes Hu Jintao, da China, e Hamid Karzai, do Afeganistão, durante uma reunião de membros da OCX, as relações sino-afegãs foram elevadas para um status de parceria cooperativa e

um membro observador da OCX. A OCX tem o papel principalmente de fortalecer laços econômicos entre seus membros e de ser um contrapeso à influência norte-americana na Ásia Central, além de ter como uma de suas maiores preocupações o tema de segurança. A entrada do Afeganistão como membro observador fortaleceu o contato do país com os demais membros da OCX, em especial com a China, que tem um interesse especial na região. Mais recentemente, o governo sob a presidência de Xi Jinping deixa claro a ênfase na vontade de um Afeganistão estável em uma nova reunião dos


G N A R U S | 108 membros no Tadjiquistão, no dia 12 de setembro de

inclusive, disse que essa seria uma nova era de

2014. Como Shannon Tiezzi, do The Diplomat,

cooperação nas relações sino-afegãs que iria levar o

escreveu, Xi Jinping disse que os membros da OCX

desenvolvimento a novas dimensões. Assim, a China

deviam se esforçar para combater os três maiores

garantiu ajuda de 330 milhões de dólares para os

males: terrorismo, extremismo e separatismo. O

próximos três, que é 80 milhões de dólares a mais de

Afeganistão é um dos temas de maior relevância para

toda a ajuda que a China deu ao Afeganistão de 2001

a OCX, pois os membros temem pela estabilidade do

até 2011. Como Clarke, Huasheng e van der Kley

país após a retirada da OTAN. Em terceiro lugar, o

escrevem, há um consenso quanto ao objetivo

então chefe de segurança chinês Zhou Yongkang fez

primário da China no Afeganistão que envolve,

uma visita histórica à Cabul em setembro de 2012. Era

principalmente, garantir a segurança de Xinjiang. As

a primeira vez que um oficial chinês fazia uma viagem

evidências aqui apresentadas do papel mais proativo

oficial para o Afeganistão em quase meio século.

que a China vem tomando a partir de 2012 com a

Nessa visita, ambas as partes entraram em acordo

aproximação do fim da missão da OTAN no

quanto a China ajudar a treinar a polícia afegã, que

Afeganistão confirmam esse objetivo primário.

iria assumir a segurança do país após a retirada das tropas ocidentais no final de 2014. A ajuda militar indireta é o único tipo de ajuda envolvendo forças militares feita pela China. O governo chinês não interfere

com

seu

exército

diretamente

no

Afeganistão (BBC, 2012). Finalmente, em quarto lugar, uma outra evidência importante é que, se de 2001 até 2011 a assistência econômica chinesa ao Afeganistão havia sido "modesta", como dito por Elizabeth Wishnick, ao comparar uma ajuda de um milhão e meio de dólares logo após a entrada do Afeganistão como membro observador da OCX com os 1 bilhão de dólares que a China deu ao Tajiquestão, o engajamento “modesto” da China passou a ser proativo. Entre 2011 e 2013 a China deu 200 milhões de dólares em ajuda para o Afeganistão, como escreveu Huasheng.

Em 2014, em sua primeira

viagem de Estado como presidente, Ashraf Ghani se encontrou com o presidente chinês Xi Jinping na China. Desse encontro, como escreveu Tom Kutsch, do Al Jazeera, foi anunciado uma cooperação econômica e de segurança mais estreitas. Xi Jinping,

É claro que, além do medo do separatismo em Xinjiang, a China vê outros motivos para ajudar o Afeganistão. A China tem buscado parceiros comerciais em todo o mundo para conseguir os recursos que sua enorme economia demanda para se manter crescendo, e prova disso é o investimento chinês em vários países africanos que possuem reservas pouco exploradas de recursos naturais, sejam de minério de ferro, carvão ou petróleo. Não seria diferente no Afeganistão, tendo em vistas as descobertas, de certa forma recentes, de grandes jazidas de minérios no país. O Afeganistão já era reconhecidamente rico em recursos minerais, e os chineses já haviam fechado um negócio de três bilhões de dólares pelo direito de explorar a reserva de cobre em Mes Aynak, situada a sudeste de Cabul. Porém, até 2010 não se sabia o quão extensas eram essas riquezas até que um time de pesquisadores americanos a serviço do Pentágono descobriram as vastas reservas de minério de ferro, cobre e outros metais raros (RISEN, 2010). Em 2014, foi feita uma estimativa do valor da riqueza mineral afegã posta


G N A R U S | 109 em um trilhão de dólares, sendo assim um grande

corrupção do governo afegão, já que milhões de

atrativo às empresas chinesas de mineração (FARMER

dólares estão em jogo nesse investimento. Não só nas

e SPILLIUS, 2010). Portanto, vemos que a chegada da

jazidas de cobre em Mes Aynak a China tem

China no Afeganistão era apenas uma questão de

investimentos, mas também em relação ao petróleo

tempo. Se por um lado o governo chinês quer a

da bacia do Amu Darya, onde o governo afegão

estabilidade do Afeganistão pelo medo de um efeito

assinou em 2011 com a China um contrato para

spill over de terrorismo e extremismo para Xinjiang,

exploração de petróleo por 25 anos (SHALIZI, 2012).

por outro a China quer tornar o país seguro para que

Assim, a estabilidade do Afeganistão é de grande

seus investimentos não sejam alvo de atos terroristas.

interesse para que os interesses econômicos chineses

No caso das reservas de cobre em Mes Aynak, a China

no Afeganistão se perpetuem. Não só no Afeganistão,

investiu em 2007 mais de 3 bilhões de dólares em um

mas a estabilidade afegã também beneficia a China

acordo feito pela China Metallurgical Group

para ter uma maior influência na Ásia Central.

Corporation (CMGC). No entanto, a exploração não foi para frente. Um dos motivos foi a existência de estátuas

budistas

em

Mes

Aynak

que

são

consideradas patrimônio cultural. Arqueólogos enfrentam uma corrida contra o tempo para escavarem e salvarem o máximo que puderem, mas o ideal seria no mínimo 25 anos. O governo chinês, contudo, pretende tomar conta do local até o fim de 2014. O outro motivo foi a de ataques terroristas, como dos Talibã, que, segundo Donati e Harooni da

Reuters UK, o grupo alega que todos os governos são corruptos e que os afegãos não iriam ser beneficiados pelo dinheiro vindo do investimento chinês, tendo como uma de suas prioridades bloquear o projeto nas jazidas de Mes Aynak. Os próprios afegãos aparecem nessa relação de maneira ambígua. Segundo Ron Synovitz, muitos residentes da região estão felizes

Na visão de de alguns observadores americanos, como diz Richard Weitz, a China estaria se aproveitando da segurança trazida pelos Estados Unidos e pela OTAN para investir o máximo que pode para retirar todos os benefícios possíveis do Afeganistão. Seria uma ação de free riding. No nosso ponto de vista, discordamos com essa visão, pois além da China ter interesse em comum com os Estados Unidos de combater o terrorismo no Afeganistão, os investimentos chineses são, antes de tudo, para tornar possível que o Afeganistão desenvolva melhor sua

economia,

crie

vários

empregos

e

consequentemente torne o governo eficiente o bastante para conseguir manter o Afeganistão estável. A China com certeza quer se beneficiar dos recursos do Afeganistão, mas o combate ao terrorismo, principalmente visando a segurança de

com o investimento do governo chinês, já que

Xinjiang, se destaca mais do que um simples free

empreendimento

riding. A abordagem chinesa em manter a

criará vários

empregos. No

entanto, esses residentes se preocupam com sua segurança, temendo pelo perigo de gases perigosos devido às explosões necessárias para começar a extração do cobre e pela água que pode ser contaminada por toxinas. Além disso, temem pela

estabilidade

do

Afeganistão,

econômica,

financiamento

com de

assistência

projetos

de

desenvolvimento e treinamento de pessoal é uma solução bem adequada a esse problema, pois ao mesmo tempo que fortalece o governo afegão que


G N A R U S | 110 será o novo responsável por manter a segurança no

intensificação da assistência econômica chinesa ao

país após a saída de forças da OTAN, não contribui

Afeganistão, sendo que em 2014 foi prometido 330

para o aumento da tensão entre os muçulmanos

milhões de dólares ao longo dos próximos três anos,

chineses e o governo chinês, além de ser uma forma

que é 80 milhões a mais que toda a ajuda chinesa ao

de abordar a questão que está de acordo com o

Afeganistão de 2001 até 2011.

discurso chinês de peaceful rise e de não intervenção, já que dispensa intervenção militar e não entra em conflito com outros Estados.

Não só o medo de separatismo, terrorismo e extremismo em Xinjiang move os interesses da China no Afeganistão, mas também interesses econômicos. Investimentos realizados por empresas chinesas no

CONCLUSÃO Devido ao Afeganistão servir de covil para vários grupos extremistas muçulmanos, a China tem interesse em manter o Afeganistão estável. A estabilidade é essencial porque o país faz fronteira com a região autônoma da Xinjiang, na China, que é lar dos uigures, predominantemente muçulmanos sunitas e que tem um histórico de quererem autodeterminação. A China tem medo de que haja um efeito spill-over do Afeganistão para Xinjiang que fomente o separatismo mais ainda na região. A China deu assistência econômica ao Afeganistão para ajudar o país a ficar estável desde a invasão dos norteamericanos e seus aliados em 2001. Porém, o que era uma ajuda menos intensa se intensificou a partir de 2012, pois foi anunciado o fim da ISAF e a retirada das tropas da OTAN, o que inclui os Estados Unidos, do Afeganistão ao fim de 2014. Quatro evidências sustentam a hipótese de que a ajuda chinesa ao Afeganistão foi intensificada. (1) A elevação do status das relações sino-afegãs, que passaram a ser uma parceria cooperativa e estratégica, (2) a admissão do Afeganistão como membro observador da OCX, (3) a visita do oficial de segurança Zhou Yongkang, a primeira em mais de 50 anos de um oficial chinês ao Afeganistão e (4) a

Afeganistão como nas jazidas de cobre em Mes Aynak e nas reservas de petróleo na bacia do Amu Darya dependem da estabilidade do Afeganistão para não serem alvos de atos terroristas. Então, apesar da prioridade ser garantir a segurança de Xinjiang, o governo chinês também quer garantir a segurança de seus investimentos. O termo free riding para caracterizar a China em sua relação com o Afeganistão durante a permanência das tropas norte-americanas e de seus aliados é equivocada. A China quer se beneficiar dos recursos naturais do Afeganistão, mas o combate ao terrorismo, um desejo que é comum também aos Estados Unidos, é a prioridade maior, pois o medo do Partido Comunista de separatismo em Xinjiang é grande. Embora o free riding não seja adequado para caracterizar as ações da China no Afeganistão, o realismo de Carr é. Na política internacional, as motivações podem envolver tanto motivos idealístico e morais quanto motivos definidos por interesses de poder, porém as motivações baseadas em termos de poder estão hierarquizadas acima de motivações idealísticas. Garantir a estabilidade do Afeganistão tem motivações morais, porém as intenções de garantir a integridade territorial da China são baseadas em interesses de poder.


G N A R U S | 111 A abordagem chinesa na sua relação com o

habitantes das áreas mais atingidas, como é o caso do

Afeganistão através de majoritariamente assistência

Tibete e Xinjiang, e uma outra que se faz presente na

econômica e investimentos, frente a saída das tropas

política externa chinesa, que é a de manter um baixo

da OTAN do Afeganistão, é eficiente porque ajuda o

perfil e não chamar atenção dos grupos terroristas.

governo afegão a manter o Afeganistão estável ao

Através desse método, a China se isenta de ter gastos

passo que fortalece a economia do país e gera

exorbitantes

empregos. Além do mais, a abordagem chinesa não

internacionalmente. Portanto, vemos que um campo

contribui para um aumento de tensões em Xinjiang,

promissor para futuros artigos e teses a observação

já que não envolve uma intervenção militar e nem

mais profunda de como os outros países da OCX

entra em conflito direto com outros Estados. Resta

enfrentam o problema posto pelo terrorismo e como

saber se esta abordagem será viável no futuro. Há a

essas visões dialogam umas com as outras no âmbito

possibilidade da reconstrução do Afeganistão falhar

das

e o governo cair novamente em mãos extremistas, e

importante que isso é discutir se as visões dominantes

caso a OTAN não queira bancar uma nova incursão

de como combater o terrorismo em cada um desses

por considerar um caso perdido, a China talvez tenha

países são compatíveis, isto é, se elas podem ser

que tomar a frente na guerra ao terror na região. O

harmonizadas e dirigir um esforço conjunto entre os

Talibã já atrasou as obras de Mes Aynak, gerando um

países da região.

grande prejuízo para as companhias chinesas, e a AlQaeda e o Estado Islâmico já declararam que a jihad

e

organizações

de

manchar

multilaterais.

sua

imagem

Ainda

mais

Bernardo Corais e Paulo Pulcherio são graduandos do Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ

mundial inclui Xinjiang. Sendo assim, o potencial para ataques terroristas mais contundentes à província podem aumentar num futuro em que os EUA e as potências ocidentais não mais interfiram no Oriente Médio e na Ásia. Caso o governo afegão de fato caia, a China poderia sem dúvida alguma contar com o apoio de outros atores igualmente interessados em manter a estabilidade da região, como a Índia, Rússia, Paquistão e os países da Ásia Central. A OCX é uma excelente

forma

de

integrar

esses

atores,

principalmente porém resta saber a eficiência com a qual ela conseguirá agir e qual a disposição desses atores em se comprometerem com a guerra ao terror na região. A China parece possuir duas formas de abordar o problema do terrorismo. Uma delas é a abordagem no âmbito doméstico, com cerceamento dos direitos, e abusos de poder para com os

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G N A R U S | 114

Artigo

FORMAS DE PERSUASÃO E CONTROLE DOS TRABALHADORES DOS TRABALHADORES DOS ENGENHOS NO IMEDIATO PÓS-ABOLIÇÃO (ZONA DA MATA SUL DE PERNAMBUCO 18841893). Por Maria Emília Vasconcelos dos Santos

Resumo: O objetivo fundamental deste artigo é tratar dos trabalhadores que atuaram no mundo dos engenhos, em uma conjuntura pré-abolição e pós-escravidão, a partir de um diálogo com os processos judiciais e registros policiais. Discutimos as relações estabelecidas entre os trabalhadores e os mecanismos utilizados pelos empregadores, senhores ou prepostos para explorar a força de trabalho de seus empregados e controlá-los, isso nas últimas décadas do século XIX, na Mata Sul de Pernambuco.

O

s senhores de engenho ficaram atentos

libertandos,

aos projetos, aos debates e à atuação

contemporâneos como despreparados para a

dos escravos e libertos ao longo da

liberdade. A situação da província pernambucana

década de 1880, notadamente, nas questões que

nas últimas décadas do século XIX não se resumia

envolveram o fim da escravidão na lavoura

às questões levantadas pela Abolição. A economia

açucareira. Eles protagonizaram maneiras de gerir

açucareira estava enfraquecida, obrigando os

e de controlar o trabalho dos cativos e ex-cativos,

plantadores a aumentar o uso da mão de obra e

com o objetivo de fazer prevalecer os interesses

reduzir o salário pago aos diaristas.1 No dia a dia

senhoriais e preservar a força de trabalho sob sua

dos

tutela. Temos, por exemplo, a lei do ventre livre,

implementadas para garantir a estabilidade da

que garantia aos proprietários a guarda dos

força de trabalho na região.

engenhos,

considerados

diversas

por

estratégias

alguns

foram

ingênuos até os 21 anos de idade. Medidas como essa foram adotadas para reafirmar direitos senhoriais sobre ex-escravos e para conduzir os

ZACARIAS, Audenice Alves dos Santos. Legalidade e autoridade: a implantação da Republica no Estado de Pernambuco (1889-1893). Dissertação de Mestrado, UFPE, 1

Recife, 2009.


G N A R U S | 115 O trabalho na lavoura canavieira, durante o

separação entre tempo de trabalho e tempo livre.

período da safra, exigia que os seus trabalhadores

Desse

fossem submetidos a rígidas disciplinas de

atrapalhassem o descanso dos trabalhadores no

trabalho. A pessoa responsável por supervisionar

interior das propriedades agrícolas. As autoridades

todas as atividades ligadas ao serviço do eito no

empenharam-se para que seus dirigidos se

interior dos engenhos era o feitor e essa

tornassem trabalhadores livres laboriosos, bem

nomenclatura permaneceu no período pós-

comportados. Procurava-se incutir o hábito do

abolição, pelo menos na documentação por nós

trabalho

acessada.

trabalhadores, pois, estando mais descansados,

Os feitores possuíam diversas atribuições no

modo,

evitavam-se

disciplinado

e

eventos

regular

entre

que

os

teriam melhor desempenho no serviço.

exercício de suas funções. Entre elas, a de expulsar

As pessoas responsáveis pela gerência dos

escravos fugidos oriundos de outras propriedades,

trabalhadores nos engenhos barganhavam bom

manter a organização dos trabalhos e competia

comportamento dos seus subordinados ao “ceder”

também a ele zelar pela conservação dos

autorização para que à noite eles realizassem

equipamentos e da estrutura física do engenho. De

reuniões. E, desse modo, pretendiam ganhar a

acordo com o Barão de Goicana, um feitor teria de

gratidão dos trabalhadores que deveriam retribuir

ter uma postura enérgica, notadamente, quando

também com bom comportamento. Sendo assim,

gerisse os serviços desempenhados por pessoas

eles se reuniam nos locais de moradia para

livres.2 O feitor tinha um papel chave para

conversar, cantar, brincar, dançar e consumir

conduzir as tarefas do engenho podendo,

bebidas alcoólicas. Tais reuniões por vezes

inclusive, executar expulsões ordenadas pelo dono

terminavam com o envolvimento em brigas e

do engenho com a prerrogativa de usar de

confusões.

violência contra os trabalhadores. Nem sempre os

poderiam desenvolver um senso de comunidade

feitores agiam conforme a lógica senhorial, por

ou identidade, como a de trabalhador de engenho

vezes eles escondiam as pequenas transgressões

que passava pelas mesmas agruras.

dos trabalhadores sob seu comando e assim impediam represálias senhoriais sobre os que cometiam furtos ou se afastavam do trabalho por alguma razão.

Mas

também,

nessas

ocasiões,

As reuniões, algumas delas festivas, nem sempre acabavam de forma cordial, mesmo entre pessoas que tinham uma relação mais próxima, dentro ou fora do ambiente de trabalho. Por exemplo, em

O feitor tinha que executar as ordens do

fevereiro de 1877, Simplício dos Santos e Manoel

proprietário, chamar a atenção dos trabalhadores

Francisco de Santana, moradores do Engenho

que porventura estivessem dispersos e não

Amizade, em Escada, saíram juntos para um

cumprissem com suas obrigações. Todas essas

divertimento no Engenho Soledade em Ipojuca e,

responsabilidades demonstram uma tentativa de

sem motivo justificado, os dois brigaram e se

controlar as tarefas realizadas pelos trabalhadores,

agrediram com facadas e cacetadas.3

ou melhor, desejava-se demarcar de forma clara a 3

GOUVÊA, Fernando da Cruz. “O Barão de Goicana e seu Diário”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Vol. L, Recife, 1978, p. 187. 2

Ofício da Delegacia de Escada 05 de fevereiro de 1877, folhas sem numeração, Fundo SSP, Delegacia de Polícia de Escada, nº 130 (1877-1887), APEJE.


G N A R U S | 116

Na Europa e nos Estados Unidos nesse período, os grupos dominantes e os intelectuais e profissionais a eles ligados elaboraram estratégias para levar a “disciplina ao domicílio”, como parte de uma tentativa de criar novos valores entre as classes populares, permitindo dessa forma um controle mais eficaz sobre seu trabalho.6

Durante o tempo de folga, os trabalhadores livres e libertos, antes de 1888 e depois da abolição, aproveitavam para se socializar com familiares e amigos, cultivar roças, viajar além dos limites dos engenhos, receber pagamento por trabalho extra, ou participar de festa com música e dança. Embora essas atividades tivessem propósitos e funções diversas, essas ocasiões serviam para reforçar as relações sociais e para se falar de assuntos cotidianos. Entretanto, não devemos ignorar a importância desses momentos de sociabilidade,

pois

eles

poderiam

ser

Slenes apontou para as mudanças nas ações disciplinares vividas no Brasil em fins do século XIX, notadamente no processo que comportou práticas de trabalho escravo e de trabalho livre, que sem dúvida, contribuíram para a conformação social do trabalhador nacional. O segundo elemento que nos leva a crer que nos

politicamente perigosos se o cenário apropriado surgisse para traduzir ideias em ações. No contexto social do final da escravidão e da ampliação da incorporação de formas de trabalho livre, emergiu a questão do controle sobre o tempo e a mobilidade dos trabalhadores livres. Essa mudança pode ser analisada no mesmo sentido proposto por Thompson, que argumentou que a mudança social ocorrida com a introdução da organização da produção capitalista impôs uma severa reestruturação dos hábitos de trabalho, produzindo novas disciplinas orientadoras das atividades dos trabalhadores, em especial dos ritmos de trabalho e da noção do tempo.4 De acordo com Robert Slenes, para quem viveu no final do século XIX, o disciplinamento do trabalhador livre não acontecia segundo um processo natural, mas dependia da tutela da

estabelecimentos produtores de açúcar buscava-se controlar o tempo livre dos trabalhadores é o fato de o feitor morar próximo às residências reservadas aos trabalhadores. Os alojamentos tornaram-se importantes locais de congraçamento e discussão entre os empregados dos engenhos. Nesse espaço, os trabalhadores expunham suas insatisfações uns aos outros e pensavam em alternativas para os seus problemas. Além de um local físico, o alojamento também é um local social, ou seja, um espaço destinado para o descanso e o controle dos trabalhadores. O feitor tinha ainda que garantir

alojamento, o silêncio durante o período de descanso, proibir a ingestão de bebidas alcoólicas, punir os trabalhadores que desrespeitassem as normas estabelecidas, tudo isso para garantir a produtividade dos trabalhadores.

burguesia e do Estado.5 O autor menciona ainda que: 4THOMPSON,

E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. Costumes em comum. São Paulo: Schwarcz, 1998. 5 SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e

recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p.141.

a vigilância do

A regularidade na escrita da palavra “feitor” não nos dá a dimensão dos movimentos dos seus significados ao longo do tempo. Ser feitor antes e depois da abolição, de acordo com os ofícios policiais 6

Idem.

e

processos

judiciais,

apresentou


G N A R U S | 117 mudanças no comportamento de quem exercia

Outra forma de controle utilizada nos engenhos

esta função junto aos sujeitos do seu entorno. Tal

eram as punições. As penalizações variavam e os

ocupação não foi exercida de maneira constante,

desviantes podiam receber penas menos rigorosas,

mas seguramente nos dois momentos ser feitor

por exemplo, ser chamado à atenção. As mais

comportava exercer grande autoridade sobre os

severas poderiam resultar no não recebimento do

seus subordinados, vigiar e gerir os seus trabalhos.

pagamento pelas atividades realizadas, a dispensa

Luiz Alberto Couceiro, por sua vez, argumenta que

do trabalho atual ou até a perda do local de

durante a escravidão os feitores tinham liberdade

moradia. A concessão de moradia e a ameaça de

para punir os escravos com maior violência, já para

supressão dessa permissão poderiam servir como

os homens livres outras regras de negociação das

objeto de pressão a ser exercida no caso de

condições de trabalho eram utilizadas.7 Supomos

desobediência a certas regras.

que a diferença se deu na diminuição da possibilidade de se punir os trabalhadores com castigos físicos mais severos no pós-abolição. Por fim, tal designação ocupacional comportou novos significados ao longo do tempo e articulou-se de acordo com as mudanças que as relações sociais operaram.

Isso pode ser observado na história de um morador do Engenho Prazeres, propriedade de Agostinho Alves de Barros. O senhor do engenho, tendo conhecimento de que um morador praticava furto, dirigiu-se a casa dele primeiro para advertilo do seu mau procedimento e aconselhá-lo a mudar de conduta. Caso contrário, não continuaria

As festividades e os hábitos de lazer como os

a morar no engenho.9

jogos de azar, o consumo de bebidas em excesso faziam parte da vida social dos trabalhadores, no entanto eram consideradas prejudiciais para o andamento das atividades laborais. Quando as atividades do tempo de lazer ocorressem, deveriam ser autorizadas, controladas e, em algumas

ocasiões,

foram

proprietários das unidades

propiciadas

pelos

agrícolas.8

Os jornaleiros migrantes que trabalhavam nos engenhos durante a safra de cana-de-açúcar tinham que arranjar um lugar para morar enquanto estavam fora de suas localidades de origem. Ceder um alojamento acabava sendo um bom negócio para os donos dos engenhos. Dessa forma, os senhores teriam um contingente de trabalhadores com alguma experiência com a lida a sua disposição em qualquer dia e horário.

7

COUCEIRO, Luiz Alberto. “A disparada do burro e a cartilha do feitor: lógicas morais na construção de redes de sociabilidades entre os escravos e livres em fazendas do Sudeste, 1860-1888”. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2003, V. 46, n. 1. 8 BRUSANTIN, Beatriz de Miranda. Capitães e Mateus:

relações sociais e culturas festivas e de luta dos trabalhadores

dos engenhos da mata norte de Pernambuco (Comarca de Nazareth – 1870/1888). Tese de Doutorado, Campinas, SP, 2011.


G N A R U S | 118 e solteiros.10 A terminologia senzala, para indicar o alojamento dos trabalhadores residentes nos engenhos, permaneceu no imediato pós-abolição, sugerindo que os trabalhadores dos engenhos que residiam nestes espaços ocupassem posições “baixas” nessa sociedade. As modalidades de habitação podiam ser as senzalas ou os casebres espalhados pelo engenho. Gileno de Carli, em 194011, observou que as moradias dos homens que viviam nas lidas dos canaviais ainda eram semelhantes às senzalas do tempo do cativeiro. Em alguns engenhos, as senzalas foram construídas no estilo barracão ou eram pequenas casinhas; em outros engenhos podiam coexistir os dois tipos de construção. O referido autor apresentou em seu livro uma foto de uma moradia de trabalhadores de engenho, que ele indica como sendo uma espécie de senzala com elementos africanos. Os trabalhadores locais deviam possuir uma casa modesta, com piso de terra batida, semelhante à foto apresentada no livro de Gileno de Carli. Em suma, os lugares e as condições onde habitavam os trabalhadores

dos

engenhos,

fossem

eles

temporários ou permanentes, eram parecidos com as residências dos escravos. De acordo com Manoel Correia de Andrade, os Casas de trabalhadores dos engenhos. Fonte: DE CARLI, Gileno. Aspectos açucareiros de Pernambuco. Rio de Janeiro, s.n., 1940, p.27.

viajantes que estiveram pelo Norte do Brasil, no início do século XIX, e passaram pelos engenhos açucareiros observaram a existência de um

As senzalas dos engenhos, mesmo depois da

número significativo de trabalhadores conhecidos

abolição, serviram como moradias para os

como moradores. Os proprietários cediam a esses

trabalhadores. No processo judicial em que a

trabalhadores uma pequena extensão de terra nas

senzala foi mencionada, esse espaço serviu como

áreas periféricas dos engenhos, denominados

local de moradia para trabalhadores de temporada

sítios, e também o direito de construir uma casa e

9

Ofício da Delegacia de Escada 11 de novembro de 1878, folhas sem numeração, Fundo SSP, Delegacia de Polícia de Escada, nº 130 (1877-1887), APEJE.

10

Juízo de Direito. Autora – A Justiça Pública Reu – Jeronymo Leonardo da Silva. Ipojca, 1889, MJPE. 11 DE CARLI, Gileno. Aspectos açucareiros de Pernambuco. Rio de Janeiro, s.n., 1940.


G N A R U S | 119 de cultivar gêneros alimentícios ou ainda cana-de-

sobre a mão de obra. De acordo com Moacir

açúcar para ser fornecida ao engenho. Em

Palmeira, nos engenhos do Nordeste, no século

contrapartida, tais homens e mulheres deviam

XX, a permissão para morar em uma casa e para

trabalhar de três a quatro dias semanais no

pequenos cultivos dentro do engenho trazia junto

engenho em períodos normais e com uma

a obrigação de prestação de trabalho. Diante da

dedicação mais intensa nos períodos do corte e

iminência da abolição da escravidão em 1888, o

moagem da cana.12

grupo senhorial temia não poder mais contar com

A concessão de moradias no interior dos engenhos para seus trabalhadores foi possível, segundo Cristiano Christllino13, por conta da disponibilidade de terra livre dentro das áreas canavieiras. O autor questiona o que faziam os senhores de engenho com 80% de suas terras, já que somente 20% delas

eram

utilizadas no cultivo da

cana.

seus dependentes. Tal prática visava evitar que, a qualquer

insatisfação,

os

empregados

abandonassem os postos de trabalho na lavoura. Para manter os laços, mesmo que mais fracos, era necessário que patrões e empregados cumprissem minimamente

suas

obrigações.

As

relações

clientelísticas,

grande parte destas terras ociosas foi utilizada

para

garantir

maior dos

trabalhadores, por meio da concessão de moradia. No contexto de final do regime imperial e da implementação da República, as

ou

seja, o costume de trocar favores por obediência

Provavelmente,

fidelidade

o serviço leal e devotado dos escravizados e de

lealdade

e foi

um

padrão estruturante do

sistema

de

morada. Com isso não queremos dizer que nesse tipo de relação dispensasse concessões, acordos, e que os trabalhadores livres ficassem desprovidos de poder de negociação.

relações de dependência e poder tiveram de ser

Nem sempre as lealdades foram respeitadas e, a

rearranjadas. As elites políticas que disputavam o

depender dos interesses em jogo, os laços

poder, influenciadas pelas oscilações na economia,

estabelecidos entre trabalhadores e senhores

readaptaram as relações de mando e dependência.

poderiam ser desatados. Esse foi o caso do preto

O sistema de moradia estabelecido nas últimas décadas do século XIX permitira, sob novas bases, a manutenção do poder dos senhores de engenho

Felipe Ferreira, que se dizia um trabalhador morigerado e que foi lavrador por 16 anos em um engenho no município do Cabo. O proprietário pediu que ele se retirasse da casa que ficava em

12

ANDRADE, Manoel Correia de. “Transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Nordeste açucareiro”. Revista Estudos Econômicos, São Paulo - USP, v.13, nº 1, 1983, p. 77. 13 CHRISTILLINO, Cristiano Luís. “A Zona da Mara Pernambucana e a Serra Gaúcha: apontamentos sobre a

terras do engenho para dar a outro morador. Felipe, tentando evitar a sua saída, lembrou que estrutura fundiária em meados do século XIX”. CLIO – Revista


G N A R U S | 120 tinha sido escravo do pai do dono do engenho e

A relação dos agregados, por exemplo, supunha

que, mesmo alforriado, não quis abandoná-lo e,

quase que inevitavelmente vínculo pessoal com o

por gratidão, tratou dele até a morte. Ele tinha em

proprietário da unidade produtiva ou com uma

mente que tanta dedicação poderia evitar alguns

família que residia nela, dentro da lógica

constrangimentos. Contudo, o preto Felipe não foi

paternalista.

atendido e, quando cuidava de suas plantações, foi

moradores atendia a múltiplos propósitos, a

agredido e obrigado a se retirar da casa, pois o

acumulação de mão de obra nos parece a mais

novo morador já se encontrava à porta, com todos

evidente. Esses moradores podiam também

os seus objetos, para se mudar14 Práticas como essa

cumprir a função de eleitores ou compor uma

faziam

e

milícia particular. Qualquer que fosse a situação

comportamentos em que aqueles que ocupavam

do agregado, as vantagens nesse tipo de vínculo

posições de poder e status hierarquicamente

eram mútuas, apesar de não excluir explorações e

superiores

desmandos.

parte

do

alijavam

jogo

os

de

interesses

trabalhadores

rurais

A

recepção

de

agregados

e

egressos do cativeiro e seus descendentes de “direitos” conquistados durante a escravidão. Talvez o liberto Felipe Ferreira não estivesse correspondendo às expectativas dessa rede hierárquica, e por isso perdeu o “direito” às concessões obtidas. Existiam expectativas e obrigações de ambas as partes. Os moradores, ao trabalharem nos engenhos, esperavam em troca proteção e salário. Os senhores, por sua parte, exigiam a prestação de serviço contínuo e fidelidade. A expectativa patronal era de dedicação absoluta ao trabalho, não permitindo indisposições e folgas. Os trabalhadores livres usufruíram da prerrogativa da mobilidade a fim de estabelecer e negociar novas relações de trabalho e tratamento, em uma sociedade ainda marcada profundamente pela escravidão. Os trabalhadores não aceitavam passivamente os excessos por parte dos seus patrões ou das pessoas responsáveis por gerenciar a sua lide, por isso indivíduos livres abandonavam seus postos quando julgavam que enfrentavam situações intoleráveis. de Pesquisa Histórica, n.30.2, Recife, UFPE, 2013. 14 Jornal do Recife, 14 de fevereiro de 1889, p.2. FUNDAJ.

Maria Emília Vasconcelos dos Santos é Doutora em História Social da Cultura pela Unicamp e professora substituta no Centro de Educação da UFPE e da FBV. mariaemiliavas@hotmail.com


G N A R U S | 121

Artigo

O CARNAVAL CARIOCA DENTRO DA CONCEPÇÃO DA RESISTÊNCIA DO POVO NEGRO (DESDE 1850). Por Carlos Augusto Alves Santana

S

abemos que existe uma vasta historiografia

negro, não poderia ser o centro do processo de

que aborda o tema Carnaval Carioca num

desenvolvimento de qualquer nação, pois era

viés narrativo que fortalece uma concepção

considerado inferior de acordo com a teoria de

oficial, que o carnaval carioca é fruto do processo

Herbert Spencer.3 Outra teoria desenvolvida por

cultural da miscigenação da população Brasileira.1

Charles Darwin4 vai se consolidar na formulação

Procuramos caracterizar o papel central que a

científica segundo a qual, só as espécies mais fortes

cultura negra teve na formação do carnaval

se manteriam, as mais fracas desapareceriam ao

Carioca, desde o período Imperial na capital do

longo do tempo. No Brasil estas teorias tiveram um

Império, dando elementos históricos, que possam

amplo apoio de vários setores da sociedade como:

levar a uma reflexão, a partir da metade do século

Político, Intelectual, Estadista, etc.5.

XIX, quando surgem as teorias do racismo científico criadas na Europa,2 influenciando a elite nacional brasileira daquele período. Estas teorias vindas da Europa caracterizavam cientificamente que o povo

FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro, Ediouro, 2004, Pág. 246 a 279. 2 OLIVEIRA, Lidiany Cristina de. As Teorias raciais e o Negro do Pós - abolição às Primeiras Décadas do Século XX / Campinas, SP: [s.n.], 2005. Orientador: José Luís Sanfelice. Trabalho de 1

Neste mesmo período o carnaval Francês, vai sofrer uma mudança, as brincadeiras que ocorriam na festa de carnaval que tivessem no seu conteúdo elementos primitivos teriam que deixar de ser conclusão de curso (graduação) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Pág. 06 a 11. 3 Idem. 4 Idem. 5 Idem.


G N A R U S | 122

praticadas, no intuito de se tornar uma “festa

organizada através do calendário cristão. Como

civilizada”. No Brasil, a elite vai também adotar a

estava a conjuntura na Europa na metade do século

mesma postura, desenvolvendo várias ações no

XIX e qual a sua influência na corte Imperial

campo jurídico para eliminar todas as brincadeiras

Brasileira em relação à festa do carnaval neste

que representassem o atraso da população

mesmo período. Procuraremos desenvolver uma

Brasileira, nelas o principal alvo era o entrudo, pois

reflexão a partir da metade do século XIX, e início

existia a necessidade de passar à Europa que na

do século XX, na capital da República, como o povo

nação brasileira estava sendo gestada uma futura

negro mantinha suas tradições culturais na festa do

nação civilizada.6

carnaval, quando

Utilizaremos do método cientifico desenvolvido por Carlo Ginzburg7, através do seu livro “O Queijo e os Vermes”, que faz uma investigação de Menocchio, um moleiro do século XVI, em uma micro-história para poder compreender a macro história, Também recorreremos ao método da História Comparada a partir da narrativa de José D’Assuncão de Barros8 no seu livro “ Historia Comparada”, quando demonstrarmos a diferença entre o carnaval na Corte Imperial Brasileira e o carnaval Europeu. Vamos caracterizar o carnaval carioca, a partir da metade do século XIX na capital da corte Brasileira, e posterior a capital da República, e na capital do Rio de Janeiro, para

a repressão a algumas

manifestações culturais eram enquadradas no código penal9, como crime. Como a reforma do Prefeito Pereira Passos10, influenciou no carnaval na Capital da República. Quando surgem as escolas de sambas e as transformações ocorridas na era do governo de Getúlio Vargas11 no carnaval carioca. Vamos caracterizar em que momento acontece o chamado carnaval o moderno12. Não deixaremos de abordar em que momento os bicheiros de jogo de bicho13 começam a dirigir as escolas de samba Carioca, qual foram os fatores que levaram eles a tomar esta iniciativa. Vamos terminar o artigo fazendo uma reflexão como esta a festa de carnaval Carioca na atualidade.

podermos refletir através da festa do carnaval como

Segundo Felipe Ferreira existem várias versões

o povo negro conseguiu manter algumas tradições

sobre a origem da festa do carnaval, só a partir dos

culturais.

primeiros séculos da era cristã que se tem as

Começaremos abordando o surgimento da festa de carnaval em que região do mundo tinha este tipo de festa, quando deixa de ser pagã e se torna 6

FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais. O Surgimento do Carnaval Carioca no Século XIX e Outras Questões Carnavalescas. Rio de Janeiro, UFRJ, 2005. Pág. 55- 76. 7 GINBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: O cotidiano e as Ideias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição; Tradução: Maria Betânia Amoroso; tradução dos poemas José Paulo Paes; Revisão Técnica: Hilário Franco Junior. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. 8 BARROS, José D'Assunção. História Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014. 9 ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro, Oficina do Livro, 1991. Pág. 29-30. 10 MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2° Edição, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio

primeiras informações como era esta festa e quais os territórios que criaram esta festividade14. Na festa que passou a ser chamada de carnaval as de Janeiro Secretaria Municipal de Cultura Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural Divisão de Editoração cientifica. Pág. 45 a 61. 11 SOIHET, Raquel. A Subversão Pelo Riso: Estudo sobre o Carnaval da Belle Époque ao Tempo de Vargas. / Rachel Soihet 2° Edição Revisada e Ampliada. Uberlândia, EDUFU, 2008. Pág. 55 a 208. 12 ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro, Oficina do Livro, 1991. Pág. 183 a 194 13 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 16 a 20. 14 Idem


G N A R U S | 123

pessoas tinham o hábito de usar máscara para se

por 40 dias de jejum, porém foi no “Sínodo de

fantasiar,

algumas

Benevento”, convocado pelo Papa Urbano II em

características coletivas no comportamento da

1091, para definir o início em que os cristãos

população que brincava no carnaval como:

começariam a praticar a purificação da alma no

bebedeira; comilança; farra; banzé; confusão; todo

processo de jejuar durante 40 dias, este período

este comportamento era exagerado15. Este tipo de

ficou conhecido como Quaresma, sabendo que

festa de acordo com Hiram Araujo vai surgir na

neste dias os cristãos tem que abrir mão dos

antiguidade no Egito; Mesopotâmia, no território

prazeres

Grego-Roma. “Assim no período compreendido

brincadeiras, relações sexuais, bebedeiras e

entre 16 e 18 de dezembro, quando o retorno do sol

comilanças. Foi determinado pela Igreja no final do

permitia a volta aos trabalhos nos campos,

“Sínodo Benevento”, que o primeiro dia da

comemoravam-se as Saturnais, homenageando a

Quaresma, começaria a contar a partir da quarta

memória do deus Saturno.16” . Existia também na

feira de cinzas e terminando no domingo de Páscoa,

além

desta,

existiam

antiguidade homenagem vários

materiais

e

carnais

como

festas,

totalizando os 40 a

Deuses,

dias

da

Quaresma,18

na

como a Deusa Isis

Europa,

e o touro Ápis. A

período que ficou

igreja

nos

estabelecido para

primeiros anos de

espiritualização

cristianismo classifica

dos esta

neste

cristãos,

temperatura

a é

forma de festa

muito

baixa

como uma prática

provocando

demoníaca,

frio intenso, por

um

“Paganismo”, estas brincadeiras que surgiram nas

causa deste clima a população Europeia, criou um

festas de carnaval são fruto de uma iniciativa

hábito de comer “Uma boa maminha assada, um

popular, contrapondo a cultura oficial17. Há muita

lombinho na brasa, um torresminho crocante,” este

dificuldade quando se tenta definir a origem do

costume permanece até hoje. Mas nos dias que

carnaval na historiografia moderna. A igreja no

antecediam o início da Quaresma, a população

século VII, através do papa Gregório I, determinava

fazia tudo em excesso nas festividades para os

que todos cristãos, em um determinado período do

Italianos estes dias que antecedem a Quaresma

ano deveria se voltar totalmente para à vida

eram chamados de “Carnevale” ou “Carnavale”,

espiritual, aberto mão da vida cotidiana fazendo o

“Deus da Carne”, esta é uma das definições da

mesmo sacrifício que Jesus Cristo, se submetendo

15

ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1991. Pág. 19 a 20 16 Idem.

FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 25 a 39. 18 Idem. 17


G N A R U S | 124

origem da palavra Carnaval, segundo Hiram

que achassem agrupamento de mais de quatro

Araujo19

escravos (Título 6,Parágrafo 12)”.

Para podermos refletir sobre o carnaval na Capital

Segundo Martha Abreu,21 o “Código de Postura”

da Corte, no início do século XIX, é importante

vai mexer com todas as festas populares, atingindo

realizar

as

em cheio as festas tradicionais promovidas pelo

transformações que o carnaval Parisiense estava

povo negro. Para o professor e escritor Flávio dos

passando no período, por que o país francês, depois

Santos Gomes, esta década de 30 do século XIX é o

da sua Revolução no final do século XVIII, passa a

período em que ocorreram os grandes levantes de

ser o centro das formulações de desenvolvimento

escravos na Capital do Império22, sendo um dos

econômico e cultural para uma boa parte do

fatores do endurecimento da lei do “Código de

mundo, esta nova concepção desenvolvimentista

Postura”. A elite Brasileira que quer se tornar

de sociedade a partir da França vai impor que a

Francesa em todos os aspectos, não poderia ter um

população modifique o comportamento nos dias de

carnaval

comemoração dos festivais em especial o carnaval

caracterizadas por um comportamento primitivo da

em Paris, não podendo se utilizar de brincadeiras

população como a brincadeira do entrudo23, e vai

que representassem o atraso, como as brincadeiras

desencadear um processo de estimular outras novas

que tinham características “bárbaras”, por que um

formas de brincadeiras nas festas do carnaval,24 este

país que pretende prosperar intelectualmente,

procedimento seria seguido nas outras Capitais da

politicamente, economicamente, culturalmente, a

Corte Imperial, pois já havia uma lei que orientava

primeira coisa a fazer é preparar a população para

como deveria ser a postura das pessoas no dia-dia

se tornar “Civilizada20”, está prática fica nítida na

na sociedade Brasileira. Neste momento vão surgir

base central do “Racismo Científico”, que vai

os primeiros bailes de máscaras, que já eram uma

influenciar a elite da corte Imperial Brasileira em

prática que ocorria no carnaval Parisiense, que

vários setores da sociedade, sendo até criado um

passou ao longo dos anos a fazer parte do nosso

“código de Postura”, em 1930 e em 1938 este

carnaval. Outra iniciativa é a criação dos clubes

mesmo sofrerá uma revisão para aumentar a carga

Carnavalescos, as “Sociedades”, em 1854 na Capital

de punição para aqueles que não cumprissem as leis

do Império estas sociedades vão ser o marco

do código, como por exemplo: ” Proibir a existência

transformador do carnaval de rua a partir do seu

das casas conhecida por Zuncu e Batuques, (Título

primeiro desfile após a sua fundação.

uma

abordagem

sobre

quais

04, no Parágrafo 7); Multa em trinta Réis aos donos das tavernas ou qualquer outra casa pública, em

em

que

as

brincadeiras

eram

O romancista José de Alencar, pública uma crônica no jornal “Correio Mercantil”, em 1855, relatando a festa de carnaval na Capital da Corte do

19

ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro: Oficina do Livro: 1991. Pág. 29 a 38. 20 FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 104 a 126. 21 ABREU, Martha O Império do Divino – Festas Regionais e Culturas Populares no Rio de Janeiro 1830 a 1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: São Paulo: FAPESP, 1999. Pág. 195 a 224.

22

Idem. FERREIRA, Felipe. O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. Pág. 104 a 126. 24 MORAIS, Eneida. 1904 – 1971. História do Carnaval Carioca Revista e Atualizada, por Haroldo Costa: Rio de Janeiro: Record: 1987. Pág. 29 a 38. 23


G N A R U S | 125

Império, criticando a brincadeira de se jogar limão-

Viva a bebedeira.

de-cheiro em pessoas (Entrudo), mas vai fazer um

Nos dias de carnaval26!... Dando continuidade de resistência de cunho

elogio à criação dos clubes Carnavalescos: ”Muitas coisas se preparam este ano para

os três dias de carnaval. Uma sociedade criada o ano passado e que conta já perto de oitenta sócios, todas as pessoas de boa companhia, deve fazer no domingo a sua grande promenade pelas ruas da cidade”25.

“Na tarde de segunda – feira, em vez do passeio pelas ruas da cidade, os máscaras se reunião no Passeio Público e aí passarão a tarde como se passa uma tarde de carnaval em Itália, distribuindo flores, confete e intrigando os conhecidos e amigos.”

popular no carnaval na Capital da Corte do Império, há um fator que vai ampliar esta rebeldia, é a chegada de negros forros que vem na maioria da província da Bahia, atrás de melhores condições de vida, com eles trazem as suas festas que eram praticadas nos seus lugares de moradia, muitas destas festas guardavam a tradição de algumas regiões do continente Africano, trazida pelos escravos para Brasil. Quem vai narrar com muita propriedade a vinda dos negros oriundos Bahia

Segundo Eneida Morais, a sociedade “Congresso

para a Capital da Corte é Roberto Moura, vai

das Sumidades Carnavalescas” foi um marco na

procurar afirmar que estes negros que vieram da

transformação do carnaval a partir do período, até

Bahia vão se utilizar das festas religiosas para inserir

o Imperador D. Pedro II e sua família, foram ao

as suas tradições culturais, eles vão participar

desfile para prestigiar o grande acontecimento que

ativamente das procissões de comemoração em

iria transformar por muito anos o carnaval na

homenagem ao dia de santos como São Sebastião,

Capital da Corte. Mas o povo pobre que na metade

nossa Senhora da Conceição, Santo Antônio,

século XIX, em sua maioria era de negros libertos ou

Santana, Divino Espírito santo, etc. “Mas para

escravos e uma parcela de portugueses, vai cair na

Moura, os negros Baiano se utilizam também da

brincadeira do Zé Pereira, uma brincadeira que é

festa natalina para fazer as suas manifestações

originaria de Portugal, trazido pelo povo pobre,

culturais como: ”cheganças, bailes, pastoris,

que nos dias de carnaval saíam as ruas tocando

bumba-meu boi e cucumbis. Porém uma tradição

zabumba e tambores, sem necessidade de fantasias,

que veio da Bahia e que era celebrado no dia 6 de

era só entrar na brincadeira da forma que estivesse

janeiro de cada ano, o dia de Reis, ficou mantida

no momento, e esta brincadeira no dia de carnaval

desde da metade do século XIX até algumas

passa por todo segundo período do Império, e esta

décadas do século XX, na Capital da República, os

até hoje, no chamado bloco de sujo.

negros ao participarem desta festividade, se

25

“Viva o Zé Pereira

mascaravam vestindo uma fantasia e uma pessoa

Viva o Zé Pereira.

levava um estandarte que continha o enredo que

Viva o Zé Pereira.

seria homenageado, a passeata era acompanhada

Que a ninguém faz mal!...

de uma orquestra composta por “violão, violas,

Viva a bebedeira.

ganzás, pratos, castanholas e as vezes flautas”.

Idem. Pág. 44 a 77.

26

ARAÚJO, Hiram (Coord.) in Memoria do Carnaval. Rio de Janeiro: Oficina do Livro: 1991. Pág. 95 a 96.


G N A R U S | 126

Segundo Hiram Araújo, havia uma pessoa junto às

Social28, na busca de criar um padrão de sociedade,

tias Baianas que terá um papel importante na

como ponto de partida na civilização das pessoas

criação de vários Ranchos carnavalescos, é o

para conseguir se constituir em um país com

Pernambucano Hilário Jovino Ferreira, que levará

perspectiva de se desenvolver em todos os aspectos

pela primeira vez um Rancho para desfilar nos dias

da sociedade, a elite Brasileira continuava a copiar

de carnaval na Capital da corte. Hiram Araújo, vai

as ideias Francesas. Segundo Carlos Medeiro, o

se utilizar no livro em que ele é o organizador “

primeiro governo Republicano, vai se caracterizar

Memória

definição

pelo total incentivo de estimular a vinda de

desenvolvida por Muniz Sodré, “Os ranchos

imigrantes Europeus para o país, fortalecendo a

aproveitaram a festa europeia do carnaval para

mesma atitude do governo Imperial29. Com a

apropriar dos cordões a tática de penetração

estação da estrada de ferro da Penha, o povo negro

coletiva (espacial, temporária) no território urbano

vai ocupar por muitos anos uma festa religiosa

e afirmar através da música e dança um aspecto de

Portuguesa, à festa da Penha, que se tornou um

identidade cultura negra.”27

local de resistência das tradições da cultura

do

Carnaval”

de

uma

O início do regime Republicano Brasileiro, vai dar continuidade

às

teorias

raciais

como

a

Evolucionista, Racismo social e o Darwinismo

popular, com predominância maior das tradições do povo negro que vieram da Bahia, ou de outra região do Nordeste do país, neste período final do século XIX e início do XX, segundo Roberto Moura,

27

Idem. Paginas 167 a 174. Cristina de. As Teorias raciais e o Negro do Pós - abolição às Primeiras Décadas do Século XX / Campinas, SP: [s.n.], 2005. Orientador: José Luís Sanfelice. Trabalho de 28 OLIVEIRA, Lidiany

conclusão de curso (graduação) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação. Pág. 12 a 17. 29 MEDEIROS, Carlos Alberto, Na Lei e na Raça, Legislação e Relação Raciais – Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: DP&A: 2004. Pág. 43 a 57.


G N A R U S | 127

“as mulheres baianas (Tias Baianas, como exemplo

Central, a elite enganou-se, quase todas as

Tia Ciata); têm um papel fundamental na

manifestações

organização da festa,” Mais uma vez são essas

presente no carnaval da Avenida Central, mas o

mulheres o esteio do grupo, criando as condições

carnaval popular vai se concentrar na Praça da

para a festa, os homens chegando à tarde com seus

República, especialmente, na Praça XIV, onde o

instrumentos de percussão, pandeiro e tamborins a

carnaval era em tudo diferente do carnaval da

que se juntam pratos e colheres na roda do samba.”

Avenida. Para lá afluíam os cordões com seus

A festa da Penha, é um dos fatores que iram

componentes vestidos de cores berrantes, as caras

influenciar no carnaval da Capital República, pois

cobertas de zarcão, os capacetes pomposos

era lá que alguns músicos e compositores

repletos de plumas, tocando os mais variados

apresentavam as suas composições para o próximo

instrumentos, desde os primitivos, reco- reco, viola,

carnaval, como Donga, Caninha, Pixinguinha30.

pinho, e até a flauta de 13 chaves e a requinta.

Mais nem tudo era alegria, pois exista uma

Ainda ás duas horas da manhã de Terça-feira, podia

repressão policial contra algumas manifestações

se ver nas calçadas da ampla praça um cordão desse

culturais ligadas ao povo negro, por exemplo: A

gênero cansado, estrompado e rouco, as violas de

capoeira e o batuque. O início do Século XX, com a

cordas bambas, as gaitas fanhosas32. Nos anos 20,

reforma urbana do Prefeito Pereira Passos, que

logo no início vai ocorrer a semana da Arte

ficou conhecida como “Belle Époque”, o carnaval

Moderna, quando foi discutido uma nova

na Cidade do Rio de Janeiro, também vai sofrer

concepção da criação de uma Nação Brasileira, que

algumas transformações, logo após a inauguração

incorporasse os três elementos que fundaram a

da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), o

sociedade Brasileira, o negro, índio e o branco,

carnaval carioca passa a ser na Avenida Central,

quem desenvolve este tema é o professor Antonio

antes o carnaval era festejado na Rua do Ouvidor,

Sérgio Alfredo Guimarães. Segundo Rachel Soihet,

era nesta rua que passavam os Cordões, os

os anos 20 serão o de reconhecimento da cultura

Cucumbis Africanos, Zé- Pereiras e os desfile das

negra, ”O samba acabou predominando e

grandes Sociedades31. O Carnaval elegante teria se

marcando sua presença nos cordões e blocos

retirado

sociedades

carnavalesco”, um dos fatores que ajudam a tornar

carnavalescas e para alguns teatros, abandonando

a música de Samba e seu ritmo popular foi a criação

as ruas. A reforma urbana de Pereira Passos estava

das rádios e o surgimento dos discos, que se tornam

dentro do projeto de tornar o carnaval uma festa

grande veículo de comunicação. No final dos anos

civilizada, a elite achava que com a inauguração da

20, um grupo de jovens filhos de maioria de filhos

Avenida Central, algumas manifestações culturais

de negros que vieram da Bahia, para Rio de Janeiro,

que participavam do carnaval promovido na Rua do

a partir do meio do século XIX, vai criar um dos

Ouvidor, não iriam se deslocar para a Avenida

maiores símbolo do carnaval as Escolas de Samba,

30

31

para

os

salões

das

MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. 2° Edição, Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro Secretaria Municipal de Cultura Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural Divisão de Editoração cientifica. Pág. 108 a 115.

populares,

passaram

a

estar

SOIHET, Raquel. A Subversão Pelo Riso: Estudo sobre o Carnaval da Belle Époque ao Tempo de Vargas. / Rachel Soihet 2° Edição Revisada e Ampliada. Uberlândia, EDUFU, 2008. Pág. 59 a 77. 32 Idem. Pagina 69.


G N A R U S | 128

que serão o ponto máximo da cultura popular nos

que começou no final do anos 50, com a vinda de

anos 30, segundo Hiram Araújo, existem várias

setores da classe média para fazer parte da

versões de como surge o nome Escola de Samba, a

estrutura da Escola de Samba33. Mas é Hiram de

primeira Escola de Samba, que foi criada é a “Deixa

Araújo, que caracteriza o momento fundamental

Eu

no bairro do Estácio, depois a

desta transformação, ”Nelson de Andrade, que

Mangueira, Portela, Salgueiro, Vizinha Faladeira e

havia assumido a presidência da escola de samba,

Império Serrano, em Madureira no morro

da

em fins da década de 50, convida os artistas

Serrinha. Os anos 30 vão ser caracterizados como o

plásticos Dirceu e Maria Louise Nery, para fazem o

período

sociedade

carnaval Debret, em 1959, e consegue o segundo

Brasileira, fazendo com que as ideias formuladas na

lugar. O jurado Fernando Pamplona fica encantado

Semana da Arte Moderna, sejam postas em prática,

com a apresentação da escola, Nelson, então, o

e as manifestações culturais populares, como o

convida para desenvolver um trabalho artístico na

Samba e as Escola de Samba,

passam a ser

escola. Fernando organiza a equipe com Arlindo

utilizados como veículo de integração para uma

Rodrigues, Nilton Sá, Dirceu e Marie Louise Nery e

“consciência nacionalista”, como elemento de

inicia uma verdadeira revolução na temática e no

unificação

segundo

tratamento plástico- visual34.” Esta transformação

Guimarães surge a partir de 1937, no governo

no campo estético Artístico, obriga a escolas, se

Getúlio Vargas, mas dá-se o fortalecimento da

adequar a uma nova realidade que eles não

teoria da Democracia Racial, em alguns momentos

estavam preparados financeiramente, pois as

e setores da sociedade esta concepção é invocada

estruturas do desfile da escola de samba eram fruto

até hoje.

de contribuições obtidas através do popular “livro

Falar”,

das

da

transformações

futura

nação,

na

que

Voltando ao carnaval Carioca, as Escolas de Samba na década de 30, vão trabalhar na procura de sua identidade, procurando diferenciar dos Cordões e dos Ranchos, mas segundo Felipe Ferreira, o carnaval Carioca nos anos 40, será o modelo a ser seguido nas outras Capitais do país, tendo o desfile das Escolas de Samba, como o elemento principal do festejo nos dias de carnaval, nos anos 50 está consolidado toda a chamada ”espinha dorsal” na construção do desfile de uma Escola de Samba, que são: enredo, samba -deenredo, alegorias e fantasia, os anos 50, de acordo com Cavalcante, será também a formação da maior transformação dos desfiles das Escolas de Samba, CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval Carioca: Dos Bastidores ao Desfile. 3° Edição Revista e 33

Ampliada; Rio de Janeiro: UFRJ: 2006. Pág. 39 a 43.

de ouro”, passado no comércio, e com ajuda de empresários locais e também dos bicheiros, além da participação de seus integrantes que em sua maioria eram pobres. Segundo Cavalcanti, na sua narrativa no seu livro “Carnaval carioca dos bastidores ao desfile”, ele vai dedicar um capítulo do livro sobre o jogo de bicho, que passa a ser a mola propulsora da nova engrenagem das escolas de samba, vai utilizar seu trabalho de pesquisa sobre a Mocidade Independente de Padre Miguel, caracterizado na entrada do bicheiro Castor de Andrade na agremiação, que não é diferente das outras escolas, ela nos leva a refletir o que interessava para o bicheiro, “A vitória e a boa

34

Idem. Pág. 45 a 53.


G N A R U S | 129

colocação da escola correspondiam a outra vitória”:

de carnaval. Sabemos que o carnaval Carioca está

significava o reconhecimento do valor social

inserido dentro da indústria do entretenimento do

positivo do jogo do bicho na vida do Rio de

turismo

Janeiro35. Para a comunidade era a satisfação de ver

econômica, como deixa claro Cavalcante. Porém

sua escola campeã ou podendo desfilar em iguais

não podemos deixar de lembrar que o símbolo

condições com as demais escolas consideradas

central da festa carnavalesca no Rio de Janeiro é o

grandes (as quais, quase todas elas têm o jogo de

ritmo e as músicas do Samba e a alegria do povo

bicho, por trás).

Carioca, que é fruto da cultura do povo negro. Por

O bicheiro, dono da banca do bairro ou da região, costuma ser o patrono da escola de samba. No ano de 1984, ano de inauguração a passarela do samba e de criação da liga de Liga Independente da Escola de Samba (Liesa), que passa a controlar quase todo o festejo do carnaval na Marquês de Sapucaí, três

numa

visão

predominantemente

isso, onde houver um batuque de carnaval Carioca haverá uma resistência do povo negro. Esperamos ter conseguido estimular as pessoas que leram o artigo acima, a refletir em que outros setores da sociedade Brasileira o povo negro resistiu com as suas tradições culturais.

bicheiros vão ser as pessoas que iriam controlar a Liesa, Castor de Andrade, Capitão Guimarães e Anísio Abraão David. De acordo com Cavalcante,

“existia um interesse de criar uma entidade que pudesse dar todo respaldo jurídico para controlar o desfile das escolas de samba, economicamente e politicamente”. A liga fundou a sua própria gravadora, fez um contrato com RCA, e logo de começo venderam-se cerca de um milhão e duzentas mil cópias no ano36, esta nova forma de organizar o desfile das escolas de samba do carnaval Carioca, vai influenciar internamente nas escolas de samba, fazendo que o interesse econômico sobressaia em detrimento do aspecto cultural da festa carnavalesca. Em nossas considerações finais, gostaríamos de deixar uma reflexão, o carnaval Carioca não esta

Carlos Augusto Alves Santana é graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e atualmente Pós Graduando em História da África na mesma instituição.

Bibliografia ARAÚJO, Hiram, coord, Antônio de Pádua Vieira (Luiz Antônio); Carlos César Ribeiro, José Luís Azevedo, Ivan Cavalcanti Proença- Memória do Carnaval- Rio de Janeiro: Oficina do Livro,1991. ABREU, Martha, O Império do Divino: Festas

Religiosas e Cultura Popular no Rio de Janeiro, 1830-1900- Nova Fronteira; São Paulo:

Fapsp,1999. BARROS, José D’Assunção, História ComparadaPetrópolis, RJ: Vozes, 2014. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro, Carnaval Carioca dos Bastidores ao Desfile: 3º. Edição. Ver. Ampliada.- Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. DINIZ, Alan, Alexandre Medeiros, Fábio Fabato: As

Três Irmãs: Como um Trio de Penetras “ Arrombaram a Festa”. 1º Edição: Rio de Janeiro:

reduzido ao desfile das escolas de samba, a cada ano que passa inúmeros blocos são criados em todas as regiões da Capital do Rio de Janeiro, com um caráter bem popular, fazendo com que centenas de famílias vão às ruas brincar os três dias 35

Idem.

Nova Terra. 2012. DINIZ, ANDRÉ. Almanaque do Samba: a História do Samba, o que Ouvir, o que Ler, onde Curtir. 3º edição. Revisada – Rio de Janeiro: Zahar, 2012 FERREIRA, Felipe, Inventando Carnavais: O

surgimento do Carnaval Carioca no Século XIX e

36

Idem.


G N A R U S | 130

outras Questões Carnavalescas, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005 FERREIRA, Felipe, O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro: Rio de Janeiro: Edioouro,2004 GINZBURG, Carlo, O Queijo e o Vermes: o

Cotidiano e as Ideias de um Moleiro Perseguido pela Inquisição: tradução- Maria Betânia

Amoroso: tradução dos poemas José Paulo Paes; revisão técnica Hilário Franco JR, - São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GOMES, Flavio dos Santos. Histórias de

Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro, Século XIX: Rio de

Janeiro, Companhia das Letras, 1996. GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo, Classes, Raças e Democracia: São Paulo: Editora 34, 2012 (2 Edição) LOPES, Nei. Partido – Alto: Samba de Bamba – Rio de Janeiro: Pallas,2008. LOPES. Nei. 1942. Rio Negro, 1° Edição: Rio de Janeiro: Record: 2015 MATTA, Roberto da. O que é o Brasil: Rio de Janeiro: Rocco, 2004. MEDEIROS, Carlos Alberto, Na Lei e na Raça: Legislações Raciais, Brasil – Estados Unidos- Rio de Janeiro: DP&A, 2004. MORAES, Eneida, História do Carnaval Carioca; Revisado e Atualizada por Haroldo Costa.- Rio de Janeiro: Record. 1987. MOURA, Roberto, Tia Ciata: e a Pequena África no Rio de Janeiro- 2 Edição: Rio de Janeiro; Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultura, Divisão de Editora, 1995. OLIVEIRA, Lidiany Cristina de. As Teorias Raciais e o

Negro do Pós – Abolição ás Primeiras Décadas do Século XX – Campinas, SP: {s.n.} 2005. PIMENTEL, João, Blocos: Uma História Informal do Carnaval de Rua – Rio de Janeiro: Prefeitura, 2002. SOIHET, Rachel. A subversão pelo Riso: Estudos

Sobre o Carnaval Carioca da Belle Époque ao Tempo de Vargas: 2º edição Revista e Ampliada. – Uberlândia: EDUFU, 2008.


G N A R U S | 131

Artigo

MÚSICA: LINGUAGEM, CONTEXTO E RECEPÇÃO. Por Marília Luana Pinheiro de Paiva

Resumo: Evidenciando a importância da relação da recepção e da música (se atendo as suas letras), e os aspectos sociais, políticos e amorosos que cada letra trás. Escabecemos neste artigo um paralelo entre música e receptor, tendo a música como uma fonte de interpretação e de discussão através da sua linguagem, utilizando a metodologia de análise de discurso que permite compreender, que cada discurso através de uma linguagem, possui uma ideologia e esta atrelada a uma história, perpassa elementos do nosso cotidiano e de nossas experiências subjetivas, pois a música através da linguagem constitui uma identificação com o receptor, ou seja, o ouvinte. Palavras chaves: Música, subjetividade, recepção.

A

música, mas também para pensar a música.”

relação existente entre texto, linguagem, história e música permite a compreensão destes como objetos de pesquisa para se

discutir aspectos políticos, sociais, culturais, identitários, sociológicos, entre outros. As implicações históricas da música no Brasil são apontadas por Marcos Napolitano (2002, p.5) nos seguintes termos:

“[...] a música tem sido ao menos em boa parte do século XX, a tradutora dos nossos dilemas nacionais e veículo de nossas utopias sociais, para completar, ela conseguiu ao menos nos últimos quarenta anos, atingir um grau de reconhecimento cultural que encontra poucos paralelos no mundo ocidental. Portanto, arrisco dizer que o Brasil, sem dúvida uma das grandes usinas sonoras do planeta, é um lugar privilegiado não apenas para ouvir

A música possibilita uma reflexão histórica à medida que traz elementos que as constituem e permitem essa ação; são carregadas de signos e simbologias, que através da linguagem expressam ideias e comportamentos (modos de sentir, pensar e agir) de uma sociedade através da música; nas

letras

transmitem-se

ideologias,

aspectos sociais, políticos e culturais de uma determinada época.

“[...] Como parte constitutiva de uma trama repleta de contradições e tensões em que os sujeitos sociais, com suas relações e práticas coletivas e individuais e por meio de sons, vão (re)construir partes da realidade social e cultural.” (MORAES, 1997, p 212) A música está inserida em um tempo histórico e social; as letras e a própria


G N A R U S | 132 sonoridade

das

expressam

focando necessariamente os versos das

sentimentos e emoções que atingem o

canções nas letras, está inserida em um

receptor e o identifica. A música atinge o

tempo histórico, social, e assim expressam de

individual

da

uma forma ou de outra reproduz o seu

identificação que afeta o modo de produção

contexto cultural em que a canção foi

da subjetividade. Assim, as letras das canções

produzida e reproduzida.

e

o

canções

coletivo,

através

em relação com o indivíduo proporcionam um reconhecimento com a linguagem, emoções e ideologias que estão presentes muitas vezes de forma implícita ou explicita na canção. As canções estão presentes no nosso cotidiano: uma canção que toca no rádio nos afeta de maneira por vezes inconsciente, somando-se ao modo como construímos e expressamos nossas emoções, pensamentos e atitudes. Comunicar é atingir o indivíduo em si, é um processo que se firma através da linguagem, a qual perpassa todas as camadas, invadindo todos os meios sociais. A linguagem em si,

“O sentido no contexto de cada leitura é valorizado perante os outros objetos do mundo com os quais o leitor [ou auditor] tem uma relação. O sentido fixa-se no plano do imaginário de cada um. Mas encontra, em virtude do caráter forçosamente coletivo de sua formação, outros imaginários existentes, aquele que divide com os outros membros de seu grupo ou de sua sociedade.” (JOUVE 2002 Apud THBRIEN, p. 22). Partindo da perspectiva de que o sujeito individual faz parte de toda uma sociedade de relações sociais que deve se levar em conta o contexto social e a linguagem produzida, pois traz traços de um subjetivo e de um meio social em que está situado o indivíduo; pois o indivíduo não está sozinho,


G N A R U S | 133 ele faz parte de uma rede de elementos que

sobretudo – sobre sua afetividade. As

o formam e que moldam sua percepção e sua

emoções estão de fato na base do princípio

fala, ou seja, os seus modos de sentir, pensar

de identificação, motor essencial da leitura

e agir. A psicologia social nos trás uma visão

de ficção. É porque elas provocam em nós

sobre esse panorama analisado

admiração, piedade, riso ou simpatia.

“A psicologia social mostra que o importante é o diálogo entre eu e o outro, a relação entre psiquismo individual e ambiente social; põe em evidência a ação que exercem sobre a formação das personalidades os quadros de atividade mental propostos pelo grupo a todos os indivíduos que o compõem; faz entrever menos confusamente como, em certos casos, são respostas individuais que, por seu lado, modificam o meio cultura.” (DUBY, 1999, p. 23). Ao se identificar com uma música o sujeito se caracteriza como parte dela, ou seja, muitas vezes refletindo sobre a letra o seu pessoal se tornando parte dela como subjetivamente

incorporado

a

um

reconhecimento de emoções atreladas nas letras que perpassam a letra enquanto gramática e se torna uma veículo que se aproxima do receptor, relacionando-se emoções sentimentos e afinidades com a letra e a sua representação, logo, com a canção em si, passa a ser uma representação de um fragmento individual. A música sendo composta por letras, antes estando incluída em um grupo linguístico, nos faz analisar o que esta letra transmite e representa no meio cultural que ela esta vinculada.

(JOUVE,2002, p. 19) A linguagem é o principal instrumento de comunicação

e

representação,

assim

transmite uma mensagem através da língua para um emissor, ou seja o receptor. Essa relação de comunicação, esta vinculada com a sua produção e sua exterioridade. Como Moscovici (2003 p. 35) “Nós pensamos através de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema que esta condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura”. A música não é a-historica, ela está inserida nesse conjunto de cultura e crenças que articula-se com o individuo e sociedade e que cria representações e vincula ideologias. Assim como também trás a possibilidade de interpretações e pode ter sentidos diferentes dependendo da posição social, histórica, cultural, a partir de crenças, valores, experiências sociais, emocionais que cada indivíduo ocupa, o que vai determinar a relação que este individuo tem com a música é a posição emocional e cultural que ele ocupa. Não esquecendo que a música é uma produção cultural e as emoções produtos

O charme da leitura provém em grande parte das emoções que ela suscita. Se a recepção do texto recorre às capacidades reflexivas do leitor, influi igualmente - talvez,

sociais, que intensificam e estruturam as relações de indivíduos-sociedade, são elas as emoções que provocam mudanças e geram reflexões sobre as próprias relações em si.


G N A R U S | 134 Estas emoções estão presentes no nosso dia a

laços afetivos entre pessoas que eles

dia e são refletidas e reproduzidas nas

reconhecem; e os modos de expressão

canções. Ou seja as canções são reflexos do

emocional que eles pressupõem, encorajam,

vivido em sociedade, tanto em questão

toleram e deploram. (ROSENWEIN, 2011, p.

social, como política, econômica e relação

23).

amorosa individual que ao ser explicita na música gera uma identificação e assim uma aproximação do com o receptor, pois este último se “encontra” nas letras e na mensagem que a música trás, não apenas no aspecto amoroso, mas essa relação pode acontecer em outras esferas, como política, social, histórica. A maneira que o indivíduo se aproxima e se reconhece, ele cria uma ligação com essa música, estabelecendo uma identidade, compactuando com seus signos e

suas

representações,

gerando

uma

interlocução.

Compreendendo

que

determinadas

canções trazem letras que fazem uma crítica, assim como alusão a valores, deplorações, denuncias, insatisfações presente no país de origem, como descontentamento político, decepção com condições básicas de saúde, políticas púbicas, insegurança, violência, corrupção,

representando um desagrado

econômico, social, amoroso entre relações sujeito sociedade, e suas relações pessoais, dentre tantos outros aspectos que permeiam a nossa sociedade, e que em muitas vezes é corrompido

ou

até

mesmo

Assim surgem sujeitos que as reconhecem

desestruturalizado. As canções refletem o eu

e se identificam o que Rosenwein conceitua

poético e a sociedade. Um exemplo dessa

como “comunidades emocionais, que são

reinvindicação enquanto letra e música é

sujeitos que estabelecem ligações com estas

possível encontrar na canção.

canções”. Comunidades

emocionais

fundamentalmente comunidades sindicatos, conventos,

o

mesmo

sociais-famílias, instituições fábricas,

são que bairros,

acadêmicas,

pelotões,

cortes

“Que País É Esse”? Da banda Legião Urbana. Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação

principescas. Mas o pesquisador que se

Que país é esse?

debruça sobre elas procura, acima de tudo,

Que país é esse?

desvendar os sistemas de sentimento,

Que país é esse?

estabelecer o que essas comunidades (e os indivíduos em seu interior) definem e julgam

No Amazonas, no Araguaia iá, iá,

como valoroso ou prejudicial para si (pois é

Na baixada fluminense

sobre isso que as pessoas expressam

Mato grosso, Minas Gerais e no

emoções); as emoções que eles valorizam,

Nordeste tudo em paz

desvalorizam ou ignoram; a natureza dos

Na morte eu descanso


G N A R U S | 135

Mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos fiéis Ao descanso do patrão Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Terceiro mundo, se for Piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas

coloca “Quando vendermos todas as almas

dos nossos índios num leilão”. Estabelece uma forte crítica com a história e com o passando no qual a História é negada ou seja a cultura existente no Brasil é ignorada pelos colonizadores, considerando um país sem História e índios como “tabulas rasas” contraponto com o atual momento histórico que o país esta vivendo, sendo questionado o próprio futuro do país diante de tantas ações mal elaboradas, e más condutas na política do Brasil. Tomando como base a letra como um

Dos nossos índios num leilão

texto, traz considerações relevantes diante

Que país é esse?

das representações sociais daquele período

Que país é esse?

seguido pela própria vontade da mudança.

Que país é esse?

Sendo o receptor aquele que ouve e alguns

Que país é esse?1

refletem sobre ela, esta canção que está incumbida de ideologias, valores que

A letra da canção está inserida em um contexto histórico de uma época um período marcado por grandes reivindicações do próprio grupo de rock nacional que se formava, com grandes bagagens de criticas feitas também pela música popular brasileira MPB, que abarcava grandes críticas perante o regime ditatorial. A canção é escrita em 1978 e lançada em 1987¹ relatando grande insatisfação popular com o Brasil, com a corrupção, com a alienação que o governa repressor estabelecia na população assim como o próprio poder que constituía frente à

desperta uma analise sobre o contexto e que afetam o ouvinte acabando por transformálo. Segundo Zhumthor (2007, p 52) “Comunicar (não importa o quê: com mais forte razão um texto literário) não consiste somente em fazer passar uma informação; é tentar mudar aquele a quem se dirige; receber

uma

comunicação

é

necessariamente sofrer uma transformação”. Compreendendo a relação existente entre a história e a música, a canção faz refletir sobre elementos presentes no país e suas dimensões.

ditatura, o descaso com o nosso país,

A metodologia de analise de discurso

negando a sua própria história quando Russo

permite analisar as letras e o discurso, assim

¹RUSSO, Renato. “Que País É Esse”? Vagalume, 2014.Disponível em: <http://www.vagalume.com.br/legiao-

urbana/que-pais-e-esse.html>. Acesso em: 30 abr. 2014

1


G N A R U S | 136 como a ideologia que permeia o discurso nas

caracteriza, uma posição social, histórica, é

músicas, como aponta CAREGNATO, MUTTI

através da linguagem que se caracteriza uma

(2006, p. 680)

ligação com a realidade. Assim como a

A AD trabalha com o sentido e não com conteúdo do texto, um sentido que não é traduzido, mas produzido; pode-se afirmar que o corpus da AD é constituído pela seguinte formulação: ideologia +história + linguagem. A ideologia é entendida como o posicionamento do sujeito quando se filia a um discurso, sendo o processo de constituição do imaginário que está no inconsciente, ou seja, o sistema de ideias que constitui a representação; a história representa o contexto sócio histórico e a linguagem é a materialidade do texto gerando “pistas” do sentido que o sujeito pretende dar. O sentido é a prática da análise do discurso, pois leva-se em consideração que a linguagem não é transparente e está é passível de análise e de interpretação, a linguagem é o meio que o homem se comunica, transforma sua realidade e a traduz. E na linguagem que emerge a ideologia de cada sujeito atrelado ao espaço e historicidade que ele permeia na sociedade, podendo representar a sua posição e as suas concepções sendo elas implícitas ou implícitas no discurso. Segundo Foucault (1999, p. 10.)

(...) o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do desejo; visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. A ideologia está presente em cada discurso, pois faz parte da linguagem e a

interpretação de cada discurso de cada letra, de cada texto, é como um bosque, um jardim de caminhos que se ramificam e se difundem, porque ate mesmo quando o caminho não está definido o leito [ ouvinte] pode delinear seu próprio caminho, indo tanto para a esquerda como para a direita, levando ao estremo como o leviano, assim optando por um caminho, o ouvinte como o leitor é compelido a optar o tempo todo. (ECO, 2002, p. 12) Assim como cada receptor pode conferir significados diferentes a um mesmo discurso e a uma mesma música, dependendo da sua posição

social,

experiências

sociais

e

emocionais, porém há concepções atreladas a esses significados pois como Jouve. (JOUVE, 2002, p.25, grifo nosso) ressalta:

Na medida em que, cortada de seu contexto, a obra é raramente lida como seu autor queria, não é lógico desistir de ressaltar qualquer intenção primeira e ver apenas no texto o que se quer ver? Se não se pode reduzir a obra a uma única interpretação, existem, entretanto critérios de validação. O texto permite, com certeza, várias leituras, mas não autoriza qualquer leitura. A organização dada pelo autor do texto permite variações de leitura, mas ainda assim constituiu uma programação que deve ser respeitada pelo autor. (JOUVE, 2002, p.25, grifo nosso). Existe uma certa liberdade para cada leitor, ouvinte, ler, ouvir e interpretar uma canção, porém a direção é pré determinada pelo autor, ou compositor, o que o ouvinte faz é


G N A R U S | 137 interpreta-la conforme as suas aptidões e

Contudo a recepção, e a interpretação de

identidade, que está ligada a diversos outros

cada canção além de ser subjetiva ela

fatores culturais, que vão dar sentido

também depende de demais fatores, que vão

diferente para cada verso, para cada canção.

direcionar e complexar cada canção. Tanto

Assim Iser (1999) fomenta a respeito dessa proximidade do leitor [ouvinte] receptor e o universo paralelo da leitura e o universo, a realidade do leitor a medida em que ambos se encontram, o texto, no caso a música torna-se correlato da consciência de seu receptor, o que encaminha um rumo da leitura. Assim a relação entre o ouvinte e a letra, o receptor retira a sua consciência do mundo e insere no universo da canção. Não se esquecendo de que cada música também está atrelada ao seu tempo e espaço, pois ela é filha do seu tempo, assim como fruto de ações do tempo histórico, pois cada música esta vinculada com um período

coletivo como individuais, o abstrato e o real se ligam na medida em que provoca uma identificação com o eu-poético, deste modo o conhecimento empírico do mundo se difunde com a linguagem, na qual cria-se um elo de ligação, pois os dois universos se encontram e dessa maneira muitas vezes o receptor torna a letra da música como representação de si mesmo, ou de sua posição atual, seja ela política, social ou emocional. A música exprime emoções e capta-as,

penetrando

sentimentos

e

nos

despertando

íntimos uma

identificação e uma aceitação subjetiva, estabelecendo uma ligação receptor e autor.

da história, seguido de interpretações de indivíduos presente nessa história, seguido de uma conjuntura sociopolíticas desse tempo. Assim Ross (2011, p .12) argumenta:

Então por que se arraigou a ideia de que há algo de peculiarmente inexprimível na música? A explicação pode não estar na música, mas em nós mesmos. A partir de meados do século XIX, as plateias se acostumaram a adotar a música como uma espécie de religião secular ou política espiritual, investindo-a com mensagens tão urgentes quanto vagas. As sinfonias de Beethoven prometem liberdade política e pessoal; as óperas de Wagner inflamam a imaginação de poetas e demagogos; os balés de Stravinsky liberam energias primais; os Beatles incitam uma revolta contra antigos costumes sociais. Em qualquer momento da história, existem alguns compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época.

Marília Luana Pinheiro de Paiva é graduada em História e Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. marilia-lua1@hotmail.com.

REFERÊNCIAS CAREGNATO, Rita C. A; MUTTI, Regina. Pesquisa qualitativa: análise de discurso versus análise de conteúdo. Florianópolis: Texto Contexto Enfermagem, p. 679-684, out/dez, 2006. DUBY, George. Histoire des Mentalites. Terra mar. Portugal, 1999. ECO, Umberto. Seis passos no bosque da ficção. São Paulo: Companhia das letras, 2002. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 5ª ed. 1999. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999. JOUVE, Vicent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.


G N A R U S | 138 MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia – história, cultura e música popular em São nos anos 30. Tese apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Doutor em História. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. MOSCOVICI, S. Representações sociais, investigações em psicologia social. Petropólis: Editora Vozes, 2003

NAPOLITANO, Marcos. História e música história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 ROSENWEIN, H. Barbara. História das Emoções, problemas e métodos. São Paulo: Letra e Voz, 2011 ROSS, Alex. Escuta só: do clássico ao pop. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ZHUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007


G N A R U S | 139

Artigo

O CULTO À ANCESTRALIDADE NO EGITO ANTIGO: UMA ESTRUTURA AFRICANA. Por Claudio Lourenço

M

uita confusão surge ao se estudar o

as necessidades de seu tempo, cada estrutura

sistema

O

cultural é particular e deve ser entendida dentro

conceito de rei divino, o culto a

de seu próprio contexto. Tendo como base esses

religioso

egípcio.

diversas divindades, o relacionamento entre os

princípios,

a

cultura

egípcia

deve

ser

vivos e os que passaram para o além-vida são

compreendida dentro de seu lugar e momento

motivos de incompreensões e visões erradas

histórico e não através de estruturas de outros

sobre as crenças dos antigos egípcios. Parte

povos e, principalmente, das dos dias atuais.

desses erros é se querer compreender fatos do passado tendo como base conceitos das sociedades atuais, caindo no tão funesto anacronismo. Outro fator é se querer ver o Antigo Egito como uma civilização à parte do local onde ela se encontra: a África. O antropólogo Lévi Strauss desenvolveu o conceito de estruturalismo em meados da década de 1950, onde dizia que a cultura de um povo é desenvolvida de acordo com suas

A dispersão do homem a partir da África.

necessidades em dado local e momento

A África é o continente original da espécie

histórico. Não há cultura superior ou inferior – o

humana, tendo de lá migrado os grupos humanos

que retirava as bases do racismo científico, ou

que iriam ocupar todos os territórios do globo. As

darwinismo social -, mas culturas diversas. Mais

estruturas religiosas primordiais que aí surgiram

importante, a cultura de uma sociedade não

irão acompanhar esses grupos migrantes e se

pode ser medida através de outra, pois sendo

desenvolver em todas as partes por eles

estruturada por um grupo social de acordo com


G N A R U S | 140 ocupadas. A primeira forma de compreensão

velhos, os ancestrais que governam mesmo as

espiritual desenvolvida pelos homens foi o

forças e elementos da natureza.

contato consigo mesmo. Os homens antigos perceberam-se como parte integrante da natureza e refletem sobre a possibilidade de a vida e a consciência não estarem limitadas ao corpo material. Assim como o vento, que é invisível, haveria uma parte do ser que também não poderia ser vista ou tocada, mas somente sentida, percebida. Essa parte do ser habitava o corpo e expressava-se através dos pensamentos e sentimentos. Quando o corpo morria, essa parte

imaterial

desprendia-se

dele,

mas

continuava existindo e podia – e acreditava-se que certamente fazia – contatar aqueles que ainda estavam vivendo ligados a um corpo. Esses seres espirituais possuíam duas características fundamentais que irão fundamentar seu culto: eles haviam adentrado o mundo das energias que governam a natureza, sendo capazes de controlá-las e, ainda mantendo contato com os vivos, sendo seres poderosos e sábios, poderiam auxiliar o desenrolar dos eventos sociais de forma mais harmoniosa e eficaz.

universo, sobre tudo que o cerca, observando que os animais, plantas, rios e mesmo ele próprio tem um nascimento, uma origem, ele imagina que todas as coisas que existem assim o tiveram. Ele imagina que houve uma força criadora que a tudo trouxe existência. Ele imagina, também, que aquela sua parte imaterial, seu eu espiritual, foi algum

momento

estruturas religiosas mais arcaicas através dos modelos que nos foram legados pelos gregos. A diferença fundamental é que os gregos acreditavam haver um grupo de seres à parte da humanidade, composto por indivíduos, que embora possuíssem qualidades humanas, eram dotados de poderes sobre-humanos, os deuses. Já outros povos, que mantiveram as estruturas religiosas originais, não creem em deuses como uma classe separadas, mas sim em ancestrais poderosos e divinizados. A compreensão dessas duas vertentes de pensamento faz toda a diferença quando se procura compreender as estruturas religiosas das sociedades e, neste caso, do Egito Antigo. Logo de início, precisa-se compreender que o que é conhecido como Egito faraônico surgiu através da união sucessiva de diversos grupos que habitavam a região do Nilo. Esses grupos - que se unem ou são militarmente unidos em dois grupos, o Alto e o Baixo Egito, para logo em

Quando o homem começa a refletir sobre o

em

A confusão surge quando se tenta entender as

do

tempo

criado.

Construindo um esquema sobre esse processo criativo universal, imaginou que alguns seres foram criados juntamente com todas as coisas da natureza. Tais seres foram os primeiros a governar o mundo, sendo os espíritos mais

seguida se unirem em um só Estado centralizado – possuíam cada qual sua mitologia. Tais mitologias tiveram que ser unidas em um corpo único, mas que em muitos casos mantiveram divergências entre um nomo e outro. Segundo o mito egípcio, o espírito original, Atum, gera sozinho dois filhos, Shum e Tetnuf, os princípios do movimento e da umidade. Shum e Tetnuf se unem e têm um casal de gêmeos, Geb, a terra, e Nut, o céu. Enamorados, Geb e Nut se unem e Nut engravida de quatro filhos: Osiris, Isis, Seth e Nefts. Ainda no ventre da mãe, Osiris e Isis se apaixonam, se unem e Isis dá à luz Hórus,


G N A R U S | 141 que nasce sob a forma de um falcão e, irrompendo o ventre de Nut, voa para os confins do universo, conhecendo todas as coisas. Os filhos de Nut e Geb nascem e Osiris, casa-se com Isis e recebe o governo da terra negra às margens do Nilo (o kemet), enquanto Seth casa-se com Nefts e recebe o governo das terras secas e vermelhas do deserto (o desret). Invejando o reino fértil do irmão, Seth arquiteta um plano para destronar Osiris e tomar seu reino. Ele mata Osiris, trancando-o em uma caixa que é atirada no Nilo. Isis sai em busca da caixa e a encontrando usa magia para ressuscitar o marido. Ela se une sexualmente a ele e engravida de Hórus, que ressurge como um homem. Seth descobre que Osiris está vivo, o encontra e esquarteja. Isis reúne as partes e novamente o ressuscita, mas ele decide viver no outro mundo (o mundo da vida, o mundo espiritual que se encontrava

abaixo

do

mundo

material),

tornando-se o senhor dos mortos, o senhor dos espíritos. Hórus cresce e se torna um grande guerreiro. Sua mãe lhe conta a história no assassinato de seu pai e Hórus decide vingar o pai e destronar o usurpador Seth. Ele une os povos do Egito e liderando um grande exército, vence Seth e se torna o primeiro rei do Egito.

A batalha entre Hórus e Seth. A partir deste mito, justificava-se o poder do rei do Egito. Em primeiro lugar, o espírito primordial Atum foi sincretizado com o deus supremo da cidade que estava no governo. Em Heliópolis, ele foi identificado com Rá, o deus-sol. Em Mênfis, com Pitah, o criador; em Tebas, com Amon, que também foi unido sincreticamente a Rá; em Amarna, sob o governo de Akenaton, com Aton, o sol. Dizia-se que o rei recebia a energia do deus supremo, sendo seu escolhido para ser o ocupante do trono de Hórus. A ligação com o deus supremo e com o patrono do trono do Egito, tornava o rei divino e o legítimo herdeiro do trono. Isso é ancestralidade. Esse mesmo sistema de crenças pode ser encontrado entre outros povos africanos até hoje. Dentre os iorubas, o rei tem ligação ancestral direta com o patrono da cidade ou do trono. O faraó era tanto divino quanto humano. Como

O faraó Seth homenageia Hórus e é amparado por Isis.

divino, era o representante direto das divindades no mundo, seu sumo sacerdote e controlador das forças da natureza. Como humano, era o pai de


G N A R U S | 142 todos os homens, responsável por suprir todas as

faraó deveria ter um tratamento especial após

necessidades da sociedade. Ele era o responsável

sua viagem para o outro mundo, devendo seu

pela manutenção de maat, a ordem cósmica.

culto ser mantido através das eras para que a

Os egípcios acreditavam que o poder do faraó era tão grande e ele era tão digno de reverência que não se podia nem mesmo chegar perto dele e muito menos tocá-lo ou em um de seus instrumentos e roupas. Caso isso acidentalmente ocorresse, somente o imediato perdão real evitaria a morte da pessoa. Dizia-se que a serpente que havia à frente da coroa real, o Uajt, cuspia o fogo solar sobre quem se aproximasse muito do rei sem autorização. Não se olhava diretamente para o rei e nem se lhe falava diretamente; ninguém falava ao rei, mas, sim, na presença do rei. Nem se referia diretamente ao rei; não se dizia “O rei ordenou.”, mas “Alguém ordenou.” Ou “A Grande Casa ordenou.” (Grande Casa é, em egípcio, per-aa, que originou a palavra faraó). Nem mesmo o rei falava diretamente de si como pessoa humana, não dizia “Eu desejo.”, mas “Minha Majestade deseja.”. Esse imaginário de divindade régia pode, novamente, ser observado em outros locais a África. Novamente, entre os iorubas, as pessoas para falar ao rei, precisam se prostar no chão,

harmonia

fosse

preservada.

estruturas

funerárias

colossais,

Construiu-se como

as

pirâmides, ou tumbas muito bem protegidas para abrigarem seus corpos. Templos de adoração foram construídos em associação com essas tumbas, onde o culto poderia ser mantido por um grupo seleto de sacerdotes. Tão importante era esse culto que ainda durante a XVIII dinastia o culto aos reis da IV era mantido. No complexo de Karnak está desenhado uma imagem do faraó Set I prestando o culto a todos os faraós anteriores, desde Narmer, enquanto seu filho e herdeiro, Ramsés (que se tornaria o grande Ramsés II), lê em um longo papiro os nomes de todos eles. Está escrito no mural que Set garantiria seu devido culto. O vizir e arquiteto real de Djoser, o famoso Imhotep, foi cultuado como divindade por ter construído o complexo mortuário de Djoser em Sakkara. Ele esculpiu tudo em pedra, mesmo portas e cortinas, culminando tudo com uma imensa pirâmide em degraus. O culto de Imhotep perpetuou-se por milênios no Egito e, mesmo, entre os romanos.

com a cabeça baixa sem olhar para ele. Muitos

A mumificação é outro fator a ser analisado.

reis iorubas usam uma cobertura de franjas sobre

Mumificar os mortos é um procedimento comum

o rosto, o ade, que serve para proteger as pessoas

a diversos povos até os dias de hoje. Pode ser que

do poder que emana de seu rosto.

os egípcios não acreditassem realmente que a

Para a mentalidade egípcia, os ancestrais deveriam ser cultuados, perpetuando a união e a harmonia entre os mundo material e espiritual. Assim o era entre vários povos africanos, como também entre os indígenas das Américas, entre os aborígenes da Oceania e entre os japoneses. Uma estrutura psíquica arquetípica natural do homem. Como senhor de todos os homens, o

preservação da alma dependesse da preservação do corpo, mas que a preservação do corpo garantisse um maior contato entre os homens e o antigo habitante daquele corpo. Embora a alma partisse para o reino da luz, a sua união com seu antigo corpo era preservada através do ritual da abertura da boca que a reconectava com o corpo preservado. A mumificação não era privilégio da


G N A R U S | 143 realeza, mas estava acessível a todos que

O Egito Antigo foi um precursor de cultura e um

pudessem arcar com os custos. Além de

irradiador do saber para outras áreas. As

reconectar a alma com seu corpo agora

estruturas culturais egípcias – principalmente as

mumificado, os sacerdotes a conectavam a uma

estruturas de mentalidades – representam

estátua sua que ficava na capela fora da tumba, o

estruturas básicas humanas e, devido a sua longa

local onde as pessoas poderiam homenagear o

história, podemos estudá-las como em nenhum

morto e prestar-lhe o devido culto.

outro povo, pois temos registros arqueológicos e históricos desde a pré-história até a queda de Psamético III para os persas de Cambises, já no século IV da Era Cristã. Claudio Lourenço é graduado em Licenciatura plena em História pela Universidade Cândido Mendes e pós-graduando em História da África pelas Faculdades Integradas Simonsen.

Referências:

Ritual de mumificação no Antigo Egito. O culto aos ancestrais foi comum entre vários povos da África. Só houve mudanças com a chegada

das

religiões

monoteístas,

que

buscaram extingui-los. Mas mesmo hoje, com grandes partes das populações islamizadas ou cristianizadas, ainda preservam-se grupos que praticam o culto milenar aos ancestrais.

Culto a um ancestral mumificado pela tribo Kukukuku da Nova Guiné.

JOHNSON, Paul. O Egito Antigo. Rio de Janeiro RJ. Ediouro, 2010. JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ. Vozes, 2011. SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses - 3a edição. Rio de Janeiro, RJ. Nova Fronteira, 2006.


G N A R U S | 144

Artigo

O TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: NOTAS SOBRE SUA CONSOLIDAÇÃO E ATUAÇÃO Por Alex Rogério Silva

Símbolo da Inquisição Portuguesa.

RESUMO: O texto tem por objetivo analisar as principais motivações que incidiram no surgimento do Tribunal do Santo Ofício de Portugal e os principais alvos de sua atuação, tanto em Portugal como em terras brasílicas. Além disso, visa-se discorrer sobre as diversas percepções e sanções que os “desviantes” recebiam por fomentar os desvios de ortodoxia e conduta tão combatidos pela Inquisição. Palavras-chave: Sodomia, Judaísmo, Inquisição, Portugal, Brasil.

Introdução


G N A R U S | 145

A

preocupação

com

os

desvios

da

ortodoxia sempre foi uma constante

Pode-se afirmar que foi na Modernidade que a Inquisição viveu seu período mais intenso:

para a Igreja de Roma. Sua história apresenta

diversos

episódios

“A Inquisição Medieval penetrou em vários países da Europa Ocidental, chegando a alguns países da Europa Oriental, mas foi na época Moderna, nos séculos XVI, XVII e XVIII, que ela atingiu o seu apogeu, estendendo-se inclusive às colônias.2”

de

querelas, disputas, esforços e tentativas no sentido da manutenção de uma unidade, tanto doutrinária quanto organizacional e hierárquica. Desde seus primórdios, a Igreja se encontrou às voltas com diversas dissidências, tendo-as tratado, em uma perspectiva geral, de duas maneiras. Uma

Em Portugal...

destas vias de ação era a perseguição e eliminação

Foi estabelecido o Tribunal do Santo Ofício em

física da divergência, como ficou patente na

1536, com a bula Cum Ad Nihil Magis, só passando

cruzada contra os cátaros no sul da França em

a funcionar, neste reino, definitivamente 11 anos

1209. A outra via de ação era a incorporação das dissidências, quando as ideias divergentes sofriam

depois,

através

da

bula

Mediatio

Cordis,

concedida pelo Papa Clemente

VII.3

um processo de conformação à norma prescrita.

Santo

Espanha,

Um exemplo deste modus faciendi pode ser

direcionada primordialmente para a repressão dos

encontrado no caso da criação da ordem franciscana em 1210, possível graças à adaptação

Ofício,

como

em

A atuação do estava

judeus convertidos ao cristianismo, denominados

cristãos-novos e de seus descendentes.

das ideias de São Francisco. O Tribunal do Santo Ofício medieval foi criado com a finalidade de preservar a unidade dogmática no seio da cristandade, então abalada pela disseminação de movimentos heréticos, dentre os quais se destacavam os cátaros, que professavam uma doutrina de caráter fortemente maniqueísta. Esta primeira Inquisição ou tida como Inquisição Medieval teve seu âmbito de ação restrito à Itália, França, Aragão e a região do que hoje compõe a Alemanha, sendo que o ritmo de sua atividade foi declinando com o passar do tempo, sem, contudo, ter sido em momento algum formalmente extinto, como foi a Inquisição Moderna.1 FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo, Perspectiva, 1977. BETHENCOURT, Francisco. História das 1

inquisições: Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX). São

Paulo: Companhia das Letras, 2000. PROSPERI, Adriano. ‘Inquisizione Medievale’. In: Dizionario Storico dell´Inquisizione. Pisa: Edizioni della Normale, 2010. 2 NOVINSKY, Anita. ‘A inquisição’. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 15. 3 MARCOCCI, Giuseppe & PAIVA, José Pedro. História da Inquisição portuguesa (1536-1821). Lisboa: Esfera dos livros, 2013. MARCOCCI, Giuseppe. I custodi dell’ortodossia: Inquisizione e cheisa nel Portogallo del cinquecento. Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2004.


G N A R U S | 146 Efetivamente,

foram

Boa Esperança: todas as

quatro os Tribunais que

possessões da Ásia e da

compunham

costa

a

Inquisição portuguesa4,

A

especifica. O primeiro o

de

que

referente

províncias

e reino do Algarves, Trás-os-montes e parte

e

e foram recebidos pelo monarca D. Manuel, o

1541, foi instituído o

províncias do “Alentejo

pela

residência em Portugal

da Boa Esperança”. Em

pelas

perseguidos

estabeleceram

de Portugal até o Cabo

responsável

judeus

entraram

domínios e conquistas

Évora,

os

expulsos da Espanha,

Beira, Brasil e todos os

de

tal

Inquisição que foram

da

“Estremadura, parte da

Tribunal

de

1492, no momento em

com uma abrangência às

história

tribunal teve início em

Lisboa,

estabelecido em 1539, jurisdicional

da

África”.5

cada um com jurisdição foi

oriental

Gravura a cobre intitulada "Die Inquisition in Portugall" por Jean David Zunner retirada da obra "Description de L'Univers, Contenant les Differents Systemes de Monde, Les Cartes Generales & Particulieres de la Geographie Ancienne & Moderne." por Alain

da Beira, incluía ainda

O Tribunal de Coimbra tinha sob sua alçada a "Guarda, província do Entre-Douro e Minho, Trásos-Montes e parte da Beira” e terras que pertenciam ao mesmo bispado, foi instituído no mesmo dia que o anterior. Fora do continente europeu, faz parte do arsenal lusitano o Tribunal de Goa, criado em 1560, com “jurisdição sobre todos os domínios portugueses além do Cabo da

Portugal contava com o capital financeiro dos judeus

para

continuação

a do

processo expansionista, e, em função do medo

quaisquer outras terras que pertencessem aos bispados da mesma cidade”.

venturoso.

da perda deste apoio o monarca permitiu a permanência daqueles que concordassem em se batizar na Igreja Católica e adotassem a nova religião. Muitos abraçavam a fé cristã e eram batizados, mas continuavam com a sua devoção religiosa em oculto. Se descobertos, eram mortos, tinham os seus bens confiscados pela Coroa e, constrangidos nos autos de fé: cerimônias públicas onde os culpados eram queimados à vista do povo. O Estado, em função do alto custo da

4

A princípio foram criados em Portugal seis tribunais. Metade deles – Lamego, Tomar e Porto -, entretanto, foram extintos pouco tempo depois da instauração, não deixando muitos registros de suas passagens pela História Portuguesa. BETHENCOURT, Francisco. Op. Cit. p. 23-25.

manutenção da corte em Portugal e nas colônias, SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 160. 5


G N A R U S | 147 dependia de empréstimos e “desde que se

Por Bula, em 1539, o Papa assegurou algumas

encetara o caminho ruinoso dos empréstimos,

garantias aos acusados. No entanto, as orientações

nunca mais se abandonara, e o estado quase que

da Santa Sé não foram respeitadas no país, pois

exclusivamente vivia desse expediente6”. Enquanto

contrariavam os interesses da Coroa, o que levou o

o Estado pobre e endividado carecia de recursos,

Pontífice a suspendê-la novamente em 1544.

os judeus exerciam uma espécie de monopólio

Muitas vezes o rei, por não estar de acordo com as

comercial emprestando dinheiro a juros e

disposições papais, burlava várias delas, inclusive

investindo no comércio. Uma de suas atitudes foi

nomeia, em 1539, como Inquisidor-Geral seu

libertar os judeus que haviam se tornado escravos

próprio irmão, Infante D. Henrique.

até que no final do séc. XV, e outra foi oferecer casamento à princesa D. Maria de Aragão, filha dos reis católicos espanhóis. A aceitação da proposta seria condicionada a uma expulsão judaica em Portugal daqueles que haviam sido condenados pela Inquisição espanhola. D. Manuel aceita as condições e em 1496 publica o édito de expulsão vindo a falecer em 1521 sendo transferido o poder para D João III.

Diante de tal situação e da ameaça do monarca de promover um cisma, o Papa assentiu às exigências do rei, acatando a nomeação do Inquisidor-Geral o Cardeal Infante D. Henrique e concedendo ao rei poderes para interferir nas questões inquisitoriais. Em contraponto, o povo judeu que era contribuinte em Roma, tinha representantes de seus interesses que intercediam e procuravam atravancar os planos de D. João.

Dom João III desejava não apenas a instalação da Inquisição, mas também, o poder de nomear inquisidores e agir sobre ela conforme os

Os alvos do Tribunal do Santo Ofício Neste momento, os alvos principais do renovado

interesses da Coroa. Em dezembro de 1531, o Papa que

Tribunal eram as práticas religiosas das minorias

institucionalizou o Tribunal do Santo Ofício

étnicas convertidas ao cristianismo, sobretudo os

português, porém com a promulgação do

judeus, o que segundo Henry Kamen, refletia de

documento, é também nomeado um Inquisidor

forma pungente a situação de desigualdade

para o reino, entretanto, pouco tempo depois o

proporcionada pelos movimentos de reconquista

Sumo Pontífice a revoga, após descobrir a

na Península.7 O comportamento herético dos

confissão forçada dos judeus. Em 1533, concede a

judeus convertidos, os intitulados cristãos-novos,

primeira bula de perdão aos cristãos-novos

se consumava na prática, às escuras, de sua

portugueses. Após o falecimento de Clemente VII,

religião ancestral.

Clemente

VII

promulgou

a

bula

em 1534, Paulo III assume a Santa Sé e com isso há

Porém, além dos crimes religiosos de heresia,

o restabelecimento, em 1536, da Inquisição em

feitiçaria e blasfêmia, os inquisidores perseguiram

Portugal,

nomeando

três

Inquisidores

e

autorizando o rei a nomear outro.

também alguns desvios sexuais, entre eles a sodomia, a bigamia e a luxuria dos sacerdotes. Os crimes

HERCULANO, Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Porto Alegre:

sexuais

eram

combatidos

quando

6

Editora Pradense, 2002, p. 50.

KAMEN, Henry. La Inquisicion española. Trad. Esp. Barcelona, 1999, pp. 23-25. 7


G N A R U S | 148 islâmica. Isto fica evidente no Scriptorium8 de D. Afonso X, o Sábio, na qual, contava com sábios e artistas de diferentes procedências e das três culturas então reinantes na Península Ibérica: a cristã, a judaica e a muçulmana, e também o que afirma Anita Novinsky:

“Durante a Idade Média, a Espanha mostrou-se como um dos países mais tolerantes da Europa em relação aos hereges. Durante esse período, cristãos, muçulmanos e judeus coexistiram num mesmo território de forma pacífica e até mesmo em solidariedade. Por essa razão, até o século XV a Inquisição não obteve quase nenhuma penetração no país 9.”

Com o passar dos anos, os judeus passaram a angariar espaços nos Reinos Ibéricos, e como um Obra mostra cena de expulsão de judeus. Muitos deixaram o país, mas outros optaram por ficar e se converter ao catolicismo. (Xilogravura, Michaly von Zichy, 1880, posteriormente colorizada)

número crescente de judeus se encontravam impedidos de galgarem postos significativos dentro da estrutura político-administrativa dos Reinos, passaram a adotar o cristianismo como fachada a fim de lhes servir de acesso aos já

considerados como atos contra natura, pois escapavam da luxuria usual tolerada ao menos para os leigos, nas relações conjugais. A sodomia ou “pecado nefando” aparece sempre em uma abordagem indignada e caracterizada como ato de um homem com outro e sempre associada à bestialidade, a copula animal ou à imitação do

citados postos. Combater essa heresia passa a ser o principal interesse de Castela e Aragão. Essa situação culmina com a expulsão dos judeus de

nação dos Reinos espanhóis em 1492, ordenado pelo Decreto de Alhambra ou édito de expulsão e com a concessão da bula papal que cria a Inquisição hispânica, cujo principal objetivo é

papel feminino por um dos parceiros. A perseguição aos judeus É difícil precisar quando os judeus chegaram à Península Ibérica. Estes estiveram em tal região durante todo período antigo e medieval, na qual, consolidaram um pacífico convívio com as outras duas culturas presentes na península: a cristã e a

8

Enorme escritório onde [o Rei Sábio] abrigava, sob o seu mecenato, poetas de todo ocidente românico, especialmente da Provença. Mas não só poetas; também desenhistas, miniaturistas, músicos e tradutores várias origens, sem falar dos mestres em todas as artes liberais e também dos sábios de coisas do oriente. Esse conjunto extraordinário de colaboradores do rei Afonso X, formados em três culturas diferentes – a muçulmana, a judaica e a cristã – passou a História com o nome de Escola de tradutores de Toledo.” Fonte: LEÃO, Ângela Vaz. As Cantigas de Santa Maria. Extensão, Belo Horizonte, v.7, n.3. p. 27-42, ago 1997. 9 NOVINSKY, Anita. Op. Cit. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 21.


G N A R U S | 149 combater a heresia judaica, ou seja, investigar

práticas judaicas levou o criptojudaísmo para

cada converso com costado judaico.

dentro das casas, o que possibilitou às mulheres

Essa situação alcança Portugal quando o monarca D. Manuel I assume o trono e pede em casamento D. Maria de Aragão, filha de Isabel e Fernando. Decidido o casamento, vem com este o compromisso aceito por D. Manuel, de expulsar os judeus de seu território. Apesar de aceitar as condições e de escrever um édito de expulsão semelhante para os judeus portugueses, D. Manuel cria meios para que a maior parte desses judeus

serem agentes desse “judaísmo que se tornara possível – criptojudaísmo –, de portas a dentro, realizado no silêncio e discrição do ambiente familiar, tendo o lar, em sua pouca privacidade, como principal espaço de ocorrência”11. O dia a dia de parte dessas mulheres cristãs-novas que judaizavam era dividido entre o seguir as normas sociais impostas às mulheres e muitas vezes liderar seu grupo.

fique no Reino até a data final concedida pelo édito, que seria em outubro de 1497. Chegada a data, os judeus ainda em terra portuguesa têm como única opção a conversão. Nascem assim os cristãos-novos portugueses, também conhecidos como os batizados em pé10. Depois de convertidos, podem esses indivíduos ficar oficialmente sob o poder da Igreja. Como não poderia deixar de ser num processo realizado de maneira forçosa e decretado por lei, muitos dos judeus que foram obrigados a abraçar a doutrina cristã para continuarem presentes e tentarem ser aceitos na sociedade que renegava suas tradições, considerável parcela dos antigos adeptos da religião hebraica buscou, dentro das condições e limites possíveis, manter a herança religiosa, procurando formas de continuar fiel às crenças dos antepassados, mesmo que de forma limitada, improvisada e adaptada às parcas possibilidades então vigentes.

Gravura de 1741 (autor desconhecido) satiriza padres sodomitas num banquete dentro de uma igreja.

Dentro desse contexto, devemos ressaltar o papel feminino. A necessidade do segredo das 10

Assim se designava o judeu convertido, que recebeu o batismo quando adulto, tornando-se por isso cristão-novo, em oposição ao cristão-velho, que recebia o mesmo sacramento sempre ab infantia, nos braços de padrinhos. LIPNER, Elias. Santa inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977. p. 32.

ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia – séculos XVI e XVII. 2004. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, p. 12. 11


G N A R U S | 150 O Brasil foi um espaço privilegiado para a

religiosa, e considerado luxuria por afastar a alma

resistência criptojudaica, graças a uma relativa

dos caminhos de Deus. Tais advertências são

harmonia no convívio entre cristãos-velhos e

encontradas em diversas passagens da Bíblia.

novos, além da não existência de um Tribunal na colônia, mas sim de visitações. Prova disso é a maciça presença neoconversa em praticamente todos os espaços da economia. Havia cristãosnovos nos mais diversos meios, chegando muitos deles a ocupar cargos e posições de importância: ouvidores da Vara Eclesiástica, mestres de latim e aritmética, senhores de engenho, religiosos, profissionais vereadores,

letrados, juízes,

médicos,

escrivães,

advogados, meirinhos

e

almoxarifes, o que reflete o alto grau de miscibilidade na colônia se comparada às outras áreas de migração dos cristãos-novos partidos de Portugal,

como

o

Norte

europeu,

as

geograficamente descontínuas ocupações no Oriente e o Levante.12 Também o elevado número de casamentos que uniam cristãos-velhos e neoconversos aponta para uma maior aceitação social destes enlaces e a diluição dos atritos no convívio entre os grupos na região brasílica.

Ao longo da era cristã, a categoria da sodomia recebeu

acompanharam

os cristãos-novos. Eles, assim como os demais grupos na mira do Santo Ofício, como sodomitas, bígamos, blasfemos etc., eram alvos de suspeitas constantes.

significados, os

os

quais

desdobramentos

do

pensamento e da doutrina da Igreja sobre a natureza da Carne e do pecado – especialmente o pecado da luxúria. Ainda que, a ascensão da categoria à posição de pecado carnal mais grave que podia ser cometido por um cristão tenha sido gradual a partir da Baixa Idade Média, sua condição de pecado nefando – o pecado do qual não se deveria ousar dizer o nome – acompanhou de forma estigmatizante os seus praticantes desde os dias de S. Paulo. Os praticantes da sodomia podiam ser homens ou mulheres, uma vez que esse pecado tinha dimensões hetero e homoeróticas, sendo considerado imperfeito quando era o sexo anal entre homem e mulher e perfeito quando entre homens. A sodomia entre mulheres compunha uma dimensão paralela, chamada sodomia feminina.

A perseguição intensa que se iniciou com o estabelecimento do tribunal português assustava

diversos

No

Brasil

e

na

Europa

a

prática

da

homossexualidade, era considerada um enorme pecado e seus praticantes estavam sujeitos a diversas punições, podendo até chegar a ser queimados na fogueira pelo tribunal do Santo Oficio. Porém a vida na Colônia possuía uma realidade oposta à da Metrópole, uma vez que a

Os sodomitas nas malhas do Santo Ofício A

sodomia

é

uma

prática

fortemente

discriminada pela Igreja Católica, a qual se vale das sagradas escrituras para reprimir e orientar seus fiéis seguidores nas condutas da moral

distância entre ambas proporcionava um ambiente favorável a obnubilação de práticas proibidas, onde lá eram rigidamente mais fiscalizadas que aqui, assim como relata Laura de Melo e Souza13, onde a Colônia passa de paraíso a purgatório, SOUZA, Laura de melo e. O Diabo E A Terra De Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. 13

NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 58. 12


G N A R U S | 151 devido ao fato de os depostos serem enviados à

execuções, segundo Luiz Mott15, a primeira

colônia para pagarem por seus pecados, também o

ocorreu 1613 em São Luis do Maranhão um índio

grande contingente territorial desta Colônia,

Tupinambá, infamado como tibira, foi amarrado na

muitas dessas práticas podiam ser facilmente

boca de um canhão sendo seu corpo estraçalhado

escondidas, a nudez dos índios, bem como a

com o estourar do morteiro, e o segundo em 1678,

liberdade sexual destes e dos negros, acrescidos a

um jovem negro, escravo, foi morto de açoites por

frouxidão dos costumes morais em terras do Novo

ter cometido o pecado de sodomia.

Mundo, sendo estes fatores que facilitaram a propagação e realização para as “nefandices”.

A mesma Igreja se encontrava frente a um dilema, em relação às mulheres nefandas, pois

Antes da primeira visitação do Tribunal do Santo

uma das definições para sodomia feita por

Oficio chegar ao Brasil, quem se encarregava de

Ronaldo Vainfas16 define que a prática como o ato

julgar ou casas de homossexuais na colônia, eram

da penetração anal com derramamento de sémen.

os capitães donatários, como Vainfas expõe:

Se as mulheres não possuem um pênis como

“... Protegidos pela fraqueza da estrutura eclesiástica e pela quase total ausência da Inquisição até o fim do século XVI, a instrução de D. João III a Duarte coelho, em 1534, autorizando-o a condenar e mandar executar, sem apelação nem agravo, os sodomitas de qualquer realidade que lhe viessem às mãos.14”

concretizar o ato da sodomia e ser acusada por tal pratica? Essa é uma discussão tratada por Ligia Bellini17, a qual os clérigos e doutores de igreja intrigavam-se a respeito da sodomia entre mulheres, onde alguns teóricos afirmavam que para a realização de tal prática as mulheres utilizavam-se em certos casos, de instrumentos de

Para os populares, os que mais os incomodava, eram as atitudes desses indivíduos, denominados também por Homoeróticos, por este inverterem

couro, vidro, madeira e outros mais, talvez por esse motivo, no período colonial foram poucos os registros sobre os casos de sodomia feminina.

seus papeis sexuais, uma vez que muitos demonstravam afeto publicamente ou ainda se caracterizavam, assumindo a postura e vestindo-se

Considerações Finais O Tribunal do Santo Ofício foi criado com a

como o ser do sexo escolhido. E mesmo sabendo da rigidez com que a Inquisição condenava e punia os diversos casos que lhes eram denunciados, no Novo Mundo, seu Tribunal era mais maleável a respeito de algumas dessas punições, pois também nos é sabido que na Colônia não houve nenhum caso de morte na fogueira, mas ocorreram mortes de alguns sodomitas, para ser exato, foram duas

finalidade de preservar a unidade dogmática no seio

da

cristandade,

então

abalada

pela

disseminação de movimentos heréticos. Na ocasião, os alvos principais do Tribunal foram as práticas religiosas das minorias étnicas convertidas ao cristianismo, como os judeus, mas não somente, os sodomitas, bígamos, blasfemos, luteranos e MOTT, Luiz. Relações Raciais entre Homossexuais no Brasil Colonial. Revista Brasileira de História, vol., 5, nº 10, 1985. 16 VAINFAS, Ronaldo, Op. Cit, p. 223, 224. 17 BELLINI, Ligia. A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e 15

VAINFAS, Ronaldo. Trópico Dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. P: 211. 14

Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo, Brasiliense, 1989.


G N A R U S | 152 feiticeiros (em menor número), eram alvos de suspeitas constantes. As perseguições eram intensas, na qual, o Tribunal do Santo Ofício utilizava de todos os meios possíveis para a denúncia dos possíveis hereges e para a captação de provas que o incriminasse. Na metrópole, o controle era mais acirrado, devido à presença dos tribunais, já na colônia brasílica, havia uma harmonia, entretanto, casos de heresia saíram da colônia em direção à metrópole, como visitações aqui ocorreram. Em

suma,

a

Inquisição,

utilizando

de

prerrogativas na qual considerava heréticas, em uma

busca

pela

preservação

da

unidade

dogmática cristã, nada mais fez do que manter jogos de poder, de acordo com as conveniências do momento, na qual, faz menção a seguinte passagem:

“O que emerge de tal situação é que a Inquisição nada mais era que uma arma de classes, usada para impor, em todas as comunidades da Península, a ideologia de uma única classe: aristocracia dos leigos e dos eclesiásticos.18”

Alex Rogério Silva é Mestrando em História e Cultura Social na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus de Franca). E-mail: alex465@gmail.com

Referências Bibliográficas: ASSIS, Ângelo Adriano Faria de. Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia – KAMEN, Henry. La Inquisicion española. Trad. Esp. Barcelona, 1999, pp. 10. 18

séculos XVI e XVII. 2004. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói. BELLINI, Ligia. A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo, Brasiliense, 1989. BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo, Perspectiva, 1977. HERCULANO, Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Porto Alegre: Editora Pradense, 2002. KAMEN, Henry. La Inquisicion española. Trad. Esp. Barcelona, 1999. LIPNER, Elias. Santa inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977. p. 32. MARCOCCI, Giuseppe & PAIVA, José Pedro.

História da Inquisição portuguesa (1536-1821).

Lisboa: Esfera dos livros, 2013. ______. I custodi dell’ortodossia: Inquisizione e cheisa nel Portogallo del cinquecento. Roma: Edizione di Storia e Letteratura, 2004. MOTT, Luiz. Relações Raciais entre Homossexuais no Brasil Colonial. Revista Brasileira de História, vol., 5, nº 10, 1985. NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. ______. ‘A inquisição’. São Paulo: Brasiliense, 1982. PROSPERI, Adriano. ‘Inquisizione Medievale’. In: Dizionario Storico dell´Inquisizione. Pisa: Edizioni della Normale, 2010. SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo E A Terra De Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. VAINFAS, Ronaldo. Trópico Dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. São Paulo: Civilização Brasileira, 2010.


G N A R U S | 153

Mini Aula:

ORIGENS DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA SOCIEDADE BRASILEIRA DO SÉCULO XIX Por Germano Vieira1

A

primeira classificação da

sociedade é relativa ao trabalho,

separando

escravos e livres. A massa

escrava representava quase 50% da população brasileira. Os escravos eram divididos entre si por rivalidades tribais. Muitas vezes nem falavam o mesmo idioma, dificultando, ao lado da restrição da liberdade pessoal, a formação de uma camada social coesa.

[...] Mas, indiscutivelmente, a pura presença, as inúmeras revoltas provocaram um medo contínuo nas classes dominantes e influenciaram muito no seu procedimento político.

Este primeiro critério, a partir do qual

Redenção de Can (1895) – Modesto Brocos y Gomes.

podemos dividir a população em livres e escravos, não é tão esclarecedor

como poderia parecer, pois também de um negro alforriado que trabalhava em liberdade os brancos continuavam a exigir sinais de reverência e submissão. Exigiam, por exemplo, que os negros, mesmo livres, lhes cedessem o lugar nas estradas e nas ruas. Era ponto de honra, branco só hospedar branco. Mesmo nas Casas de Misericórdia faziam-se restrições ao negro livre. Embora fosse corrente o dito de que ‘negro rico é branco e branco pobre é negro’, a realidade era outra. Encontramos, assim, outro fator de classificação em que se misturavam classe e raça. A cor era critério de segregação, impedia ou limitava a ascensão social. Para subir socialmente era preciso, além de ser livre, ter cabelos bons, isto é, lisos, pele não muito escura e nariz não muito chato.” (WERNET, Augustin. O período regencial. São Paulo: Global, 1984, p. 17.)

1

Germano Martins Vieira é Graduado em História (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Gama Filho, Pós-graduado em História do Rio de Janeiro pelas Faculdades Integradas Simonsen, membro do Gelhis e pesquisador da Gnarus Revista de História.


G N A R U S | 154

Mini Aula:

“L’ÉTAT C’EST MOI!”

Por Germano Vieira

D

urante o reinado de Luís XIV (1643-1715), a França conheceu o apogeu do Absolutismo e tornou-se uma grande potência europeia, passando a rivalizar

diretamente com a Inglaterra a hegemonia econômica e política. Devido às grandes realizações que empreendeu em seu governo, ficou conhecido pelos seus súditos como o “Rei Sol” e entrou para a História com a célebre frase: “O Estado sou eu!” Diante desta afirmação, é possível perceber que, como a figura do rei confundia-se com a do Estado, este, enquanto instituição, não existia sem a pessoa do monarca. Embora não obtendo o mesmo sucesso na economia como Luís XIV por, entre outros motivos, abusar dos gastos públicos e exagerar na ostentação da riqueza, foi no discurso proferido por Luís XV, seu sucessor, em 1766, que o pensamento absolutista ficou mais bem expresso.

Luís XV, o Bem-Amado. “É somente na minha pessoa que reside o poder soberano... é somente de mim que os meus tribunais recebem a sua existência e a sua autoridade; a plenitude desta autoridade, que eles não exercem senão em meu nome, permanece sempre em mim, e o seu uso nunca pode ser contra mim voltado; é unicamente a mim que pertence o Poder Legislativo, sem dependência e sem partilha; é somente por minha autoridade que os funcionários dos meus tribunais procedem, não à formação, mas ao registro, à publicação, à execução da lei, e que lhes é permitido advertir-me o que é do dever de todos os úteis conselheiros; toda a ordem pública emana de mim, e os direitos e interesses da nação, de que se pretende ousar fazer um corpo separado do Monarca, estão necessariamente unidos com os meus e repousam inteiramente em minhas mãos.” (FREITAS, Gustavo de (org.). 900 textos e documentos de História, vol. 2, pp. 201-202.)


G N A R U S | 155

Mini Aula: GARGÂNTUA E PANTAGRUEL

Gargântua e Pantagruel – Gustave-Paul Doré (1832-1883). Por Germano Vieira

C

ríticos do comportamento corrupto e mundano do clero católico, alguns dos humanistas do Renascimento, como François Rabelais (1494-1553), se utilizaram da forma satírica para denunciar os abusos eclesiásticos nos anos que antecederam a Reforma Religiosa. Censurados como livros

obscenos, a série de romances Gargântua e Pantagruel foram classificadas, em 1564, como obras heréticas e incluídos no Index librorum prohibitorum (Índice de livros proibidos).

“[A ilha era habitada por pássaros] grandes, belos e polidos, em tudo semelhantes aos homens da minha pátria, bebendo e comendo como homens, digerindo como homens, dormindo como homens... Vê-los era uma bela coisa. Os machos chamavam-se clerigaus, monagaus, padregaus, abadegaus, bispogaus, cardealgaus e papagau – este era o único da sua espécie... Perguntamos por que havia só um papagau. Responderam-nos que... dos clerigaus nascem os padregaus... dos padregaus nascem os bispogaus, destes os belos cardealgaus, e os cardealgaus, se antes não os leva a morte, acabam em papagau, de que ordinariamente não há mais que um, como no mundo só existe um Sol... Mas donde nascem os clerigaus?... – Vêm dum outro mundo, em parte de uma região maravilhosamente grande, que se chama Dias-sem-pão, em parte doutra região Gente-demasiada... A coisa passa-se assim: quando, nalguma nobre família desta última região, há excesso de filhos, corre-se o risco de a herança desaparecer, se for dividida por todos; por isso, os pais vêm descarregar nesta ilha Corcundal os filhos a mais... Dizemos “Corcundal” porque esses que para aqui trazem são em geral corcundas, zarolhos, coxos, manetas, gotosos e mal-nascidos, pesos inúteis na terra... Maior número ainda vem de Dias-sem-pão, pois os habitantes dessa região encontram-se em perigo de morrer de fome, por não ter com que se alimentar e não saber nem querer fazer nada, nem trabalhar em arte ou ofício honesto, nem sequer servir a outrem... ou cometeram algum crime que os poderá levar à pena de morte... então voam para aqui, tomam aqui este modo de vida, e subitamente engordam e ficam em perfeita segurança e liberdade.” (RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. In: FREITAS, Gustavo de. (org.) 900 textos e documentos de História. Lisboa, pp. 161-162.)


G N A R U S | 156

Mini Aula:

BRASILEIRO: POVO PACÍFICO? Por Germano Vieira

R

evoltas populares de colonos contra excessos fiscais,

favores

privilégios

suprimidos,

e

foram

cruentamente,

como no Rio de Janeiro, em 1660, quando foi enforcado Jerônimo

Barbalho

e

sua

cabeça sangrenta foi exposta no pelourinho; ou como no

Estudo do pintor Antonio Parreiras (1860–1937) para o quadro “Julgamento de Felipe dos Santos”, pintado em 1923.

Maranhão, em 1684, quando Manuel

Bequimão

e

Jorge

Sampaio foram decapitados e Francisco Dias Deiró foi supliciado em efígie.2 Se as lutas em Minas Gerais, entre paulistas e emboabas (1708-1709), e as atrocidades do Capão da Traição foram menos cruentas do que se costuma supor, a Guerra dos Mascates (1710-1711) custou 150 vidas, 80 feridos e 490 presos; em Vila Rica, nas duas sublevações de 1720, uma e outra cruentas, o Conde de Assumar teve mais de 2.000 homens para rebater os sublevados e acabou enforcando e esquartejando Felipe dos Santos e queimando as casas dos principais revolucionários; no motim militar de 1728, na Bahia, dos 23 réus, 7 foram condenados à pena de morte, sendo os dois chefes esquartejados e os demais sofreram açoites e degredo por toda a vida para Benguela e Angola. (...) Essas explosões de sangue mostram o inconformismo do povo, o radicalismo da liderança popular e a violência e crueza da repressão pela minoria dominante. A fase colonial não valida a tese da tradição política pacífica, que uma historiografia oficial vem sustentando para abater os impulsos de revolta e para satisfazer as esperanças da minoria dominadora.” (RODRIGUES, J. H. Conciliação e Reforma no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965, PP. 28-29.)

2

Supliciado em efígie: quando o réu encontrava-se foragido, após sua condenação, a punição era feita sobre sua imagem.


G N A R U S | 157

Mini Aula:

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E O "JEITINHO BRASILEIRO" Por Cindye Esquivel3

S

érgio Buarque de Holanda escrever em uma época onde a

dicotomia

modernismo

tradição era

x

muito

evidente, tornando o incômodo com as estruturas, tidas como atrasadas, muito latentes. Muito mais que lusitanos chegaram nas caravelas, o patrimonialismo advindo de famílias ibéricas também veio. Esta influência minava toda o aparato burocrático responsável por prover uma sociedade mais igualitária já que, tornava a filiação e o "apadrinhado" mais válido que

a

competência

e

respaldo

burocrático. Ranço esse que minava o progresso e representava o retrocesso. A cordialidade era também vista como uma âncora indesejada. O "homem cordial" apresentado pelo autor, representa o "jeitinho brasileiro de ser",

onde

familiaridade

o

sentimento alcança

de

âmbitos

inadequados, chegando em nossa instituição estatal. O homem cordial ajuda quem lhe aprouver, dedicando somente indiferença para aqueles que não são "da família", essa cordialidade é benquista por trazer o sentimento brando frente às ordens, entretanto, não há família de milhões, sendo então essa cordialidade um mecanismo de exclusão e o oposto. 3

Cindye Esquivel é graduanda em História e bolsista do Programa de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Simonsen, membro do Gelhis e pesquisadora da Gnarus Revista de História.


G N A R U S | 158

Mini Aula:

FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO E O "SENTIDO" DE NOSSA COLONIZAÇÃO.

Por Cindye Esquivel

C

aio Prado Júnior ao escrever sobre nossa História, orienta sua análise para o viés que

possui

mudanças

mais

hirtas

(econômica e social), optando por não

avaliar o quesito institucional, por conta de sua frágil mutação. Sua obra evidencia que ainda hoje somos incapazes de bravar nossa nacionalidade, já que a mesma se encontra inconclusa, de forma a provar que mesmo que possamos dizer que chegamos a um aporte político, estamos longe de estar

sem

algemas

econômicas

e,

consequentemente, sociais. O autor deixa claro que a gênese da nossa colonização é capitalista, já foi pensada para se tornar uma engrenagem exploratória

calcada

na

escravidão,

diferentemente de colônias vizinhas, a mão de obra branca nunca foi uma real opção (até mesmo porque, Portugal não tinha "mãos" para mandar para cá, como a Inglaterra fazia com suas colônias). Mesmo que a ideia matriz tenha sido modificada (inicialmente seria só um porto de enriquecimento, uma réplica do êxito na Índia) para um povoamento, não podemos dizer que o interesse primordial (obtenção de riquezas) fora esquecido, povoar foi a forma de tornar duradoura essa obtenção (visto que o escoamento demográfico era impraticável no caso de Portugal). As pechas de nossa frágil sociedade de hoje, são oriundas, para o autor, desse primórdio exploratório escravocrata que hoje permeia as dificuldades de nossa realidade.


G N A R U S | 159

Mini Aula:

CARACTERÍSTICAS DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA NO SÉC XIX

Por Cindye Esquivel

N

ossa historiografia teve um início modesto e pouco abrangente já que se ocupava apenas por descrições voltadas para os olhos europeus e escrita por cronistas. Fomos alcançando paulatinamente a abertura do leque de abrangência, em um primeiro momento com um incômodo

sutil de Frei Vicente de Salvador e essa visão de sucesso total da colonização; Pós esse primeiro estranhamento, vimos em Antonil uma abertura nos campos alheios aqueles dos governantes e seus feitos, ele veio com uma abordagem diferenciada que, mais que meramente narrativa, instruía. Antonil nos serviu como um manual de entendimento de uma classe que até então, aparecia somente como objeto pertencente a um processo, mesmo que de forma bem inicial. Já Varnhagen aparece na leva das pesquisas do IHGB, usando uma intensa pesquisa à fontes escritas, mesmo que sendo usadas de forma descritiva, época teórica, linear, e pouco analítica; Varnhagen adota uma postura elitista, voltando sua análise para os governos em vigência e seus antecessores. Enquanto Capistrano, também rato de documentos, usa seus métodos de pesquisa científica (já adotada também por Varnhagen) para ressaltar um viés mais próximo do social, ele grassou expandir o limiar de alcance para horizontes

ainda

tidos

como

"de

pouca

importância" e trouxe o ineditamente das culturas distintas, mesmo que Von Martius já houvesse evidenciado a necessidade da inclusão das três "raças" (branca, negra e Índia) para a formação da História Nacional, foi Capistrano quem de fato trouxe essa multi-cultura para nossa escrita historiográfica.


G N A R U S | 160

Mini Aula:

"CAPÍTULOS DE HISTÓRIA COLONIAL", CAPISTRANO DE ABREU E SUA RUPTURA COM MODELO HISTORIOGRÁFICO DE VARNHAGEN. Por Cindye Esquivel

C

apistrano se aloca em um momento transitório entre um momento de ranço tradicionalista da escrita histórica e aqueles que virão para desestabilizar essa corrente de tradição colonial

( Gilberto Freire. Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda...). Sua posição, enquanto historiador, foi marcada pelo intenso culto aos documentos e fontes primárias, entretanto, Varnhagen não destoava nesse sentido. O diferencial entre eles era o viés de análise dedicado ao documento, enquanto a pesquisa de Vernhagem se preocupava em ressaltar, quase de forma ufanista, os feitos da elite dirigente, visando forçar um ideal de cultura unificada; Capistrano ressalta que nossa cultura não foi importada da Europa, nossa abatatem cultural não veio nas caravelas com pitadas portuguesas em nossa receita, tínhamos um pluriculturalismo que ia além dos moldes europeus. Tínhamos em nosso país, regiões que erram desconexas em instâncias que ultrapassam a esfera geográfica, eram áreas com muito mais discordâncias que semelhanças (língua e religião) e tentar pulular um ideal único de nação em uma sociedade marcada pela escravidão, era ineficaz. Tínhamos descontinuidades pós Independência que Capistrano usufrui para ratificar a impossibilidade de uma unidade nacional, quando não logramos nem uma unidade social. Portanto, um "multi-Brasil" era muito mais palatável que um ideal unificado de nação e é ao encontro disso que Capistrano rebate Varnhagen e sua tese simplista de união cultural.


G N A R U S | 161

Mini Aula:

O ROMANTISMO, A HISTÓRIA E O ILUMINISMO Por Cindye Esquivel

A

influência romântica pode levar a essência da História

para conceitos mais inovadores ou conservadores. A autonomia tão em pauta iluminista é agora criticada e vista como uma tentativa de controlar a vida a qualquer

preço, e por isso, se libertar do passado e das tradições já não é mais desejado. Mary Shelley (1797 – 1851) procura mostrar em seu romance (Frankenstein ou o moderno Prometeu, publicado em 1818) que até mesmo os conhecimentos racional e científico têm limites e que buscar a plena autonomia passaria desse limiar. O ser humano e a sociedade, segundo o Romantismo, estão submetidos a forças que não se pode controlar e precisamos aceitar e lidar com isso. O conservadorismo histórico, que tinha Edmund Burke (1729 – 1797) como fiel representante, é o contrapeso das ideias racionais e de autonomia, defendidas pelo Iluminismo, alegando que tanta abstração torna excludente a experiência vivida e a própria história. A História conservadora, portanto, ergue o seu pilar na tradição, mesmo que esta, seja de forma aristocrática e se apoiando na História Magistra para defender modelos ultrapassados que mesmo sendo adaptados, não agradam mais a maioria. A vertente defendida por Michelet (1798 – 1874) também é tradicionalista, entretanto, a inovação trazida por ele é que muda-se o foco de análise que não mais será o meio aristocrático e sim o povo. Para ele, a escrita do autor é fruto da nação e cultura as quais ele pertence, ou seja, a visão cosmopolita defendida pelos Iluministas (o objeto de estudo deveria ser visto com olhos estrangeiros) se extingue e dá lugar à aproximação inseparável do autor e sua forma de escrever História. O autor antes de ser “quem escreve”, é pertencente a um povo e esse povo (consequentemente o autor) tem sua própria História. O povo nacional tem sua experiência que não pode ser substituída por uma escrita racional e abstrata, tornando a historiografia de Michelet fortemente nacionalista. Com esses dois autores em questão (Michelet e Edmund Burke) podemos perceber que ambos desconsideram a possibilidade de a História ser uma ciência totalmente racional, como era defendida no Iluminismo e que cada um com sua vertente, nos traz formas distintas de escrever História.


G N A R U S | 162

Mini Aula:

O DOCUMENTO COMO MATÉRIA-PRIMA DA HISTÓRIA:

Por Fernando Gralha

A

História, segundo o historiador francês Marc Bloch, é o estudo das sociedades humanas no tempo; assim, tem como matéria-prima tudo que comprove, explique e esclareça como as pessoas viviam num determinado tempo e lugar. A produção do conhecimento histórico deve ser feita com base em

indícios, restos e pistas, ou seja, documentos analisados pelo historiador tornam-se fonte do conhecimento sobre o passado. São, portanto, as fontes históricas. Denomina-se fonte histórica todo documento trabalhado pelo historiador em sua busca de conhecimento sobre o passado. Tal noção inclui uma outra, a de registro, utilizada até agora nesta exposição, como sinônimo de documento. Assim, o termo registro, que no dicionário tem uma multiplicidade de significados, está sendo utilizado como uma forma de guardar, de comprovar a existência de algo, de servir como atestado, portanto, de documentar uma experiência coletiva, ação ou sentimento. Assim, os registros do passado também podem ser considerados fontes históricas.


G N A R U S | 163

Mini Aula:

HISTÓRIA, CONFLITO E MUDANÇA

Por Fernando Gralha

A ideia de conceber a realidade como movimento/mudança e de atribuir ao conflito um papel essencial tem, talvez, em Heráclito de Éfeso (540-480 a.C.), filósofo grego anterior a Sócrates,

seu

pioneiro

e

principal

representante. É dele o aforismo “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio” (B 91), que os historiadores costumam utilizar para concluir, corretamente, que a História não se repete: tudo muda o tempo todo. Ele também escreveu: “O conflito é pai de tudo, de tudo é rei; designou uns para deuses, outros para homens; de uns fez escravos, de outros, livres” (B 53). O conhecimento científico pode ser resumido à relação entre o sujeito do conhecimento (sujeito cognoscente) e o objeto a ser conhecido (objeto cognoscível). Para aplicar essa definição de ciência à História e compreender os problemas específicos da ciência histórica,

Heráclito, em detalhe do afresco pintado por Rafael, “A Escola de Atenas”

precisamos refinar nossa definição. Para tal, vamos recorrer a outro historiador francês, Marc Bloch (1886-1944). Ele afirmou no início do século

XX: “A História é a ciência dos homens no tempo.” E aqui nos defrontamos com o primeiro e maior problema para a produção do conhecimento científico da História: o sujeito (o historiador) e o objeto (os homens no tempo) são o mesmo, isto é, homens.


G N A R U S | 164

Mini Aula: A FILOSOFIA MEDIEVAL

Por Fernando Gralha

A

té pouco tempo atrás, a Idade Média, como um todo, era apresentada como uma época na qual os seres humanos, subjugados à autoridade do dogma religioso – e essa visão se aplicava ao pensamento filosófico cristão, judeu e islâmico – esgotavam-se em discussões de problemas imaginários. Ainda hoje os termos “medieval” e “escolástico” têm sentidos nitidamente pejorativos.

A Filosofia Medieval só recentemente foi reconhecida como filosofia propriamente dita (BOEHNER; GILSON, 1982), pois suas obras eram consideradas como textos teológicos. Para conhecê-la, é preciso observar alguns elementos do longo debate ocorrido entre as religiões monoteístas e as ideias filosóficas greco-romanas. Com o fim do Império Romano no Ocidente, a Igreja Cristã se manteve como uma importante instituição social e política, consolidando sua organização religiosa e difundindo o cristianismo. Podemos dizer que a religião cristã que conhecemos após o ano mil da nossa era é a síntese de elementos do judaísmo, religião da qual se originou, da própria experiência cristã e da cultura helenística e, desta síntese, se originou a tradição cultural ocidental. Segundo Luiz Alberto de Boni:

“A Filosofia Medieval leva consigo um problema peculiar, que provocou respostas as mais divergentes: o problema de uma Filosofia estreitamente relacionada com a Teologia. Não se trata apenas de um cunho religioso do saber, peculiar ao pensamento filosófico até Hegel. No pensamento medieval, tanto no cristão, como no árabe, como no judaico, a Filosofia encontra-se imbricada em uma religião revelada” (BONI, 1988, p. 59).

Assim sendo a Filosofia Medieval se constituiu dentro das categorias teológicas e é a teologia que confere unidade ao mundo medieval, ainda Segundo Boni: “Não se trata de negar o íntimo relacionamento existente entre religião e filosofia durante o período em questão. Aliás, até Kant, este relacionamento foi sempre muito estreito, e em Hegel é fundamental. (...) Por isso, o critério de entrelaçamento com a religião cristã não é suficiente para delimitar a filosofia medieval e não permite, inclusive, que se estude o pensamento árabe e judaico da época. É preferível, pois, procurar parâmetros dentro da própria Filosofia. Nesse sentido, julgamos poder definir a Filosofia Medieval como aquela Filosofia que, durante um período de cerca de mil anos, procurou recuperar para a humanidade ocidental, repensando-o, o vasto legado greco-romano.” (BONI, 1988, p. 64-65).

Manuscrito medieval representando uma reunião de doutores na Universidade de Paris.


G N A R U S | 165

Coluna:

A IMAGEM DO SONHO NO CINEMA Por Rafael Eiras

O

filme

Morangos

(Smultromstallet,

Suécia,

Silvestres 1957),

do

em sequências carregadas de lirismos e marcando para o

espectador

um universo

até então

diretor sueco Igmar Bergman é um cinema

negligenciado pela narrativa usual, onde o tempo

direcionado para o inconsciente 1humano, repleto de

linear, construído pela narrativa clássica, se dilui em

momentos oníricos e delírios, onde o passado é

pausas dramáticas.

evocado no presente formando um outro tempo

Bergman é conhecido por colocar em seus filmes

fílmico, a imagem do sonho. Lugar em que as

uma preocupação regular; fazer um estudo das

emoções do personagem principal são materializadas

relações humanas através das teses freudianas,

FREUD, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro Imago. 2004 Segundo Freud o inconsciente é o conjunto dos conteúdos não presentes no campo afetivo da consciência, É constituído por

conteúdos recalcados aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente.

1


G N A R U S | 166 desenvolvendo assim uma maneira particular de

Finalmente quando chega ao seu destino Isaak já não

cinema, quase metafísico. Enquanto a forma clássica

é mais a mesma pessoa.

do cinema contar uma história, herdada dos

Todo este processo caracterizado por esta brusca

primeiros filmes montados, de mestres como D.W.

tomada de consciência, de quem o personagem foi e

Griffith, privilegiavam muito mais a ação dramática, o

do que havia reprimido em seu inconsciente, é

diretor sueco tinha nos momentos não dramáticos sua

apresentado por imagens confusas e sentimentais.

principal força.

Nestas o “eu lírico” se revela como símbolos de um

A narrativa clássica quando apresentava o sonho

universo íntimo, de um homem perplexo e

fazia de uma forma tão racional quanto a própria

angustiado pela proximidade da morte. Símbolos que

vigília, onde a estrutura tanto narrativa quanto

são gerados pela manipulação consciente dos

semiótica

recursos técnicos da estética cinematográfica.

não

buscavam

potencializar

a

subjetividade inerente a este estado. Desta forma

O cinema é uma ferramenta de ilusão poderosa, ele

todas as cenas apresentadas deveriam gerar um

faz as pessoas se transportarem para um outro

entendimento claro e de rápida assimilação.

"mundo possível”2 no qual um tipo de realidade se

A história de Morangos Silvestres se inicia com a

apresenta, mesmo que esta não esteja de acordo com

viajem do Dr. Isaak Borg para receber uma

as regras racionais da vida. Quando começamos a ver

condecoração pelos serviços prestados durante

um filme ele nos apresenta imagens, sons, atuações,

cinquenta anos de medicina. A viagem, que deveria

que retratam um universo próprio, com regras

ser feita de avião, acaba sendo feita de carro e no

próprias. Em um musical o fato das pessoas se

decorrer deste trajeto o personagem com a ajuda de

comunicarem cantando não impossibilita a aceitação

sonhos, visões oníricas, e de delírios, sofre um

do espectador deste mundo estranho, se levarmos em

doloroso processo psicológico de autoconhecimento

consideração que no mundo ordinário não se fala

tardio. Basicamente, ele irá se ver diante da morte e

cantando. Isto ocorre por que as regras deste mundo

descobrir que devido a sua postura racionalista e

foram apresentadas no começo do filme, como um

objetiva nunca fora realmente amado.

momento contratual em que o espectador aceita

Junto com ele está sua nora Marrianne, e no trajeto, acaba dando carona para dois rapazes e a uma moça,

entrar na estória e participar das regras impostas pela narrativa. Esta é a famosa magia do cinema.

e mais tarde a um casal que vive brigando. Antes de

No entanto há na obra de Bergman uma quebra

chegar ao destino, o velho doutor, ainda se detém nos

com a forma dramática clássica, pois o filme é diluído

arredores de um antigo casarão onde havia passado a

no lirismo psicológico do personagem principal.

infância e onde sofre delírios relacionados a um amor

Diluição que cria uma falta de clareza lógica na

da juventude. Ele também faz uma breve visita à casa

evolução dramática do filme. E consequentemente

de sua mãe percebendo a frieza com que foi criado.

cria um choque neste acordo entre o espectador e a

2

ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985


G N A R U S | 167 obra. No musical, mesmo com os diálogos musicais a ação dramática seque seu rumo, já numa sequência voltada para o lirismo não. Para o cineasta Luiz Buñuel a forma Poética é uma crítica a forma clássica, pois esta se limitava a imitar o romance e o teatro e desta forma ela seria menos rica para expressar psicologias. Para ele a arte cinematográfica era uma forma de expressar a vida subconsciente tão profundamente presente na poesia, mas quase nunca era usado com este propósito.

“...o cinema é uma arma magnífica e perigosa. É o melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções, do instinto O mecanismo produtor, das imagens cinematográficas é, por seu funcionamento intrínseco, aquele que, de todos ao meios de expressão humana, ou melhor, mais se aproxima do estado da mente em estado de sonho...”1 Um cinema poético então, segundo Buñuel, seria o cinema que se libertaria da realidade para poder lidar

ação progredir degrau após degrau com um destino

com sentimentos, instintos, vontades.

definido. Porem esta progressão dramática pode

Normalmente em um drama clássico a ação dramática é quem faz com que o drama prossiga, ela

conter outras características que afetem mais ou menos este desenvolvimento dramático.

é a relação intersubjetiva, ou seja, a relação entre

No caso de Morangos Silvestres o psicológico do

pessoas. Ela é, portanto a execução de uma vontade

personagem acaba revelando o seu “eu poeta” com

humana. A finalidade de uma ação só é dramática se

todo o seu lirismo. A forma lírica é a forma que está

produz outros interesses e paixões opostas, criando-

presente no poema, é a voz de um poeta, que em

se o conflito dramático; uma ação desencadeada por

primeira pessoa mostra seu mundo interior. Porém

uma vontade que tem um determinado objetivo e

não se pode dizer que o filme é uma obra

colide com interesses e paixões. A unidade de ação

completamente lírica3, pois mesmo diluído na

clássica se dá na realização de uma meta

subjetividade, a ação acontece. Diferente de

determinada, através de um conjunto de conflitos2.

experiências anteriores em que o cinema se desligava

Ou seja, num drama clássico cada cena deve fazer a

completamente de uma narrativa presa aos padrões

BUÑUEL, Luis. Cinema: como instrumento de poesia in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg334

2

1

ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985 3 ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985


G N A R U S | 168 clássicos, como no surrealismo, Bergman cria uma

esta força tão contraria a racionalidade aristotélica e

forma de narrativa que mesmo atrapalhando e

que permeia toda a história da humanidade. O

diluindo a narrativa, acaba por torna-la mais rica e

próprio ato de se assistir a um filme e responder aos

coerente num jogo quase dialético. E por tanto a

estímulos que a imagem em movimento cria, quase

imagem do sonho em seu filme ganha uma potência

como se aquilo fosse real, também é um estado de

até então nunca trabalhada antes.

magia, onde o espectador se encontre imerso na

É no sonho que a forma lírica se mostra mais

narrativa.

presente por que é neste estado que o inconsciente

Todos estes aspectos formam a ideia de que é

humano é revelado, pois os sonhos mostram os

preciso se quebrar, ou diluir, a forma clássica da

sentimentos e desejos escondidos. O fato da técnica

imagem-ação7, ou “a Grande Forma”, para se

cinematográfica, por exemplo, recorrer ao sonho

arquitetar uma imagem de sonho. Mais que

quando se quer dizer certas coisas vedadas a um

puramente a ideia de um drama clássico a “Grade

entendimento racional é um exemplo disto. A

Forma” é uma maneira de se perceber o cinema

psicanálise diz que os sonhos4 seriam a representação

clássico do ponto de vista da semiótica. Importante se

de um conjunto de pensamentos que estão

falar desta ideia porque ela traz na sua postulação a

reprimidos no inconsciente e querem se tornar

ideia de que as ações no filme têm que ser

conscientes. Nos sonhos do Doutor Isaak Borg,

legitimadas pelo ambiente, coisa que não acontece

podemos encontrar dês do seu medo da morte

no Sonho. Para Deleuze o cinema de imagem e ação

eminente até sua infelicidade sexual com a esposa.

está impregnado de segundidade8 ou de Syn-signo,

Esta

linguagem

que é a ideia do meio atualizando as qualidades e

cinematográfica pode ser libertadora, pois não é

potências. É a ambiência ditando o que se tornara

preciso seguir nenhuma regra vigente no mundo

ação porque é através de suas qualidades que as

racional. Por este motivo o sonho é em sua origem um

personalidades iram vir à tona. Para existir uma ação

elemento poético. E também por que no sonho se

é necessário que o meio em que ela se propagara seja

encontra o completo estado de magia, onde a

definido, pois este ambiente definira tudo; quem é o

subjetividade é tanta que no momento em que se esta

bonzinho, quem é o malvado, quem é o selvagem e

nele se acha que vivencia a verdade.5

etc. No Faroeste, por exemplo, se pode perceber o

ferramenta

onírica

para

a

Para Edgar Morin6 o sonho nada mais é que um

ambiente como definidor das ações e das reações que

estado em que o indivíduo se encontra atolado por

culminaram na estrutura dramática clássica: S-A-S´ (S:

sua própria subjetividade, pois tudo o que se passa

situação inicial, A: ação transformadora, S´: situação

nele é uma criação do sonhador. Desta forma é

final); o Cawboy tem que agir contra os índios que são

através desta participação afetiva que nasce a magia,

selvagens. Tudo isto definido em poucos planos onde

FREUD, Sigmund. Interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago. 2001 5 MORIN, Edgar. A alma do cinema in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg 143 6 idem

7

4

DELEUZE, G. Cinema: Imagem-movimento. Rio de Janeiro: Brasiliense 1985 8 METZ, C. A significaçao no cinema . Rio de Janeiro: Pespectiva. 1972


G N A R U S | 169 os índios atacam uma diligência, como no filme do

completo e se volta para um mundo lírico rico em

diretor John Ford, “No Tempo das Diligências”

imagens poéticas. Por exemplo, em uma sequência

(Stagecoach, Estados Unidos, 1939)

do filme vemos: um homem afiar sua navalha e corta

No sonho o ambiente não dita as ações, pois estas

o globo ocular de uma mulher. Em seguida vemos um

já não têm uma relação de racionalidade. No mundo

ciclista passar pela rua, ele cai e uma mulher vai

onírico não há a necessidade de uma ação (como

ajudá-lo. Depois na casa da mulher, se vê a mão

vemos no esquema S-A-S´) e sim o desejo desta ação.

cortada do ciclista, cheia de formigas. Na imagem

Quando as ações se voltam para o desejo elas já não

seguinte a mulher aparece na rua vestida como um

necessitam de ser explicadas, elas são frutos de um

homem, empunhando a mão como um bastão e um

esquema voltado não para a imagem como a

carro a atropela. Chega-se nesta obra no máximo da

exemplificação das qualidades e potências de um

imagem sonho, onde o real é este sonho, e não há

filme, e sim as imagens como ideias mentais.9

uma ação dramática.

O

Surrealismo10

traz em sua gênese estas imagens

Segundo Martine Joly no seu livro “introdução à

do sonho, ou seja, traz na sua maneira fantasiosa de

análise da imagem”11 a noção de imagem no campo

realidade uma imensa porção de subjetividade. Isto

das artes é vinculada essencialmente ao visual:

devido a sua origem, ele è fruto de uma corrente

afrescos, pinturas, ilustrações, desenhos, gravuras,

moderna de arte que sempre buscou representar o

filmes, vídeo, fotografia. No entanto um dos sentidos

irreal e o subconsciente para que a emoção mais

de imagem, do latim Imago, designa a máscara

profunda do ser tenha todas as possibilidades de se

mortuária usada nos funerais na antiguidade romana,

expressar com a aproximação do fantástico, no lugar

estando relacionada a um espectro ou a alma de um

onde a razão humana perde o controle. Impulsionada

morto.

mais pelo desejo do que pela necessidade. Por isso

È nesta ideia de imagem que se pode perceber a

suas imagens são de sonho, mesmo que este não

imagem do sonho, a concepção da imagem como um

esteja sendo revelado como tal.

reflexo, uma sombra de algo material ou imaterial.

No curta-metragem “Um Cão Andaluz” (Un Chien

Para o cinema da “grande forma” a imagem seria a

Andalou, França, 1929) filme feito em parceria do

representação de um ambiente e suas qualidades, já

diretor espanhol Luis Buñuel e o expoente da pintura

na quebra deste paradigma ela seria a ideia de que se

surrealista Salvador Dali, se pode aceitar a completa

faz do homem e do seu mundo, o abstrato que se

falta de lógica do mundo apresentado. Os dois

encontra no universo da subjetividade.

roteiristas escreveram seus sonhos e depois os

A imagem neste sentido é uma construção do

filmaram transformando a obra em uma produção

homem. È um signo que requer ser interpretado por

feita com os princípios surrealistas, onde a narrativa

um indivíduo e sua bagagem cultural. Vilém Flusser,

se despe das características clássicas de drama por

em “Filosofia da Caixa Preta”, coloca a imagem como

9

11

DELEUZE, G. Cinema: Imagem-Movimento Rio de Janeiro: Brasiliense 1985 10 BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify. 2000

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem São Paulo: Papirus editora. 2006 pg 18.


G N A R U S | 170 objeto oferecedor de símbolos “conotativos”. O olhar

cenográfico de forma que ele crie códigos bem

do receptor sobre as intenções do emissor é quem

subjetivos e que passem uma ideia mental. As paredes

estabelecerá relações significativas entre os símbolos

da casa onde moram três irmãs e uma governanta são

ali representados. Refere-se à interpretação das

de um vermelho bem forte, tentando passar a

imagens como “tempo de magia” elas “Devem sua

mensagem de que a casa que elas vivem seria o útero

origem à capacidade de abstração específica que

materno. E o grande problema das irmãs é a relação

podemos chamar de imaginação”.12

delas com a mãe.

O poder da imagem neste sentido abstrato está

Nesta categoria de cinema, se podemos

justamente no poder de se criar códigos que

chamar assim, há um inevitável e forte apelo

possibilitem a uma ideia não voltada a necessidade

emocional do autor da obra, no caso do diretor sueco,

de uma ação, mas sim ao desejo poético de se mostrar

ele coloca em cada elemento técnico da filmagem

o inconsciente de um personagem, uma ideia

um pouco de sua experiência pessoal. É justamente

política, ou até uma simples brincadeira, através de

como um poeta escrevendo. Bergman falou sobre

um sonho ou delírio. “O caráter mágico das imagens

como pensou Morango Silvestres e seu envolvimento

é essencial para a compreensão das suas mensagens.

pessoal:

Imagens são códigos que traduzem eventos em

“Suponho que um dos motivos mais fortes que se esconderam atrás de Morangos Silvestres está justamente nisso. Eu fazia uma ideia da minha pessoa a partir da pessoa que meu pai era e procurava uma explicação para os conflitos que tinha com minha mãe. Percebia que eu fora um filho não desejado, parido durante uma crise física e psíquica de minha mãe”10

situações, processos em cenas”. 13 Assim a subjetividade se apresenta na origem do cinema, diferente do que pensa André Bazin, 14 quando ele afirmava que em um fotograma se pode extrair uma arte completamente objetiva, sem a intervenção subjetiva do ser humano. Propagando a ideia de que numa fotografia, ou num dos vinte quatro quadros por segundo do cinema, esteja

Na primeira cena de sonho de Morangos Silvestres,

registrado uma verdade absoluta, quase como um

e é importante analisá-la porque ainda não se sabe

fetiche de realidade gerado pela frieza objetiva da

muita coisa sobre o personagem e por isso se tem

máquina fotográfica. Um erro essencial, pois toda

pouca noção de seus sentimentos verdadeiros,

fotografia tem em sua gênesis um ponto de vista, uma

vemos:

ideia.

O Doutor Isaak Borg caminhar por ruas desertas.

Em um outro filme do diretor sueco Igmar Bergman

Ele para em frente a um poste e olha para cima

intitulado “Gritos e Sussurros” (Viskningar Och Rop,

enxergando um relógio sem ponteiro onde em cada

Suécia, 1972) podemos pensar no ambiente

um de seus lados se encontram dois outros círculos

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

14

12

2002 13 idem

BAZIN, André Ontologia da imagem fotográfica in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg 121. 10 BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo: Matins Fontes. 2001.


G N A R U S | 171 como se fossem outros dois relógios. A diferença é

Doutor percebe que é ele próprio no caixão.

que nessas duas esferas menores se encontra um olho

Apavorado ele acorda.

para cada círculo, quase como um óculos. O Doutor

O que se percebe nesta sequência é que as imagens

pega seu relógio no bolso e percebe que este

não projetam ações voltas para a necessidade e sim

também está sem ponteiro, pensativo e confuso ele

por um desejo. Ou seja, o ambiente não gera a ação

vacila em que direção tomar e quando vai retomar o

racional do personagem, ele passa na verdade um

caminho vê do lado do poste um homem de costas.

estado de espírito, e agrega em sua formação uma

Ele vai até ele e o vira. O que o doutor vê assustado é

serie de símbolos que geram imagens intelectuais,

um corpo sem rosto. Imediatamente o homem sem

desprovidas de uma coerência com as ações do

rosto cai no chão e começa a jorrar sangue pela

personagem. Uma das interpretações poderia ser a

cabeça. Confuso o doutor olha para frente e continua

de que o doutor está com medo da morte e sente que

a andar até parar numa esquina e olhar uma carroça

sua hora estar por vir.

sem motorista transportando um caixão. A carroça

Neste âmbito o que se tem é a significação da

prende sua roda no poste. Os cavalos forçando a

imagem. Uma imagem pode gerar algum sentido que

carroça para que ela se desprenda fazem o caixão

não está relacionado necessariamente a narrativa da

escorregar. Por uma fresta que se abriu na queda o

história, ou que servem, como no caso do filme, para


G N A R U S | 172 enriquecer o conhecimento sobre a psique do

Afinal toda imagem deve ser lida16 e interpretada,

personagem. Neste sentido a imagem do sonho e

mesmo quando não é uma imagem poética. Pois os

responsável por cria códigos que não podem ser lidos

sentidos são diferentes de uma pessoa para outra, a

objetivamente, e que dependem também da

subjetividade de quem assiste é o fim do significado.

participação afetiva do espectador que tenta de

Esta ideia reforça uma hipótese que na verdade

alguma forma interpreta-las e inseri-las no contesto

qualquer imagem pode ser de sonho e o que regularia

dramático da história. Uma interatividade que

esse limite seria o uso ou não das técnicas narrativas

exercita tanto a imaginação do espectador como cria

clássicas. O sonho no cinema então é a falta de

reflexões bem mais complexas acerca da obra.

narrativa, pois seu principal objetivo é contar o que

Outra cena importante é visita do Doutor Isaak à

não se pode contar e sim sentir. Não há espaço para

sua antiga casa, local onde foi criado e teve seus

uma imagem-sonho sem que haja algum mistério

primeiros amores. Lá ele tem um delírio acordado e

subjetivo a ser desvendado. Por isso a imagem dos

se depara com seu antigo amor da juventude e a sua

sonhos são os momentos em que os seres humanos

própria imagem ainda jovem. Neste momento, uma

podem realmente se libertar de suas realidades

espécie de sonho acordado, o personagem está em

formais.

um limbo temporal e espacial, um novo espaçotempo criado pelo diretor, onde a fácil desculpa do estado de sonho não é mais usada e o lírico realmente

Rafael Eiras é formado em Cinema pela Universidade Estácio de Sá e graduando em História pela Universidade Cândido Mendes.

se mistura diretamente com a ação dramática. Neste ponto a ideia de realidade que a narrativa clássica tenta buscar se racha, e o lirismo flui como um rio

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

atemporal e mágico.

AMENGUAL, Barthélemy. Chaves do Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1973 AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papiros editora. 2005 AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus.1995 ARMANDO, Carlos. O Planeta Bergman. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989 BILHARINA, Guido. O cinema segundo Bergman, Feline, e Hitchcouk. Uberaba: Instituto Triangular de Cultura,1999 BJORKMAN, Stig. O Cinema Segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz e terra,1977 BRADLEY, Fiona. Surrealismo. São Paulo: Cosac Naify.2000BERGMAN, Ingmar. Imagens.São Paulo: Matins Fontes. 2001 CARRIÉRE, Jean-Claude. A linguagem do Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1995

Como ressalta Edgar Morin no seu livro “A alma do cinema”

15,

a

fotografia,

a

iluminação,

o

enquadramento podem gerar angustia, podem exaltar a espiritualidade, podem passar ideias e pensamentos diversos, dependendo da intenção do artista. Importante no entanto é que esta subjetividade ajude a criar a estética que a obra se propõe, tanto derrubando com a estrutura clássica por completo, ao renegar a narrativa, ou inserindo momentos líricos a esta.

MORIN, Edgar. A alma do cinema in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg 143 16 AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papiros editora. 2005 15


G N A R U S | 173 DELEUZE, G. Cinema: Imagem-movimento Rio de Janeiro: Brasiliense 1985 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma Futura Filosofia da Fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2002 FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. Rio de Janeiro: Imago. 2003 FREUD, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro Imago. 2004 FREUD, Sigmund. Iterpretaçao dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago. 2001 JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem São Paulo: Papirus editora. 2006

METZ, Cheistian. A Significação no Cinema. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva. n.54. 1972 PALLOHINI, Renata. Introdução à dramaturgia. São Paulo: Brasiliense. 1983 PARENTE, André. Ensaio Sobre o Cinema do Simulacro. Rio de janeiro: Pazulin.1998 RIVEIRA, Tânia. Arte e Psicanálise. São Paulo: Jorge Zahar. 2002 ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985 SILVA, Alberto. Cinema e Humanismo. Rio de Janeiro: Pallas S A.1975 XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS

MORANGOS SILVESTRES Ficha Técnica

Título Original: Smultromstallet Gênero: Drama Tempo de Duração: 95 minutos Ano de Lançamento (Suécia): 1957 Distribuição: ABS Avensk Filmindustri Direção: Ingmar Bergman Roteiro: Imgmar Bergman Produção: Alan Ekelund Música: Eric Nordgrn Fotografia: Gunnar Fischer Direção de Arte: Gittan Gustafsson

Elenco Victor Sjôstrôm Bibi Anderson Ingrid Thulin Gunaa Bjornstrand

UM CÂO ANDALUZ Ficha Técnica

Título Original: Un Chien Andalou Gênero: Drama Tempo de Duração: 16 mm Ano de Lançamento (França): 1929 Direção: Luis Buñel Roteiro: Luis Buñel e Salvador Dalí Produção: Luis Buñel Música: Richard Wagner Fotografia: Albert Duverger

Elenco Pierre Batcheff, Simone Mareuil, Luis Buñuel, Salvador Dalí

GRITOS E SUSSURROS Ficha Técnica Título Original: Viskningar Och Rop

Elenco Harriet Andersson (Agnes) Kari Sylwan (Anna)


G N A R U S | 174

Gênero: Drama Tempo de Duração: 90 minutos Ano de Lançamento (Suécia): 1972 Estúdio: Cinematographica AB / Svenska Filminstituet Distribuição: New World Pictures Direção: Ingmar Bergman Roteiro: Ingmar Bergman Produção: Lars-Owe Carlberg Fotografia: Sven Nykvist Desenho de Produção: Marik Vos-Lundh Figurino: Marik Vos-Lundh Edição: Siv Lundgren

Ingrid Thulin (Karin) Liv Ullmann (Maria) Anders Ek (Isak) Inga Gill (Contador de histórias) Erland Josephson (David) Henning Moritzen (Joakim) Georg Arlin (Fredrik)

NOS TEMPOS DAS DILIGÊNCIAS Ficha Técnica Título Original: Stagecoach Gênero: western Tempo de Duração: 96 minutos Ano de Lançamento (EUA): 1939 Estúdio: warner Direção: John Ford Fotografia: Bert Glennon

Elenco John Wayne Claire Trevor George Bancroft Louise Platt Andy Devine Claire Trevor Tim Holt John Carradine Donald Meek Thomas Mitchell Berton Churchill


G N A R U S | 175

Coluna:

O NUEVO CINE LATINO-AMERICANO E UMA ARGENTINA MEMORIOSA Por: Renato Lopes

O presente texto tem por objetivo fazer uma breve exposição do movimento cinematográfico conhecido como “Nuevo cine latino-americano”, com vistas a contextualizar uma de suas obras mais expressivas, o filme “A História Oficial” de Luiz Puenzo, 1985. Ao mesmo tempo busca traçar relações entre a memória de uma Argentina em processo de redemocratização e as memórias clandestinas que emergem nesse momento e a forma como são retratadas através da imagem cinematográfica.

O NUEVO CINE LATINO AMERICANO E SEU PAPEL NO REDEMOCRATIZAÇÃO ARGENTINA

“Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que permitam escapar à

condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes” – Paulo Emilio Salles Gomes.


G N A R U S | 176

A

o começar a esboçar um pouco sobre a

criativo, nos 50/60 e anos 80, estava presente em

trajetória do cinema latino americano, o

seu

crítico e historiador Paulo Emilio Salles

cinematográfico que geraria uma série de rupturas:

emite este diagnóstico, tanto estrutural quanto

a busca por um cinema que retratasse os problemas

estético, que acaba por expressar também a tônica

do terceiro mundo, a busca de alternativas por um

dominante que moldaria o nosso cinema em fins

desenvolvimento que gerasse menos exclusão e

dos anos 50 e início dos 60 e que posteriormente

mais empoderamento as classes de poucos

seria retomada no imediato pós-ditaduras, na

recursos, um cinema de cunho político social que

redemocratização: um cinema de poucos recursos

fosse militante, que buscasse a identificação entre

materiais, porém de grande inventividade estética

seu público e ao que ele assistia, gerando uma

(linguagem utilizada no direcionamento da

conscientização ao passo que aumentaria a

mensagem) e onde a forma não prevaleceria sobre

participação de popular de grupos historicamente

o conteúdo, mas que buscar-se-ia uma relação

excluídos2.

bojo

essa

discussão

externa

ao

fato

dialética entre ambos. A

O

essência desse Nuevo

subdesenvolvimento,

Cine latino-americano, do

próprio

dado

Cinema

em

aceita passivamente, um novo caminho começa a

ruptura provocada por

se desenhar, onde a falta

fatores extrínsecos ao

de recursos, longe de ser

elemento

uma deficiência técnica,

cinematográfico, de um que

aparecem

seria

novas

tributário as discussões

da

ruptura

e

da

elaboração

ambos

os

contextos

de

sua

emergência

e

1

de

da

uma

linguagem estética que prima por dialogar com

radicalização política.1 Em

formas

a

vez intervém na própria

continente vivia. Seria a artística

ligados

expressão que por sua

políticas-sociais que o vertente

latino

americana, deixa de ser

uma continuidade. Uma

cinema

a

cinematografia

uma

ruptura, mas do que em

próprio

que

marcaria

Novo brasileiro, estava calcada

estrutural

a sociedade da qual emana

(Paranaguá).

boom

PARANAGUÁ, Paulo Antônio. O Cinema na América Latina: Longe de Deus e perto de Hollywood. Coleção Universidade Livre. São Paulo,L&PM. 1985 pg.66

MENDES, A.R.S O Nuevo Cine Latino-americano e a filmografia sobre os Regimes Civil-militares. In: Revista 2

Intellectus / Ano 05 Vol II –2006 ISSN 1676 –7640


G N A R U S | 177 Como nos índica Mendes:

sócio-política, não cabe em uma estrutura narrativa

“Maquiagem e iluminação, utilizados para realçar e padronizar o belo, não deveriam estar presentes. A ausência desta beleza seria o retrato de uma América Latina que se buscava distante de Hollywood. Fernando Birri afirmava que deveria se procurar “um desaliño provocado” com o qual concordava Nelson Pereira dos Santos.5 Sinalizando para as características do cinema na década de 1950, Avellar indica que a perspectiva não era a de representar o mundo, mas sim de reapresentá-lo”3 Muitas são as formas de proclamar este novo cinema “Uma estética da fome, uma estética da violência” segundo Glauber Rocha. “Um terceiro cinema, militante, oposto ao cinema alienado, comercial, dominante, bem como o cinema reformista, colonizado, de autor”, para os argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino. “Um cinema imperfeito”, para o cubano Julio Garcia Espinosa. “Um cinema coletivo, junto ao povo”, defende o boliviano Jorge Sanjinés. Em comum a todas essas proclamações podemos perceber que acaba recaindo sobre o cineasta, e ele aceita de muito bom grado, seu papel de produzir ideologias,

fomentar

discussões,

gerar

representações da realidade que os permeavam. Era um cinema que ao mesmo tempo que propunha uma linguagem, um conteúdo a ser discutido, negava veementemente seu enquadramento em qualquer escala de produção e reprodução a nível industrial ou mercadológico, busca se desvencilhar de qualquer formula pré fabricada e maniqueísta, seu intuito e abarcar toda a realidade que não é contemplada

pelos

consagrados

esquemas

narrativos do cinema maisntream hollywoodiano. Assim o nuevo cine latino-americano torna-se a afirmação de que a verdade, fruto da discussão 3

Ibdem.

4

Idem nota 02

arraigada em conceitos pré-concebidos. O que vem tornar o nuevo cine latino americano ainda mais revolucionário é sua ânsia de fincar a sua linguagem em uma realidade altamente distinta daquela retratada e vendida pelo cinema estadunidense, e que tanto sufocava a produção local.

O Nuevo Cine na Redemocratização Argentina Evidentemente que um cinema com esta perspectiva revolucionária seria prontamente calado quando da consumação dos golpes militares pelo cone sul entre metade dos anos 60 e 70. Afinal dada sua dimensão política e revolucionária seria uma arma apontada contra os ditadores que governavam impunemente. Cineastas e roteiristas que estavam na vanguarda dos movimentos cinematográficos foram silenciados ou preferiram o exílio. Mas apesar de todo o sufocamento a qual fora submetido o nuevo cine, no período de derrocada dos regimes militares ele volta a emergir, com sua temática político-social, cujo foco agora erma justamente os regimes civil-militares que se encerravam no cone sul. Embora não fosse necessariamente o mesmo cinema, nele estava contido a semente daquele mesmo movimento dos anos 60/70, mesmo porque muitos de seus principais realizadores estavam de volta a cena.4 Esta nova fase do nuevo cine, por assim dizer, vem aliar-se as memórias populares referentes aos períodos ditatoriais e tentam substituir a memória oficial propagada pelo regime, por uma memória que ficou clandestina, silenciada, dos moviments populares que resistiram as ditaduras. Havia-se um


G N A R U S | 178 comprometimento em buscar uma verdade que

instrumento criador de representações históricas, e

teria ficado ocultada, tinha-se novamente um

agente ativo do processo de construção da

cinema militante, de reflexão sobre a realidade

memória. Para isso devemos sempre considerar o

latino americana.

contexto em que o filme foi produzido, quem o

Vale ressaltar que nesse momento, mais do que convergências, ocorrem rupturas no seio do movimento dicotomização

cinematográfico. presente

O

grau

de

anteriormente

nas

películas do nuevo cine, agora dá lugar a um processo de vinculações institucionais que refletem os interesses de determinados grupos, nesse caso os governos democráticos que assumem o poder durante o processo de redemocratização. O cinema passa a ser instrumentalizados por esses grupos, que irão que irão especificar o tipo de discurso

dirigiu, roteirizou, seu tema, técnicas de produção ou seu misce en scene7, grupos sociais que concorrem para sua produção, que políticas culturais regem a sociedade no momento de sua produção e lançamento para consumo. A análise de todos esses elementos constitutivos colabora para que o filme seja utilizado como suporte aos recursos didáticos, indo além do simples uso da imagem como representação, e sim entendo os elementos que compõem aquela representação e qual seu sentido8

mediador das relações presente/passado. O cinema

No caso do cinema argentino e sua relação

tem esse laço concreto com a realidade dos atores

estabelece-se no bojo da redemocratização

históricos, sendo também um agente histórico e o

ocorrida em 1983, onde produziram-se diversos

filme um mediador dessas relações e discursos. Mas

filme

não deve-se deixar de indicar que o filme não traz

documentários ou ficções (esta última categoria

somente as motivações ideológicas de seus

produzida mais maciçamente), abordando diversos

realizadores, há questões tangentes a sua

aspectos, desde a questão das crianças arrancadas

produção, que ficam evidente quando filme é

dos pais perseguidos políticos, os desaparecidos,

lançado em seu circuito de exibição e o espectador,

torturas,

a despeito de qualquer ortodoxia imposta pelos

abordagens diretas ou mais alegóricas, exemplos

seus realizadores, tem a liberdade de se apropriar

não faltam, o cinema Argentino é fecundo em tratar

dos temas ali levantado.5 Supera-se a idéia de que

a ditadura nos mais diversos âmbitos, nas mais

o espectador é um agente passivo, pois a forma

diversas formas. Para além do tema ditadura há

como este irá receber a mensagem exerce

temas como a crise econômica do país, os males da

influência tamanha a partir da diversidade de

sociedade

sentidos criados pelos que assistem a obra.6

relacionamentos, cidades, amores, amizades, tudo

Não devemos perder o foco de que o filme é um documento histórico na medida em que é um

5

NAPOLITANO, Marcos. História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; - USP: História social. Série Coletâneas). Págs. 65 e 66. 6Idem nota 02. 7Movimento e arranjo dos elementos no quadro ou na tomada de uma cena a fim de observar como se podia gerar

sobre

o

crimes

ditadura

não

Argentina,

resolvidos,

argentina

seja

sejam

com

contemporânea,

isso ressaltando tendo o país, suas particularidades e história como pano de fundo.

significados, construindo relações entre as tomadas através da montagem. 8 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez. 2008. Páginas 373 e 374.


G N A R U S | 179 No contexto da redemocratização argentina,

período de redemocratização, em torno de um

toda essa nova vertente, tributária das origens do

esforço para revolver as memórias em busca

nuevo cine, vem agregar-se a uma prática de um

daquelas que não estavam minadas pela história

discurso único, que visa garantir uma perspectiva

oficial.

minimalista de democracia, capaz de garantir a

enquadramento das memórias através do cinema.

manutenção de uma classe dirigente no poder9. Na

Era

necessário

realizar

um

novo

Michael Pollack nos diz sobre o cinema usado

redemocratização argentina, esse discurso ilustra o

como suporte ao enquadramento da memória: “O

embate

projetos

filme é o melhor suporte para fazê-lo, donde seu

democráticos: uma democracia formal de caráter

papel crescente na formação e reorganização,

neoliberal ou minimalista e um projeto mais amplo

portanto no enquadramento da memória.Ele se

que

havia

entre

dois

de democracia participativa10.

dirige não apenas as capacidades cognitivas mas

Já nesse momento argentino, evidencia-se um dos

capta as emoções”11. O trabalho de enquadramento

pontos de ruptura entre a estética revolucionária

da memória se constitui em um trabalho de

do nuevo cine, oriunda dos anos 50/60, e as novas

associação entre dados históricos e a memória

propostas que surgem: enquanto naqueles anos

como “operação coletiva dos acontecimentos e das

privilegiava-se o documentário como mediador da

interpretações do passado”. De modo que seja

realidade a partir do cinema, nessa nova etapa o

estruturado um limite, plausível através das

cinema de ficção ganha de vez seu espaço, e passa

justificativas baseadas em metodologias de

a ser a produção preponderante. Posteriormente, o

pesquisa

que era um antagonismo, ficção e documentário,

arbitrariedades e por conseguinte, injustiças

passam a serem vistos como obras complementares

históricas norteiem o processo de reconstrução do

na compreensão da realidade. As novas tecnologias

passado.

que surgem, capazes de facilitar a produção e a montagem de pequenas e hábeis equipes de filmagem parecem minar a ideia de economicidade produtiva e precariedade de recursos, tem-se início o réquiem da estética revolucionária, que vê-se dominada

pela

aceitação

das

inovações

tecnológicas globalizantes do período (Mendes)

e

análise,

evitando

assim

que

E é justamente sobre uma memória enquadrada e o papel do cinema em sua mediação, seja didática ou metodológica, que vou procurar ilustra a relação cinema/memória, através da análise de um dos filmes mais expressivos da retomada do Nuevo Cine Latino-Americano. Trata-se do filme “A História Oficial” de Luiz, Puenzo, 1985. Ele será nosso

Para além da discussão dos rumos teóricos que o

timoneiro no entendimento das novas relações

nuevo cine estava tomando, havia a discussão em

institucionais, a partir do rearranjo das memórias,

torno do papel do cinema naquele momento. Como

que surgem na Argentina redemocratizada.

já dito anteriormente o cinema argentino estava agregando as memórias populares e sendo instrumentalizado pelos grupos dirigentes do

9

BORON, Atilio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1994. Página 07. 10 Idem nota 02.

11POLLACK,

Michel. POLLACK, Michael. “Memória, esquecimento e silêncio”. In:Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, Pg. 11


G N A R U S | 180 A NÃO OFICIALIDADE DA HISTÓRIA OFICIAL

questionamentos, tudo ocupa o seu devido lugar, nenhuma porta se abre sem que a outra esteja

En el pais del no me acuerdo Doy tres pasitos y me pierdo. Un paasito para alli, no recuerdo si lo di. Un pasito para alla !Ay, que miedo que me da!12

devidamente fechada. Podemos dizer que Alicia, ao início da narrativa, encontra-se em um estado de “plenitude”, aliás não só ela como tudo a sua volta. Tudo está reconhecidamente normal. Todorov reconhece este estado como o ponto inicial elementar de

Ao início de “A História Oficial” (Luiz Puenzo,

qualquer narrativa. Porém para que a história se

1985), a professora Alicia Barnet, interpretada por

desenvolva serão necessárias oposições, capazes de

Norma Aleandro, ministra aulas de História da

desencadear uma série de significados que serão

Argentina – mais precisamente história política e

entrelaçados ao longo do filme. Essa quebra da

institucional a partir de 1810 – em um colégio de

plenitude é um processo marcado ao longo da

ensino Médio. Após as aulas, retorna para sua casa,

narrativa. Para se opor a esse estado de plenitude,

onde

sempre

manifesta-se

uma

reencontra sua filha

força

adotiva Gaby e ao

desestabilizadora,

final do dia também

que vem em sentido

reencontra

contrário,

marido

seu

com

o

Roberto.

intuito de quebrar a

Alicia parece ter um

harmonia inicial. A

bom casamento e

partir

uma vida normal.

momento

duas

Alicia

situações

podem

ser

transparece uma

afetuosa esposa

desse

mãe

ocorrer: a plenitude

uma

é restabelecida; ou

atenciosa,

se reconhece que

e

contrastando visivelmente

não se pode fazer com

nada para deter ou

austeridade

mudar o efeito da

como professora. No

força que gerou a

sua mundo

de

Alicia

percebemos

que

ruptura13.É característico

do

tudo é bem dividido,

“Nuevo Cine Latino

não há espaço para

Americano”

dúvidas

com finais abertos,

12

ou

En El País Del No nome acuerdo – composição Maria Elena Walsh

13

filmes

Tzvetan Todorov APAUD. TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997 Pág. 80.


G N A R U S | 181 que são representativos dessa impossibilidade de se

alunos “a história é a memória dos povos”. Esse

alcançar um novo equilíbrio ao fim da trama. O que

elemento não surge de forma casual na narrativa,

servia para acentuar ainda mais a oposição entre a

ao contrário, ele irá representar uma dicotomia

estética marginal de cunho político-social que

permanente em toda narrativa. Irá marcar a relação

Nuevo Cine fazia em relação à hegemonia da

entre memória coletiva cerceada e libada pelas

estética hollywoodiana que valorizava o belo em

ações e práticas terroristas dos

detrimento da imperfeição da realidade, com finais

ditatoriais, e a edificação de uma memória oficial,

felizes, maniqueístas e bem resolvidos.

que irá suplantar essa memória coletiva e os efeitos

Ao fim de “A História...” veremos bem que o conflito pode estar ali, plantado desde o início,

interesses

da repressão e será também sua justificativa plena e irrefutável.

latente, aguardando o momento de se realizar.

O terceiro passo é o reencontro de Alicia com suas

Assim também são as memórias, as lembranças e as

antigas colegas do colegial. Nesse momento surge

outras faces da História. O drama de Alice começou

uma outra personagem chave na narrativa, e que

a ser desencadeado em quatro passos bem

certa forma será a responsável por transpor os

identificáveis.

conflitos e dilemas da sociedade argentina daquele momento para a vida de Alicia, a personagem em

OS 4 PASSOS

questão é sua amiga Anna, que acaba de voltar do exílio. Anna revela o porquê de seu afastamento:

O primeiro dado de realidade que nos é

Pedro, seu companheiro, havia sido condenado

apresentado é o ano em que transcorre a história do

pelo regime, Anna acabou sendo presa e torturada

filme: 1983. Essa marcação temporal nos ajudará as

por 36 dias por não revelar seu paradeiro. Alicia

mudanças pelas quais a personagem principal irá

nesse momento demonstra total alienação quanto

passar ao longo da trama. O ano em questão marca

as práticas políticas e de repressão promovidas pela

o fim do período ditatorial da Junta Militar, iniciado

Junta Militar que governou o país a bem pouco

em 24 março de 1976, autodenominado “Processo

tempo, e isso fica evidente quando esta indaga o

de Reorganização Nacional”. Um estado de

porquê de Anna não ter denunciado o que ocorreu.

exceção que durou quase 8 anos, onde qualquer

Temos duas vivências simultâneas tipificadas pelo

sinal de dissidência ou oposição era reprimido

regime: uma pessoa totalmente alienada em

violentamente, através de práticas coercitivas que

relação a repressão do regime militar, e outra que

iam do sequestro, passando por torturas, chegando

foi o algo e sofreu as consequências dessa

a assassinatos com ocultação de cadáveres. O

perseguição, Anna. A situação de ambas marca essa

período ficou conhecido como “Guerra Suja”. Suas

tônica dominante da sociedade argentina do pós

ações extrapolaram as fronteiras constitucionais

ditadura e que ganhou mais força e alcance através

visando silenciar toda e qualquer oposição e

do processo de rememoração oriunda dos relatos

espalhar o terror no conjunto da sociedade.

orais de sobreviventes e perseguidos políticos.

O segundo dado que nos é fornecido se apresenta

No entanto Anna, mais do que marcar posições,

durante a aula de Alicia, nos primeiros minutos do

traz aquela que será a informação chave do tema do

filme. Já nesse momento Alicia afirma aos seus

filme e o quarto ponto que irá configurar a retirada


G N A R U S | 182 de Alicia de sua zona de conforto: quando Anna

adotará um outro estado para chamar de

relata que muitas gestantes eram separadas de seus

plenitude?

filhos logo após darem a luz, que por sua vez, essas crianças eram dadas ou vendidas a colaboradores do regime ou eram apropriadas por militares que

UM PAÍS MEMORIOSO

em muitas vezes eram algozes de seus pais

Ao colocarmos em perspectiva as informações dos

biológicos. Nesse instante o estado de inquietação

quatro passos que levaram Alicia a rever seus

de Alicia aumenta e a realidade na qual está inscrita

conceitos e sua vida, é possível traçar um panorama

começa a se fragmentar a partir das informações

geral do que constituiu o processo de oficialização

que recebe. As contradições de sua realidade

de uma história e uma memória, a partir das ações

passam a ficar evidentes, os embates em sala de

que

aula sobre quem escreve a história, os assassinos

desaparecimento

que a falseiam e promovem o esquecimento, a

começarmos pela própria denominação que a Junta

demissão

literatura

Militar se outorgou “Processo de Reorganização

considerado agitador (com quem Alicia durante um

Nacional”, denotando a necessidade desses

diálogo abre um pouco mais sua mente para a

dirigentes de “associar uma profunda mudança

realidade em volta), até seu primeiro contato com

política a uma revisão (auto)crítica do passado”.14

as Abuelas da Plaza de Mayo. Alicia vê seu chão se

Essa suposta revisão crítica, foi a justificativa para

desfazer e passa a tatear em busca de respostas.

desencadear uma repressão institucionalizada por

de

um

professor

de

Resolve pedir a ajuda de Anna, busca o médico que lhe entregou Gaby recém nascida no hospital, tenta buscar paz no confessionário da Igreja, mas

visam

o

esquecimento de

outras

e

o

memórias.

total Ao

um estado terrorista, cujo inimigo se encarnava nas diversas tendências políticas da história recente da argentina: o populismo peronista e o comunismo.

encontra um padre distante e dissimulador, uma

A forma como Alicia recebe informações sobre o

clara referência da cumplicidade espúria entre a

passado recente da Argentina, da possibilidade de

Junta Militar e a Igreja Católica. Quando resolve

sua filha ter sido apropriada, dos inúmeros casos

indagar Roberto sobre a possibilidade de sua filha

semelhantes ao seu, do seu primeiro contato com

ser um bebe roubado, Roberto acusa Anna de estar

Abuelas que buscam informações da mesma forma

colocando ideias distorcidas na cabeça de Alicia,

que ela, todo o contato com essas memórias ocorre

porque “Anna era casada com um subversivo”.

a margem das vias oficiais, informações que saiam

Alicia, assim como enunciado na ideia de Todorov, foi retirada de sua zona de conforto, e agora se encontra em um momento de grande tensão. Ao fim da história Alicia se encontrará em outro ponto da narrativa, em outro estado mental, mas conseguirá restabelecer sua paz inicial? Ou

14

Idem nota 11. Pág.5

da clandestinidade a qual haviam sido confinadas. Essas informações chegam não só Alicia, mas ao conjunto da sociedade argentina, através de redes de contato

que persistiram

aos

anos

de

perseguição, onde pessoas foram assassinadas e privadas de sua identidade. Suas memórias e histórias passaram tanto tempo na clandestinidade,


G N A R U S | 183

“esperando a hora da verdade e da redistribuição

constantes dessa perseguição, esta última ganhou

das cartas políticas ideológicas”. Ao passo que este

status de matriz teórica, campo de conhecimento

exemplo ilustra de forma contumaz que qualquer

essencial para ser o sustentáculo crucial de

revisão “crítica” ou tentativa de silenciamento de

qualquer força política, dada a importância que

memórias de grupos minoritários ou hegemônicos

ocupa no imaginário dos indivíduos e das

não estão sob total controle dos grupos que detém

coletividades. E quem a influência e molda,

o poder político. Os dominantes jamais terão total

exercerá controle políticos sobre os grupos no

controle até onde levarão suas reivindicações que

conjunto da nação.

se formam “ao mesmo tempo em que caem os tabus

conservados pela memória oficial anterior”15

O personagem Roberto, marido de Alicia, vem representar a burguesia argentina que mais do que

Ao longo do filme (e mais marcadamente em seu

fechar os olhos e ouvidos para o momento político

encerramento) ouvimos a cantiga “En El País Del No

do país, foram coniventes com regime e ao vê-lo se

no me acuerdo”, composta por Maria Elena Walsh.

enfraquecendo, começaram a temer por sua vida e

Uma clara referência ao “no me acuerdo” imposto

seus negócios favorecidos pelo regime. Afinal o

pela Junta Militar, em seu processo de exercer

filme faz uma vinculação entre empresariado-

controle sobre a memória argentina. Os militares

militares-estrangeiros-Igreja,

também tentaram fazer o seu “no me acuerdo”

esquema de corrupção encabeçado por um

particular, onde se isentavam de qualquer

General e seu sócio estrangeiro. Não á uma

responsabilidade

e

exploração mais aprofundada dessa dicotomia

desaparecimentos, pois estavam em uma guerra e

durante, que redunda em colocar as mazelas da

os fins, segundo eles, seriam justificáveis. Um pouco

sociedade argentina unicamente na corrupção

menos explicito é a referência que a cantiga faz as

promovida pelos militares. Sendo a corrupção

diversas experiências do século XX, capitaneada

sintomática em quaisquer regimes, democracias ou

pelos regimes totalitários que deram a memória um

ditaduras, com o diferencial ser mais acobertada e

estatuto inédito, ao passo que a perseguiam de

não investigada em regimes ditatoriais17.

sobre

as

mortes

modo a suprimi-la. Com o advento das tecnologias de informação ao longo do século XX e a necessidade de controla-los, a apropriação das memórias chegou a níveis quase orwellianos. Atingindo sucesso de controle da informação de diversas formas, ocorreu eliminação, falseamento, manipulação das memórias, eram capazes de ocupar o lugar da realidade, enquanto outras formas de difusão da verdade eram perseguidas16.

em

um

mega

O jogo de oposições citados anteriormente buscam ilustrar a própria diferença entre Alicia e Roberto. A professora, mesmo com sentimentos contraditórios, tem o desejo de saber quem são os pais verdadeiros de Gaby, mas ao mesmo tempo tem medo de perder sua filha, persiste na busca pelo esclarecimento, pela verdade. De outro lado, Enquanto o marido busca ensandecidamente ocultar qualquer traço da verdade sobre a origem

A história e a memória passam a ser alvos 15.

Ibdem

16Tzvetan

Todorov APAUD. PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do Esquecimento na História. Letras nº 22 – Literatura e Autoritarismo. Pag.85

17MENDES,

R.A.S. Cinema e memória sobre os regimes civilmilitares do Cone Sul. Revista do Clube Militar – edição especial. Rio de Janeiro, março/abril de 2004. Nº 407. Pág.10


G N A R U S | 184 de Gaby e suas relações escusas como o regime

justificativa ao golpe de 1976, “guerra contra a

militar. No bojo deste choque de visões, Alicia

subversão”, já não tinha mais a mesma validade e

passa a se dar conta da real situação do país, passa

um novo argumento capaz de justificar a barbárie

a rever a “história oficial”. Alicia começa a

que estava em marcha: um mal para combater outro

acompanhar

mal maior, ou como ficou conhecido a “teoria dos

desaparecidos,

noticiais as

nos

jornais

manifestações

nas

sobre ruas.

dois demônios”, muito questionada a posteriori19.

Intimamente começa o questionamento da professora acerca de seu lar, de seu trabalho, além do choque de suas memórias particulares no tocante a como Gaby chegou a seus braços, pois segundo o marido Gaby havia sido abandonada pelos pais. Mas depois de sua conversa com Anna, Alicia acaba por entrar em um caminho sem volta, onde não é mais viável esquecer, ou não pensar sobre o passado pois “ele continua ali, longe e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento em que menos se espera18.

Nesse vazio, diante dessa instabilidade e com a capacidade de atingir um grande público o cinema se faz a via necessária para se firmar com características de cunho político e visando a intervenção nas formas de se moldar a memória. Nesse sentido o filme toma parte nesse esforço de construção da memória, devido a fatores tais como: a escolha do período, final da ditadura e transição democrática; o tema, desaparecidos políticos. O filme fora lançado em 1985, com a memória dos acontecimentos recentes ainda muito viva e com muitas das situações abordadas no filme ainda se desenrolando. Esse tempo e esse lugar, onde se

O LUGAR DA MEMÓRIA NA IMAGEM E NA HISTÓRIA NÃO OFICIAL

constrói a memória, nesse caso através de imagens, clamam por colocar a memória em um lugar e “é

No ano em que transcorre a história do filme, o

este vai e vem que os constitui, momentos de

ano de 1983, a sociedade argentina ainda tateia no

história arrancados do movimento da história, mas

escuro e nos escombros do terrorismo de Estado

que lhe são devolvidos. Não mais inteiramente a

praticado pela junta militar. De modo que ao fim do

morte, mas como conchas na praia quando o mar se

regime a organização popular encontrava-se

retira da memória viva”20

combalida, sem capacidade para erigir uma contra argumentação

sistemática

e

ampla,

estava

calcando-se nos relatos e denúncias orais dos que sobreviveram. Os mesmos interesses ditatoriais coexistiram com as aspirações democráticas durante e após o período de transição democrática. O discurso anterior que serviu de pretensa

18

SARLO, Beatriz. O tempo UFMG/Companhia das Letras. Pg.9

passado.

Editora

19 GOMES, Salatiel Ribeiro. Cinema e memória: alegorias

de uma argentina memoriosa. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2011. Página. 2

Assim o filme insere-se em um âmbito da história recente

da

Argentina

onde

as

operações

cinematográficas além de formas de construção das memórias sobre a última ditadura também buscam, adquirir importância na atuação dos processos de reparação histórica. As representações fílmicas, quando confrontadas com outras fontes, alimentam

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de memória. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC. São Paulo, SP – Brasil, pg.13 20


G N A R U S | 185 os debates e as mobilizações sociais que existem na

uma alienada nesse sentido, não podendo ser

sociedade e que clamam por justiça, punição aos

responsabilizada pelo crime de apropriação que

torturadores (mandantes e executores) e a

envolve Gaby.

restituição dos filhos sequestrados para suas famílias de origem21.

Ainda é possível visualizar na obra de Puenzo teses sobra a memória e a lembrança afetadas pela

Através do tema que aborda, o momento que

fluidez do tempo e sobre a própria história.

retrata e o contexto de grandes transformações da

Apreende-se que a emergência das memórias, seja

Argentina memoriosa do pós-ditadura, “A História

aquelas correntes afetadas ou as memórias que

Oficial”

a

ficaram clandestinas, sofrem os efeitos da

compreender o partido de qual memória está

aceleração do tempo, tornaram-se um tema

tomando. Como lugar de memória o filme é

“espetacularmente

investido de um aspecto simbólico, que o faz

memórias não só acerca de crimes cometidos, mas

ocupar espaço na imaginação de quem assiste.

promove-se a recuperação de memórias no âmbito

Simbólico “por definição visto que caracteriza um

cultural, construção de identidades perdidas e

acontecimento ou uma experiência vividos por um

privadas do conflito de versões e leituras do

pequeno número, uma maioria que deles não

passado. Ou nas palavras de Beatriz Sarlo “o

participou”22.

presente ameaçado pelo desgaste da aceleração,

assume

e

ajuda

o

espectador

social”.

Contrapõem-se

converte-se, enquanto transcorre em matéria de memória”23. Trabalhar as memórias faz parte de

CONCLUSÕES

uma operação que, seja pelo silêncio ao qual foram

O drama familiar de Alice é o timoneiro eleito por

submetidas ou pela ação da velocidade frenética do

Puenzo para estabelecer uma empatia com o

tempo, evita-se que se criem vazios sobre o

espectador, pois justamente retrata o drama que

passado.

muitas

famílias

argentinas

viviam

naquele

momento. É nesse ponto que o simbólico e a posição pela escolha da memória a ser construída se agudiza para introjetar na imaginação do público, através carga simbólica presente na película, o despertar de consciência da personagem principal, que era também o de muitos cidadãos argentinos naquele momento. Também é a forma encontrada para colocar Alicia tão vitima daqueles acontecimentos quanto outras milhares de mães e avós, sem necessariamente um julgamento moral, pois o filme se preocupa em pontuar Alicia como

Já dentro da perspectiva histórica “A História

Oficial”, interpõe memória e história no tocante ao afloramento da “verdade”. Em Mendes vemos essa perspectiva “Esta verdade, por sua vez tem origem em espaços não controlados pelas instâncias de poder: a família, a imprensa, as lembranças individuais. O diretor/roteirista propõe, neste sentido, uma transferência da verdade para as mãos das vítimas.24 Gostaria de encerrar dizendo que embora “A

História Oficial” não possa ser pródiga em levantar problematizações ou até mesmo relativizações no

21

Idem nota 18 nota 19. Pg. 22

22Idem

23

SARLO, Beatriz. O tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura – Rio de Janeiro: José Olympo, 2005. Pg.96. 24 Idem nota idem nota 16. Pág.12


G N A R U S | 186 transcorrer de sua exibição, o partido que o filme toma em relação a qual memória está defendendo, nos ajuda a situa-lo bem em um contexto especifico e abre a possibilidade para que o espectador possa buscar as entrelinhas daquilo que o filme apensas sugere ou induz. O filme envelheceu bem ao julgamento do tempo, pois mesmo com os seus “poréns” ainda é forte o suficiente, dado o contexto em que foi feito, para ser referencial nas discussões acerca do papel da memória na elaboração do relato histórico. Renato Lopes graduando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina e é agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema, realizado pela MPC&Associados, que discute através de documentários as ditaduras no cone sul.

BIBLIOGRAFIA BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez. BORON, Atilio A. Estado, Capitalismo e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1994. GOMES, Salatiel Ribeiro. Cinema e memória: alegorias de uma argentina memoriosa. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2011. GRAEME. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997. MENDES, R.A.S. Cinema e memória sobre os regimes civil-militares do Cone Sul. Revista do Clube Militar – edição especial. Rio de Janeiro, março/abril de 2004. Nº 407. Pág.10 MENDES, A.R.S O Nuevo Cine Latino-americano e

a filmografia sobre os Regimes Civil-militares.

In: Revista Intellectus / Ano 05 Vol II –2006 ISSN 1676 –7640. NAPOLITANO, Marcos. História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; - USP: História social. Série Coletâneas). NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares de memória. Projeto História: Revista do Programa de Estudos PósGraduados em História e do Departamento de História da PUC. São Paulo, SP – Brasil.

PADRÓS, Enrique Serra. Usos da memória e do Esquecimento na História. Letras nº 22 – Literatura e Autoritarismo. PARANAGUÁ, Paulo Antônio. O Cinema na

América Latina: Longe de Deus e perto de Hollywood. Coleção Universidade Livre. São

Paulo,L&PM. SARLO, Beatriz. O tempo passado. Editora UFMG/Companhia das Letras. SARLO, Beatriz. O tempo presente: notas sobre a mudança de uma cultura – Rio de Janeiro: José Olympo, 2005.


G N A R U S | 187

Coluna:

Fotografias da História

A FOTOGRAFIA NA PASSAGEM DO SÉC. XIX AO XX: A DEMOCRATIZAÇÃO DA IMAGEM. Por Fernando Gralha

E

m uma conjugação de engenho, técnica e

ilustração, auxílio à memória ou representação

oportunidade a fotografia surgiu em

artística.

meados do século XIX e modificou o

mundo, causou grande impacto na forma de produção e circulação cultural, alterando por completo o ambiente visual e os meios de intercâmbio de informação da maioria dos habitantes do planeta. Atualmente são raros os que não fazem uso frequente da fotografia, seja como

1

Segundo Le Goff, dois tipos de materiais são aplicados à memória coletiva: os documentos e os monumentos. Seguindo ainda o mesmo viés de análise, de que “não há história sem documentos” e que “há que tomar a palavra ‘documento’ no sentido mais amplo, documento escrito, ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou de qualquer outra maneira”, entendemos que a fotografia abrange tanto o conceito de documento como monumento, principalmente dentro da ideia de “novo documento” que transcendendo

A máquina de fotografar e seu produto, a fotografia,

compuseram

equipamento/elemento

o

tecnológico

novo que

possibilitava registrar o cotidiano de uma sociedade em processo de transformação, foram e são fundamentais para a construção das memórias1 de qualquer grupo social, nação, Estado, etc.

para além dos textos tradicionais, carece ser tratada como um documento/monumento. A fotografia de fato, oscila entre documento e monumento, entre memória e História, ora serve de índice, como marca de uma materialidade passada, na qual objetos, pessoas e lugares nos dizem sobre determinadas feições desse passado – modismos, condições de vida, arquitetura, festas, solenidades, etc. Por outro lado, é um símbolo, daquilo que no passado, a sociedade determinou como imagem a ser perpetuada no futuro.


G N A R U S | 188 Abriram para o mundo um novo modo de vida e

imagens, uma ampla diversificação de serviços

uma nova ideia de cidade. Ajudaram a transformar

ofertados, como a fotografia de cidades, aspectos

Paris em capital do século XIX e fizeram com que os

da natureza, construções (prédios, escolas, estradas

críticos e avaliadores desse período a tomassem

de ferro, pontes, etc.), expedições científicas e

como referência para a interpretação da passagem

militares, documentação de empresas e governos,

do século XIX para o século XX.

etc. emprestaram à imagem fotográfica o caráter

O novo documentarismo

produzido

pelos

fotógrafos produziram uma antologia da visão

prático e documental que contribuíram para a popularização da fotografia.

pública. As fotografias dos artistas organizaram

Antes reservada às elites, a fotografia na

uma memória, uma lembrança não só de fatos

passagem do século XIX para o XX, passou por um

históricos, mas também

processo de ampliação

de figurantes anônimos

de seu alcance com a

com

o

chegada no mercado de

espectador

podia

novas e mais simples

facilmente

se

os

quais

técnicas

fotográficas,

reconhecer, além de

baseadas no princípio

provocar

do

emoções

específicas.

Estas

negativo-positivo,

que ao diminuir os

imagens eram as do

custos

fato, da coisa concluída

tornaram a fotografia

definitivamente,

acessível a um público

elas

de

produção,

expunham o tempo, o

maior.

sentimento

efetivo crescimento da

do

irreparável e do vivido. Walter

Benjamin,

inspirado

nas

caminhadas

classe

de Janeiro, resultou em uma crescente demanda

de

do mercado consumidor de imagens. O novo

Luz, colocou a fotografia num primeiro plano, como um dos mais importantes elementos da modernidade por esta se consistir, simultaneamente, em consequência do de

desenvolvimento

técnico

e

testemunha do novo tempo. Iniciada pelos daguerreótipos, ampliada pelos carte-de-visite

média,

particularmente no Rio

Baudelaire pela Cidade

processo

No Brasil, o

e definitivamente conquistada

pelos cartões postais, a utilização da fotografia não se restringiu apenas ao prazer da contemplação de

modo de expressão e registro chegou ao alcance de novos usuários, como comerciantes urbanos, professores, profissionais liberais, funcionários públicos, artistas, entre outros que almejavam ter sua imagem eternizada pela fotografia. Desta forma

o

perfil

da

clientela

sofreu

uma

transformação que a diferiu da dos tempos do daguerreótipo, quando o retratado era, quase sempre, um representante da elite agrária ou da nobreza oficial.


G N A R U S | 189

Este alargamento do alcance das técnicas de reprodutibilidade impulsionou principalmente o fotomadorismo, cujo emblema inicial foi a introdução, em 1888 pela Eastman Kodak da câmera portátil, seu slogan publicitário – “You press

the Button, we do the rest”, em último caso, sugere que a produção de imagens prescindia da figura do fotógrafo profissional nos registros mais comuns, segundo George Eastman “qualquer pessoa com

mediana inteligência pode aprender a tirar boas fotos em dez minutos.”

preeminência

por

uma

qualidade

técnica

profissional. Com a popularização da fotografia a imprensa a incorporou aos principais almanaques, revistas e jornais. Seu emprego, a princípio, tinha como função ilustrar reportagens e artigos ratificando o acontecimento narrado, ou mesmo de forma casual, sem nenhuma conexão com o texto publicado. Portanto, é importante atentar ao novo papel da fotografia no início do século XX – no Brasil explicitado em publicações como a Revista

No alvorecer do século XX a fotografia já

“Kósmos” e o periódico “O Commentário” entre

apresentava todos os quesitos imprescindíveis para

outros –, o de se constituir como um elemento do

a realização do registro de imagens de alta

cotidiano da população, consecutivamente conexo

qualidade de exposição e reprodução, os principais

não somente ao desenvolvimento científico e à

progressos foram de ordem mecânica, na

verdade da reprodução dos fatos, mas igualmente

construção de lentes cada vez mais precisas e

ao registro, à documentação do momento especial

nítidas, e câmeras portáteis de diversos tamanhos e

vivido.

formatos. A Eastman lançou, por exemplo, em 1900, a câmera Brownie, ao custo de somente um dólar, e que transformou radicalmente a fotografia em uma arte popular, passando às outras empresas a

A fotografia, composta por signos sociais, políticos e estéticos e de sua relação simbólica com seu exterior, institui, sob o enfoque da produção de significados socioculturais, um “espaço histórico”


G N A R U S | 190 legitimado. Através de sua condição legitimadora e dialógica, o modo de representar da fotografia atualizou-se enquanto “gênero de discurso”. Tal significação encontra-se bem encaixada nestas características e condições na medida em que, de acordo com o pensamento de José R. S. Gonçalves,

“os ‘discursos do patrimônio cultural’, presentes em todas as modernas sociedades nacionais, florescem nos meios intelectuais e são produzidos e disseminados por empreendimentos políticos e ideológicos de construção de ‘identidades’ e ‘memórias’, sejam de sociedades nacionais, sejam de grupos étnicos, ou de outras coletividades.” Assim sendo, a fotografia se estabelece como mediadora e reflexo de um momento crítico da sociedade do início do século XX, permeada pelo movimento

progressista

e

modernizante,

empreendido pelas elites com o objetivo de pouco a pouco, construir um caminho de emancipação e inclusão no mundo moderno. Enfim, o novo equipamento e o olhar do fotógrafo transformaram o cotidiano em nova expressão estética, ao registrar tipos, costumes e hábitos, moda e ao atribuir à imagem fotográfica a condição de representação das inovações e da curiosidade do homem moderno. Fernando Gralha é editor da revista Gnarus e autor de “A BELLE ÉPOQUE CARIOCA: Imagens da modernidade na obra de Augusto Malta (19001920). (Dissertação de Mestrado, UFJF/2008).

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Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985b. p. 165-196. v. 1. ________________. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1975. CARDOSO, Ciro F. & MAUAD, Ana Maria. História e Imagem: os exemplos da fotografia e do cinema. In CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS Ronaldo (org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, Campus – RJ, 1997. p. 401-417. CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens:

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G N A R U S | 191

Pesquisa

CIGANOS NO BRASIL: CULTURA E PRECONCEITO NO SÉCULO XXI Por Bianca Dias

“Dos debates acadêmicos às conversas informais, os ciganos são retratados a partir de sentimentos que oscilam entre o fascínio que suas tradições exercem e os temores alimentados por estigmas e superstições atrelados ao seu estilo livre. [...] Perseguidos ou incorporados à nossa hierarquia social, os ciganos são mais do que leitores do futuro, podendo ser considerados também escritores do nosso passado. [...]”1

Ciganos na Alemanha em 1944 – Fonte: CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana.

1

COSTA, Elisa Maria Lopes da. Ciganos em terras brasileiras. In:Revista de História.com.br, 2007


G N A R U S | 192

E

studar a cultura dos ciganos não é uma

É difícil estabelecer uma rota migratória para

tarefa das mais fáceis, tendo em vista que

os ciganos, porém é provável que eles

é um povo ágrafo e sua cultura e tradição

possivelmente seriam oriundos da Índia e do

é registrada de forma oral. Um povo que foi e é

Egito, e a rota migratória desse povo foi traçada,

altamente discriminado desde sua chegada as

e segundo Huizinga, eles teriam saído da Índia

terras brasileiras, vindo juntamente com os

em direção ao Afeganistão, passando também

degredados enviados de Portugal, e desde o

pela Pérsia e Romênia e finalmente entraram na

século XIV tem dificuldade de se estabelecer

Europa pela Grécia.5

como pátria, ou seja, estabelecer um local como sua pátria, os motivos dessa dificuldade não são concretos, não se sabe se é apenas por sua característica nômade, ou pelos preconceitos que sofrem desde sua chegada.2 Aportados no Brasil, os ciganos desempenharam papéis na sociedade, principalmente no tráfico interno de escravos, isso no século XVIII, os ciganos que eram famosos até pelas suas “mandingas”, eram procurados pelos senhores de escravos a fim de recuperar seus escravos fujões. Já no século XIX, apesar da má fama dos ciganos com relação aos

E

ser produto de roubo, mesmo com essa possibilidade, os escravos eram adquiridos pelos senhores.3 Não se pode provar ao certo que esses escravos eram realmente produto de roubo dos ciganos, porém, de acordo com a pesquisa de Rodrigo Teixeira Corrêa em História dos Ciganos do Brasil há um documento datado de 1832 em que um cigano que atendia pelo nome de

seguiam

os

grupos

com

suas

características diferenciadas, roupas coloridas, praticando a quiromancia e usando seu idioma, o romani, língua usada pelos ciganos para comunicar-se entre si, um dialeto complexo, não escrito devido a agrafia desse povo, sendo usado como forma de manterem viva sua cultura, independentemente

dos

países

por

onde

passaram. Para os ciganos o ir e vir é natural, é a chance do reencontro, portanto o romani tem tamanha importância para os ciganos, pois é o dialeto que os diferenciam dos demais.6

escravos que comercializavam, pois recaía sobre os eles a suspeita de que esses escravos poderiam

assim

Os ciganos se dividem em 3 grupos principais: Calon, Rom e Sinti, que são os mais conhecidos aqui no Brasil e esses grupos subdividem-se em diversos outros subgrupos, pouco se sabe sobre os ciganos no Brasil, sua quantidade e sua localização

geográfica

é

difícil

de

ser

estabelecido, o grupo Calon é considerado o grupo mais numeroso, que chegou por volta dos anos de 1555.7

Joaquim José Roiz teria sido preso por ser

Já os Rom, chegaram clandestinamente entre

suspeito pelo roubo e pela venda de escravos em

os imigrantes alemãos, italianos, gregos e russos,

Minas Gerais e em São Paulo.4

isso já no século XIX, pesquisadores apuram que dentre os ciganos deste grupo estaria o avô do Presidente do Brasil entre os anos de 1956 e

2

MOONEN, Frans Lucia. Anticiganismo Os ciganos na Europa e no Brasil, p.9. 3 GONÇALVES, Andrea Lisly. Fazer o que? IN: Revista de História.com.br,2007. 4 TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos do Brasil, P.77

5

HUIZINGA, 1984 , p.28. HILKNER, Regiane Aparecida , 2008 , p.3 , Tese de Doutorado, UNICAMP. 7 MOONEN, Frans. Rom, Sinti e Calon. Os assim chamados ciganos. IN:dhnet.org.br 6


G N A R U S | 193 1960

Juscelino Kubstchek, Jan Nepomusck

Os Sinti chegaram ao Brasil possívelmente a

Kubstchek,que trabalhou como marceneiro em

partir da Primeira e da Segunda Guerra, vindos

Diamantina, Jan casou-se com uma brasileira,

da Alemanha e da França, mas não há no Brasil

Teresa Maria de Jesus Aguiar com quem teve três

uma pesquisa para apurar sua presença por aqui,

filhos: João Nepomuceno Kubitschek, que seria

sendo assim, é mais difícil de precisar a história

um destacado político, logo depois nasceu Carlos

desse grupo. De acordo com os dados fornecidos

Kubistchek e por último Augusto Elias Kubistchek

pela Embaixada Cigana no Brasil, os Sinti

que teria sido um comerciante sem muitos

sofreram no holocausto na Alemanha, assim

recursos, que viveu em Diamantina por toda a

como os Judeus, porém não houve um

sua vida e casou-se com Maria Joaquina Coelho,e

levantamento histórico do número dos ciganos

deste

Júlia

por não haver, fontes escritas no período, visto

Kubistchek que casou-se com João César de

que o romani só transformou-se em língua escrita

Oliveira, tornando-se assim pais de Juscelino

na atualidade de acordo com a publicação de

Kubistchek (1902- 1976). Fato este que os livros

sobreviventes do holocausto cigano.9

enlace

matrimonial

nasceu,

didáticos não fazem questão de informar, mesmo sendo um político famoso descendente de ciganos. 8

Juscelino Kubitschek – Fonte: Editora Abril.

8

Centro de Cultura Cigana - MG

9

Embaixada Cigana no Brasil.


G N A R U S | 194 Sabe-se que os ciganos estão presentes no Brasil, inclusive no Rio de Janeiro desde o século XVI, mas só no século XIX a presença dos ciganos passou a ser mais notada e é claro com muito incomodo, os assim chamados ciganos, na verdade eram negociantes, inclusive de escravos, eles estavam assentados num local chamado “Campo dos Ciganos”, um local alagadiço onde hoje está situada a Praça Tiradentes, e como extensões desse acampamento surgiram também outros onde hoje está situada a Rua da Constituição (anteriormente conhecida como Rua dos Ciganos) e também se localizavam na Rua

de

Sant’Anna.

comunidade

cigana

Tempos ou

depois

assentamento,

essa foi

transferido para o Valongo. O Cais do Valongo era o local onde chegavam os escravos no Brasil,

Cigana praticando a Quiromancia. Fonte: CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana.

que deu lugar ao Cais da Imperatriz no século XIX, mais adequado para receber a Monarquia Portuguesa. Após a abolição da escravatura, os

“adivinhar o futuro”, que é apenas um de seus

ciganos foram transferidos para onde hoje está

rituais, e talvez o mais conhecido, quem nunca se

localizado o bairro do Catumbi, e nesse local

deparou com um cigano pela rua pedindo para

ainda podemos encontrar ciganos descendentes

“ler a sua mão”? São eles ciganos mesmo? São

do assentamento original.10

descendentes dos ciganos que chegaram ao

É possível observar que, em nosso país, mesmo no século XXI o preconceito em relação aos ciganos é latente, apesar dos decretos e leis em favor das minorias étnicas onde enquadra os ciganos. Os ciganos desde a sua chegada em solo brasileiro, são relacionados com ladrões, tidos como preguiçosos e espertalhões, que

Brasil com os degredos de Portugal? Os ciganos trazem consigo o mistério junto com a sua cultura peculiar, por isso é tão difícil saber ao certo da onde vem e para onde vão.11 Apesar de terem uma cultura tão rica, é pouco difundida, talvez devido ao preconceito sofrido ao longo do tempo.12

sempre querem tirar vantagem de algo seja,

Partindo do princípio que os ciganos são um

através do comércio ou dos rituais próprios de

povo ágrafo (até bem pouco tempo) e nômade e

sua cultura, como por exemplo a quiromancia,

por esse motivo é considerado um povo apátrida,

que é ato de ler a sorte através das linhas das

acabou por deixar seus registros de forma oral,

mãos , comumente utilizados pelos ciganos para

que dificulta um pouco a historiografia, porém

10

CASTRO, Debora Soares. O olhar de si e o olhar dos outros: Um itinerário através das tradições e da identidade cigana, p.70-75.

11

PIERONI, Giorgio. Vadios, ciganos, heréticos e bruxas: os degredos do Brasil Colônia, 2000. 12 Embaixada Cigana no Brasil


G N A R U S | 195 nos dias atuais podemos contar com alguns

rica. Atualmente já existem monografias, artigos

poucos livros e monografias, assim como os

e livros que abordam o tema, o que facilita um

artigos que abordam o tema.13

pouco a pesquisa e a discussão em torno do

Apesar da dificuldade de estudar a cultura cigana, para nós historiadores, não existe a

tema, porém ainda há muito que pesquisar, visto que, o tema ainda é pouco abordado.15

impossibilidade, tendo em vista a agrafia desse

O que pouca gente sabe é que existe um

povo, já podemos nos basear na metodologia da

Decreto do então Presidente da República Luís

História Oral, pois as ideias de Gwin Prins no

Inácio Lula da Silva que institui o Dia Nacional

livro de Peter Burke “A Escrita da História”, nos

dos Ciganos a ser comemorado no dia 24 de

esclarece que na ausência de documentos

maio de cada ano, data esta em que os ciganos

escritos usa-se a História Oral, e que para as

comemoram o dia de sua protetora, Sara Kali,

sociedades desprovidas de chances de produzir

este decreto é datado do dia 25 de maio de

uma história escrita, como é o caso dos ciganos,

2006, publicado em Diário Oficial da União no

em que sua tradição era transmitida oralmente

dia 26 de maio de 2006.16 E também um Guia de

de geração para geração.14

Políticas Públicas para Povos Ciganos da

E para melhor entendermos a questão do preconceito sofrido pelos ciganos que fazem parte da sociedade brasileira, apesar dos documentos e leis que transitam pelo Brasil em favor dessa minoria étnica, podemos contar com diversas associações que cuidam em não deixar se perder tão rica cultura, assim como lutam pelos direitos dos ciganos junto ao governo brasileiro, e vem alcançando algum êxito no que

Secretaria

de

Políticas

da

Promoção

da

Igualdade Racial, uma forma de tirar os ciganos da margem da sociedade, para que eles tenham o mínimo de dignidade, e para concedê-los os direitos civis básicos como documentos de identificação e até a inclusão em projetos sociais do governo, e a educação itinerante, já que se trata de um povo nômade. O Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 institui a Política

se refere aos direitos sociais dos ciganos, são elas: Associação Internacional de Cultura Romani (AICROM-Brasil-GO), Associação Nacional das Etnias Ciganas (ANEC-GO), Associação de Preservação da Cultura Cigana (APRECI/ PR), Centro de Estudos e discussão Romani (CEDROSP). Já podemos contar também com o Centro de Cultura Cigana e com a Embaixada Cigana no Brasil que nos fornece material para pesquisa diversificado para que possamos entender melhor a história dos ciganos e sua cultura tão 13

Embaixada Cigana no Brasil/ Cento de Cultura Cigana – MG. 14 BURKE, Peter. A Escrita da História. Capítulo: A História Oral ( Gwin Prins ) - P.165-200.

15

Embaixada Cigana no Brasil/Centro de Cultura Cigana no Brasil – MG. 16 Disponível na íntegra em: planalto.gov.br/casacivil.


G N A R U S | 196 Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos

Vale ressaltar que a Embaixada Cigana no Brasil

Povos e Comunidades Tradicionais, documento

afirma que esses números de acampamentos por

este que protege os ciganos por sua forma

municípios são maiores, eles estimam que no Rio

própria organizacional e

cultural.17

Grande do Norte são 3500 acampamentos , na

Os ciganos possuem muita fidelidade a sua cultura e a sua tradição, mas mesmo com essa fidelidade, é preciso que haja mais projetos de inclusão social dessa etnia. No Brasil existem diversos acampamentos ciganos distribuídos em todo território nacional, e de acordo com dados do IBGE e disponibilizado pela Embaixada cigana no Brasil, na Região Norte existe 449 municípios e 4 acampamentos, na Região Nordeste existe 1794 municípios e 97 acampamentos, na Região Cento

Oeste

são

446

municípios

e

39

acampamentos, na Região Sudeste existe 1668 municípios e 96 acampamentos e na Região Sul são 1188 municípios para 54 acampamentos.

Paraíba existe 1500 ,em Pernambuco os acampamentos giram em torno de 500, em Alagoas são 400, assim como em Sergipe, já na Bahia esse número quase triplica, são 1600 acampamentos ciganos, no Rio de Janeiro e no Paraná o número gira em torno dos 1500, São Paulo também é habitado pelos ciganos, em torno de 1000 o número dos acampamentos, em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e no Espírito Santo existem também vários acampamentos.18 São ciganos do grupo Calon, compostos por famílias numerosas, embora muitos acreditem que sejam compostos por nômades , muitos desses grupos procuram uma vida sedentária, um

Luciana Sampaio – Exposição “Casas do Brasil – Barraca Cigana” – Museu Casa Brasileira. 18 17

Disponível na íntegra em: seppir.gov.br – planalto.gov.br

Dados da tabela 174 do IBGE – Disponibilizada pela Embaixada Cigana no Brasil.


G N A R U S | 197 local onde possam se estabelecer, porém para

diz respeito a etinicidade dos grupos que não se

esses grupos se estabelecerem em algum local,

reconhecem entre si e acaba por dificultar a

eles dependem da sociedade ao seu redor,

realização de políticas inclusivas pelo governo.19

existem os mais diversos problemas que dificultam os grupos a se tornarem sedentários, problemas sociais, falta de políticas que permitam sua integração na sociedade, a diversidade cultural dos ciganos também são um obstáculo para a sua inclusão, a língua, tradição o

A história do povo cigano precisa ser mais amplamente pesquisada, já existem algumas pesquisas sobre o assunto, porém é preciso que haja um maior aprofundamento na questão social desta etnia diferenciada, pois os ciganos nos dias de hoje, sofrem com o preconceito étnico, ainda

Grupo de líderes ciganos em reunião com a pasta do CNE – Conselho Nacional de educação. Fonte: Agência Brasil. estilo de vida e a relação familiar desses grupos

é altamente marginalizado e vivem a margem da

são distintas, assim como seus valores e suas

sociedade, na maioria das vezes estão em

crenças religiosas são peculiares, dentro do

acampamentos sem a mínima condição de

próprio grupo falta organização face ao meio

sobrevivência e sem a mínima dignidade,

não cigano, e como os ciganos Calon de regiões

sofrendo de uma forma que vai muito além do

diferentes não se reconhecem como uma mesma

olhar desconfiado do gadjé (palavra em romani

etnia configura-se aí uma problemática de

utilizada pelos ciganos ao se referir aos não

pluralismo. Cada grupo possui uma etnicidade, o

ciganos), que marginaliza e exclui. A cultura dos

mesmo acontece com os Rom, e os Sinti, a questão da inclusão é bastante complexa ao que

19

Centro de Cultura Cigana/Embaixada Cigana no Brasil.


G N A R U S | 198 ciganos não está apenas nas saias estampadas

tempos e espaços uma determinada realidade

das mulheres, das suas barulhentas pulseiras, de

social é construída e pensada.24E com essas ideias

suas

existe a possibilidade de uma pesquisa mais

intuições,

de

seu

baralho,

de

sua

quiromancia, ou da dança em torno da fogueira,

aprofundada

em

consonância

com

uma

ou de seus rituais e festas como o casamento, a

abordagem histórica, social e cultural dos

realidade é outra, está na vontade de se tornar

ciganos.

cidadão, de ter uma vida digna, com documentos de identificação, com escolas, está em manter-se nômade de acordo com sua cultura e tradição, ou se tornar sedentário e poder viver em uma

Bianca Dias é Graduada em Licenciatura em História pelas Faculdades Integradas Simonsen. E–mail: diasbianca95@gmail.com

sociedade inclusiva.20 A Portaria Nº10 de 28 de Fevereiro de 2014 da Resolução Nº3 do CNE instituiu um grupo de trabalho para que os ciganos itinerantes possam ser incluídos tanto no ensino público quanto o privado, já que a maior dificuldade dessa inclusão está justamente na itinerância desses grupos.21 A pergunta que fica no ar é: será que essa saga cigana um dia terá fim? Os ciganos têm um universo próprio que nem mesmo eles conhecem a sua história, os ciganos vivem no limite do real e da lenda, entre a ilusão

Bandeira Romani

e a verdade, mas que verdade? Nós

historiadores

nos

assemelhamos

a

detetives que buscam indícios e pistas como afirma Carlo Ginzburg22, e que para a História não existe verdade absoluta e que o documento é falso e verdadeiro ao mesmo tempo, como nas ideias de Jacques Le Goff23, e sem poder deixar de citar Roger Chartier e beber em sua fonte, para que se possa desenvolver uma pesquisa bastante aprofundada sobre os ciganos e sua cultura, já que para Chartier o objeto da História Cultural é identificar o modo como em diferentes

Referências: COSTA, Elisa Maria Lopes da. Ciganos em terras brasileiras In:RevistaHistória.com.br, 2007. GONÇALVES, Andrea Lisly. Fazer o que? IN: Revista de História.com.br,2007 HUIZINGA, Paulo. Sociedade obscura. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1984.p.28 HILKNER, R. A. Rossi. Ciganos Peregrinos do tempo: ritual, cultura e tradição. Campinas (UNICAMP), Tese de Doutorado, UNICAMP, 2008. MOONEN, Frans. Rom, Sinti, Calon: Os assim chamados ciganos. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos MOONEN, Frans. Anticiganismo: Ciganos na Europa e no Brasil. Disponível em: dhnet.gov.br GINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas e sinais: Morfologia e História. Tradução de Frederico Carotti. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

20

Embaixada Cigana no Brasil. Resolução de 16 de Maio de 2012- CNE – mobile.org.br 22 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: Morfologia e História,1989 23 LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5ed. 2003. 21

24

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações, 1990.


G N A R U S | 199 CHARTIER, Roger. Entre práticas e representações. Col. Memória e sociedade. Tradução: Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. LEGOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão.5ª Ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. São Paulo, UNESP, 1992. Capítulo: A História Oral (Gwyn Prins). P.165200. MORAES FILHO, Melo. Os Ciganos no Brasil e o cancioneiro dos ciganos. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1904. Quadrilhas de ciganos. IN: Fatos e Memórias, Rio de Janeiro: Ed. Garnier, Parte III[ reproduzida In: Ático Villas Boas de org.(2004)]. PIERONI, Giorgio. Vadios, ciganos, heréticos e bruxas: os degredados do Brasil Colônia. Bertrand do Brasil, 2000. TEIXEIRA, Rodrigo Correa. História dos ciganos no Brasil. NEC. E-Book disponível em dhnet.org.br. BUENO, Eugênio. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições do Brasil. São Paulo. Ed. Objetiva, 1995. CASTRO, Debora Soares. O olhar de si e o olhar dos outros: um itinerário através das tradições e da identidade cigana. PUC- RS. Programa de Pós Graduação em História. Departamento de Filosofia e Ciências Humanas.

Acervos: Centro de Cultura Cigana de Minas Gerais – Acervo de Zarco Fernandes. Disponível em: www.zarcofernandes.webnode.com.br Embaixada Cigana do Brasil Phralipen Romane– Acervo de Nicolas Ramanush. Disponível em: www.embaixadacigana.com.br CERCI – Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana

Fontes Primárias: Decreto de 25 de Maio de 2006, publicado no Diário Oficial da União dia 26 de Maio de 2006. Texto integral do documento disponível em: www.planalto.gov.br/casacivil Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos da Secretaria de Políticas da Promoção da Igualdade Racial. Documento na íntegra disponível em: www.seppir.gov.br Resolução Nº3 de 16 de Maio de 2012 do Conselho Nacional de Educação – CNE. Documento na íntegra em: mobile.cnte.org.br Portaria Nº10 de 28 de Fevereiro de 2014 – MEC. Disponível na íntegra em: http://www.cmconsultoria.com.br/


G N A R U S | 200

Artigo

UMBANDA, UMA RELIGIÃO BRASILEIRA, COM CARACTERÍSTICAS REGIONAIS. Por Marcelo Soares

O

ser humano desde a sua criação é

agregados após seu surgimento. E como ainda não

cercado pelo imaginário da magia, pelo

se tem um estudo específico nesse sentido, além do

sobrenatural e pelo misticismo. O Brasil

uso bibliográfico faremos também o uso da

é um país de proporção continental e tem sua

oralidade e faremos isso através de documentários,

magia e misticidade proporcional ao seu tamanho.

palestras e programas direcionados à prática da

O país devido a sua colonização foi durante muito

Umbanda. E como é uma religião relativamente

tempo

católico1,

nova e está em constante modificação, os diversos

devido a isso muitas manifestações que já existiam

dirigentes poderão nos dar um panorama dessas

e outras que surgiram ao longo da história, criaram

modificações, pois “... se a história oral é entendida

diversas religiões nesse imenso universo de fé,

como um método, ele deve incluir-se na história do

crendices e paixões.

tempo presente...” 2

considerado

extremamente

Dentre as várias religiões baseadas na crença na reencarnação

escolhemos

trabalhar

com

Ao falarmos da Umbanda, estaremos falando de

a

várias culturas, pois de acordo com Fedrick Barth, a

Umbanda e suas variações de acordo com a região

cultura nunca é pura e está em constante

do país. Vamos ver como surgiu essa religião, sem

modificação, pois está sendo agregada ou

fazer biografia de seu fundador- não é esse nosso

agregando outra.3 A Umbanda é uma religião

interesse-, quais as fusões que ocorreram nesse

brasileira e estaria ela com sua identidade ainda em

processo e quais outros fundamentos foram

formação? Ou a sua identidade é justamente essa

1

3

HOORNAERT. Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro 1550-1880, Petrópolis: Vozes, 1974, PP 31-65. 2 FERREIRA. Marieta de Moraes e AMADO. Janaína, Usos e abusos da história oral, Rio de Janeiro, FGV, 2006, P 34.

BARTH. Fedrick. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro: Tomke Lask UFPB, 2000, p 109.


G N A R U S | 201 capacidade de agregar outras culturas e religiões?

ainda não estavam inseridos na sociedade como

Se ela está em constante modificação, será ela

homens reallivres) buscavam a redefinição de sua

uniforme em todas as regiões do país? Vamos

cultura, principalmente a religiosa.6 E nesta busca

entender esse fenômeno que ultrapassou fronteiras

os pobres e principalmente os negros, abraçaram a

e quebrou barreiras religiosas com aglutinamento

Umbanda, já que sua religiosidade já estava

de tradições culturais.

mesclada com os santos católicos.

A Umbanda foi institucionalizada pelo médium

Então 15 de novembro de 1908, o médium Zélio

Zélio Fernandino de Moraes em 1908, que tinha

Fernandino de Moraes ao sentar-se a mesa onde

como guia incorporado o Caboclo das Sete

somente se manifestavam, segundo os kadercistas,

Encruzilhadas,4

o

espíritos “evoluídos” como médicos, engenheiros e

antropólogo Claudio Bertolli, “a Umbanda tem que

advogados, passaram a manifestar-se espíritos de

ser pensada numa perspectiva histórica”, pois no

indígenas e negros. Houve grande confusão e um

período colonial quando os escravos buscavam

dos médiuns-videntes fez a seguinte indagação:

porém

de

acordo

com

continuar sua religiosidade trazida da África,

“Afinal, porque o irmão fala nesses termos, pretendendo que esta mesa aceite a manifestação de espíritos, que pelo grau de cultura que tiveram quando encarnado, são claramente atrasados? E qual é o seu nome irmão?” E a resposta veio dando início a Umbanda. “Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos e dos índios, devo dizer que amanhã estarei em casa deste aparelho, para dar início a um culto em que esses pretos e esses índios poderão dar a sua mensagem, e assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos encarnados e desencarnados. E, se querem saber o meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim.7 E assim se fez.

acabaram misturando suas tradições culturais e religiosas ao fundir-se com a cultura do branco.5 Após a Abolição e Proclamação da República, os negros ainda sentindo na pele a exclusão, (pois

E isso ocorre em um período que o Espiritismo de Alan Kardec (Hypolite Lion Léon Dénezard Rivail) está em grande evidência. Após ter surgido na França em 1857, o “Livro dos espíritos” chega ao Brasil e logo sua doutrina é difundida na década de Zelio Fernandino de Moraes, O precursor da Umbanda 4

AZEVEDO. Janaína. Tudo que você precisa saber sobre a umbanda, São Paulo, Universo dos Livros, 2010, p14. 5 CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014.

1860, criando-se vários grupos de adeptos ao espiritismo. 6

Vários

médicos

da

época

se

CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. 7 AZEVEDO, Janaína. Tudo que você precisa saber sobre a umbanda, São Paulo, Universo dos Livros, 2010, PP 18-19.


G N A R U S | 202 converteram a prática, mas talvez o mais famoso

isso temos que voltar ao período colonial de nosso

tenha sido o médico Adolfo Bezerra de Menezes. E

país, quando aqui já existiam ritos e práticas

de acordo com Emerson Giumbelli todos os

religiosas nas tribos indígenas, contrariando a

espíritos que se manifestavam, quando encarnados

Companhia de Jesus que ao chegar ao Brasil em

tinham profissões privilegiadas na sociedade,

1549, tendo como líder Manuel da Nóbrega, que

fazendo com que a classe média tivesse também

afirmaram a ausência de religião entre os

uma grande adesão à religião.8

indígenas.10

Do Kardecismo, a Umbanda herdou a fé em Deus

Pode-se dizer que a Umbanda tem ramificações

e Jesus Cristo, seguindo uma doutrina cristã, a

no culto a Jurema Sagrada (também conhecida

caridade e o amor ao próximo. A crença na

como Catimbó), pois a mesma origina-se das

reencarnação onde os espíritos estão em busca de

práticas de pajelanças que os indígenas se

evolução também é uma das doutrinas que foi

utilizavam antes da colonização. De acordo com

fundida à Umbanda. E segundo o sacerdote

Ronaldo Vainfas, o trabalho de Jean de Léry deixa

umbandista Rodrigo Queiróz, “a Umbanda teve que

claro que os índios em comemoração a alguma

se embasar naquilo que Alan Kardec já havia trazido

festividade, dançavam em ritmo cadenciado e

que

fumando uma erva de nome “petim” em volta de

foi

o

entendimento

universal

da

mediunidade.”9 A Umbanda apesar de ter nascido praticamente em uma mesa Kardecista teve com certeza outras influências na sua composição. Para entendermos

ídolos de pedras, fazendo menções a seus ancestrais.11 E pelas descrições de vários estudiosos do culto da Jurema Sagrada, como o Juremeiro Freitas, é uma religião de tradições nordestinas que se iniciou pelo uso da planta de mesmo nome (jurema), que para os indígenas é uma árvore sagrada. E esse culto deu-se em 1532, com a junção da pajelança, do catolicismo, bruxarias europeias e das divindades da natureza dos negros bantos12, que neste período já desembarcavam como escravos no nordeste brasileiro. Nos séculos XVI, XVII e XVIII as capitanias do nordeste como Bahia e Grão Pará sempre sofriam perseguições de

Mesas girantes no início do Espiritismo de Allan Kardec.

inquisidores que buscavam as práticas de feitiçarias e curandeirismo que ocorriam naquele lugar, e conforme afirma Daniela Buono Calainho, a

8

GIUMBELLI, Emerson. Kardec entre nós, História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 138. 9 CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. 10 VAINFAS, Ronaldo. Exércitos de Cristo - História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 99.

11

VAINFAS, Ronaldo. Índios, hereges e rebeldes - História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 302-303. 12 FREITAS, Juremeiro. Palestra Jurema Sagrada, TV Despertar, Natal Rio Grande do Norte, 2013.


G N A R U S | 203 como influências das forças da natureza e não como controladores. A sua liturgia tem uma dinâmica diferenciada do Candomblé, completa ele.15 Outras influências do Candomblé estão relacionadas à gastronomia, vestimentas e danças. E normalmente os Orixás cultuados pelos umbandistas são Oxalá, Ogum, Oxossi, Omulú, Xangô, Yemonjá, Nanã,

Dança Tapuia, própria dos indígenas no Brasil colônia, quando cultuavam seus Deuses.

Yasãn e Oxum que foram sincretizados com os santos católicos.

inquisição deixou vastos registros da presença de africanos no Brasil já neste período13 do surgimento do culto da Jurema Sagrada.

O catolicismo assim como o kardecismo, se tem Deus e seu filho Jesus Cristo como os seres supremos, e tendo a Umbanda essas influências

Outra influência que sofreu a Umbanda foi

também é uma religião cristã ao contrário do que

através das divindades africanas (Orixás, Nkisis e

muitos acreditam. Tem-se como base verdadeira o

Voduns), que os escravos trouxeram da África e

judaísmo, pois Deus é o ser superior e tem os santos,

cultuavam escondidos dos seus senhores nas

os anjos e arcanjos em uma escala inferior. E

senzalas das fazendas. Têm-se notícias de que o

mesclando mais uma vez com o Candomblé devido

primeiro Candomblé foi notificado no século XVIII

ao sincretismo religioso (Orixás com santos)16, a

com o nome de Calundu. E de acordo com João José

Umbanda toma essa fusão para si e tem seu culto

Reis, os praticantes do Candomblé sofriam

aos Orixás da seguinte forma: Oxalá=Jesus,

constantes perseguições, e apesar da maioria de

Ogum=São

chefes de terreiros serem libertos, por terem

Omulú=São Lázaro, Xangô=São João Batista,

nascidos livres ou conseguido sua alforria, sofriam

Yemanjá=Nossa

constantes investidas da polícia contrária às

Nanã=Senhora Santana, Yansã=Santa Bárbara e

Jorge,

Oxossi=São

Senhora

dos

Sebastião, Navegantes,

práticas de adivinhações e curandeirismo. O próprio Candomblé sofreu influências, pois com diferentes povos vindos do continente africano as culturas se mesclaram.14 De acordo com o sacerdote Rodrigo Queiróz, a influência do candomblé na Umbanda, é o culto aos Orixás advindos da nação Ketu, e que são cultuados como divindades e não como deuses. E ainda segundo

Imagens de santos Católicos com o sincretismo religioso.

Queiróz, essas divindades agem em nossas vidas 13 CALAINHO, Daniela Buono. Feitiços e feiticeiros, História do

Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 129. 14 REIS, José João. Candomblé para todos - História do Brasil para ocupados (Organização: Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, 2013, p 64-65-66-67.

15

CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. 16 AZEVEDO, Janaína. Tudo que você precisa saber sobre a umbanda, São Paulo, Universo dos Livros, 2010, p45.


G N A R U S | 204 Oxum=Nossa Senhora da Conceição. E cada um

entidades

com sua representatividade das forças da natureza.

Boiadeiros, Crianças e Cangaceiros.

Mas de acordo com a região o sincretismo pode ter suas variações, como por exemplo, na Bahia em que São Jorge é sincretizado com Oxossi e não com Ogum.

aparecem

também,

os

Baianos,

Com tantos elementos agregados fica inviável a Umbanda se manter uniforme, pois nem todas as casas se cultuam todos esses espíritos e mesmo tendo os seus princípios respeitados (“Amor e

A Umbanda com sua capacidade de agregar

Caridade”), a sua ritualística tem variações devido a

outras culturas e sempre aberta a receber outros

sua localização e diferentes influências. Diante

elementos em seus cultos, no decorrer de sua

disso a Umbanda no primeiro momento se revela

história absorveram outras entidades que passaram

uma religião sem identidade, sem uma definição ou

a se apresentar com o mesmo compromisso de

uma “cara”. Podemos verificar que existem “várias

caridade, e a busca pela evolução. Assim foi com os

Umbandas” pelo Brasil e mundo. Podemos

Marinheiros que

constatar

essa

trabalham

afirmação

no

na

linha de Yemanjá, como

documentário:

afirma

Umbanda,

Norberto

produzido

Peixoto, dirigente

pela

Universidade do

Católica

de

Grupo Umbanda

Pernambuco.

Triângulo

culto nesta casa

da

Fraternidade de

em

Porto Alegre, Rio

dirigida

Grande do

Sul17.

Culto na Umbanda reverenciando a Jurema Sagrada.

Assim como os

O

Pernambuco pela

sacerdotisa “Irmã” Graça, é feito sem

Marinheiros vieram os elementos da Linha do

o uso do atabaque e o único instrumento utilizado

Oriente que é extensa, e nesta lista estão os Povos

é o “maracá”, de origem indígena utilizado nos

Ciganos do Oriente, o Povo Hindu, o Povo Médico

cultos de pajelanças. Suas roupas são bem próximas

e Cientista, a falange dos Árabes e Marroquinos, os

as que eram usadas nos cultos kardecistas e notam-

Japoneses, Chineses, Mongóis e Esquimós, a

se poucas imagens e as que se percebem são apenas

Falange dos Egípcios, Astecas e Incas, a Falange dos

dos Caboclos e Pretos-Velhos. As imagens do

Maias e Toltecas, Falanges dos Índios Caraíbas,

sincretismo religioso da igreja católica não se

Gauleses, Romanos e antigos povos europeus,

encontram no templo. O culto ao “pau” sagrado

como descreve a umbandista e pesquisadora

também é visto no meio do salão, culto tradicional

Míriam Prestes.18 E para completar essa gama de

da Jurema Sagrada ou Catimbó. Fica claro que as

17

18

PEIXOTO, Norberto, Umbanda Linha dos Marinheiros, Porto Alegre, Grupo de Umbanda Triângulo da Fraternidade, 2013.

PRESTES, Míriam. Umbanda: Crença, Saber e Prática, Rio de Janeiro, Pallas Editora e Distribuidoras, 2010, pp182-183.


G N A R U S | 205 entidades cultuadas são os Caboclos e Pretos-

utilizados em grandes escolas de sambas e blocos

Velhos e não se faz uso de sacrifício de animais, se

carnavalescos.21

aproximando

mais

da

Umbanda

que

foi

institucionalizada por Zélio Fernandino de Moraes e apesar de cultuar os Orixás, se afasta da prática de sacrifício de animais trazida pelos africanos. 19

Nesta mesma linha também encontramos a Tenda Espírita Santa Bárbara também em Teresina, dirigida pela sacerdotisa Eufrásia de Iansã, que mantém oficinas de artesanatos e grupos de danças

No templo de Umbanda Guerreiros de Oxalá em

além de trabalhar a religiosidade com um

Curitiba Paraná, dirigido pelo sacerdote Jair Souza

diferencial segundo ela, de humanização do ser. E

de Oliveira Filho, se faz o uso dos atabaques e

como no terreiro acima citado, este também se

notam-se a presença de várias imagens da igreja

aproxima muito dos cultos do candomblé, com suas

católica sincretizando os Orixás do Candomblé.

danças próprias das divindades africanas. Não se

Também se utilizam do defumador (queima de

percebe imagens dos santos sincretizados e nem os

ervas

tradicionais Caboclos e Pretos-Velhos. Na parte

usada

para

limpeza

espiritual),20

diferentemente da casa citada acima. Não podemos esquecer o amparo social que a Umbanda oferece em diversas casas como, o Santuário Sagrado do Pai João de Aruanda dirigido pelo sacerdote Rondinele Santos, que é articulador da rede estadual de cultos afro brasileiros em Teresina no Piauí. Onde além da religiosidade se

musical podemos verificar a utilização de atabaques, maracás e triângulos, instrumentos usados normalmente no estilo musical conhecido como forró22. Ficando nítida a inserção de cultura regional na religião, ou seja, a Umbanda irá se comportar de acordo com a necessidade de cada localização.

trabalha o lado cultural regional, tirando crianças e adolescentes das ruas e das drogas, através da música e da dança. Nesta casa de Umbanda se mantém o grupo Afro-cultural Abá. E em relação à diferenciação desta casa além da ação social notam-se a ausência de imagens e a grande aproximação com o Candomblé, pois suas danças nos remetem aos cultos dos Vodouns e Nkisis. A parte musical fica a cargo de um grande grupo de percussão onde se encontram atabaques, surdos de

Umbanda com cultos voltados para divindades africanas (Orixás).

marcação, tarol, tantan e repique, instrumentos

19

PACHECO, Luca.Umbanda, Observatório Transdiciplinar das Religiões do Recife, Universidade Católica de Pernambuco, 2010. 20 TOLENTINO, Suyanne. Religare Umbanda Sagrada, Grupo Independente, Curitiba, 2011. 21 COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013.

22

COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013.


G N A R U S | 206 Na mesma cidade encontramos também a Tenda

Também em São Paulo precisamente em

São Francisco de Assis dirigido pelo Pai de Santo

Itanhaém, Pai Rivas de Ogiyan dirige a Tenda

Francisco das Chagas, um terreiro simples, mas

Umbandista Oriental que é outro segmento da

segundo ele de muita fé, onde suas características

Umbanda, a chamada Umbanda Esotérica, um

estão muito voltadas para o culto da Jurema

templo onde não se percebe imagens de santos, o

Sagrada ou Catimbó, onde são cultuados os

chão é coberto por areia e o altar é composto por

Mestres e Mestras da Jurema, ou Juremeiros.

uma cruz, flores, velas e alguns rabiscos que

Também se tem a ausência das imagens tradicionais

parecem palavras escritas em árabe. Na Umbanda

da Umbanda carioca, dos santos sincretizados. Na

Esotérica seguem-se três doutrinas, a doutrina da

música percebesse o uso de atabaques e

luz ou da sabedoria cósmica, a doutrina do som ou

triângulos.23

do amor cósmico e a doutrina do movimento ou da

Já na Tenda Coração de Jesus que fica em

ação cósmica.26

Uberlândia Minas Gerais, encontramos grande

Nesta mesma linha encontramos a “Tenda de

semelhança com a Umbanda praticada no Rio de

Umbanda Caboclo 7 Pena Azul”, dirigida pelo

Janeiro, pois no altar ou congar se encontram as

Mestre Alexandre B. de Oliveira onde questiona as

imagens sincretizadas da igreja católica, as dos

entidades que se apresentam na Umbanda.

Caboclos e Preto-Velhos, a defumação e a

Segundo ele as únicas entidades que realmente são

energização de água para ser distribuída entre os

de Umbanda, de acordo com a raiz de Pai Thomaz

médiuns e consulentes. Os instrumentos também

são, os Caboclos, os Pretos-Velhos, as Crianças e os

são os mesmos, o atabaque e chocalho.24

Exus. Onde as Crianças representam a pureza, os

Da mesma forma encontramos no Grupo Espírita Caboclo Cobra Coral em Santos, características semelhantes ao Rio de Janeiro, com imagens sincretizadas, imagens de Caboclos e PretosVelhos. Na música também é igual, onde se utilizam de atabaques, chocalhos e agogôs. E de acordo com o Pai de Santo Marcio de Ogum, na casa se cultuam além dos Caboclos, Pretos-Velhos, Crianças e Exus, se cultuam os Baianos, Marinheiros, Boiadeiros e

Caboclos a simplicidade, os Pretos-Velhos a humildade e os Exus representam o auxilio nos trabalhos dentro dos terreiros de umbanda. Oliveira se diz pertencente da Umbanda esotérica, adepto de uma Umbanda tradicional, mas ele se contradiz quando fala de entidades oriundas da Umbanda tradicional, pois na umbanda de Zélio Fernandino de Moraes, as únicas entidades eram Caboclos e Pretos-velhos.27

Ciganos. Percebesse também uma festa a Nossa

Oliveira afirma que todas as demais entidades não

Senhora de Aparecida, culto que raramente se é

são de Umbanda, e sim enfeixados, ou seja,

encontrado em outras casas.25

reunidos na Umbanda de acordo com cada região.

23

25

COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013. 24 ALUNOS, Comunicação Social, Brasilidade e Identidades, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2014.

FOSALUSA, Felipe, A Religião Brasileira, Santos, Camaleão Produções Audiovisuais, 2013. 26 OGIYAN, Pai Rivas de, Umbanda Esotérica, Santos, TUO, 2014. 27OLVEIRA, Alexandre B, Entidades de Umbanda “Enfeixados”, Tenda de Umbanda Caboclo “7 Pena Azul”, Cosmópolis, 2015.


G N A R U S | 207 E isso acabou dando um novo nome à religião, a

Quando alguém fala de Umbanda Nagô ou

Umbanda Popular, onde várias entidades se

Umbanda Angola, nada mais é do que herança,

juntaram aos que já estavam para trabalhar a

afirma Kaim. Isso ocorre em 1910 quando o culto a

caridade. Essas entidades seriam os Boiadeiros,

Umbanda está em grande crescimento, e muitos

Marinheiros,

Árabes,

pais e mães de santo do Candomblé migram para a

Cangaceiros entre outros. Outro questionamento é

Umbanda com o desejo de fazer a caridade através

a manifestação dos Orixás na Umbanda, para

dos espíritos e acabaram trazendo costumes e

Oliveira quem se manifesta são Caboclos da linha

tradições do Candomblé, como firmezas dos Orixás,

de cada Orixá e não o Orixá propriamente dito,

cores de velas, toques de atabaques, oferendas de

muitos afirmam que são falangeiros e não Orixás.

animais, danças africanas e formas litúrgicas de

Como por exemplo, um Caboclo de nome 7

conduzir uma casa de santo. Logo as nomenclaturas

pedreiras, ele se intitula Xangô 7 Pedreiras, assim

se deram de acordo com a nação que cada

como o Caboclo Beira- Mar, que trabalha na linha

sacerdote veio. Também se tornou muito comum,

de Ogum, ele será chamado de Ogum Beira- Mar.28

sacerdotes herdarem terreiros e nem saberem por

Médicos,

Ciganos,

Mas há quem discorde das nomenclaturas dadas às divisões da Umbanda, como o sacerdote Marcio

que a casa tem tal nomenclatura, só sabem dizer que é tradição da casa, afirma Kaim.30

Kaim, o qual afirma que Umbanda só tem uma e o

Depois de analisarmos documentários, vídeos de

que ocorre são variações de acordo com quem a

palestra e programas direcionados a Umbanda, nós

dirige. E independente da variação que se tenha na

podemos concluir que realmente a Umbanda é uma

Umbanda, o que vai importar é a manifestação do

só, porém o que existe é uma grande variação

espírito pela caridade. Kaim afirma ainda que as

características de acordo com a regionalidade e

nomenclaturas usadas como Umbanda Sagrada, Pé

formação religiosa de cada dirigente de terreiro.

no Chão, Carismática, Nagô, Angola entre outras,

Vale lembrar que existe uma necessidade de um

vão se dar por três motivos. O primeiro seria por

estudo mais profundo, para que possamos ter uma

uma busca de trabalhar com uma Umbanda sem

visão mais ampla sobre o assunto. Precisamos

influências de outros espíritos que não sejam

estudar os terreiros de todas as cidades do país,

aqueles do início da Umbanda de Zélio Fernandino,

individualmente, fazendo uso da micro-história,

essa Umbanda é chamada de Umbanda Limpa. O

pois de acordo com Ronaldo Vainfas, Geovanni Levi

segundo motivo seria a junção de pedras e cristais,

afirma que “... na micro-história prevalece no

o uso de cromoterapia que daria o nome de

tocante à delimitação do campo social estudado...”

Umbanda Carismática ou Esotérica. E o terceiro

“... mais do que a definição geral da classe ou de

motivo e o mais usual, a

28 OLVEIRA, Alexandre

herança.29

B, Entidades de Umbanda “Enfeixados”, Tenda de Umbanda Caboclo “7 Pena Azul”, Cosmópolis, 2015. 29 SEVERINO, Nilton Luiz, Tipos de Umbanda, Programa Umbanda de Boa, São João da Boa Vista ,2014.

grupo ao qual pertence.” 31

30

SEVERINO, Nilton Luiz, Tipos de Umbanda, Programa Umbanda de Boa, São João da Boa Vista, 2014 31 VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas Anônimos da HistóriaMicro-História, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2002, p 117.


G N A R U S | 208 Diante

desta

afirmação

constatamos

a

necessidade de se reduzir o foco de observação, com o objetivo de tentar localizar um aspecto não percebido antes por uma abordagem geral. Fazendo isso conseguiremos entender melhor os espíritos ou entidades que se manifestam em alguns terreiros ou templos que em outros não, como os Cangaceiros que se manifestam nos terreiros do nordeste, porém nos do sudeste e sul não se tem registro, com exceção de São Paulo que tem uma gama de terreiro onde essas entidades se manifestam. Poderemos entender as heranças na construção das casas de Umbanda, que tem características de Candomblé, Jurema, Kardecismo entre outras, mas temos também entender qual a concepção de Umbanda para os terreiros que afirmam ser de Umbanda, mas tem características de outros cultos. Seria mesmo Umbanda ou simplesmente uma variante de outro culto com interesses próprios de quem está dirigindo a casa? A Umbanda tem sim uma identidade, que é justamente

essa

democracia,

não

se

tem

preconceito com outras religiões e está sempre aberta a novos encontros e casamentos. A Umbanda tem sua identidade fixada na sociedade como democrática. Ela é uma fonte quase inesgotável de culturas, pois está em constante transformação,

absorvendo

novos

traços

e

informações. Não importa as variações que ela apresenta e sim a sua doutrina, que é trabalhar com os espíritos para o amor, a caridade e a humildade em prol da humanidade. Saravá, Axé! Marcelo Soares é licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen.

Bibliografia. AZEVEDO, Janaína, Tudo o que você precisa saber sobre a Umbanda, São Paulo, Universo dos livros, 2010. BARTH, Fedrick, O guru, o iniciador e outras variações antropológicas, Rio de Janeiro, UFPB, 2000. CALAINHO, Daniela Buono, Feitiços e feiticeiros, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013. FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína, Usos e abusos da história oral, Rio de Janeiro, FGV, 2006. GIUMBELLI, Emerson, Kardec entre nós, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013. HOORNAERT, Eduardo, Formação do catolicismo brasileiro 1550-1880, Petrópolis, Vozes, 1974. PRESTES, Miriam, Umbanda: crença, saber e prática, Rio de Janeiro, Pallas Editora e Distribuidoras, 2010. REIS, José João, Candomblé para todos, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013. VAINFAS, Ronaldo, Os protagonistas anônimos da História, Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2002. ___________________, Exército de Cristo, História do Brasil para ocupados (organização Luciano Figueiredo), Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013.

Documentários e Programas de Umbanda: ALUNOS, Comunicação Social, Brasilidade e Identidades, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2014. CORTEZ. Gabriel, ROSICA. Jaime, BORGES. Maitê e NETO. Solon, Umbanda é Brasil, Bauru, UNESP, 2014. COUTINHO, Cleginaldo. No universo da Umbanda, Set Filmes, Programa Recontar, TV Assembleia, Teresina Piauí, 2013. FOSALUSA, Felipe, A Religião Brasileira, Santos, Camaleão Produções Audiovisuais, 2013 FREITAS, Juremeiro. Palestra Jurema Sagrada, TV Despertar, Natal Rio Grande do Norte, 2013. OGIYAN, Pai Rivas de, Umbanda Esotérica, Santos, TUO, 2014. OLVEIRA, Alexandre B, Entidades de Umbanda

“Enfeixados”, Tenda de Umbanda Caboclo “7 Pena Azul”, Cosmópolis, 2015. PACHECO, Luca. Umbanda, Observatório Transdiciplinar das Religiões do Recife, Universidade Católica de Pernambuco, 2010. PEIXOTO, Norberto, Umbanda Linha dos Marinheiros, Porto Alegre, Grupo de Umbanda Triângulo da Fraternidade, 2013. SEVERINO, Nilton Luiz, Tipos de Umbanda, Programa Umbanda de Boa, São João da Boa Vista, 2014. TOLENTINO, Suyanne. Religare Umbanda Sagrada, Grupo Independente, Curitiba, 2011.


G N A R U S | 209

Monografia

OPOSIÇÃO NO DISTRITO FEDERAL EM TEMPOS DE GUERRA – 19321 Por Felipe Castanho Ribeiro RESUMO Este trabalho visa identificar setores de oposição na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, na guerra civil brasileira de 1932 entre o estado de São Paulo e o governo provisório de Getúlio Vargas. Esta investigação leva em consideração que o conflito de 1932 se insere num contexto maior do que o da sua duração, de modo que este se insira numa conjuntura política específica do Brasil na década de 1930, sobretudo entre os anos de 1930-1937na qual encontramos diferentes grupos disputando o poder político do país. Para atingir este objetivo concentramos os nossos estudos e pesquisa em indivíduos que realizaram este movimento de oposição, assim como também estudamos o jornal Diário Carioca periódico tradicional do Distrito Federal que publicava diariamente nesta cidade. Palavras-chaves: Governo Provisório, oposição, Distrito Federal, Diário Carioca.

1

Trabalho originalmente elaborado como trabalho de Conclusão de curso apresentado como requisito para aprovação no curso de pós-graduação em História do Brasil da Universidade Estácio de Sá, sob orientação da Professora Ms. Teresa Vitória Fernandes Alves.


G N A R U S | 210 Introdução

P

governo provisório e que questionava a sua legitimidade.3

odemos dizer que a história política do

Ao escolher este tema e a maneira como o

Brasil na década de 1930 foi agitada e

abordamos procuramos demonstrar que a guerra

extremamente complexa, só para citar

civil de 1932 se insere em um contexto maior que

podemos lembrar que logo de início já tivemos a

os seus 85 dias de duração, na verdade este

Revolução de 1930 que estabeleceria um governo

conflito reflete um longo período de tensões

provisório comandado por Getúlio Vargas, mais a

políticas na década de 1930, mais precisamente

frente, em 1932, teríamos uma guerra civil

entre os anos de 1930 e 1937 em que o Brasil

protagonizada pelo levante armado do estado de

poderia ter seguido caminhos diferentes do que

São Paulo contra o governo federal e para

aquele que desembocaria no golpe do Estado

completar a sucessão de grandes acontecimentos

Novo, seguimos assim a linha de raciocínio da

políticos teríamos o advento de um golpe que

historiadora Dulce Pandolfi que afirma que a

implantaria uma ditadura através do Estado Novo,

década de 1930 até certo ponto foi caracterizada

em 1937. A complexidade do período, assim como

pelas suas incertezas.4

a sucessão desses acontecimentos históricos

O arcabouço teórico deste trabalho se insere em

suscitaram ao longo dos anos o olhar atento dos

dois campos específicos, História Social e Política.

historiadores, de modo que hoje encontramos

Social porque procuramos observar um grupo

várias explicações para esses eventos.

específico da sociedade e como este reagiu num

Não obstante o presente trabalho visa analisar a

dado momento de conflito desta sociedade, tendo

guerra civil brasileira de 1932, que teve seu início

em vistas que os objetos da História Social

em 09 de julho de 1932 e se encerrou em 02 de

“coincidem com subconjuntos da sociedade

outubro do mesmo ano. Contudo não faz parte do

(grupos e classes sociais, categorias de excluídos,

objetivo central deste trabalho entender os

células familiares)”5. No caso deste trabalho

motivos

movimento

procuramos estabelecer um diálogo entre a

sedicioso, ou analisar as minúcias do conflito, até

História Social e a Política, de modo que a leitura

porque já existem excelentes pesquisas que

do social se relaciona com o mundo político e vice

procuram responder a estas questões2, a nossa

versa.

que

desencadearam

o

proposta é um pouco diferente. Na verdade, neste trabalho procuramos descobrir através de fontes específicas como a sociedade carioca, ou seja, do Distrito Federal, se comportou diante de um conflito que de certa forma representava uma insatisfação de setores da sociedade com o

3

Iremos abordar mais adiante esta questão da legitimação, contudo, pode se consultar também na dissertação de mestrado de LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões

provisórios: legitimação, mobilização e alistamento para uma guerra nacional (Ceará 1932). UFC, 2009. 4 2

Bons trabalhos que procuram responder a estas questões de formas diferenciadas são: CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981 e HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

Ver: PANDOLFI, Dulce. “Os anos 1930: as incertezas do regime”. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano II – O tempo do nacional-

estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Livro II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 5 BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 112.


G N A R U S | 211

indivíduo, não visa mais a excepcionalidade das grandes figuras políticas que outrora os historiadores positivistas acreditavam ser os grandes e únicos condutores da História.7

No caso da História Política não a abordamos da maneira tradicional inventada pelos gregos ou a positivista que surge mais ou menos em 1870, em

que

havia

uma

Tendo

valorização da narração de grandes eventos ou do estudo

do

poder em

figura

do

primeiros

positivista por enxergar

CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.).

primeiro

procuramos as

anos

do

eclosão do conflito em

de grandes personagens,

Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, pp. 61-85.

no

três

governo provisório até a

não só o poder estatal ou

6

em

ser oposição durante os

distinto da tradicional ou

Assim, enquanto a História Política do século XIX mostrava uma preocupação praticamente exclusiva com a política dos grandes Estados (conduzida ou interferida pelos “grandes homens”), já a Nova História Política que começa a se consolidar a partir dos anos 1980 passa a se interessar também pelo “poder” nas suas outras modalidades (que incluem também os micropoderes presentes na vida cotidiana, o uso político dos sistemas de representações, e assim por diante). Para além disto, a Nova História Política passou a abrir um espaço correspondente para uma “História vista de Baixo”, ora preocupada com as grandes massas anônimas, ora preocupada com o “indivíduo comum” e que por isto mesmo pode se mostrar como o portador de indícios que dizem respeito ao social mais amplo. Assim, mesmo quando a Nova História Política toma para seu objeto um

texto

o

características do que era

que possuí tratamento

históricos:

dividimos

os

presente

desvendar

a Nova História Política

cotidiana e se relaciona com outros campos

trabalho,

capítulo

Trabalhamos então, com

mas considera também os micro poderes na vida

do

capítulos;

Estado6.

vista

objetivos nosso

grandes homens ou na

em

1932,

dessa

forma

poderíamos identificar e entender melhor a oposição existente no Distrito Federal, ao mesmo tempo o primeiro capítulo procura contextualizar o período histórico dando ênfase para a tensão social e política do período. Elaboramos este capítulo dialogando com as bibliografias que se ajustavam a nossa teoria.8 Já no segundo capítulo realizamos a análise do jornal Diário Carioca, um dos principais periódicos em circulação no Distrito Federal e que exercia oposição ao governo provisório sendo inclusive empastelado ainda em fevereiro do ano de 1932. Analisamos assim, as edições do jornal durante os BARROS, op.cit. p. 107. Evocamos aqui o termo “teoria” com o significado a ele atribuído por José D’Assunção Barros em que “a teoria relaciona-se a um ‘modo de pensar’ (ou de ver)” in: Teoria e 7 8

Metodologia – Algumas distinções fundamentais entre as duas dimensões, no âmbito das Ciências Sociais e Humanas.

In: REVISTA ELETRÔNICA DE EDUCAÇÃO. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos, Programa de PósGraduação em Educação, 2007. Semestral. ISSN 1982-7199. Disponível em: http://www.reveduc.ufscar.br. Acesso 31/07/2014.


G N A R U S | 212 85 dias de duração do conflito com a finalidade de

No terceiro e último capítulo nos dedicamos a

identificarmos o posicionamento político deste

pesquisar personagens históricos específicos que

periódico através do seu discurso. O fato de

participaram direta ou indiretamente do conflito

termos escolhido um jornal como fonte não foi a

só que apoiando a causa paulista, diante das

esmo, o jornal enquanto fonte histórica é

especificidades de cada grupo dividimos a nossa

“portador de interesses e projetos de classes ou

análise em civis e militares. Nosso intento ao

frações de classe numa conjuntura dada”,9 para

estudar estes personagens foi de que pudéssemos

além deste fator os jornais de início do século XX

não só identificar quem eram os oposicionistas,

apesar de já possuírem características profissionais

mas também de que havia membros na sociedade

não perderam o seu caráter opinativo e de

que acabavam legitimando o discurso do Diário

intervenção na vida pública.10 Portanto analisar o

Carioca, mesmo que de fato não lessem o

discurso emitido pelo Diário Carioca significa

periódico.

compreender o posicionamento não só do próprio jornal como de uma parcela da sociedade. Na metodologia utilizada para análise do jornal

CAPÍTULO I

tivemos o cuidado de não procurar arrumar o discurso do jornal de forma homogênea, tendo em

Caminhando para uma oposição 1930-1932

vista que oscilações são comuns, podendo ser

A consciência para cujo tribunal inflexível apello neste instante, não me accusa de, como Chefe do Governo, haver deixado de cumprir estrictamente o dever que me foi imposto pela revolução. Mantendo-me inabalavel na defesa dos seus ideaes e arrostando, para realizar os compromissos assumidos, a animosidade e a oposição daquelles que, na ansia de conquistar predomínio e posições, se collocaram, aos poucos, à margem da situação, incapazes de condicionar suas paixões aos magnos interesses da nacionalidade.12 (grifo nosso)

vários os fatores que alteram o discurso desde a um momento diferenciado em que o jornalista ou editor possa estar passando até a própria inclusão do jornal sobre uma censura prévia, em outras palavras:

Mesmo esse tipo de jornal, porém, não é monolítico, deixando entrever ou passar falas diferenciadas de uma orientação central. Alguns jornalistas dizem ver sua profissão como “uma tarefa apressada”; obviamente não se procura nessa a racionalidade do trabalho acadêmico... Assim, ao se trabalhar com os jornais, é sempre preciso ter-se cuidado para não ficar tentado a arrumar tudo direitinho numa direção só.11

Na declaração acima destinada à nação, realizada logo após o início da guerra civil de 193213, Getúlio Vargas na condição de chefe do Governo Provisório, afirma estar defendendo os ideais da revolução de outubro de 1930, ao mesmo tempo em que os revoltosos são elementos que

M. do Pilar de A. Vieira et al. Imprensa como fonte para a pesquisa histórica. Revista PUCSP, consultado em < 9

http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/124 95/9064>. Acesso em 29/07/2014. 10 LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. 11 BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992, p. 22.

12

Nota oficial do Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, publicada no jornal Diário Carioca, RJ, em 12 de julho de 1932, p. 4. 13 Existem várias nomenclaturas para o conflito entre São Paulo e o governo provisório, que ocorreu do dia 09 de julho à 02 de outubro de 1932, possuindo suas variações conforme a corrente historiográfica, contudo o presente trabalho não pretende enveredar por este caminho e por isso iremos nos referimos ao conflito simplesmente como guerra civil.


G N A R U S | 213

(...) sendo mensurada em 85 dias, iniciouse em 9 de julho e terminou em 2 de outubro do mesmo ano, ela teve complexas ligações com outros eventos mais longos, como a chamada “Revolução de 1930”, sua política administrativa, as diversas interventorias estaduais, os projetos de República e constituições que se confrontavam (...)16

não conseguiram acessar posições de poder no governo e acabaram se colocando a margem da situação já que eram incapazes de por as suas paixões abaixo dos interesses do país. Se analisarmos o contexto político do período que vai da Revolução de 1930 até a guerra em 1932 perceberemos que a nota oficial de fato traduz uma parcela da realidade, na qual a

Ao afirmar que a guerra de 1932 pertence a um

ascensão ao poder de um determinado grupo

contexto maior somos obrigados a conhecer o

acaba alijando deste, grupos políticos que

período anterior que desencadearia o conflito.

escreveram a história da primeira república no

Assim seremos capazes de entender as diversas

Brasil e consequentemente definiram os rumos da

oposições, em São Paulo e no Rio de Janeiro, que é

política nacional.

o principal objetivo desse trabalho, ao Governo

A guerra de 1932 seria gerada, então, pela

Provisório no momento do conflito. Para tanto

tensão e disputa pelo poder político destes grupos

devemos analisar o quadro político, social e

e também devido à política nacional adotada pelo

econômico do país no mínimo a partir do ano de

novo governo, que era baseada nos ideais da

1930, quando estas tensões serão potencializadas

revolução, em outras palavras:

devido à revolução de outubro.

(...) a Guerra de 1932 está intimamente relacionada com a política nacional adotada pelo novo governo, que chegou ao poder depois da campanha presidencial de 1930, mesmo tendo perdido as eleições. O maior movimento questionador do Governo Provisório, com armas nas mãos, estendeuse por todo o país, atraindo seus aliados ou congregando seus opositores, em um contexto de profunda instabilidade.14

1.1 A Revolução de 1930 e os partidos de oposição

Está victoriosa a revolução. Está victorioso o ideal democratico dos sonhadores de 1889. Não foi um movimento isolado de quarteis. Foi um movimento excepcional unico na historia dos povos latinoamericanos - iniciado ao mesmo tempo pelo norte e pelo sul, irmanados na gloria de salvar o Brasil das mãos dos cabotinos e dos aventureiros, dos ladrões e dos fraudadores da verdade eleitoral.17

Podemos assim afirmar que o conflito de 1932 se insere num contexto maior que o do seu ano de acontecimento, maior que o estado de São Paulo e com certeza maior que a questão da luta pela reconstitucionalização do país15 e mesmo a guerra de 1932:

A revolução de 1930 já suscitou e promoveu inúmeros debates historiográficos sobre sua natureza. As versões tradicionais correspondem ao período em que os historiadores brasileiros estiveram sobre influência da história marxista e que tendia a dualizar os diversos processos

14

LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões provisórios:

legitimação, mobilização e alistamento para uma guerra nacional (Ceará 1932). Dissertação de mestrado. UFC, 2009,

p. 15. 15A guerra de 1932 também é conhecida pela terminologia de Revolução Constitucionalista de 32, pois durante muito tempo a reconstitucionalização do país foi o motivo principal apontado pela historiografia como causa do conflito.

históricos, basicamente como uma luta de classes. Desta forma a Revolução de 1930 teria sido nas 16 17

LOPES, Raimundo Helio. Op. cit., p.17. Diário Carioca, RJ, 24/10/1930, p 1.


G N A R U S | 214 duas

explicações

mais

correntes

desta

produção agrícola. O café, principal produto de

historiografia dualista a ascensão da burguesia

exportação do país e principal fonte de riqueza do

industrial ao poder e, ou, a revolução da classe

estado

São

Paulo,

também

sentiria

as

média, mas sempre em oposição à outra classe

consequências da crise de

social, no primeiro caso burguesia versus elite

fundamental para desmentirmos a crença de que

latifundiária

a

1930 representou a ascensão da burguesia

polarização se daria entre classe média e as da

industrial ao poder, tendo em vista a crise

nação. Tal afirmação possuí embasamento no

econômica que atingiu ambos os setores ao

trabalho do historiador Boris Fausto, que ao

mesmo tempo.

enquanto

que

no

segundo

analisar a Revolução de 1930 partiu de:

[...] duas linhas principais que se cristalizaram na historiografia brasileira, procurando apreender seu sentido mais profundo: uma sintetiza o episódio revolucionário em termos de ascensão ao poder da burguesia industrial; outra o define como revolução das classes médias. De certo modo, as duas versões se relacionam com o modelo que procuro criticar. A primeira integra todos os seus elementos e com ele se identifica; a segunda implica a associação classes/tenentismo e, ao menos em certas formulações, refere-se ambiguamente ao que é subjacente ao modelo, isto é, a tese dualista.18 Contudo tal visão teleológica passa a sofrer revisões de modo que uma maior problematização dessa Revolução ocorre, levando agora em consideração a complexidade deste processo. Em

econômico, pois ela estava diretamente ligada à crise do sistema capitalista de 1929 e a política financeira adotada por Washington Luís19, que atingiria a indústria nacional e os setores de

Este fato é

Boris Fausto nos lembra, ainda, que se realmente havia uma indústria forte no Brasil esta era subordinada

aos

interesses

agrários

e

principalmente seu desenvolvimento maior era no estado de São Paulo.21 E, se o principal centro industrial do país se encontrava no estado paulista não seria de estranhar que estes apoiassem a candidatura de Júlio Prestes nas eleições de 1930, como de fato aconteceu. O mais importante para nos é notarmos que quando estoura a guerra em 1932 os industriais paulistas iriam aderir ao movimento sedicioso de modo que logo “após a eclosão da revolta, o órgão de classe dos industriais [FIESP] e a Associação Comercial, em manifesto conjunto, assinado em nome das classes conservadoras,

deram

sua

adesão

ao

movimento”.22 As constatações anteriores sobre o setor

relação à Revolução de 1930 a primeira observação que devemos realizar é de cunho

1929.20

industrial

também

são

relevantes

para

compreendermos o papel do Partido Democrático (PD) de São Paulo, que no primeiro momento apoiaria a Aliança Liberal (AL). Este fora fundado em 1926 em decorrência de disputas por cargos no Instituto do Café, dentro do estado de São Paulo.

Boris. A revolução de 1930: História e historiografia. São Paulo: Companhia das letras, 1997, pp. 0718FAUSTO,

10. 19 Washington Luís nasceu em Macaé no Rio de Janeiro no ano de 1869 e se elegeu presidente pelo Partido Republicano Paulista em 1926. Para mais consulte: Verbete: Washington Luís. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro CPDOC, doravante citado como DHBB/CPDOC. Acessado em 06 de março de 2014, <http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx >.

Era no início oposição do tradicional Partido Republicano Paulista (PRP) por abrigar os descontentes com a política adotada pelo partido perrepista. Após a vitória da Revolução o PD se FAUSTO, Boris. Op.cit. pp. 35 e 36. FAUSTO, Boris. Op.cit. pp. 37 e 38. 22 FAUSTO, Boris. Op.cit. p.48. 20 21


G N A R U S | 215 tornaria,

juntamente

com

a

Legião

frustrados, pois acreditava que Getúlio fosse

Revolucionária23, um dos principais partidos de

nomear Francisco Antônio de Almeida Morato26,

São Paulo.

presidente do partido, para a chefia do estado

O PD já foi relacionado pela historiografia à

paulista. Mas, ao encontrar com Getúlio no famoso

classe dos industriais e a classe média, quando a

Trem da Vitória27 este comunica a Morato que

revolução sai vitoriosa seriam estas classes que

quem assumiria a interventoria seria João Alberto

estariam assumindo o poder junto com o partido.

Lins de Barros.28 No caso da chefia do Estado em

Entretanto o Partido Democrático não estava

nenhum momento entre os anos de 1930 e 1932 o

vinculado a este setor mais dinâmico da sociedade

PD conseguiu pôr um membro seu na intervenção

e sim a setores agrícolas, e, pelo contrário os

do estado paulista.29

industriais possuíam maior conexão com o PRP.24A

No primeiro momento esse partido vai apoiar o

sua trajetória política no período que vai da

Governo Provisório, mesmo sem conseguir a

Revolução de 1930 a guerra civil em 1932 é um

posição de interventor. Mas, conforme o tempo

tanto conturbada, com a vitória da revolução o

passa seus membros encontram dificuldades para

partido ambicionava uma maior participação

por em prática seus planos de ascender ao poder

política, mas no momento da Revolução de 1930 o

em São Paulo a relação com o governo federal vai

PD não se articulou como os outros órgãos

se desgastando a ponto de, em janeiro de 1932,

revolucionários, pois:

realizar um manifesto que rompe com o governo federal.30 O Partido Democrático entraria na

A posição inicial de ambiguidade do PD em relação à sucessão se prolonga em relação ao movimento armado. A participação de seus membros na organização da luta é praticamente nula. Alguns poucos democráticos estabelecem contatos para a luta armada; alguns jornalistas do Diário Nacional são presos por suas posições, outros se envolvem na luta final pela vitória do movimento na cidade de São Paulo [...] Essa participação é tão reduzida que os articuladores do movimento jamais a esquecem ou desculpam. Posteriormente na luta pelo “espólio da revolução”, não perdem a oportunidade para lembrar ao PD sua ausência.25 Logo no início do Governo Provisório instalado após a revolução o PD já vê os seus planos 23A

Legião Revolucionária era um grupo político liderado por Miguel Costa, revolucionário ligado ao movimento tenentista e a revolução de 1930, posteriormente a LR se tornaria um partido o PPP, Partido Popular Paulista, possuía como princípio a defesa dos ideais da revolução. Para mais consulte: BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. 24 FAUSTO, Boris. Op. cit. pp. 49-56. 25 BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit. pp. 29 e 30.

guerra de 1932 como mais um opositor do Governo Provisório, não obstante ele não estaria sozinho neste caminho, havia ainda as forças tradicionais que tinham dominado o cenário político da Primeira República. Não podemos falar de oposições ao Governo Provisório sem citar brevemente o PRP, partido que dominou o cenário político na primeira república, e que apesar de ter ganhado as eleições em 1930 com Júlio Prestes, saiu derrotado pela revolução. A atuação do partido de 1930 a 1932 foi de fato discreta, até mesmo no próprio estado 26

Nome que havia sido inclusive escolhido pela junta militar, apenas esperava-se a confirmação de Getúlio Vargas. BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit. P. 34. 27 O Trem da Vitória foi o nome dado ao trem que levava Getúlio Vargas para assumir o poder no Rio de Janeiro. Idem. 28 O pernambucano João Alberto era revolucionário e ligado ao movimento tenentista, também esteve presente nas revoltas de 1922 e em 1924 como chefe de destacamento da coluna. BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit. P. 34. 29 Os interventores no período de 1930 a 1932 em São Paulo foram respectivamente: João Alberto Lins de Barros; Laudo Ferreira de Camargo; Manuel Rabelo e Pedro Manuel de Toledo. 30 BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit., p. 47.


G N A R U S | 216 de São Paulo a disputa pelo poder se dá

foram os motivos que levaram dois dos principais

principalmente

Legião

partido de São Paulo a vencerem as suas

Revolucionária, deixando o PRP de lado, a

diferenças e se unirem contra o governo federal?

historiadora Vavy Pacheco Borges define assim a

Que motivos fizeram com que o PD, partido que

atuação do partido após 1930:

entra em 1930 como aliado do governo

entre

o

PD

e

a

revolucionário, dois anos mais tarde a romper com

Após outubro de 30, a perda do predomínio político do PRP é indubitável; afastado do poder pela destituição de cargos executivos e pela extinção dos legislativos, oficialmente permanece num limbo político, mas continua lutando através da ação de seus membros.31

este mesmo governo? São questões que devemos responder para que possamos compreender os diferentes e complexos posicionamentos políticos durante o conflito. Como antecipamos a tese que aponta como causa da revolta paulista a luta pela constituição,

A historiadora destaca ainda que alguns membros

do partido de menor expressão

conseguiam cargos administrativos, sendo este fato constantemente denunciado pela imprensa. No entanto, devemos lembrar que apesar do PRP atuar discretamente durante este período o

prometida pelo governo revolucionário, não se sustenta mais. A guerra paulista inicia-se em 9 de julho de 1932, mesmo após Getúlio Vargas ter assinado em 24 de fevereiro a nova lei eleitoral que era o primeiro passo para a constituição, o que já era notório para os contemporâneos, pois:

mesmo ainda possuía forças, pois como vimos anteriormente, o setor industrial de São Paulo era

A sua promulgação abre as portas da estrada segura e larga, por onde os garimpeiros da redempção brasileira marcharão confiantes, a alcançar o objectivo final da obra revolucionaria, isto é, a rentegração do Brasil na posse de mesmo, com a garantia integral das suas liberdades e dos seus direitos, assegurados pelos dispositivos de uma Constituição moldada nos aspectos mais completos do espiríto e dos sentimentos da nossa raça.34 (grifo nosso)

vinculado a este partido além da tradicional elite cafeeira. Em 1932 o PRP vai unir forças com o PD, formando a Frente Única Paulista32 que acabaria sendo o centro político de São Paulo na guerra civil de 1932.

1.2 As insatisfações do Estado de São Paulo

São Paulo é a locomotiva que puxa os vagões velhos e atrasados da federação.33 Em 1932 PRP e PD se unem através da Frente

Posteriormente no dia 14 de maio o presidente da República leria para a nação o decreto nº 21.402 que fixava que:

Fica o dia três de maio de 1933 para a realização das eleições à Assembléia Constituinte e cria uma comissão para elaborar e anteprojeto da Constituição. O Chefe do governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil: Considerando que, com a constituição dos Tribunais Eleitorais, terá inicio a fase de alistamento dos cidadãos para a escolha dos

Única Paulista e após romperem com o governo federal levam o país à guerra civil. Mas, quais 31

Idem, p.29. Aliança política entre o Partido Democrático (PD) de São Paulo e o Partido Republicano Paulista (PRP), formada em 16 de fevereiro de 1932 para se opor à influência tenentista em São Paulo e ao Governo Provisório da República, chefiado desde 1930 por Getúlio Vargas. Verbete FUP In: DHBB/CPDOC, acessado em 26/07/2014. 33 ANDRADE, Oswald de. “Marco Zero”, apud CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 50. 32

34

Diário Carioca, RJ, 24/02/1932 p. 01.


G N A R U S | 217

seus representantes na Assembléia Constituinte; Considerando que, nesses termos, convem seja prefixado um prazo dentro no qual se habilitem a exercer o direito de voto; Considerando a utilidade de abrir desde logo, como trabalho preparatória as deliberações da Assembléia Constituinte, um largo debate nacional em torno às questões fundamentais da organizações políticas do país, DECRETA: Art. 1º É criada, sob a presidência do Ministro da Justiça e Negócios Interiores, uma comissão incumbida de elaborar o anteprojeto da Constituição. Art. 2º A comissão será composta de tantos membros quantos forem necessários a elaboração do referido ante-projeto e por forma a serem nela representadas as correntes organizadas de opinião e de classe, a juizo do Chefe do Governo. Art. 3º As eleições à Assembléia Constituinte se realizarão no dia 3 de maio de 1933, observados o decreto n.21.076 de 24 de fevereiro de 1932 e os que, em complemento dele, foram ou vierem a ser expedidos pelo Governo. Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário. Rio de Janeiro, em 14 de maio de 1932, 111º da Independência e 44º a República.35

Paulo, pelo Brasil, nacionalidade.36

governo para o retorno do país à legalidade, isto ocorria porque na verdade era através do ideal da luta pela constituição que os paulistas mascaravam as suas verdadeiras insatisfações, ao mesmo tempo

causa

da

Os próprios diretores do PD possuíam a opinião de que se o governo do Estado de São Paulo fosse entregue a eles a Constituição poderia ser protelada. Assim, o principal incômodo dos paulistas com relação ao governo federal era o cerceamento da sua autonomia. Não afirmamos com isto, que de fato não havia interesse por parte de São Paulo na promulgação da Constituição, até porque a sua publicação poderia resolver os seus problemas,

dependendo

do

seu

caráter

obviamente, mas concordamos com o historiador Stanley Hilton que pondera:

(...) se Getúlio Vargas, em novembro de 1930, tivesse entregue a direção do Estado a um proeminente civil paulista ligado à causa revolucionária, tal como um prócer do Partido Democrático, o país não teria estado à beira de uma guerra fratricida em julho de 1932.37 De certa forma a insatisfação do Partido

É interessante notar que os articuladores do movimento procuravam ocultar os esforços do

pela

Democrático com o Governo Federal se iniciaria ainda em 1930, quando Vargas contrariando a decisão da junta militar que optava por João Alberto a interventoria do Estado, apesar da Revolução ter encontrado no PRP o seu principal inimigo devido à escolha de um interventor

que:

estrangeiro38 não foi uma retaliação contra São

Em torno do tema da Constituinte, conseguiu-se grande mobilização não apenas em São Paulo, mas também em outros Estados, onde setores descontentes com a política do Governo Provisório acabaram apoiando a “causa de São Paulo”. [...] Afinal, a defesa da Constituição permitia à classe dominante paulista falar por São

Paulo, é verdade que o PD como aliado dos revolucionários seria o representante natural do movimento para a direção do estado, contudo o problema se encontrava na maneira como os democráticos

37

Decreto nº 21.402 consultado no <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/19301939/decreto-21402-14-maio-1932-518100publicacaooriginal-1-pe.html> em 25/07/2014.

site

a

sua

participação

na

CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 48 e 49. HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 21. 38 Estrangeiro pela escolha do interventor não ter recaído sobre um político oriundo do Estado de São Paulo. 36

35

viam


G N A R U S | 218 Revolução e a maneira como os revolucionários

sucesso e terminou com a prisão de mais de 200

viam a participação daqueles.

revoltosos.42

Na visão deste últimos os democratas agiram

Para além do agravante dos paulistas não

com certa passividade tanto nas eleições, quanto

conseguirem governar a si mesmos, há uma

na conspiração que derrubou Washington Luís, de

mudança

forma que o mineiro:

adotada pelo Governo Central, como é sabido a

fundamental

Constituição

[...] Virgílio de Melo e Franco, um dos principais elementos de ligação entre os conspiradores do centro-sul e os gaúchos em 1930, as prevenções dos revolucionários decorriam da convicção de que o Partido Democrático agira com excessiva passividade na época das eleições de 1930 e que, posteriormente, durante a conspiração contra o governo de Washington Luís, a ação do democráticos ficara, alegava-se, no terreno das palavras.39

de

1889

na

política

possuí

um

nacional caráter

descentralizador, mas desde a posse do governo revolucionário a União dá início a um processo de fortalecimento do poder central, que afetaria diretamente as receitas:

O Governo Provisório retira de do estado de São Paulo as receitas de exportação e o controle direto da política cafeeira, além de, entre outras medidas, a isenção de frete do açúcar paulista em estradas do estado. É imposta uma “taxa de 2% ouro” sobre o porto de Santos, são instituídos novos impostos sobre o café, sobre a propriedade territorial, sobre sua transmissão... .43

Não obstante os paulistas de uma forma geral não gostaram da decisão, os democratas não conseguiram o poder enquanto que para o restante dos paulistas o estado era agora

Diante de tais medidas os paulistas alegavam que

governado por um político estrangeiro e militar. Mesmo não alcançando o poder no primeiro momento o PD declararia o seu apoio ao Governo Provisório

e

aceitaria

João

Alberto

estavam sendo prejudicados pela política adotada pelo Governo Provisório. Apesar das ações tomadas pela federação,

como

interventor, entretanto o ressentimento dos democratas e algumas das medidas adotadas por João Alberto voltaria a abalar o cenário político do Estado em 1931. Entre as medidas se encontravam a legalização do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no Estado e em decorrência de manifesto lançado no dia 7 de abril onde o interventor ordena o fechamento da sede do partido assim

sobretudo as ligadas à economia, os paulistas não possuíam tantas razões para reclamar, o governo sabia que São Paulo era o estado mais importante para a economia do país, tanto que não faltaram esforços para recuperar a economia cafeeira, prova disso foi à compra de todo o estoque de café retido pelo Governo e que posteriormente seria queimado para preservar o valor do produto.44 A política econômica adotada pelo Governo

como a prisão do então chefe de polícia Vicente Rao.40 Em resposta os democratas, com o apoio do general Isidoro Dias Lopes41, organizam uma tentativa de golpe em 28 de abril, que não obteve

visando à recuperação da economia cafeeira e a ciência dos paulistas deste fato, reforçam a tese de que a principal

insatisfação

destes estava

relacionada ao cerceamento da autonomia do HILTON, Stanley E. Op.cit, p. 23. 40 CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 14 e15. 41 Isidoro Dias Lopes nasceu no Rio Grande do Sul em 1865 e era chefe da 2ª Região Militar, posteriormente participaria da Revolução de 1932 pelo lado dos paulistas. Mais em verbete: Isidoro Dias Lopes. DHBB/CPDOC. Acessado em 20/06/2014. 39

estado. Dos quatro interventores que passaram por 42

Idem. p. 14-15. BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit., p.185. 44 CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 21-22. 43


G N A R U S | 219 São Paulo entre 1930 e 1932 apenas dois eram

Este possuía uma longa carreira política já havia

paulistas e civis, para completar não possuíam

ocupado o cargo de ministro da agricultura entre

muita expressão no cenário político. Os outros dois

1910 e 1913, além de ter sido embaixador do

interventores eram oriundos de outros estados e

Brasil na Itália e Argentina, devido a desavenças

militares, o que era encarado como ocupação.

com o presidente Arthur Bernardes, foi demovido

Após a interventoria de João Alberto que se

do cargo de embaixador na Argentina em 1926 e

exonerou do cargo em 24 de julho de 1932 devido

aos 66 anos se afastou da vida pública. A escolha

a pressões políticas por estar vinculado ao

do nome de Toledo para o posto de interventor foi

movimento

tenentista45

quem assume é o juiz

claramente estratégica, devido ao afastamento da

Laudo Ferreira de Camargo.46 Pressionado pela

vida pública Vargas acreditava estar escolhendo

Legião Revolucionária de Miguel Costa e pelo

um nome neutro na disputa pelo poder no estado,

grupo tenentista encabeçado por João Alberto,

e que agradaria tanto a FUP quanto o movimento

Laudo Camargo se demitiria do cargo de

tenentista.

interventor em 13 de novembro de 1931.

Apesar de Pedro de Toledo não desagradar às

Neste mesmo dia o então coronel Manuel

elites paulistas não era exatamente o que

Rabelo47 assume a interventoria do estado apoiado

desejavam. A relação destas com o Governo

pelos mesmos culpados pela queda de Laudo de

Federal já estava extremamente desgastada de

Camargo, Miguel Costa e João Alberto. Mais uma

modo que a tensão gerada pelos acontecimentos

vez São Paulo estava em mãos de um chefe

anteriores fez estourar a guerra civil brasileira em

político de fora. Novamente os partidos de

9 de julho de 1932. Após a deflagração do

oposição pressionariam o Governo Provisório para

movimento

que entregasse São Paulo aos paulistas.

manifestaria seu desejo de renúncia, a opção pelo

Em 13 de janeiro de 1932 o PD lançava manifesto rompendo com o Governo Federal e a pressão

sedicioso

Pedro

de

Toledo

movimento armado não era aconselhada pelo interventor, contudo:

aumentaria quando o Partido Democrático se uniria ao tradicional PRP, na Frente Única Paulista (FUP) ou Frente Única de São Paulo (FUSP). A tensão política gerada pelos paulistas surtiu efeito, pois em 03 de março Getúlio Vargas exonerava o coronel Manuel Rabelo e nomeava o paulista civil Pedro Manuel de Toledo48 para o cargo de interventor.

45

Iremos abordar o movimento tenentista no presente trabalho mais adiante. 46 Laudo Camargo era paulista e nasceu em 1881 na cidade de Amparo. In: DHBB/CPDOC, acessado em 20/06/2014. 47 Manuel Rabelo havia nascido na cidade de Barra Mansa no Rio de Janeiro, e militar ligado ao movimento tenentista que não era tão popular entre os paulistas. In: verbete: Manuel Rabelo. DHBB/CPDOC. Acesso 26/06/2014. 48 Nasceu na cidade de São Paulo em 29 de junho de 1860, seu avô o coronel Joaquim Floriano de Toledo, havia sido

(...) a insistência dos líderes revolucionários levou-o a aceitar o cargo de governador do estado e chefe civil do movimento, sendo ele aclamado em seguida diante de grande concentração popular, descrita por Menotti del Picchia: “A multidão tomou-se de delírios pânicos que tornaram suas aclamações o reboar de um furacão desencadeado. As mãos acenavam; flabelavam-se os lenços; agitavam-se os chapéus. Comparecendo a uma das janelas do palácio cercado pelo general Isidoro Dias Lopes, coronel Salgado, dr. Francisco Morato, Pádua Sales e outros chefes militares e civis da revolução, foi o dr. Pedro de Toledo proclamado governador de São Paulo.” Pouco depois, Toledo enviou telegrama a Vargas, afirmando: “Esgotados secretário particular de dom Pedro I. In: verbete: Manuel Rabelo. DHBB/CPDOC. Acesso 26/06/2014.


G N A R U S | 220

todos os meios que a meu alcance estiveram para evitar o movimento que acaba de se verificar na guarnição dessa região, ao qual aderiu o povo paulista, não me foi possível caminhar ao revés dos sentimentos do meu estado.”49

1.3 A oposição ao tenentismo

A finalidade real do Club 3 de Outubro era sustentar pela violencia, um regime de poderes discricionarios, que o sr. Getulio Vargas, evidentemente, planejou prolongar no paiz.52

A adesão de Pedro de Toledo ao movimento sedicioso, obviamente, não agradaria a Vargas.

O

movimento

tenentista

enxergava

a

Nos escritos do seu diário que correspondem aos

necessidade de uma regeneração no país, isto

dias 12 e 13 de julho o chefe do Governo

porque a política nacional da Primeira República

escreveria “Em São Paulo, traição de Vasconcelos,

havia sido prejudicial para o Brasil. Para o

de todo o governo paulista, inclusive a velha

tenentismo a inspiração da constituição de 1891

múmia

gerava uma descentralização republicana, por se

que

exumei

interventor Pedro de

do

esquecimento,

o

Toledo.”50

basear em um liberalismo excessivo, que podia até

No caso de São Paulo ficou claro todas as

ser compatível com outros países, mas não possuía

dificuldades que Getúlio teve para administrar o

semelhança com o Brasil devido à especificidade

estado, basicamente a diminuição da tensão na

na sua formação. Para a solução fazia-se

região perpassaria pelo atendimento dos anseios

necessário à centralização do poder e a

do PD, mas a situação não era tão simples. Assim,

uniformização

no início do Governo Provisório Vargas possuía o

obviamente que tais ocorreriam através do

seu poder político mais limitado e, por isso,

Exército. Se havia uma crítica por parte dos

precisava de apoio neste sentido51. Logo, tinha que

tenentes com relação à excessiva autonomia que

responder por um dos principais aliados da sua

os Estados possuíam, consequentemente criticava

plataforma política nacional, o grupo dos

se o poder oligárquico, principal responsável pela

tenentes. De certa forma a instabilidade na

descentralização do poder, e mais, uma vez

política paulista neste período de 1930 a 1932 é

identificado pelo:

das

instituições

do

estado,

causada pela disputa do poder pelo PD com os tenentes que atuavam politicamente no estado,

(...) domínio das oligarquias com a predominância do Poder Executivo, que intervém na composição do Legislativo, fere a autonomia estadual, viola as liberdades individuais, com a contínua decretação de estados de sítio. Por isso, buscar a maior centralização não significa para os “tenentes” reforçar as atribuições do Executivo, mas, pelo contrário, acentua-se a necessidade de restaurar o equilíbrio entre os três poderes, admitido-se a hipótese de uma predominância do judiciário.53

principalmente João Alberto e Miguel Costa. Na verdade o movimento tenentista, que se iniciara no início da década de 1920 e em 1930 com a vitória da Revolução encontra o seu auge na participação ativa no Governo Provisório, esse foi o motivo do descontentamento de inúmeros setores da sociedade brasileira com o governo, inclusive no Rio de Janeiro. 49

Pedro Manuel de Toledo. DHBB/CPDOC. Acesso 27/06/2014 50 PEIXOTO, Celina Vargas do Amaral, Getúlio Vargas: Diário, Volume I (1930-1936). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995, p. 116. 51 HILTON, Stanley E. Op. cit., pp. 32-33.

Torre de Babel In: Diário Carioca, RJ, 24/02/1932, p. 1. O Club 3 de outubro representava os ideais do tenentismo, participavam tanto civis como militares ligados aos seus ideais. 53 FAUSTO, Boris. Op. cit, .pp. 86-88. 52A


G N A R U S | 221

Mato Grosso para onde fora banido seis meses após a Revolução de 1930, acompanhava com crescente desgosto e apreensão a onda de indisciplina que parecia estar erodindo os fundamentos da organização militar nacional.57

Dessa forma o tenentismo via nas oligarquias o principal obstáculo para o que acreditava ser o melhor para o país. O resultado seria os inúmeros embates entre grupos oligárquicos e os tenentes. Através dessa análise, podemos, ainda, concluir que o surgimento do tenentismo e o processo

A Frente Única Paulista (FUP) ciente da antipatia

político de São Paulo geram o atrito que

do general pelo tenentismo, e pelo governo, o

desembocou no movimento de 1932.54

convidaria para o levante em 24 de abril e no dia 1

Cabe ressaltar que a oposição ao governo provisório gerada pela presença dos tenentes no

de maio ofereceria o comando das tropas paulistas ao general Klinger.

governo, não significava que a política pós 1930

É digno de nota que alguns dos militares que

atendia aos interesses destes, pelo contrário, na

estavam na base do governo observavam com

prática

o

governo

cautela o movimento

atenderia

os

tenentista, é o caso,

interesses

de

por exemplo, do Gal.

oligarquias ligadas a

Pedro Aurélio de Góis

outros

Monteiro58 que em

Estados,

ou

seja, com a Revolução

carta

ao

general

teria ocorrido uma

Klinger afirmava que

troca no poder.55

algumas

guarnições

Não obstante, o que

estavam em franca

devemos considerar é

balburdia e no dia a

que

movimento

dia avolumava-se a

tenentista acentuaria

desorganização e a

uma

indisciplina.59 Apesar

o

oposição

ao

governo que além de estar excluída do poder não

de parecer contraditório a fundação do Clube 3 de

concordava com os novos rumos da política

Outubro por Góis Monteiro, a sua criação possuía

nacional do governo provisório.

o objetivo de fazer com que os tenentes não

Entretanto os críticos do tenentismo não se restringiam somente a setores civis da sociedade, dentro

do

próprio

exército

havia

levassem para os quartéis questões políticas, restringindo as ao clube.60

pessoas

A presença do general Leite de Castro61 no

descontentes com os tenentes. Este seria o motivo

ministério da guerra que era ligado ao movimento

de principal insatisfação do Gal. Bertoldo Klinger56

tenentista por pouco não fez com que o

com o governo e de seu posto em: HILTON, Stanley E. Op. cit., pp. 54 e 55. Pedro Aurélio de Góis Monteiro nasceu em São Luís do Quitunde (AL) no dia 12 de dezembro de 1889, e fazia parte da base do governo de Vargas. Góis Monteiro. In: DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 59 HILTON, Stanley E. Op. cit., pp. 54 e 55. 60 Idem, p. 55.. 61 O general José Fernandes Leite de Castro ocupou o posto de ministro de 3 de novembro de 1930 a 29 de junho de 1932. In: DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 57 58

BORGES, Vavy Pacheco. Op. cit., p. 168. CAPELATO, Maria Helena. Op. cit., pp. 51-52. 56 O General Bertoldo Klinger seria o comandante das tropas paulista na guerra de 1932. In: Verbete: Bertoldo Klinger. DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 54 55


G N A R U S | 222 interventor do Rio Grande do Sul, Flores da

CAPÍTULO II

Cunha62, não acompanhasse o posicionamento da Frente Única Gaúcha e aderisse ao movimento de

OPOSIÇÃO NO DISTRITO FEDERAL: O JORNAL

revolta do Estado de São Paulo – diga-se de

DIÁRIO CARIOCA

passagem, que o apoio do Rio Grande do Sul era considerado vital tanto para os paulistas quanto

Segundo

o

Dicionário

Histórico-Biográfico

para o Governo Federal. Somente após a

Brasileiro, José Eduardo de Macedo Soares teria

exoneração do ministro de guerra Leite de Castro

fundado o jornal Diário Carioca em 17 de julho de

e da insistência de Getúlio Vargas para que

1928 com a tarefa principal de fazer oposição ao

continuasse a frente da interventoria e garantisse a

governo do presidente Washington Luís. Ao todo o

ordem é que Flores da Cunha tomou uma decisão

jornal teve quatro proprietários e durante a gestão

e em 10 de julho afirmava que manteria a todo

de Horário de Carvalho Júnior64 o jornal chegou a

custo à ordem no Estado, e no dia seguinte

ter uma sede própria que ficava localizada na

declarava ao Rio Grande a nação através do jornal

Praça Onze no Rio de Janeiro.

A Federação que:

Durante sua existência esse periódico teve como foco principal a vida política do país. Seu estilo

Cumpre-me declarar ao Rio Grande e à nação que me conservarei fiel aos deveres de delegado do Governo Provisório… Ninguém me fará a injuria de suppôr que eu pudesse usar de minha autoridade para atraiçoar a quem m’a conferiu fiado na integridade do meu caracter e na capacidade da minha acção patriotica.63 Apesar de ser necessário neste primeiro momento para a sustentação política do governo, percebe-se que o movimento tenentista enquanto parte integrante do governo provisório gerava insatisfação

e,

sobretudo,

a

oposição

de

específicos setores da sociedade. O jornal Diário

Carioca, nosso objeto de estudo, representava um

moderno e inovador marcaram seus textos jornalísticos, ao introduzir novos padrões formais, que eram oriundos da Semana da Arte Moderna (1922).65 O Diário Carioca aos poucos foi eliminando, da sua linguagem, o excesso de adjetivos em sues textos e passou a utilizar preposições mais próximas da linguagem falada, contrariando a prática de boa parte dos periódicos da época. Isto ocorria porque era muito comum, naquele momento, a profissão de jornalista ser exercida

por

modificações

bacharéis realizadas

de pelo

direito66. jornal

As

foram

significativas já que houve:

destes setores de oposição não só ao tenentismo como ao próprio governo provisório. O jornal Diário Carioca iniciou as suas atividades no dia 17 de julho de 1928 e a sua última edição data de 31 de dezembro de 1965. Teve como fundador Macedo Soares. Seu segundo proprietário foi Horário de Carvalho Júnior e posteriormente seus proprietários serão Arnon de Melo e Dantom Jobim. LAGE, Nilson; FARIA, Tales e RODRIGUES, Sergio. Diário Carioca: o primeiro degrau para a modernidade. Estudos em Jornalismo e Mídia, Universidade Federal de Santa Catarina, Vol. I Nº 1 - 1º Semestre de 2004. Consultado em 11 de maio de 2014 <https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalismo/article/view /2195/3931>. 65 Idem, p. 132. 66 Idem, p.139. 64

62

José Antônio Flores da Cunha nascido no Rio Grande do Sul no dia 5 de março de 1880 possuía uma longa carreira política até ocupar o cargo de interventor do seu Estado, tendo sido eleito três vezes deputado federal e uma vez para senador, até se tornar revolucionário em 1930 e ulteriormente interventor do RS. In: DHBB/CPDOC. Acessado 30/06/2014. 63 Ao Rio Grande do Sul e ao Brasil, In: A Federação, RS, 11/07/1932, p. 1.


G N A R U S | 223

[...] a supressão paulatina mas constante, das formas arcaicas de tratamento e referência (‘doutor’, ‘eminente jurista’, sua excelência’) e do jargão jurídico dominante em uma profissão até então exercida frequentemente por bacharéis em Direito, quando não contagiada pela vulgata de rábula de policiais e bandidos.67

do levante dos 18 do forte.69 Não obstante na sua primeira edição o jornal apregoava que:

Este jornal é antes de tudo, um instrumento absolutamente livre nas mãos de seu director: não tem ligações partidárias nem politicas, não representa nenhuma [...] de interesses commerciaes ou financeiros que pudessem de qualquer forma limitar a perfeita independencia de sua acção jornalistica. O seu objetivo é servir o país traduzindo [...] os seus sentimentos, esclarecendo e interpretando as correntes de opiniões, assumindo com honestidade e firmesa a parcella de responsabilidades que por ventura lhe caiba nas lutas da política nacional.70

Foi no Diário que:

[...] se eliminou o uso absurdo da palavra ‘indivíduo’ como sinônimo de criminoso e ‘indigitado (que quer dizer ‘apontado’) para mencionar exclusivamente o reú em um processo; trocou-se ‘homicídio’ por ‘assassinato’, latrocínio por ‘roubo’, ‘humilde’ por pobre (já que a humildade é subjetiva e a pobreza objetiva), ‘homem de cor’ por ‘negro’. As pessoas passaram a morar ‘na rua x’ e não ‘à rua x’; as esposas tornaram-se ‘mulheres, os advogados deixaram de ser ‘causídicos’, os médicos ‘facultativos’, os vereadores ‘edis’, os prefeitos ‘alcaides’, as prostitutas ‘damas da noite’, as casas de dois andares ‘mansões, os automóveis quando passam depressa ‘bólidos’ etc.68 Em 1950, o Diário foi o primeiro jornal a introduzir o sistema de lead americano - onde a chamada principal da notícia já deveria conter as informações de forma sucinta para que o leitor

O

foram

realizadas

por

leitor

que

era

representava interesses comerciais ou financeiros. Em segundo lugar procurava informar ao leitor sobre os seus objetivos de servir o país, traduzir e interpretar os seus sentimentos sobre as correntes de opiniões e, por fim, assumia com firmeza a sua parcela de responsabilidade. Na mesma edição o

Diário Carioca afirmava ainda que: Um jornal não é um partido que aspirando o governo da Republica deva publicar um programma de acção política: somos, pelo contrario, o orgão da Nação que observa, julga, applaude ou condemna os que pretendem dirigir os seus destinos. 71

consagrados como Humberto Campos, Virgílio de Melo Franco, Evaristo de Morais, Maurício de Lacerda, Marcial Dias Pequeno, Paulo Mota Lima e mais a frente durante um curto tempo o Diário Com relação ao seu posicionamento crítico

ao

possuía ligações partidárias e muito menos

redatores

contou com Carlos Lacerda para chefe de redação.

informava

absolutamente livre de influências, pois não

ficasse ciente do que se tratava. Boa parte dessas inovações

jornal

Enquanto jornal de oposição o Diário Carioca apoiaria a revolução de 1930. Dias antes da revolução ocorreu um encontro de líderes da

contra o governo de Washington Luís o jornal também criticava a estrutura política como um todo, de modo que a data prevista para o lançamento do jornal era 05 de julho de 1926, pois havia o intuito de comemorar o sexto aniversário 67 68

Idem, p. 139. Idem. p. 139.

Verbete Diário Carioca In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro CPDOC, doravante citado como DHBB/CPDOC. 69

Consultado em 01 de maio de 2014, <http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx >. 70 Ver: “Diario Carioca”, In: Diário Carioca, RJ, 17/07/1928, p. 3. 71 Ver: “Diario Carioca”, In: Diário Carioca, RJ, 17/07/1928, p. 3.


G N A R U S | 224 Aliança Liberal na sede do jornal, e entre eles se

oposição ao governo do presidente Hermes da

encontrava o próprio Getúlio Vargas. Nas páginas

Fonseca75. O periódico possuía moldes modernos e

do periódico a revolução seria o caminho a ser

foi o primeiro jornal do Distrito Federal a utilizar

adotado para solucionar os problemas do

país72

e

ilustrações.

no dia 24 de outubro de 1930, após a vitória da

Devido a sua projeção em 1915, Macedo Soares

revolução, na sua primeira página o jornal escrevia

é eleito deputado federal pelo estado do Rio de

“A Redempção Brasileira — victoriosa em todo o

Janeiro na legenda do Partido Republicano

paíz a Cruzada Santa da Liberdade Nacional”.73

Fluminense (PRF), cumpre o seu mandato até o

Entretanto em dezembro do mesmo ano o Diário

final em 1917 e é reeleito mais duas vezes nos anos

Carioca passaria a se posicionar como oposição do

de 1918 e 1921 respectivamente. No dia 04 de

governo provisório.

julho de 1920 participaria indiretamente do

Esta mudança no posicionamento político do

primeiro levante tenentista, aonde ocupou a

jornal se relaciona diretamente com o seu

Companhia Telefônica de Niterói, afim de, evitar a

fundador José Eduardo de Macedo Soares, isto

comunicação com o Rio durante o movimento, que

porque o periódico adotou o seu discurso político.

eclodiria no dia seguinte em Copacabana. Já em

Mesmo nos momentos em que não estava à frente

1921, Macedo Soares participaria da campanha de

do jornal e “embora não tenha sempre dirigido o

Nilo Peçanha a presidência da República num

Diário Carioca, Macedo Soares desempenhou

movimento que ficou conhecido como a Reação

durante todo o tempo o papel de eminência parda

Republicana.76

do jornal, dando seu tom político e definindo suas diretrizes.”74

Sua atuação na política rendeu dois atentados contra a sua vida. O primeiro foi realizado pelo gaúcho Flores da Cunha, que errou o alvo, e o

2.1 A trajetória do criador do jornal Diário Carioca José Eduardo de Macedo nasceu em 04 de

segundo foi em fevereiro de 1932 quando o Diário

Carioca foi empastelado por grupos tenentistas. Macedo Soares no início apoiou a Revolução de

setembro de 1882 na cidade de São Gonçalo no Rio de Janeiro era oriundo de uma proeminente família do norte fluminense de modo que muitos dos seus parentes possuíam ligação com a política. Macedo Soares matriculou-se na Escola Naval tornando-se aspirante a guarda-marinha em março de 1898, em 1908 foi promovido à primeiro-tenente e em 1912 deixou a marinha quando passou a se dedicar as atividades jornalísticas. No mesmo ano em que deixou a marinha fundou o jornal O Imparcial que fazia Verbete Diário Carioca in DHBB/CPDOC. Acesso 10/07/2014. 73In: Diário Carioca, RJ, 24/10/1930, p. 1. 74 Verbete José Eduardo de Macedo Soares in DHBB/CPDOC. Acesso 10/07/2014. 72

1930. Contudo, em dezembro retiraria o seu apoio, acusando o Governo Provisório de Getúlio Vargas de

“(..)

desenvolver

uma

administração

incompetente e uma política mesquinha”.77 O principal motivo para a mudança na posição política de Macedo Soares era por conta da sua antipatia pelo movimento tenentista, por mais de uma vez o Diário Carioca criticou os tenentes e foi 75

Hermes Rodrigues da Fonseca nasceu em 12 de maio de 1855 e entre 1910 e 1914 foi presidente do Brasil. in DHBB/CPDOC. Acesso 10/07/2014. 76A Reação Republicana foi uma campanha realizada pelo Partido Republicano Fluminense que lançava a candidatura de Nilo Peçanha contra o candidato da situação Artur Bernardes. Verbete Partido Republicano Fluminense (PRF) in: DHBB/CPDOC Acesso em 02/07/2014. 77 Verbete José Eduardo de Macedo Soares in DHBB/CPDOC. Acesso em 02/07/2014.


G N A R U S | 225 justamente devido a uma matéria de conteúdo

deparou, logo na primeira página, com a seguinte

crítico aos tenentes, que afirmava que a: “(...)

matéria:

finalidade real do Club 3 de Outubro era sustentar pela

violencia,

discricionarios,

um que

regime o

sr.

de

Getulio

O movimento revolucionario que explodiu ante-hontem no Estado de São Paulo vem interessando vivamente a população carioca. Máo grado os boletins e communicados officiaes, visando tranquilizar os espiritos, a inquietação é geral. E não só a população carioca, mas a Nação inteira acompanha, emocionada, a marcha dos acontecimentos, ansiando pela prompia terminação da luta, por forma a poderem todos os brasileiros, unidos num só pensamento, verem realizado o seu grande sonho de liberdade, á sombra de leis sabias e bem inspiradas, emanando de um codigo politico que seja bem a expressão dos sentimentos e da vontade do paiz. E tudo indica que não está muito longe essa grande hora.81

poderes Vargas,

evidentemente, planejou prolongar no paiz”78. O periódico foi empastelado em 25 de fevereiro de 1932. Contudo, no dia anterior, Macedo Soares participou da “(...) da fundação do Clube 24 de Fevereiro, criado em 16 de fevereiro de 1932 para defender a reconstitucionalização do país e se opor ao Clube 3 de Outubro (...)”79. Por ter sido fundador e proprietário do Diário

Carioca, o jornal acabaria refletindo os seus pensamentos e posicionamentos acerca da política nacional, mesmo quando este estava afastado do periódico, ao mesmo tempo. Ao analisarmos o

Percebemos, logo neste primeiro momento, o

periódico entendemos o sentimento de uma

posicionamento pró revolução do jornal, pois não

parcela da sociedade, que é de oposição,

justamente num momento crucial para o Governo

acontecimentos, mas a nação inteira acompanhava

Provisório

emocionada os acontecimentos e ansiava pelo seu

em

que

este

procurava

a

sua

legitimação no poder.

a

população

carioca

acompanhava

os

fim, já que iria trazer um governo com leis sábias e inspiradas, e principalmente que representasse os

2.2 O Diário Carioca em tempos de guerra A primeira notícia do movimento revolucionário de São Paulo no Diário Carioca, data do dia 12 de

sentimentos e vontades do país. Em outras palavras o jornal demonstrava claramente a sua insatisfação com o governo atual.

julho de 1932. Mas, como sabemos o movimento

Ainda na primeira página o periódico estamparia

irrompeu no dia 09 de julho – este delay ocorreu

as fotos dos principais personagens políticos e

por conta do tempo que as informações

militares da revolução paulista general Bertholdo

demoravam a chegar, e, também, pelo fato de no

Klinger, Pedro de Toledo e o general Isidoro Dias

dia 11 de julho não ter havido edição do jornal por

Lopes82. Além das imagens dos revolucionários o

se tratar de uma segunda-feira80. Ao pegar o

Diário Carioca colocou as fotos de Arthur

Diário Carioca de 12 de julho de 1932, o leitor se

Bernardes e Mario Brant83 que não participaram

Ver: S. Paulo em armas contra a Ditadura, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 82 Isidoro Dias Lopes era comandante da 2ª RM até ser substituído pelo general Góis Monteiro, era cotado para ser o comandante das tropas revolucionárias, contudo por questões políticas a escolha recaiu sobre Bertholdo Klinger. Verbete Isidoro Dias Lopes in: DHBB/CPDOC Acesso em 02/07/2014. 83 O político mineiro Arthur Bernardes fora presidente do Brasil entre 1922-1926, já o também mineiro Mario Brant 81

Ver: “A torre de Babel”, In: Diário Carioca, RJ, 24/02/1932, p. 1. 79 Verbete José Eduardo de Macedo Soares, Op. cit. Acesso em 02/07/2014. 80 Apesar de haver jornais na época que circulavam sem interrupção, boa parte dos periódicos da época não circulava na segunda-feira, já que no domingo era concedido folga para os funcionários. 78


G N A R U S | 226 diretamente

do

movimento,

mas

eram

A nosso ver há uma mínima intenção do jornal

oposicionistas do governo provisório atuando pelo

em depositar a culpa no governo provisório,

estado de Minas Gerais.

deixando a entender que o estado paulista não

Apesar de não podermos afirmar com precisão o

teve alternativa frente as decisões do governo

porquê de o jornal ter posto as fotos destes

federal, pois os paulistas haviam realizados

últimos, conjecturamos que possuía a intenção de

constantes apelos com o intuito de solucionar os

demonstrar

de

problemas. Entretanto, o jornal se cala quanto às

insatisfação geral contra o governo e por isso as

medidas tomadas pelo governo para tentar

imagens de dois políticos proeminentes no cenário

diminuir a insatisfação no estado86.

que

havia

um

sentimento

regional e nacional no caso de Arthur Bernardes.

No tangente as declarações envolvendo o

O Diário Carioca lembraria que há muito tempo

governo federal, observamos que o periódico

se falava na possibilidade de um levante por parte

praticamente se abstém, restringindo-se a publicar

de São Paulo e que inclusive os elementos

as notas oficiais emitidas pelo governo central e

sediciosos do estado vinham tentando resolver as

pelo líder da nação Getúlio Vargas. Com relação a

diversas questões com o governo:

estas notas identificamos neste primeiro momento dois objetivos centrais, no primeiro deles o

Desde muito tempo se vinha falando na possibilidade de um levante por parte de vários elementos políticos do Estado, bem como alguns militares. Nesse sentido, os elementos revolucionarios de S.Paulo vinham dirigindo constantes apellos ao Governo Provisório, para que fossem tomadas providencias que appareciam tanto mais urgentes, quanto mais decorria o tempo. 84

governo provisório procurava descredenciar as razões postas pelos paulistas para o levante militar, no segundo objetivo notamos que o governo procura passar tranquilidade para o restante dos estados, para que assim garantisse o apoio destes. No trecho em que o governo se dirige a nação o primeiro objetivo fica bem claro ao afirmar que:

Prosseguia afirmando que:

Se ao movimento sedicioso agora ateado no grande Estado, se pretende emprestar, como querem fazer crer seus promotores, o objetivo de levar a nação á normalidade institucional, nada ha que o justifique. Os propositos do Governo Provisório a respeito já não mais podem ser postos em duvida, sem má fé e declarado intento de illudir a opinião publica. Os actos mais do que as palavras estão a documentai-os com meridiana evidência: foi promulgada a lei eleitoral: marcou-se a data em que se devem effectuar as eleições: escolheram-se os juizes dos tribunnaes eleitoraes: nomearam-se os funccionarios que compõem as respectivas secretarias:

Apesar do ambiente de tranquilidade que era obsevado em todas as espheras da vida paulista, notava-se uma grande prepação secreta, disfarçada com as organizações de batalhões patrioticos destinados a defender a autonomia de S. Paulo, no caso de tentativa do Governo Revolucionario no sentido de modificar a organização do Governo Paulista.85

havia sido até o momento da guerra de 1932, deputado federal e presidente do Banco do Brasil. Ver respectivamente os verbetes Arthur Bernardes e Mario Brant in DHBB/CPDOC. Acesso em 27 /07/2014. 84

Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário

Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 85

Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário

Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1.

86

Fora adotado como estratagema político, por parte da imprensa pró revolução e constituição, a ocultação das medidas tomadas pelo governo revolucionário que visavam a resolução de diversos problemas, principalmente no que diz respeito aos paulista. CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 48.


G N A R U S | 227

abriram-se os creditos necessarios e acaba de ser designada a commisão incumbida de elaborar o projeto de Constituição.87

O governo provisório fazia questão de mostrar que com base no “civismo brasileiro” surgia

O governo federal afirmava que já havia tomado

solidariedade de diversos locais do país e

todas as providências para que o país voltasse à

demonstrava que já havia numerosos contingentes

normalidade constitucional, inclusive lembrando o

prontos para marchar contra os rebeldes.

fato de que já havia data para as eleições e a

Diante das declarações fornecidas pelo governo

comissão para a constituição já estava designada.

pudemos inferir que neste primeiro momento o

Mais a frente Getúlio Vargas lembraria que não

governo procurava em primeiro lugar deslegitimar

existiam motivos para o levante já que o governo

as ações de São Paulo, assim como demonstrar o

instituído pela revolução:

apoio maciço que o governo revolucionário possuía entre os estados.

(...) demonstrou sempre de modo innequivoco, todo interesse pelos seus destinos, amparando-o, quer na obra de reconstrucção de sua economia, com a solução de gravissíma crise do café, quer satisfazendo suas justas aspirações de ordem política, com a entrega do governo estadual aos proprios paulista.88 Com

este

pronunciamento

o

presidente

procurava demonstrar que desde a ascensão do governo revolucionário em 1930, procurava zelar

Basicamente no início do conflito o Diário

Carioca se restringia a narração dos fatos e as providências tomadas pelo governo provisório como a criação de cargos e corpos para a polícia mineira90, a abertura de crédito para o governo91 e a subordinação da Central do Brasil a pasta de Guerra92. Notícias desta natureza continuavam como “chefe do governo, em visita ás tropas, no campo das operações”93, encontros políticos. O jornal acompanhava de perto a situação

pelo destino de São Paulo, “reconstruindo” a economia cafeeira após crise e satisfazendo as aspirações políticas do estado ao entregar a interventoria aos próprios paulistas. Num segundo momento as declarações oficiais

política dos estados aonde havia políticos de destaque contrários ao regime e que poderiam vir a apoiar a causa paulista, notoriamente Minas Gerais e Rio Grande do Sul. No caso do Rio Grande o Diário Carioca não

procuravam passar o sentimento de união do país contra o movimento sedicioso:

deixaria passar a oportunidade de publicar o manifesto de oposição ao governo provisório da

Honrando a clarividencia do civismo brasileiro de todos os pontos do paiz, desde o Rio Grande do Sul até ao Amazonas o Governo esta recebendo as mais vivas e inequivocas demonstrações de solidariedade. Ja se aprestam, a esta hora, numerosos contingentes para marchar contra os rebeldes.89

Frente Única do Rio Grande do Sul que foi publicado no dia 21 de julho, no qual afirmavam a sua solidariedade com a causa paulista já que a “identidade dos propositos que anima S. Paulo e Rio Grande na sua resistencia aos erros da ditadura

90

Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 88 Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 89 Ver: “S. Paulo em armas contra a Ditadura”, In: Diário Carioca, RJ, 12/07/1932, p. 1. 87

Ver: “S. Paulo em armas contra a ditadura”, In: Diário

Carioca, RJ, 13/07/1932, p. 1.

Ver: “O movimento em São Paulo”, In: Diário Carioca, RJ,14/07/1932, p. 1. 92 Ver: “A Central do Brasil vae ficar subordinada à pasta da Guerra”, In: Diário Carioca, RJ, 20/07/1932, p. 1. 93 In: Diário Carioca, RJ, 19/07/1932, p. 1. 91


G N A R U S | 228 e ao seu animo deliberado de pôr entraves a volta

matéria sobre a riqueza do solo e o babassú, no dia

do paiz à ordem legal foi a causa inicial dessa

28 de julho nova matéria sobre bananas e no dia

solidariedade”94 (grifo nosso).

30 do mesmo mês a primeira página do Diário

Nas edições do jornal nos dias 22 e 23 fora

Carioca trazia uma propaganda cinematográfica

enfatizado os meetings políticos que estavam

sugestiva sobre o filme Chamado Accusador97 em

ocorrendo entre os próceres da política de Minas

que o seguinte diálogo era exposto, abaixo da

Gerais e que acabariam decidindo sobre a

propaganda se seguia uma matéria sobre laranjas:

participação política do estado mineiro na guerra

No seu odio ao homem que fizera morrer seu pae, ella se fez telephonista para lhe descobrir os segredos. Mas poderia falar? PROHIBIDA DE FALLAR”98. (grifo nosso)

civil.95 Entretanto a partir do dia 24/07/1932 o Diário

Carioca praticamente se cala sobre o conflito, fato este que estranhamos, pois no dia anterior o jornal

Com a exceção do período inicial e os dias finais

praticamente preenchera a sua primeira página

do conflito, em que as notícias sobre o movimento

com notícias vinculadas a situação política do

armado eram intensas, o Diário Carioca muito

estado de Minas Gerais e com a notícia do

pouco se pronunciou ou noticiou o conflito

encontro do ex ministro da justiça Maurício

armado que ocorria em São Paulo. Ao contrário,

Cardoso com Getúlio Vargas e no dia seguinte o

podemos dizer que as matérias sobre a questão do

jornal se limitasse a comentar reuniões que haviam

Chaco99 e a ascensão do partido nazista na

ocorrido no palácio do Catete e a uma extensa

Alemanha se fizeram mais presente no periódico

matéria na sua capa sobre “As bananas nas

que a guerra civil em andamento. Acreditamos que

colônias francezas”:

o jornal se encontrava sobre censura prévia e não

A administração da Africa Occidental Franceza emprega constantes esforços no intuito de abastecer de frutas tropicaes os mercados europeus, notadamente a banana. Ha cerca de trinta anos, essa fruta era considerada na França, como de luxo; hoje tornou-se de consumo corrente.”96.

seria coincidência que dias antes o jornal havia noticiado à criação de um órgão de censura no distrito federal de modo que:

O chefe do Governo Provisório da Republica dos Estados Unidos do Brasil, considerando que o levante militar, de que foi theatro, ultimamente, a capital do Estado de S. Paulo, tem preoccupado, como era natural, a attenção da policia no Districto Federal, que como lhe cumpre, tem agido no caso com o maximo interesse, resolve criar naquella repartição, o Departamento de Censura e Publicidade.100

Como se não bastasse outras edições do jornal estampariam na sua capa matérias relacionadas a frutas e ao seu comércio, no dia 27 de julho

Ver: “Ao Rio Grande do Sul e á Nação”, In: Diário Carioca 21 de julho de 1932, p.1. 95 O estado de Minas Gerais por pouco não aderiu ao movimento armado contra o governo provisório, havia a corrente política que defendia a adoção do estado a revolução, corrente liderada por Arthur Bernardes, havia os que queriam que Minas Gerais apenas se defendesse, como era a opinião de Venceslau Brás, mas no final o estado aderiu ao conflito do lado de Getúlio Vargas representado no estado pelo interventor Olegário Maciel. Ver respectivamente os verbetes Arthur Bernardes, Mario Brant e Venceslau Brás in DHBB/CPDOC. Acesso em 27 /07/2014. 96 Ver: “As bananas nas colônias francezas”, In: Diário Carioca, RJ, 24/07/1932, p. 1. 94

97

Filme do ano de 1931, dirigido por Stuart Walker. Diário Carioca, dias 27, 28 e 30 de julho de 1932. 99 Conflito militar em torno da posse da região do Chaco, rica em petróleo, que envolveu a Bolívia e o Paraguai entre 1928 e 1935. Depois de longa e infrutífera tentativa de mediação diplomática, na qual o Brasil teve parte ativa, a guerra foi decidida nos campos de batalha, terminando em junho de 1935 com a vitória paraguaia. In. DHBB/CPDOC Acesso em 10/07/2014. 100 Decreto do chefe do Governo Provisório publicado no Diário Carioca, 14 de julho de 1932, p. 1. 98


G N A R U S | 229 No que diz respeito a este período sabemos que outros jornais sofreram intervenções e inclusive prisões foram realizadas, de maneira que não era incomum

encontrarmos

deste estava em jogo101. O que pudemos inferir durante este curto

que

período de tempo é que o periódico mantinha o

demonstravam algum tipo de censura por parte do

seu posicionamento de oposição. Isto fica claro na

governo, como o despacho noticiado no dia 30 de

sua primeira edição após o inicio da revolta. Por

agosto pelo Diário Carioca oriundo da Associação

motivos obscuros ao presente momento em que

Brasileira de Imprensa (ABI) que reivindicava a

realizamos esta pesquisa o jornal se cala durante

soltura de um jornalista maranhense que fora

uma boa parte do conflito, diante deste fato sem

preso contra a liberdade de imprensa, logo não

podermos confirmar, apenas podemos conjecturar

seria de espantar que o jornal que havia sofrido um

que o periódico se encontrava sobre censura

empastelamento em fevereiro do mesmo ano, pelo

prévia, a possibilidade existia não se tratando de

grupo tenentista, e que possuía posicionamento

nada paradoxal, já que o governo, como vimos,

político

havia

claramente

notícias

para o governo em questão, em que a legitimação

contrário

ao

governo

criado

para

o

Distrito

Federal

o

provisório estivesse sobre censura prévia, ainda

Departamento de Censura e Publicidade em 14 de

mais se levarmos em consideração que o governo

julho de 1932.

federal estava sendo questionado e precisava mais do que nunca de legitimidade.

E apesar do Diário Carioca ter se calado sobre o conflito, este continuava a criticar o governo,

A guerra civil somente voltaria a ter destaque no

mesmo que de forma sutil como na matéria do dia

jornal no dia 30 de setembro, ou seja, faltando

12 de agosto de 1932 intitulada “Dhesumanidade!

apenas três dias para o término do conflito. Nessa

Um pobre operario despejado, com sua familia, no

edição a matéria de destaque foi com relação ao

morro Babylonia, pela força militar”102. Na matéria

conflito noticiava o telegrama enviado pelo

o jornal explicava que esteve em sua redação:

[...] o operario Accacio dos Santos que residia no morro da Baylonia, á casa n. 23, de propriedade do sr. Eduardo Duvivier, desde 1925. O referido, que tem oito filhos, sendo o mais moço de seis mezes e o mais velho de oito annos, veiu relatar-nos uma violencia de que acaba de ser victima,pedidno para o caso uma providencia do ministro da Guerra. A queixa do operario Acccio dos Santos é a seguinte: como dissemos acima residia elle, com os seus, desde 1925, na casa referida. Sempre pagou, pontualmente, os modestos alugueis, do predio, ao dr. Duvivier, nunca havendo questões entre elle e o senhorio. Acontece que o morro da Babylonia foi occupado pelos militares e, sem uma razão que lhes assegure essa attitude, querem elles que os moradores lhes paguem os

general Bertholdo Klinger, que continha a proposta de armistício. No primeiro dia de outubro era apontado o fato dos emissários enviados pelo general Klinger não terem assinado a proposta de paz do governo provisório, e nos dias 02 e 04 de outubro era noticiado o encaminhamento do fim do conflito.

2.3 O Diário Carioca em 85 dias Ao longo deste capítulo nos propomos a analisar o jornal Diário Carioca durante os 85 dias de conflito entre os revoltosos de São Paulo e o governo provisório, no intuito de observamos como o jornal se pronunciou num momento chave

101

Para a questão da necessidade de legitimação do governo provisório vide a já citada obra de LOPES, Raimundo Helio, sobretudo o primeiro capítulo, Op Cit, 102 Ver: “DESHUMANIDADE!”, In: Diário Carioca, RJ, 14/08/1932, p. 3.


G N A R U S | 230

alugueres das suas residencias, em vez de fazei-os aos respectivos proprietarios. Os militares que haviam ocupado o morro

diversos motivos, razão pela qual no próximo capítulo pretendemos nos debruçar sobre alguns membros expoentes desta sociedade.

Babylonia, segundo o jornal sem justificativa, estavam cobrando dos seus moradores que os CAPÍTULO 3

aluguéis fossem pagos a eles ao invés do reais proprietários, contudo como o operário Accacio dos Santos não concordou com essa jurisprudência militar se recusou a pagar o seu aluguel, e diante da sua recusa o operário foi despejado com a sua família. Ainda na matéria o periódico afirmava que:

Numa época como essa, de atribulações, de difficuldades, de incertezas, quando o governo decreta a moratoria para o comercio e elastece o praso para vencimentos de titulos estrangeiros, não se póde justificar o quadro descripto acima, desse despejo cruel de um pobre pae de familia com filhinhos de tenra edade.103

OPOSIÇÃO NO DISTRITO FEDERAL: A SOCIEDADE Se pudéssemos destacar o grupo social da capital que se encontrava mais descontente com o governo provisório de Getúlio Vargas em 1932, certamente apontaríamos para os militares. Entretanto, civis como o José Eduardo de Macedo Soares fundador do jornal Diário Carioca, era um nome que representava a sociedade civil no que se refere ao descontentamento frente ao governo provisório. Neste capítulo iremos nos debruçar sobre algumas dessas personagens - militares e

Por fim o periódico cobrava uma medida enérgica do ministro da Guerra para a resolução

civis -, que se manifestaram em grupo ou individualmente.

do caso. No dia 30 de agosto do mesmo ano o Diário

3.1 Os militares

tornaria a criticar o governo desta vez na maneira

Os militares do Distrito Federal (Rio de Janeiro)

em que o governo ampara os seus jornalistas,

que aderiram ou simpatizavam com a causa

realizando inclusive, uma interessante comparação

paulista, possuíam motivos variados, dentre eles

com o governo argentino em que “Naquelle paiz,

destacamos um motivo em especial: a aversão de

como no Brasil, a situação pessoal e profissional

alguns militares pelo movimento tenentista. Este

jornalista é deploravel. Mas a compreensão dessa

era visto como o elo comum entre eles, porque

realidade, na Argentina, já é fruto sazonado.”104

consideravam que havia uma “(...) desmoralização

Percebemos que o Diário Carioca era por si só

do Exército, oriunda da confusão governamental e

um órgão publicitário que representava uma

da indisciplina tenentista reinante nos quartéis.”

oposição ao governo provisório, contudo como

105

jornal, devemos tomar nota de que este

do Rio de Janeiro teriam se iniciado após a

representava uma camada da sociedade carioca

indisposição do interventor tenentista João

que se encontrava insatisfeita com o governo por

Alberto com os paulistas.

Ver: “DESHUMANIDADE!”, In: Diário Carioca, RJ, 14/08/1932, p. 3. 104 Ver: “O jornalista, a sociedade, o governo”, In: Diário Carioca, RJ, 30/08/1932, p. 2.

A articulação dos militares de São Paulo com os

103

HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova 105

Fronteira, 1982, pp. 42-43.


G N A R U S | 231 Se pudéssemos apontar um líder da articulação

julho de 1930, a sua lealdade ao governo

realizada no Rio de Janeiro visando a deposição do

Washington Luís. Tal recusa ocasionaria na sua

governo provisório, sem dúvidas escolheríamos o

prisão durante a revolução de 03 de outubro de

coronel Euclides de Oliveira

Figueiredo106,

nascido

1930.109

na cidade carioca no ano de 1883, teve como

Contudo a definição da participação do Coronel

exemplo seu pai que também era militar, João

Euclides Figueiredo viria em 1931, a partir da visita

Batista de Oliveira Figueiredo107. No caso do

do seu irmão Leopoldo de Oliveira Figueiredo que

Coronel

seu

residia em Santos e era ligado ao Partido

descontentamento estava tanto no movimento

Democrático (PD). Este lhe informaria a delicada

tenentista quanto no fato de considerar o atual

situação de São Paulo, e após este encontro

governo ilegal.

Euclides Figueiredo passaria articular, tanto com

Euclides

Figueiredo

o

Em 1930, após a Aliança Liberal ter perdido as eleições

para

Júlio

Prestes

uma

Janeiro quanto com os paulistas. Na noite do dia

intensificação na articulação que culminaria no

08 de julho, um dia antes do levante, Euclides

golpe revolucionário de outubro de 1930 e para o

Figueiredo viajou de carro para São Paulo e no dia

primeiro momento os conspiradores haviam

10 de julho em carta conjunta com o general

escolhido o nome de Luís Carlos Prestes108 para

Isidoro Dias Lopes, assumia a responsabilidade

assumir o comando militar do golpe, contudo este

pelas forças revolucionárias empenhadas na

recusaria a proposta. Diante da sua recusa os

constitucionalização do país.

conspiradores ofereceram

o

houve

os setores descontentes da cidade do Rio de

comando

para

Durante o conflito Euclides Figueiredo assumiu

Euclides Figueiredo que a época comandava a 2ª

importante posição estratégica. Lhe foi delegado o

Divisão de Cavalaria sediada em Alegrete no Rio

comando da 2ª Divisão de Infantaria em

Grande do Sul. Contudo, ele também recusaria a

Operações (2ª DIO), que ficou encarregada de

proposta e afirmou em carta datada do dia 21

consolidar as posições no Vale do Paraíba. O objetivo era que esta frente avançasse sobre o

106

Filho Caçula, Euclides Figueiredo ficou órfão do pai ao seis anos de idade quando passou a ser criado pela irmã, entraria para o Colégio Militar em 1893, profissão que iria seguir até alcançar o posto de general de divisão. Participou da elaboração da constituição de 1946 e foi deputado federal entre 1946 e 1951. Faleceu em Campinas no dia 20 de dezembro de 1963. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro CPDOC, doravante citado como DHBB/CPDOC. Consultado em <http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx >. Acesso em 04/08/2014. 107 João Batista de Oliveira Figueiredo fora funcionário do Tesouro Nacional, participou da Guerra do Paraguai, quando ajudou a organizar o primeiro serviço de intendência do Exército brasileiro. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 108 Luís Carlos Prestes nasceu em Porto Alegre no dia 3 de janeiro de 1898, filho de Antônio Pereira Prestes, oficial do Exército da arma de engenharia, e de Leocádia Felizardo Prestes, professora primária. Ingressou no Colégio Militar no ano de 1909 aonde daria início a sua carreira militar. Participou da Revolta Paulista de 1924, da Coluna Prestes entre 1925 e 1927, da Intentona Comunista em 1935. Ingressa na vida política participando da elaboração da constituição em 1946, exercendo o cargo de senado nos anos 1946-1948. Veio a falecer no dia 07 de março de 1990. Verbete: Luis Carlos Prestes. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014.

Distrito Federal e derrubasse o governo provisório, o que demonstra a importância de Figueiredo para o movimento. Após instalar o quartel-general da sua unidade em Lorena Euclides Figueiredo aguardaria pelos reforços vindos do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Contudo, o apoio destes estados nunca aconteceu, tendo que combater sozinho as frentes federalistas dos estados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.110 Diante do armistício entre as forças paulista e federal, Euclides Figueiredo tentaria fugir de São Paulo através de um barco de pesca em direção ao 109

Verbete: Euclides de Oliveira Figueiredo. DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 110 Verbete: Euclides de Oliveira Figueiredo, op. cit.

In:


G N A R U S | 232 Rio Grande do Sul, aonde esperava encontrar

colaborador do coronel Euclides Figueiredo

forças constitucionalistas em luta. Mas, o mau

ajudando este “na organização dos planos para o

tempo fez com que o navio aportasse em Santa

levante armado112.

Catarina o que levou a sua prisão. Posteriormente,

Antes da partida do coronel Figueiredo houvera

ele seria mandado em exílio para Lisboa (Portugal)

uma reunião no 08 de julho de 1932 entre os

ainda em novembro de 1932, aonde continuou

militares conspiradores do Rio de Janeiro, nesta

juntamente com outros 34 oficiais o planejamento

reunião ficara decidido que Figueiredo partiria de

de um novo movimento.

carro para São Paulo naquele mesmo dia enquanto

No Rio de Janeiro um dos colaboradores do

que Resende seguiria de trem, contudo Resende

coronel Euclides Figueiredo era o coronel

somente partiria no dia seguinte porque ficou

Palimércio de Resende, apesar de não ter nascido

encarregado de avisar aos outros conspiradores de

no Rio de Janeiro quando da eclosão da revolta

que o movimento teria início.

paulista este se encontrava de serviço no Distrito

Com a chegada de Resende em São Paulo este

Federal. Resende nascera no Rio Grande do Sul no

assumiu a chefia do estado-maior do quartel-

dia 13 de dezembro de 1880, ingressou na carreira

general revolucionário que era comandado pelo

em 1896 e em 1897 “matriculou-se na Escola de

coronel Euclides Figueiredo. Em praticamente

Tática e de Tiro de Rio Pardo, transferindo-se

quase todo o conflito Palimércio ficaria do lado de

depois para a Escola Militar da Praia Vermelha, no

Figueiredo, ora lutando e ora o apoiando em suas

Rio de Janeiro, então Distrito Federal, onde fez os

decisões, como no episódio em que o general

cursos de engenharia militar e de ciências físicas e

Klinger dá início às negociações com o governo

matemáticas.”111 Em 1901 Resende era aspirante-

provisório que levariam a assinatura do armistício

a-alferes sendo promovido a segundo-tenente em

e o coronel Figueiredo se opõe, Resende ainda

1907, a primeiro-tenente em 1911 e a capitão em

fazia parte do seu estado-maior.

1917. Consegue atingir o posto de major em 1923,

Com a derrota do movimento Palimércio

de tenente-coronel em 1926 e finalmente

também se exilaria no exterior ainda no ano de

chegando a coronel em 1928.

1932, só retornando ao país em 1934 após a

Na ocasião da Revolução de 1930, Resende

concessão da anistia pelo governo, Resende

servia na 2ª Região Militar do estado de São Paulo

participaria ainda de mais uma conspiração

e chegou a lutar contra os revolucionários no norte

visando derrubar o governo em 1935, entretanto

do Paraná, até a vitória do movimento. Seu

este golpe nunca aconteceu.113

posicionamento na Revolução de 1930, de não

Outro

colaborador

do

coronel

Euclides

aderir a esta, já dava indícios de que o governo

Figueiredo no Distrito Federal era o coronel Basílio

provisório não teria o seu apoio, e a sua posição na

Taborda, nasceu no Paraná no dia 20 de maio de

guerra civil de 1932 demonstra isso.

1877 e era filho de Manuel Paulino da Silva.

Em 1932 Palimércio Resende já se encontrava na

Taborda ingressou na carreira militar em 1894

cidade do Rio de Janeiro, e as vésperas da eclosão

atingindo o oficialato em 1909, chegaria ao Rio de

do movimento, Resende se tornaria um estreito 112 111

Verbete: Palimércio de Resende. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014.

Verbete: Palimércio de Resende. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 113 Verbete: Palimércio de Resende. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014.


G N A R U S | 233 Janeiro em janeiro de 1923 no posto de instrutor

onde participou do mesmo grupo do coronel

de

Euclides Figueiredo que tentava reorganizar o

armas

da

artilharia

da

Escola

de

Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), sendo

movimento armado contra Getúlio Vargas.116

promovido a major em abril do mesmo ano. No ano de 1924 após o rebento da segunda revolta

3.2 Os civis

tenentista de 05 de julho, Basílio Taborda

Havia no Rio de Janeira setores civis que estavam

apresentaria se no dia “13 de julho ao quartel-

descontentes com a situação política do país e

general da Divisão de Artilharia, por ter passado a

passaram a apoiar a causa constitucionalista,

servir como auxiliar de artilharia divisionária. No

através

dia 22 do mesmo mês foi nomeado chefe do

conspirando contra o governo. Foi o caso do

estado-maior da Brigada Coronel João Gomes, da

fundador do Diário Carioca José Eduardo de

Divisão de Operações de São Paulo, destinada a

Macedo

reprimir os revoltosos.”114

governo117.

No ano de 1931, Basílio Taborda é promovido ao

de

manifestações

Soares,

um

ou

até

grande

mesmo

opositor

do

Outro opositor foi o famoso jornalista e dono dos

posto de coronel e passa a exercer a função de

Diários

adido do Estado Maior do Exército (EME), posto

Chateaubriand

que lhe ajudaria na tarefa de recrutar adeptos para

encontrava-se conspirando contra o governo.

o movimento em constitucionalista de São Paulo.

Interessante notar a semelhança no caso de

Assim que eclodiu a guerra em julho Taborda

Chateaubriand com o de Macedo Soares, isto

viajou para São Paulo para se juntar aos paulistas

porque o primeiro havia apoiado a revolução de

em decorrência deste ato foi considerado um

1930 (como Macedo Soares) e, posteriormente se

desertor

desvinculou da base do governo provisório

e

posteriormente

reformado

administrativamente. No planejamento inicial o

Associados,

Francisco

Bandeira

de

de

Melo118,

Assis que

passando para o lado da oposição.

cel. Taborda deveria ficar no Rio de Janeiro e

O apoio de Chateaubriand iniciara antes mesmo

encabeçar o movimento constitucionalista no

da formação da Aliança Liberal (AL), pois este se

Distrito Federal, em reunião com o coronel

encontrava vinculado à política do estado de

Euclides Figueiredo, antes de este partir para São

Minas Gerais, que estava descontente pela escolha

Paulo, chegou a afirmar que em 48 horas a Vila

da candidatura presidencial de Júlio Prestes para

Militar responderia ao brado libertador de São

as eleições de 1930.119 Com a vitória de Júlio

Paulo,115 o que não ocorreu devido ao prévio

Prestes para a presidência, Chateaubriand seria um

estado de alerta do governo provisório que

dos membros da AL que apoiariam a ideia de

neutralizou o movimento armado no Rio de

atingir o poder pela revolução:

Janeiro. Já no final da guerra civil o coronel Basílio Taborda chegou a assumir o cargo de chefia da polícia de São Paulo. Com a derrota do movimento se exilou na cidade Argentina de Buenos Aires de 114

Verbete: Basílio Taborda. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 115 HILTON, op. cit. p. 76.

116

Verbete: Basílio Taborda. In: DHBB/CPDOC. Acesso em 04/08/2014. 117 Para entender melhor a posição de Macedo Soares ver as páginas 28 e 29 deste trabalho. 118 Nascido no dia 05 de outubro de 1892 era filho de Francisco Chateaubriand Bandeira de Melo e de Carmem Gondim Bandeira de Melo. Bacharelou-se em 1913 e começou a trabalhar com jornalismo para sustentar seus estudos. In Verbete: Assis Chateaubriand, DHBB/CPDOC. 119 Os mineiros apoiavam e esperavam lançar a candidatura de Washington Luís.


G N A R U S | 234

Essa orientação foi reforçada quando do assassinato de João Pessoa, em julho de 1930, ocasião em que os órgãos dos Diários Associados acusaram formalmente o governo federal de responsável pelo crime. Dentro dessa perspectiva, Chateaubriand participou das articulações preparatórias da revolução e no momento da eclosão do movimento incorporou-se às fileiras revolucionárias, deixando o Distrito Federal com destino a Porto Alegre de avião, no dia 3 de outubro de 1930. Seu avião chegou a ser detido pelas forças legalistas em Florianópolis, mas ele escapou graças ao auxílio de Nereu Ramos e conseguiu alcançar o Rio Grande do Sul, juntando-se às tropas revolucionárias em sua marcha para São Paulo.120

de

Macedo

Soares

Chateaubriand conseguiria inúmeros favores do governo

provisório,

inclusive

“vultosos

empréstimos à cadeia dos Diários Associados, através

da

Caixa

Econômica

Federal.”121

Entretanto, ele demonstraria muita preocupação com a demora do governo provisório em iniciar a elaboração da nova constituição do país. Passou a conspirar contra o governo apoiando o levante de São Paulo. Em decorrência das suas atividades sofreria o confisco da sede e da maquinaria de O

Jornal, periódico que encabeçava a cadeia dos Diários Associados e recebendo ao mesmo tempo uma ordem de deportação. Mas antes de ser deportado Chateaubriand fugiu de barco que acabou o levando para o exterior e posteriormente este o levaria para o exterior e se refugiaria no interior do país só retornando para a vida pública na Assembleia Nacional Constituinte em 1933. Podemos inferir que tanto no caso de Assis

discordar

governo.122 Outro civil que participou ativamente no movimento contra o governo provisório foi o exdiretor do Departamento de Saúde Pública do Rio de Janeiro e professor da Faculdade de Medicina doutor Manuel José Ferreira.123 O Dr. Ferreira não chegou a entrar em combate direto, contudo possuiu importante papel na luta clandestina do movimento, já que hospedava em sua casa oficiais que aderiam a causa paulista. Sua residência chegou

a

ser

chamada A

estadia

de

centro dos

constitucionalistas era temporária, porque Ferreira também elaborara o esquema de transporte dos oficiais para São Paulo: a princípio partiriam de avião de um sítio no Recreio dos Bandeirantes, também de propriedade de Manuel Ferreira. Contudo, esta opção foi logo abandonada pois na primeira tentativa houve um acidente onde morreram o piloto e os tripulantes. No final o transporte dos oficiais acontecia pelo mar, graças à amizade do médico com pescadores da região. Foi no primeiro grupo de oficiais que Ferreira ajudou no transporte que se encontra o coronel Basílio Taborda, e no “(...) total, Ferreira arranjou a fuga de mais de vinte oficiais e dois civis.” 125 Após concluir sua tarefa de ajudar no transporte dos oficiais para São Paulo Manuel Ferreira receberia uma nova missão, de vital importância para o movimento paulista. No início do mês de agosto ele fora contatado pelo general Klinger, que requisitara sua partida imediata para Nova

motivo que os levou a realizar oposição contra o governo provisório fora a demora deste no 122

Para mais vide páginas 18 e 19 do presente trabalho. HILTON, op. cit. p. 273. 124 Ibidem, p. 274. 125 Idem. 123

120 121

In Verbete: Assis Chateaubriand, DHBB/CPDOC. Verbete: Assis Chateaubriand, DHBB/CPDOC.

de

oficiais

Chateaubriand quanto no de Macedo Soares o

processo de reconstitucionalização do país, apesar

da

proximidade do movimento tenentista com o

conspiração124. Após a revolução se tornar vitoriosa Assis

também


G N A R U S | 235 York, nos Estados Unidos, com o objetivo de comprar material bélico para a causa paulista.126 No final a viagem de Manuel Ferreira para os Estados Unidos, terminou por ser

improdutiva127,

Para que pudéssemos responder se havia ou não uma oposição ao governo provisório no Distrito Federal durante a guerra civil de 1932. Antes de mais

nada,

precisávamos

identificar

as

mesmo com a estadia deste no país até o final do

insatisfações que levavam a tal posicionamento

conflito.

político no contexto histórico do período, diante

Ao término deste capítulo podemos inferir que o

da complexidade do momento político que o país

apoio direto ou indireto de alguns civis e militares

se encontrava na época. Assim, procuramos

do Rio de Janeiro, nos demonstra que havia

elencar as principais insatisfações de grupos

significáveis setores da sociedade civil se opondo

específicos da sociedade brasileira como um todo,

ao governo federal e apoiando a causa paulistana

pudemos observar então que, havia descontentes

ou no mínimo de que havia um descontentamento,

com a política de centralização realizada pelo

e ou desaprovação, da política realizada pelo

governo provisório, o que acabava diminuindo a

governo provisório. Outra possibilidade também e

autonomia

pudessem fazer parte de setores privilegiados da

desdobramento desta primeira insatisfação era o

primeira República e que acabaram perdendo as

fato de que a ascensão de Getúlio Vargas ao

suas benesses com advento da Revolução de 1930.

comando do governo provisório acabava alijando

dos

tradicionais

poderes

locais,

do poder político grupos que haviam dominado o CONCLUSÃO

cenário da primeira república. A questão da reconstitucionalização do país com

Acreditamos que um bom trabalho acadêmico, assim como em outras atividades do cotidiano, pode ser considerado satisfatório quando atinge os objetivos a que se propôs no primeiro momento, no nosso caso num determinado projeto. Diante de tal posição para concluirmos retomaremos as duas perguntas iniciais que nortearam este trabalho.

o passar do tempo de fato gerava um desconforto na sociedade, de modo que havia setores oposicionistas por conta disso, apesar de como vimos no primeiro capítulo deste trabalho que a ausência de uma constituição não era o principal motivo do levante militar em São Paulo e sim a perda

de

autonomia.

Todavia

a

reconstitucionalização do país era vital para alguns indivíduos

desta

sociedade

como

Assis

Chateaubriand e o fundador do Diário Carioca, 126

Para que os conspiradores se comunicassem com São Paulo fora montada no Rio de Janeiro na região de Jacarepaguá uma estação de rádio clandestina, que mais a frente seria descoberta pela polícia do estado. HILTON, Stanley E. A

Guerra civil brasileira: História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, pp. 274-291. 127 Primeiramente Ferreira teria dificuldades em negociar devido a falta de dinheiro e posteriormente até conseguiu comprar armas e munições que seriam transportado via um navio, que também teve que ser adquirido, contudo a negociação demorara demais o que impediu que o carregamento chegasse a tempo, na verdade o navio zarparia de Nova York somente em dezembro de 1932 sendo que guiado por tripulantes do governo federal . HILTON, Stanley E. Op.cit, pp. 290-292.

José Eduardo de Macedo Soares. Entretanto um dos principais motivos de grande descontentamento tanto de grupos da sociedade civil quanto militar, era o movimento tenentista e a presença constante destes no governo provisório até então. Pudemos notar então que no caso específico do Distrito Federal, fica claro que o antitenentismo era fator preponderante, ao menos nos casos estudados por nós, tendo em vista que o


G N A R U S | 236

Diário Carioca havia sido empastelado em

Bibliografia

fevereiro de 1932 por ter criticado o Club 03 de

Arnon de Melo e Dantom Jobim. LAGE, Nilson; FARIA, Tales e RODRIGUES, Sergio. Diário

Outubro e também tendo em vista que houve um número significativo de militares do Distrito Federal que aderiram a causa paulista por desaprovarem o movimento entre outras o movimento tenentista. Depois de termos identificado às insatisfações da oposição pudemos encontrá-las no

Distrito

Federal tanto no periódico Diário Carioca, estudado por nós, quanto em determinado indivíduos desta sociedade. O que nos respondeu que sim havia uma oposição no Rio de Janeiro ao estado provisório e, também, inúmeros motivos que levaram a uma posição de oposição. No que diz respeito às formas de manifestação da oposição no período da guerra entre a união e São Paulo, podemos dizer que foram variadas, iam desde a participação direta no levante como fizeram os coronéis Basílio Taborda e Euclides Figueiredo, ajudando a transportar os militares sediciosos até o estado de São Paulo como foi o caso do Dr. Manuel José Ferreira ou até a publicação de matérias que punham a culpa do levante armado no governo provisório ou que criticavam indiretamente o governo e que em decorrência disso provavelmente teria sofrido uma censura prévia. Para além das questões acima terminamos este trabalho com outra constatação que consiste na necessidade de legitimação do governo provisório, e que o conflito de 1932 quando analisado de uma perspectiva do Distrito Federal nos demonstra que haviam outras possibilidades de governo que não aquela representada por Getúlio Vargas no poder. Felipe Castanho Ribeiro é Licenciado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e especialista em História do Brasil pela Universidade Estácio de Sá.

Carioca: o primeiro degrau para a modernidade. Estudos em Jornalismo e Mídia,

Universidade Federal de Santa Catarina, Vol. I Nº 1 - 1º Semestre de 2004. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/jornalis mo/article/view/2195/3931> consultado em 11 de maio de 2014. BARROS, José D’Assunção. Teoria e Metodologia –

Algumas distinções fundamentais entre as duas dimensões, no âmbito das Ciências Sociais e Humanas. In: REVISTA ELETRÔNICA DE

EDUCAÇÃO. São Carlos (SP): Universidade Federal de São Carlos, Programa de PósGraduação em Educação, 2007. Semestral. ISSN 1982-7199. Disponível em: http://www.reveduc.ufscar.br. Acesso 31/07/2014. _______________________ O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011 BORGES, Vavy Pacheco. Tenentismo e Revolução Brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. CAPELATO, Maria Helena. O movimento de 1932 a causa paulista. São Paulo: Brasiliense, 1981. CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997 FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: História e historiografia. São Paulo: Companhia das letras, 1997. HILTON, Stanley E. A Guerra civil brasileira:

História da Revolução Constitucionalista de 1932. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. LOPES, Raimundo Helio. Os batalhões provisórios: legitimação, mobilização e alistamento para uma guerra nacional (Ceará 1932). Dissertação

de mestrado. UFC, 2009. LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas.São Paulo: Contexto, 2005. M. do Pilar de A. Vieira et al. Imprensa como fonte para a pesquisa histórica. Revista PUCSP, consultado em <http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/arti cle/viewFile/12495/9064>. Acesso em 29/07/2014. PANDOLFI, Dulce. O anos 1930: as incertezas do regime. In FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano II – O

tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. Livro II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.


G N A R U S | 237 SILVA, Hélio. 1932 A guerra paulista. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967. Fontes Citadas Jornais Diário Carioca, Rio de Janeiro A Federação, Rio Grande do Sul. Diário pessoal de Getúlio Vargas PEIXOTO, Celina Vargas do Amaral, Getúlio Vargas: Diário, Volume I (1930-1936). Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995. Decreto nº 21.402. Consultado em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/19 30-1939/decreto-21402-14-maio-1932-518100publicacaooriginal-1-pe.html> acessado em 27/07/2014.


G N A R U S | 238

Resenha

UM CONVITE A LEITURA DE “A FORMAÇÃO DAS

ALMAS: O IMAGINÁRIO DA REPÚBLICA NO BRASIL”

Por Fernando Gralha

CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

P

odemos começar dizendo que José Murilo

um estudo da prática política desta mesma elite. No

de Carvalho, professor titular da cadeira de

livro seguinte “Os Bestializados – O Rio de Janeiro e

história da URFJ, e um dos mais respeitados

a república que não foi”, agrega à preocupação

estudiosos do processo da Proclamação da

com a construção do estado, o problema da

República brasileira, ao produzir o livro aqui

construção da nação, onde é discutida a atitude da

resenhado, compôs uma obra que envolve um vasto

população diante do poder, temática esta que tem

saber histórico e teórico, estilo claro e criatividade

continuidade na obra aqui resenhada, onde o autor

intelectual, onde o autor proporciona ao leitor uma

faz uma reflexão sobre a tentativa do novo governo

estimulante interpretação do período, que tem por

de recriar o imaginário nacional e da reação

objetivo

popular a essa tentativa.

principal

discutir

o

“porquê”,

e

fundamentalmente, “como” foi a disputa entre as elites na tentativa de submeter ao processo imaginário do país a justificação e legitimação racional da estrutura do novo regime republicano.

“A formação das almas: o imaginário da república no Brasil” apesar do título, não nos fala apenas sobre um, ou "o" imaginário da República, mas sim sobre o embate dinâmico para a construção de

A obra tem ligação com outras obras de José

imaginários e seus respectivos símbolos. Esse

Murilo de Carvalho cujo tema são a construção da

sentido, aliás, é essencial no desenvolvimento do

identidade nacional, em “A construção da ordem e

texto, que procura mostrar sempre as mediações e

Teatro de Sombras” 1 , o autor faz uma análise da

os conflitos existentes na criação e consolidação

constituição e composição da elite política

dos principais símbolos republicanos.

imperial, suas metamorfoses durante o período e

1

Livro já resenhado aqui na Gnarus número 3.


G N A R U S | 239 A obra, é composta por uma mistura de ensaios já

tratar do imaginário do "fato", ou seja, da

publicados ao lado de artigos inéditos, e mesmo

proclamação da República propriamente dita, José

assim apresenta extrema coerência interna,

Murilo analisa a construção de um mito de origem

conseguindo explorar muito bem o objeto

da República brasileira na figura de Tiradentes,

proposto.

resgatado como uma espécie de "Cristo cívico",

O livro é um excelente exemplo da renovação da historiografia tradicional ao se utilizar de diversos elementos formadores deste imaginário nacional, do trabalho interdisciplinar e do uso de fontes ainda

hoje

pouco

utilizadas,

como

telas,

símbolo de um herói criado sob medida para conquistar corações e mentes, além de elencar e refletir sobre as apropriações feitas por diferentes (e até mesmo divergentes) grupos sociais. A fase seguinte, mostrada na obra, tratam dos

monumentos, caricaturas,

esforços de elaboração de

charges, literatura, música

uma simbologia voltada

etc, ou seja, elementos

mais diretamente para a

ligados

produção

própria República, que

cultural. Talvez seja este o

fosse capaz de estabelecer

grande mérito da obra, a

uma

análise

República e Brasil, Estado

políticos

à

dos

conflitos

através

dos

ligação

entre

e Nação; isto implicou na

elementos simbólicos no

“importação”

papel de legitimadores de

"Marianne"

um

republicano francês, que

regime,

de

um

modelo

determinado status quo,

em

de

adquiriu a figura da musa

uma

determinada

organização social.

de

capítulo

um estudo minucioso dos políticos

República e o consequente impasse simbólico (advindo das lutas pela criação de um imaginário social entre as diferentes correntes políticofilosóficas) demonstrado no cenário da passagem do Império para a república e tendo como personagens, liberais, jacobinos e positivistas. Após

José

transformação

o positivismo, examinando tanto o processo de por

faz uma análise das diversas proclamações da

seguinte

então, a produção e\ou

filosóficos que nortearam

adaptação ocorrida neste processo. Em sequência,

Comte,

Murilo passa a discutir

e

em prática estes modelos no Brasil, como a

Auguste

ocasiões

Clotilde de Vaux. No

José Murilo de início faz modelos

várias

de

dos

símbolos formais do hino nacional e da bandeira, indispensáveis em qualquer Estado, que acabaram representando muito mais a imagem do Brasil enquanto nação do que da República enquanto Estado. Findando a obra, o autor retoma as questões anteriores, dando primazia a aplicação e influência dos modelos filosóficos de Comte no Brasil,

promovendo

uma

reflexão

sobre

a

construção de um imaginário da República capaz consolidar o Brasil enquanto Nação.


G N A R U S | 240 No

processo

de

construção

histórica

da

popular. Desta forma, o imaginário de República

República, o mais relevante não é a proclamação

criado e difundido pelos positivistas não teve

em si, mas sua construção, mediada politicamente

penetração popular, não apenas pela inexistência

enquanto memória, processo este demonstrado

de uma comunidade de sentido, como defende o

num percurso de criações simbólicas do fato, do

autor, mas, também, porque para a classe popular a

mito, da coisa em si e dos símbolos oficiais, nos

República em si pouco representou, uma vez que

quais as correntes políticos-filosóficos confrontam-

não foram agentes ativos do processo.

se em todos os momentos da construção do imaginário e dos símbolos da República do Brasil. Desta forma, o passado tangível perde espaço em relação às suas representações.

Por fim, os méritos da análise do Profº J.M. Carvalho se guardam, a nosso ver, em dois pontos: Primeiro, em estudar, através de uma nova ótica, uma realidade já bastante estudada, contribuindo

José Murilo de Carvalho deixa claro que todo o

assim, para a rediscussão de certas “verdades”

processo relativo à proclamação e consolidação da

sobre o período. Segundo, faz isso combinando

República foi idealizado pelas elites participantes

vasto instrumental teórico com erudição histórica.

do Estado, seja como dirigentes, seja como

É este último ponto que, unidas ao brilhantismo e à

opositores. A participação popular, quando ocorre,

profundidade já conhecidas de suas interpretações,

exerce

ou

torna os livros de José Murilo de Carvalho, algo bem

legitimadora do interesse de algum grupo. A

mais do que um relato de “como” as coisas

elaboração, os embates pela consolidação e o

aconteceram e, uma referência imprescindível para

próprio alcance do imaginário republicano, ficaram

a compreensão das complexas relações entre

limitados a seus idealizadores e participantes. O

Estado e Sociedade no Brasil.

apenas

uma

função

decorativa

resultado desejado, que deveria ser obtido com o imaginário republicano, capaz de fazer a junção entre Nação e Estado, não ocorreu, graças ao

Fernando Gralha é Editor da Gnarus Revista de História e Professor das Faculdades Integradas Simonsen, UCAM e UNIRIO.

distanciamento deste último para com a realidade

Specimen da cédula de 2 mil-réis da 11ª estampa do Tesouro Nacional – Brasil (1918-1950) impressa pela American Bank Note Company de Nova York - ABNCo


G N A R U S | 241

Equipe de Redação: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS) Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Graduanda Cindye Esquivel (FIS)

Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Profº. Felipe Castanho (UGF/FIS) Prof. Dr. Julio Gralha (UFF) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Rodrigo Amaral (UCAM/FIS) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS)

Apoio:  Faculdades Integradas Simonsen (FIS)  Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP)  GELHIS – Grupo de Estudos da Licenciatura em História


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