ANO III - Nº 6 - DEZEMBRO - 2015
GNARUS
Revista de História - ISSN: 2317-2002
MULHER
HONRAROCK
IDENTIDADE
ÁFRICA GUERRA
INQUISIÇÃO
MORTEDEUS PEC ADO FAVELA HISTÓRIA CINEMA
MAGREB
NEGROS
VIDA
HERÓI
MÍDIA
MÚSICA
QUADRINHOS MEMÓRIA
PAULO DE TARSO
PIERRE VERGER
FOTOGRAFIA
LEGENDA ÁUREA
MEIO-AMBIENTEPARAÍSO
G N A R U S |2
Equipe de Redação: Editores: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS) Pesquisa: Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Profª Cindye Esquivel (FIS) Prof. Renato Lopes (UNIRIO) Graduando Rafael Eiras (UCAM)
Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Profº. Felipe Castanho (UGF/FIS) Prof. Dr. Julio Gralha (UFF) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Rodrigo Amaral (UCAM/FIS) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS)
Apoio: Faculdades Integradas Simonsen (FIS) Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP) Grupo de Estudos da Licenciatura em História - GELHIS
Revista Eletrônica Acadêmica/Gnarus Revista de História. Vol.6, n.6 (jul – dez 2015). Rio de Janeiro, 2015 [on-line]. Semestral. Gnarus Revista de História Disponível no Portal Simonsen em: www.gnarusrevistadehistoria.com.br ISSN 2317-2002 1. Ciências Humanas; História; Ensino de História
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Sumário Ao leitor .................................................................................................................................................................................................................. 4 Fernando GralhaErro! Indicador não definido.
ARTIGOS:
A construção de um herói humanizado no séc. VIII-V AEC. ......................................................................................................................... 5 Artur Vítor de Araújo Santana Erro! Indicador não definido. Meio ambiente nos anos 1970 – aspectos e reflexões sobre um conceito em (re)construção ............................................................. 16 Cássia Natanie Peguim Entre o contraste e o equilíbrio, Kemet e Duat: considerações sobre a vida e a morte no Egito Antigo ............................................ 23 Keidy Narelly Costa Matias A busca pelo saber: mulheres escritoras na Inglaterra do século XVIII ..................................................................................................... 29 Damaris Lima A origem do debate sobre o deus único e o surgimento da ideia da trindade no âmbito cristão (séculos III e IV D.C.) .................. 36 Flávio Henrique Santos de Souza Da civilização dos trópicos à barbárie das favelas cariocas ......................................................................................................................... 46 Dunstana Farias de Mello Entre o paraíso e o inferno: o “terceiro local” nas obras de Le goff e Vovelle ......................................................................................... 61 Airles Almeida dos Santos Griot: a memória da África ................................................................................................................................................................................ 72 Fernando Augusto Alves Batista Dentadura postiça: o rock durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) ................................................................................ 83 Gustavo Silva de Moura Identidade cultural, discriminação e preconceito ........................................................................................................................................ 92 Daiana Ximenes de Menezes e Cristiane Chaves de Oliveira Primeira visitação do santo ofício: o impacto sócio religioso na cultura brasileira sec. XVI.................................................................. 99 Luana Batista dos Santos Globalização e neoliberalismo na América Latina: limites entre teoria e prática .................................................................................107 Marco Antonio Correia de Carvalho Música e consumo: a industrialização da cultura ........................................................................................................................................114 Marília Luana Pinheiro de Paiva Da doutrina à parede: os sete pecados capitais representados em pinturas parietais inglesas..........................................................120 Amanda Basílio Santos Relendo Paulo. Reflexões metodológicas para os estudos paulinos ........................................................................................................129 Juliana B. Cavalcanti Traços guerreiros presentes na santidade da Legenda Áurea: algumas questões introdutórias ........................................................136 Leilane Araújo Silva Premissas, hipóteses e evidências: um olhar sobre o Magreb medieval .................................................................................................147 José Wilton Santos Fraga
ENTREVISTA
Bruno Leal...........................................................................................................................................................................................................153 Fernando Gralha e Cindye Esquivel
COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA
Para ler o cinema...............................................................................................................................................................................................160 Renato Lopes
COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA
A fotografia de Pierre Verger: Magia e produção de sentido. ..................................................................................................................163 Rafael Eiras
COLUNA: A HISTÓRIA NOS QUADRINHOS
O Eternauta ........................................................................................................................................................................................................170 Renato Lopes
RESENHA
Um convite a leitura de “O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa”.......................................................................175 Alex Rogério Silva Um convite a leitura de “Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia” .......................179 Geraldo Magella de Menezes Neto
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AO LEITOR
S
e de início na sua história o homem necessita de
a linguagem, o homem torna-se impossibilitado de
crenças e juízos prontos (nas formas de senso comum
compreender e atuar sobre o mundo que o cerca.
ou mito) a fim de serenar a agonia diante do caos e
Esta é uma de nossas ambições, uma ode ao pensamento
adquirir garantias para agir, com o tempo viu que ele
expresso na palavra, na linguagem. Se a palavra, que distingue
seja capaz de “reintroduzir o caos”, criticando as certezas e
o homem de todos os outros seres vivos, se encontra
verdades sedimentadas, abrindo frestas e fendas no “já
fortalecida na possibilidade de expressão, é o próprio homem
sabido”, de maneira a impetrar novas interpretações da
que se humaniza. Além disso, para que o distanciamento da
realidade.
ação seja possível, o homem faz uso da atividade coletiva, e na
Todo conhecimento oferecido tende a esclerosar-se no
linguagem da Gnarus que ao representar o mundo na palavra
costume, nos clichês, na superstição, no preconceito, no rigor
acadêmica, faz presente no pensamento o que está ausente e
das “escolas”, nas ideologias, no tempo. Esse conhecimento
comunica-se com o outro, com o mundo e o homem. Assim
deve ser revigorado pela construção de novas hipóteses e pelo
sendo, nosso trabalho se realiza então.
despertar de novas sensibilidades. É pelo empenho resultante
Nos trabalhos deste número, a palavra de nossos
do questionamento, que o saber tende a se tornar cada vez
colaboradores nos leva a muitos mundos, o dos vivos, o dos
mais complexo, geral e abstrato, que a razão forma o trabalho
mortos, o dos heróis, das mulheres, dos deuses, da barbárie,
de conceituação. A atuação do homem, de início fixada ao
da música, da política, dos pecados, dos guerreiros e muitos
mundo, é lentamente esclarecida pela razão, que consente
outros. Portanto buscamos somente um pouco de ordem para
“viver em pensamento” a circunstância que ele anseia
nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais aflitivo do
compreender e transformar.
que um pensamento que esquiva a si mesmo, ideias que
Este processo se dá no campo da representação máxima que
escapam, que esvanecem apenas tracejadas, já desgastadas
é a palavra, é pela palavra que somos capazes de nos colocar
pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também
no tempo, lembrando o que aconteceu no passado e
não dominamos.
antecipando o futuro pelo pensamento. Se a linguagem, através da representação simbólica e abstrata, permite o distanciamento do homem em relação ao mundo, ao mesmo tempo é o que permitirá seu retorno ao mundo para modificálo. Logo, se não tem oportunidade de desenvolver e aprimorar
1
Sobre o A-Letheia ver “Ao Leitor” Gnarus, nº 1.
Venham mais uma vez a navegar rumo ao A-Letheia.1
Fernando Gralha
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Artigo
A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI HUMANIZADO NO SÉC. VIII-V AEC Por: Artur Vítor de Araújo Santana
Resumo: No presente trabalho, busco construir uma imagem dos heróis gregos, estes que são seres de contradição, pois ao mesmo tempo que são mortais, possuem uma maior aproximação com o divino, já que em sua maioria são descendentes dos olimpianos. Procuro delimitar quais seriam as características humanas ou imortais presentes nos heróis, estabelecendo um paralelo entre as epopeias e as tragédias, tendo principalmente Romilly e Viera como referencial teórico.
Palavras-chave: herói; mortal; divinizado; epopeias; tragédias.
Odisseu e as Sereias, de John William Waterhouse, 1891.
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A edificação de um
exemplo da coragem,
herói e a herança
força,
astúcia
ou
homérica.
ainda
pela
sua
generosidade,
se
T
distanciam destes por
endo origem na
não
palavra
grega
‘hrvV
(íroias), o termo herói
p.87),
“homens divinizados
imortalidade.
Por
suas
fragilidades,
pois
destruiria-se forma,
essa
aura divinizada que
se prestava culto”
esses heróis tentam
mas a partir das
construir em volta de
de o
da
dessa
a quem após a morte,
Homero,
característica
ao máximo esconder
acordo com Romilly
influências
a
esse motivo, tentam
em grego designa, de (1970-2001,
possuírem
si mesmos.
termo
passou a transmitir o
O mérito heroico
ideal de homens sem
não se restringe a um
defeito
perfil guerreiro, pois
“praticamente
suas
imbatível, sublime no vigor
e
generosidade”,
na como
Representação de Héracles numa cratera grega do século V a.C., portando o seu arco, a sua clave e a pelo do leão de Neméia. Detalhe de Nióbidas, Museu do Louvre, Paris.
nos traz Viera,1 em seus
habilidades
divinas vão além da força textos
física.
Nos
homéricos
poderíamos citar alguns
comentários sobre a tragédia Héracles,
modelos desse ideal, como por exemplo, a
escrita por Eurípedes.
astúcia de Odisseu, que com o constante
Apesar desses semideuses persistirem na condição humana, sendo esses ideais transmitidos para o período clássico, esses heróis se tornam dessa forma, seres de contradição, pois ao mesmo tempo que estão próximos dos deuses olimpianos, através de suas habilidades grandiosas, a
VIEIRA, 2014A, p.144 Odisseia, Canto IX, vv. 216-566; 3 Idem, Canto X, vv. 275-555;
auxílio de Atena, leva a melhor sobre diversos oponentes, a exemplo de Polifemo2, Circe,3 as sereias4, Cila e Caríbdis5, entre outros. Assim como a generosidade de Heitor, que por seu irmão entra em batalha contra Pátroclo, pensando que seria Aquiles, pelo fato de estar usando a armadura do
1
4
2
5
Idem, Canto XII, vv. 156-200; Idem, Canto XII, vv. 223-262;
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pélida (presente de sua mãe, Tétis) tendo Heitor
a
vitória6.
Esse
fato
ocorreu
principalmente pela ajuda de Apolo, e mesmo não tendo linhagem divina, o troiano torna-se um grande herói.
dependem de sua vitória, pois ao serem derrotados, os habitantes da urbe estão sujeitos a escravidão ou a morte. Mesmo fazendo parte de um mundo humano, já que “nem toda magnitude
Por possuir esse desejo de alcançar o
heroica reúne forças suficientes para
estado divino, esses humanos estavam
enfrentar a enigmática instabilidade do
sempre preparados para a morte, desde que
destino divino”,8 pois constituem um grupo
ela ocorresse de forma honrosa, pois apenas
privilegiado,
dessa forma seriam eternizados. Essa glória
descendentes do trono, coincidindo dois
seria alcançada em batalha e nela, libertaria
importantes ideais, o de “nobre rei e
a sua coragem e força total, porquanto ao
poderoso guerreiro”.9
pressentir
a
proximidade
da
morte,
orgulhavam-se de matar ou de morrer, desde que fosse de uma maneira digna, que ocorreria através de algum duelo com um oponente a sua altura, surgindo dessa forma uma espécie de ligação com seu adversário, já que ambos entram de corpo e alma no combate, sendo essa a concepção de bela morte presente em Homero, onde “todos os heróis [...] vangloriam-se de seu feito, francamente e sem reservas”.7 Essa infinda coragem, se destaca entre os heróis, principalmente em tempos de guerra, quando vão defender sua pólis, quando sedentos de sangue lutam em defesa de suas mulheres, crianças e pelos anciões, que ficam nas cidades gregas, assim como todos seus bens. Nesse momento, não é apenas a busca de renome ou glória que se destaca, mas a proteção de seus entes queridos, que
Ilíada, Canto XVI, vv. 581-867; ROMILLY, 2001, p.93 8 VIEIRA, 2014A, p.150 9 ROMILLY, 2001, p.88 10 De forma sucinta, busquei identificar os personagens que mais se sobressaem tanto na Odis6 7
são
em
geral
reis
ou
Tanto nas epopeias, quanto nas tragédias, existem diversos personagens que se enquadram nessas características. Pode-se citar Odisseu (rei de Ítaca), Agamenon (rei de Micenas), Menelau (rei de Lacedemónia ou Esparta), Ájax (príncipe de Salamina), Aquiles (príncipe dos Mirmídones), Heitor (príncipe de Troia), Telêmaco (príncipe de Ítaca)10, entre outros. Que além do participarem da aristocracia,
carregam
consigo
feitos
grandiosos. Apesar da grandiosidade presente nesses humanos, os semideuses estavam em conformidade
com
um
“código
de
conduta”11, que disseminava algumas regras, as quais um herói não deveria fazer. Entre esses ideais pode-se destacar características como “fugir, bem entendido, mas também lesar outrem, faltar à sua palavra, matar voluntariamente,
trair”12
que
era
seia, como na Ilíada, assim como traçar sua região de origem, que também equivale a pólis que os heróis têm domínio político. 11 ROMILLY, 1970, p.92 12 Idem, 2001, p.92
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Corpo de Heitor sendo levado de volta a Troia – Alto relevo em mármore, detalhe de um sarcófago romano do século II, atualmente no Museu do Louvre. internalizado no íntimo de cada um desses
comum14, mas também sua aparência, já que
indivíduos, a ponto de que, ir contra a esse
são em sua maioria descendentes divinos,
código os aproxima da mortalidade e do
levando a sociedade grega a imagina-los
caráter humano, que os inferioriza dos
como uma representação dos deuses
deuses.
olimpianos na terra. Essa representatividade imagética que os
A divindade heroica; Vernant sintetiza a aparência heroica como “homens diferentes daquilo que são hoje: maiores, mais fortes, mais belos [...] é a raça de homens agora extinta”.13 Essa citação nos introduz a uma nova perspectiva voltada para os heróis, em que, não apenas suas habilidades os diferem da população
VERNANT, 2006, p.47 Homens sem nenhuma herança divina, mais distante dos olimpianos do que os heróis, que 13 14
semideuses ocupavam nas pólis gregas, criava o que Vernant denominou de “estatuto heroico”15, que seria a “promoção de um mortal a um estatuto, se não divino, pelo menos próximo do divino”,16 o que resultou
no
surgimento
de
diversos
santuários dedicados aos heróis, onde eram realizados sacrifícios e festividades. A importância desses mortais chegou ao ponto possuem uma relação com uma maior proximidade a essas divindades. 15 VERNANT, 2006, p. 48 16 Idem
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de denominar cidades e patrimônios, em
onde ao serem cultuados, vão aos poucos se
homenagem a seus grandiosos feitos.
imortalizando.
O culto desses heróis nas cidades, em altares ou no próprio sepulcro desses mortais, ficava sobre a responsabilidade do Estado, que possuía um caráter religioso, mas o culto heroico não se igualava aos rituais destinados ao divino, exercendo esses semideuses um papel de intercessores, onde “de um lado em relação ao culto divino, obrigatório para todos e de caráter permanente, e de outro em relação aos ritos funerários, reservados [...] a instituição heroica”17 constituindo um equilíbrio entre as adorações entre esses semidivinos e as divindades. Nesta outra citação de Vernant,18 pode-se observar que
“O rito aciona a mesma experiência do "divino" em geral, como potência supra –humana (to kreítton). Esse divino indeterminado, em grego tà thefon ou tà daimónion, subjacente aos deuses específicos, diversifica-se em função dos desejos ou dos temores aos quais o culto deve responder.”
Essa “heroicização”19 parte do pressuposto de que
“Os personagens heroicos cujos nomes sobrevivem e cujo culto era celebrado em seus túmulos apresentam-se muito frequente como o fruto desses encontros amorosos entre divindades e humanos dos dois sexos” 20 E dessa hierogamia21, nasce indivíduos que apesar de sua condição mortal, estão “mais próximos dos deuses, menos separados do divino do que a humanidade atual”.22 Podemos
citar como exemplo dessas
relações nas tragédias, a união Zeus e Alcmena23, que deu origem a Herácles. Não era apenas no nascimento que esses semideuses se destacavam,
dos rituais destinados aos heróis não se
“A morte também os coloca acima da condição humana. Em vez de descerem as trevas do Hades, eles são, graças ao divino ‘arrebatados’, transportados, alguns ainda vivos, a maioria após a morte, para um lugar especial, afastado, para a ilha dos Bem-Aventurados, onde continuam a gozar em permanente felicidade, de uma vida comparável à dos deuses”.24
igualarem aos prometidos aos deuses, há
Um exemplo da importância do culto
uma ascensão do caráter mortal dos mesmos,
heroico, pode ser observado na Odisseia,
Dessa forma, podemos notar que apesar
Canto XI, vv. 482-486, onde Odisseu
Idem, p.45 Idem, p.23 19 VERNANT, 2006, p. 49 20 Idem, p.48 21 “União sexual entre uma divindade e um indivíduo mortal” (GUERRA, 2008, p. 64), mas nunca revelando o imortal, sua potência divina ou levaria o ser humano a morte, sendo esse um dos motivos de Zeus se metamorfosear em algum animal para realizar o coito com suas pretendentes, a exemplo de Europa, que transformado em 17 18
um touro, a rapta e a leva para ilha de Creta, onde a desposou. 22 VERNANT, 2006, p.48 23 Segundo o mito, a mulher mais bela da terra, o que despertou os ciúmes de Hera, que culminaram com o surgimento do ódio destinado ao fruto da relação da mortal com seus esposo, Zeus, criança que veio se chamar Héracles (HÉRACLES, p.127, vv. 1.258-1.264) 24 VERNANT, 2006, p.48
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hidra. Obrei muitíssimo até descer ao mundo cadavérico, pois que Eurismeu mandara resgatar o cão tricéfalo, postado no Hades”.28
encontra com Aquiles no Hades, quando foi consultar Tirésias, a conselho de Circe, anunciando ao Pélida sua supremacia sobre os mortos, onde
Na “ordem hierárquica [...] no topo, os
“És o mais bem-aventurado no presente e no futuro: vivo, nós, argivos te rendíamos honores dos divinos; hoje, é enorme o teu poder restando entre os cadáveres aqui. Não te aniquile, Aquileu, a morte!” Apesar
de
possuírem
uma
theoí, os deuses grandes e pequenos, que formavam a raça dos Bem-aventurados imortais”29, possuíam uma superioridade diante dos mortais, e mesmo assim em um momento de fúria, Héracles renuncia os
posição
deuses, em sinal de repúdio a suas
privilegiada em relação aos outros mortais,
interferências na vida do mesmo, exaltando-
nada se compara aos tempos de renome e
se a Teseu, já que apesar de tantas provações,
glória, o que pode ser percebido no decorrer
ele mantem-se vivo, além de outro fatos que
do diálogo entre Odisseu e Aquiles no
o leva a negar a proteção divina.30
Hades, quando este último responde ao Héracles acredita que se “um deus, se é
Laércio que
deus, de nada necessita”,31 por esse motivo
“não queira embelezar a morte, pois preveria lavrar a terra de um ninguém depauperado, que quase não tem o que comer, a ser o rei de todos os defuntos cadavéricos”.25
não mereceriam de oferendas, rituais ou
Preferindo Aquiles dessa forma, ser um
idem”,32 dessa forma, se os olimpianos
criado de um pobre agricultor, do que rei dos
lançarem castigos sobre Héracles por sua
mortos, sendo um dos motivos para tal
oposição ao Olimpo, mas rude ele seria com
conclusão, a falta de informações sobre sua
as divindades.
família, em especial seu
pai26
e seu
festividades, pois sua imortalidade já seria o suficiente para se auto satisfazerem. E se por acaso os “deuses são duros e eu, com eles,
filho27. Héracles: A condição e a dor mortal;
Além dos benefícios que possuem os heróis, Mesmo com esse processo de divinização,
existe suas características divinas e com o auxílio delas, surgem os feitos grandiosos, como cita Herácles:
o
herói
persiste
comumente
passa
na
mortalidade,
e
por
momentos
de
provações, onde seu lado humano vem à
“Houve leões ou hordas de quadrúpedes centauros ou gigantes ou tifões tricorpos que eu não tenha trucidado? Dei cabo da cadela cujos crânios sempiespocavam, a ODISSEIA, Canto XI, vv. 487-491 Peleu; 27 Neoptólemo; 28 HÉRACLES, p.127, vv. 1.271-1.278 29 VERNANT, 2006, p. 53 25 26
“Não te irrites ancião, pois eu renego, ó pai, o olímpio” (HÉRACLES, p.127. vv. 1.264s) 31 EURÍDES, p. 61, vv.1.344 32 EURÍDES, p. 61, vv.1,243 30
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tona33, tomando o luto como ponto de
importante papel desempenhado pelo deus
partida.
em sua vitória.
Podemos perceber que,
Em contraposição a dor divina que é
“A imortalidade, que traça entre homens e deuses uma fronteira rigorosa, é um traço demasiadamente fundamental do divino para que o senhor do Olimpo possa ser assimilado de algum modo a uma daquelas divindades orientais que morrem e renascem.”.34
devastadora e permanece por um período mais longo, apesar de ser um fato muito raro, em contraposição “a dor humana é mais frequente, mas não é evocada com tanta força”.37 Podemos tomar como exemplo de um luto
Dessa forma, a imortalidade torna-se uma
divino, a morte de Sarpédon, filho de Zeus
barreira entre o que é ser herói e o que seria
com Europa, rei dos Lícios, que foi morto pela
o divino, por esse motivo os deuses
lança de Pátroclo38. Quando a divindade
constantemente
percebeu que o destino de seu filho seria a
estão
lembrando
os
semideuses dessa sua característica, como forma
de
se
sobressair
diante
morte, o mesmo resolveu interferir,
da
“Pobre de mim o Destino asselou que o mais caro dos homens o meu Sarpédon tombe hoje aos golpes de Pátroclo exímio! O coração sinto agora indeciso entre dois pensamentos: levá-lo-ei para longe da pugna lugente e o coloco neste momento com vida entre o povo opulento dos Lícios ou deixarei que o vigor lhe despoje o viril Menecíada?”
mortalidade. Esses heróis são continuamente testados, principalmente por intervenção divina, por esse motivo “as preces, os sacrifícios, as oferendas nunca são negligenciadas. A observância destas regras vale aos heróis a
39
amizade dos deuses”,35 pois através desses sacrifícios, eles alcançam que esses seres
Mas observando a insegurança do esposo e
divinizados os protejam e os garantam atos
a escolha que estava prestes a tomar, Hera o
gloriosos como vimos frequentemente nas
lembrou da lei que impossibilitava a
tragédias, a exemplo de Héracles, no livro As
interferência divina na vida dos mortais
Traquínias, de Sófocles, que ao concluir os
durante a guerra, o que poderia desencadear
doze trabalhos, não segue imediatamente ao
a ira dos demais olimpianos, pois havia vários
leito de sua casa, mas parte para realizar “o
filhos dos mesmos em combate.
rito em que oferece dádivas a Zeus pela
“Zeus prepotente nascido de Cronos que coisa disseste? Tens a intenção de livrar novamente da morte funesta ao lutador que se encontra fadado a morrer há já muito? Seja se o queres
conquista”,36 dessa forma, reconhecendo o
Não querendo dizer que os deuses não tenham sentimentos, mas buscar diferenciar um sofrimento divino de um mortal. 34 VERNANT, 2006, p. 37 35 ROMILLY, 2001, p.91 33
36
SÓFOCLES, 2014, p.37
37
ROMILLY, 2001, p.102
ILÍADA, Canto XVI, vv. 480-563 39 ILÍADA, Canto XVI, vv.433-438 38
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conquanto nós outras jamais te aprovemos. Ora outra coisa te quero dizer guarda-a bem no imo peito se resolveres enviar para casa a Sarpédon vivo não aconteça quererem também retirar outros deuses seus caros filhos do meio dos duros combates e pugnas pois ao redor das muralhas de Príamo lutam muitíssimos filhos de deuses: entre estes farás vicejar a discórdia”40
mãos de Heitor, com o auxílio de Febo Apolo, sendo uma forma de vingar-se da morte de Sarpédon42.
“Nuvem de dor envolveu a alma nobre do grande Pelida que tendo terra anegrada tomado nas mãos a derrama pela cabeça desta arte as graciosas feições afeando. De cinza escura manchado também fica o manto nectáreo. Logo na poeira se estende ocupando grande área no solo e os ondulados cabelos com ambas as mãos arrepela.”43
Ao seguir o conselho de sua cônjuge, e ver o fim de seu filho com a lança do pélida encravada no peito, a divindade entra em um luto profundo onde torna a “noite funesta Zeus grande estendeu sobre a pugna terrível para que em torno do corpo do filho maior fosse a luta”,41 criando um clima de desolamento,
que
acompanhava
profundos
seus
sentimentos.
Não parou neste trecho o luto do herói, já estando afastado do campo de batalha desde o primeiro canto, pelo fato de Agamémnon ter tomado Briseide, prima de Heitor, para si, de quem o Pélida gostava, e logo em seguida a morte de seu primo a quem tinha grande admiração, já que havia sido criado junto a si, possuindo até o mesmo tutor, o centauro Quíron.
Toda
essa
sequência
de
acontecimentos ruins favoreceram ainda mais para o desconsolo do herói,
“As mãos de Aquileu que fundos lamentos no peito agitava visto recear que ele o tenro pescoço com o ferro cortasse. Solta gemidos terríveis; ouviu-os a mãe veneranda das profundezas do mar onde ao lado do pai se encontrava. Em altos gritos prorrompe; cercaram-na logo afanosas todas as deusas nereides que o fundo do mar habitavam.” 44
Aquiles cura Pátroclo - Detalhe de vaso em técnica de cerâmica vermelha 500 a.C. Um sentimento parecido tomou conta de Aquiles, quando o mesmo descobriu a morte de seu amante Pátroclo, a quem havia emprestado sua armadura divina (presente
Como consolo, prometeu ao cadáver de seu primo que o vingaria, o que veio acontecer em batalha, vencendo Heitor e mutilando os restos mortais do troiano.
“Ainda que no Hades escuro te encontres alegra-te Pátroclo pois vou cumprir tudo
de sua mãe, a ninfa Tétis), que foi morto pelas
ILÍADA, Canto XVI, vv. 440-450 ILÍADA, Canto XVI, vv. 556-558 42 ILÍADA, Canto XVI, vv. 1-100 40
43
41
44
ILÍADA, Canto XVIII, vv. 22-27 ILÍADA, Canto XVIII, vv.33-38
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quanto afirmei que fazer haveria. Trouxe arrastado o cadáver de Héctor para aos cães atirá-lo e na fogueira sagrada pretendo imolar doze Teucros dos de mais lúcida estirpe por causa tão-só de tua morte.” 45
- Uma nuvem me estreita com lamentos. -Por isso eu lamento a tua sina. - Feito bacante, aniquilei meu lar? - Eis o que sei: tudo que é teu se arruína”47
Na tragédia grega também podemos encontrar exemplos da dor heroica, que aproxima
ainda
mais
o
semideus
a
mortalidade, como modelo desse ideal, podemos citar Héracles, que sob influência
Na tentativa de vingar a morte da esposa e dos filhos, Héracles pensa em se matar para não conviver com esse peso nas costas,
“Fará sentido preservar a vida do matador de seres tão queridos? Arrojo-me do precipício oblíquo, encravo o gládio firme contra o fígado, a fim de justificar o sangue infante? Ateio fogo sobre minha própria carne, poupando-me da infâmia que me resta” 48
da deusa Loucura, a mando de Hera, dizima toda sua família, que era composta por Mégara e seus filhos, sobrando apenas Anfítrion, seu pai terrestre, que ao chegar ao local do ocorrido, assusta-se com o que vê,
“As crias cadavéricas já são visíveis, diante do pai que é um traste adormecido, concluído o assassinato dos meninos. Em torno de se corpo, um complexo de amarras, cordas, nós cegos, que o prende ao colunário pétrio do solar” 46 Héracles ao voltar a si, encontra-se amarrado a um poste, sendo através de Anfítrion que fica a par do ocorrido, entrando em desespero o filho de Zeus.
Mas com os conselhos de seu pai e de Teseu, é convencido do contrário, onde ambos lhe dão dicas de como reverter a situação e seguir em frente, o que ameniza o luto que sente o herói, por fim demostrando outra característica que o aproxima da mortalidade, que seria a aceitação de sua minoridade diante de um mundo fútil, onde “não pensa bem quem sonha em ter riqueza e poderio, mas do que ter um amigo”.49
“- Olha no chão os corpos dos meninos! - Não posso crer! O que me vem a vista? - Guerreaste uma antiguerra com teus filhos. - Guerra? Não entendi! Quem os matou? - Tu mesmo, o arco e o nume responsável.
Ao decidir que irá seguir caminho ao lado de Teseu, Héracles ainda desconsolado e deprimido, chorando muito, se despede de seus pais e recomenta como realizar o sepultamento de sua família, mas seu amigo a qual resgatou do Hades, acredita que o
- O que anuncias pai? Que mal fiz eu?
herói
- Enlouqueceste! Indagas teu sofrer.
“criticarão de seu modo feminino”.50
deva conter
suas
lágrimas ou
- Fui matador também da minha esposa? - A mão de ninguém fez o que fez. 45
ILÍADA, Canto XXIII, vv. 19-23
EURÍPEDES, p.97, vv. 1.032-8 47 EURÍPEDES, p. 109-111, vv. 1.131-1.143 46
EURÍPEDES, p.112/3, vv.1.146-1.152 EURÍPEDES, p.141, vv. 1.425-6 50 EURÍPEDES, p.129, vv. 1.412 48 49
G N A R U S | 14
Ninguém há de tomar a iniciativa de arrancar-me a cabeça e dar fim à vida estígia? Ai!” 53
Outro momento em que Héracles inicia um processo de humanização, é logo após retornar de seus doze trabalhos, mas no enredo dessa tragédia51, ele está casado com Dejanira, sua segunda esposa, que está ansiosa para revê-lo, mas a mesma acaba descobrindo que seu marido traz consigo uma concubina, denominada Iole, filha do rei Êurito, da Ecália, a qual o herói destruiu para conseguir desposar a princesa. Enfurecida Dejanira envia um peplo envenenado por Licas, o arauto de Héracles, acreditando a mesma que sua encomenda seria dado de presente a outra mulher de seu esposo, o que não acontece, já que o próprio semideus veste-se com a túnica, o que o leva a sentir
Ainda que utilize tantos clamores, nenhum dos presentes, inclusive seu filho, realizou seu desejo, dizendo Hilo que o amparava, “mas não tenho interna ou externamente condições de dar alívio à sua dor, pois Zeus decide.”54 Ao perceber a decisão tomada pelo filho, o semideus conclui que é seu fim, e entende a profecia do oráculo. Por esse motivo ele transmite a Hilo, como quer seu funeral55, e pede-lhe que “evita derramar seu pranto. Ausente o pranto, ausente o teu lamento, se provéns de um hercúleo, age, ou pesa minha eterna maldição nos ínfernos!”56
emortecidas dores.
“O Zeus, onde me encontro? Que mortais ladeiam-me jazente, fustigado por inúmeras dores? Ai! Quanto sofrimento! Sinto que trincha o dente da moléstia!”52 Mas mesmo em um momento tão humano, que é no momento da morte, Héracles toma medidas dignas de um deus, que ao mesmo tempo são pautadas em princípios mortais, já que pede a Hilo, seu filho, que acelere sua morte, arrancando-lhe a cabeça,
“Deixai que durma o moiramarga, deixaime... a mim, entregue ao torpor extremo! Sinto tua mão que pesa! Onde me reclinas? Me eliminas? É o meu fim? Açodaste o que não bulia. Fisgou-me, ai!, no seu retorno. Onde vos encontrais, gregos, primazes na injustiça? Eu me empenhei em depurar por vós demasiados mares, jângal sem exceção, e adoecido no presente fogo não há, gládio tampouco, que tenha serventia. Ai! 51
As Traquínias, de Sófocles
SÓFOCLES, p.99, vv. 983-987 53 SÓFOCLES, p.101, vv.1.003-1.016 52
Conclusão: Em síntese, podemos observar que os heróis eram seres divinizados, tanto em sua aparência, quanto em seu caráter. São humanos descendentes dos olimpianos, e para não serem comparados a um simples mortal, vivem com seus feitos grandiosos, buscando alcançar o renome e a glória, o que os aproximaria da imortalidade. Por essa aproximação ao divino, eles serviriam
como
intercessores
entre a
população e as divindades, o que resultaria nas festividades e cultos heroicos. Mesmo com a construção dessa aura divinizada, os semideuses continuam persistentes nas características que os tornam mortais, como
SÓFOCLES, p.101, vv. 1.017ss SÓFOCLES, p.117, vv. 1.193-1.202 56 SÓFOCLES, p. 117, vv. 1.199-1.202 54 55
G N A R U S | 15
exemplo, na demonstração frequente de seus sentimentos. Artur Vítor de Araújo Santana é Graduando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana –UEFS.
Documentação: EURÍPIDES. Héracles; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014A. HOMERO. Odisseia; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2013. SÓFOCLES. As Traquínias; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014B.
Bibliografia: GUERRA, Lolita Guimarães. Entre dois mundos: ressurreição e hierogamia nas mitologias grega e judaico-cristã. Dissertação (Mestrado em História Comparada) UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, 2008. JAEGER, Werner. “Nobreza e arete”. In: Paidéia: A formação do homem grego; tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa; tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ROMILLY, Jacqueline. Homero: Introdução aos poemas homéricos. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 89-109. ROMILLY, Jacqueline. A tragédia grega. São Paulo: Editora UnB, 1998, p. 8-46. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga; tradução Joana Angélica D’Avila Melo – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p. 37- 57
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Artigo
MEIO AMBIENTE NOS ANOS 1970 – ASPECTOS E REFLEXÕES SOBRE UM CONCEITO EM (RE)CONSTRUÇÃO Por: Cássia Natanie Peguim Resumo: As últimas décadas do século XX foram marcadas por uma economia mundial globalizada e por mudanças nos valores sociais. Neste contexto, os movimentos ambientalistas, a formação de partidos verdes e ONGs ambientais refletem preocupações de ordem econômica, social e política para com a manutenção da qualidade do meio ambiente humano, particularmente em relação às instituições e aos valores humanos, políticos e de mercado das sociedades industriais. Diante da necessidade de se desenvolver novas concepções que explicassem as características daquele momento, a pesquisa científica e os acordos políticos e científicos subsequentes foram os meios para a compreensão do meio ambiente e das transformações na sociedade do Pós-Segunda Guerra, tendo como finalidade o controle de recursos necessários ao desenvolvimento econômico. Essa dupla função demonstra que a relação do ser humano com o seu ambiente envolve poder político. Palavras-chave: História; meio ambiente; sociedade.
O
lhando retrospectivamente para os anos
uma nova face da política, não mais dual –
1970 podemos vislumbrar algumas de
direita/esquerda - mas fragmentada e focada em
suas características: a economia mundial
problemas específicos de uma sociedade que
globalizada, a crise econômica provocada pelo
ganhava novas formas após a Segunda Guerra. A
salto dos preços do petróleo, as disputas políticas
formação de partidos verdes e a organização da
entre as potências da Guerra Fria, o avanço do
sociedade
conhecimento científico e as mudanças dos valores
Governamentais
da sociedade. Especificidades que se configuraram
internacionais, nas últimas décadas do século XX,
como indicadores de transformações históricas
refletem preocupações de ordem econômica,
importantes desencadeadas naquela década.
social e política para com a manutenção da
civil
em -
Organizações ONGs,
nacionais
Não e
Na trilha deixada pela efervescência dos
qualidade do meio ambiente, particularmente em
movimentos sociais do fim dos anos 1960 e de toda
relação às instituições das sociedades industriais e
a década de 1970, o movimento ambientalista, ao
seus valores humanos, políticos e de mercado. Na
lado dos raciais e de gênero, se configura como
esfera das instituições intergovernamentais como a
G N A R U S | 17 Biosfera,
popularmente
conhecida
como
Conferência da Biosfera, organizada pela UNESCO em 1968. Estas questões partiram de problemas reais como o crescimento populacional, a fome endêmica,
a
desigualdade
nos
lucros
da
produtividade - tanto industrial como agrícola - a crise dos recursos não renováveis, a necessiade de desenvolvimento econômico, a urbanização e a poluição.
ONU e a UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a compreensão da dinâmica biológica da Terra é colocada como meta dos programas de pesquisa. O pequeno grupo de cientistas reunidos no Clube
de Roma em parceria com o MIT - Massachusetts Institut of Technology, organiza o programa de pesquisa Um Projeto sobre o Dilema da
Humanidade que tem os resultados de sua primeira fase
divulgados
no
relatório
Limites
do
Crescimento, elaborado entre 1968 e 1972 sob direção de Dennis Meadows. Neste último ano outro relevante relatório é elaborado: Uma Terra
Somente, destinado à Conferência do Meio Ambiente Humano, organizada pelas Nações Unidas, em Estocolmo, no ano de 1972. Ambos os relatórios buscaram sintetizar os temas que provocavam inquietações a respeito dos efeitos que a atividade humana estava causando à natureza e qual seria o impacto das mudanças da natureza sobre o homem. Limites do Crescimento e Uma
Terra Somente intensificaram a discussão sobre o meio ambiente já em debate na política das organizações intergovernamentais como a ONU e a UNESCO, uma vez que aprofundaram as questões de cunho científico levantadas na Conferência Intergovernamental sobre as Bases Científicas para Uso e Conservação Racionais dos Recursos da
Alguns aspectos da abordagem dada ao meio ambiente nas discussões desenvolvidas sobre o tema durante a década de 1970 são abordados neste artigo. São consideras as percepções que a sociedade do pós-guerra, no período mencionado, tinha do ambiente em que vivia a partir de suas manifestações políticas e da produção material que a caracterizava, ou seja, a indústria, a agricultura, a ciência e a tecnologia. A análise busca tratar a questão ambiental por meio de uma perspectiva histórica,
reunindo
elementos
sociais
determinantes na relação sociedade-natureza a partir da leitura, compreensão, avaliação e comparação entre os conteúdos dos relatórios
Limites do Crescimento e Uma Terra Somente. O caráter político da abordagem aqui empregado se pauta
metodologicamente
na
análise
das
percepções sobre a natureza, como sugerido por Donald Worster em Para fazer História Ambiental (WORSTER, 1991). Também nos orientamos pela interpretação
historiográfica
retrospectiva
sugerida por Eric Hobsbawm que compara o passado para entender o presente possibilitando equacionar
determinada
problemática.
Particularmente no livro Era dos Extremos (HOBSBAWM, 2005) em que o autor foca os elementos que particularizaram o século XX, como acontecimentos, ações, decisões, transformações e questionamentos que marcaram este contexto.
G N A R U S | 18 Para a historiadora Regina Horta Duarte, a atitude das sociedades humanas em relação ao meio
referênciais e declinara para a instabilidade e a crise.
natural não é única, antes ela é variável e diversa de
Para o historiador Eric Hobsbawm, esta descrença
acordo com os sentidos conferidos por sociedades
nas instituições se relacionava com um processo de
distintas ao longo do espaço e do tempo de forma
desestruturação das características políticas das
descontínua, cabendo ao historiador
duas décadas anteriores a 1970, por uma dissolução
“entender como foi possível, durante certo período de tempo, a construção e a imposição de certa ideia como verdadeira e por que contestações eram inadmissíveis” (DUARTE, 2005, p.77).
A partir da Conferência do Meio Ambiente Humano a natureza foi associada à indústria, à pesquisa científica, às relações internacionais, à e
ao
desenvolvimento.
Podemos
considerar que estas eram as cinco esferas em torno das quais instituições intergovernamentais como a ONU e a UNESCO pensavam o meio ambiente - um conceito em formação no início da década de 1970. O momento é abordado em Limites do
Crescimento e Uma Terra Somente como marcado por uma situação inédita e complexa vinculada ao caráter interdependente dos problemas que envolviam o meio ambiente. Para o Clube de Roma, o ritmo acelerado da industrialização, o rápido crescimento
demográfico,
a
desnutrição
generalizada e o esgotamento dos recursos naturais não renováveis eram tidos como “tendências
aceleradoras do mundo moderno” (MEADOWS, 1973, p.18).
e por um mundo ligado à economia transnacional (HOBSBAWM, 2005, p.393-413). A política se desprendera da dicotomia direita/esquerda e
Esta é a tarefa que se busca realizar neste artigo.
economia
das antigas instituições sociais, entre elas o Estado,
Somava-se a estes fatores o que
Bárbara Ward e René Dubos, responsáveis pela redação final de Uma Terra Somente, chamaram de “a ameaça a certos valores naturais que
transcendem as necessidades orgânicas” (WARD; DUBOS, 1973, p.20). De modo que a pobreza, a deterioração do meio ambiente e a perda de confiança nas instituições estatais e socioculturais se colocam como algumas das características desse mundo moderno. Um mundo que perdera seus
fragmentara-se
em
movimentos
sociais
especializados. Os movimentos verdes fizeram parte dessa nova força política ao lado de grupos étnico/nacionalistas.
Paralelamente,
a
consolidação da economia globalizada atingira as bases do Estado-Nação territorial, uma vez que seus limites físicos não agiam mais sobre o intercâmbio de mercadorias, informações e também resíduos industriais (HOBSBAWM, 2005, p.406-413). De acordo com o observado no estudo Limites do
Crescimento, havia uma necessidade de se desenvolver novas concepções que explicassem as características daquele momento. O poder, a extensão e a profundidade das intervenções do homem, seja na ciência, nas novas políticas ou no mercado consumidor, pareciam pressagiar uma “nova época revolucionária na história humana,
talvez a mais revolucionária que o pensamento pudesse conceber” (WARD; DUBOS, 973, p.39). As determinantes dessa nova época seriam a escala e a velocidade destas transformações. Ambas atuariam num contexto caracterizado pela interação de um número crescente de pessoas que consumiriam mais energia e materiais, todas tendendo a aglomerar-se nas regiões urbanas e concentrando em um novo grau as demandas de consumo, movimentos, ruídos e refugos. Observando-se estes fatores, é possível verificar que a demografia e a ecologia eram dois aspectos centrais e, em longo
G N A R U S | 19 prazo, decisivos nas discussões políticas e
agrícola. Uma situação exemplificadora é o fato de
científicas daquele período.
ecologistas darem séria atenção aos efeitos do
O ano 2000 aparece como um fator norteador das
tráfego de automóveis e da poluição atmosférica
preocupações de ambos os relatórios. Vivia-se uma
somente após 1973, quando a OPEP – Organização
expectativa pela virada do século acompanhada
dos Produtores e Exportadores de Petróleo; decidiu
por uma apreensão diante dos problemas que o
finalmente cobrar o que o mercado podia pagar por
século que então anunciava seu fim poderia levar
ele (HOBSBAWM, 2005, p.258). Apesar de uma
para o novo. Um crescimento sem limites da
política de bem-estar-social, a política industrial
população e um colapso mundial figuravam entre
pautava-se na economia de livre mercado.
as previsões. A estas, relacionavam-se medidas
Com o desdobrar destas transformações nas
sobre o comportamento individual e coletivo, como
últimas décadas do século XX, o homem passaria a
maior produção de alimentos, reaproveitamento
habitar dois mundos: o natural e o das instituições
de materiais e novos padrões de consumo. O
sociais e dos artefatos que constrói para si mesmo;
momento exigia a obtenção de um estado de
o que corresponderia a Biosfera e a Tecnosfera
equilíbrio.
(WARD; DUBOS, 1973, p.37). A relação do ser
De acordo com Limites do Crescimento, a
humano com sua sociedade e a natureza passa
sociedade equilibrada teria que ver a Terra como
então a ser definida por uma atuação, onde ele,
finita e elaborar alternativas a esta condição,
homem, não somente sobreviveria, mas modelaria
levando em consideração os valores humanos
o ambiente e por ele seria modelado.
daquele contexto e as futuras gerações. Para isso
Na perspectiva dos elaboradores de Uma Terra
aquela sociedade precisaria de melhores recursos
Somente, o conceito de Ambiente Humano,
do que os já possuídos, esclarecer e realizar
divulgado na Conferência de Estocolmo,
alternativas definidas como realistas e viáveis e estabelecer metas sociais compatíveis com os objetivos a longo e curto prazo exigidos para a manutenção da qualidade de vida do ser humano (MEADOWS, 1973, p.178-179). A atenuação da poluição e a redução demográfica dos países, particularmente dos então chamados países do Terceiro Mundo, eram duas das medidas propostas.
“[...] significa mais que a manutenção do equilíbrio ecológico, que o controle econômico dos recursos naturais e mais que o controle das forças que ameaçam a saúde biológica e mental. Idealmente requer também que os grupos sociais e indivíduos tenham a garantia de oportunidade de desenvolverem estilos de vida e ambientes de sua própria escolha” (WARD; DUBOS, 1973, p.25).
Ambas geraram polêmica, pois afetavam o
As ações inclusas no conceito deveriam restaurar
crescimento industrial de paises desenvolvidos e
o equilíbrio e a esperança, moderar os desesperos e
em desenvolvimento.
as pressões sociais e fixar normas comuns para a
O ambiente ganha um valor semelhante a uma
obtenção de uma política que viabilizasse este
mercadoria num contexto de descontrole das
projeto (WARD; DUBOS, 1973, p. 66). O controle
operações capitalistas, crise da política de bem-
deveria ser exercido sobre as formas de uso dos
estar-social, transição para o neoliberalismo,
espaços e dos recursos, inclusive do ar e da água, e
flutuações
consequências
dependeria de estratégias para a sobrevivência das
ecológicas devidas à mecanização da produção
nações. A elaboração destas estratégias tinha como
na
economia
e
G N A R U S | 20 meta “convencer as nações a aceitarem uma
ambiental das relações entre seus integrantes [...] Foi preciso criar normas de conduta para evitar a degradação da vida”
responsabilidade coletiva de descobrir mais sobre o sistema natural e como as atividades humanas o afetam e vice-versa” (WARD; DUBOS, 1973, p.269). Ou seja, a compreensão de uma condição fundamental de interdependência. De modo que, como enfatiza o documento, a política planetária deveria agir no sentido do conhecimento, da economia e da nação soberana. Tais objetivos
(RIBEIRO, 2001, p.12).
As mudanças do contexto precisavam ser compreendidas
e
normatizadas.
Procurando
atender a esta dupla necessidade, a Conferência do Meio Ambiente Humano produziu uma Declaração de Princípios e um Plano de Ação que deram base para a estruturação do Programa de Meio
implicariam na “supervisão cooperativa, pesquisa e
estudo em escala sem precedentes, criação de uma rede mundial intensiva para o intercâmbio sistemático de conhecimento e experiência, a fim de levar a pesquisa a toda parte com apoio financeiro internacional” (WARD; DUBOS, 1973, p.269).
Ambiente das Nações Unidas – PNUMA. O plano consistia em cento e nove recomendações distintas, estabelecendo objetivos específicos e gerais em três grandes categorias: avaliação ambiental, administração ambiental e medidas de apoio. Estas medidas deveriam atuar sobre a soberania dos
Como último quesito para a obtenção do
Estados em explorar, conservar e proteger seus
Ambiente Humano, os autores abordam a relação
recursos sem prejudicar o desenvolvimento de
entre a lealdade humana e o ambiente.
outros países. O Programa também incentivava o
É possível apontar que no período a percepção
intercâmbio de informações entre os Estados. Tal
que se tinha da natureza era a de um organismo
intercâmbio fora organizado em torno do
antes considerado como inferior ao homem, mas
Earthwatch - uma rede patrocinada pela ONU,
que passara a se sobrepor a este em um processo
planejada para pesquisar, monitorar e avaliar as
constante a partir do momento em que se tornou
tendências e processos ambientais, notificando os
evidente que os recursos materiais oferecidos eram
Estados-membros sobre riscos e situação dos
finitos – a crise do petróleo já se anunciava. Por
recursos naturais (MCCORMICK, 1992, p.114). A
esse motivo a natureza necessitava ser controlada.
ciência, base para a tecnologia que dominara o
Nota-se
crescimento econômico da segunda metade do
uma
profunda
necessidade
de
compreender o crescimento pelo qual a sociedade
século
XX,
aparece
como
um
mecânismo
dos anos 1970 passara, lembrando que segundo
propiciador da compreensão e normatização do
Hobsbawm, as diferenças entre o cotidiano dos
ambiente.
nascidos nas duas décadas anteriores haviam se
Ao expor o Projeto da UNESCO para os anos de
acentuado em relação ao cotidiano vivido por seus
1975-76 o diretor Geral da UNESCO Amadou-
pais quando tinham a mesma idade.
Mahtar M’Bow (1974-1987), aponta que o
Wagner Costa Ribeiro coloca que:
compromisso da organização durante estes anos
“O modelo de desenvolvimento adotado pelos países centrais e por parte dos países periféricos gerou impactos ambientais que se sobrepõe aos limites territoriais dos Estados. O sistema internacional não contava com o mecanismo de regulação na área
seria com a pesquisa científica e com o progresso e futuro da humanidade, cabendo a UNESCO atuar como uma vanguarda no movimento de unificação dos povos. A ação ética da instituição deveria
G N A R U S | 21 basear-se na promoção do saber e na definição de
e da modernização diante das transformações das
normas universais em prol dos desfavorecidos
estruturas econômicas e sociais, da busca por novos
(M’BOW, 1975, p.25). As metas previstas no Projeto
tipos de desenvolvimento e da crise monetária e
se direcionavam à promoção do acesso a educação,
energética. Ciência e técnica deveriam estar a
ciência e tecnologia, com ênfase nestes dois
serviço do homem, pois conhecimento equivaleria
últimos, destacando a difusão e a qualidade do
a poder (UNESCO, 1977, p.19-20).
conhecimento científico e tecnológico. As políticas
A ênfase na pesquisa científica nos planos da
culturais deveriam estar em harmonia com as
UNESCO, no PNUMA, em Limites do Crescimento
políticas educativas e científicas. Integrar, agir e
e
financiar eram as palavras de ordem. Segundo
representatividade que a ciência possuía sobre o
representantes da instituição, as raízes da crise pela
ambiente. Desde as décadas de 1950-60, era
qual se passava estavam plantadas no poder que o
grande o investimento dos países capitalistas
homem adquirira devido à ciência e a tecnologia;
desenvolvidos na pesquisa científica, e os últimos
resultado das relações sociais organizadas em torno
vinte e cinco anos do milênio têm a ciência como
da evolução científica e tecnológica do contexto.
base de seu desenvolvimento, seja acadêmico ou
Diante disto a necessidade de se pensar nas
econômico, ambos interligados à indústria bélica,
gerações futuras e estabelecer relações fecundas
alimentícia ou farmacêutica.
Uma
Terra
Somente
demonstra
a
entre homem e meio ambiente se apresentam
“O espírito científico – que marcou a ciência moderna desde o seu início – tem na concepção de progresso uma de suas referências fundamentais. [...] Suprir as necessidades por meio do conhecimetno científico e tecnológico passa a ser a palavra de ordem, uma das máximas da civilização ocidental.” (RIBEIRO, 2001. p.65).
como imprescindíveis. Tais medidas tinham como base as definições do que se denominou Nova Ordem
Econômica
Mundial,
proposta
na
Assembleia Geral da ONU de 1974. A UNESCO caberia o compromisso com a objetividade científica, promoção da justiça, e busca pela dimensão sociocultural do desenvolvimento. A
ciência
apresentadas
e
a
tecnologia
como
também
ferramentas
As são do
desenvolvimento no Plano de Médio Prazo da UNESCO para os anos de 1977 a 1982. Na avaliação realizada pela Conferência Geral da UNESCO, de 1976, a meta era buscar por uma ordem moral mais justa e equitativa e incentivar a elaboração de tecnologias próprias que integrassem ciência e tradições das sociedades, contra a chamada importação de tecnologias. Prática realizada pelos países em desenvolvimento. As metas se pautavam na importância da identidade cultural, de modo que a consciência desta identidade é apontada como sustentáculo do desenvolvimento econômico
linhas
intepretativas
da
ciência,
particularmente as teorias do caos e do catastrofismo, atuaram sobre as interpretações dadas à dinâmica da relação homem-ambiente. Caos pautado no perigo que o desenvolvimento econômico oferecia - o medo, na sua essência não era de que os acontecimentos fossem fortuitos, mas que os efeitos que se seguissem não pudessem ser previstos.
Catástrofe
ocasionada
por
um
bombardeio vindo do espaço - medo que exteriorizava, em parte, o receio da guerra nuclear. (HOBSBAWM, 2005, p.522-530) Caos e catástrofe permeavam as perspectivas de um crescimento populacional
exponencial
incontrolável
que
excedesse a capacidade da Terra de alimentar e
G N A R U S | 22 abrigar seus habitantes, levando a uma mortalidade
Os problemas do meio ambiente partem do político
sem precedentes até que a população se
e encontram seu fim no político.
estabilizasse. (MEADOWS, 1973, p.141) O sistema natural e o mecanismo das ações humanas sobre o ambiente deveriam ser desvendados pela ciência.
Cássia Natanie Peguim é Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação “ História e Sociedade”. Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis.
Diante da repercussão de Limtes do Crescimento e da Conferência do Meio Ambiente Humano, a pesquisa e os acordos políticos e cientifícos que se seguiram colocaram-se como os meios para a compreensão
do
meio
ambiente
e
das
transformações sociais, com a finalidade de controlar
os
recursos
necessários
ao
desenvolvimento econômico. Essa dupla função -
compreensão e controle - demonstra que a relação do ser humano com o seu ambiente envolve poder político. Instituições como a ONU e a UNESCO passaram a atuar no que pode se chamar de normatização do meio ambiente, sintetizando o destaque dado à temática dentro do sistema global. Os conceitos são mutáveis, não possuem uma definição fixa, pronta e acabada. Pelo contrário, estão sujeitos ao jogo político do contexto em que se inserem. O ambiente diante das discussões políticas na década de 1970 aparece relacionado à imagem de uma natureza hegemônica, atuante sobre as expectativas do mercado e sobre a continuidade da espécie humana e de tudo o que ela construíra. Nesse sentido a expressão ambiente natural reproduz a natureza como algo exterior à vida humana a que se atribuem valores de troca e uso. Ambiente e natureza se confundiam sob um único conceito ainda disforme. Ao longo do processo histórico as medidas normatizadoras e o conceito de meio ambiente são reelaborados a cada nova conferência ou comissão a partir de um jogo de sutilezas que, na maioria das vezes, estão articulados com o que se diz fora da definição, no desenvolvimento do texto escrito, na fala ou na forma de implantação dos acordos estabelecidos.
Referências DUARTE, Regina Horta. História e Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. HOBSBAWM, E.J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. LE PRESTRE, Philippe. Ecopolítica Internacional. Trad. Jacop Gorender, 2ªed. São Paulo: Senac, 2005. MARTINEZ, Paulo Henrique. História Ambiental no Brasil: pesquisa e ensino. São Paulo: Cortez, 2006. M’BOW, Amadou- Mahtar. “Uma era de solidariedade ou uma era de barbárie?”. O Correio da UNESCO. Abr./ 1975. Mc CORMICK, John. Rumo ao Paraíso: A história do movimento ambientalista. Trad. Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. MEADOWS, Donella H. [et ali] Limites do crescimento: um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o dilema da humanidade; Trad. Inês M. F. Litto. São Paulo: Perspectiva, 1973. RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo. Contexto, 2001. UNESCO. O Correio da UNESCO. Nossos recursos minerais ocultos. Abr./ 1975. UNESCO. O Correio da UNESCO. HORIZONTE 1982 – A Unesco e o mundo. Maio/1977. WARD, Bárbara; DUBOS, René. Uma terra Somente. Trad. Antônio Lamberti. São Paulo: Edgar Blücher, Melhoramentos, Ed. Universidade de São Paulo, 1973. WORSTER, Donald. “Para fazer história ambiental”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: 4 (8) p.198-215, 1991.
G N A R U S | 23
Artigo
ENTRE O CONTRASTE E O EQUILÍBRIO, KEMET E DUAT: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIDA E A MORTE NO EGITO ANTIGO Por: Keidy Narelly Costa Matias
Resumo: O presente artigo versa acerca da oposição entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos no Egito Antigo; consideramos o segundo como sendo uma representação concebida do primeiro. Trataremos da natureza do mundo dos vivos (Kemet), elencando alguns exemplos que norteiam seu contraste e seu equilíbrio quando comparado com o mundo dos mortos (Duat). Palavras-Chave: Mundo dos vivos, Mundo dos mortos, Natureza, Antigo Egito.
B
aseado em Hecateu de Mileto, Heródoto
que a maneira egípcia de enxergar o mundo e de se
(II, X) afirmou ser o Egito “uma dádiva do
encontrar nele é muito distante da nossa, tanto no
Nilo” (a frase, tal como se encontra no
tempo
quanto
no
espaço.
Entretanto,
ao
livro, é “a maior parte do país é uma dádiva do
estudarmos o Egito, percebemos que a vida
Nilo”. A julgar pelo modo de vida egípcio, podemos
terrena/real é separada da vida no além por uma
pensar que essa ideia norteia todos os aspectos da
linha tênue, justamente de âmbito material, dado
vida prática daquele povo. O mundo egípcio
que
terreno se interliga com o mundo divino através de suas singularidades e diferenças; são duas percepções fazendo parte do mesmo cosmos. Essa ideia pode parecer confusa à primeira vista, dado
“o conceito de paraíso osiríaco oferece uma existência confortável e semelhante à existência conhecida em vida pelos egípcios sendo, desta maneira, o mundo terreno aprimorado” (GAMA, 2008, p. 174).
G N A R U S | 24
Esse dado nos permite inferir acerca da estreita
Seth (seca, deserto, esterilidade). A natureza,
relação que aquele povo tinha com a natureza. Essa
portanto, correlaciona-se com todos os aspectos da
vivência quase que romanceada bem pode ser
vida prática que, por sua vez, interliga-se
entendida como um dos fatores responsáveis pela
intimamente com a natureza. O fato é que não é
maneira singular que os egípcios tinham de
possível imaginar o Egito tal como foi sem o Nilo,
conceber seu mundo.
mas se faz necessário demarcar que não foi
O mundo se tornava ordenado a partir do controle do caos; a fome, por exemplo, pode ser
somente o rio que conduziu o Egito ao que ele representou na Antiguidade.
entendida como um descontrole, como uma
Interessa destacar que o equilíbrio, ou seja, a
manifestação da incompetência do faraó perante o
ordem cósmica entre as forças que compõem a vida
seu povo e, especialmente, perante os deuses –
se faz através do ato de vencer o caos. Para que
podemos pensar na utilização da natureza pelos
Maat (a ordem) exista é fundamental que o caos
deuses como maneira tanto de abastecer quanto de
também exista na medida em que se apresenta
retirar donativos do povo. À medida que situamos a
como seu contraponto – um não vive sem o outro,
fé como elemento diretamente relacionado com a
pois
natureza se faz fundamental demarcar a noção da
fundamentalmente a existência de uma desordem,
importância que o rio Nilo possuía,
do temível. A superação do caos aparece em
a
manutenção
da
ordem
pressupõe
inúmeros eventos da vida cotidiana/religiosa
a paisagem (era) fortemente orientada, com o rio fluindo para o norte e os dois horizontes ocres dos desertos arábico e líbico, atrás dos quais surgia e desaparecia o disco solar toda manhã e toda tarde. [...] O lado fértil que seguia o rio ostentava tons puros: negro no momento da lavra, verde brilhante e luminoso quando cresciam as culturas, amarelo ardente quando o trigo estava maduro. [...] A orla do deserto marcava brutalmente o limite entre o mundo ordenado e nomeado da planície fértil e as vastas extensões informes e inorganizadas de areia e rochedos estéreis. [...] A grande uniformidade dessa paisagem, que se repetia de Elefantina ao Delta, era outro traço específico do Egito (TRAUNECKER, 1995, p. 27-28).
Ao imaginarmos esse cenário e ao considerarmos que ainda hoje a questão da falta de alimentação não é um problema superado, podemos ter maior ciência da importância do Nilo. A partir daí começam a aparecer associações entre a natureza e a religião: Osíris (fartura, húmus, virilidade) versus
/política: aparece no ato de vencer a fome, no paraíso osiríaco, no bom governo de um faraó.
Maat é, portanto, o equilíbrio, a vida e a verdade nas inúmeras dimensões da existência, tanto do homem no mundo dos vivos quanto no mundo dos mortos. É nesse sentido que podemos fazer uma oposição entre a ordem e o caos ao considerarmos que o momento da morte representa a quebra de uma ordem, ou seja, a morte está associada ao caos; os ritos fúnebres podem ser vistos como mecanismos de restabelecimento de Maat. É nesse contexto que aparece a Duat, mundo dos mortos que se porta como paisagem e território e que atua como um dos mecanismos salientadores da identidade egípcia. Algumas fontes (um exemplo bastante conhecido é a “História de Sinuhe”) nos permitem inferir que era temível morrer fora do Egito. Dessa forma, aparece aqui tanto o fator geográfico quanto aquele da religião e acreditamos não ser possível
G N A R U S | 25
fazer
diferenciações
esses
negação do estático e o medo do desconhecido e
Antigo.
do perigoso etc. Estamos dizendo que a religião e a
Concordamos com Barry Kemp (1996) no sentido
magia, a vida cotidiana do homem vivo e sua
de ser o território egípcio em sua singularidade um
preocupação com o além – com a (não) morte –
mecanismo definidor de ideologias e identidades; a
exigem a criação de inúmeros espaços capazes de
concepção de um território através da percepção
albergar os múltiplos desejos do homem. A
da paisagem norteia o desenvolvimento de uma
paisagem e o território concebidos são, portanto,
identidade.
frutos do real; trata-se da concepção de mundo de
conceitos
para
o
profundas caso
do
entre Egito
Um fator definidor de uma identidade de lugar é
um povo que via no espaço do post-mortem seu
a maneira de enxergar a morte e os mortos.
meio de continuar existindo. Essa cosmovisão era
Campagno (2011, p. 27) afirma que no Egito existia
um atenuante do medo do desconhecido,
“um laço ideológico forte entre os vivos, os mortos
especialmente
e a terra”. O culto aos ancestrais e o respeito à
modo, que na Antiguidade o homem estava mais
memória destes também podem ser vistos como
ligado à religião do que nós contemporâneos. Dada
laços diretamente ligados à percepção da
a quantidade de fontes que a arqueologia
identidade de uma comunidade. No Egito Antigo
encontrou e encontra, podemos inferir que, mesmo
existia uma clara situação relacional entre os vivos
para o menos crente dos homens, o medo do
e os mortos – os mortos, ao continuarem existindo
desconhecido era presente e latente: podia-se
no pós-vida, permaneciam fazendo parte do seio da
desenvolver maneiras de encará-lo, mas nunca de
população, ou seja, um morto egípcio participava
evitá-lo.
quando
consideramos,
grosso
intensamente do mundo dos vivos. A paisagem possui uma carga de sentidos que interliga o real e
Rosalie David (2011, p. 22) admoesta que a
o imaginado. O homem só concebe o fantástico a
relação do homem egípcio com a natureza fazia
partir de um mundo real, ou seja, o irreal e o surreal
com que existisse “um padrão estruturado de ideias
são pautados na realidade e no contexto da época
que foi projetado para perpetuar o princípio de
em que foram produzidos. No caso do Egito, temos
Ma’at [...] e desafiar e subverter continuamente as
a concepção de uma paisagem, de um mundo
forças do caos”. Essa assertiva, utilizada para
imaginado – não irreal (a Duat) – a partir da
descrever o mundo terreno, pode ser aplicada sem
percepção do mundo pelo homem vivo (em
necessidade de substituição de qualquer termo
Kemet). A carga de sentidos desembocada pela
para o campo do além. A Duat é, portanto, uma
percepção e tratamento da paisagem aparece, na
terra reproduzida: o Egito com suas especificidades
esfera religiosa, através da fabricação da Duat, que
foi em grande medida uma dádiva do Nilo (se não
tanto é um contraste em relação ao mundo dos
houvesse o Nilo todo o Egito seria diferente – tanto
vivos quanto é também o seu próprio equilíbrio.
no campo da natureza quanto naquele reservado à
A concepção da Duat enquanto paisagem e
religião); a Duat é uma reprodução do mundo
território pressupõe a existência de muitas
terreno, ou seja, se o Egito no âmbito terreno foi em
preocupações advindas da vida cotidiana: o medo
grande medida uma dádiva do Nilo, a Duat de certa
da noite, a necessidade de se movimentar, a
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maneira também o foi, visto que era um espelho do
perigosos,
desafios
a
serem
vencidos
e
mundo dos vivos.
encantamentos que não podiam ser esquecidos. O
É importante demarcarmos que a oposição entre
medo do escuro também aparecia como espelho
Kemet e Duat representa também a oposição entre
dos dois mundos: a noite era sinônimo de perigo
a vida e a morte, entre homens e deuses.
(ladrões, sobretudo) e, no mundo dos mortos,
Acreditamos
associada ao estático, Osíris, enquanto Rê era “um
que
tudo
está
intimamente
encadeado, por exemplo,
princípio organizador e criador (dos) espaços do Além” (GAMA, 2008: 158). O deus do mundo dos
“com o mesmo radical mut, os egípcios formavam o verbo morrer e os substantivos morto e morte. Este último é claramente uma contraposição com aquele da vida, ankh. Do deus se diz que é o 'senhor da vida e da morte'” (DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 181).
mortos não tinha conotação negativa, mas o fato é que todos os egípcios desejavam navegar na barca do sol, a barca do deus Rê. Tanto na vida quanto na morte se buscava a luz e o movimento. Movimentar-se era estar vivo. Tanto Kemet quanto a Duat se equivaliam em
Vemos, ao mesmo tempo, a admissão e a negação da morte.
ordem de importância e os dois mundos eram
Como ocorre com Osíris, deus morto que deve deixar a mulher, o filho e este mundo, os mortos humanos também devem deixar a terra, mas eles “não vão como mortos, eles vão como vivos” (Textos das Pirâmides 134), eles não têm uma vida no mundo dos mortos como fantasmas, eles acordam para uma vida nova, com plena possessão de corpo e espírito (GAMA, 2008, p. 172).
Egito. O homem egípcio sabia da brevidade da vida
admitidos dentro de um cosmos maior, o próprio terrena e, por isso, preocupava-se com a eternidade, ou seja, Kemet estava para o homem vivo assim como a Duat estava para o homem morto – era necessário viver bem nessas duas dimensões. Conclusão O mundo dos vivos (Kemet) e o mundo dos mortos
Quando nos reportamos ao estudo das religiões
(Duat), apesar de serem dois espaços diferentes,
antigas, percebemos que a egípcia é, dentre todas
eram indissociáveis através das relações entre vivos
as outras, a que mais apresenta caráter positivo. A
e mortos e da própria concepção do espaço. Os
morte não é vista como um fim e, tampouco, o
mortos faziam parte da vida cotidiana dos vivos
mundo dos mortos visto como um ambiente hostil.
uma vez que, habitando a Duat, haviam garantido a
Essa visão positiva não elimina os perigos do mundo
possibilidade de continuarem existindo. Através da
post-mortem, “a ideia de um castigo no Além que
importância das relações com os ancestrais, os
punia a conduta da vida terrena (era) muito antiga”
mortos eram sempre lembrados e podiam adquirir
(DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 343).
tanto caráter positivo quanto negativo.
Portando-se como espelho da terra do Egito, no mundo dos mortos os perigos também estavam presentes: se temos, por um lado, crocodilos e animais peçonhentos no mundo dos vivos, por outro lado, no mundo dos mortos, temos lagos
A partir da geografia do Egito é que a Duat foi imaginada e produzida; as relações dos egípcios com sua natureza ajudaram na concepção dos deuses e de suas características e do espaço dos
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mortos, imaginado de maneira semelhante ao espaço dos vivos. O espelhamento entre esses dois mundos se dava tanto na dimensão geográfica quanto na social, fazendo com que a separação dessas esferas no cosmos se desse de maneira tênue. Duat e Kemet são espaços contrastantes que, cada um a seu modo, atuavam no sentido de estabelecer e restabelecer o equilíbrio no cosmos.
Keidy Narelly Costa Matias é estudante pesquisadora da Cátedra UNESCO Archai, da Universidade de Brasília, e do MAAT – Núcleo de Estudo de História Antiga, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientada pela Dra. Marcia Vasques, cursa Mestrado em História e Espaço pela UFRN.
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Artigo
A BUSCA PELO SABER: MULHERES ESCRITORAS NA INGLATERRA DO SÉCULO XVIII. Por Damaris Lima Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar os ideais e as dificuldades que uma mulher escritora inglesa setecentista enfrentava, para isto foram analisadas biografias de duas mulheres consideradas importantes para o século XVIII (mas deixando claro ao leitor que estas não foram as únicas escritoras importantes da época), mostrando através de seus trabalhos escritos, suas dificuldades e dilemas acarretados por suas posições sociais. Jane Austen e Mary Wollstonecraft foram escritoras que ocupavam lugares opostos, mas que buscavam alcançar o mesmo objetivo: a publicação de suas obras e, consequentemente, a disseminação de suas ideias, o que nos leva a observar uma constante luta das mulheres representadas por elas para uma maior autonomia social. Pode-se dizer que a sociedade feminina setecentista é bem peculiar e heterogênea, visto que as mulheres estavam dividas em escalas sociais, logo isso diferia muito no que se refere ao seu papel social, aos seus costumes, afazeres e obviamente ao seu cotidiano de modo geral. Neste artigo é possível observar que, no século XVIII, apesar de o casamento ser aparentemente o melhor caminho para as mulheres, este não era o único.
Introdução
doméstica, ou seja, para que ela soubesse ser uma boa dona de casa futuramente, isso cabia
É
possível afirmar que a vida da mulher inglesa
principalmente à plebe, pois a burguesia e a
setecentista está restrita ao privado, ou seja,
nobreza tinham seus próprios empregados, e não
a ela cabia os afazeres domésticos, ela não
havia necessidade de executar esses serviços
poderia interferir em assuntos do Estado e, por isso,
domésticos:
ela não recebia uma educação formal como os homens recebiam, ela poderia ter apenas alguns preceptores e receber instruções intermitentes de seus pais, a isto se resumia a educação feminina. No entanto, se ela fosse camponesa e não tivesse muitos recursos, sua educação era somente
Pois sua ocupação é prioritariamente doméstica; o cenário: a casa; sua vocação: encarnar a imagem de esposa e mãe, arraigada pela Igreja e pela sociedade civil. A exigência de honra – feita de aparência, fidelidade aos seus e a sua boa reputação – resume-o muito bem; portanto, uma
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dedicação constante a todos que vivem sob seu teto a destina a servir, ou seja, a cuidar: alimentar, criar, atender na doença, assistir na morte – essa é a ocupação das mulheres, que a ela se devotam gratuitamente; aliás, não se costuma reconhecer sua participação, tão frequente, na produção para melhor enaltecê-las ou gratificá-las em testamento.
destacando-se pela sua peculiaridade e por lutar
Dessa maneira, fica clara a particularidade do
A educação feminina, que ocorria pela prática e
papel feminino, no qual é formulado todo um
pelo costume, limitava-se ao ensino de algumas
modelo de mulher ideal para a era setecentista. A
prendas exigidas socialmente das mulheres como: a
mulher sempre estava sujeita à Igreja, ao Estado, ao
música, a literatura, a costura e aos afazeres
seu marido e, quando solteira, aos pais, ela não
domésticos.Além
tinha sua individualidade e, quando tinha esta era
numerosos tratados de conduta tornaram-se
limitada, sua importância na sociedade está ligada
populares no século XVIII e eram frequentemente
ao casamento e, consequentemente, a vida
utilizados na instrução das moças.
(CASTAN, 2009, p.407)
pelo que acreditam, o que é muito importante mesmo dentro de uma sociedade extremamente conservadora quando se trata do feminilismo. A Educação feminina
dos
conselhos
das
mães,
doméstica, onde ela era a principal gestora. Embora
A maioria dos tratados de conduta do século XVIII
houvesse internatos para moças na Inglaterra do
ensinavam que para se conseguir uma posição de
século XVIII, a educação feminina na alta e baixa
honra e manter a boa imagem e, dessa forma,
aristocracia inglesa era uma responsabilidade da
alcançar um casamento vantajoso, muitas mulheres
própria
(e até homens) não deveriam hesitar em dissimular
família,
sobretudo
da
mãe,
que
normalmente contava com
defeitos
e
a ajuda de uma governanta
qualidades,
já
na criação das filhas. Sobre
hipocrisia
era
esse aspecto Ariès (1981)
vergonhosa do que a má
ressalta que, com exceção
reputação” (ARIÈS, 1981, p.
de algumas meninas que
252).
eram “pequenas
enviadas escolas”,
às
Esses
a
simular que
“a
menos
manuais
disseminaram o ideal de
maioria delas era educada
atitude
em casa, ou na casa de uma
mostra uma mulher casta e
parenta ou vizinha. Logo
pronta para agradar a
vemos como era difícil para
todos,
uma mulher que não se
apresentavam uma série de
enquadrasse aos padrões sociais, ela era excluída da
Na imagem respectivamente: Jane Austen e Mary Wollstonecraft.
sociedade, e mal vista pela
regras
feminina
por e
reforçavam
que
isso
sermões
que
doutrinas
morais e religiosas. Além
mesma. No entanto, mesmo com todas as regras
disso, ensinavam à jovem senhorita aspectos
impostas, vemos ao longo da história mulheres
domésticos para torná-la uma boa dona de casa e
G N A R U S | 31 como se comportar em diferentes situações. No
moravam na sua casa durante os estudos. De acordo
entanto no século XVIII, com a propagação do
com Todd (2006), a família Austen dispunha de uma
iluminismo os seus ideais geraram uma profunda
vasta biblioteca com mais de quinhentos livros,
mudança no pensamento europeu, rompendo com
onde Jane fizera as principais leituras que
paradigmas existentes nos principais segmentos da
contribuíram para o seu talento literário. Desde
sociedade da época. A educação também foi
cedo, ela demonstrou um interesse pela escrita, ao
diretamente
pensadores
criar textos, como paródias de algumas obras
iluministas que defendiam a criação de um sistema
literárias da época e peças teatrais, para o
de
entretenimento de sua família.
educação
influenciada formal
pelos com
bases
sólidas
fundamentadas na razão. Entretanto, esse ideal de
A escritora teve seis irmãos e uma irmã,
educação não incluía as mulheres, pois “uma
Cassandra, que era também sua melhor amiga e
educação sólida era considerada desnecessária e
com quem trocou diversas cartas. Depois da morte
acima da capacidade feminina” (VASCONCELOS,
do pai, George Austen, em 1805, Jane e Cassandra
1995, p. 90). No entanto, muitas mulheres inglesas
ficaram em situação economicamente delicada e
através da sua escrita revelam uma autonomia
passaram a depender da ajuda financeira dos
intelectual incomum para a época. Havia mulheres
irmãos. Nenhuma das duas se casou. Alguns
que descreviam seu cotidiano em diários, o que
estudiosos afirmam que Jane chegou a receber um
facilitou o surgimento posterior de importantes
pedido de casamento, que inicialmente aceitou,
escritoras da literatura inglesa: “os diários de
mas logo no dia seguinte recusou. O fato de não ter
mulheres são mais numerosos na Inglaterra. As
se casado, dificultou ainda mais a vida de Austen,
mulheres falam sobre si mesmas.” (FOISIL, 2009,
visto que um casamento era extremamente
p.321)
importante para uma moça, principalmente, para a que não possuía situação financeira favorável, pois
Jane Austen: Entre a imaginação e a realidade.
nesse caso o matrimônio era uma forma de sustento econômico. O fato de depender financeiramente
Apesar de a escrita literária não ser considerada
de seus irmãos foi um agravante para a publicação
uma profissão honrável para as mulheres dessa
de seus livros, além do fato de ser uma mulher
época, algumas se destacaram nesse meio e
solteira, o que nos mostra certo preconceito da
conseguiram até mesmo serem sustentadas por
sociedade da época.
seus ganhos editoriais. Entre essas mulheres,
Em vida, Austen publicou quatro de suas seis obras
encontra-se Jane Austen, que, apesar de não ter
concluídas: Razão e Sensibilidade (1811), Orgulho
alcançado sucesso em vida, possui uma obra
e Preconceito (1813), Mansfield Park (1814) e
literária de relevante valor para o romance inglês.
Emma (1815). Em 1817, após ter maiores
Jane Austen nasceu no dia 16 de dezembro de
complicações
causadas
por
uma
doença
1775, no povoado de Steventon, Hampshire, no sul
desconhecida, a autora foi levada a Winchester
da Inglaterra. Seu pai, George Austen (1731-1805),
para ser tratada e lá faleceu no mesmo ano. Após a
um pároco anglicano, complementava a renda anual da família sendo tutor de alunos que
G N A R U S | 32 sua morte, seus irmãos publicaram Northanger
posição permitia. Em vida a autora não foi muito
Abbey1 e Persuasão, em 1818.
conhecida e teve muitas dificuldades de publicar
Segundo Biguelini (2009), os romances de Jane
seus livros, sendo que o primeiro que conseguiu
Austen são marcados por uma descrição com um
publicar foi com o nome de um de seus irmãos, pois
fundo crítico e moralizador do ser humano, bem
a sociedade não aceitava que uma mulher sozinha
como de suas relações interpessoais. Seus
poderia se aventurar na escrita. No entanto após
personagens exemplificam os membros das
sua morte seus livros ficaram famosos por todo o
principais classes sociais, como a aristocracia e a
mundo e no século XX e XXI várias séries e filmes
classe média. Tais personagens refletem os
foram produzidos a partir de suas obras deixando
costumes, os vícios e as contradições de uma
um rico legado. Jane Austen é um grande exemplo
sociedade onde os convencionalismos eram
de que mesmo sem um casamento, uma moça pode
supervalorizados,
o
tentar outras possibilidades dignas para sua
individualismo, sobretudo o feminino. Através de
sobrevivência, sem ter que depender de outras
suas obras, podemos identificar facilmente a
pessoas.
delimitando,
assim,
característica da sociedade inglesa da época em que foram escritos. Possivelmente inspirados nas observações feitas pela autora de seu meio social. As protagonistas (ou heroínas) de Austen pertencem à gentry2 e são jovens que possuem aproximadamente vinte anos, a idade em que, normalmente, o matrimônio se concretizava na vida de uma mulher inglesa. No início dos romances, essas jovens estão solteiras e são apresentadas no convívio com os membros de sua família, com os amigos e os vizinhos. Ao frequentarem os principais
Trecho de um dos manuscritos de Austen
encontros sociais, essas moças deparam-se com seus pretendentes e, então, enfrentam uma série de situações que tipificam as pressões sociais presentes no cotidiano da vida feminina no século XVIII. Estudiosos afirmam que Jane Austen tinha um estilo próprio literário não se adequando há um especificamente, e levando em consideração toda a riqueza de informações que suas obras possuem, vemos como ela é uma mulher a frente do seu tempo, que foi capaz de se sustentar sozinha mesmo com toda dificuldade que seu sexo e sua
1 2
A abadia de Northanger. Pequena nobreza rural europeia.
Mary Wollstonecraft, para muitos historiadores, foi a precursora do proto-feminismo inglês. Em 1792, ela publica o livro A Vindicantion of the rights
of Woman3, causando grande polêmica na sociedade setecentista. Em sua vida adulta, Mary tinha boa posição social e situação econômica bem satisfatória, vemos então grande diferença com relação à escritora Jane Austen, diferentemente Mary não tinha dificuldades em publicar seus 3
Uma reivindicação dos direitos da mulher.
G N A R U S | 33 escritos, e eles rapidamente chegavam às mãos da
que viriam a influenciar de forma decisiva a sua
sociedade inglesa, muitas pessoas tinham acesso às
ideologia e a desenvolver a autoconfiança em suas
suas ideias.
observações de cunho social, político e estético presentes em seus escritos. Uma de suas primeiras
As reivindicações de Wollstonecraft não são isoladas, se inserem num debate mais amplo, ecoando os ideais de educação, autonomia e racionalidade do movimento ilustrado inglês. A crítica iluminista aos privilégios e hierarquias tradicionais e a retórica universalista presente na defesa dos ideários de igualdade e liberdade provocaram reações contrastantes em relação às mulheres. (TAYLOR, 2003, p.45) A autora foi criada por uma família fortemente patriarcal, o que é bem relevante já que a sociedade também segue esse modelo em que as filhas eram muitas vezes ignoradas e ficavam em segundo plano, veio a provar-se decisiva nas suas reivindicações
posteriores
relativamente
aos
direitos das mulheres. Assim, ela sai de casa numa longa jornada pela independência financeira. O que não agradou em nada a seus pais. Mary
Wolltonecraft
trabalhou
em
várias
ocupações apropriadas para uma jovem solteira, tais como preceptora e ama até que se tornou jornalista. No entanto ela teve que regressar a sua casa após a morte de sua mãe, e por sua vez teve que cuidar do seu pai que estava doente e ainda assim cuidar das finanças de sua, pois tinha de sustentar financeiramente o pai e os irmãos e irmãs. Lançou-se então em busca de sua autossuficiência financeira, mas acabou fracassando, pois não conseguiu encontrar uma profissão que realmente lhe desse certo prazer. Após diversas tentativas enfim consegue um emprego de crítica e tradutora que lhe permitiu conhecer diversos textos de Catherine Macaulay4, 4 5
Historiadora inglesa setecentista. Reflexões sobre a educação de filhas.
obras impressas foi Thoughts on the Education of
Daughters5 (1787), que se conecta aos manuais de conduta tradicionais ao sugerir e expor a submissão e o autocontrole feminino, fatores considerados fundamentais para atrair um bom partido. No entanto desafia a noção consagrada, pois inclui em sua obra traços de divergência religiosa e a defesa da igualdade de homens e mulheres. Assim, a obra mostra dicotomias, tais como submissão e rebeldia, afabilidade espiritual e independência racional, dever doméstico e participação política. Mary Wollstonecraft também foi bastante influenciada
pelas
Revoluções
americana
e
Francesa, inclusive alguns historiadores relatam que a própria deslocou-se para a França com a finalidade de sentir em primeira mão o ambiente revolucionário e absorver os novos ideais que se impunham na altura. Em França conheceu o escritor norte-americano Robert Imlay, com quem se envolveu romanticamente, tendo nascido uma filha bastarda fruto dessa união. Findando o romance a escritora atravessa uma fase de depressão. Mais tarde, já regressada à Inglaterra, casa como William Godwin, autor de Enquiry Concernng Political
Justice6 (1773), o qual já conhecia há bastante tempo das reuniões informais de um círculo eclético de artistas, poetas e revolucionários que se juntavam para debater questões políticas e filosóficas. Os escritos de Wollstonecraft tiveram grande importância para a sociedade, fugia aos padrões da época e tinha caráter revolucionário, reivindicador
Investigação sobre a justiça política, escrito pelo jornalista inglês William Godwin. 6
G N A R U S | 34 que fazia com que as pessoas refletissem sobre os assuntos referentes à mulher na vida pública, com isso Wollstonecraft ficou bastante conhecida no final do século XVIII, inclusive Adriana Cracium nos diz que:
“Ela [Wollstonecraft] agora era uma intelectual pública, corajosamente entrando na briga política ao lado de radicais mais experientes, como Thomas Paine7 e da historiadora feminista Catharine Macaulay" (2002, p.9). Ela não era anônima como Jane Austen era. Ela tinha voz embora muitos discordassem de suas ideias, outros achavam inteligentes e até citavam em seus livros como o poeta William Blake que ilustrou alguns escritos da autora. No entanto, Mary Wollstonecraft fugia tanto aos padrões sociais e tinha tantos ideais peculiares que segundo a
Publicação de uma das obras mais conhecidas de Wollstonecraft.
perspectiva da época. A vida da ensaísta pautou-se por escândalos decorrentes da sua conduta, vista como promíscua, e pela sua atitude revolucionária, o que suscitou numerosas críticas de todos os quadrantes. O que alguns não sabem é que Mary Wollstonecraft foi mãe de Mary Shelly, autora de
Frankenstein (1818), o que nos possibilita pensar que esta teve alguma influência de sua mãe que embora não escrevesse romances, ainda assim era uma escritora de cunho revolucionário, conhecida por muitos da sua época mas seu trabalho não é muito comentado atualmente.
Considerações finais Ao longo da história, a escrita foi considerada uma prática predominantemente masculina, dessa forma as mulheres eram retratadas a partir do ponto de vista dos homens. Diante disso, a história se limitou a manter a mulher no privado, isolada dos principais círculos políticos e sociais.Contudo, a partir do momento em que a escrita passa também a estar à disposição do universo feminino, esse cenário começa a se reconfigurar, uma vez que as mulheres passam a utilizar a escrita para se lançarem num mundo quase exclusivamente masculino. A Inglaterra do final do século XVIII é onde estas escritoras viveram, escreveram e publicaram numa época em que a escrita de mulheres começava a ser mais aceita, o que pode ser percebido pela grande quantidade de publicações de mulheres nesta época.
7
Panfletário Revolucionário e político inglês.
G N A R U S | 35 As obras destas autoras, como de muitas outras tratam do cotidiano a partir de um ponto de vista exclusivo delas, que nos foi deixado através de seus textos. Desta forma, a literatura produzida por elas nos dá acesso à percepção de outro ponto de vista da História e da criação literária: o destas mulheres que se casavam ou não, mas que dependiam do dinheiro que a escrita lhes gerava como forma de sustento. Dentre estas autoras Jane Austen talvez seja a mais conhecida atualmente fora da academia. Seu vasto conjunto de obras trata de uma grande quantidade de assuntos, entre eles o amor, o casamento, a família e a amizade.
É tempo de efetuar uma revolução nos modos das mulheres, tempo de devolverlhes sua dignidade perdida e fazê-las trabalhar, como parte da espécie humana, para reformar o mundo mediante sua própria mudança. (WOLLSTONECRAFT, 2000, p. 53). Considerando o contexto social inglês do século XVIII no que se refere às limitações impostas às mulheres, pode-se afirmar que essas duas mulheres citadas neste trabalho (não somente estas) tiveram certa importância no que diz respeito aos paradigmas, não apenas por escrever, mas por utilizar a escrita para deixar as suas impressões sobre seu meio social, dando voz às mulheres de sua época, que eram retratadas, na maioria das vezes, apenas pela escrita masculina. Damaris Lima é graduada em História pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. Trad. Dora Flaskman. 2 ed. LTC: São Paulo, 1981. AUSTEN-LEIGH,James Edward.Uma memória de Jane Austen . trad. José Loreiro e stephanie savalla. Espírito Santo: Pedrazul, 2014.
BIGUELINI, Elen. O triunfo do casamento por amor: Jane Austen e o matrimônio. Paraná: UFPR, 2009, p. 12. BURDIEL, Isabel. “Introducción”. In: WOLLSTONCREAFT, Mary. Vindicación de los Derechos de la Mujer. Madri: Ediciones Cátedra, 2000. CASTAN, Nicole; CHARTIER, Roger. (org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das letras, 2009. v.3. FOISIL, Madelaine. CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das letras, 2009. v.3. GOMES, Anderson Soares. Mulheres, Sociedade e
Iluminismo: o surgimento de uma filosofia protofeminista na Inglaterra do século XVII, Rio de Janeiro: Matraga, 2011.v.18. PORTER, Roy. England in the Eightheenth Century. Harvard University Press: 1998. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n° 2, jul/dez, 1995. TAYLOR, B. Mary Wollstonecraft and the Feminist Imagination. London: Cambridge University Press, 2003. TODD, Janet. The Cambridge Introduction to Jane Austen. Cambridge University Press: New York, 2006, p. 2. VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira.
Construções do feminino no romance inglês do século XVIII. Revista Polifonia, v. 2. Cuiabá. Ed UFMT, 1995.
G N A R U S | 36
Artigo
A ORIGEM DO DEBATE SOBRE O DEUS ÚNICO E O SURGIMENTO DA IDEIA DA TRINDADE NO ÂMBITO CRISTÃO (SÉCULOS III E IV D.C.) Por: Flávio Henrique Santos de Souza RESUMO : Neste artigo abordaremos a discussão do Deus que é tido como uno, mas que é apresentado de forma trina no âmbito do pensamento cristão. Nem todos os grupos cristãos da Antiguidade (como também da contemporaneidade) comungavam com esse ideário, e, ainda hoje é uma questão que disponibiliza fortes embates entre alguns cristãos (trinitarianos e unitarianos). Como também, muito debate entre historiadores e teólogos. Mas, será que o Antigo Testamento faz alusão ao chamado dogma Trindade? Será que os primeiros escritores cristãos fizeram menção da Trindade no que, posteriormente, veio a se chamar Novo Testamento? É o que discorreremos ao longo dessa pesquisa. Palavras-chave: Cristianismo, Trindade, Judaísmo, Monoteísmo.
Introdução
a controvérsia do valor da circuncisão na assembleia de Jerusalém1, a fé cristã em menor
notório que o cristianismo “bebeu” da fonte
escala ainda continuou com influências judaizantes
judaica no tocante a diversos preceitos e leis
no seu âmago teológico. Destarte, a maior parte
hebraicas, que tiveram uma nova roupagem
dos cristãos assim como os judeus tem a perspectiva
ao serem alocadas no cerne do seu corpo
na crença do Deus único. O Deus que é tido como o
doutrinário. E isso veio se reverberar no que é
criador do universo, “reitor” da natureza, e que
chamado de tradição judaico-cristã. A despeito de
pode intervir no curso natural das suas criações para
ter ocorrido o cisma da crença cristã quanto ao
perpetrar os seus desígnios. Logo, tanto para
arcabouço de crenças judaicas no século I d.C. após
cristãos como para os judeus, existem enumerações
Atos 15. Disputa “teológica” ocorrida aproximadamente no ano de 49 d.C. em Jerusalém entre os representantes dos cristãos judaizantes e Paulo de Tarso, defensor da missão gentílica de cristianização. Nessa reunião, ficou decidido que os gentios que
abraçassem a fé cristã não precisariam seguir algumas questões do rito mosaico. JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 11-12.
É 1
G N A R U S | 37 daquilo que eles convencionaram chamar de
Foi esse o ponto de total discrepância que levou
atributos de Deus. Por exemplo, a onipotência
os cristãos a se diferenciarem dos judeus. Esse
(todo poder é executado por Deus), a onipresença
fragmento de fonte supracitado faz parte do
(não existe lugar que Deus não esteja, pois está em
Pentateuco3, e os judeus o chamam de Shemá. Ou
toda parte) e onisciência (Deus tem a ciência de
seja, é a confissão fundamental de fé do judaísmo.
todas as incidências).
A exortação que teria sido “dada” por Deus começa com o termo hebraico shemá, que significa o ato de
Até aqui nesse sistema de crenças, não há
ouvir. Isto é, o povo judaico deveria atender esse
divergências entre os prismas cristãos e judaicos em
comando para que o mesmo viesse responder
relação ao Deus uno. Porém, os cristãos,
devidamente e propriamente ao seu Deus. O povo
posteriormente, vão se notabilizar e diferenciar dos
deveria ouvir e obedecer, pois Deus o teria
Judeus nesse aspecto pelo acréscimo de mais duas
escolhido como “povo eleito” e não foram os judeus
“deidades” em Deus. Contudo, para a fé cristã (a
que intentaram e fizeram essa escolha. Mas a
maior parte) Deus
predestinação teria
continuaria sendo
ocorrido por parte
único.
de
Seria
se
Deus
como
Origem do monoteísmo judaico Na
Deus.
judeus
ser “solitário”, ou
acreditam
que foram “eleitos”
seja, não existem
por Deus. Segundo
outros deuses, ou
Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração!2.
dos
Dele. Por isso, os
judaica, Deus é um
documento veterotestaméntário:
“busca”
homens em “busca”
monoteísta
companhia. Como pode ser evidenciado no
em
homens e não os
crença
melhor, personalidades divinas para Lhe fazerem
estivesse
os adeptos do judaísmo, Deus teria salvado Israel da escravidão do Egito, teria os guiado através do deserto e forneceu-lhes instrução para que o povo viesse a viver bem na “Terra Prometida”. Além disso, Deus estabelecera um “relacionamento íntimo” com seu povo. Por isso, os judeus quando se referem a Deus o reconhece como Senhor que é o único Deus verdadeiro. Com isso, para os proponentes do judaísmo, Deus teria “revelado” sua unicidade no monte Sinai a
Deuteronômio 6: 4-6. Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) que para os judeus 2 3
são chamados de Torá (“A Lei”). SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p. 391.
G N A R U S | 38 Moisés4. E depois dessa “revelação”, o povo de
Desfechada a visão judaica sobre o Deus uno,
Israel recebeu de Moisés o decálogo que teria sido
agora, analisaremos na esfera do cristianismo o
“dado” por Deus ao profeta para comunicar aos
mesmo
judeus
dez
peculiaridades que faz com que exista um abismo
mandamentos outorgados, fica bem claro a
de discrepâncias em comparação com o judaísmo.
condição de distinção entre Deus e os deuses
Como acentua o historiador Paul Jonhson:
mandamentos.
E
dentre
os
ensinamento,
mas
com
algumas
existentes. Essa passagem do livro de Êxodo é retratada da seguinte forma:
“Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: Eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da servidão. Não terá outros deuses diante de mim”5. Os judeus afiançam que depois de terem passado mais de quatrocentos anos no Egito sendo supliciados pelos egípcios6, Deus teria livrado o povo hebreu dessa subjugação e se “revelou” no
O que o distinguia do judaísmo era a crença na divindade de Cristo. Se Jesus fosse um mero messias, os dois sistemas religiosos seriam conciliáveis, como, aliás, argumentaram os cristãos judeus. Contudo, a insistência de que Jesus era o filho de Deus deixou o movimento de fora dos limites mais extremos do pensamento judaico e não apenas separou os sistemas como criou entre eles uma inimizade mortal. Essa situação acabaria gerada pela vitória da teologia paulina. A divindade de Cristo dotou o cristianismo de seu extraordinário impacto inicial e auxiliou em sua universalidade 8.
monte Sinai como o Deus verdadeiro e que não aceita nenhuma outra divindade. E depois disso, Moisés prescreveu os dez mandamentos que começa com ordenanças no âmbito da adoração do verdadeiro Deus (Iahweh), é salientado como os judeus se relacionariam com seus patrícios e os povos gentílicos, e, é ressaltado a construção de práticas litúrcicas para rituais. Destarte, pode ser visualizado que o ponto capital do judaísmo é a unicidade absoluta de Deus como o criador que é onipotente, onisciente, onipresente. Logo, depois dessas instruções do decálogo, qualquer tentativa dos judeus de querer pender para o politeísmo seria uma abominação. E doravante, aquele que não crumprisse esses preceitos e uma série de outros, seria ameaçado com a destruição e poderia perder a própria vida7.
Êxodo 19. Êxodo 20: 1-3. 6 Ibid., 12:40. 7 Levítico 26. 8 JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 109. 4 5
Desde o século I d.C., grande parte dos adeptos da fé cristã professavam a crença em um único Deus, mas esse Deus singular com o passar do tempo, tornou-se uno e trino concomitantemente. A doutrina cristã “ortodoxa” diz que existe uma “Santíssima Trindade”, isto é, Deus é um ser perene e coexiste com três pessoas eternas, diferentes e que não podem ser fragmentadadas da sua coesão. Esse sistema de crença se dogmatizou no século IV d.C. após o Concílio de Niceia9. De sorte que o Deus uno passou a ser “manifestado” como Pai, o Filho e o Espírito Santo:
No início o dogma da Trindade foi um dogma cristão muito particular. Deus é uno e trino, quer dizer, um Deus em três pessoas. Deus está frequentemente representado por três anjos que serão a encarnação da Trindade. E é, sobretudo em torno dessa 9 Primeira
assembleia “universal” de eclesiásticos que foi convocada pelo imperador Constantino. Ocorreu na cidade de Niceia da Bitínia em 325 d.C. O escopo da reunião foi a busca pelo consenso de diversas questões entre as comunidades cristãs.
G N A R U S | 39
noção bizarra da Trindade que nascem as heresias, quer dizer, “buscas” que não são lícitas, que levam ao abandono da ortodoxia, do verdadeiro dogma, da verdadeira crença e que são injúrias feitas a Deus 10.
essencial para a salvação de cada um foi a Paixão e a morte na cruz”.13 Porém, essa questão da divindade de Jesus foi sendo construída ao longo do tempo. Os
Essa doutrina dos cristãos difere radicalmente do
Evangelhos de Mateus , Marcos e Lucas não
monoteísmo judaico, visto que no judaísmo não
chamam Jesus de Deus em nenhum momento. Já o
existem três pessoas na divindade, há apenas a
Evangelho de João, que foi o último a ser escrito, vai
unicidade absoluta de Deus. E qualquer outra forma
retratar Jesus como um ser preexistente14. Assim, o
de divindade é uma aberração e um sacrilégio.
Evangelho de João foi um dos portadores da alta
Como é salientado nas Escrituras judaicas: “Assim
cristologia15. Os outros três Evangelhos do Novo
diz o Senhor, rei de Israel e seu Redentor, o Senhor
Testamento vão chamar Jesus de Filho de Deus, mas
dos exércitos: Eu sou o primeiro e eu sou o último, e
vão discordar quando isso acontece, ou seja, o
fora de mim não há Deus”11.
momento exato que Jesus se “transformou” em Filho de Deus. Para Mateus e Marcos Jesus se
O estrito monoteísmo judaico foi sendo
tornou o Filho de Deus no batismo16. Segundo
substituído pelos cristãos em um processo de
Lucas, Jesus é o Filho de Deus desde o ato da
deificação de Jesus de Nazaré, o ponto crucial para
“concepção virginal” de Maria17.
os cristãos se dá na centralidade da figura de Jesus. Os cristãos salientam a suma relevância de seus
Contudo, ser Filho de Deus para os judeus antigos
ensinamentos no que tange à moral, dentre os
não era ser um indivíduo com natureza divina. O
principais destacam-se o amor a Deus e ao
teólogo Bart Erhman especialista em Novo
próximo12.
Testamento pontua que:
Mas o âmago da fé cristã se dá na morte
e “ressureição” de Jesus. A vida de Jesus é tida como
O rei muito humano de Israel era chamado de Filho de Deus (2 Samuel 7:14), e a nação de Israel era vista como Filho de Deus (Oseias 11:1). Ser Filho de Deus Costumava significar ser o intermediário humano de Deus na Terra18.
um exemplo a ser seguida, pois no prisma da maioria dos cristãos ele é o Deus “encarnado” (que seria 100% homem e 100% Deus ao mesmo tempo). E para aprender acerca dos “planos” de Deus para o homem, seria preciso observar seus ensinamentos. Assim como pontua o historiador Jacques Le Goff:
“Jesus se torna não apenas o Deus dos homens, mas Deus feito homem, cujo ato
Nos séculos II e III d.C., a maior parte dos cristãos já reconhecia Jesus como Deus. Que segundo a crença “tradicional” dos primeiros cristãos, veio a Terra para libertar e salvar os seres humanos do pecado, e, através da crença na sua morte e
LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.33. 10 11
Isaías 44:6.
Mateus 22:37-39. LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.38. 14 João 1:1-14. 12 13
Descrição de Jesus de Nazaré de forma sobremodo exaltada e divina. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 311. 16 Mateus 3:13-17. Marcos 1:9-11. 17 Lucas 1:35. 18 EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 307. 15
G N A R U S | 40 “ressurreição”, livraria do sofrimento eterno
Além
desses
grupos
cristãos
supracitados
aqueles que confiassem nos seus ensinamentos. A
(ebionitas, marcionistas e gnósticos), ainda tinha os
despeito da construção teológica de Jesus sendo de
judeus “ortodoxos” que também questionavam essa
fato “plenamente divino” e plenamente humano ter
suposta divindade de Jesus que teria sido criada
se tornado majoritária entre os cristãos, existiam
pelos seus discípulos, pois argumentavam que ele
pequenos grupos que não reconheciam esses
jamais teria a natureza divina. Porquanto foi apenas
ensinos. Afinal de contas, ser Filho de Deus não era
mais um ser mortal que exercia alguns “poderes” de
igual a ser divino. Porém, se Jesus fosse Deus, não
cura e exorcismo. De sorte que ao contrário do que
haveria como ter apenas um Deus, mas sim dois
se conta no “mito” da crença cristã, Jesus não teria
deuses (e posteriormente três, com o acréscimo do
ressuscitado, mas teria tido o seu cadáver roubado
Espírito Santo).
pelos seus discípulos para simular uma possível ressurreição.
Nesse contexto, um recorrente e ríspido debate aconteceu entre grupos adocionistas (criam apenas
O surgimento da doutrina da trindade
na humanidade de Jesus) e docetistas (criam apenas na divindade de Jesus). Como no caso dos judeus-
No início do século III d.C., um apologista
cristãos chamados de ebionitas, que diziam haver
(“defensor da fé”) chamado Tertuliano22 se
apenas um Deus e exigiam a necessidade de se
destacou entre os demais e se notabilizou por ser
manter muitos dos preceitos judaicos. Sendo assim,
um heresiologista (“caçador de heresias”) e por ser
Jesus para eles era o Messias19 judeu e
o primeiro a fazer a adesão do termo Trindade para
absolutamente humano. Já para os marcionistas20,
se buscar compreender a tríade Pai, Filho e Espírito
Jesus era completamente Deus e não tinha
Santo.
resquício nenhum de humanidade, pois ele só parecia humano. Todavia, para os marcionistas existia o Deus iracundo do Antigo Testamento e o Deus amoroso de Jesus. Além disso, tinha a perspectiva de vários grupos de gnósticos21 que reconheciam Jesus como divino. Isso era uma prática muito comum entre eles, haja vista que para esses grupos (de gnósticos) muitos outros seres poderiam ser portadores da deidade.
Os cristãos que defendiam a divindade de Jesus estribam-se em escritos da Bíblia (aliás, o cânone do Novo Testamento ainda não estava coligido, mas todos os livros já existiam). Segundo a crença dos mesmos, através da postura de Jesus na trajetória da sua vida e dentro do próprio contexto cultural judaico da época, Jesus teria deixado clara sua condição divina (isso apenas no Evangelho de João, que foi escrito aproximadamente entre 60 a 65 anos após a morte de Jesus). Eles alocam Jesus como
No âmbito judaico, o Messias nunca foi considerado como Deus. Porém, era visto como um mediador entre Deus e os homens para que a vontade de Deus graçasse na Terra. Ibid., p. 316. 20 Seguidores das doutrinas do pregador e “teólogo” Marcião no século II d.C. 21 A palavra grega gnosticismo significa conhecimento. O termo designa grupos cristãos existentes desde o 19
século I d.C. e que professavam que a salvação era adveniente do conhecimento secreto revelado por Jesus, e, não pela fé na sua morte e “ressureição”. EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014, p. 406. 22 Importante “teólogo” da comunidade cristã de Cartago, que ficava ao norte da África. Ibid., p. 416.
G N A R U S | 41 Para Tertuliano o termo Trindade queria dizer três-em-um, de sorte que a palavra sendo aplicada a Deus significaria um único Deus que subsiste em três pessoas. Ficando assim: “O Pai é um, o Filho um e o Espírito Santo um, e eles são distintos um do outro”23. Assim, ao mesmo tempo em que a maior parte dos cristãos dizem haver um único Deus, afirma que o Pai é Deus, o Filho é Deus e que o Espírito Santo é Deus. Porém, essas três pessoas seriam distintas e não teriam a mesma essência e substância. Depois do Concílio de Niceia no século IV d.C., os cristãos “vencedores” desses debates cristológicos se posicionaram ainda mais rigidamente sobre o assunto, pois diziam que é uma insolência discorrer Ícone retratando o Primeiro Concílio de Niceia. a segunda pessoa da Trindade. Todavia, como já ressaltamos nesse trabalho, a deificação de Jesus foi sendo construída aos poucos. Os primeiros cristãos do século I d.C. não tinham essa perspectiva. Analisaremos agora, a explicação trinitária e
sobre questões que não são reveladas aos homens e primavam pelo que ficou acertado no Credo Niceno24. A opinião que se fez “ortodoxa” sobre o assunto, diz que as três pessoas são um Deus. Pois as Escrituras se harmonizam com essa hipótese e tem sido a crença da Igreja desde o primeiro século (argumento já refutado ao longo de nossa pesquisa). Doravante, o Credo atribuído ao bispo
bíblicas
Anatásio25 tentou explicar mais exaustivamente o
veterotestamentárias e neotestamentárias para
obscuro dogma da Trindade. Segue uma parte
elucidar a base de fundamentação cristã proposta
desse documento:
trabalharemos
com
fontes
por Tertuliano (outros escritores eclesiásticos
Todo o que se quiser salvar, deve mais do que tudo ter a fé católica. Aquele que não a guardar pura e inteira, de certo perecerá eternamente. A fé católica, pois, é esta: Adoramos um Deus em Trindade e a Trindade em Unidade. Sem confundirmos as Pessoas ou dividir a substância. Porque uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. Mas o Pai, o Filho e o Espírito
participaram também desse labor teológico) quanto à divindade de Jesus de Nazaré e do Espírito Santo. E a explicação do que, doravante, veio a se tornar o dogma da Trindade.
EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014, p. 420. 24 Declaração de fé que foi construída no Concílio de Niceia para alijar todas as formas alternativas de se conceber Deus. 23
Atanásio foi um diácono de Alexandria no Egito no século IV d.C., que se engajou durante o Concílio de Niceia contra as ideias arianas. Posteriormente, Atanásio se tornou bispo. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 321. 25
G N A R U S | 42
Santo têm uma só divindade, Glória igual e co-eterna Majestade. O que o Pai é, tal é o Filho e tal o Espírito Santo. O Pai é incriado, o Filho é incriado e o Espírito Santo é incriado (...)26.
judeus, se tornou também o Deus cristão. E segundo
Discutiremos agora, as bases de fundamentação
homem no princípio da raça humana. No livro de
do dogma que foram utilizadas pelos cristãos após
Êxodo, teria se “revelado” ao povo através do pacto
a “vitória” do grupo majoritário em Niceia.
mosaico etc. No Novo Testamento de forma geral,
os cristãos “ortodoxos”, esse é o nome pelo qual Deus teria se “revelado” ao homem pecador. No livro do Gênesis, Deus teria se “revelado” ao
Deus teria se “revelado” como o trino e uno Iahweh. Os cristãos que arrogaram serem “ortodoxos”,
Dessa forma, os “cristãos ortodoxos” consideraram
utilizaram tanto o Antigo Testamento como os
que a Trindade é um “mistério” que aparece no
escritos do que, posteriormente, veio a se chamar
Antigo Testamento na expressão da palavra Elohim.
Novo Testamento para se aferrar no dogma da
Como nos mostram mais algumas fontes das
Trindade. No Antigo Testamento, a Trindade é
Escrituras judaicas: “Deus disse: façamos o homen à
inferida pelos trinitarianos através dos nomes que
nossa imagem, como nossa semelhança (...)”29,
Deus teria se “revelado” aos homens. Nessa
“depois disse Iahweh Deus: se o homem já é como
perspectiva, isso indicaria que pode haver
um de nós (...)”30, “vinde! Deçamos! Confundamos
pluralidade de pessoas na divindade. Como é visto
(...)”31. Mas, nessas passagens supracitadas, apenas
no termo hebraico Elohim, que é uma palavra no
é evidenciado um “plural de majestade” que denota
plural e é empregada em alguns lugares do Antigo
a grandiosidade de quem está falando. E não faz
Testamento como relata a fonte: “no princípio criou
menção alguma de uma suposta pluralidade de
Deus (Elohim) os céus e a Terra”27. Os “ortodoxos”
divindades atreladas à Iahweh.
postularam que nesse fragmento, o nome plural é aplicado como sujeito de um verbo singular,
Na perspectiva dos eclesiásticos autointitulados
significando que o Deus uno também é trino.
“ortodoxos”, esses trechos do Antigo Testamento
Contudo, o termo Elohim não existe apenas no
como
plural, pois ele também pode ser aplicado no
satisfatoriamente à pluralidade de pessoas na
singular. Quando empregado no singular se refere
unidade divina. Mas convém lembrarmos que esses
ao Deus monoteísta (Iahweh) e quando é utilizado
textos são de escritores judeus, que foram os
no plural se refere aos deuses pagãos28.
primeiros monoteístas da história universal das
também
outros,
podem
explicar
religiões. E o elemento de capital importância do Nesse processo de construção teológica cristã, o cânone
veterotestamentário
foi
judaísmo é a crença na unicidade de Deus, que é
alocado,
invisível e que não pode ser divisível. Contudo,
doravante, com o cânone neotestamentário. Assim,
esses cristãos (trinitarianos) alegaram que tanto o
Iahweh, que inicialmente era o Deus estrito dos
Credo
de
Atanásio.
Disponível em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/dialogo_ecume nico/os_credos_ecumenicos. Acesso em: 14 de Agosto de 2013. 27 Gênesis 1:1. 26
Ibid., 35:2, Êxodo 18:11, Jó 1:6 e Salmos 8:5. Gênesis 1:26. 30 Ibid., 3:22. 31 Ibid., 11:7. 28 29
G N A R U S | 43 Antigo e o Novo Testamento corroboram com a
que fica claro que há um só Deus: “há um só Deus e
visão da tri-unidade de Deus.
Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos”34; Que este Deus teria enviado seu
Em
relação
ao
Novo
Testamento,
Filho: “quando, porém, chegou a plenitude do
especificamente nos Evangelhos, os adeptos da
tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma
doutrina trinitariana dizem que se tem o
mulher, nascido sob a Lei”35; Que o Filho é Deus
reconhecimento da atuação das três pessoas da
“manifestado” em carne: “seguramente, grande é o
Trindade. Para eles, um dos exemplos mais patente
mistério da piedade: ele foi manifestado na carne,
aparece nos três Evangelhos canônicos (Mateus,
justificado no Espírito, comtemplado pelos anjos,
Marcos e Lucas), que é a narrativa de Jesus sendo
proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na
batizado por João Batista. Segundo os evangelistas,
glória36; E que Jesus se ofereceu a si mesmo a Deus:
quando ocorreu o batismo o Espírito Santo teria
“quanto mais o sangue de Cristo que, por um Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de purificar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos um culto ao Deus vivo”37.
“descido” do céu na “forma corpórea” de uma pomba e Deus teria “falado” que Jesus era seu filho amado32. Mas, nenhum desses textos abordam sobre a doutrina da Trindade, apenas há inferências teológicas.
Nestas passagens acredita-se que se veem três Outro fragmento do Novo Testamento defendido
“personalidades”, porém ao mesmo tempo unidas
pelos triunitários seria a “fórmula do batismo” onde
em uma só divindade. Não é possível citar todos os
Jesus teria prescrito o seguinte: “ide, portanto, e
textos da Bíblia que supostamente abordam essa
fazei que todas as nações se tornem discípulos,
doutrina, pois comprometeria nossa discussão pela
batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito
falta de espaço. Mas vamos rapidamente analisar os
Santo”33. Na visão “ortodoxa” cristã, se não
textos de Paulo38 mencionados anteriormente e do
houvesse distinção pessoal entre o Pai, o Filho e o
escritor da carta aos Hebreus.
Espírito Santo, não seria necessário o emprego dos três nomes nessa passagem. Esse é um dos poucos
Para Paulo de Tarso, realmente existe um só Deus,
pontos da narrativa bíblica que aparece os três
porque o mesmo antes da sua conversão a fé cristã
sendo evidenciados claramente e de forma distinta,
foi judeu e fariseu39. No que tange à epístola escrita
mas não relata nenhuma “fusão três em um” de
para as comunidades cristãs da Galácia, fica
Iahweh, Jesus e Espírito Santo.
evidente que para Paulo, Jesus em hipótese nenhuma era o Deus-Pai, claro que sendo Filho de
Já nos escritos apostólicos, a “ortodoxia” se
Deus, ele seria Deus em algum sentido (como nas
fundamentou no que Paulo escreveu. Ela afiança
mitologias grega e romana). Outra questão
32 Marcos 1.9-11, Mateus,
37
1:32-34. 33 Mateus 28:19. 34 Efésios 4:6. 35 Gálatas 4:4. 36 1 Timóteo 3:16.
3: 13-17, Lucas 3:21-22 e João
Hebreus 9:14.
38 Paulo de Tarso foi um dos grandes escritores cristão do
século I d.C., como também um grande propagador da fé cristã entre os gentios na Antiguidade. 39 Atos 23:6-7, Filipenses 3:5-6.
G N A R U S | 44 morrer, então, ele se entregou a si mesmo e se autodesamparou?41 Estes textos são plenamente utilizados para tentar provar uma doutrina que nunca fez parte do ideário dos primeiros cristãos enquanto Jesus ainda estava com eles e muitos anos depois que ele morreu. O dogma da Trindade foi sendo construído em um processo teológico e teve seu apogeu com a deliberação “ortodoxa” (no século IV d.C.). De modo que todas as outras formas de se “compreender” Deus entre os cristãos foram tidas como “heréticas” e excluídas. Considerações finais Os esclesiásticos criadores da “ortodoxia” buscaram clarificar a questão da Trindade com todos esses apontamentos textuais abordados Ícone com os Pais Sagrados do Primeiro Concílio de Niceia e o imperador Constantino, que exibe não o texto original do Credo Niceno (do ano 325) senão uma versão modificada do Credo niceno-constantinopolitano do Primeiro Concílio de Constantinopla (ano
anteriormente (e tantos outros, a nossa discussão não foi exaustiva. Pois frisamos apenas nos pontos centrais). Todavia, deixamos mais dois fragmentos de textos bíblicos para nossa análise final. O primeiro é de Paulo, que finalizando sua carta aos
importante nessa passagem, é que Paulo diz que
cristãos de Corinto disse o seguinte: “a graça do
Jesus nasceu de uma mulher. Mas não mencionou o
Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão
nome de Maria e nem a “virgindade na concepção”.
do Espírito Santo estejam com todos vós!”42. Mais uma vez as três “pessoas divinais” aparecem citadas,
Com relação aos textos de Efésios e 1 Timóteo
entretanto, não há aquele sistema unificador do
também citados anteriormente, essas cartas não
Deus uno com o trino criado a partir do século III
fazem parte dos ecritos de Paulo, pois são
d.C., e que teve seu desenvolvimento e apogeu no
falsificações feitas no seu nome40. No tocante ao
século IV d.C. O segundo é do profeta Isaías, onde
texto de Hebreus, o autor fala que Cristo (Jesus) se
Deus teria feito as seguintes indagações: “a quem
entregou a Deus por um Espírito eterno que
podereis comparar-me ou igualar-me? Quem
forçadamente a “ortodoxia” interpretou como
podereis em paralelo comigo, que seja igual?43.
Espírito Santo para justificar suas doutrinas
Para os judeus, esse é mais um texto que mostra a
triunitárias. Mas, Se Jesus se entregou a Deus para 40 As epístolas de Paulo aceitas pelos estudiosos do Novo
Quem Pensamos Que São. Rio de Janeiro: Agir, 2013, p.
Testamento como advindo dele são apenas sete (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicences e Filemom). EHRMAN, Bart D. Quem
97-118. 41 Mateus 27:46. Marcos 15: 34. 42 2 Coríntios 13:13. 43 Isaías 46: 5.
Escreveu a Bíblia?: Por que os Autores da Bíblia Não São
G N A R U S | 45 incomparabilidade de Deus com os seres humanos e divinos. Em resumo, constata-se que nenhum dos escritos do
Antigo
e Novo
Testamento
defendem
claramente essa crença tida como dogma da Trindade.
No
Antigo
Testamento,
seria
inconcebível que escritores judeus salientassem esse pluralismo em Deus. No Novo Testamento, são feitas analogias para tentar confirmar o ponto de vista dos cristãos que se sagraram “vitoriosos” do Concílio de Niceia em detrimento de cristãos que foram tidos como heterodoxos. Flávio Henrique Santos de Souza é Licenciado em História pela Universidade Castelo Branco (UCB) e Pósgraduado em História Antiga e Medieval pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEA-UERJ).
Referências bibliográficas Documentação
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Nova Edição, Revista: Paulus, 1973.
Credo
de Atanásio. Disponível em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/dialogo _ecumenico/os_credos_ecu. Acesso em: 14 de Agosto de 2013.
Bibliografia geral CURTIS A. Kenneth. Os 100 Acontecimentos Mais
Marcantes da História do Cristianismo: do Incêndio de Roma ao Crescimento da Igreja na China. São Paulo: Editora Vida, 2003.
EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014. ____________. Evangelhos Perdidos. Rio de Janeiro: Record, 2012. ____________. O Que Jesus disse? O Que Jesus Não disse?: Quem Mudou a Bíblia e Por quê? Rio de Janeiro: Agir, 2015. ____________. Quem Escreveu a Bíblia?: Por que os
Autores da Bíblia Não São Quem Pensamos Que São? Rio de Janeiro: Agir, 2013.
____________. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? Rio de Janeiro: Ediouro, 2010. FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I-VII). São Paulo: Paulus, 1995. GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. Editora Vida: São Paulo, 2007. HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Risari, 2008. JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. JOSHUA, Abraham Heschel. Deus em Busca do Homem. São Paulo: ARX, 2006. LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Monsenhor Cristiani. Breve História das Heresias. São Paulo: Flamboyant, 1962. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006.
G N A R U S | 46
Artigo
DA CIVILIZAÇÃO DOS TRÓPICOS À BARBÁRIE DAS FAVELAS CARIOCAS Por: Dunstana Farias de Mello
Resumo: Ao longo do século XIX as jovens nações americanas procuraram construir suas identidades nacionais, apoiando-se na exuberância da natureza, pois consideravam inexpressivos e inadequados os elementos culturais e étnicos, decorrentes da miscigenação. A natureza foi considerada por muito tempo o lugar da barbárie à espera da ação do homem branco para transformá-la em civilização. O conceito de civilização, valorizado no século XIX, foi empregado utilizado para justificar o domínio dos europeus sobre outros povos e depois o domínio dos seus descendentes americanos sobre os negros e os indígenas. A dicotomia civilização/barbárie foi empregada em diversos contextos. Entre eles, podemos citar o estabelecimento do contraste entre as favelas (barbárie) e a cidade formal (civilização), no Rio de Janeiro.
"Cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra." (Michel de Montaigne)
A
o longo do século XIX o cientificismo
novos países ansiosos em forjar suas identidades
contribuiu para o desenvolvimento e a
nacionais. Na América do Norte, os Estados Unidos
aceitação da convicção da superioridade
já haviam se libertado da Inglaterra desde 1776 e,
da raça branca sobre os outros povos do mundo, o
no século seguinte, rapidamente se uniram sob o
que convenientemente abriu as portas para a
princípio de Destino Manifesto, que os impulsionou
conquista e colonização da África e da Ásia pelos
para a conquista do oeste. Entretanto, na América
europeus. Na América, o século XIX foi o palco da
Latina, de um modo geral, as nações recém-
independência da maioria das colônias, surgindo
independentes tomaram rumos diferentes visando
G N A R U S | 47 o mesmo objetivo: construir-se enquanto nação. A
aguarda a ação do homem civilizado para sua
forte presença de indígenas (na América andina) e
transformação.
de africanos (principalmente, no caso do Brasil), que nas nações recém-independentes da América Latina estavam integrados economicamente e que, portanto, eram necessários à continuidade da produção de matérias-primas destinadas aos mercados europeus, não contribuía para a formação de uma identidade nacional calcada na formação do povo e exigia uma urgência em buscar novos elementos para dar base a essa unidade. O enaltecimento da beleza e originalidade da natureza americana foi o amálgama encontrado para constituir as jovens nações.
A
dicotomia
civilização/barbárie
adquiriu
diversos contornos na América oitocentista: cidade/pampa, na Argentina; litoral/sertão, no Brasil; como podemos ver, respectivamente, nos escritos de Domingos Faustino Sarmiento e do Visconde do Uruguai. Esse processo desaguou no século XX, quando, no Brasil, a República intensificou as ações destinadas a integrar esses dois polos, promovendo expedições com diversas finalidades objetivamente, mas com um único intuito abrangente de levar a civilização ao sertão. No caso especificamente urbano carioca, os novos
Desde o século XVIII, se argumentava na Europa
bárbaros são os moradores das favelas. Na cidade
sobre fragilidade ou mesmo a insalubridade da
do Rio de Janeiro, a civilização e a barbárie
natureza americana e dos seus nativos. Ao clima
conviveram
tropical, especialmente da América do Sul, era
respectivamente, no branco livre e no escravo. As
atribuído a fonte de doenças e de degeneração
obras de Jean Baptiste-Debret expõem a distinção
humana.
intelectuais,
entre a vida reservada das famílias nos ambientes
principalmente americanos, que se esforçaram para
domésticos e as ruas da cidade onde circulavam os
desconstruir essa imagem negativa do continente.
negros, principalmente os negros de ganho. O fim
No México, a resistência de antiquários crioulos,
da escravidão deslocou a barbárie para os cortiços
com a tentativa de preservação de documentos dos
e posteriormente para as favelas, local de absorção
povos
fortes
dos pobres que chegavam à cidade, vindos da
questionamentos às ideias negativas sobre a
Europa e de outras regiões do país. Ao longo do
América e seus habitantes, que se consolidavam na
século XX, foi-se formando gradativamente a
Europa. Com os movimentos de independência
imagem da favela como um lugar de exclusão, um
americanos as elites se viram impossibilitadas de
mundo a parte, violento e insalubre, mas que às
extrair elementos favoráveis à unidade nacional da
vezes ganhará contornos de interior que se
essência dos povos miscigenados e de suas
avizinha, de roça tranquila e atrasada, carente de
heranças históricas. Coube à natureza o lugar de
civilização.
Muitos
foram
pré-colombianos,
os
provocou
refúgio aonde era possível construir as imagens de nações exuberantes, com um futuro promissor que as aguardava. A natureza selvagem não seria mais o lugar que brutaliza o homem, mas se transformaria no “vazio”, na ausência de civilização, no lugar que
durante
séculos
incorporados,
Neste artigo, veremos como o conceito de barbárie se deslocou, adquirindo novas formas, dependendo dos interesses daqueles que se julgaram exemplos da civilização que pretendiam propagar.
G N A R U S | 48 A América sob a ótica do estrangeiro
intenção de conhecer para melhor explorar essas
A influência do meio natural na construção da identidade nacional de um povo foi valorizada na América a partir do século XIX. No caso brasileiro, durante o Império, veremos a necessidade de buscar elementos de orgulho nacional, que pudessem servir de amálgama para conferir uma unidade à diversidade presente a uma nação tão extensa geograficamente. Nosso passado colonial não era um motivo de orgulho, portanto não era um passado a ser lembrado sem críticas, e o passado indígena só seria motivo de idealização de uma época distante e perdida. O pensamento científico ao longo do século XIX, por outro lado, determinou a existência da superioridade de uma raça sobre as outras e o Brasil, um país fortemente miscigenado, não encontraria na constituição do seu povo um motivo de orgulho nacional. Coube à exuberância do meio natural do território brasileiro o papel de
Maria Elisa Noronha de Sá (2012: 109-110), em obra
Civilização
e
barbárie,
observa que, desde o século XVIII, pensadores como o naturalista francês Conde de Buffon e o holandês Cornelius De Pauw teorizaram sobre a inferioridade da América quando comparada à Europa. Para Buffon, a América era “imatura”. Para De Pauw, mais radical, os trópicos provocariam a degeneração dos homens que aqui viviam, mesmo os descendentes de europeus. Suavizando o discurso de De Pauw, outros pensadores, inclusive Buffon, acreditavam na juventude do continente americano
e
no
seu
destino
natural
Nos
moldes
iluministas,
cientistas
dedicados a diversas áreas do conhecimento viajaram ao continente americano para conhecer as espécies animais, os minerais e os habitantes nativos. Embora houvesse vozes discordantes, as ideias mais aceitas na Europa deram ao homem americano a imagem de insensível e inepto. Um bom exemplo a ser citado é a Relation Abrégée, de Charles-Marie de La Condamine, que teve uma grande aceitação na França, em 1745. La Condamine, após ser enviado por uma missão francesa para medir a circunferência da Terra à altura do Equador, decidiu descer o Rio Solimões desde sua origem até a desembocadura do Amazonas no Pará para conhecer e descrever as plantas, os animais e os homens que ali se encontravam. No século XVIII, relatos de viagens tinham grande receptividade no meio acadêmico e literário europeu e La Condamine logo encontrou
representante do nosso valor enquanto nação.
sua
regiões.
de
desenvolvimento a ser conduzido pelos europeus. “Viagens filosóficas” foram implementadas pelos europeus no século XVIII, para visitar outros continentes como a África e a América, com a
ecos as suas observações sobre os nativos da América. La Condamine recolheu informações com europeus que já viviam na América há algum tempo, como o Marques de Valleumbruso e o jesuíta Jean Magnin, que conheceu em Quito, antes de começar sua viagem. Deles, La Condamine tomou como suas as impressões bastante negativas sobre os nativos e reforçou as ideias já difundidas de Buffon sobre a imaturidade do indígena e também sobre a falta de caráter, a preguiça e a incapacidade intelectual dos mesmos, defendidas por De Pauw (SAFIER, 2009). Também criou polêmica ao afirmar a existência de mulheres guerreiras, vivendo isoladas na floresta: as amazonas. Segundo Neil Safier (2009:110), que escreveu sobre o impacto causado pelo relato de La Condamine ao reforçar tais ideias, o malefício
G N A R U S | 49 causado por ele não pôde ser superado, apesar das
mais bem exposto no texto de Maria Ligia Coelho
várias contestações que se seguiram. Como
Prado (1999: 197), ao analisar a visão sobre a
exemplo, Safier cita as críticas feitas pelo português
natureza presente nas obras literárias e políticas e
Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que percorreu
na pintura, especialmente nos pintores da Escola do
o Rio Negro, visitando, trinta anos depois, muitos
Rio Hudson, que se dedicavam a pintar a natureza
lugares onde esteve La Condamine, e questionou
daquela região. Esses pintores estudaram na
várias de suas afirmações sobre a natureza do
Europa, absorveram os padrões técnicos europeus,
nativo, negando a existência das amazonas. O
mas dedicavam-se a uma temática completamente
naturalista alemão Alexander von Humboldt,
norte-americana. A natureza ganhava caráter
embora discordasse das ideias de Buffon e De
divino. O wilderness,
Pauw, apoiou fortemente La Condamine quanto ao
aproximava o homem de Deus. Ao analisar as
mito das amazonas (Idem: 108). O mesmo
pinturas, especialmente as do pintor Thomas Cole,
Humboldt influenciou o meio acadêmico europeu
Prado observa que constantemente os homens são
ao buscar fundamentos científicos para negar a
retratados com uma dimensão bem pequena, em
inferioridade da América e afirmar a igualdade
contraste com a natureza grandiosa. Com a
entre as raças humanas.
expansão para o Oeste, os temas da natureza
Segundo Maria Ligia Coelho Prado (1999: 185), Humboldt apresentou de forma entusiástica a natureza americana e saiu em sua defesa, contra as ideias de Buffon e De Pauw, tão aceitas na Europa. Humboldt se transformou em leitura obrigatória na América Espanhola. Ainda segundo Prado, as críticas às ideias de Buffon e De Pauw tiveram diferentes origens quando se compara a América do Norte e a América Espanhola: na primeira, coincidiu com uma nação já independente buscando a construção de uma identidade nacional e os principais defensores pautavam-se na grandiosidade da natureza americana, chegando mesmo a pretenderem provar a sua superioridade frente à europeia; enquanto na segunda, o prisma religioso católico era dado pelos jesuítas recémexpulsos que retornaram à Europa. Uma forte reação a essas ideias também se apresentou nas colônias americanas no Norte, após se libertarem do domínio inglês, valorizando a grandiosidade da natureza americana. O caso norte-americano está
a natureza intocada
diversificaram-se em novas paisagens sempre grandiosas. A fronteira era o local onde a barbárie e a civilização se encontravam. Segundo o historiador Frederick Jackson Turner, os Estados Unidos tinham um futuro grandioso a ser alcançado. É a ideia do Destino Manifesto. A marcha para o Oeste teria moldado o caráter do homem norte-americano e teria também formado suas convicções políticas na democracia. No caso sul-americano, os pintores presentes tanto no Brasil, quanto na Argentina e em outros países do continente na primeira metade do século XIX, eram quase sempre estrangeiros que apresentavam um gosto pelo exótico, diferentemente do tom nacionalista de exaltação da natureza, presente nas obras dos pintores norte-americanos. Os pintores interessavam-se pelos tipos físicos, como o gaúcho, nos pampas, por exemplo.
G N A R U S | 50 A
visão
do
civilizado),
na
rua
estrangeiro sobre as
onde é feita e servida
terras
a
pode pela
americanas ser
comida
ilustrada
passagem
(ato
incivilizado).
de
Civilização e barbárie
Jean-Baptiste Debret
convivendo
pelo
ambiente urbano do
Brasil,
mais
precisamente pelo Rio
Rio
de Janeiro, durante a
oitocentista.
presença
episódio
portuguesa primeiro
da
corte e
o
no
de
Janeiro O que
se
passou em torno da Jean-Baptiste Debret: castigo de escravo.
reinado.
Verifica-se em sua obra
pintura elaborada por Debret para o pano de
Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil uma
boca que seria usado na encenação da coroação de
predominância de imagens relativas aos negros de
D. Pedro I demonstra o confronto entre civilização
ganho, seguidas de outras também em grande
e barbárie presente nos interesses da nova nação:
número sobre costumes indígenas, somando mais
Debret colocou duas palmeiras ladeando o trono
da metade das 104 pinturas ali reunidas. O próprio
onde a Monarquia, representada por uma figura
título da obra já revela a intenção do autor: mostrar
feminina deveria estar, o que foi categoricamente
o que há de exótico aos olhos de um europeu.
rejeitado por José Bonifácio, para quem era
Enquanto na obra de outros artistas, seus
fundamental que o Brasil assumisse uma imagem
contemporâneos, como Johann Moritz Rugendas e
civilizada, que as palmeiras contrariavam. Debret
Nicolas-Antoine Taunay, os negros se misturam na
abriu mão de sua intenção de ressaltar o exótico, o
paisagem, em Debret eles aparecem como tema
que havia de pitoresco, e trocou as palmeiras por
central de seus quadros. Essa observação se torna
colunas gregas, eliminando a barbárie em favor da
particularmente
imagem de civilização que a monarquia pretendia
interessante
quando
nos
deparamos com declarações de Debret sobre os negros, descrevendo-os com inúmeros adjetivos pejorativos,
entre
eles
preguiçosos
e
indisciplinados. A visão de Debret correspondia à mentalidade da época: a escravidão, embora condenável, tinha a qualidade de dar ao negro um pouco de civilidade. Os conceitos de civilização e da função civilizadora do branco estão claramente presentes em uma de suas obras, Negras
cozinheiras, vendedoras de angu. Nesse quadro, Debret retrata uma negra comendo com talher (ato
demonstrar (BORGES, 2008). Na América Hispânica, especialmente na região andina e na Meso-América, diante dos grandes impérios que ali os espanhóis encontraram, veremos uma valorização das culturas précolombianas como um passado do qual devem se orgulhar,
porém
sem
vínculo
com
seus
descendentes. Uma grandiosidade que ficou no passado. Os mestiços urbanos eram usados como exemplo de um povo desprezível, composto de mentirosos, corruptos e de seres de pouca
G N A R U S | 51 inteligência pelos europeus, no que os crioulos
velho continente, não sendo capazes de comportar
concordavam, mas diziam que eles não poderiam
a diversidade americana. Com a intenção de expor
servir de modelo de comparação com os
e discutir os relatos dos estrangeiros sobre a
ameríndios do passado, esses sim, capazes de feitos
América, Alzate y Ramirez lançou as Gacetas de
grandiosos e que não se deixaram conquistar
Literatura, onde criticava, por exemplo, os escritos
facilmente pelos espanhóis. Já no final do século
do francês La Porte, do inglês Lord George Anson e
XVIII surgiu no México debates calorosos sobre o
o barão Ignaz von Born. Outro estudioso crioulo,
passado ameríndio a partir da investigação dos
Antonio de León y Gama, embora discordasse de
vestígios deixados por esses povos. Pesquisadores
Alzate y Ramirez quanto a impossibilidade de
locais divergiam entre si e, principalmente,
compreensão dos registros nas pedras astecas,
divergiam dos europeus quanto ao valor da cultura
admitia também a incapacidade dos europeus em
dos povos ameríndios que viviam naquela região
entender a grandiosidade da cultura ameríndia.
antes dos espanhóis. Após a descoberta de duas
Embora Alzate y Ramírez e León y Gama
pedras com inscrições que foram reconhecidas
discordassem em muitos pontos, eram ambos
como calendários astecas, houve por parte dos
patriotas que buscavam através de um Iluminismo
estudiosos crioulos um esforço para interpretá-las e
hispano-americano valorizar o passado ameríndio e
um reconhecimento do grau elevado daquela
estabelecer um distanciamento das críticas dos
civilização. Também as ruínas de Xochiclaco, um
europeus ao novo mundo. Deve-se a eles, entre
castelo fortificado, deram elementos aos crioulos
outros crioulos estudiosos dos povos pré-
para contradizer os iluministas europeus que
colombianos, a preservação de documentos
insistiam em afirmar a fragilidade da cultura
ameríndios no México. Não faltaram esforços da
ameríndia. Buffon De Pauw e outros pensadores
coroa espanhola para se apoderar de documentos
europeus da época desprezavam a cultura os povos
originais indígenas reunidos por Lorenzo Butorini,
pré-colombianos e diziam que os registros nas
no início do século XVIII. Foi o empenho e a astúcia
pedras não poderiam ser inteligíveis, porque não
desses estudiosos que fizeram com que as
havia nada ali a ser decifrado. Entre os crioulos,
expedições destinadas ao resgate desse material se
temos o exemplo de José Antonio de Alzate y
frustrassem com a aquisição de cópias produzidas
Ramírez que neste ponto concordava em parte com
por eles e também pelos desencontros que não
os europeus, pois também considerava as inscrições
permitiram aos espanhóis encontrar os originais.
ininteligíveis, mas descartava todas as outras
Lamentavelmente, no início do século XIX, novos
observações feitas por eles sobre o passado
ventos republicanos acabaram por espalhar grande
ameríndio. Considerava que os europeus eram
parte desses documentos pela Europa e Estados
despreparados para entender a América e seu
Unidos. Mesmo assim muitos deles podem ser
passado, que podiam ser facilmente enganados
encontrados hoje no México. (CAÑIZARES-
pelos mestiços e os descendentes dos ameríndios
ESGUERRA, 2011: 327-365).
atuais, e que suas sistematizações científicas estavam restritas ao conhecimento que tinham do
A descoberta de ruinas na Meso-América, mais precisamente ruínas maias em Palenque, no
G N A R U S | 52 México, no final do século XVIII, suscitou várias
natal”. Segundo Smith, “todo conceito de
interpretações sobre o passado americano, que em
identidade nacional se baseia no processo de
muitas ocasiões foi relacionado com passagens
assimilar, delimitar e reinterpretar uma terra natal
bíblicas e lendas europeias de povos perdidos.
autêntica que una os ancestrais com os vivos e com
Ainda no século XVIII, três expedições foram
os que estão para nascer.” (SÁ, 2012: 117-118).
enviadas a Palenque: a de José Antonio Calderón, a
Deste modo, é possível identificar a exaltação da
de Antonio Bernasconi e a de Antonio del Rio. A
natureza feita por diversos povos como forma de
primeira concluiu rapidamente se tratar de um
criar uma identidade nacional, não apenas na
grande achado que glorificaria a Espanha, pois
América. De terra imatura e até mesmo
havia indícios que sugeriam não ser sido construída
degenerada do século XVIII a América passou, no
por ameríndios, mas por outros povos, romanos ou
século XIX, à terra destinada a ocupação dos
cartagineses. Na seguinte, o arquiteto Bernasconi
europeus e seus descendentes que a fariam
contava com sua reputação para fazer valer suas
civilizar-se. As ideias europeias sobre a América não
conclusões sobre as ruínas que considerou sem
eram ignoradas pelos colonos, que as aceitavam,
grande importância e descartou a possibilidade de
adaptavam ou rejeitavam, conforme os interesses
ter sido construída por outros povos que não os
das elites interessadas na construção de uma
antepassados ameríndios. A terceira expedição
identidade que conferisse uma nacionalidade.
concluiu que, pela grandiosidade arquitetônica do local, aquela cidade só poderia ter sido erguida pelos romanos. Também sugeriram que poderia ter havido
a
presença
de
fenícios
e
gregos
(CAÑIZARES-ESGUERRA, 2011: 384-393). É curioso notar como a possibilidade de ter sido originada por povos não americanos, no caso os europeus, trazia uma valorização das ruinas, e como no imaginário dos antiquários crioulos do México, do final do século XVIII e início do século XIX havia a permanente preocupação em construir um passado glorificado, seja através do reconhecimento do valor do passado ameríndio, ainda que seus descendentes fossem indignos dele, seja através da busca por semelhança com ancestrais bíblicos ou romanos.
Mais
ao
sul
da
América,
a
dicotomia
barbárie/civilização está presente na expressão pampa/cidade, na Argentina, demonstrada na obra de
Domingos
Faustino
Sarmiento,
que
se
preocupou com a construção de uma identidade nacional daquele país na segunda metade do século XIX. O pampa se encontra descrito por Sarmiento
não
como
um
lugar
selvagem,
degenerador do caráter, tal qual o descreveram os viajantes europeus do século XVIII, mas como um vazio populacional a ser ocupado pela civilização, embora não fossem exatamente vazios. Os nativos que ocupavam a região não eram considerados por Sarmiento. A civilização encontrava-se nas cidades, que detinham as instituições políticas e culturais, de onde esta se irradiaria para o campo, o pampa
Segundo Anthony Smith, a construção de uma
incivilizado, principalmente Buenos Aires, por estar
identidade nacional passa tanto pelo fundamento
em estreita ligação com as nações europeias.
histórico e pela composição étnica de um povo,
Porém em Sarmiento se encontra também uma
como também pela “natureza histórica da terra
valorização do gaúcho, que embora rude, era capaz
G N A R U S | 53 de dominar a natureza do pampa. A natureza
facções políticas comandadas pelas famílias que
original da América, especialmente do pampa
desejam tão somente o poder local para perseguir
argentino, conferia um caráter único ao povo que o
seus inimigos. Tanto na obra de Sarmiento quanto
ocupava, constituindo um povo “distinto e
dos textos do Visconde do Uruguai, a dicotomia
autônomo” (SÁ, 2012). Para Sarmiento, a vastidão
civilização/barbárie não é excludente, já que o que
do pampa, a natureza selvagem, tornava o gaúcho
se deseja é a transformação tanto do pampa quanto
quase um bárbaro tendente ao despotismo. A
do sertão em espaço civilizado através do
mesma natureza intocada que segundo Turner, nos
povoamento (SÁ, 2012).
Estados Unidos, dava ao homem um individualismo que fazia brotar a democracia, para Sarmiento, na Argentina, o afastava da civilização (PRADO, 1999: 212). A construção de uma identidade nacional passa pela interpretação que cada povo faz de seus costumes seu passado histórico comum e do espaço geográfico onde atuam, segundo Smith, criando o que ele chamou de “mapa cognoscitivo”. Então, a afetividade que cada povo desenvolve para com a sua terra natal é um elemento constitutivo da identidade nacional (SÁ, 2012: 118). Também
no
Brasil
essa
Além dos escritores e pintores quanto à composição de uma imagem da América, também podemos destacar a fotografia, que (apesar de, e também justamente porque traz em si mesma o selo de representação fidedigna da realidade) difundiu ainda mais os tipos físicos e as paisagens não europeias na Europa. A litografia contribuiu para tornar mais barato e acessível a reprodução de pinturas e fotografias que passaram a decorar os papéis de parede da burguesia europeia com imagens pitorescas na segunda metade do século
dicotomia
XIX. Em 1857, chegou ao Brasil o fotógrafo Victor
civilização/barbárie vai aparecer nos textos do
Frond que, junto com Charles Ribeyrolles, compôs
Visconde do Uruguai, estudado por Maria Elisa
um álbum chamado de Brazil pitoresco, destinado a
Noronha de Sá. De forma semelhante à Argentina,
abordar o caminho rumo à civilização em que se
o contraste será sertão/litoral (e algumas vezes,
encontrava a sociedade brasileira de então,
sertão/Corte), visto que as cidades do Brasil
fotografando,
Imperial estão localizadas principalmente no
situações de trabalho. Dois anos antes, em 1855,
litoral. Tal qual o pampa, o sertão é despovoado e
vindo de Açores, o fotógrafo português Christiano
incivilizado, mas o Visconde do Uruguai não lança
de Freitas Henrique Júnior, passou por Maceió, Rio
um olhar poético para o sertão, como faz
de Janeiro e Buenos Aires, registrando imagens de
Sarmiento. Para o Visconde, só um governo
tipos considerados pitorescos aos olhos europeus:
centralizado político-administrativamente seria
um grande número de imagens dedicadas a negros
capaz de promover a civilização do sertão, mesmo
e
porque, ao estudar as organizações políticas locais,
desaparecendo. Os seus “typos pretos” eram
o Visconde vai concluir que uma política
retratados em diversos ofícios, como ambulantes,
organizada em torno de princípios políticos só é
barbeiros, entre outros, com poses montadas em
possível no meio civilizado urbano, pois nas
fundo neutro, sugerindo que os negros poderiam
pequenas localidades o que predomina são as
ser da África ou de qualquer outro lugar onde a
a
ofícios
paradoxalmente,
que
na
Europa
escravos
já
em
estavam
G N A R U S | 54 combater a rebeldia no campo; a instalação de telégrafos no interior do Mato Grosso, para integrar a comunicação das regiões de fronteira com o Paraguai e a Bolívia com a capital federal, e que mais tarde se estendeu à Amazônia; e a repressão à Coluna Prestes; a pesquisa e o combate a doenças tropicais, feita pelos médicos e pesquisadores do Instituto Osvaldo Cruz. São ações bastante diversificadas que convivem com a antítese de reconhecimento do sertão ora como local de deserto de pessoas e de civilização, ora com local de autenticidade cultural, que não existe mais nas cidades influenciadas pelo estrangeiro. O combate a Canudos deixa claro o papel civilizador de suprimir a barbárie do sertanejo. Mesmo assim, "Typos de pretos" de Christiano Junior
vemos em Os Sertões, de Euclides da Cunha, um sertão antes de tudo resistente às mudanças, com
escravidão de africanos existiu. (BORGES, 2008). A
uma cultura tradicional, ao invés de bárbaro. A
busca pela civilização intensificou-se com o fim da
oposição entre litoral e sertão parece, então, se
escravidão e o início da República, e teve grande
diluir e se transformar em conciliação quando se
ênfase nas missões civilizatórias destinadas à
observa as atividades do sertanista Cândido
integração do país.
Mariano da Silva Rondon, que após assumir diversas
A ótica do estrangeiro, no que diz respeito
atividades no interior do país, como, por exemplo,
ao seu papel civilizador, ganharou uma nova
a inspeção de fronteiras e a construção de linhas
perspectiva aos olhos das elites urbanas, mais
teleféricas no Mato Grosso e na Amazônia, vai se
precisamente na visão de missão civilizadora da
notabilizar pelo trabalho junto a o Serviço Nacional
cidade sobre o sertão. Apesar do Brasil já ter suas
de Proteção ao Índio. As expedições de Rondon não
fronteiras quase que integramente definidas desde
se limitavam a uma só atividade: enquanto linhas
o século XVII, ainda durante o Império já havia a
teleféricas eram instaladas, se desenvolvia um
preocupação
país,
trabalho de reconhecimento dos rios, da flora e da
principalmente ligando o litoral ao interior, trajeto
fauna das regiões visitadas, além dos contatos com
que levaria a civilização para os recantos
os indígenas, o reconhecimento das línguas faladas
despovoados, garantindo a ocupação do território
e as condições epidemiológicas encontradas.
nacional e a construção de uma nação civilizada. Na
Contribuições igualmente importantes foram
República essas preocupações se intensificaram e
somadas pelas viagens científicas empreendidas
ganharam novos significados. Podemos citar como
pelos pesquisadores de Manguinhos. Seguindo a
exemplos: a guerra de Canudos e a necessidade de
esteira dos engenheiros, médicos eram enviados
com
a
integração
do
G N A R U S | 55 para o interior onde estavam sendo construídas
janelas fechadas, demonstrando que o espaço do
ferrovias para tratar de doenças tropicais que
negro é a rua, separada do ambiente doméstico das
frequentemente acometiam os trabalhadores.
famílias brancas (BORGES, 2008). Esse contraste
Exemplares de hospedeiros do mal de Chagas, da
tomou novos rumos, porém permaneceu vivo,
malária e outras moléstias foram recolhidos e
mesmo depois do fim da escravidão.
estudados pelo Instituto Osvaldo Cruz, trazendo grande contribuição para o tratamento dessas doenças. Os médicos e sanitaristas não foram convocados
apenas
para
solucionar
as
enfermidades recorrentes no interior do país. Também a capital federal vinha sendo assolada por essas e outras doenças, necessitando de urgentes
No início do século XX, o prefeito Francisco Pereira Passos expulsou os moradores dos cortiços do centro da cidade do Rio de Janeiro para dar lugar a Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco). Os moradores expulsos dirigiram-se aos morros próximos, especialmente ao atual Morro da Providência, que na época também era conhecido
reformas
como Morro da
direcionadas
Favella, já então
para
a
urbanização
e
parcialmente ocupado, desde
saneamento
1897,
(LIMA, 1998).
soldados vindos da
já
foi
guerra
Canudos,
A convivência entre a civilização e a barbárie na cidade do Rio de Janeiro Como
por
Bahia,
de na para
cobrar promessas feitas
Morro da Favela (Augusto Malta)
visto anteriormente
Ministério
pelo da
Guerra, localizado
nas obras de Debret, na cidade do Rio de Janeiro
nas proximidades.
conviviam o branco e o negro, o livre e o escravo; os
cidade passaram a ser chamados de favelas e foram
primeiros como representantes da civilização,
inicialmente ocupados, além dos ex-moradores dos
enquanto os outros condenados à barbárie. Dois
cortiços, por imigrantes estrangeiros pobres,
mundos diferentes que se justapunham e que
portugueses, espanhóis e italianos, que não
estavam ao mesmo tempo separados e juntos. Em
encontravam moradias na cidade. Mas tarde,
Debret, nas obras onde são retratados os negros de
começaram a chegar os imigrantes provenientes de
ganho, o elemento branco não aparece, apesar de
diversos Estados da Federação, principalmente da
o mesmo não ocorrer sempre quando os brancos
Região Nordeste, fugindo da seca, da falta de
são os objetos da pintura. Nas obras onde o negro é
oportunidades e da exploração no campo. O nome
o elemento de enfocado, quando as construções
Providência refere-se às providências que estavam
servem de pano de fundo, elas sempre estão de
sendo aguardadas pelos sodados, primeiros
Desde então, os morros da
G N A R U S | 56 moradores, enquanto o termo Favella, está ligado a
construídas com caixotes, “a impressão lida da
uma planta abundante nos morros próximos ao
estrada do arraial de Canudos” (VALLADARES,
Arraial de Canudos, na Bahia.
2000: 6). Valladares deixa claro a identificação das
Em 1900, o Morro da Providência ou Favella foi denunciado
nos
jornais
como
reduto
de
vagabundos e criminosos e, em 1907, o mesmo local chegou a ser saneado pela campanha liderada por Osvaldo Cruz. As favelas, desde seus primeiros anos,
foram
reconhecidas
como
um
local
assustador. A favela foi identificada como um sinônimo de problema: de segurança, de saúde e de falta de ordenamento arquitetônico. Até os anos 50, as observações feitas sobre as favelas e seus moradores ficaram a cargo dos jornalistas, cronistas,
engenheiros,
arquitetos,
médicos,
administradores públicos e assistentes sociais. Só a partir da segunda metade do século XX, elas se tornaram objeto de estudo das ciências humanas e sociais. (VALLADARES, 2000: 2). Segundo demonstra Lícia Valladares (2000), em seu ensaio A Gênese da Favela Carioca, independentemente da origem do discurso, havia um consenso formador de um arquétipo da favela
favelas cariocas e de seus habitantes com o Arraial de Canudos:
“A ideia de comunidade, tão presente no arraial analisado por Euclides da Cunha, acaba se transpondo para a favela, servindo como modelo aos primeiros observadores que tentaram caracterizar a organização social dos novos territórios da pobreza na cidade. À semelhança de Canudos, a favela é vista como uma comunidade de miseráveis com extraordinária capacidade de sobrevivência diante de condições de vida extremamente precárias e inusitadas, marcados por uma identidade comum. Com um modus vivendi determinado pelas condições peculiares do lugar, ela é percebida como espaço de liberdade e como tal valorizada por seus habitantes. Morar na favela corresponde a uma escolha, do mesmo modo que ir para Canudos depende da vontade individual de cada um. Como comunidade organizada, tal espaço constitui-se um perigo, uma ameaça à ordem moral e à ordem social onde está inserida. Por suas regras próprias, por sua persistência em continuar favela, pela coesão entre seus moradores e por simbolizar, assim como Canudos, um espaço de resistência.” (VALLADARES, 2000: 8)
com um “mundo diferente”, na “contramão da
A favela era o sertão bruto, sem ordem, sem
ordem”, que estaria inegavelmente ligado à origem
governo e, portanto, selvagem, que precisava ser
no Arraial de Canudos. O sertão se avizinhava da
civilizado, porque sua proximidade ameaçava a
cidade através das favelas. Para Valladares, o relato
cidade. Essa preocupação pode ser observada em
de Euclides da Cunha, em Os Sertões, publicado em
Valladares, quando cita João Augusto de Mattos
1902, contribuiu fundamentalmente para compor a
Pimenta, membro do Rotary Club, e o urbanista
visão da época sobre as favelas. Os Sertões formou
francês Alfred Agache, que veio ao Rio de Janeiro
a compreensão dos intelectuais da época sobre os
pela primeira vez em 1927, a convite oficial do
sertanejos e sobre os moradores das favelas e foi
prefeito Antonio Prado Junior, para demonstrar
fundamental para que o episódio de Canudos não
como ocorreu a evolução da constituição do
caísse no esquecimento. Para demostrar essa
conceito de favela. Mattos Pimenta visitou favelas
afirmação, cita, entre outros, João do Rio que, em uma de suas visitas ao Morro de Santo Antônio, identifica na escuridão da noite, diante das casas
G N A R U S | 57 entre 1926-27 e as chamou de “lepra da esthetica”1.
22). A favela era a nova fronteira a ser vencida, seja
Promoveu uma campanha pública a favor da ordem
pela integração à cidade através da urbanização e
urbana, para mostrar o incomodo que elas
educação de seus moradores, seja pela sua retirada,
causavam e chegou a realizar um filme, intitulado
para “limpeza” da cidade.
As Favellas, onde mostra de dentro o que chamou de “espetáculo
dantesco”2
daquele lugar, com
casebres construídos com madeiras e latas, que abrigava capoeiras e vagabundos, e aonde a lei e a ordem não chegavam. Procurava com isso sensibilizar o governo e a sociedade carioca de então, ressaltando a necessidade de ações sanitaristas, urbanísticas e arquitetônicas para o embelezamento da cidade. As ideias de Mattos Pimenta influenciaram Alfred Agache, responsável pelo Plano de Remodelação da Cidade do Rio de Janeiro, que foi engavetado após as mudanças que ocorreram a partir de 1930. Em 1937, o Código de Obras reconhece a existência das favelas e proíbe a sua expansão. Ao mesmo tempo, o governo preocupou-se permitissem
em
promover
compreender
estudos
quem
eram
que os
moradores das favelas e identificou a necessidade de investir na educação. Só a educação seria capaz de controlar e direcionar as populações de favelas
Nos anos 40 e 50 do século XX, houve no Brasil um aumento da preocupação com a valorização da cultura nacional. Era preciso reencontrar os valores da nossa cultura que estavam certamente nas manifestações folclóricas. Regatar e divulgar as lendas, danças e músicas nacionais fazia parte do projeto de educação, desde os tempos de Getúlio Vargas, para o fortalecimento do sentimento de nacionalidade. O sertão era visto como detentor de tradições
censo das favelas, promovido pelo prefeito do Distrito Federal, Ângelo Mendes de Moraes. O conhecimento sobre a favela se ampliou, mas não se distanciou da construção de uma imagem de pobreza e criminalidade (VALLADARES, 2000: 9-
O conceito de “lepra esthetica” foi pronunciado por Mattos Pimenta para ressaltar a necessidade de ordenamento urbanístico para a cidade do Rio de Janeiro, para que “se levante uma barreira prophylactica contra a infestação avassaladora das lindas montanhas do Rio de Janeiro pelo flagelo das "favelas”". Ver VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000, p.12. 1
que
não
poderiam
ser
esquecidas pela história. O “sertão” representado pela favela, apesar de ser quase sempre descrito como local da marginalidade e da violência, por vezes incorporava a imagem de “roça” tranquila com um “modo de vida simples e harmônico”. Mas as manifestações culturais de cunho popular, de um modo
geral
valorizadas
no
campo,
se
transformavam em incômodo quando ocorriam no meio urbano, como por exemplo, o teatro de revista. (AMOROSO, 2012: 194-195).
ao caminho da ordem. Em 1948 foi possível obter informações mais precisas, a partir do primeiro
culturais
Em uma fotografia de Milton Santos, publicada no jornal Correio da Manhã, que registra o desmonte do morro de Santo Antônio, os moradores da favela, que ali existia então, são retratados distantes, no alto, observando o movimento dos caminhões abaixo, com a cidade ao fundo. A imagem
Mattos Pimenta sabia que, naquela época, poucas pessoas haviam se aventurado a conhecer de perto a realidade das favelas e apostava que as imagens mostradas pelo filme causariam um grande impacto junto à opinião pública. Buscava com isso atrair adeptos as suas intenções de promover a remoção das favelas. Idem, p. 13. 2
G N A R U S | 58 entre os anos 60 e 70 do século XX, vai recair sobre o elemento humano, representando o atraso e a miséria, como crítica social e política, para o que se deseja mudar. Este período ficou marcado pela implementação de uma forte política de remoção das favelas, principalmente as da Zona Sul, em direção a áreas menos ocupadas da cidade (AMOROSO, 2012).
A favela é o que se quer apagar, porque é sinônimo de atraso e de vergonha:
Correio da Manhã, 03/12/1954, p. 7. demonstra o contraste entre o mundo civilizado ao longe e a favela, representada pelos moradores, intermediados
pelo
progresso
que
inexoravelmente se aproximava. A ideia de progresso está sempre presente nesta e em outras fotografias e textos jornalísticos publicados nos jornais da época representada pelas máquinas, caminhões e tratores, que remodelavam a cidade. Particularmente, esta fotografia é uma exceção, porque a figura humana quase sempre estava em segundo plano na maioria das imagens de então, pois o morador da favela representava o atraso, enquanto as máquinas significavam o progresso que se queria propagar, num momento em que a cidade do Rio de Janeiro estava prestes a perder o título de Distrito Federal. Outra favela do Rio de Janeiro, a favela do Pinto, vai figurar nos noticiários cariocas, a partir dos anos 60, como representação
Uma recente propaganda da empresa Petrobrás vinculada na mídia impressa mostrava uma representação aérea do Rio de Janeiro na qual as favelas haviam sido digitalmente retiradas dos morros. Parte da população se manifestou contra a presença de um grande número de favelas no Google Maps. Eco-limites e muros de contenção em algumas favelas cariocas. Diversas comunidades sofrem ameaças de remoção por supostamente ameaçar
o
meio
ambiente,
mesmo
não
apresentando nenhum crescimento relevante e já existindo há décadas, como o caso da Vila Autódromo, Santa Marta e comunidade do Horto. Além dessas iniciativas radicais, a Prefeitura do Rio de Janeiro já tentou implementar outras formas de mascarar as favelas como pintar todas as casas de uma única cor; uma espécie de Grécia perdida entre os morros cariocas.
da barbárie que se quer eliminar ou afastar da
Apesar de já fazerem parte da paisagem urbana,
cidade. Utilizando fotografias que mostram o
as favelas parecem não existir no imaginário ideal
atraso e a insalubridade do local, os jornais
do Rio de Janeiro. (BAKER&BAKER, 2012)
apoiavam a remoção da favela do Pinto para algum
Ainda hoje, temos, particularmente na cidade do
lugar distante da cidade, alegando que traria, ao
Rio de Janeiro, a repetição dessa mesma dicotomia
mesmo tempo, melhoria de vida para o “favelado”,
civilização/barbárie quando falamos do contraste
como para aquela região da cidade de crescente
entre bairro/favela, ou asfalto/morro. As favelas são
valorização imobiliária. O enfoque fotográfico,
G N A R U S | 59 vistas como lugares sempre insalubres onde todos que ali residem são ignorantes, “estrangeiros” na cidade, vindo de um mundo rural “bárbaro” tentando se integrar a “civilização urbana”, mas ao mesmo tempo incapazes de pertencer à civilização devido ao seu grau de ignorância e pelo atraso em que vivem. O “favelado” é o “outro”. Os cidadãos são os moradores dos bairros, conscientes de sua participação política, enquanto os moradores das favelas são desprovidos de consciência política, agindo pelas paixões, incapazes de reivindicar seus direitos e vivendo sob o jugo do clientelismo, seja do
traficante,
seja
do
miliciano.
Bárbaros
subjugados, vivendo em um estado paralelo, que agem sem consciência, estão a mercê da violência que assola suas vidas e são perigosos. Seja em decorrência de sua origem, seja pela situação socioeconômica em que vive, ou mesmo por sua composição étnica, o morador da favela é o outro, que
vive
separado
da
cidade,
que
só
ocasionalmente a frequenta, quase sempre em função de um trabalho, raramente por lazer. Ocupam boa parte das atividades de baixa remuneração da cidade, trabalhando em prédios como porteiros, ou na construção civil, ou em muitas outras ocupações, mas são sempre vistos como indesejáveis, desocupados, traficantes, sem aspirações
de
progredir
na
vida,
e
que
constantemente ameaçam a ordem pública. Embora a imagem que a cidade tenta ter de si mesma seja a da harmonia entre seus moradores, a violência presente no lugar do “outro” está sempre ameaçando o lugar da civilização. A cidade ideal seria sem favelas, sem moradores indesejados, que mancham o cenário de cidade maravilhosa (BRUM, 2013).
Conclusão A dicotomia civilização/barbárie, que também pode
ser
compreendia
como
urbano/rural,
litoral/serão, favela/bairro, ao longo dos dois últimos séculos mudou suas feições em decorrência do objeto ao qual ela foi empregada, mas permanece viva no imaginário de todos. Se o selvagem era o nativo da América no século XVIII, hoje esse papel continua tendo um ator, o morador da favela. Segundo alguns influentes pensadores europeus do século XVIII, o destino da América estaria no seu amadurecimento auxiliado pelos europeus, incumbidos dessa missão. O conceito de civilização se tornou um referencial muito caro no século XIX e serviu de justificativa para as conquistas, colonização e exploração de outras regiões do planeta pelos europeus até a segunda metade do século XX. Enquanto isso, nos países que se tornaram independentes da América Latina, especialmente onde a escravidão ocorreu (como no Brasil), o conceito de civilização vai ser direcionado para justificar a exploração de indígenas e africanos, que precisavam ser retirados do estado de barbárie em que se encontravam. Ao longo do século XIX se cristaliza a imagem do branco civilizador, europeu ou, no caso da América e do Brasil particularmente, dos seus descendentes. As nações americanas empregaram muitos esforços para buscar ao longo dos séculos XIX uma imagem de civilização e se apoiaram na natureza. Transformaram a visão que se tinha da selvagem natureza americana de local de bárbarie em um lugar exuberante e formador do caráter original do seu povo. Era necessário apoiar-se na natureza, pois ela era grandiosa e carregavam muitas promessas de um futuro rico e promissor, em detrimento de valores étnicos ou históricos, já que um povo
G N A R U S | 60 miscigenado e um passado de escravidão não correspondiam à imagem de uma nação civilizada. Tarefa árdua é a missão civilizadora do homem branco que ainda não se concretizou, já que o objeto da barbárie se deslocou, depois da abolição da escravatura e ao longo do século seguinte, para o sertão, primeiramente o nordestino, que passaram a compor a grande maioria dos moradores das áreas periféricas das grandes cidades da Região Sudeste do Brasil. Nas favelas se encontram hoje os bárbaros de sempre. Através da grande imprensa, o imaginário de local violento, insalubre e habitado por pessoas ignorantes continua sendo propagado diariamente. Dunstana Farias de Mello é Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Professora Regente da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas: AMOROSO, Mauro. Duas faces da mesma
fotografia: atraso versus progresso na cobertura fotojornalística de favelas do Correio da Manhã. In: MELLO, Marco Antonio da Silva. [et al.].
Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. BRUM, Mário Sérgio. Tráfico, favelas e a cidade do Rio de Janeiro. In: Revista Cantareira, UFF. Disponível em http://www.historia.uff.br/cantareira/v3/wpcontent/uploads/2013/05/e04a06.pdf. BAKER, Eduardo e BAKER, Julia. Civilização como Barbárie. In: Revista Global Brasil. Edição 16. 2012. Disponível em http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=121 5. BORGES, Maria Eliza Linhares. A escravidão em imagens no Brasil oitocentista. In: FURTADO, Júnia F. (org). Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, América e África. São Paulo: Annablume, 2008. ESGUERRA-CAÑIZARES, Jorge. Como escrever a história do Novo Mundo. São Paulo: Edusp, 2011. LIMA, N. S. Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil. In: História Ciencias, Saúde – Manguinhos. V. 5 (suplemento), 163193, julho 1998. PRADO, MARIA Lígia. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: Edusp, 2004. SÁ, Maria Eliza Noronha de. Civilização e barbárie:
a construção da ideia de nação – Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. SAFIER, Niel. Como era ardiloso meu francês. Charles-Marie de la Condamine e a Amazônia das Luzes. In: Revista Brasileira de História. V. 29,
n. 57, pp 91-114, 2009. VALLADARES, Lícia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000.
G N A R U S | 61
Artigo
ENTRE O PARAÍSO E O INFERNO: O “TERCEIRO LOCAL” NAS OBRAS DE LE GOFF E VOVELLE Por Airles Almeida dos Santos
Resumo: Sem sombra de dúvidas, dos três lugares do além cristão o purgatório foi o que mais tardou para ser definido e o que causou mais divergências tanto entre religioso quanto entre leigos. Esse “espaço” indefinido e de difícil representação apareceu como resultado das transformações sociais e mentais da Idade Média e correspondia às exigências religiosas de uma época marcada por forte espiritualidade. Neste trabalho analisaremos duas obras sobre o “nascimento” e as “figurações imagéticas” desse lugar que permeou o imaginário cristão medieval. Selecionamos O Nascimento do Purgatório de Jacques Le Goff e As Almas do
Purgatório ou o trabalho de Luto de Michel Vovelle a fim de comparamos suas interpretações com o intuito de contribuir à História da morte e a compreender melhor o assunto no Medievo. Palavras-chave: Purgatório, Historiografia, Idade Média. Introdução
M
interdito de hoje, em toda a História, ela foi motivo de indagações. orte.
Palavra
carregada
de
singela,
porém
simbolismo.
O início do interesse pelo estudo da morte é
Na
relativamente novo na historiografia, datada por
contemporaneidade esse fenômeno
volta dos anos 60 e 70 do século XX, quando
se tornou tabu. Ninguém o menciona, ninguém
emergem novas maneiras de abordagens ligadas à
quer pensar nele, e todos querem disfarçar quando
Terceira Geração dos Analles, influenciadas
chega. A sociedade recusa-se a encará-lo apesar de
diretamente pela Antropologia e pela Psicologia,
saber tratar-se de uma coisa certa, sem dia nem
cuja produção mais abundante sobre o assunto é de
hora marcada, mas certa. Em todas as culturas
origem francesa, podendo afirmar tratar-se de uma
humanas a morte nunca foi um fato corriqueiro,
linha de especificidade desses historiadores.
insignificante. Pelo contrário. Sempre teve papel de
Doravante eles passam a produzir trabalhos sobre
destaque; era pensada; sentida; vivida. E apesar do
as atitudes, os comportamentos, os modos de agir,
G N A R U S | 62 sentir
e
pensar
o
O “terceiro local” nas
fenômeno bem como as
obras de Le Goff e Vovelle
mudanças que ele sofreu ao longo das épocas.
Le Goff modificou de
Atualmente esses estudos
forma
fundamental
a
tem ido além da fronteira
percepção que tínhamos
da França e encontramos
do Medievo e inovou ao
monografias, artigos e
introduzir a ideia de longa
textos nos mais variados
Idade Média, prolongada
aspectos da celebração
até o século XVIII e
mortuária.
findada com a Revolução Industrial. O mesmo nos
Sem
sombra
de
explica
dúvidas, dos três lugares do
além
cristão
o
purgatório foi o que mais tardou para ser definido e o
que
causou
mais
divergências tanto entre religioso quanto entre leigos. Esse “espaço” indefinido e de difícil representação apareceu como resultado das transformações sociais e mentais da Idade Média e correspondia às exigências religiosas de uma época marcada
por
forte
espiritualidade.
Aqui
Eu fui voluntariamente provocador ao falar de uma longa Idade Média que se prolongou até o século 18. Continuo a pensar que há uma certa verdade na ideia de que a Idade Média vai até o fim do século 18, se observamos aspectos essenciais, como a fome, as pestes, a indústria – a economia capitalista do século 18 é uma grande virada (...). Mas, mesmo que consideremos que o fim da Idade Média acontece no fim do século 15, ela não era decadente, não era triste, mas sim soberba, até exagerada”.3
analisaremos duas obras de autores diferentes sobre o “nascimento” e as “figurações imagéticas” desse lugar que permeou o imaginário cristão medieval. Selecionamos as obras O Nascimento do
Purgatório1 de Jacques Le Goff e As Almas do Purgatório ou o trabalho de Luto2 de Michel Vovelle a fim de comparamos suas interpretações.
Esse medievalista francês dedicou boa parte de sua longa carreira à “antropologia histórica medieval”, disciplina que enriqueceu ao abordar todos os aspectos da vida em sociedade e foi um dos pais do movimento Nova História. Como um dos representantes da terceira geração dos Annales, dedicou-se à História das Mentalidades e ao Imaginário Medieval. Também se aprofundou nas generalizações de autores anteriores a ele e se
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. São Paulo: Estampa 1995. 2 VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 3 LE GOFF, Jacques. Entrevista ao Estadão. Outubro de 1
2010. Disponível em http://www.estadao.com.br/ noticias/arte-e-lazer,jacques-le-goff-foi-decisivo-parao-estudo-da-idade-media,1148193,0.htm. Último acesso 23/01/2015.
G N A R U S | 63 preocupou em criar um novo tipo de história voltada à pesquisa interdisciplinar, além de ter se voltado
ao
sensibilidades
resgate
de
humanas.
uma
história
Segundo
das
Agostinho
Menotti Orlandi sobre a concepção de história desse historiador
Jacques Le Goff, que marcou a historiografia contemporânea com as suas ideias e com suas obras, explica o trabalho do historiador segundo as relações entre o que são a memória e as oposições passado/presente, antigo/moderno, progresso/ reação. O passado como uma construção e uma reinterpretação constante.4 Antes de nos aprofundarmos, é importante que façamos uma distinção. Como mostrou Barros, “a História do Imaginário não se ocupa propriamente destas longas durações nos modos de pensar e de sentir, mas sim da articulação das imagens visuais, verbais e mentais com a própria vida que flui em uma determinada sociedade”.5 Sendo assim, não é como a História das Mentalidades que maneja o abstrato, aquilo que pode ou não se expressar por imagens. O imaginário nem sempre se forma em longa duração, pode ser uma questão particular e dinâmica, muito relacionado à representação propriamente dita. Foi buscando essa articulação de imagens à vida que flui em sociedade, em outras palavras, a mútua interação entre o imaginário religioso medieval e a sociedade que o produziu que Jacques Le Goff redigiu O Nascimento do
Purgatório. Tanto Le Goff como Vovelle, ambos os autores analisados a seguir, andaram pelo mesmo caminho: se preocuparam com a história dos modos de ser,
ORLANDI. Agostinho Menotti. Le Goff vs Vovelle: um embate de longa duração. Disponível em www. webartigos.com/artigos/le-goff-vs-vovelle/38140/. Último acesso em 20/01/2015. 4
BARROS, José D’Assunção. Imaginário, Mentalidades e Psico-História – uma discussão historiográfica. Labirinto 5
pensar ou agir; das sensibilidades humanas na longa duração e com o imaginário no período medieval. No entanto, enquanto Le Goff se preocupou ao menos inicialmente em seus trabalhos, com a inércia das estruturas mentais, com “o nível mais estável, mais imóvel da sociedade”,6 Com o passar do tempo acabou revendo seu conceito de “mentalidade”.
A
partir
de
então,
metodologicamente, não se volta nos seus estudos apenas para aquilo que anteriormente acreditava imutável, mas sim daquilo que se sabe mudar lentamente e que, apesar disso, possui certa dinamicidade. Conciliou a curta com a longa duração. A obra analisada aqui reflete muito bem isso, essa nova maneira de conceber a história. Por outro lado, Vovelle tendeu a se afastar dessa análise –Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário, 2000. Disponível em http://www.cei.unir.br/artigo71. html. 6 LE GOFF, Jacques. NORA, Pierre. História: Novas Abordagens. São Paulo: Francisco Alves, 1976, p.69.
G N A R U S | 64 totalizante para não cair no reducionismo. Segundo
Média
a
partir
ele não é interessante à análise da totalidade em
representações
uma ou outra camada social, na cultura da elite e da
Fundamentando-se em grande parte nas Sagradas
cultura popular.7 Rejeita a ideia de passividade das
Escrituras e nos textos de variadas naturezas
massas conservadoras ou receptoras à força, pois o
produzidos por religiosos, aponta esse terceiro
imaginário coletivo age sobre elas.
local como uma criação dos próprios medievais,
da
das
transformações
vida
após
a
das
morte.
Enquanto Vovelle preocupou-se mais com as
sem equivalência nos textos sagrados, cuja ideia de
imagens ao invés de se debruçar sobre textos,
surgimento – ou nas suas palavras, nascimento –
usando a iconografia não apenas como anexos ou
fazia parte da transformação do cristianismo
suportes, mas como portadoras de discursos
feudal, havendo conexões entre as mudanças
regidos pela dinâmica dessas mesmas imagens, Le
intelectuais e as sociais. Aponta Agostinho como
Goff preocupou-se com o valor das palavras, com a
precursor dessa ideia, na emergência da noção de
importância delas, chegando
um lugar intermediário nos primeiros séculos do
a criticar os
historiadores que as negligenciam
“sem dúvida, os historiadores não dão ainda a importância suficiente às palavras. (...) Para os historiadores das ideias e das mentalidades, as palavras – certas palavras – fenómenos (sic) a longos prazos vindos lentamente das profundezas, têm a vantagem de aparecer, de nascer e de trazer assim elementos cronológicos sem os quais não há verdadeira história.”8 Por isso tem a preocupação de analisar textos em língua vulgar a fim de melhor comparar a evolução desse lugar intermédio tanto no imaginário quanto na palavra escrita. Apesar das diferenças, os dois contribuíram de
cristianismo, apesar de não haver citação direta nas obras desse teólogo. Ao mesmo tempo, insistia na “mediação” de “estruturas mentais”, de “hábitos de pensamento”, ou de “aparatos intelectuais” – mentalidades – observando que, nos séculos XII e XIII, surgiram novas atitudes em relação ao tempo, espaço e número, inclusive o que ele chamava do “livro contábil da vida depois da morte” em referência ao julgamento individual de cada um após o trespasse. O Purgatório apenas passa a ser substantivado, ou seja, a existir, a partir da “espacialização do pensamento” em referência a esse local no fim do século XII.
forma significativa para a compreensão desse “intervalo propriamente espacial que se insinua entre o Paraíso e o Inferno”.9 Vamos ao conteúdo dos trabalhos. Obra célebre sobre o assunto, O Nascimento do
purgatório10 de Le Goff trata sobre a historicidade do conceito de purgatório e sua instalação na Idade
Apesar de sua aproximação com o materialismo histórico no início de sua carreira como historiador, Vovelle tornou-se um dos maiores representantes da história das mentalidades. Cf. VOVELLE. Michel. Ideologias e Mentalidades. 2a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 7
O livro encontra-se dividido em três partes: a primeira intitulada O Além antes do Purgatório que expõe os elementos de formação secular – a herança de outras religiões e os locais da préhistória desse “local” – que estruturaram e formaram no século XII; a segunda – O Século XII:
O Nascimento do Purgatório, quando surge a LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. São Paulo: Estampa 1995, p. 17. 9 Ibdem, p.20. 10 Ibdem. 8
G N A R U S | 65 “crença” nesse além intermédio, onde os mortos
Para que o purgatório nasça é necessário que a
passam por provações abreviadas pelos sufrágios
noção de ponto intermédio ganhe consistência ao
dos vivos. Nesta parte procura examinar a sua
mesmo tempo em que ele possa substituir ou
lógica de funcionamento e aponta a mutação da
predominar sobre esses outros lugares existentes
sociedade que o criou; e por fim O Triunfo do
entre o Céu e o Inferno. A crença na imortalidade
Purgatório, se bem que atenuado e limitado, graças
da alma e na ressurreição, a noção de julgamento e
à Escolástica no século XIII.
de responsabilidade individual contribuíram para a
Um dos principais apontamentos de Le Goff diz
expansão desse espaço no imaginário social e na
respeito mesmo a esse “nascimento”. Apesar da
geografia do além num século de explosão da
ressalva que faz – “É verdade que não se data uma
cristandade latina: o século XII.
crença como um acontecimento, mas devemos
O século seguinte ao aparecimento do lugar de
afastar a ideia de que a história a longo prazo é uma
purgar os pecados aparece como um período de
história sem datas” – 11 propõe que o surgimento do
organização, em que os teólogos latinos sentem a
purgatório “faz parte de um conjunto ligado à
necessidade de melhor defini-lo devido a uma
transformação da Cristandade Feudal, da qual a
“dupla desconfiança quem vem, sem
criação de esquemas lógicos ternários com a
dúvida, de certo mal-estar perante uma
introdução de uma categoria intermediária foi uma
crença tão pouco e mal fundamentada na
expressão essencial”.12 Em se comparando à Alta
Santa Escritura, e, sobretudo, do medo de ver
Idade Média, que era marcada pelo sistema binário
essa crença submersa pela piedade vulgar e
(Deus/Satã;
supersticiosa”.13
Vícios/Virtudes;
Clérigos/Laicos;
Poderosos/Pobres), na virada do ano mil as
Esse mesmo século XIII aparece como período
mutações sociais modificaram as atitudes em
do triunfo social do purgatório, uma exigência das
relação à geografia imaginária do além. A partir de
massas no Ocidente.
então, esse esquema é substituído pelo modelo
No
que
diz
respeito
à
relação
ternário (as três ordens do feudalismo; os três
purgatório/cultura popular, duvidamos quanto a
lugares do além). O autor diz que o maior apego as
essa necessidade, essa exigência do purgatório (no
coisas terrestres e a consciência do julgamento
sentido próprio do termo) de grande parte da
individual entre a morte e a ressurreição foram
sociedade mais humilde. Enquanto para Vovelle a
elementos necessários à criação desse espaço. Isso
crença
nos leva a uma indagação do autor: o que equivale
exclusivamente na religião popular, visto não está
o aparecimento desse lugar? Na verdade, equivale
contida de forma alguma no discurso original da
a uma necessidade de justiça, maior até que o
Igreja cristã, Le Goff diz tratar-se de uma mescla
desejo de salvação, onde as injustiças do mundo
entre a cultura folclórica e a erudita, em que as
terrestre seriam reparadas.
pressões exercidas pela primeira no século XII
no
terceiro
local
vai
se
fundar
contribuíram de forma decisiva para o seu
11 12
Ibdem, p. 17. Ibdem, p. 269.
13
Ibdem, p. 285.
G N A R U S | 66 aparecimento. Mas seria apenas uma influência do
Augustodunensis e outros clérigos, utilizado por Le
cristianismo que se encontrava quase que soberano
Goff
em grande parte da Europa medieval? Trata-se de
dificuldade de elaboração mais objetiva e
uma necessidade das massas ou da própria Igreja
específica do purgatório e de sua imposição. Essa
para reforçar seu poderio nas coisas do além-
mentalidade de lugar de descanso vai persistir pelo
túmulo? Se retomarmos o pensamento de Ariès
menos até o XVI, o que nos leva a indagar sobre a
perceberemos que não.14 Ele nos fala sobre a
real motivação da criação do purgatório e por que
permanência de uma antiga noção do além
estrato
presente na literatura da Alta Idade Média, em que
transformada em dogma, vai ser elaborada. Dessa
o trespasse era identificado ao descanso, lugar de
maneira, nossa hipótese é que sim, a cultura
espera antes da ressurreição onde a preocupação
popular influenciou de maneira significativa a
era menos com a punição aos condenados e mais
elaboração, a “substantivação” – nas palavras de Le
como
documento,
social
essa
mostra
doutrina,
bem
logo
essa
depois
com as recompensas
Goff – desse terceiro
aos
local. Mas foi a
bem-
aventurados.
O
própria
instituição
próprio Vovelle nos
eclesiástica que se
mostra
ao
esforçou em melhor
analisar as imagens
defini-la ao longo do
que
isso
representam
tempo,
esse lugar. Essa ideia
apropriando-se
de
de
modificando aquela
refrigério – inclusive,
crença já arraigada
muito
condenada
no folclore cristão
por Agostinho – vai
medieval com raízes
lugar
e
permanecer por muito mais tempo na cultura
na antiguidade, o que nos faz relativizar o
popular e na sua materialização, disseminada a
pensamento de Le Goff no que diz respeito a essa
partir da oralidade. Por mais que a criação do
“exigência”, pois como explicar essa “necessidade”
Purgatório como lugar intermediário excluísse essa
se muitos permaneciam fieis a seus antigos modos
possibilidade de repouso antes do Juízo final e da
de figuração?
ressurreição dos corpos, a antiga concepção do
Em síntese, para Le Goff, nesse além-cristão em
além continuou a existir entre as classes mais baixas
constante desenvolvimento, o lugar central “foi o
da população mesmo com a imposição da Igreja. O
elemento intermédio, efêmero, frágil e no entanto
material produzido por grandes teólogos urbanos
essencial”,15 cujo êxito se deu graças à sua
como
Honorius
espacialização e ao imaginário social cujo
Retomaremos um dos artigos de Ariès a fim de comparar com os dos outros dois autores e melhor fundamentar nossa hipótese. Cf. ARIÉS, Philippe. Uma Antiga Concepção do Além, p. 79-87. In: BRAET,
Herman; VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1996. 15 Ibdem, p.427.
14
Gregório
o
Grande,
G N A R U S | 67 parte de um estudo sobre as origens da ideia de purgatório, aqui apenas trataremos da parte que diz respeito diretamente à Idade Média. Partindo do tipo de fonte e da análise que Vovelle empreende, ele segue o caminho inverso. Ao invés de se debruçar sobre textos e usar a iconografia apenas como anexos ou suportes, prefere tratá-las não apenas como figuração desses textos, mas como portadoras de discursos regidos pela dinâmica das imagens. “A imagem fala mesmo quando se cala”,18 justifica. Sendo assim, inverte o procedimento habitual. Podemos situar o livro no meio caminho entre a História das Mentalidades e a
do
Imaginário,
onde
as
figurações
e
representações dizem mais do que os discursos cristalizados acerca das mudanças de sensibilidade coletiva, que nutre o imaginário social do período medieval. Para a compreensão do imaginário acerca do purgatório,
desde
sua
criação
quase
ao
total
seu
desenvolvimento pleno permitiu. O Nascimento do
desaparecimento
na
Purgatório foi sua contribuição mais substancial
contemporaneidade, Vovelle parte de alguns
para a história das mentalidades e do imaginário.
questionamentos: estaria esse local reconhecido e
Uma obra inovadora.
estabelecido na virada dos séculos XIII e XIV?
Em As Almas do Purgatório ou o trabalho de
Haveria dois purgatórios, um de inspiração da
Luto,16 Vovelle procura interpretar a partir de
cultura popular e outra da cultura erudita? É
imagens como o Ocidente cristão conseguiu
possível tratar dele em imagens sem deixar de
reconstruir o imaginário do terceiro local a fim de
evocar os “fantasmas” e outros locais de existência
conviver com os mistérios da morte e apaziguar o
temporária na busca mesma desse terceiro local?
trabalho de luto. Para isso se utiliza de iluminuras,
Porque abundam apenas no século XV as
afrescos, retábulos, xilogravuras, o cinema, a
representações sobre o purgatório?
televisão dentre outras fontes iconográficas.
Ambos os autores trabalhados neste capítulo
Apesar de a obra abarcar do final do século XIII ao
concordam no fato de a criação do purgatório
XX, abordando “o purgatório no mesmo período
refletir uma mudança de mentalidade no meio da
em que Jacques Le Goff o abandona”,17 ou seja,
Idade Média, passando a se impor à antiga, mas
VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 16
17 18
Ibdem, p.14. Ibdem, p.15.
G N A R U S | 68 durante muito tempo persistente, figuração binária
na visão de mundo dos medievais o problema dele
dos espaços do além – inferno e paraíso. Para eles,
já se encontra resolvido, pois os mortos “viviam”
é a tomada de consciência individual que recusa
entre os vivos. Schmitt nos mostra relatos de
esse esquema binário. Diferentemente de Le Goff,
aparições de fantasmas com determinadas funções
que centra seu estudo no “nascimento” desse
sociais. Ele privilegia o coletivo, o morto ordinário e
emergente local, Vovelle dá uma atenção maior no
não os casos excepcionais. Se observarmos bem, as
que diz respeito ao Medievo ao século XV, onde
teses dos dois autores se complementam. Schmitt
ocorre a explosão da imagem, e passa a ser
nos fala que em plenos séculos XII e XIII,
representado para toda a cristandade e não mais
principalmente nesse último, vão multiplicar textos
como antes restrito a uma elite. Essa hipótese
que tratam dessas aparições. Apesar de também
levantada pelo autor, bem como “a dificuldade
trabalhar com imagens, na grande maioria dos
material de representar o que por muito tempo não
casos trata-se de textos. Se essa numerosa
teve nome, o que permaneceu um estado antes de
quantidade de textos sobre aparições que estão
se tornar um local a ser preenchido e povoado”,19
estreitamente relacionados ao purgatório tratam
explicaria o fato de apenas mais de um século
mais especificamente dos mortos comuns, dá para
depois da criação da palavra purgatorium (1170-
entender a hipótese inicial de Vovelle sobre as
1200) por Pierre Le Mangeur aparecer a primeira
representações imagéticas desse terceiro espaço
figuração gráfica desse
do além, “ao caráter por
local, o que leva também
tanto tempo elitista de
Le
um local ainda reservado
Goff
ao
questionamento: conservadorismo
(...)
aos
soberanos
e
da
príncipes, e que só irá se
imagem? Nesse sentido,
abrir seletivamente aos
podemos ver que a obra
monges e monásticos nos
de Vovelle conversa com
séculos XII e XIII, com
outra inovadora: Os vivos
algumas
e os mortos na sociedade
meio
medieval,20
Podemos
de
Jean-
entradas
no
cavalheiresco”.21 levantar
a
Claude Schmitt. Vovelle
seguinte hipótese para o
nos
problema: para os mortos
diz
que
anteriormente
a
multiplicação
de
referências escritas; para
figurações do purgatório,
os mais abastados, textos
Ibdem, p. 29. SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. O título original Lesrevenants, “Os fantasmas” (ou, mais literalmente, “Os 19 20
comuns,
relatos
e
que voltam”), foi excluído do livro em português, batizado com o subtítulo da edição francesa, Les vivants
et les morts dans la société médiévale. 21 VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.29.
G N A R U S | 69 e imagens, principalmente imagens. Parece
aos mortos”,22 o que contribuiu segundo à
paradoxal se levarmos em conta que durante a
interpretação do historiador, ao aumento da
época medieval a maioria da população europeia
importância dada a missa, substituta no fim da
era iletrada e que os membros da igreja utilizavam
Idade Média das oferendas aos mortos.23
a iconografia para a evangelização. Mas como
Assim como Vovelle, Le Goff atribui ao
Schmitt apontou muitos dos relatos analisados
purgatório uma função de combate. Entretanto,
eram transcritos pelos clérigos, sendo uma
enquanto aquele nos diz ser um combate contra o
quantidade bem menor auto registrada. Quanto
protestantismo que o negou, por volta dos séculos
mais detalhada a figuração, melhor o material
XVI e XVII, o outro diz tratar-se também e anterior
utilizado pra isso, o que requer um custo mais
da luta contra os hereges (XII e XIII) e os gregos (XIII
elevado.
e XV).24 Le Goff também enfatizou sobre o papel
Durante muito tempo, as figuras desse lugar
desempenhado pelo fogo nas descrições do
intermediário apareceram relacionadas, direta ou
purgatório. Ele servia para punir, purificar ou era
indiretamente, ao juízo final. No entanto, para
um fogo probatório? Ao depender o tipo de texto
preencher esse espaço que existia entre o juízo
em que essa relação aparece, pode significar a
particular e o coletivo, outros lugares começam a
mesma coisa e como mostrou bem Vovelle, existia
surgir na iconografia como, por exemplo, o seio de
diferença de tonalidades na hora de retratar
Abraão e o que outros autores também chamam de
iconograficamente o fogo do purgatório e o fogo
limbo dos patriarcas. Porém, com a emergência e
infernal.
fixação do purgatório como um espaço fixo fez com
No livro de Vovelle o purgatório parece como
que o seio de Abraão fosse pouco a pouco
um espaço equívoco, ao mesmo tempo prisão e
abandonado nas pinturas e retábulos, não
lugar de passagem. Sobre ele aparecem também as
acontecendo o mesmo com o limbo devido a sua
ambiguidades presentes na evolução de sua
simbologia. Pelo que foi explicitado acima, resta
representação
nos interrogarmos: o que fez a representação do
Protestante no século XVI, onde aparecem as
seio desaparecer? Segundo o autor, a consciência
primeiras contestações, não somente devido a
dos pecados e da impossibilidade da passagem
crítica às indulgências, mas ao próprio status desse
direta com a morte – o contrário encontrava-se
ambiente de tema tão metafísico.
inscrito nas imagens do seio – faz com que aos poucos essa representação fosse abandonada.
até pelo menos
a Reforma
Como salientou Jerônimo Teixeira sobre aspectos apontados por Vovelle na obra
Associado a isso, um novo contexto emerge para a explosão de imagens mais elaboradas desse terceiro local: “a implantação excepcionalmente vivaz das crenças populares no tocante à morte e
Ibdem, p.54. A partir de então as oferendas passam a ser direcionados aos pobres, substitutos dos mortos na terra. 24 Paradoxalmente, segundo o medievalista, os 22 23
No Concílio de Lyon, em 1274, o purgatório já era promulgado como dogma – e confirmado nessa condição no Concílio de Florença, em 1439. O novo conceito ajudou a Igreja a administrar crenças populares “fundadores” do Purgatório foram os gregos Clemente de Alexandria e Orígenes, uma heresia aos olhos dos dois cristianismos – grego e latino.
G N A R U S | 70
antigas e renitentes: a noção supersticiosa de que os falecidos conservam influência sobre os vivos, seja na forma de entes protetores do lar, seja na de assombrações de cemitério. Essas concepções chocavam-se com o esquema binário céu-inferno, no qual não se admite acesso ao mundo dos mortos. O purgatório, ao contrário, é permeável às súplicas dos viventes. O fiel pode rezar pela salvação de seus entes queridos. E ainda pagar indulgência à Igreja, para redimi-los – ou, antecipadamente, para salvar a si mesmo.25 Percebemos
assim,
que
o
purgatório
representou um lance de criatividade teológica, permitindo aos cristãos a administração melhor de
As Almas do Purgatório ou o trabalho de Luto, fruto de uma investigação assídua e do laborioso manejo das imagens, mostra que o espaço indeciso entre a danação e a salvação sempre foi um desafio para as artes visuais. Ora expressava a figuração de um lugar (ígneo ou aquático) de passagem, de viagem, de prisão ou conciliava as ideias antigas às novas leituras do além. Reservada primeiramente às ilustrações voltadas para uma elite, a figuração do purgatório aos poucos vai ganhando dinamicidade e no século XV sai das margens dos livros de horas e passam ao interior das igrejas para chegar a todos Le Goff concluiu seu livro defendendo esse terceiro local e colocando-o como símbolo do na
Idade
Média
e
relacionando-o ao reconhecimento da consciência individual de cada um no memento da morte. Entre a publicação de sua obra e a de Vovelle – cerca de TEIXEIRA, Jerônimo. O Terceiro Lugar. Disponível em http://veja.abril.com.br/020610/terceiro-lugar-p238.shtml. Último acesso em 15/01/2015. 26 Voltando a um assunto que permeou todo esse trabalho até aqui, a questão da familiaridade com os mortos na Idade Média proposta por Ariès também foi contestada por Vovelle. Segundo este último, existia 25
argumento do primeiro. Segundo Michel Vovelle, “o purgatório passou de uma conquista para, ao mesmo tempo tornar-se um instrumento ambíguo de controle social e ideológico, e também, olhando de baixo, o reconhecimento assumido do pecado do qual precisa purgar-se por própria conta (...)”.27 Apesar das diferenças metodológicas entre os autores, poderíamos classificar esses dois trabalhos como complementares. Enquanto o primeiro lida com as palavras, com textos – documentos no imagem.
Ambos
contribuíram
de
forma
significativa para a explicação e compreensão desse espaço complexo e gerador de querelas dentro e fora do ambiente religioso ocidental. Foi justamente a sua elaboração que possibilitou uma modificação
espaço-temporal
do
imaginário
cristão medieval ao mesmo tempo em que proporciona uma terceira via de resgate da alma após a morte. A instituição do purgatório, muito impulsionada pelo surgimento de novos estratos sociais, traduzia a necessidade de mudança, pois cada vez mais se rejeitavam ideias e explicações de caráter simplista.
da Cristandade.26
intelectual
desmorona, o que faz este último atualizar esse
sentido positivista – o segundo se preocupou com a
sua relação com os mortos.
progresso
quinze anos – essa visão de progresso linear
Atualmente o dogma do purgatório é um tema em desuso, desacreditado, esquecido e até mesmo combatido. Nos meios acadêmicos tornou-se quase obsoleto. Como explicar esse processo? O discurso da igreja teria mudado? Uma lenta, mas profunda mudança de
medo dos mortos agressivos e sanguinários na época em que a problemática do purgatório ainda não estava bem estabelecida. Cf. VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 30-38. 27 Ibdem, p.326.
G N A R U S | 71 mentalidade. Tudo começa em pleno século XIX,
próprio período medieval, cujo resultado foi a
um novo momento de contestação. Não mais
substituição de esquemas lógicos binários por
colocada em dúvida por religiosos, mas por
ternários. Já Vovelle se voltou para a investigação
filósofos e novos espíritos críticos. Eis que surge a
assídua das imagens. Reservada primeiramente às
questão acompanhada de uma lógica invertida: as
ilustrações voltadas para uma elite, a figuração do
almas sobem aos céus ou descem para a terra?
purgatório aos poucos vai ganhando dinamicidade
Como Ariès nos mostrou bem, nesse mesmo século
e no século XV sai das margens dos livros de horas e
XIX, as rezas pelas almas do purgatório sofreram a
passa ao interior das igrejas para chegar a todos da
intervenção da doutrina espírita que abandonou a
Cristandade.
representação individual e personificada dos
Apesar das diferenças metodológicas entre os
supliciados. Entra em cena outra perspectiva
autores, poderíamos classificar esses dois trabalhos
religiosa: as almas transformam-se em espíritos,
como complementares. Enquanto o primeiro lida
instaurando o silêncio nas imagens. O que Vovelle
com as palavras, com textos – documentos no
confirma – “a grande arte se afasta do purgatório.
sentido positivista – o segundo se preocupou com a
Chegou o tempo de uma volta à morte selvagem,
imagem.
longe de qualquer ideia de consolação”.28
significativa para a explicação e compreensão
Ambos
contribuíram
de
forma
No século XII ele surge; em pleno XIV ele reina.
desse espaço complexo e gerador de querelas
Reina nas práticas, nos testamentos. Reina na
dentro e fora do ambiente religioso ocidental. Foi
mentalidade e no imaginário intelectual e aos
justamente a sua elaboração que possibilitou uma
poucos vai sendo assimilado pelas massas
modificação
europeias. No século XIX ele agoniza e no seguinte
cristão medieval ao mesmo tempo em que
padece.
proporciona uma terceira via de resgate da alma
espaço-temporal
do
imaginário
após a morte. Considerações finais Neste trabalho desenvolvemos a maneira como elaborou-se ao longo da Idade Média uma concepção do “terceiro local” e a coexistência de posições demasiadamente opostas da localização e significação desse lugar na geografia do além. Le Goff concluiu seu livro defendo esse terceiro local e colocando-o como símbolo do progresso intelectual na Idade Média e relacionando-o ao reconhecimento da consciência individual de cada um no memento da morte; um fruto da dinâmica do 28
Ibdem, p. 308.
Airles Almeida dos Santos é Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe e integrante do Vivarium (Núcleo Nordeste).
G N A R U S | 72
Artigo
GRIOT: A MEMÓRIA DA ÁFRICA Por: Fernando Augusto Alves Batista
RESUMO A história oral tornando-se uma das principais ferramentas de pesquisa do historiador, com a finalidade de estudar povos que não tiveram uma forte ou até nenhuma tradição escrita, como é o caso de vários povos Africanos. Assim, um personagem africano torna-se uma grande ferramenta de estudo e pesquisa histórica, um Griot, uma espécie de memória viva da África, um guardião de seus costumes, crenças e tradições. PALAVRAS CHAVE: África, Griot, História oral. ABSTRACT The oral history is one that has become one of the main tools to research of historian, to study folks who hadn’t a strong written tradition, or even no, as example of many African peoples. Therefore, an African personage becomes a great tool to study and historical research, O Griot, a kind of memory alive of Africa, a guardian of their customs, beliefs and traditions. KEYWORDS: Africa, Griot, Oral History.
INTRODUÇÃO
D
esde os primórdios da humanidade, a
A principal forma de transmissão destes
espécie humana, que evoluía de acordo
conhecimentos era a oralidade, pois, mesmo
com as vivências adquiridas pelo tempo,
enquanto existiam as pinturas rupestres e os
sentia a necessidade de transmitir o conhecimento
primeiros alfabetos inventados, ainda tinha-se a
gerado pelas suas experiências ao próximo. Assim,
necessidade de um interlocutor do conhecimento.
ocorria um desenvolvimento mais rápido e
Para isso, se fazia preciso alguém que lesse,
gradativo, das sociedades e da espécie, devido aos
entendesse e transmitisse aquilo que estava
conhecimentos adquiridos e acumulados.
contido nas pinturas, ou nas escritas.
G N A R U S | 73 Ao longo dos séculos, a oralidade fez com que as
embasamento sobre o passado. Porém, isso acabou
sociedades pudessem se desenvolver de forma mais
por causar uma lacuna no estudo da história de
rápida e eficaz.
algumas sociedades, que durante os seus processos
Após o surgimento das mais diversas formas de escrita, a oralidade foi perdendo espaço como principal forma de preservação e transmissão do conhecimento. Com o tempo, o número de pessoas capazes de ler, interpretar e escrever aumentava, fazendo com que os ensinamentos não fossem mais adquiridos de forma oral em coletividade e sim pela leitura, de forma individual. Quando a população
de desenvolvimento, não constituíram uma forma de escrita, ou mesmo não adotaram uma, como principal fonte de preservação da história social de seu povo. Então, como estudar uma sociedade que existiu a milhares de anos, mas que não deixou nada escrito, ou, até mesmo, como estudar uma sociedade que ainda existe, mas que não deixou nenhum relato escrito de sua história?
necessitava de obter conhecimento sobre a história
Este artigo busca em seu curso explicar tal
de seu povo, buscavam por livros e não mais pelos
questionamento. Ao analisar, a priori, a importância
anciões que a viveram, ou que a aprenderam, ao
da oralidade como preservadora do conhecimento
ouvir de seus antepassados.
e seu papel verossímil e eficaz como fonte de embasamento
para
estudos
científicos
e
acadêmicos, além de analisar o fato descrito por Thompson, de que a história oral: “Pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar
fundamental,
mediante
suas
próprias
palavras” 1 Analisando o exemplo das sociedades e etnias africanas, que foram sendo deixadas de lado nas pesquisas históricas, por conta de possuírem, em sua maioria, uma forte tradição oral. Sendo então, um excelente exemplo para o estudo. Mas em âmago, este artigo visa mostrar o papel
Griots "passando" histórias
dos guardiões da história destes povos que
Essas buscas cada vez maiores por fontes escritas,
utilizavam da história oral e que tem como papel,
ou documentais, fizeram com que a oralidade,
serem os arquivos vivos das memórias da sociedade
primeira forma de transmissão de conhecimento,
em que viveram, nas suas jornadas. Em principal,
fosse sendo esquecida, fazendo com que a mesma
tendo os griots2 como fonte de estudo e analise,
ficasse de lado, como fonte de pesquisa e
pelo
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 22. 2 (pronúncia: “griô”) ou ainda jeli (ou djéli), termo do vocabulário franco-africano criado na época colonial para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes para as quais, em
geral, está a serviço. Presente, sobretudo na África ocidental, notadamente onde se desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali e etc.). O termo griot (guiriot originalmente escrito, pronunciado grau-oh) fez sua primeira aparição no Travelogue Relation du voyage du Cap-Verd (1637) pelo missionário francês Alexis de Saint-Lô, contando suas viagens no Senegal, dois anos antes.
1
fato deles terem sido
os principais
G N A R U S | 74 personagens de preservação e disseminação das
“a história oral é tão antiga quanto à própria
histórias africanas.
história. Ela foi à primeira espécie de história” 4. E não só dentro do meio histórico, mas também, a
Desenvolvimento
história oral é usada por outros profissionais do saber em diversas áreas:
O método da história oral é utilizado também por muitos estudiosos, particularmente sociólogos e antropólogos, que não se consideram historiadores orais. O mesmo se dá com os jornalistas. Contudo, todos eles podem estar escrevendo história; e, sem dúvida estão provendo à história. 5
Escrita é uma coisa, e o saber outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é a uma luz que existe no homem. 3
Desde a criação da disciplina de História, várias discussões foram travadas por seus idealizadores e
Mesmo com a alegação de Thompson, sabemos
suas escolas de estudo, acerca das fontes de
que historicamente a tradição oral é alvo de várias
pesquisa em que o historiador deve basear-se
críticas acerca de sua veracidade em relação aos
durante a elaboração de seus estudos, pesquisas
fatos estudados. Segundo Peter Burk: “a maior
acadêmicas e cientificas. Neste contexto, é visível a
parte dos historiadores profissionais em geral são
supremacia das fontes escritas como principal fonte
bastante céticos ao valor das fontes orais na
de pesquisa e de embasamento para tais trabalhos.
reconstrução do passado” 6. Assim, essa vertente de
Mas, com o decorrer dos séculos, a escrita vem
fonte histórica é analisada por ele da seguinte
sendo questionada como fonte primordial de
forma:
pesquisa, por conta de que ela não poder ser usada
A fragilidade implícita das fontes orais é considerada universal e irreparável; por isso, para as sociedades sem registro escrito, o alcance convencional do discernimento é considerado desanimador. 7
em todas as pesquisas históricas, como no exemplo deste estudo, que, ao analisar a África, depara-se com sociedades que não tiveram uma forte tradição escrita, ou até mesmo nenhuma. Torna-se necessária a utilização de novas fontes
Com isso, sociedades que utilizavam oralidade
de pesquisa que consigam completar as lacunas
como fonte de transmissão de conhecimento e,
deixadas pela falta da tradição escrita nestas
também, como forma de manter viva e preservada
sociedades em questão. E neste contexto, a
suas histórias e tradições ao longo de sua existência,
oralidade vem ganhando destaque, papel esse que
foram taxadas erroneamente pelos historiadores
ela possui desde a criação da própria disciplina
como sociedades sem história. A exemplo disso,
História, como alega Poul Thompson ao dizer que:
temos as sociedades africanas que, com exceção do
História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 167. 4 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 55.
5
3
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 104. 6 A escrita da História: Novas perspectivas. BURKE, Peter. (org.) Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 163. 7 Loc. cit.
G N A R U S | 75
boca do povo, que todos diziam e repetiam, camponeses, gente da cidade, velhos, mulheres, até mesmo crianças; aquela que podemos ouvir ao entrar à noite numa taverna de aldeia” 8
A essa tradição nacional citada acima discorre sobre as lembranças espalhadas, de boca em boca, pela população de uma determinada sociedade ou povo, ao longo de suas conversas cotidianas ou interações sociais. Lembranças essas que são encontradas no dia a dia, graças à interação gerada pela convivência em sociedade. Neste fato, pode ser notado um fenômeno de reconhecimento daquilo que se é falado, pois se uma pessoa fala e a outra consegue compreender e discernir sobre o que lhe foi apresentado durante o
Griot wolof do Senegal, 1890
discurso, de forma quase que automática, é porque o que lhe foi dito pertence à tradição e a vida
Egito, eram tidas por não possuir história, por conta
cotidiana em que a pessoa está inserida. Esse
de não utilizar da escrita como recurso de
fenômeno então descreve o quanto a oralidade é
preservação da história de seu povo. Porém essas
importante nas diversas sociedades existentes,
sociedades adotaram a oralidade como a principal
inclusive nas que têm tradições escritas, pois, de
ferramenta para manter viva as suas heranças
uma forma única, a oralidade transmite mais
culturais.
rapidamente
A história oral é sim ferramenta precisa de
conhecimentos entre a população, pois o acesso
embasamento para as pesquisas históricas, sendo
aos documentos escritos acontece de forma
de suma importância para o estudo da cultura dos
individual e somente para aquelas pessoas que
diversos povos africanos e de vários outros que
dominam a leitura e a interpretação da escrita. Já a
fizeram preservar, ao longo dos séculos, suas
oralidade abrange a todos, desde que aquele que
tradições, graças à oralidade. A essa história oral
narra fale o mesmo idioma ou dialeto daquele que
que estamos a fazer referência é a mesma descrita
está sendo o interlocutor da fala.
pela autora Michelet, em seu livro: “A Voz do Passado de Tompson”, onde afirma:
“Quando digo tradição oral, estou falando de tradição nacional, aquela que permaneceu espalhada de modo geral na THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 45-46. 8
os
acontecimentos
e
os
Tendo então visto o papel da oralidade como fonte histórica de valida e de precisão para pesquisas,
passamos
então
ao
seguinte
questionamento: Onde então pode-se encontrar a
G N A R U S | 76 história de um povo em uma narrativa oral
Vários outros exemplos podem ser citados, como
completa, sem que ela esteja fragmentada graças
os skald escandinavo, os rajput na India, e, no
as intervenções pessoais durante esse passar de
exemplo da própria história do Rei Artur dada
boca em boca? Para responder essa pergunta,
acima, também podemos referenciar Merlin,
primeiro deve-se ter em mente a frase do
mesmo como figura lendária, pois ele representa os
historiador africano A. Hampaté Bâ: “Não faz a
sacerdotes druidas que, através da tradição
oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos
ritualística oral, também ajudavam a manter a
séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros
história deste povo, pois a oralidade também pode
arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro
ser transmitida nos ensinamentos das tradições
dos homens.” 9. Sabendo, então, que a história oral
ritualísticas das religiões professadas pelos povos
é aquela preservada na mente dos homens,
de tradição oral.
passamos a discorrer sobre os homens que tem o papel de serem os grandes guardiões da história de seu povo.
Essas pessoas que agiam como disseminadores e preservadores da história, passaram a ter essa atividade quase como um oficio em várias
Ao longo dos milênios foram surgindo, nas
sociedades. Em alguns lugares, as pessoas que
sociedades de tradição oral, pessoas cujo seus
tinham tal papel eram sim entidades do Estado,
ofícios eram o de serem arquivos históricos vivos de
onde tiveram o dever de manter viva, ao longo das
seu povo. Na Grécia antiga, antes de serem escritas
gerações, a história de seu povo.
obras como Ilíada e a Odisseia, os poetas líricos chamados de Aedos cantavam as ações dos deuses
“A importância social de algumas dessas tradições orais resultou também em sistemas confiáveis para sua transmissão de uma geração a outra, com um mínimo de distorção. Práticas tais como o testemunho grupal em ocasiões rituais, disputas, escolas para o ensino do saber tradicional e recitações ao assumir um posto podiam preservar por séculos padrões exatos, inclusive arcaísmos, mesmo quando não fossem mais compreendidos. Tradições deste tipo assemelhavam-se a documentos legais, ou livros sagrados e seus detentores tornavam-se funcionários altamente especializados em muitas cortes africanas.” 10
e semideuses, além de descrever as armaduras e adereços dos heróis, declamando os seus grandes feitos que ficaram na história; tudo isso graças as narrativas feitas pelos Aedos. Já na Idade Média europeia, o bardo era o grande Trovador, um personagem que cantava os feitos dos nobres, honrados cavaleiros e reis a todos que encontravam e em todos os lugares por onde passavam, fazendo com que a história, por eles narrada, se espalhasse por todo o mundo; chegando até mesmo a influenciar nos filmes, lendas e histórias dos dias de hoje. Muitas histórias foram preservadas vivas no
Essas pessoas, ou guardiões da história de seu
imaginário da população europeia graças a eles,
povo, eram consultados sempre que necessário
como o caso da história do Rei Arthur, seus cavaleiros e da távola redonda.
História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 168. 9
como espécies de arquivos vivos; o que é percebido na análise de Thompson. Além de ter a obrigação THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 46-47. 10
G N A R U S | 77 de ensinar as tradições e a histórias, tinham que
comunidade com raízes e personalidade regionais,
transmitir as mesmas sempre que tivessem a
muitas
possibilidade, como mostrado acima. Essas ocasiões
modernidade. ” 12
variavam muito, como nos rituais ou nos eventos sociais da região. Feita então, as análises necessárias sobre o papel da oralidade como fonte preservadora da história, e da figura de alguns homens que eram os grandes guardiões da história, voltemos então ao âmago desta pesquisa. A África pré-colonial, em sua maioria, não possuía uma forte tendência por preservar sua história de forma documental, com exceção do povo egípcio e alguns outros povos isolados dentro do território do continente. Por
vezes
perdidas
na
amálgama
da
As narrativas, então, são as mais importantes fontes de transmissão dos valores das sociedades africanas, como ainda vemos na continuação do estudo de Rosário:
“Na sociedade africana, em particular a campesina, onde a tradição oral é o veículo fundamental de todos os valores, quer educacionais, quer sociais, quer políticoreligiosos, quer económicos, quer culturais, apercebe-se mais facilmente que as narrativas são a mais importante engrenagem na transmissão desses valores.” 13
isso, os primeiros historiadores e cientistas que fizeram análises sobre a cultura dos diversos povos
E o papel de ser o narrador destas histórias,
africanos, a tomaram como um continente sem
juntamente com o dever de propagar os valores
história; generalizando assim todas as sociedades e
dentro da sociedade africana, está sobre os ombros
povos existentes no continente. Esse fato mesmo,
de alguns personagens africanos, conhecidos como
tendo uma prática teórica lógica para a sociedade
Tradicionalistas e Griots.
acadêmica da época, é passível de discursão, pois segundo o discurso de Marwick:
“a história de uma sociedade africana, pode ser uma história mais imprecisa e menos satisfatória do que a de uma estriada de documentos, mas de todo modo é uma história” 11 então a história oral dos povos africanos é de fato uma fonte de baseamento e pesquisa para se
Quando a história da África surgiu ganhando a importância que antes tinha sido negada a ela, as teorias do continente ser um lugar sem história caiu. Graças aos novos estudos e vertentes das escolas históricas, a oralidade foi o recurso principal adotado pelos historiadores para refazer os caminhos percorridos por essas histórias a muito esquecidas. Vemos isso de força bela, na frase do
estudar a história do mundo. Porém, onde podemos
livro Griots - culturas africanas: linguagem,
encontrar essa história africana fora das análises
memória, imaginário: “Sabemos que, quando a
documentais? A resposta está na narrativa oral,
África acordou o mundo com o som dos seus
como dito por Rosário: “As narrativas de tradição
tambores silenciosos, os Griots surgiram como
oral são o reservatório dos valores culturais de uma
poesia” 14. Os Griots tornam-se as fontes vivas de
BURKE, Peter. (org.) A escrita da História: Novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 163-164) 12 ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de expressão oral: transcrita em português. 11
Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Luanda: Angolê, 1989. p. 40. 13 Loc. cit. p. 40. 14 Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel
G N A R U S | 78 preservação destas tradições africanas. E logo eles
tradições culturais, históricas, religiosas e as demais
são os lugares onde essa história africana esquecida
tradições do povo em que eles estão inseridos, ou
deverá ser buscada. E, no decorrer deste artigo,
de um leque maior de ramificações sociais da
iremos analisar a importância dos Griots para as
África, pois nem todo griot e tradicionalista está
sociedades africanas, de modo a compreender o
vinculado a um determinado povo, podendo ser
seu papel na sociedade.
também um itinerante, uma espécie de viajante que
Para
se
estudar
a
história
da
África,
necessariamente temos que adotar a oralidade como fonte primordial de pesquisa, caso contrário,
vive espalhando e disseminando a história dos povos africanos por onde passa; fazendo assim o papel de preservar e espalhar a história pela África.
a pesquisa não terá êxodo, ou falhará em algum
Os griots e os tradicionalistas não são figuras
ponto encontrando uma lacuna histórica deixada
diferentes que exercem o mesmo papel. São
pela falta de fontes de pesquisa de outras espécies.
também diferentes em seus princípios e atividades
Assim afirma o historiador africano A. Hampaté Bâ:
sociais. “Os grandes depositários da herança oral
”Quando falamos de tradição em relação a história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimento de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. “15
são chamados “tradicionalistas”. Memórias vivas da África, eles são suas melhores testemunhas”
17,
como afirma A. Hampaté Bâ, os tradicionalistas, também chamados de Dama, são pessoas que desempenham um oficio especifico, ou não, dentro da África. Eles podem ser conhecedores da metalurgia, iniciados na arte das ervar medicinais, ritualistas, especialistas na caça e vários outros
Desde o começo da colonização europeia na
ofícios, sendo, também, espécies de mestres destes
África, ao longo dos séculos, o continente foi tido
conhecimentos.
como sem história, sendo deixado de lado e
africanas, não existe uma divisão tão formal dos
fazendo, então, com que sua herança cultural fosse
conhecimentos entre as pessoas. Um tradicionalista
esquecida. Mas como afirma A. Hampaté Bâ: “Essa
pode ser um conhecedor de um leque maior de
herança ainda não se perdeu e reside na memória
informações e não um especialista determinado de
da última geração de grandes depositários, de
uma área. Então, os tradicionalistas são pessoas que
quem se pode dizer são a memória viva da África. ”
têm um conhecimento cientifico prático. Nas atuais
(KI-ZERBO, 2010, p. 167).16
sociedades, vemos essas pessoas como os médicos,
Mas,
como
nas
sociedades
Essa memória viva de vários dos povos africanos
conhecedores de ervas, especialistas em caça,
está nos ombros dos Tradicionalistas e Griots, que
tornando-se personagens especializados em uma
são as figuras responsáveis por ser depositário das
ou várias áreas do saber, porém, também podendo desempenhar o papel de historiadores, mas de uma
Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p. 4. 15 História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 167.
Loc. Cit. p. 167. História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p 174. 16 17
G N A R U S | 79 forma mais tecnicista, como um arquivista de fatos
encontram-se os vestígios de uma memória cultural
ou genealogista.
e do que foi apagado pela história oficial.” 19
Já os griots eram mais como os aedos e os bardos,
Eles, muitas vezes, eram contratados por reis para
citados anteriormente neste artigo. Eram espécies
narrarem à história de seus feitos, sua linhagem e
de trovadores ou menestréis do conhecimento dos
genealogia, para que, assim, os reis pudessem
povos africanos. Como dito por A. Hampaté Bâ:
validar o seu poder ou enaltecer os seus feitos
“a música, a poesia lírica e os contos que animam as recreações populares, e normalmente também a história, são privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o país ou estão ligados a uma família.” 18
perante seus súditos. Além de lutar com eles em várias batalhas, sendo muitas vezes um recurso fundamental que poderia dar aos seus mestres o recurso necessário para que a vitória na batalha viesse:
“Os griots tomaram parte em todas as batalhas da história, ao lado de seus mestres, cuja coragem estimulavam relembrandolhes a genealogia e os grandes feitos dos antepassados.” 20
Nas sociedades africanas, era costumeiro sentarse sobre a sombra de uma grande árvore e passar horas ouvindo as narrativas e histórias fantásticas, contadas ou cantadas pelos griots. O griot tem o papel de preservar a memória
Com isso, vários griots tinham papel de
coletiva dos povos africanos ou de um leque maior
importância dentro das sociedades africanas, tendo
de sociedades. A importância do griot está em
até mesmo postos de autoridade. Eles também
guardar a palavras, narrativas, mitos, tradições,
eram temidos, pois um griot, de certa forma,
fatos e grandes feitos de seu povo.
poderia contar uma história, tornando alguém um
Na prática um griot é um escritor que não usa um papel e algo para escrever, guardando a história na memória e lendo-a para os outros ao usar sua fala. Ele, ao usar a oralidade, mantém vivo, nos corações dos seus conterrâneos, aquilo que deve ser preservado ao longo das gerações. Então, o griot é a fonte histórica perfeita para se estudar os povos do continente africano, pois ele é um grande
grande vilão, inimigo ou covarde, podendo, também, torná-lo um herói, pois sabemos que a história oral recebe influência de seu locutor, podendo então ser adaptada durante a sua narração. Por isso ao contar uma história, os griots eram questionados sobre a forma com que a história estaria sendo contada, como afirma A. Hampaté Bâ:
depositário e preservador dessa história, além de ser uma espécie de entidade pública, como um
“Quando um griot conta uma história, geralmente lhe perguntam: “É uma história de dieli ou uma história de doma?” Se for uma história de dieli, costuma -se dizer: “Isso
arquivista histórico, o que comprova-se na abordagem de Lima: “Na voz de um Griots,
Loc. Cit. p. 193. Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p. 6. 18 19
História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 196. 20
G N A R U S | 80
é o que o dieli diz!”, e então se pode esperar alguns embelezamentos da verdade, com a intenção de destacar o papel desta ou daquela família – embelezamentos que não seriam feitos por um tradicionalista ‑doma, que se interessa, acima de tudo, pela transmissão fiel.” 21
quando a hora de sua morte chegava, acontecia um ritual descrito por Marta Aparecida:
“Quando um Griot falecia, seu corpo era sepultado dentro de uma enorme árvore, o Baobá, para que suas canções e histórias, assim como as folhas da árvore continuassem a germinar nas aldeias ao seu entorno.” 24
O griot, então, pode desempenhar na sociedade africana diversos papéis distintos. O historiador A. Hampaté Bâ separa esses papéis do griot nas
Considerações finais
seguintes categorias:
A utilização da história oral como fonte de
•os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Normalmente são excelentes cantores, preservadores, transmissores da música antiga e, além disso, compositores.
pesquisa
•os griots “embaixadores” e cortesãos, responsáveis pela mediação entre as grandes famílias em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única pessoa.
em um modo quase que geral. Segundo Thompson:
vem
crescendo
dentro
do
meio
acadêmico, mas ainda é muito escassa a busca por esse método. Mesmo porque a própria transmissão oral vem sendo deixada de lado pelas sociedades
“em geral, apenas entre grupos de menos prestigio, tais como as crianças, os pobres da cidade, as pessoas isoladas no campo, é que hoje se coletam outras tradições orais, tais como jogos, canções, baladas e narrativas históricas.” 25
•os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo), que em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a uma família. 22
Ainda na fala de Thompson, vemos que ele, mesmo sendo um defensor da oralidade, mostra-se
Vemos que a importância do griot para a sociedade é imensa e seu papel é o que manteve,
pessimista em relação à continuação da utilização de tal método no futuro, quando afirma que:
ao longo de gerações, viva a memória de todo o
“As pessoas ainda se lembram de rituais, nomes, canções, histórias, habilidades; mas agora é o documento que se mantem como autoridade final e como garantia de transmissão para o futuro.” 26
continente africano. E, como afirma A. Hampaté Bâ sobre os griots: “tornaram-se naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes historiadores.”23. A figura do griot era de tamanha importância e de
A importância da história oral como fonte
tal reconhecimento da sociedade que o papel de
primordial de pesquisa nas sociedades onde a
destaque deles era lembrado enquanto viviam e,
Loc. Cit. p. 198. História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 193. 23 loc. cit. p. 197. 21 22
Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel 24
Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p.170. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 51. 26 Ibid. 25
G N A R U S | 81 escrita é usada de
verdadeira
forma fragmentada,
biblioteca
ou mesmo, onde a
riquíssima
escrita não é usada,
conhecimentos;
para
morte
de
um
arquivo
vivo
da
fazer-se
preservar
a
em a
memória, cultura e
história da África.
tradições
Uma
povo, então
de
um
provou-se de
importância.
esse que se torna
que
pode ser irreparável
suma Fato
perda
Griots de Sambala, rei de Medina (povo Fula, Mali), 1890.
evidente dentro da maioria das sociedades africanas pré-coloniais e até mesmo em sociedades africanas dos dias de hoje, pois vários povos mantêm suas características orais, mesmo com tantas mudanças no mundo a sua volta. Os personagens que fazem a história manter-se viva dentro destas sociedades africanas são os griots, a memória viva da África.
para
aquela
sociedade
e
mesmo
para
até a
história mundial. Para que isso não ocorra, os griots transmitem seus conhecimentos a sucessores. Eles escolhem jovens dentro da sociedade em vivem para que o acompanhe em sua jornada. E, no processo, o griot vai ensinando tudo o que sabe ao jovem ascendente ao cargo. Esse fato é de suma importância para as sociedades africanas, pois, quando ele morrer, toda
Sem os griots, os nomes dos reis, os grandes feitos,
a biblioteca de conhecimentos que ele possui em
as conquistas e derrotas nas batalhas, tudo isso
sua memória não se perde, e sim, permanece viva
cairia no esquecimento. Se não fosse o trabalho
dentro de um novo guardião.
destes menestréis do conhecimento africano, boa parte da história das mais de duas mil etnias existentes hoje na África teria se perdido com o passar do tempo, fora as várias etnias e sociedades que já deixaram de existir e que, mesmo assim, suas histórias mantêm-se vivas na memória coletiva africana, graças às narrativas contadas ou cantadas pelos griots nas noites africanas ao redor das grandes fogueiras. Deve ser lembrado com isso que, quando na África morre um griot, não é só a morte de mais uma pessoa da aldeia, cidade ou vila, e sim o fim de uma História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 169. 27
Além deste método, o griot mantém viva a história que ele adquiriu com suas vivencias ao longo do tempo, no processo em que ele a dissemina por todos os cantos onde suas trovas, versos, poesias e contos podem ser ouvidos e compreendidos. Por isso como afirma Hampaté Bâ, ao falar da história africana: “os griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores” 27 e sim, os guardiões das histórias, não só da África ou das sociedades orais, mas de todas as sociedades, culturas e povos, somos
G N A R U S | 82 todos nós, pois todos somos a memória da humanidade.
Fernando Augusto Alves Batista é Pós Graduando em Gestão e Orientação Educacional e em História da África – Instituto Educacional Centro Oeste, Licenciado em História – Faculdade Projeção de Taguatinga DF e Licenciado como professor de Ensino Religioso – FATEO (Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília). http://lattes.cnpq.br/7977877644910871
Referências BURKE, Peter. (org.) A escrita da História: Novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasília: UNESCO, 2010. ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de expressão oral: transcrita em português. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Luanda: Angolê, 1989. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
G N A R U S | 83
Artigo
DENTADURA POSTIÇA: O ROCK DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (19641985)
Por: Gustavo Silva de Moura
RESUMO O presente artigo tem como objetivo explanar o Rock brasileiro durante o período de ditadura civil-militar no Brasil, com isso a explanação do comportamento e sonoridade se dará sobre as décadas de 1960, 1970 e 1980. Atitudes contraculturais foram abraçadas por uma parte da juventude em vários lugares do mundo, por meio do Rock, inclusive no Brasil, que se tornaria um terreno fértil para a construção de pensamentos subversivos de uma juventude insatisfeita. Essa fertilidade se deu nas condições individuais e coletivas que os indivíduos viviam inseridos. Palavra-Chave: Rock, Ditadura Civil-Militar, Juventude, Contestação.
O
presente trabalho tem como objetivo
vemos que o Rock, consideravelmente, aparece em
explanar as transformações do Rock1
vários momentos na história, com novas vertentes e
durante o período de ditadura civil-
diferentes ideologias.
militar no Brasil, com isso a explanação do
Grosso modo, o Rock pode ser divido em duas
comportamento e sonoridade se dará sobre as
partes: o rock música e o rock comportamento. Este
décadas de 1960, 1970 e 1980.
trabalho se mune do primeiro. O rock como uma
Discorrendo sobre essa temática temos como
expressão musical compõe-se de vários aspectos
norteadores desse texto algumas questões: Quais as
culturais: música, corpo, indumentária, mercado
atitudes dos roqueiros durante o período civil-
fonográfico, imaginário, sensações, dentre outros.
militar brasileiro? Que bandas se destacaram nesse
Nisso, vemos que o Rock é mais do que um simples
meio? Qual o reflexo do Rock na juventude desse
estilo musical, ele ecoa os sons e transforma o
período?
cotidiano da pessoa que escolhe seguir esse modo
O Rock por muito tempo foi objeto de estudo de
de vida. Desde seus primeiros acordes, ele traz a
jornalistas que desde a década de 1960 narram a
contracultura2 na sua composição que, mesmo
sua evolução musical. Diante dessa bibliografia
sendo uma arte comercializada para as massas, não
O termo Rock com letra maiúscula se refere ao clima dos movimentos musicais e de rock música (com
minúscula) (CHACON, 1983. P. 19). 2 Foi um termo veiculado pelos meios de comunicação
1
G N A R U S | 84
perdeu o espirito contestador.
que não somente a fome ou o instinto humano é
O Rock assim como culturas que tem como bases
causador de revoltas, mas também representações
a realidade local, é colocado como inferior pelas
culturais de determinados grupos, lutam em frente
classes altas, pois seus praticantes são em grande
às consequências sobre os costumes e crises da
parte das camadas economicamente inferior. Mas o
sociedade capitalista.
alcance do Rock transpassa essas barreiras,
Numa sociedade que saía de uma grande guerra,
conseguindo conquistar jovens de camadas altas,
a juventude começou a ver ao seu modo os lados
mostrando que a cultura e os costumes são
que se confrontavam: o comunista e o capitalista,
maleáveis em relação a diálogos entre os sujeitos
regimes rivais que estavam em alta naquele
sociais interclasses.
momento pós-guerra, chamada “Guerra Fria”. Mas
Eric Hobsbawm fala das transformações que
nenhuma das alternativas oferecia uma perspectiva
começam a ficar evidentes na sociedade sendo “a
de futuro que agradasse uma parte dos jovens. Com
terceira transformação em certos aspectos a mais
isso, essa juventude começou a buscar alternativas
perturbadora, é a desintegração de velhos padrões
que “agredissem” a sociedade como um todo. De
de relacionamento social humano, e com ela, aliás,
todas essas contestações, nascem movimentos
a quebra dos elos entre as gerações, quer dizer,
como o Hippie3, Rock Psicodélico, comunidades
entre passado e presente” (1995, P. 24). O Rock
alternativas dentre outros.
conseguiu
efetivamente
quebrar
esses
elos
geracionais, pois consegue unir pessoas que
O que é esse tal de rock?
coincidem com pensamentos similares.
Após a Segunda Guerra Mundial, houve um
O Rock é uma cultura advinda do mundo
grande crescimento populacional chamado de
capitalista como forma de subversão, mostrando
“Baby Boom” 4, fazendo com que as décadas de
na década de 1960, onde caracteriza novas práticas culturais, que agrediam diretamente aos hábitos das famílias de classe média que tinha ambição pela ascensão social. Essa manifestação chamada de contracultura não se limitava somente ao estético, como por exemplo, homens com cabelos grandes, roupas coloridas, músicas ou drogas, eles também tinham como projeto novas maneiras de pensar, modos diferentes de encarrar e de se relacionar com a sociedade. (PERREIRA, 1992. P. 08)
3
Era um movimento acorrido na década de 1960, baseado na prática da Paz, vivencias em comunidades, dentre outros fatores que caracterizam uma sociedade alternativa ao capitalismo mundial, no Brasil tivemos algumas comunidades consideradas Hippie, dentre elas podemos destacar a comunidade baiana, organizada pelos integrantes da banda Novos Baianos, mostrando uma alternativa para a juventude em meio a ditadura civil-militar. 4 É uma definição genérica para crianças nascidas
G N A R U S | 85 1960 e 1970 tivessem um número significativo de
Urbano foi fonte de inspiração para grandes
jovens, faixa etária importante para a crescente
guitarristas como Eric Clapton, Jimi Hendrix e
expansão do consumo. Após esse crescimento
outros. De cultura marginalizada, o Rock começou
populacional, já na metade da década de 1950, a
a tomar um caráter de contracultura.
população jovem se constituía de um mercado consumidor com proporções razoáveis.
Nos anos de 1950, a maioria das músicas rock tinha temas juvenis, como conflitos amorosos,
O rock mesmo sendo originário dos Estados
namoros e a vida adolescente sem regras. Nos anos
Unidos da América, teve grande difusão em vários
de 1960, devido ao contexto de guerra e de lutas
outros países. Ele se adapta as condições sociais e
pelos direitos civis dos negros, que os EUA estavam
culturais da realidade local5. Constituído de uma
vivendo, as temáticas das músicas rock começam a
mistura de ritmos estadunidenses, o Rock and Roll
mudar, inserindo temas que levassem a uma
obteve uma característica que marcou o seu
reflexão política e às condições que a sociedade
começo, eram ritmos de brancos, pobres e negros
estadunidense vivia.
em um mesmo estilo musical. Para a época e lugar,
Temos no Rock a contracultura, que é constituída
causaria um desconforto em um país onde as
pela subversão à sociedade, seja física, ou seja,
diferenças
intelectual
raciais
ainda
predominavam
na
população.
dos
conceitos
e
paradigmas
estabelecidos por ela (BRANDÃO; DUARTE, 1990,
O Rock and Roll no seu início vem como uma
p.50). Esse “espírito crítico”, antes adotado pelo
cultura marginalizada. A cultura pode ser
Rock and Roll, não tinha críticas políticas diretas ao
entendida como uma tradição estabelecida por um
governo. A sua crítica vinha nos corpos daqueles
grupo, referindo-se às práticas relacionadas aos
que o faziam, por ser um estilo que, em suas batidas,
processos técnicos, heranças de ideias, hábitos e
inevitavelmente, leva seu espectador a sentir as
valores, sendo o que constitui um homem como
vibrações sonoras, fazendo com que o dançar num
membro de alguma sociedade (BURKE, 2005, p,
sentido libertador aconteça, sendo um exemplo
43). Porém a cultura não somente se limita a
disso Elvis Presley:
reproduções de padrões culturais, sendo ela dinâmica, propiciando transformações sociais. Temos uma das raízes do rock na música negra dos EUA: o Blues. Com a migração negra nos anos de Depressão e da Segunda Guerra Mundial essa população começou a se instalar nos grandes centros urbanos, criando várias comunidades afro-
Se não houver reação corpórea "quente", não há rock. É verdade que as cortes renascentistas também dançavam. E é por isso que eu digo "quentes": não pode haver regras, cenas determinadas, linhas do salão a cobrir, músculos tensos a esperar o próximo movimento. O rock precisa de liberdade física, o que ficou claro de Elvis (The Pelvis, lembram-se?)(CHACON, 1983, p.13).
americanas ao final da guerra, em 1945. Esse Blues
Com o Rock, surge toda uma cultura de
durante uma explosão populacional - Baby Boom em inglês, ou, em uma tradução livre significa “Explosão de Bebês”. Em geral se refere aos filhos da Segunda Guerra Mundial, já que logo após a guerra houve uma explosão populacional. Nascidos entre 1943 e 1964, hoje são indivíduos que foram jovens durante as décadas de 60 e 70 e acompanharam de perto as mudanças
culturais e sociais dessas duas décadas. 5 Para Paulo Chacon o Rock é originário dos EUA, possuindo o seu maior manancial de grupos, mas ele é absolutamente internacional. Pois a construção do Rock é baseada na aproximação das culturas regionais e locais (CHACON, 1983. P.19-20)
G N A R U S | 86 contestação juvenil, usada para chocar os padrões morais da sociedade. A sociedade temia que sua influência sobre os jovens, com sua dança “rebolativa”, fizesse a juventude subversiva. O rock funcionou como um modo de estabelecer uma
demonstrações contra a guerra do Vietnam, quando os ouvir cantar as canções de Bob Dylan, senti de algum modo, e isto é muito difícil de definir, que esta é na verdade a única linguagem revolucionária que hoje nos resta. (MARCUSE, 1990, p. 245).
inversão psicológica na juventude branca. Essa
Herbet Marcuse sentiu o mesmo que vários jovens
inversão psicológica era fazer com que o “jovem
relatam sentir, mesmo sabendo que esse é um
branco”, viesse a ter valores da comunidade negra
relato como o próprio Marcuse fala, “romântico”,
que era considerada inferior. Essa juventude se
podemos perceber o poder revolucionário que o
tornou oprimida diante dos valores dos seus pais
Rock traz em suas atitudes, sendo uma alternativa
por isso, tomavam para si valores da cultura negra.
de contestação gerada por uma juventude
Mesmo tendo sido anexado à indústria cultural,
marginalizada.
O Rock ainda pode
O Rock and Roll chega ao Brasil por meio do
ser definido como um tipo de linguagem
cinema na década de 1950, mais precisamente em
revolucionária. Sobre isso temos como referência o
1955, com o filme “Sementes de Violência7” que foi
diálogo entre dois filósofos contemporâneos:
exibido no eixo Rio-São Paulo, um filme que mostra
Theodor
um drama juvenil que tinha como trilha sonora o
através da produção
Adorno
industrial6.
e
Herbert
Marcuse,
que
discordam sobre o sentido que a arte pode ter.
rock and roll (PAVÃO, 1989, p. 21).
Adorno coloca que a arte tornou-se uma mercadoria e por conta dessa relação de troca e lucro de quem a obtêm, não consegue tomar uma posição de mudança na sociedade, pois ela serve aos interesses capitalistas. Marcuse nos coloca outro ponto de vista, onde as práticas artísticas levam em si à sensibilidade de uma “verdade” e que mesmo podendo ser comercializada, não perde esse caráter de transmissão de vida singular. Na década de 1960, nos EUA, o Rock começa a ser veiculado não somente como uma agressão visual, como Elvis e a juventude transviada relatadas no cinema, mas também como uma contestação política no contexto de suas músicas. Marcuse afirmou que:
Quando assisti e participei de suas
Abrange, além da música, setores do lazer, esportes, cinema, imprensa (tanto a escrita como a falada), espetáculos públicos, literatura, moda, resumindo, a indústria cultural são produtos que caracterizam o estilo de vida do homem contemporâneo do meio urbanoindustrial. (CALDAS, 1986. P 83) 7 Filme estadunidense, filmado por Richard Brooks, 6
baseado em um romance de Evan Hunter que tem como título original “The Blackboard Jungle”, que mostrava um drama juvenil que tinha como trilha sonora o Rock and Roll,. No Brasil foi exibido com o nome Sementes de Violência, teve exibições no Brasil dentro do eixo RioSão Paulo, na década de 1950.
G N A R U S | 87 O Brasil vivia um período chamado de “Anos Dourados”, Jucelino Kubitscheck tinha como plano de metas do seu governo o desenvolvimento brasileiro: Slogan, “50 anos em 5” . Com esse plano de desenvolvimento, havia um incentivo à indústria estrangeira, com isso cresce o consumo, não somente no Brasil, mas em todo mundo. Os Estados Unidos da América buscavam perpetuar o seu estilo de vida, vendendo uma imagem: o American Way
of Life (Modo de Vida Americano). No Brasil os EUA tinham ajuda de empresas de Rádio e de Televisão. Essa indústria do consumo via grande força no mercado jovem, o maior reflexo do poderio de compra da juventude foi refletido na indústria de discos (HOBSBAWN, 1995. p. 321-322). No Brasil a propaganda e o sistema de crediário aumentavam, estendendo o poder de consumo da juventude. Como uma das consequências temos a chegada do
rock and roll na década de 1950, havendo registro da primeira gravação de rock and roll brasileiro8. Influenciados pelo rock and roll americano, que chegava ao Brasil pelo cinema, os jovens brasileiros começavam a imitar os personagens dos filmes, vestindo as mesmas roupas, anexando palavras em inglês a sua fala. Isso mostra que parte da juventude brasileira começava a se inserir em um sistema que tinha como base uma cultura estrangeira, mas que poderia se encaixar às condições do Brasil. Podendo haver semelhanças entre os conflitos da juventude, seja no âmbito social, seja no individual.
É proibido proibir essa mosca na sopa, que país é esse?! Os militares por mais de vinte anos, entre 1964 e 1985, governaram o Brasil dando início a novo período ditatorial no país, tendo como ápice repressor o AI59, que durou de 1968 a 1978. Temos como determinações influentes no âmbito da música:
Proibia manifestações populares de caráter
político;
Suspendia o direito de habeas corpus (em
casos de crime político, crimes contra ordem econômica, segurança nacional e economia popular).
Impunha a censura prévia para jornais,
revistas, livros, peças de teatro e músicas. O rock da década de 1960 tem como protagonistas, bandas e artistas, da Jovem Guarda e Tropicália. Se a Jovem Guarda era o reflexo dos
Beatles fase “iê-iê-iê” 10, a Tropicália era o reflexo dos Beatles na fase “Revolver11”. O primeiro foi colocado como forma de protesto e o segundo como despolitizado. Com a justificativa que em uma época de tanta repressão, ao invés de estarem protestando contra os abusos da ditadura, estavam cantando músicas que falavam de carros, garotas e festas, ostentando assim uma imagem dita “norteamericanizada”, numa época de tanta repressão. O segundo foi colocado por alguns como subversivo, mesmo assim ocorreram momentos em que foram estigmatizados.
O Primeiro rock and roll feito por brasileiros é uma composição de Miguel Gustavo, com o título, “Rock and Roll em Copacabana” essa música foi gravada por Cauby Peixoto pela RCA em Janeiro de 1957, mas só foi lançada em Maio. (MOURA, 2013. P. 70) 9 O Ato institucional Numero 5 (AI5) foi instituído no Governo Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968 e perdurou até o Governo Geisel sendo extinto em 1978, ele concedia poderes plenos ao Presidente da República para dar recesso à Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras de vereadores, sendo que o Presidente assumiria a função desses poderes. A 8
determinação deste ato que afetou diretamente as artes foi a censura prévia para jornais, revistas, livros, peças de teatro e música. 10 Fase iê-iê-ê remete à música “She Loves You”, que tem como refrão “She loves you Yeah, yeah, yeah”, na qual fala de um drama amoroso adolescente, tema tratado correntemente nas composições da jovem guarda. 11 Disco de 1966 que é considerado como o grande marco da psicodelia e da contracultura, em que mostra um Beatles, maduro e ousado (DAPIEVI; ROMANHOLLI, 2004. P. 32,33)
G N A R U S | 88 A Tropicália até hoje é apontada como parâmetro
Proibir”, cantada por Caetano Veloso, debaixo de
para arte politizada em questões musicais, tendo
vaias no III Festival da canção em 1968 e
uma significativa participação no Rock brasileiro.
desclassifica após Caetano ter discutido com a
Uma de suas peças, Os Mutantes, aparece na capa
plateia no meio da apresentação.
do disco manifesto: “Tropicália ou Panis et
“Me dê um beijo meu amor / Eles estão nos esperando/ Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar as prateleiras/ As estantes, as estátuas/ As vidraças, louças/ Livros, sim…/ E eu digo sim/ E eu digo não ao não/ E eu digo: É!/ Proibido proibir/ É proibido proibir…”13
Circenses”, mesmo não sendo um disco de rock tinha uma postura Rock em seus integrantes. Os Mutantes era uma banda de rock classificada como progressivo. Foi muito criticada pela juventude dita “politizada” por ser acusada de ceder ao espírito
Em 27 de dezembro de 1968, Veloso e o parceiro
capitalista norte-americano12. Temos como um exemplo de uma música com estrutura e atitude Rock à canção “È proibido
Gilberto Gil foram presos, acusados de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. Foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro e tiveram suas cabeças raspadas. Ambos foram soltos em 19 de fevereiro de 1969 e seguiram para Salvador, onde tiveram de se manter em regime de confinamento, sem aparecer nem dar declarações em público. Em julho de 1969, Caetano e Gil partiram com suas mulheres para o exílio na Inglaterra. A década de 1970 foi o período em que a ditadura mais reprimiu, a instituição do AI-5, forçou muitos artistas a saírem do país. Foram excluídos do país ícones como Raul Seixas, que defendia uma sociedade
alternativa,
fora
dos
padrões
estabelecidos pelos governos e sociedade, baseada Caetano Veloso de Verde com sua roupa de plástico, juntamente com a banda Os Mutantes, todos de Laranja
Rock progressivo é um rock com pretensões de “obra de arte”, usa influências de música erudita, Jazz e ritmos regionais. Os maiores ícones desse estilo são Pink Floyd, Frank Zappa, Yes, Genesis, dentre outros. No Brasil algumas das principais bandas são: O Terço; Perfume Azul do Sol; Som nosso de cada dia; Terreno Baldio dentre outras. 13 Trecho da canção “É proibido proibir” interpretada por Caetano Veloso na eliminatória do III FIC da TV Globo, em 15 de setembro de 1968, sendo desclassificada e amplamente vaiada pelo público, gerando uma discussão entre Caetano Veloso X Plateia. 14 Termo utilizado para definir o Rock Brasileiro 12
na Thelema. Raul Seixas é colocado como o patriarca do BRock14. A partir do 7º FIC15, Raul se
produzido no final da década de 1970 e 1980. “Brock: Era
o reflexo retardado no Brasil menos da música do que da atitude do movimento punk anglo-americano: do-ityourself, ainda que não saiba tocar, ainda que não saiba cantar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasileiro, (…) falado em português claro das coisas comuns ao pessoal de sua própria geração: amor, ética, sexo, política, polaroides urbanos, dores de crescimento e maturação – mensagens transmitidas pelas brechas do processo de redemocratização. Era um corte proposital em relação à MPB, era a valorização da juventude nos anos 80. diz Renato Russo” (DAPIEVI, 1995. P 195,196) 15
7º FIC: 7º Festival Internacional da Canção realizado
G N A R U S | 89
era. Era uma coisa mais espiritual. Preferiria dizer que tinha pacto com o demônio a dizer que tinha parte com a revolução. Então foi isso, me escoltaram até o aeroporto." (...) (Raul Seixas sobre o exílio ocorrido em 1974, em uma entrevista publicada na revista Bizz, em março de 1987) Nos anos de 1970 outros artistas fizeram sons marginais. Outro grupo foi o Secos & Molhados, que mesmo tendo pouco menos de três anos de Imagem retirada do Clipe Mosca na Sopa, música de 1973, mostra Raul Seixas e Capoeiristas, atividade ilegal na época.
duração, foi marcante no Rock brasileiro. Serviu de embrião para a década de 1980. Vemos que o rock brasileiro começou a se fortalecer na década de 70,
tornaria uma referência para aqueles que insistiam
período
em
que
começa
em fazer Rock no Brasil.
redemocratização do Brasil.
o
processo
de
Raul Seixas teve canções censuradas pela
O Brasil no governo do general Geisel viveu um
ditadura civil-militar por serem ofensivas aos bons
período de endividamento econômico, mas
“costumes da época”. Algumas canções censuradas:
diferentemente dos outros países na década de
Mosca na Sopa/ Cachorro Urubu/ Sociedade
1970, desenvolveu uma política de metas
Alternativa/ Como Vovó Já Dizia/ Sapato 36/ Abre-
ambiciosas, mostrando para o mundo uma
te Sézamo/ Aluga-se/ Metrô Linha 743/ Mamãe Eu
tranquilidade, que para o povo brasileiro não era
não Queria/ Cowboy Fora da Lei. Temos como
palpável. Com isso, o Brasil começa a ser mostrado
exemplo a música “Mosca na Sopa”, do disco Krig-
na comunidade internacional como a oitava
há, Bandolo de 1973:
potência mundial, fazendo com que acontecessem várias parcerias com outros países, mas a crise
Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa/ Eu sou a mosca/ Que pintou prá lhe abusar… (...) E não adianta/ Vir me detetizar/ Pois nem o DDT/ Pode assim me exterminar/ Porque você mata uma/ E vem outra em meu lugar. Raul Seixas relata sua prisão em 1974 do seguinte modo:
“Veio uma ordem de prisão do Exército e me detiveram no Aterro do Flamengo. Me levaram para um lugar que não sei onde era. Imagine a situação: estava nu, com uma carapuça preta. E veio de lá mil barbaridades. Tudo para eu dizer os nomes de quem fazia parte da Sociedade Alternativa, que, segundo eles, era um movimento revolucionário contra o governo. O que não
em 1972.
nacional viria a seguir, por exemplo, a “crise do petróleo” em 1973. A partir do momento de Abertura Política, o Rock começou a ter mais força no país, emergiram grupos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, estados que tiveram mais repercussão no cenário brasileiro. Formou-se assim a primeira divisão do BRock, como coloca Arthur Dapievi, em seu livro
BRock: O rock no Brasil dos anos 80. Mas não podemos esquecer que não somente nesses grandes centros houveram emergência de bandas de rock. Paralelo a esses centros surgiram divisões de base do BRock, em várias outras localidades do
G N A R U S | 90
Após o Rock in Rio 1985, começa emergir bandas em várias localidades do Brasil, dos mais variados estilos de rock. Assim houve um fortalecimento do
Heavy Metal brasileiro que começava a ter força em Minas Gerais, com bandas que são referências mundiais, como o Sepultura e Sarcófago. Com esse cenário de crescimento comercial, ocorre o surgimento de várias bandas e de novos admiradores em todas as camadas sociais a partir da década de 1990. Por conta desses novos Carimbo da Censura na música Faroeste Caboclo da banda Legião Urbana
admiradores, de classes altas da sociedade, essas bandas compostas por filhos de empresários e políticos, conseguem se inserir mais ativamente na
Brasil, como em estados do Nordeste e Norte do
indústria fonográfica, buscando seu “lugar ao sol”
país.
no mundo midiático, fazendo com que tenham mais
Temos como um dos marcos do avanço do Rock
cuidados em tratar de temas agressivos, para
brasileiro o festival chamado Rock in Rio, que
manter sua imagem na mídia e vender mais discos,
aconteceu no ano de 1985, considerado um dos
ampliando assim a aceitação na sociedade, mesmo
maiores festivais do mundo. As principais bandas do
que não inteiramente.
cenário Rock/Metal mundial se apresentaram nesse festival, nomes como os dos alemães do Scorpions, dos ingleses do Iron Maiden e dos australianos do AC/DC, bandas que estavam no auge de suas carreiras e que antes nunca estiveram no Brasil. Esse festival levou bandas do cenário nacional para abrir os shows dessas grandes bandas. Entre as que abriram esses shows, temos o Barão Vermelho, Paralamas
do
Sucesso,
dentre
outros.
Na
apresentação da banda Barão Vermelho, seu vocalista até então, enfatizou a situação política que o Brasil vivia, antes da última música da banda na noite, intitulada “Pro dia nascer feliz”:
Estamos bem por um triz/ Pro dia nascer feliz(...)/ O mundo inteiro acordar/ E a gente dormir, dormir/ Pro dia nascer feliz/ Pro dia nascer feliz/ O mundo inteiro acordar/ E a gente dormir...16
16
Música do álbum, Barão Vermelho 2 (1983), sendo, ultima
Foto do Público no Rock in Rio 1985
canção da banda no Rock in Rio 1985.
G N A R U S | 91 Considerações finais Atitudes contraculturais foram abraçadas por uma parte da juventude em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil, que se tornaria um terreno fértil para a construção de pensamentos subversivos de uma juventude insatisfeita. Essa fertilidade se deu nas condições individuais e coletivas que os indivíduos viviam inseridos. No caso do Brasil, uma sociedade caracterizada por ter um padrão familiar e de religião católica que estabelece regras, e vários outros fatores, além disso, o sistema governamental que retirava da população
seus
direitos
sobre
a
política,
encontramos oposição na subjetividade de cada sujeito inserido nesse meio. Com novos anseios, a juventude passa a buscar na música uma alternativa de vida, fazendo com que talentos individuais surgissem, mas enfatizando o sentimento de colaboração entre os praticantes do Rock. O movimento Rock estava em todas as camadas sociais, seja ela a classe rica seja da classe pobre. Novas possibilidades se abriram, a partir da inserção do rock na política institucional, fazendo a juventude tornar-se ativa na criação e elaboração de shows, evidenciando que os poderes públicos e privados perceberam o crescimento e vincularamse em alguns momentos a “Cena Rock” local. O rock,
portanto,
constitui
uma
relação
de
negociação política e cultural. Gustavo Silva de Moura é Graduado em Licenciatura Plena em História Pela Universidade Estadual do PiauíUESPI e Especializando em História do Brasil pela UCAM.
Referências BRANDÃO, Antônio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos Culturais da Juventude. São Paulo: Moderna, 1990. BURKE, Peter. O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
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G N A R U S | 92
Artigo
IDENTIDADE CULTURAL, DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITO Por: Daiana Ximenes de Menezes e
Cristiane Chaves de Oliveira
A
pós a independência em 1822, se
nacional, baseado num projeto nacionalista e
começa a criar valores brasileiros, e com
desenvolvimentista, onde o contexto histórico era
a Proclamação da República, em 1889,
caracterizado por desigualdades econômicas,
ocorre à reconstrução de um projeto de nação
sociais e culturais entre classes, etnias e regiões.
baseado na necessidade de se criar uma
Gilberto Freyre é um dos poucos autores que
identidade nacional brasileira. Ocorrerão debates
falam do processo de mestiçagem e sua
políticos sobre novos projetos para representar o
importância para a formação de nossa sociedade.
governo, com discursos etnocêntricos que
Ele
ecoavam desde meados do século XIX até no
miscigenação e da visão de “O que é ser
decorrer do século XX.
brasileiro”, onde vê na mistura das três raças
irá se destacar pela
valorização
da
Veremos que a construção da identidade
(branco, negro e índio) a formação de nossa
nacional Brasileira realmente ganhará força em
identidade. Antes disso, não existia a ideia de
1930 com o Estado Novo de Getúlio Vargas, tendo
miscigenação das três raças, e sim a do branco e
que enfrentar o problema étnico do paradigma
do índio, pois o negro estava excluído por causa
racialista da sociologia, que será substituído pela
da sua condição de escravo. Freyre vê as três raças
miscigenação de Gilberto Freyre, pois era grande
de forma igualitária, o que foi revolucionário para
a necessidade de uma identidade nacional
a época em que se lançavam ao mundo, teorias de
compartilhada, mostrando que essa construção
branqueamento. Ele fala que houve uma
não era só um processo cultural, mais também um
miscigenação total, onde nada ficou puro.
processo político que necessitava de uma coesão
G N A R U S | 93 Analisando por vários ângulos, sem eufemismo
concepções de selvageria.
as relações de poder de uma sociedade dividida
A questão afro religiosa no Brasil abre vários
entre conquistadores e conquistados. Mesmo
discursos e parênteses que em muitas das vezes,
tendo sido feito de forma literária, “Casa grande &
ficam
senzala” é considerada o primeiro estudo
preconceito,
antropológico de nossa sociedade. Dentro da
relaxamento nas denúncias ou simplesmente pelo
casa-grande onde as relações sociais e culturais se
desrespeito as religiões de matriz africana. Falar
misturavam criaram um novo modo de vida.
da formação de identidade brasileira é também
Freyre é o autor que fala da importância do
difíceis
de falta
existiam
também nas interpretações, um
esses
Antes
dos
portugueses
já tinham a sua forma
eram analfabetos.
religiosa
Ele vê o negro como um
plantas
retratou de forma expressionista a vida intima e cotidiana de senhores e escravos, os negócios e a religiosidade. Esta última embutida de um para que os negros
pudessem expressar sua religiosidade e culto a seus deuses. esse
sincretismo
o
nela, eles já manipulavam
Foi
inovador em sua obra, onde
sincretismo religioso
encarar
aos deuses que habitavam
ambiente cultural para ser Brasil.
de
mundo, ligados a natureza e
civilizador que saiu do seu
com
várias
Oceano Atlântico, os índios
portugueses, que na maioria
Mesmo
com
chegarem do lado de cá do
dos índios como as dos
no
Brasil
maneiras demonstrar sua fé.
negros
com cultura superior tanto a
escravo
do
Um país rico nesse aspecto e
da nossa identidade cultural. E africanos,
conhecimento,
multiculturalismo do Brasil.
mas
entre
por
sabemos
principalmente na construção que
de
seja
falar sobre quais povos formam ou formaram essa
economia dessa sociedade
revela
fechado,
identidade. E que identidade seria essa, se
escravo africano não só para a escravocrata,
ser
a
afro-
religiosidade será objeto de discriminação e perseguição no Brasil, tendo na Igreja Católica Apostólica Romana o seu principal algoz. Pois ela criou tabus a respeito de seus rituais e de suas divindades, os associando a feitiços maléficos e a
para
a
cura
e
proteção. Com a chegada dos portugueses e as crenças de que o que lhes é diferente é inferior, o índio foi convertido. Seriam mais adeptos para religião católica que perdia força com o protestantismo na Europa. Sem respeito algum, portugueses catequizaram índios e os diminuiriam. Eis que nasce o Brasil, descoberto
pelos
portugueses.
Anos
de
exploração e povoação, e com os índios fugindo ou sendo dizimados, fazendo com que os portugueses precisassem de outra mão de obra. Começa o
tráfico
negreiro, transformam
G N A R U S | 94 habitantes de um continente em escravos, trazem
tradicional
o negro para o Brasil, sem achar que essa pessoa
universidades.
de pele escura tem alma, o trazem em navios com nomes que nos fazem refletir. Como o tumbeiro chamado de Boa Esperança. Esperança para o português e o descendente de português nascido no Brasil, pois o negro aqui só encontrou indiferença, preconceito e dificuldade.
de
médicos
formados
por
Enquanto os líderes do calundu atendiam a população carente e não chamavam muito a atenção, não havia perseguição, o problema começou quando eles começaram também a ter uma clientela branca e a participar das revoltas. Eles representavam uma forma de poder e, além
Quando chegam ao Brasil ou ainda nos portos
disso, eram respeitados pela comunidade local,
da África são batizados e chamados por um novo
sendo de forte influência. O que os tornavam um
nome dado a ele pelo português. Trazido ao Brasil
desafio para as autoridades coloniais.
ele tem que aprender uma nova língua, ter contato com grupos rivais de pele igual. Chegando a colônia portuguesa na América, o negro escravizado tem uma história, uma crença, uma religiosidade. Há um conflito de mundos diferentes para esse negro. Baseada na oralidade e na ancestralidade os africanos passam a cultuar aqui seus ancestrais, seus orixás.
Com a perseguição e a pouca forma de conseguir cultuar seus deuses, os negros utilizarão o sincretismo religioso como estratégia. Iniciam a ligação entre os santos católicos e os orixás, para sair do olhar dos senhores brancos. Os mais conhecidos são Ogum relacionado a São Jorge; Santa Barbara á Iansã; Nossa Sra. da Conceição á Iemanjá; Oxossi a São Sebastião e assim por diante. Os negros além de aprenderem a língua dos
Segundo Luis Nicolau Parés, o vudum era o
senhores, também conheciam o local em que
termo usado na Bahia do século XIX. Do vudum
estavam e a rotina a sua volta, enquanto que os
formou-se o candomblé na Bahia e o Tambor de
senhores pouco sabiam sobre os seus escravos. Isso
Mina no Maranhão.
de certa forma facilitava a movimentação e a
Na África cada tribo cultuava um único orixá, mas aqui o culto de várias divindades num mesmo
ocultação de seus ritos afros, até mesmo dentro das igrejas católicas.
templo era prática comum nas tradições vudum
Tanto a política quanto a religião são elementos
africanas desde do século XVIII. Mas há relatos
que unem ou segregam. Entre o final do século
que desde o século XVII existia cultos africanos em
XVIII e o início do século XIX a Bahia viveu tempos
terras brasileiras. As informações falam de um
de prosperidade política, para nos anos seguintes
calundu colonial. Festejos com datas marcadas em
viver momentos de tensão com o governo de
calendário e sem lugar fixo para ser feito, ou seja,
Conde da Ponte, que após entrar para irmandade
sem terreiro. O calunduzeiro curava doenças
dos Martírios, começa a dar liberdade para as
simples e graves manipulando ervas, curavam
nações africanas, estimulando de certa forma a
também transtornos mentais e da alma. Isso ia de
rixa entre elas, impedindo as mesmas de se unirem
encontro com a supremacia da igreja Católica em
contra a ordem colonial.
bases de poder e cura, e também com a medicina
A perseguição às religiões de matriz afro se
G N A R U S | 95 estendem a todos os estados em que se
tornava-se ainda mais intensa. Alguns locais ditos
estabeleciam. Nesses lugares estava a lei para
protegidos não sofriam ou eram avisados quando
declarar “guerra”, Rio de Janeiro, Minas Gerais,
a “batida” policial iria chegar. A casa da tia Ciata é
Bahia, Maranhão, Pernambuco. Todos contra a tal
um exemplo, permaneceu durantes anos sendo
curanderia.
frequentada não só pela população pobre, mas
Com o passar dos anos, muitos acontecimentos
teve seu nome ligado a sambista e até ao
não mudam, mas tomam uma nova forma de
presidente Wenceslau Brás, que por intermédio
serem feitos. Segundo o texto “O arsenal da
de um investigador conheceu Tia Ciata e curou-se
macumba – Yvonne Maggie” - “se há crença na
com ela. O presidente perguntou se a mesma
feitiçaria, há combate aos feiticeiros. ” E mesmo
precisava de alguma coisa e ela respondeu que
com o Brasil se tornando um estado laico com a
para ela nada, mas que precisava de um emprego
Constituição de 1891, os cultos afros permanecem
para o marido, pois a família era grande. O marido
no código penal como delito. Ao longo do século
foi trabalhar na polícia. A casa da tia Ciata também
XX a polícia monta grandes coleções de objetos
era palco para os sambistas. A perseguição, o
dos terreiros.
preconceito era muito, mas para alguns parecia
Com a promulgação do código penal vários feiticeiros eram presos e julgados. A perseguição
de certa forma ser um pouco mais brando. Parecia uma caçada as bruxas. Policiais, juízes,
Um exemplo de sincretismo entre candomblé e catolicismo é a Lavagem do Bonfim, que ocorre anualmente em Salvador, na Bahia, no Brasil
G N A R U S | 96 advogados, promotores todos envolvidos na caça
ainda mantém crucifixos em seus prédios públicos.
aos feiticeiros. Julgando qual exercia de fato a religião e qual não. Alguns pais e mães de santo foram julgados como charlatões, que enganavam ao povo, extorquindo dinheiro, usando sua fé. O material recolhido e apreendido foi exposto e se tornavam prova material de que existia a “macumba”. Sem pensar na história da religião como feito sempre, sem perguntar, indagar ou
Intolerância ou discriminação, qual seria a expressão correta quando se trata de religião dentro do Brasil, dentro de um país com um histórico não só de desigualdade como também de perseguição e discriminação das religiões de matriz afro, como já dito nesse texto, fica claro que para as religiões que cultuam a ancestralidade a expressão correta seria discriminação.
analisar e como sempre caindo no senso comum. Em
1970,
alguns
movimentos
Levando em consideração que intolerância é
políticos
devolveram os objetos, que foram apreendidos pela polícia, para seus donos originais. Essas peças ficavam expostas no museu da polícia, que as mantinha em uma ordem que parecia com a de um terreiro, pois só com os objetos na disposição correta é que realmente o feitiço funcionaria. Nessa época algumas pessoas visitavam o museu e fazia seus pedidos, acreditando que ali realmente existia magia.
quando há pouca disposição de alguém para escutar ideias opostos as suas, e que discriminação é quando alguém é colocado à parte, com tratamento desigual ou injusto dado a um grupo ou pessoa, discriminação então torna-se dentro do conceito que vimos desde o início do texto. O fato de tolerar uma religião pode perfeitamente conviver com a discriminação dessa mesma pratica religiosa. Por todos os assuntos que deram base a esse
Os anos passaram mais a perseguição religiosa continua. O princípio da liberdade religiosa, o caráter laico e a igualdade das religiões foram determinados pela Declaração Universal dos Diretos Humanos, artigo 18 de 1948.
“Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.”
texto foi criado em 2008 a Comissão de Combate a
Intolerância
Religiosa
(CCIR)
composto
inicialmente por umbandistas e candomblecistas, mas que logo depois se juntou a diversas religiões que tem o mesmo propósito combater a intolerância,
ou
melhor
seria
dizer,
a
discriminação religiosa. Apoiados ou embasados, pela lei 11.635 que é a Lei Contra a intolerância religiosa. A CCIR tem como propósito lutar pela
liberdade religiosa garantida por lei. No Rio de Janeiro foi criado o MUDA (Movimento Umbanda do Amanhã), que nasceu
Ou seja, segundo a declaração universal dos
devido a união de alguns centros de Umbanda que
direitos humanos, pode existir e co-existir todas
viram a necessidade de um movimento que
as formas de crença e religião, o que não temos
esclarecesse à sociedade o que é e para que serve
no Brasil de hoje nem no Brasil do passado.
a Umbanda. O maior objetivo deste movimento é
Mesmo o país se declarando um país laico ele
reafirmar a Umbanda como religião que deve se
G N A R U S | 97 prestar única e exclusivamente à caridade e ao
estudos sobre a história da cultura africana e
amor próximo, respeitando as diferenças de
afro-brasileira. Temos a lei 11.635 aprovada em
práticas. A finalidade do movimento é que todas
2007 contra a Intolerância Religiosa e também
as casas que praticam esta religião possam se unir
temos a lei 12.288 aprovada em 2010 que garante
e mostrar a sociedade a pratica do bem, para que
a população negra a efetivação da igualdade de
a sociedade possa respeitar e praticar a Umbanda
oportunidades a defesa dos direitos étnicos
sem medo e preconceito. Desmistificando
individuais, coletivos e difusos e o combate à
quaisquer dúvidas ou mal entendidos que existam
discriminação e às demais formas de intolerância
sobre essa religião.
étnica. Apesar das leis ainda vemos casos de
Acreditam que a liberdade religiosa deve ser defendida não só por eles, mas por cada religioso
discriminação e preconceito nas escolas e nos espaços públicos.
e garantida por vivermos em um Estado sem uma
Como é o caso da adolescente que saiu nos
religião oficial, o que garante o direito
jornais, que foi apedrejada, por estar com a
democrático de qualquer um praticar a sua
indumentária do candomblé. O direito de ir e vir
religião.
passa a não ser respeitado. Essa agressão contra a
Em virtude do que foi mencionado, uma coisa
religião passa a retirar direitos que todos temos
prevalece, a falta de conhecimento sobre as
como cidadão. Também há o caso do menino que
religiões de matrizes africanas, o senso comum de
foi impedido de frequentar a escola por estar com
um Brasil colonial ainda impera. Apesar dessas
suas guias de santo. Apesar das leis ainda há sim a
religiões terem um crescente número de adeptos,
perseguição, a falta de respeito, a superstição,
isso não as faz serem menos discriminadas dentro
o medo de feitiço como no Brasil colonial.
da sociedade. Estudos relatam que as agressões ou perseguições que foram citadas no texto continuam e que o fato das casas, terreiros e barracões terem legalização jurídica, alvará ou CNPJ, não impedem as agressões. Em alguns artigos da professora e antropóloga Sônia Giacomin, ela cita que as agressões geralmente são feitas perto dos terreiros, ou seja, o agressor muita das vezes é o vizinho. Isso só nos mostra que a questão do respeito não está ligada a lei ou a conformidade que as casas se apresentam. Mesmo com as leis que são feitas para que esse tipo de acontecimento não seja repetido eles ainda sim o são. Temos a lei 10.639 aprovada em 2003 que implementa no ensino fundamental, no ensino médio e nas universidades a obrigatoriedade de
Como no Brasil colônia e no decorrer dos anos até chegar à atualidade, a sociedade parece não ter ser informado o suficiente, estudado, aprendido, que temos uma identidade brasileira multifacetada e que dentro dessa identidade estão todos os povos que compõe o Brasil. E que as diferenças enriquecem nossa cultura, e não devem ser motivo de exclusão ou discriminação em um país que possui uma enorme diversidade cultural de Norte a Sul. Para haver identificação também é necessário haja empatia e para isso é imprescindível haver a questão do respeito do “não sou pertencente a essa religião, mas ela faz parte do local em que vivo, ela coexiste no mesmo espaço. ” Levando-se em consideração esses aspectos
G N A R U S | 98 veremos que para conseguir que a discriminação acabe e não só diminua precisamos encontrar uma forma de conscientizar, de fazer os demais entenderem que não é porque não conhecem que a religião do outro está errada e a sua religião é o caminho da verdadeira fé, se somos brasileiros e somos reconhecidos como tal por outros, logo somos identificados pela mistura de todos os povos, culturas e religiões que habitam este país. Todas essas diferenças deveriam nos tornar mais tolerantes uns com os outros e não o contrário, elas deveriam nos unir e não nos separar. Daiana Ximenes de Menezes é licenciada em História pela Universidade Estácio de Sá pós-graduanda em História e Cultura Afrodescendente pela PUCRio. Cristiane Chaves de Oliveira é licenciada em História pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduanda em História do Brasil Contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá.
Referências bibliográficas: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Record, 2001.Erro! A referência de hiperlink não é válida. Acesso em 03/08/2015. http://youtu.be/_scqR6kuyeU. Acesso em 03/08/2015. http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologica
s/index.php/revista/article/view/53. Acesso em 05/08/2015. Portal educação Uol. Aluno impedido de frequentar a escola. Disponível em : http://educacao.uol.com.br/noticias/2014/09/ 03/rj-aluno-e-impedido-de-frequentar-escolacom- guias-de-candomble.htm> Globo.com. Menina vítima de intolerância Religiosa. Disponível em: <http://g1.globo.com/rio- de-janeiro/noticia /2015/06/menina-vitima-de-intoleranciareligiosa-diz-que-vai-ser-dificilesquecerpedrada.html> FONSECA, Denise; GIACOMINI, Sonia. Presença d Axé: mapeando terreiros do Rio de Janeiro. - Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2013 SILVA, Renato. “ Do Calundu ao Candomblé”: Revista de Hitória.com.br . Revista da Biblioteca Nacional; Set 2007. Disponível em: http://www.revistadehistoria. com.br/secao/ capa/do-calundu-ao-candomble> SAMPAIO, Gabriela dos Reis. “Axé Carioca”: Revista de Historia.com.br. Revista da Biblioteca Nacional; Set 2007. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/ca pa/axe- carioca> MAGGIE, Yvonne. “O arsenal da macumba”: Revista de Historia.com.br. Revista da Biblioteca Nacional; Set 2007. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/ca pa/o-arsenal- da-macumba> PARÉS, Luiz Nicolau. “Antes dos orixás”: Revista de Historia.com.br. Revista da Biblioteca Nacional; Set 2007. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/ca pa/antes-dos- orixas>
G N A R U S | 99
Artigo
PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO: O IMPACTO SÓCIO RELIGIOSO NA CULTURA BRASILEIRA SEC. XVI Por: Luana Batista dos Santos
Resumo O Brasil colonial se tornou abundante em práticas religiosas diferentes do que pregava o catolicismo oficial. Os traços europeus, africanos e indígenas, remodelaram o cenário religioso, trazendo consigo espiritualidades diversas na dinâmica social da colônia, o hibridismo cultural passou a fazer parte do cotidiano dessa população, as práticas indígenas fundiram-se com as católicas, ritos e mitos africanos aliaram-se a religião oficial, tradições judaicas que haviam sido incorporadas pelo catolicismo europeu, permaneceram e cresceram na colônia portuguesa.1 O nosso objeto de estudo percorre sobre um personagem emblemático, um senhor de engenho chamado Fernão Cabral de Ataíde, de estatuto social cristão-velho, nascido em Silves (Portugal), fidalgo, casouse com Dona Margarida da Costa de estatuto social cristã- velha, e se tornou um dos grandes senhores de engenho, do Recôncavo Baiano da geração quinhentista. Fernão Cabral nos presenteou com um dos melhores indícios com a chegada da primeira Visitação do Santo Oficio que são os processos inquisitoriais que surgiram por causa da aceitação do novo sincretismo indígena, resultado este ocasionado pela reação de reforma do catolicismo e sua ampliação além-mar, que foram praticadas através do padroado2, foram os jesuítas os principais responsáveis pela expansão da fé, ensinamentos passados através da catequese, Pero Vaz de Caminha no dia cinco de maio de 1500 relata em uma carta3 para D.Manuel que o grande elemento motivador para a colonização do Brasil, seria levar a fé católica para os habitantes aqui encontrados.4
“A Inquisição foi uma instituição repressiva, de extermínio, própria de um regime político totalitário. Hoje o mundo sofre ameaças do fundamentalismo, do fanatismo, e isso é preocupante para o futuro da
MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1896. P. 93-97. tema em questão o padroado funcionou através dos mandos e desmandos do Rei, ele quem decidia qual ordem religiosa se estabeleceria na colônia, no caso do Brasil colonial, os jesuítas vieram neste primeiro momento de povoamento, alem de catequizar os índios tinham um papel de colonizador. “Explicação retirada do dicionário do Brasil colonialRonaldo Vainfas.” 3 ANTT, Carta de Pero Vaz de Caminha, 01/05/1500. Código PT/TT/GAV/8/2/8. 4 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2000. P. 26. 1
2Ao
G N A R U S | 100
humanidade. Conhecendo o passado histórico, talvez os homens se conscientizem dos perigos que corremos.” 5
Teoria e metodologia utilizada
P
ara
desenvoltura
trabalharemos
três
como suas estratégias, percebendo os indivíduos deste
artigo
conceitos
da
historiografia: Hibridismo cultural, micro-
alcançarmos
“hibridismo
o
cultural”,
conceito onde
da
tempo histórico determinado. Como a meta é a redução de escala poderá ser alvo de análise um determinado grupo ou indivíduo e ressalta o ganho
analise e analogia de processos inquisitoriais. Para
que estão atrelados ao seu objeto de pesquisa no
teoria
historiadores
contemporâneos como Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas concluíram ao término dos seus objetos de pesquisa, utilizaremos a obra de Peter Burke com o título de “Hibridismo cultural”. Segundo Peter Burke a teoria de hibridização cultural, no caso deste objeto de estudo, em que a missão da reforma católica estende seus braços sobre a América portuguesa, seria axiomático quando o indivíduo obrigatoriamente larga sua primeira religião e se torna um recém converso e muitas vezes fazendo uma fusão de duas
que se tem, quando a busca por indícios do seu objeto de pesquisa é realizada em arquivos.7 O terceiro e ultimo conceito foi retirado do capítulo VII – “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações”. De acordo com o historiador Carlo Ginzburg, são através destes arquivos-processos inquisitoriais, que podemos destacar um grande número de informações riquíssimas para o resultado do objeto de estudo, e em contrapartida, explana o cuidado que se deve ter em fazer uma análise desse tipo de fonte, pois o inquirido sofria uma coação psíquica e física por parte do inquiridor. 8
religiosidades, delineando não só como um acréscimo ou uma metamorfose cultural, mas também enfatizando que este tipo de prática traz danos ao indivíduo porque ele se estorva de sua prática cultural inaugural.6
concentra-se na micro- análise, de acordo com o Ronaldo
Vainfas
Segundo a historiadora Laura de Mello e Souza, Fernão Cabral de Ataíde permitiu em suas terras o culto sincrético indígena, onde se mesclava hábitos
O conceito metodológico utilizado neste artigo historiador
Study case
no
livro
“Os
indígenas e católicos, sendo ele, um dos pioneiros aqui na colônia a utilizar essa permissão da fusão religiosa como técnica de controle social.9
Protagonistas Anônimos da História” a microhistória enquanto método tem a responsabilidade de descortinar as relações sociais e culturais, bem Entrevista concedida para RHBN pela Profª. Anita Novinsky da USP, em 10/2011, Rio de Janeiro, RJ. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Rio Grande do Sul, Unisinus, 2010, PP 17-18. 7 VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da historia: micro-história. Rio de janeiro: Campus, 2002. PP.114116. 8 Ginzburg, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel: Rio de Janeiro, Bertrand, 1989, PP. 206-207. 9 MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1896. PP.93-95. 5 6
G N A R U S | 101 O historiador Ronaldo Vainfas em seu Livro
De forma que é difícil ter a exatidão de datas do
“Heresia dos Índios” também analisou o caso da
surgimento até a sua completa destruição do
“santidade de Jaguaripe”, relata que a intenção do
sincretismo indígena, é possível trabalhar apenas
senhor de engenho, era de manter o controle social,
com estimativas de 1580 a 1585, foi quando parte
além de, arrebanhar mais índios para seus domínios,
da santidade se deslocou para o engenho de Fernão
fossem os forros que estavam sob domínios da
Cabral, e perdurou aproximadamente entre cinco e
ordem jesuítica ou aqueles que viviam sob os
seis meses, até que o governador Manoel Teles
domínios de outros senhores de engenho, mesmo
Barreto, ordenou a completa destruição da igreja
que fosse para seu beneficio momentâneo, o que os
indígena, ainda emitiu uma certidão que isentava o
indícios apontam
senhor
do
é que essa atitude
engenho
de
culminou
Jaguaripe de suas
em
vários
efeitos,
culpas,
pois
Fernão
importante
Cabral passou a
ressaltar que com
referenciar
a
os
“ídolos
sendo
chegada
da
primeira comitiva
indígenas”
para
conquistar
a
inquisitorial,
a
igreja indígena, já
simpatia dos seus
havia
sido
seguidores, e isso
aniquilada
das
gerou
terras
um
tremendo
Jaguaripe.
desconforto com os senhores de engenho das proximidades e com os próprios jesuítas, pois muitos foram dizimados ao prejuízo com a fuga de seus escravos ou no caso dos jesuítas os forros, para o engenho de Jaguaripe. Sendo um equívoco pontuar que os integrantes que faziam parte do novo sincretismo eram apenas fugitivos, alguns obtiveram a permissão dos seus senhores, e de acordo com o autor Ronaldo Vainfas houve casos de aceitação de Africanos, mamelucos e os próprios portugueses.
de
A
10
primeira
comitiva oficial do Santo Ofício chegou à Bahia em nove de junho de 1591, conduzida pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça, o meirinho Francisco Gouvêa e o notário Manoel Francisco. Depois das apresentações, recebidas todas as honrarias de funcionários régios e eclesiásticos, no dia 22 de julho foi feita a leitura do edital da fé e o monitório da inquisição, dando trinta dias para os moradores da Bahia se confessar e denunciarem os pecados, com discurso de ter a misericórdia e bens não confiscados.11
VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PP. 76-98. 10
VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. PP.17-20. 11
G N A R U S | 102 No tocante do início dos dias de graça tão logo
falecido governador Manoel Teles Barreto dizia
surgiram denúncias contra Fernão Cabral e seu
todos os serviços prestados a coroa em aniquilar a
envolvimento com a chamada “abusão gentílica”,
dita “erronia gentílica”, documento este oficial,
os primeiros a formalizarem suas queixas foram
pedindo ao visitador que transladasse.13 Em suma,
Domingos de Almeida e Pero Novais, o primeiro
parte desta confidência não condiz com o conceito
simplesmente apontando que “ouvira dizer” e o
de veracidade dos fatos, sendo evidenciado que
segundo sendo um senhor de engenho, obteve uma
Fernão Cabral mentiu para Heitor Furtado de
autorização de Fernão Cabral, para visitar na época
Mendonça. Em uma parte da sua confidencia
a dita “igreja indígena”, ou seja, testemunha de
Fernão Cabral relata:
presente12.
“E que à sua noticia veio que algumas pessoas dizem que ele confessante,quando entrou na dita chamada igreja, fizera reverência e tirara o chapéu ao dito ídolo, porém que ele confessante em sua memória não se afirma que tal fizesse, mas em caso se ache que o fez pede perdão disso, e assim o pede de toda a mais culpa que neste caso cometeu como dito tem”14
Três dias após as primeiras denuncias, no dia 02 de agosto de 1591, Fernão Cabral de Ataíde compareceu ao Santo Ofício para fazer sua confissão, assim se prevalecendo dos trinta dias de misericórdia concedidos pelo visitador. Em sua confissão Fernão Cabral admitiu que
O senhor de Jaguaripe durante sua confissão
aceitou uma parte dos seguidores do sincretismo
também resolveu falar sobre uma de suas escravas
indígena, e que mandou uma expedição para o
que se chamava Isabel, que por motivo banal,
sertão atrás do restante dos adeptos que lá
mandou seu feitor e seu escravo atearem fogo nela,
estavam, e do cairaba-mor que se chamava
tratou de relatar o acontecido que não competia ao
Antônio, intitulado o “papa” da santidade indígena,
Santo Oficio julgar. Ao que se sabe, Isabel contou
a expedição foi chefiada pelo mameluco Domingos
um segredo amoroso de Fernão Cabral para sua
Fernandes Nobre e que tudo isso ele fez a mando
esposa D. Margarida. E este fato de incendiar a
do governador da época Manoel Teles Barreto,
escrava viva, tomou uma grande proporção na
perpetuando
meses
Bahia, pois Isabel estava grávida.15 Mais uma vez
aproximadamente, logo após este período ele
preferiu por omitir sua culpa. Fernão Cabral antes
mandou derrubar a igreja indígena que havia sido
da chegada da comitiva inquisitorial agia conforme
construída em suas terras e entregou ao governador
a maioria dos senhores de engenho e escravocratas
em
torno
de
três
uma “gentia” que atendia pelo nome de “Mãe de Deus”, o seu marido e todos os escravos que ali estavam, e para confirmar a versão de sua confidência , apresentou para o visitador uma certidão, que abonava sua conduta, onde o já
VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 188. 13 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit.PP. 188-189. 12
VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. P.65. 15 VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 93. 14
G N A R U S | 103
em épocas quinhentistas, como se a própria lei
denúncias para o visitador. Fernão Cabral foi pego
fossem eles em seus domínios. Segue um trecho do
tentando fugir para Lisboa em setembro, foi preso
relato de Fernão Cabral ao visitador Heitor Furtado:
e ficou sobre cárcere do Santo Ofício, onde era
“E outrossim, confessando, disse que uma noite, estando uma sua negra inchada de comer terra e quase para morrer, por fazer medo e terror aos outros que não comesse terra, disse a dois negros seus que a botasse na fornalha e, depois dele recolhido, os ditos negros a lançaram na fornalha onde se queimou.”16
localizado o colégio dos jesuítas. Foi somente após sua prisão, que se deu seqüência a maior parte das confissões daqueles indivíduos que estiveram de alguma forma, envoltos com o sincretismo tupi, a começar pela sua esposa Dona Margarida da Costa no dia 30 de outubro. Fernão Cabral perdurou quase um ano sobre cárcere da visitação do Santo
Ao fim de sua confissão Fernão Cabral, pediu misericórdia, jurou segredo e assinou. Certo estava o senhor de Jaguaripe que sua situação iria se complicar, pois havia ganhado vários inimigos por conta da “santidade”, logo não tardariam as VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. PP.65-66. 16
Oficio, foi inquirido outras vezes, ate que ele fizesse um exame de consciência, se redimisse, ou estivesse apavorado com aquela situação e assumisse todas suas “culpas”, de certo que o grande senhor do engenho de Jaguaripe após esses meses, após essa
G N A R U S | 104 coação psicológica de interrogatórios estaria
inquisitorial recebeu e estava apta a julgar, 38 se
abalado e toda sua arrogância não perdurariam.17
dirigiram a Fernão Cabral, relativos ao seu
Alguns processos inquisitoriais atrelados a este cotidiano social dos primeiros séculos do Brasil colonial, ligados a Fernão Cabral e ao hibridismo cultural indígena, nos apontam para a incapacidade do visitador Heitor Furtado de Mendonça, para interrogar esse tipo de sincretismo. Podemos observar com o processo de Gonçalo Fernandes, de estatuto social cristão-velho/mameluco, no dia 13 de janeiro de 1592:
“(...) E com estes da dita freguesia de Paripe ele denunciante se ajuntou, e por espaço de dois meses pouco mais ou menos fez com eles as ditas cerimônias, tomando os ditos fumos e falando a sua linguagem e crendo que era a verdade o que eles diziam e que vinha o seu Deus, e tendo fé na dita idolatria e abusão, assim como os ditos mantedores dela, parecendo-lhe ser certo e bom o por eles dito daquela sua santidade. (...)” 18
envolvimento com o novo sincretismo indígena19. Certamente, não poderia deixar de citar neste artigo uma confissão onde claramente podemos observar
o
seu
depoente,
denunciando
o
comportamento de Fernão Cabral ao Visitador Heitor Furtado. Esta Confissão trata-se de um dos trabalhadores do engenho de Fernão Cabral, chamado Cristovão de Bulhões, estatuto social cristão-velho/ mestiço, no dia 20 de janeiro de 1592 segue parte da sua confissão:
“(...) E também aí viu a Fernão Cabral de Taíde reverenciar e abaixar a cabeça ao dito
Ele Relata também que pediu a autorização para Fernão Cabral para ir ao sertão juntar-se com Fernandes Tomacaúna encontrar com a “dita abusão”, e junto com a licença e as cartas, o senhor do engenho de Jaguaripe deu-lhe um pouco de farinha, e adentrando pelo sertão, ficou perdido e
ídolo e assim também viu a Francisco d´Abreu, casado e morador em Tassuapina, e a Simão da Silva, sobrinho de Manuel Teles, que foi governador deste estado, que se foi para o Reino, fazer as ditas reverências ao dito ídolo, e assim fizeram na fazenda de Fernão Cabral as ditas reverências e idolatrias os mesmos da companhia acima nomeados(...)”20
retornou para casa. No decorrer da confissão, Heitor Furtado o questiona: Como poderia Gonçalo Fernandes se dizer cristão e acreditar que Cristo viria na “dita abusão” transformar os “brasis em senhores” e “os brancos escravos”! Isso não haveria o menor sentindo. E de acordo com uma fabulosa pesquisa feita pelo historiador Ronaldo Vainfas, de 212 confissões sobre os principais crimes que a comitiva VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 189-193. 18 VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 184. 17
Em síntese os processos inquisitoriais que surgiram através do sincretismo indígena, nos deixam evidências das tensões causadas na
VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 187. 20 VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 221. 19
G N A R U S | 105 sociedade através da figura do visitador, causando
Ao que se refere o sincretismo indígena não
assim um mal-estar entre senhores de engenho,
poderia deixar de mencioná-lo, até porque o
brancos e mamelucos ate mesmo dentro dos
principal alvo deste artigo se concentrou em
próprios grupos de riquezas e poder na colônia do
explicar as influências culturais que se fundiram no
primeiro século.
Brasil colonial, os principais membros do “clero da
A mesa do despacho se reuniu no dia 20 de agosto de 1592, presidida por Heitor Furtado de Mendonça e contando com a presença de Fernão Cardim, Antonio Barreiros, Marçal Beliarte, todos julgaram a atitude de Fernão Cabral grave, porque ele aceitou e colaborou com a “dita santidade” em seu engenho. Conceberam também, que a intenção dele, não era de errar contra a fé católica, pois acreditavam que por se tratar da sua pureza de sangue e ser um nobre da terra, isso suavizava seus
santidade” foram presos e enviados para Portugal, quanto à igreja indígena destruída, os escravos fugitivos devolvidos aos seus senhores, e o mesmo aconteceu com os forros do aldeamento jesuítico. Ao que é relativo à santidade máxima que foram buscar no sertão o chamado “papa” Antônio, Ronaldo Vainfas fez um debate historiográfico de vários autores e sendo impossível se alcançar o conceito de verdade, as principais hipóteses debruçam sobre:
“(...) Teles Barreto, o papa permaneceu vivo, mas a santidade fora destruída por mérito de seu Fernão Cabral. Na dos Jesuítas, o papa fora justiçado pelos próprios índios, como falso mártir de uma seita diabólica: vitória da verdadeira fé, simbolizada no castigo exemplar do heresiarca indígena.” 23
erros. E optaram por uma sentença benevolente. Para satisfação dos seus inimigos Fernão Cabral ouviu sua penitência na Sé de Salvador em público, foi sentenciado a viver por dois anos fora da Bahia, recebeu penitências espirituais e pagar o valor de vinte escravos africanos para o Santo Ofício.21 E para completar nosso estudo de caso, cabe descortinar audácia que teve o grande senhor de Jaguaripe, na época do degredo quando já estava em Portugal, Fernão Cabral queria recorrer da
Conclusão
sentença no Conselho Geral do Santo Oficio ao qual
Em síntese, o que deveria ter servido como um
chegou uma carta para o visitador Heitor Furtado
exemplo culminou em várias rebeliões no
de Mendonça em 1594, quando estava inquirindo
Recôncavo Bahiano. Foi neste cenário do período
em Olinda, uma solicitação de uma cópia do
da primeira Visitação do Santo Ofício, que os
processo inquisitorial, pedindo que transladasse e
documentos nos deixam indícios por parte dos
de acordo com a hipótese do autor Ronaldo
confidentes, mediante suas confissões ou delações
Vainfas, que o único motivo plausível para tal
ao visitador, uma conduta mediada através do
atitude seria que, Fernão Cabral gostaria de reaver
pânico ou por mostrar cooperação, podendo assim,
a multa que Havia pagado ao tribunal.22
camuflar suas transgressões. Em síntese, este objeto de pesquisa pretende também salientar que a
21 22
VAINFAS, Ronaldo. Op.cit.p 63. Idem, PP. 214-217.
VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, PP .220-221. 23
G N A R U S | 106 comitiva de Heitor Furtado de Mendonça, assegurou uma desorganização, dos laços de amizade e de reciprocidade entre vizinhos, contribuindo para desunir parentelas ou um conjunto de pessoas que faziam parte do mesmo ambiente social.24
Este artigo priorizou em
pesquisar o primeiro século da América Portuguesa, bem como as repressões sociais e culturais, ao qual se moldou a religiosidade multifacetada da America Lusa, elucidando assim a intolerância como principal tema de um regime político totalitário. Luana Batista dos Santos é Graduada e licenciada em História pela Faculdades Integradas Simonsen.
Bibliografia: Fontes Primárias: Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Carta de Pero Vaz de Caminha, 01/05/1500. Código PT/TT/GAV/8/2/8. PROC. 17065, sentença. Fernão Cabral de Ataíde. PROC. 17762, sentença. Gonçalo Fernandes. PROC. 7950, sentença Cristovão de Bulhões. Artigo: NOVINSKY, Anita. A nova geração pesquisa a História desse tribunal corrupto. IN: Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2011. Fontes secundárias: BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Rio Grande do Sul, Unisinus, 2010. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, Bertrand, 1989. MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1896. VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
24
VAINFAS, Ronaldo. Op.cit.p25-29.
VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da historia: micro-história. Rio de janeiro: Campus, 2002. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2000.
G N A R U S | 107
Artigo
GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO NA AMÉRICA LATINA: LIMITES ENTRE TEORIA E PRÁTICA Por: Marco Antonio Correia de Carvalho
RESUMO O presente artigo visa analisar as características centrais do fenômeno conhecido como globalização e da ideologia do neoliberalismo até o seu enraizamento e desenvolvimento na América Latina no século XX. Destacaremos também o protagonismo dos Estados Unidos nesse processo, como um dos baluartes dos preceitos neoliberais na tentativa de restabelecer a sua hegemonia na região, a partir do chamado “Consenso de Washington”. Palavras-chave: Globalização, Neoliberalismo, América Latina, Consenso de Washington. ABSTRACT This article aims to analyze the central features of the phenomenon known as globalization and the ideology of neoliberalism until its implementation and development in Latin America in the 20th century. Highlight also the role of the United States in this process, as one of the bastions of liberal principles in an attempt to re-establish its hegemony in the region, from the so-called "Washington Consensus". Keywords: Globalization, Neoliberalism, Latin America, Washington Consensus.
G N A R U S | 108
A países
globalização é um processo que objetiva transformar o mundo em um grande mercado e uniformizar as economias dos
segundo
o
modelo
imposto
pelo
neoliberalismo. Para Alessandro André Leme1, a busca de inteligibilidade ao neoliberalismo e a globalização vão além da capacidade de defini-los, pois perpassam a capacidade de identificá-los na maneira em que esses processos são incorporados e na forma que influenciam as orientações políticas e econômicas dos países. Dessa forma, cabe aqui, primeiramente, fazermos um breve levantamento sobre a história desses dois processos para que seja possível perceber em que medida e extensão os mesmos se aproximaram e se desenvolveram ao longo do século XX no mundo e, especialmente, na América Latina. Após quase 50 anos de hegemonia, o “Welfare State”, em 1970, passou a mostrar sinais de exaustão em função dos novos problemas que começaram a surgir no período, como: a recessão econômica, a desaceleração do crescimento, crise fiscal nos Estados, etc. Nesse momento, a conjuntura favoreceu o surgimento de novos teóricos, que adotando a perspectiva liberal, percebiam no liberalismo econômico a válvula de escape para superar a crise. “É este novo (velho) ideário liberalizante que surge como a (única)
do consumo – pois percebe o Estado como a fonte de toda coerção e associa ao mercado, à liberdade. Essa ideia do mercado associado à liberdade passa a ser uma das bases do pensamento neoliberal, porque este seria “(...) o espaço natural pelas quais as liberdades individuais ocorreriam e tenderiam ao equilíbrio. Pra que essas duas características sejam realmente efetivadas o Estado não deveria influenciar nem intervir no jogo de mercado”. 3 A partir dos anos de 1980, essas ideias passaram a influenciar os governos de Ronald Reagan (EUA) e de Margaret Thatcher (Inglaterra), combatendo a ação dos sindicados e flexibilizando os mercados. Os efeitos “positivos” verificados no período transformaram os Estados Unidos e a Inglaterra em exemplos a serem seguidos em diversos países e regiões diferentes, como na própria América Latina. Assim,
solução a crise econômica. Daí a ascensão teórica
O Neoliberalismo, nessa nova forma com que aparece, apresenta a fábula do ‘único caminho possível’ para a história econômica acontecer (...) e, no entanto, não se deve perder de vista que o neoliberalismo e o processo de globalização (como o veiculado pelos discursos hegemônicos) seriam partes constituintes dessa mesma ‘fábula’4.
de um monetarismo como sendo a nova face dos neoclássicos”.2 Esse monetarismo, ainda segundo Alessandro André Leme, se contrapõe a perspectiva do “Estado de Bem-Estar Social” - que elogiava a intervenção governamental na economia, as políticas sociais voltadas para o pleno emprego e a democratização
LEME, Alessandro André. Neoliberalismo, globalização e reformas do estado: reflexões acerca da temática . 1
Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n. 32, jun. 2010, p.114.
2
LEME, 2010, p. 121.
Ibidem, p. 122. 4Ibidem, p. 124. 3
G N A R U S | 109 Essa íntima relação entre neoliberalismo e globalização foi percebida também por Milton
verdade, não desaparece, mas se fortalece para atender os interesses internacionais e financeiros.
Santos,5 que a entende como o ápice do processo
Assim, para ultrapassar a fantasia é preciso
de internacionalização do mundo capitalista. Essa
enxergar o mundo como ele é – o lado perverso da
tendência a uma economia mundo já era possível
globalização – caracterizado pelo desemprego
de ser observada desde século XIX, através da
crescente e aumento da pobreza, pela classe média
expansão do capital financeiro e pela divisão
perdendo em qualidade de vida, pelo aumento da
internacional do trabalho. Mas, foi apenas no
mortalidade infantil e pela inacessibilidade de uma
século XX que esse processo se acentuou,
educação de qualidade para todos. Dessa forma,
ganhando
avanços
“alastram-se e aprofundam-se males espirituais e
tecnológicos em diversas áreas - que possibilitaram
morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção
a circulação mais intensa de capitais e mercadorias
(...) todas essas mazelas são direta ou indiretamente
pelo planeta; e com a criação da Internet -
imputáveis ao presente processo de globalização”7.
interligando pessoas e países a “rede” mundial de
Mas, é possível pensar em um mundo diferente,
novos
contornos
pelos
computadores.
globalizado de uma forma mais humana –“o mundo
A partir desse ponto, as mudanças ocasionadas pelo
advento
da
globalização
como pode ser”.
Alguns fatores poderiam
alteraram
colaborar para tal objetivo: o contato cultural entre
significativamente as relações econômicas, sociais
povos distintos, produzindo um novo discurso
e políticas criando uma conjuntura favorável à
crítico, possibilitaria o surgimento de uma outra
hegemonia e a padronização cultural6. Daí decorre
globalização, voltada para a solução dos problemas
a crítica de Milton Santos em afirmar que esse novo
apresentados acima em detrimento do atual estado
mundo globalizado tem por característica principal
de exclusividade e supremacia dos interesses
uma existência trina: a globalização enquanto
econômicos.
“fábula” (aquilo que nos fazem acreditar –
Entretanto, essa supremacia do capital ainda se
encucando falsas verdades); a globalização como
faz
presente
e,
“perversidade” (aquilo que ela é – a disparidade do
submetendo
processo que ao invés de unir, exclui) e, por “uma
artificializando as relações sociais e excluindo as
outra globalização” (aquilo que ela pode se tornar).
populações mais vulneráveis. David Harvey8, por
A “fantasia”, nesse fenômeno, para Milton Santos,
seu turno, salienta que a supremacia dos interesses
reside no momento em que se toma como verdade
econômicos também é uma barreira difícil de ser
um conjunto de ideias que não se sustentam por si
superada, pois a mesma está intimamente ligada ao
só, caso dos termos “aldeia global” – onde, em
projeto neoliberal que se transformou na diretriz
teoria, o mercado teria o poder de homogeneizar o
central de quase todos os países (por escolha,
planeta, mas, na prática, aprofunda as diferenças
imposição ou adaptação de alguns dos seus
locais; e a tese da “morte do Estado” – que, na
preceitos) a partir dos anos de 1970, retirando e/ou
os
por
consequência, interesses
acaba
nacionais,
diminuindo também funções do Estado (no que Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de 5SANTOS,
Janeiro: Record, 2000, p.12. 6 LEME, op.cit., p. 126.
SANTOS, 2000, p. 10. David. O Neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008. 7
8HARVEY,
G N A R U S | 110 tange ao bem-estar social, por exemplo). Segundo
indivíduos melhor informados podem adquirir
o autor, essa doutrina, originalmente, parte do
vantagens que lhes garantam mais poder. E, por fim,
princípio de que o bem-estar do ser humano só
quando diante de movimentos coletivos que
seria alcançado de maneira efetiva se os indivíduos
possam intervir no mercado e na ordem das coisas
tivessem resguardados seus direitos a liberdade e a
ou colocá-lo em risco, o Estado neoliberal intervém
propriedade privada, e se tivessem a possibilidade
dissuadindo movimentos contrários pela via
de
pacífica
desenvolverem
as
suas
capacidades
(utilizando-se
da
propaganda,
por
empreendedoras no livre mercado. Já ao Estado
exemplo) ou pela autorização do uso da força (pelo
caberia o papel de intervir o mínimo possível na
poder de polícia). Assim,
economia e preservar um ambiente propício para o funcionamento pleno dos mercados, favorecendo a mobilidade do capital entre países e regiões diferentes. O tripé privatização – passagem de antigos setores do Estado para as mãos da iniciativa privada; desregulação – remoção de entraves burocráticos; e competição – entre indivíduos, regiões, empresas, cidades - auxiliariam em tais objetivos. Dessa forma, a globalização se liga a orientação neoliberal porque transforma a autonomia nacional
(...) o neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo. O processo de neoliberalização, no entanto, envolveu muita ‘destruição criativa’, não somente dos antigos poderes e estruturas institucionais (chegando mesmo a abalar as formas tradicionais de soberania do Estado), mas também das divisões do trabalho, das relações sociais, da promoção do bem-estar social, das combinações de tecnologia, dos modos de vida e pensamento (...).
em dependência, principalmente financeira9. Contudo, essa interpretação neoliberal possui
Na América Latina, esse padrão neoliberal de
entraves, abrindo brechas para críticas a sua
desenvolvimento,
segundo
Carlos
Eduardo
aplicação. Destacam-se aqui as principais: em
Martins11, teve início nos anos setenta a partir das
primeiro lugar, a competição tão elogiada por essa
experiências no Chile, Argentina e Uruguai,
perspectiva, várias vezes resultou em monopólios,
avançando em três grandes fases: A primeira, nos
pois “(...) as empresas
anos de 1980 – quando os
mais
vão
Estado Unidos, em crise,
expulsando do mercado
escoaram os excedentes
empresas mais fracas” 10.
da economia mundial e
Além disso, acredita-se
não ofereceu nenhum
que todos os indivíduos e
tipo de organização da
empresas atuantes no
divisão do trabalho ou um
mercado têm o mesmo
projeto
de
acesso a informações,
desenvolvimento
da
mas na realidade os
região. A segunda, em
9
fortes
LEME, op.cit., p. 128. HARVEY, 2008, p. 77.
10
Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo, Boitempo 11 MARTINS, Carlos Eduardo.
Editorial, 2012, p. 313.
G N A R U S | 111 1990 – sob a influência do “Consenso de Washington”, desenvolveram
em
que
um
os
(...) a dívida externa, mediante a liderança do SELA, do Grupo de Cartagena e de um ativo papel de Cuba nesse processo. Brasil e Argentina, através do governo Sarney e Alfonsín, estabelecem as bases de um acordo de integração econômica que priorizou setores estratégicos, buscando a integração do segmento de bens de capitais, a cooperação científica e nuclear e mercados para a produção de trigo. Os Estados Unidos assistem a esse processo durante grande parte da década de 1980, sem muita condição de reverter. Eles retornarão a iniciativa a partir de mudanças em suas políticas públicas.14.
norte-americanos
projeto
de
inserção
internacional da América Latina. E, a terceira, na primeira década dos anos 2000 – quando o projeto neoliberal se modificou em resposta a ascensão econômica chinesa e ao avanço do antineoliberalismo
“(...)
que
adaptam
a
macroeconomia neoliberal à políticas externas independentes e sociais compensatórias”12. O neoliberalismo, enquanto instrumento ideológico foi utilizado para tentar contornar a crise de competitividade pela qual os Estados Unidos passavam - haja vista que se tornaram captadores da poupança internacional pelos déficits em sua conta corrente, a partir dos anos de 1970. Assim, tal como Carlos Eduardo Martins, notamos que essa crise de hegemonia norte-americana começou pela economia, fazendo-os se voltar para os países latino-americanos para conseguir:
(...) reduzir seus déficits comerciais com o mundo por meio da conquista de saldos comerciais com a América Latina; criar as condições para que investimentos venham a auferir rendas e incorporar ativos através da especulação e da barganha; e baixar ao mínimo as restrições à circulação de mercadores e capitais, viabilizando uma reorganização da divisão do trabalho regional que reduza os custos de produção e aumente a competitividade de suas empresas13.
O “Consenso de Washington” representou a retomada dessa iniciativa estadunidense em face da questão do desenvolvimento latino-americano, objetivando a elevação das taxas de crescimento econômico; ingressos de capitais estrangeiros e aumento da competição – com o consequente aumento da produtividade. Para Alessandro André Leme15, isso correspondeu a um dos marcos principais da influência do neoliberalismo na América Latina porque essas reformas exigiram novos arranjos político-institucionais visando à aproximação das esferas nacionais com a esfera global
“(...) sob a forma de organização e de integração dos mercados (...) não mais sob a regulação dos Estados Nacionais, mas, sim, numa lógica espacial multilateral ensejando um ‘Estado mínimo’”16.
Esse estado deveria ser mínimo quanto à Entretanto, na década seguinte, os Estados Unidos não conseguiram oferecer um projeto viável que pudesse expandir as economias latinoamericanas. Dessa maneira, os países da região se
intervenção e forte, no que tange proteção das liberdades do mercado e do seu alcance. Porém, o que se viu na prática não correspondeu às expectativas.
uniram para pensar em alternativas, como a
(...) os resultados alcançados foram profundamente medíocres. O crescimento
renegociação das dívidas externas.
MARTINS, 2012, p. 314. MARTINS, op. cit., p. 316. 14Ibidem, pp. 317 -318.
LEME, op. cit., p.129. Ibidem, p.130.
12
15
13
16
G N A R U S | 112
do PIB per capita não se sustenta e leva à crise e estagnação entre 1998 e 2003. As ilusões de consumo e de aumento do poder de compra dos trabalhadores estabelecidas pela supervalorização das moedas são revertidas e levam à deterioração dos níveis salariais que se combinam com o aumento do desemprego e da pobreza. Ao mesmo tempo se elevam o endividamento externo, a desnacionalização e a destruição dos segmentos de maior valor agregado da região, impulsionando a deterioração dos termos de troca17.
troca, da demanda interna, os nacionalismos e a mobilização das massas, que possibilitaram a crítica das exigências do capital, em um período de enfraquecimento das oligarquias19. Dessa forma,
Produzem-se inflexões significativas no modelo político da democracia burguesa, como nos casos de Venezuela, Bolívia e Equador, que instituem mecanismos de democracia direta e possibilitam em uma base institucional à mobilização popular para sustentar as políticas públicas antioligárquicas. Tais processos se desenvolvem sob fortes conflitos sociais e políticos, não tendo nesse, em função da drástica desmoralização de sua liderança, as oligarquias e o grande capital capacidade de extirpar tais experiências por golpes civismilitares. Para isso teriam de esperar o fracasso de legitimidade dessas experiências, para o que conspiram através dos terrorismos ideológico, econômico e político20.
A partir daí, já no final dos anos de 1990, mais uma vez, a hegemonia norte-americana passava por uma severa crise de legitimidade frente às burguesias nacionais que a ela se vinculam. Essa crise atingiu especialmente as relações de dependência entre o capital estrangeiro e o capital nacional. “Esse capital já é, desde o seu nascedouro, dependente e dirige o Estado como instrumento de negociação e conciliação de interesses”.18 Mas, com a afirmação do neoliberalismo na América, segundo Carlos Eduardo Martins, se torna obsoleta as bases desse
CONSIDERAÇÕES FINAIS
compromisso. A partir daí, são destruídas as
Objetivamos com esse estudo analisar os
estruturas produtivas das burguesias nacionais, que
conceitos de globalização e neoliberalismo à luz
são desnacionalizadas ao passo que se restringe a
das suas implicações nas relações econômicas,
iniciativa do Estado nacional, submetendo-o ao
sociais e políticas na América Latina ao longo do
“mercado global”. A consequência principal de tal
século XX, destacando a mudança na orientação
movimento é a perda da autonomia burguesa
político-econômica na região promovida pelo
frente ao desenvolvimento das forças produtivas.
renascimento neoliberal, levando a derrocada do
Com isso, a conjuntura latino-americana passou
preceito keynesiano do “Estado de Bem-Estar
por um momento em que se aplicam políticas
Social”, a partir do elogio do mercado enquanto
voltadas à “terceira via” (Brasil, Uruguai e Chile) ou
“lócus” perfeito das liberdades e da diminuição da
a nacionalismos moderados (Argentina) com o
intervenção do Estado na economia.
redirecionamento do comércio latino-americano
Também destacamos o papel da globalização
em direção à China, na metade dos anos 2000,
nesse processo, pois a mesma acabou por
contribuindo para a sua expansão econômica
reverberar esses preceitos neoliberais pelo mundo,
visando à reconstituição do poder burguês. A essa
após o êxito dos governos de Ronald Reagan e
realidade, se somou a melhora das relações de MARTINS, op. cit., p. 318. Ibidem., p. 319.
Ibidem., pp. 319 - 320. MARTINS, op.cit., p. 322.
17
19
18
20
G N A R U S | 113 Margaret Thatcher, elevando-os a categoria de
objetivo ser alcançado será necessário superar
“única
latino-
alguns dos traços mais marcantes do processo de
americanos, se quisessem se integrar ao mercado
globalização e do neoliberalismo: a dependência, a
global. Esse receituário tomou forma nas medidas
desigualdade e a assimetria de desenvolvimento.
do chamado “Consenso de Washington”, imposto
Só então, a integração regional soberana terá lugar,
como
algo que se choca diretamente com a ordem atual
saída
possível”
“(...)
aos
orientação
Estados
político-econômica
dominante na década de 90 para os países em desenvolvimento”.21 Mas,
tal
como
Carlos
Eduardo
Martins,
percebemos que mesmo depois dessa fase e após o período de crescimento verificado na metade dos anos 2000, promovido pela guinada à esquerda, ao nacionalismo e a “terceira via”, se faz necessário à construção de um novo padrão de desenvolvimento
das coisas. Marco Antonio Correia de Carvalho é graduado em História – Licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Instituto Multidisciplinar (UFRRJ-IM). Atualmente, é Bolsista de Treinamento e Capacitação Técnica IV da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) no projeto O Testemunho como Janela, coordenado pelo professor Doutor Marcos Luiz Bretas da Fonseca (Instituto de História – UFRJ).
para a América Latina, com foco na distribuição de renda, articulando crescimento com equilíbrio interno e ecológico a partir de uma integração latino-americana baseada no planejamento e na razão. Dito isto,
HARVEY, David. O Neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008. LEME, Alessandro André. Neoliberalismo,
globalização e reformas do estado: reflexões acerca da temática. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n.
O século XXI exige a utopia (...) a liberação da América Latina do engodo de dependência e exclusão em que se encontra. Essa liberação, como tal ainda não existe. Mas seus elementos já se apresentam nas tensões e no movimento das forças sociais. Temos a convicção de que o século XXI, antes do que em geral se imagina, colocará o desafio da liberação em nossas portas22.
32, jun. 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_a rttext&pid=S010465782010000100008&lng=pt&nrm=iso Acesso em: 18 jun. 2015. MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização,
Assim, a integração latino-americana se coloca
São Paulo, Boitempo Editorial, 2012. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
como um desafio no século XXI, pois para tal
21
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LEME, op.cit., p. 134.
dependência e neoliberalismo na América Latina.
22
MARTINS, op. cit., p.346.
G N A R U S | 114
Artigo
MÚSICA E CONSUMO: A INDUSTRIALIZAÇÃO DA CULTURA. Por: Marília Luana Pinheiro de Paiva Resumo: Este artigo busca discutir as relações sobre música e o mercado industrial. Uma crítica as músicas que são fabricadas pela mesma linha de produção, o famoso “clichê” da contemporaneidade, músicas, letras e melodias repedidas são as músicas da moda, as mais consumidas. Muitas vezes sem nenhuma letra com sentido ou até mesmo arranjo elaborado, são apenas produtos para serem vendidos; mais do mesmo. Nesse sentido procura relacionar a crítica de Theodor W. Adorno sobre a indústria cultural e o padrão que a música assume na sua concepção histórica. Pois a música, atual é vista como mercadoria, seguindo padrões estéticos e fazem sujeitos refém da arte de massa, transformaram em escravos passiveis da música de sucesso. Compreende-se que a música filha do seu tempo de uma sociedade globalizada e capitalista e da industrialização da cultura. Palavras chaves: Indústria cultural, música, história.
A
dorno (1996, p. 65) faz uma critica a indústria
cultural
no
capitulo
O
Fetichismo na Música e a Regressão da
Audição, escrita em 1938, na obra Os pensadores referir-se a decadência do gosto musical, a música desde tempos gregos foi sempre considerada como um “bem supremo”, mas em dias atuais, o que está em voga, e todos seguem para uma tendem a obedecer a moda, assim como em outras instâncias. A ordem é obedecer cegamente a uma moda que se expande comercialmente. Adorno exprime essa obediência da massa nessa passagem:
De resto, já não há campo para escolha; nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados; a existência do próprio indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no polo oposto, o direito à liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente. Se perguntarmos a alguém se "gosta" de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. (ADORNO, 1996, p.66)
G N A R U S | 115 A indústria fonográfica se detinha das músicas
docilidade. Adorno a comparava a música de massa
com intuito comercial, caracterizando um produto
com o cinema mudo, como algo de pano de fundo.
de massa, com exigências padronizadas para
Contesta que alguns ouvintes mesmo ouvindo uma
atender o público de forma geral.
música muitas vezes não dão atenção ao que a
Ao julgar a música como boa ou ruim, o que se pensava era se estava ou não na moda, se era ou não sucesso
e
conforme
Adorno
se perdia a
música traz, e acaba-se por não compreender a própria música que está se ouvindo. (ADORNO, 1996, p.67)
sensibilidade e o valor, a música estava sobre
A nova forma sentimental com destinado ao
moldes de padronização do mercado. Uma vez que
público de massa, o autor trata como uma
o sujeito não conseguia diferenciar a sua opinião da
“degeneração”. E com a variedade de músicas e
opinião pública, da mesma forma não se podia
circulação, acaba-se que o ouvinte não pensa na
decidir com liberdade, pois os padrões musicais
música como um todo, não se posiciona contra, e se
seguiam uma mesma linha de produção, pois tudo
entrega ao prazer momentâneo convertendo-se a
se tornara tão próximo e
um comprador passivo.
igual.
Atingiu todas as camadas
Adorno
lamenta
desvalorização
da sociedade e o rádio
a
contribuiu
na
proporcionar
contemporaneidade da como
entretenimento
música
disseminou
Napolitano (2002, p.
sociedade
eruditos, iam contra a
recusava valores que já havia concebidos nesse campo. Mas ela trazia um novo elemento o entretenimento e prazer. Que na verdadeira analise dele não era totalmente concebida pois a sua crítica se firmava diante da afirmação que tal música acabava por contribuir para uma destruição da linguagem como forma de expressão e desqualificação da comunicação. A música de entretenimento se firmava no gosto daqueles que não tinham sequer exigências e aceitava com
valores
culturais, nas quais a
10) apontava que críticos
Adorno reforça esse aspecto que essa nova música
e
assim como promoveu e
apreciada como outrora.
que desconsiderava as heranças ocidentais, e assim
seu
distração aos ouvintes,
séria qual já não é mais
nova música popular que se consolidava por conta
em
totalitarismo
música clássica a qual ele chama
ao
colocou
a
música comercial como superior a música séria (que seria a música erudita) caminhando para uma liquidação do indivíduo e formando uma nova época musical em que estamos. A música ligeira, como Adorno coloca, a música comercial se consolidou a partir da viabilização de seu consumo, enquanto que a música erudita, consumida grande parte pela camada elitista da sociedade era consumida e comprada conforme o preço do seu conteúdo. A música comercial não possui padrões técnicos, podendo qualquer um exercer a função de ser cantor sem precisar
G N A R U S | 116 dominar os recursos técnicos. Desta forma Adorno
por liquidar a individualidade do sujeito. Se este
(1996, p. 77) argumenta sobre a música de mercado
sujeito aceita pacientemente o produto que lhe é
e seus valores:
dado, não existe gosto algum apenas uma prisão na
O fato de que "valores" sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria.
qual ele nem se dá conta, das suas grades. Não há uma resistência por parte dos consumidores de massa, ou seja a consciência dos ouvintes de massa está na mesma frequência com a música
fetichizada, aquela que o autor descreve como padronizada.
Adorno
aponta
que
a
A música, atual é vista como mercadoria,
contemporaneidade avança para um regresso, não
seguindo padrões estéticos. Marx descreve o
o regresso do ouvinte individual, e nem o regresso
caráter fetichista da mercadoria, no qual a relação
do nível coletivo, o que regrediu e permaneceu em
da troca e do consumo, o produtor como o
um estado infantil foi à audição moderna. Na qual
consumidor se alienam. A mercadoria devolve ao
os ouvintes perdem a liberdade de escolha e se
homem como um espelho, os aspectos sociais do
limitam a um conhecimento consciente da música.
trabalho, aspectos do produto do trabalho, assim
A música ligeira, como a música popular e o jazz,
como propriedades naturais e sociais. A mercadoria
entra nessa concepção de música de massa, na qual
também reflete a relação social dos produtores e o
a audição regressiva está intimamente relacionada
trabalho, ela se compõe na relação de troca e valor
com a propaganda e o anuncio publicitário detém
de uso, uma aparência ilusória que os bens de
o poder de coação. Influenciando e determinando
cultura deve conservar.
gostos musicais. Assim se acerca uma reflexão em
A música se modifica como arte e assume seu caráter de mercadoria na medida que é concebida como bem de consumo, de troca em troca de seu uso, como mercadoria, e mascara o valor de troca como sendo um objeto de prazer, formando um
torno do jazz comercial, caracterizada como música de massa que só pode ser ouvida sem muita atenção, como pano de fundo de uma conversa ou de um baile, assim ela estará exercendo a sua função. (ADORNO, 1997, p.93).
caráter abstrato de troca. O valor de troca assume
A música popular era composta pelo resto da
alguns traços dentre eles o poder de coesão. Um
música erudita em um plano harmônico simplista e
exemplo desse consumismo seria tanto uma mulher
repetitivo. Para os críticos folcloristas como Mário
que vai as compras em um shopping Center, e um
de Andrade no Brasil e Bartok na Hungria, a música
homem que compra um carro do ano e modelo que
popular urbana significava o desaparecimento de
gosta, assim como o cliente da arte de massa de
uma lucidez sociológica, étnica e estética. Alguns
nosso tempo, se transformaram em escravos
críticos à música popular urbana apontavam a
passiveis da música de sucesso.
impossibilidade de estuda-la, e pesquisa-la, pois
A indústria cultural investe na produção
devido a influência de músicas internacionais, a
padronizada dos bens de consumo que produz uma
música urbana era designada como sem identidade
escala de produtos iguais destinados ao todos os cidadãos, seguida de leis de mercado, que acaba
própria. (NAPOLITANO, 2002, p.11)
G N A R U S | 117 Viana aponta que a indústria cultural está
com uma mera intenção comercial de lucro
presente no dia-a-dia da população e exerce forte
contribuindo com a alienação da sociedade. Assim
coerção sobre a sociedade. A indústria cultural
a sua coesão e manipulação é tão intrínseca que
produz aquilo que a sociedade quer aquilo que ela
consumidores já não se dão conta, daquilo que
quer ver e ouvir, a indústria cultural é um produto
estão comprando e que estão nos moldes da
da
indústria. (HORKHEIMER; ADORNO, 1997, p. 57)
sociedade
com
caráter
manipulador
e
conservador. (VIANA, 2004, p.2)
Como Horkheimer & Adorno discorrem sobre a
Para Adorno & Horkheimer representantes da
passagem do telefone ao rádio, no qual o primeiro
Escola de Frankfurt, a indústria cultural ela é uma
permitia que os participantes desempenhassem um
fábrica de ilusões e de consumo superficial, a qual
papel do sujeito, enquanto o rádio transforma
aponta que o lucro é o principal interesse da
todos igualmente em ouvintes, para inserir em um
produção
sistema de programas iguais uns dos outros, das
capitalista,
pois
realizam
a
mercantilização da arte e da cultura, produzindo as
diferentes estações.
chamadas “mercadorias culturais”,
era
Se referindo as grandes
um
músicas de sucesso, e as
sistema de dominação
famosas
ideológica, na qual o
padronizadas, a indústria
indivíduo inserido não se
cultural
dava conta e sentia a
com
necessidade de consumir
as
consumidor e induz o
Como Horkheimer & Adorno (1997, p. 60) discute:
Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos (...) paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva.
a
ideias
e
as
características próprias
sujeito a sentimentos pensar, mas apenas escolher (VIANA, 2004, p.2)
e
obra, assim sucumbindo
um
coletivos e previsíveis, no qual ele não precisa
eficácia
da performance sobre a
vê no homem um objeto trabalho
desenvolveu
denominação do efeito e
mais. A indústria cultural de
músicas
de
cada
obra
(HORKHEIMER; ADORNO, 1997, p. 59). A sua totalidade abarcou especificidades e caraterísticas próprias, deixando obras medíocres e semelhantes umas das outras, com uma falta de identidade e de originalidade, estando reduzida a um estilo e a um enquadramento obedecendo a uma hierarquia social e estética estabelecida (HORKHEIMER; ADORNO, 1997, p. 62). Horkheimer & Adorno são os grandes críticos da
Indústria cultural é um negócio, como outro qualquer, utilizam uma ideologia para legitimar o lixo que eles mesmos produzem. São mercadorias
interpretação e crítica indústria cultural. Afirmam que
a
indústria
cultural
produz
uma
estandardização e racionalização da produção cultural.
G N A R U S | 118 Assim Walter Benjamin, também representante
composição é sensibilidade e emoção, é romance e
da Escola de Frankfurt apresenta uma concepção
contestação. A música é uma expressão artística e
sobre a percepção coletiva e a sua intercessão no
cultural de um povo, expressada e ritmada com
processo histórico:
nuances e textura, é obra do seu tempo, é cultura
No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente (BENJAMIN, 1987, p. 169).
transformada em embalo dançante é letra crítica e imponente. Ou apenas é música com a intenção de divertir, ou com a intenção de inquietar o espirito ou a consciência, é libertação da alma, veículo de expressão de sentimentos. Às vezes como pano de fundo, outras vezes como fator principal, a música compões o campo social e
Benjamin ao falar da obra de arte, distingue a arte
emocional. A música é subjetividade e identidade,
convencional e a reprodutível, elabora a partir
sobretudo é expressividade. É a mistura de ritmo,
dessa perspectiva o conceito de “aura”, ou seja
harmonia
apenas na obra de arte original, na singular e
instrumental transmitida ao mundo. Há vários tipos
especifica que se encontra a “aura”. A reprodução,
e estilos de músicas, que vai do samba ao rock, da
a replica levam um grande abalo na tradição, que
ópera a música clássica, com letra ou não, cada qual
segundo Benjamin é uma contrapartida estética dos
expressa suas significações e identidades, a qual
movimentos de massa no século XX. (DUARTE,
está ligada a um tempo e a uma estrutura social.
2003, p. 22).
e
melodia,
é
uma
organização
Há, a música engajada, a música politizada, e
Napolitano (2007, p. 5) aponta que a música é
música para divertir, cada música traz consigo a sua
uma espécie de repertório de memória coletiva.
definição marcada pelo tempo e pela sua cultura,
Filha do seu tempo de uma sociedade globalizada e
esteja ela no quadro social ou de lazer de alguma
capitalista e da industrialização da cultura. A
maneira ela integra a relação social e cultural. Pois
música popular brasileira é um mosaico de culturas,
a música é uma produção de indivíduos que
amplo e complexo que envolve artistas, produtores,
constituem um campo social, no qual estão
audiência e crítica. A música popular brasileira é a
diretamente relacionados.
expressão de tradições populares, o que faz legar uma tradição, entre os anos de 1930 e 1960 o samba, a bossa nova e a mpb foram os gêneros principais que representaram a música popular brasileira. A MPB é formada por vários gêneros e estilos.
Assim como Wisnik (2004, p.15) como Ross (2011, p. 12) concorda que na música há muito subjetividade, e expressões singulares como aponta Vinci de Moraes (1997, p. 211), pois através de suas letras podemos constatar e compreender a identidade de uma geração, que através da música
A música é uma arte, dotada de simbologias,
enxerga um novo caminho para contestação e
timbre, ritmo, melodias. Em sua maioria composta
retratar indignações, assim como insatisfações no
por letras, em grande parte letras que comunicam
plano político e social no país. A música se destacou
que expressam mensagens e significados. Está
ao longo dos anos, mais que uma expressão artística
diretamente ligado com o seu tempo, sua
e cultural, ela se tornou um estilo de viver, ser e
G N A R U S | 119 sentir está em todo lugar como fundo, trilha sonora de nossas vidas modernas. Porém estamos marcados pelo modismo e padrões que nos corrompe e acaba nos escravizando desse processo do capitalismo e da industrialização da cultura que acaba por apenas reproduzir o mais do mesmo e nos fazer refém da arte de massa.
Marília Luana Pinheiro de Paiva é graduada em Licenciatura plena em História pela UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa). Especialista em Metodologia no ensino de Sociologia e Filosofia (FACEL). Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas (UEPG) contato e-mail: marilia-lua1@hotmail.com.
Referências ADORNO, Wiesengrund, Theothor. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin: obras escolhidas v1, 3ed. São Paulo: Editora 34, 1987. DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2003. HORKHEIMER, Max. & ADORNO, Wiesengrund, Theothor. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia-história, cultura e música popular em São Paulo nos anos 30. Tese apresentada com exigência parcial para a obtenção de Doutor em História. Universidade Estadual de São Paulo, 1997. NAPOLITANO, Marcos. História & Música. História cultural da música popular. Autêntica: Belo Horizonte, 2002. ____________. A síncope das ideias. A questão da tradição na música brasileira popular brasileira. Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2007. ROSS, Alex. Escuta só: do clássico ao pop. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. VIANA, Nildo. Reflexões sobre a Indústria Cultural: Humanidade em foco. Goiânia, v.2, n.3, 2004 WINISK, José Miguel; SQUEFF, Enio. O Nacional e o popular. Na cultura brasileira. São Paulo; Editora Brasiliense, 2004.
G N A R U S | 120
Artigo
DA DOUTRINA À PAREDE: OS SETE PECADOS CAPITAIS REPRESENTADOS EM PINTURAS PARIETAIS INGLESAS. Por: Amanda Basílio Santos Resumo Neste trabalho, o que se pretende é investigar, ainda que introdutoriamente, sobre os padrões representativos em pinturas parietais inglesas que versam sobre a temática dos Sete Pecados Capitais. Para tanto, serão usadas como base as pinturas murais moralizantes que abordam a temática do pecado, localizadas na Inglaterra. Devemos ter em mente que os Sete Pecados foram primeiramente concebidos em modo doutrinário filosófico, para depois passarem a ter representações iconográficas. Foram selecionadas duas árvores do pecado para análise.
Introdução
E
ste artigo trata-se de um recorte da
período, em particular as imagens do pecado, que
pesquisa
serviam como guia moral para os fiéis.
que
se
encontra
em
desenvolvimento na Especialização em
Embora tenhamos uma imensa gama de produção
Artes, pela Universidade Federal de Pelotas
iconográfica durante o medievo, nos primeiros
(UFPel), que resultará em um trabalho monográfico
passos do cristianismo a imagem ficou condenada
que conta com a análise iconográfica de dezesseis
diante da filosofia, pois a produção de imagens era
pinturas parietais inglesas, que versam sobre as
vista com suspeita, por perigo de idolatria de ídolos
virtudes e os vícios medievais.
imagéticos, que deste modo colocaria a prática
Como bem sabemos, para muito além da
cristã muito próxima de uma adoração pagã, sendo
documentação escrita, a iconografia serviu como
assim, a iconografia era vista como inconveniente e
veículo de informação e instrumento pedagógico no período medieval, levando em consideração uma população massivamente analfabeta e desconhecedora da língua latina. Por este motivo, é relevante o estudo das imagens murais deste
G N A R U S | 121 desviante da forma maior de adoração à Deus, que
temáticas e possuem distintos propósitos dentro do
seria através da contemplação filosófica.1
espaço religioso. Na Inglaterra há poucas pinturas
Como divisor de águas nesta questão há a carta
preservadas de um período anterior à conquista
que o Papa Gregório Magno escreveu ao Bispo
normanda, porém temos um número considerável
Sereno de Marselha2, que passou a influenciar
de pinturas preservadas do século XII até a Reforma
profundamente a ideia da função da arte medieval
Protestante no século XVI, sendo que muito
que temos até os dias atuais. Nesta carta, ele
material se perdeu exatamente pelo ideal
destaca a função didática3 do uso das imagens,
iconoclasta que acabou fazendo parte das
permitindo à massa de iletrados compreender a
propostas reformistas.
doutrina, ensinando-os através de imagens o que
Sobre as pinturas parietais na Inglaterra, Anne
eles não podem ler. Embora, na própria carta, ele
Marshall observa que é provável que as paredes das
destaque outras funções para a imagem - elas
igrejas devem tenham sido pintadas desde que
servem de lembrança dos dogmas, e possuem um
começou o hábito de as cobrir com estuque,
poder sobre os fiéis, pois cumprem um papel de
incluindo as igrejas anglo-saxãs, embora pouco
sensibilização destes e fazem com que eles se
tenha restado para afirmar-se tal fato. A maior
arrependam de seus pecados - o papel didático
parte das pinturas parietais que restaram são do
acabou se sobrepondo na literatura aos outros,
período normando em diante, tendo algumas do
colocando a iconografia medieval como a bíblia dos
século XI que foram preservadas. É possível verificar
iletrados
pensamento
uma dinâmica transformação estilística até o
propagado na historiografia através da obra do
advento da Reforma Protestante, quando muda
historiador da arte, Émile Mâle4. No entanto, se a
radicalmente a postura para com as pinturas
função fosse puramente ensinar a doutrina aos fiéis
parietais. Em questões técnicas, os materiais
não haveria função para a abundância de imagens
utilizados, são em geral, bastante simples, sendo
circunscritas nos coros e nas absides das igrejas,
dominante pigmentos terrosos, como o amarelo
locais de acesso restrito ao clero, que ao menos na
ocre e o vermelho, o que nos demonstra a sua
sua massiva maioria, era letrado.
grande disponibilidade. Estes tons ganhavam
(SCHMITT,
2006),
A pintura parietal medieval inglesa ainda é muito
diversas variações em misturas com o preto e o
pouco estudada no Brasil, porém, é uma vasta fonte
branco, formando uma paleta bastante rica. Os
da iconografia medieval e, portanto, importante
pigmentos azulados são raros, e eram muito caros,
para a compreensão do período e das funções desta
considerando que o azul oriundo do lápis-lazúli
arte dentro do contexto de sua produção. As
custava mais que folhagem de ouro, e mesmo os
pinturas
diferentes
azuis mais escuros e comuns, eram caros. O verde
Tal visão sobre a produção de imagens religiosas já remontam a críticas desde Platão, o qual salientava que as imagens cívicas são desviantes para uma forma maior e mais profunda de contemplação religiosa que se dá através da compreensão filosófica. (BESANÇON, 2006, p. 32) 2 GREGORIO MAGNO, Epistulae ad Serenus, XI, 13, (Patrologia Latina 77, col. 1128-1130).
3 “O que os escritos proporcionam a quem os lê, a pintura
1
parietais
versam
sobre
fornece aos analfabetos que a contemplam porque assim esses ignorantes vêem o que devem imitar; as pinturas são a leitura daqueles que não sabem ler, de modo que funcionam como um livro, sobretudo entre os pagãos. ” (GREGÓRIO MAGNO, apud PEREIRA, 2006, p.2). 4 MÂLE, Émile. L'art religieux au XIIIe siècle en France. Étude sur l’iconographie du Moyen Âge et ses sources d’inspiration. Paris: Armand Colin, 1910.
G N A R U S | 122 também é raro, mas por vezes é encontrado, feito a
redescobertas no século XIX e no início do século
partir do sal de cobre, e também é possível
XX, e este processo continua em andamento.
encontrar o vermelho escarlate. (MARSHALL, 2000,
(ROSEWELL, 2008).
disponível
em
Antes de analisarmos as pinturas em si, é
<http://www.paintedchurch.org/introduc.htm>,
fundamental que se reflita sobre o papel que a ideia
acessado em 4 de novembro de 2015).
de pecado exercia no contexto em que tais pinturas
Estas questões técnicas e econômicas limitam as
foram feitas. A noção do Pecado era algo que
representações iconográficas que encontramos em
norteava constantemente a mentalidade cristã no
solo inglês, mas é provável que pinturas parietais
período medieval. Segundo Carla Casagrande e
estivessem presentes assim que se começou a ter
Silvana Vecchio:
Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo pecado. A concepção de tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção do saber, a ideia do trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida e a noção de mundo do homem medieval gira em torno da presença do pecado. (CASAGRANDE;
uma base para pintar. Podemos, deste modo, ver que as imagens sempre possuíram um papel central dentro da arquitetura religiosa, e por consequência na vida social, sendo não apenas um patrimônio material, mas um patrimônio que resguarda elementos culturais do passado, sendo ao mesmo tempo um patrimônio imaterial. As igrejas
VECCHIO, 2006, p. 337).
medievais eram coloridas por belas pinturas em suas paredes. Como Geofrey Chaucer ressaltava, elas possuíam um papel nuclear na passagem dos conhecimentos
e
dos
costumes
católicos,
auxiliando aqueles que não podiam ler os textos sagrados a compreenderem a doutrina através das Porém, seu estado atual é de bastante desgaste. deve-se
das árvores que os e apresentam alegoricamente, os acontecimentos e a consequência dos atos pecaminosos estão sempre presentes como lembretes. Nas imagens das igrejas medievais, seja em cenas da morte do homem, da morte de Cristo,
imagens. Isso
As representações dos pecados vão muito além
a
alguns
fatores
específicos:
primeiramente as pinturas parietais inglesas não se tratam (em sua massiva maioria) de afrescos, portanto elas começam a craquelar e desgastar-se muito mais rapidamente do que outras pinturas, pois são feitas sobre um estuque seco, que acaba por fazer com que a tinta depositada não se integre ao suporte. Em segundo lugar, exatamente por conta deste desgaste, muitas pinturas foram cobertas por estuque, pois não se encontravam em um estado esteticamente atraente. A maioria das pinturas parietais inglesas se encontravam sob camadas de estuque e começaram a ser
do Juízo Final, do Céu e do Inferno, a ideia do pecado e as consequências dos atos pecaminosos estão disseminados. Lembretes visuais instigavam os fiéis ao entrarem em uma igreja, lembretes do que os pecados humanos foram responsáveis, pelo sofrimento que Cristo, que enviado por Deus para redimir os pecados humanos, teve de sofrer. Construções visuais como estas que podem ser vistas,
por
exemplo,
nos
chamados
“Os
Instrumentos da Paixão”, vistos ainda hoje nos azulejos medievais da Igreja do Priorado em Great
Malvern do século XV e que também estão retratados em seus vitrais, desta forma tornando constante o sofrimento que se pode impor a Cristo
G N A R U S | 123 ao pecar, fazendo com que ele esteja eternamente
deve-se sempre analisar a constituição visual dos
sofrendo pelos pecados dos homens.
mesmos em um conjunto, nunca isolando um
Os Sete Pecados Capitais não estão organizados
pecado do outro.
na Bíblia Sagrada, apesar de serem parte
Na Inglaterra, há diversas pinturas murais que
fundamental da episteme medieval. Estes foram
tratam diretamente dos Sete Pecados, porém,
compilados pelo Papa Gregório, o Grande, em
neste artigo, iremos nos concentrar em duas
torno de 590 d.C.5, baseado nos oito pensamentos
pinturas, uma que se localiza na Igreja de St.
pecaminosos elencados por Evagrius Ponticus6, um
Ethelbert, localizada em Hessett, em Suffolk, do
monge cristão que viveu em meados de 375 d.C,
século XIV e outra na Igreja de St. Peter localizada
que após passar por um período de privação auto
em Raunds, Northants do século XIII. Foram
imposta no deserto egípcio organizou os piores
selecionadas estas duas por conta de seu estado de
sentimentos e tentações que o abateram.
conservação, assim como por termos dois tipos
A lista de Evagrius não foi muito difundida até sua reorganização no século VI, porém em torno de 400
representativos clássicos que cada uma é capaz de elucidar.
d.C, seu contemporâneo Prudêncio, um advogado, escreveu uma obra intitulada Psychomachia7
Pinturas Murais Moralizantes
(Batalha da Alma), que foi de fundamental
Durante o medievo as igrejas eram coloridas, e
importância para o ocidente, com uma lista
suas paredes repletas de pinturas, que hoje
semelhante de pensamentos e ações terríveis e
encontram-se sob o estuque branco moderno. A
boas, uma alegoria da ambiguidade humana entre
importância que estas pinturas tinham podem ser
o vício e a virtude, que ficou muito popularizada,
compreendidas através da afirmação de Migne:
It is good to represent the fruits of humility and pride as a kind of visual image so that anyone studying to improve himself can clearly see what things will result from them. Therefore we show the novices and untutored men two little trees, differing in fruits and in size, each displaying the characteristics of the virtues and the vices, so that people may understand the products of each and choose which of the trees they would establish in themselves.8 (MIGNE,
pois cada vício e virtude é um ser que fala e sente, muito próxima da realidade e das pessoas para quem se destinava, tornando a obra realística através da personificação. Traço muito importante desta obra é que não é apenas uma batalha das pessoas pela sua alma, é em essência uma batalha entre os valores do cristianismo e o paganismo. Para que seja possível o entendimento da
apud CAIGER-SMITH, 1963, p.50)
concepção dos pecados é necessário compreender a relação simbiótica que estes têm entre si, por isso, Epístola, Moralia on Job (esp. XXXI.45). Evagrius Ponticus, De octo spiritibus malitiae (PG 79: 1157). Documento disponível em grego no site: <http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_0345 0399__Evagrius_Ponticus__De_octo_spiritibus_malitiae_ _MGR.pdf.html>, acessado pela última vez em 5 de novembro de 2015. 7 Poema disponível em latim no site: < http://www.thelatinlibrary.com/prudentius/prud.psych o.shtml>, acessado pela última vez em 4 de novembro de 2015. 5 6
Tradução da Autora: “É bom representar os frutos da humildade e do orgulho como uma espécie de imagem visual de modo que qualquer pessoa estudando para melhorar a si mesmo possa ver claramente que coisas vão resultar a partir deles. Portanto vamos mostrar aos noviços e aos homens ignorantes duas árvores pequenas, diferindo em frutas e em tamanho, cada uma exibindo as características das virtudes e os vícios, para que as pessoas possam compreender os produtos de cada uma e escolher qual das árvores que irão estabelecer para si mesmos” 8
G N A R U S | 124 O que veremos nas imagens abaixo são construções visuais de ideias doutrinárias, de modo que fosse possível exemplificar aos fiéis as atitudes correspondentes aos
pecados
representados.
Através do método de Panofsky pretendemos dar destaque às alegorias9 iconográficas criadas para representação dos Pecados Capitais. Em Hessett, Suffolk, temos uma árvore do pecado bastante tradicional, pintada no século XV. A distribuição dada aos pecados ao longo da árvore é bastante representativa de um padrão da construção visual para o pecado, podendo ser vista na maioria das árvores encontradas. Em seu topo vemos o pior dos pecados, o pecado da Soberba, com um homem elegantemente vestido, com uma longa pena em seu chapéu, quase como se exibindo em seu topo. A Soberba é considerado o maior dos pecados – inclusive sendo responsável pela rebelião e queda do anjo Lúcifer. Ao verificar outras pinturas murais, é visível a recorrência da Soberba sendo representada por alguém muito bem vestido, o que indica um status social
elevado,
nem
sempre
da
nobreza
necessariamente, mas podendo ser pertencente a uma classe burguesa, que começava a se formar no século XII. Os aspectos de representação social
Imagem 1: Árvore do Pecado em Hessett, século XV. Fonte: http://paintedchurch.org/hessds.htt, acessado em 5 de setembro de 2015.
estão sempre presentes nas árvores do pecado ou
dos Soberbos sempre são fortes, e com boa
das virtudes.
diversidade coral, o que indica uma vida e
O pecado da Soberba é centrado em pessoas com
personalidade leviana, de alguém com pouca
posses, o que indica que se pensava ser mais
atenção às atitudes e comportamentos virtuosos,
suscetível a este pecado aqueles que vivessem uma
levando em consideração que a Virtude para a
vida abastada, onde se possuísse um juízo de
Soberba era a Humildade. Como destaca Evagrius,
superioridade entre outros homens, o que levaria
“a soberba é um tumor da alma, cheio de pus. Se
ao sentimento de superioridade. As cores das vestes
maduro, explodirá, emanando terrível fedor. [...]. A
Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral [...]. Etimologicamente, o grego allegoría significa "dizer o outro", "dizer alguma coisa diferente do sentido literal" [...] Na arte medieval, o processo de construção das grandes catedrais, como a de Chartres, por exemplo,
obedece também a complicados esquemas alegóricos, pois acredita-se que tudo na Natureza significa algo mais do que o simplesmente observável. (CEIA, C. Sobre o Conceito de Alegoria. Matraga, nº10, p. 1-7, agosto de 1998. p. 1-4).
9
G N A R U S | 125 alma do soberbo alcança grandes altitudes e, daí, cai no abismo.”10 Como podemos ver nesta frase, há uma clara conexão entre a questão simbólica, onde a “alma do soberbo alcança grandes altitudes”, pois na imagem em Hessett, o soberbo ocupa o topo da árvore. O fato deste desabar no abismo é visto pelos pequenos demônios que serram a árvore, o que o Um galho abaixo estão duas representações, à esquerda do homem ao topo temos a Ira, com um homem com uma arma em posição de combate, visivelmente irado e aparentemente jovem, em uma mão uma adaga e na outra um chicote. A Ira reveste-se de importância por seu caráter destruidor de homens, que os coloca diretamente e fatalmente um contra o outro. Enquanto na posteriormente
estabelecida
pelo
cristianismo da soberba como o maior dos pecados, para Evagrius, era a Ira o mais preocupante, pois a Ira cega o homem para Deus e para os outros homens, por seu malefício direto à convivência humana a qualifico como um pecado social. Uma de suas definições está no desejo de vingança, e vingança no código próprio dos homens medievais era um mal necessário e regulamentador da sociedade, utilizada para manutenção da honra e dos privilégios. Assim sendo, a violência compreendida dentro do sistema social medieval como imperativa e até mesmo como um direito pessoal ou comunitário, afasta o conceito de vínculo com o pecado da Ira. Segundo Claude Gauvard:
Para ela11, a violência é o resultado de um encadeamento de fatos necessários à manutenção da honra ou do renome, qualquer que seja a procedência social dos indivíduos, sejam eles nobres ou não nobres. Tradução do De Octo Spiritibus Malitiae de Evagrius Ponticus, por Carlos Martins Nabeto. Disponível em: <http://www.apologeticacatolica.com.br/cocp/fixas/oit 10
(GAUVARD, 2006, p. 606)
Na sequência, à direita, temos um casal de namorados que sem inibição se abraçam e se beijam apaixonadamente, representando a Luxúria, à esquerda o homem, à direita a mulher, ambos
fará cair no Inferno.
tradição
A violência não está então ligada a um estado moral condenável em si; é o meio de provar a perfeição de uma identidade.
bem vestidos. Esta é uma forma clássica que iremos encontrar nas árvores do pecado, a luxúria é sempre representada por um casal jovem, com um homem e uma mulher, que se entregam aos prazeres de sua relação. Abaixo,
à
esquerda
temos
um
invejoso,
simbolicamente representado em verde, que segura seu cinto e aponta, como que desdenhoso do que possui, sua face é cadavérica, pois a inveja nada produz, ela consome o pecador, sendo que o invejoso se torna um peso na sociedade em que vive, e que possui em seu cerne um desejo predatório, melhor definido como Schadenfreude. (NEWHAUSER, 2000). No mesmo nível, à direita, temos a Preguiça, representado por um homem que está deitado, podendo estar dormindo, e seu rosto, como o da Inveja, tem aparência cadavérica, resultado da falta de atividade do preguiçoso que se deixa na inércia, mesmo que isso o custe a própria vida, um ser que também não produz, e por sua falta de entusiasmo pela vida demonstra profunda ingratidão à Deus. Os preguiçosos também estavam associados às atitudes suicidas, o que não era admissível de perdão no período medieval. Apesar da aparente inocência da preguiça, dela provém sofrimentos, a fome, as necessidades, e a falta de vontade para alterar esta ovicios.htm>, acessado pela última vez em 5 de novembro de 2015. 11 Referência à Idade Média.
G N A R U S | 126 realidade, sendo deste modo, considerada uma
exigente ou se preocupar em excesso com o sabor
aversão ao trabalho e ao esforço, e o trabalho é um
ou modo de preparo de um alimento, lhe
demando de Deus, após a expulsão do Paraíso. O
dedicando muita atenção; apetite excessivo que faz
ócio é um mal para o homem, e para o
com que os pensamentos estejam sempre voltados
desenvolvimento da sociedade e seu êxito.
para a comida, ou seja, apenas o desvio do
No próximo nível temos a Avareza, representada
pensamento se tornava um pecado em fato.
por uma mulher que segura em suas mãos sacos de
Em última instância, tratava-se de uma violação
dinheiro. Este é um pecado interessante por possuir
ao corpo, que seria a morada divina da alma. A
uma forte característica dualística, pois embora
comida tornava os homens menos humanos e mais
seja um pecado tanto quanto os demais, há um nível
animalescos, e para Santo Agostinho apenas gostar
de tolerância, pois a avareza pode ser oriunda de
de comer seria uma ofensa a Deus. Embora seja
um profundo estado de pobreza e necessidade,
dada tanta atenção à comida, na iconografia, a
portanto, os desprovidos do básico para sua
forma mais comum da representação da Gula é
sobrevivência se tornam avarentos pela dificuldade
através da bebedeira e não de comilança.
de sobreviver e a dor de suas privações. O mal da Avareza
reside
que
século XV, o tronco central é o próprio pecador,
possuindo mais do que o necessário para si, negam
que é novamente o destaque do pecado da
aos
sua
Soberba, ao seu redor, como que originado deste,
comunidade que poderia viver de sua abundância,
surgem os demais pecados apoiados em bocas
o que o faz ser comparável a um assassino. Um
infernais. De dentro das bocas das figuras
avarento não contribui com a Igreja e não é
demoníacas, semelhantes a dragões, saem os outros
caridoso, o que causa danos tanto à sociedade
pecados. Na parte superior esquerda, temos a
quanto à instituição.
representação da Avareza, que apesar de estar
outros,
basicamente
ou
acabam
naqueles,
Quanto à imagem de Raunds, Northants, do
prejudicando
Por fim, há uma representação da Gula que já não
muito apagada, guarda resquícios de já ter tido em
é muito aparente e não dá margens confiáveis para
mãos sacos de dinheiro. Abaixo deste vemos a Ira,
interpretação. De qualquer forma o demônio
um homem com o peito ensanguentado por
representativo da Gula é Belzebu, sempre retratado
ferimentos auto infligidos, tamanha a sua raiva. A
com uma aparência repugnante, que chega a
figura abaixo da Ira, possivelmente representa a
inspirar asco, exatamente pela ligação que foi
Inveja, onde a pessoa se encontra com as mãos
estabelecida entre o alimento em descomedimento
cruzadas no peito como em sinal de frustração.
com um aspecto ascoso. O Papa Gregório Magno,
Ao lado direito, o primeiro a ser representado de
ao organizar a lista dos Sete Pecados Capitais,
cima para baixo, é possivelmente a Preguiça, abaixo
também elaborou maneiras precisas pelas quais
temos uma representação clara da Luxúria, com um
estes são cometidos e havia algumas maneiras de se
homem e uma mulher deitados sobre uma espécie
tornar um glutão: comendo em excesso; comer em
de sofá, como em ato de formicação. Por último,
períodos do dia que não deveriam ser destinados à
vemos um homem vomitando em uma tigela, sendo
comida,
pré-
uma clara representação do excesso advindo do
determinados, sem o controle devido; ser muito
pecado da Gula, aqui representado na iconografia
ou
seja,
em
períodos
não
G N A R U S | 127 pelo ato de vomitar que resulta do exagero do
o auxílio do fiel, através de situações que lhe sejam
glutão.
familiares. (SCOMPARIM, 2008).
Refletindo sobre as formas pelas quais os Pecados
O ato de condenação, na iconografia das árvores
foram representados, apesar de haver um certo tom
dos pecados, ainda se encontra em suspenso, as
de ameaça, de aviso do que espera o pecador, há
pessoas estão nos galhos da árvore que por toda a
ironia e um pouco de graça ao utilizar situações
Idade Média teve uma conotação simbólica
corriqueiras, alertando, acima de tudo, ao cuidado
extremamente positiva, ligada à prosperidade,
com as atitudes mais triviais, aos comportamentos
abundância. A importância de ser uma árvore o
Imagem 2: Árvore do Pecado em Hessett, século XV. Fonte: http://paintedchurch.org/raundsds.htm acessado em 5 de setembro de 2015.
mais mundanos, através de ações que podem ser
suporte dos Pecados é fundamental, pois mesmo
cometidas inocentemente se não houver uma
quando a árvore é substituída por uma pessoa, a
constante vigilância das próprias atitudes. É
pintura é feita de modo a lembrar uma árvore, com
estabelecido que para um pecado ser considerado
a formação de animais que seguram as pessoas
capital são necessários três elementos: ser de uma
semelhantes a galhos de árvores. Isso nos leva a uma
imensa
o
consideração interessante de compreensão, e
conhecimento de que se trata de um pecado e, por
chance de redenção, ao invés de uma condenação
fim, ser cometido com total consentimento e
irreversível. No livro de Caroline Walker Bynum,
consciência pelo pecador. (Rom. 5:12; 6:23). Assim
vemos uma mudança no seio da fé cristã, na busca
sendo, é fundamental constituir a iconografia para
e na concepção de um Deus que não apenas
gravidade,
ser
cometido
com
castiga, mas compreende e perdoa. Isso podemos
G N A R U S | 128 ver refletido na iconografia dos pecados, um Deus mais próximo, que alerta sobre o mal, que condena se necessário, mas que também deixa uma oportunidade para o perdão. Conclusão Considerando a iconografia como fruto de uma intenção e de um envolto cultural, a imagem dos pecados, ao tentar exemplificá-los de forma simples e acessível à “leitura” deste código visual, podemos concluir que seu objetivo final seja didaticamente doutrinar os fiéis, com base em ilustrações que retratam a simplicidade de atos humanos, auxiliando ao entendimento das ações que levam ao pecado e incitando a não cometê-los, sendo que há um incentivo para que não pequem, já que há uma promessa de sofrimento, de que ao cruzar certos padrões e normas divinas, as consequências advindas serão severas. Podemos observar um contraste nítido entre as imagens dos pecados em si e as imagens das consequências dos pecados cometidos. Os pecados são
retratados
com
certa
inocência,
com
naturalidade, como se não fossem em fato tão terríveis, mostrando como o ato pecaminoso pode ser
traiçoeiro,
porém
as
implicações
são
aterradoras, e as suas imagens tendem a inspirar medo e horror. Há a intenção da formação de um caráter vigilante dos atos aparentemente mais inocentes que levam a sofrimentos terríveis, pois escondem no dia-a-dia das atitudes humanas a sua verdadeira natureza. Amanda Basilio Santos é Bacharela mestranda em História (PPGH – UFPel) com Especialização em Artes em andamento (PPGA – UFPel). Membro do LAPI (Laboratório de Política e Imagem da UFPel). E-mail de contato: amanda_hatsh@yahoo.com.br
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G N A R U S | 129
Artigo
RELENDO PAULO. REFLEXÕES METODOLÓGICAS PARA OS ESTUDOS PAULINOS. Por: Juliana B. Cavalcanti Resumo: O artigo visa prescrever alguns apontamentos sobre a importância de se estabelecer um diálogo transdisciplinar entre diferentes campos do saber (Teologia, História, Sociologia, Antropologia, Arqueologia, entre outras) nos estudos paulinos. De forma, a ampliar e repensar diferentes temáticas no interior deste campo. Possibilitando assim a formulação de uma interessante metodologia capaz de evitar leituras teleológicas e/ou distorcidas da documentação, permitindo ainda lê-la de forma plural e não monolítica. Em outras palavras, através da transdisciplinaridade é possível se pensar o texto dentro de seu contexto e seu Sitz in Leben (“lugar de vida”). Neste sentido, será importante nos ancorarmos nos trabalhos de John Dominic Crossan (1991, 1998) um importante teólogo e historiador que guiado pela percepção da relevância do caminho transdisciplinar propõe três níveis teórico-metodológicos para problematizar os palecristianismos de forma geral, são eles: microcósmico, mesocósmico e macrocósmico. Palavras-Chaves: Paulo, Crossan, Metodologia Abstract: The paper aim to speak about the importance of establish a transdisciplinary dialogue between different areas of knowing (Theology, History, Sociology, Anthropology, Archaeology, etc) in the Pauline’s studies. Making possible the formulation of an interesting methodology able of to avoid theological interpretations and/or distorted of documentation, allowing still to read of form plural and not monolithic. In other words, through of transdisciplinary is possible to known the text in of your context and your Sitz in Leben. In the respect, will be important the works of John Dominic Crossan (1991, 1998), a great theologian and historian that to see the relevancy of transdisciplinary camp propose three levels theoretical and methodological to problematize the Christianity of the general form, they are: microcosmic, mesocosmic, macrocosmic. KeyWords: Paul, Crossan, Methodology.
G N A R U S | 130
E
m outro momento, ao falar sobre a
E estamos falando de discursos, mas se
historiografia dos estudos sobre mulheres
quiséssemos pensar o impacto de Paulo sobre o
em Paulo1, ponderei que a relevância dos
cinema e nas artes de uma forma geral igualmente
estudos sobre a personagem e toda a produção
não seria uma tarefa dolorosa de ser realizada até
existente sobre o mesmo se dá, em primeiro lugar,
que obtivéssemos resultados consideráveis. Robert
por talvez ser a figura mais importante na história
Jewett em “St. Paul at the Movies: The Apostle's
dos Cristianismos, sejam eles Católico, Protestante
Dialogue with American Culture” (1993) fez um
ou Evangélico, após Jesus. E, em segundo lugar, por
mapeamento do pensamento paulino ou ideias que
conta da série de títulos ou agremiações que o
são legadas a Paulo em dez filmes voltados a cultura
apóstolo vem recebendo ao longo dos séculos.
de massa. Demonstrando que estes filmes
Com um pouco de paciência podemos perceber
perpetuam um tipo de interpretação de Paulo que
as inúmeras referências, diretas ou indiretas, ao
contribui para a construção de uma sociedade que
nome de Paulo e não apenas em contexto religioso.
tem como um dos discursos de preservação e/ou
Ou melhor, sua relevância foi capaz de ultrapassar
manutenção das desigualdades e controle de
os muros dos ambientes religiosos e acabou se
produtos escassos a retórica religiosa ou divina, mas
tornando como parte de uma tradição ocidental. O
sem
que
apropriação.
acaba
tornando
completamente
deixar
claro,
evidentemente,
a
sua
compreensível a evocação de 2Tm 4: 7, uma fala
Contudo, há de se indagar se toda esta memória
atribuída a Paulo, nas últimas eleições presidenciais
acionada, direta ou indireta, de Paulo dialoga e/ou
no Brasil pelo então candidato do Partido da Social
condiz com o Paulo Histórico ou se todas estas
Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves. A frase
referências são fruto da história da domesticação
empregada por ele em seu pronunciamento frente
do apóstolo. Para isto, se faz necessário buscar uma
à derrota na campanha eleitoral foi: “Combati o
metodologia capaz de levar em conta estas
bom combate, cumpri minha missão e guardei a
questões, de forma que possamos pensar se os usos
fé”.2
de Paulo condizem com a personagem histórica. E
Ou ainda lembrarmos uma série de teólogos que
mais se todos os textos atribuídos a ele são
produziram diferentes trabalhos entre as décadas
realmente seus ou se há produções que não
de 1920 e 1940, uma produção capaz de usar Paulo
condizem com o mesmo. Neste sentido, o presente
como a principal argumentação de que os judeus
artigo visa discutir uma metodologia para o Paulo
em sua essência eram maus e desvirtuantes das
Histórico.
normas e regras divinas, sendo o judaísmo-cristão apenas mais uma tentativa dos judeus de corromper com os ensinamentos de Jesus. O verdadeiro
Paulo ou Paulos? Explanações Metodológicas para os Estudos Paulinos.
cristianismo seria o gentílico pautado na tese de Paulo da justificação pela fé (ELLIOTT, 1998: 15-16;
A busca pelo Paulo Histórico tal como o do Jesus Histórico tem suas bases com o advento do
GERDMAR, 2009: 10-12). 1
O referente artigo é: CAVALCANTI, J. “Mulheres em Paulo. Observações metodológicas e um breve balanço historiográfico”. In: Fatos e Versões, 2014 (Prelo).
2
É possível conferir a fala completa do referido candidato a presidência da República do Brasil de 2014 em: http://www.psdb.org.br/aecio-neves-combati-o-bomcombate-cumpri-minha-missao-e-guardei-fe/
G N A R U S | 131 Iluminismo e foram intensificadas em meados à
mas também acabou por evocar a primordialidade
finais do século XIX com teorias darwinistas sobre o
de uma metodologia, principalmente no contexto
modelo ou a forma de se fazer ciência. E se a busca
pós-Segunda Guerra. Momento em que todas as
se entende dentro do campo do científico ou do
Ciências Humanas começam a serem revistas de
acadêmico, estamos querendo dizer que os estudos
forma a ponderar a necessidade da construção de
paulinos perpassam pelo crivo da razão, do lógico.
modelos teóricos que fossem capazes de se
Logo, a pesquisa delimita uma clara distinção entre
produzir conhecimento não associadas ao horror do
o Paulo dá fé e o Paulo dos centros acadêmicos ou
que foi a Segunda Guerra Mundial.
o Paulo Histórico. O que não significa dizer que não seja possível
O resultado disto foi, num primeiro momento, a percepção de que tanto Jesus quanto Paulo passavam por filtros de leitura ao logo do desenvolvimento dos respectivos estudos. O que fomentou a analogias e ao entendimento de que em ambos os casos era possível adotar o mesmo tratamento metodológico. Em outras palavras, ao se perceber que tal como Jesus a personagem Paulo também foi e é utilizada como uma projeção dos valores e concepções dos indivíduos e/ou grupos buscou-se num primeiro momento adotar um conjunto de critérios análogos ou muito próximo dos mesmos adotados para a pesquisa do Jesus Histórico, que são eles: (a) Dessemelhança: útil para distinguir as tendências das ‘tradições’ ou memórias
São Paulo (por Diego Velázquez)
cristãs forjadas para atender as demandas fruto de tensões entre comunidades ou
traçar paralelos entre estes dois tipos de Paulo,
lideranças rivais. Tendo a imagem do
muito pelo contrário a discussão aqui passa pelo
apóstolo como um meio de impor uma
campo metodológico. Ou melhor, na compreensão
verdade
do que é ciência e na necessidade de promulgar um
oficial/verdadeiro
modelo de estudo que seja capaz de remover todas
Estabelecendo assim que “a não ser que seja
as camadas temporais e discursivas até se chegar à
requerido claramente pelas cartas genuínas
camada mais dura de objeto de pesquisa: o Paulo
de Paulo, interpretações que assimilam o
do século I EC que teve uma experiência mística
pensamento e a práxis de Paulo aos
com o Jesus ressuscitado e que viajou e escreveu a
propósitos
comunidades distintas.
pseudopaulinas,
As diferentes fases da busca pelo Paulo Histórico acabaram trazendo novos olhares sobre o campo,
ou
um (Erhman,
ensinamento 2013:
reconhecidos devem-se
duvidosas” (Elliott, 1999: 117).
17).
das considerar
G N A R U S | 132 (b) Inteligibilidade Histórica: busca interpretar
reconhecemos que este primeiro modelo não só é
Paulo a partir de um ambiente judaico, onde
uma reposta consistente a virada dos estudos
interpretações ou leituras que implicam em
paulinos a partir dos anos 1950, bem como
suposição prévia de que o pensamento
apresenta aspectos positivos ao tentar criar
paulino era antijudaico devem-se considerar
elementos lógicos para o desenvolvimento da
duvidosas. Em outras palavras, leituras que
pesquisa.
busquem afirmar ou ler (1) o centro do
No entanto, eles não pensam ou não comportam
pensamento paulino como contra a lei
uma análise mais completa e/ou aprofundada do
(Torá), (2) a lei (Torá) para Paulo não tendo
contexto e do “lugar de vida” (sitz in leben) dos
mais peso ou significado prático ou (3) a
textos. Em suma, estes critérios tomam por vezes
literatura judaica não constituindo nenhuma
uma perspectiva muito mais teleológica do que
fonte para elucidar as cartas, segundo este
propriamente
critério devem ser desconsideradas ou
metodologia aplicadas às Ciências Sociais, onde a
colocadas em dúvida.
disciplina História se situa. E por tender a
dito
uma
teoria
e/ou
uma
(c) Inteligibilidade Retórica: visa respeitar o
desconsiderar corre o risco de acabar por
contexto das cartas de Paulo, entendendo
obscurecer determinadas questões ou anula a
que leituras que não trazem a concepção de
possibilidade de novas indagações sobre um
que Paulo não escreveu buscando persuadir
mesmo assunto.
os leitores e/ou ouvintes devem ser questionadas.
Neste sentido, se faz necessário recorrermos a outro modelo que abarque as questões deixadas de lado ou não consideradas pelo arquétipo de Meier.
Estes critérios apresentados por Meier (1992: 19-
Crossan (1991, 1998) propõe três níveis teórico-
23) em muitos sentidos nos parecem em parte
metodológicos para pensar os cristianismos
interessantes, já que eles oferecem bases para
originários3, são eles:
tentar problematizar o Jesus Histórico, os paleocristianismos, o Paulo Histórico, bem como toda a documentação a ele atribuída. Tais critérios, no entanto, apresentam também determinadas ‘deficiências’
e/ou
delimitações.
Em
outras
palavras, tais pressupostos disponibilizados por Meier são importantes para o estudo dos
(a)
Microcósmico.
Ele
está
ligado
à
documentação literária, uma análise dos textos sem o contexto, buscando perceber memórias ou ‘tradições’ formadas de e sobre Paulo levando em conta a datação dos mesmos.
cristianismos por apresentar ou tentar se apresentar
(b) Mesocósmico. Ele busca uma reconstrução
como um modelo científico e que entende que o
histórica do ambiente e do tempo em que
Jesus de século I EC não é o Jesus existente no
Paulo viveu; teríamos assim um estudo do
interior de igrejas e congregações. Assim sendo, 3
Os níveis foram num primeiro momento proposto em suas obras O Jesus Histórico (1991) e O nascimento do Cristianismo (1998). O intuito de Crossan era assim pensar as memórias de e sobre Jesus nos primeiros anos de cristianismo que se seguiram após a morte de Jesus e o momento anterior aos escritos de
Paulo em meados dos anos 50 do primeiro século da era comum. Ao se voltar à personagem Paulo, Crossan em seu livro Em busca de Paulo (2004) transporta estes níveis para os estudos paulinos.
G N A R U S | 133
Conversão do procônsul Sérgio Paulo, de quem Saulo pode ter tomado emprestado o nome. Por Rafael, no Victoria and Albert Museum, em Londres. contexto sem os textos. Cabe aqui conhecer
(c) Macrocósmico. Ele envolve uma análise do
a realidade político-social, religiosa e
movimento paulino na perspectiva da
econômica da Bacia Mediterrânica nos
Antropologia Social e Cultural. Busca-se
séculos I e II EC. Uma realidade distinta da
reconstruir a dinâmica e a estrutura social
Palestina deste mesmo período, que estaria
que Paulo viveu. Um mundo norteado por
vivendo uma violenta tensão sociopolítica e
relações de honra e vergonha e patronato
econômica, em particular no campesinato
em grandes centros urbanos cosmopolitas,
judaico. Abrindo espaço para resistências
contando com uma intensa mobilidade de
judaicas entre elas de bandidos sociais,
pessoas e mercadorias, beneficiados pela
profetas e messias. O Mediterrâneo, por
integração estabelecida no Mediterrâneo
gozar neste mesmo período de uma maior
tanto por via marítima quanto terrestre, e
estabilidade
tendo consequentemente uma enorme
econômica,
e
integração
acabou
por
político-
conhecer
ou
florescer outras lógicas de organização religiosa.
circularidade cultural e de ideias. Estes níveis, especialmente o último, nos parecem interessantes, pois nos permitem traçar um
G N A R U S | 134 comparativismo construtivo, como diria Detienne
conceitos.
(2004: 9), para se pensar/problematizar os
metodologia transdisciplinar abrimos espaço em
documentos pertencentes ao estudo do Paulo
primeiro lugar para um ambiente plural de ideias e
Histórico. De forma que ao se admitir que não há
acima de tudo de autores que são entendidos como
um valor implícito para a construção do que pode
agentes de seu tempo e por isto mesmo a
ou nãoser ‘comparável’, passamos a ver todo o
documentação não é esgotável, pois a todo o
objeto não como algo exclusivo, particular ou
momento e a luz de novos olhares novas questões
isolado de um todo, mas como parte de vetores
irão emergir.
próprios da experiência humana: tempo e espaço. Ou
seja,
ampliam-se
as
bases
Em
outras
palavras,
com
uma
E é este caminho comparativista que devemos
teórico-
percorrer para apreender a busca pelo Paulo
metodológicas ao inserir percepções advindas de
Histórico. Sob este víeis poderemos dar respostas
diferentes campos, como da Antropologia, da
mais plausíveis sobre os rituais de iniciação e
Arqueologia e da Sociologia.
manutenção
nas
comunidades
paulinas,
ou
O que também implica dizer que o olhar sobre a
compreender todos os textos existentes no cânon
documentação também deve ser repensada, ou
cristão são realmente de Paulo ou não e quais as
melhor, a fonte não deve ser pensar como um
razões nos levam a delegá-los ou não como de
relato, mas como um inventário (VEYNE, 1983: 34).
Paulo e se não o são quais as razões para a produção
De forma, assim, a romper com a ideia de relato
de textos sendo atribuídos ao apóstolo. E mais do
contínuo. Relato contínuo este que é fruto da
que isto, nos indagar se tal postura era comum e
individualização dos acontecimentos pelo tempo
como era vista pelos contemporâneos da produção.
que acaba por impedir comparações. Uma vez que
Esta proposta metodológica vislumbra ainda
se compreende a documentação por inventário ao
perceber que o Paulo Histórico falou, pensou e
invés de relatos, o autor afirma que a história passa
escreveu a partir de uma herança cultural
a ser compreendida como a ciência que estuda os
compartilhada. Um ótimo exemplo disto está na
materiais humanos subsumidos nos conceitos. Em
historieta do corpo (1Cor 12:12-27), onde a igreja é
outras
das
comparada ao corpo humano. Destacam-se neste
comparáveis advém da análise que se faça das
ponto específico três aspectos: (a) o corpo seria
fontes. A priori, nada é incomparável. Pois
composto por uma multiplicidade de membros,
dependendo da perspectiva em que se compara,
onde cada um deles é diferente do outro,
podem aparecer ou não comparações. Já que como
desempenhando funções bem definidas; (b) a
diz
essencialmente
necessidade que cada uma das partes do corpo tem
comparativista. E a história se estabelece por
de se mutuamente para que o corpo na sua
intermédio das comparações que são feitas
inteireza possa sobreviver; e (c) tal como o corpo
constantemente.
humano é composto de diferentes partes e cada
palavras,
Veyne,
o
o
estabelecimento
homem
é
Assim sendo, ao admitir tal percepção teórico-
uma delas concorre para a manutenção do corpo,
metodológica compreende-se que o que é dito e
assim também a igreja deve superar as partes para
falado é fruto dos interesses do Cientista Social, em
que o todo sobressaia.
que a pesquisa é sempre materialmente escrita com
Sem esta metodologia transdisciplinar a análise
fatos e formalmente, com uma problemática e
final seria a exposta acima com a leitura de que a
G N A R U S | 135 fala de Paulo é original, uma invenção paulina e
elementos da personagem histórica, mas que ela
distante de qualquer possível diálogo com o seu
também esteve e está constantemente sujeita a
ambiente. Contudo, ao nos voltarmos para os textos
recriações e sob outras lentes de leitura que não
de dois analistas romanos, Dionísio de Halicarnaso
necessariamente atendem as propostas do apóstolo
e Tito Lívio, vislumbramos que essa história na
que viveu como um judeu no contexto político-
realidade
por
econômico e social da Bacia Mediterrânica de
inúmeras culturas mediterrânicas tocadas pela
século I EC. E a chave para a construção desta
civilização grega (CHEVITARESE, 2011: 83-87). Em
perspectiva sobre os estudos paulinos, está a nosso
outras palavras, o que se percebe é que a
ver, na adoção dos três níveis do historiador e
originalidade paulina não estava na historieta, mas
teólogo John Crossan.
era
amplamente
empregada
na forma em que foi empregada. Uma vez que, o apóstolo soube se valer de metáforas e analogias próprias de seu tempo para transmitir uma determinada
mensagem
e
Juliana B. Cavalcanti é Mestranda em História no PPGHC-IH/UFRJ, pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-IH/UFRJ).
garantindo,
consequentemente, que ela fosse compreendida por seus ouvintes e/ou leitores. Referências Bibliográficas. Conclusão. O Historiador italiano Carlo Ginzburg observa e tenta discutir em seu livro “Mitos, Emblemas, Sinais” (1982) a construção silenciosa de um novo modelo epistemológico a partir do final século XIX: o paradigma indiciário. Que pode ser facilmente traduzido pela comparação feita pelo mesmo, ele diz: “O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis a maioria” (GINZBURG, 1982: 145). Com esta fala o autor nos sugere a documentação, independentemente de ser oral, escrita ou visual, deve ser pensada sempre dentro de um todo. Ou melhor, entender que o objeto está contido dentro de uma ampla e complexa rede e não como algo independente, desvinculado. E para isto se faz necessário imprimir uma lente nos pequenos detalhes sempre recorrendo a comparações ou paralelos com a macroestrutura em que se constituiu esta microestrutura. Garantindo assim, a interpretação de que é possível se acessar a
CAVALCANTI, J. “Mulheres em Paulo. Observações metodológicas e um breve balanço historiográfico”. In: Fatos e Versões, 2014 (Prelo). CHEVITARESE, A. Cristianismos. Questões e Debates Metodológicos. Rio de Janeiro: Kline, 2011. CROSSAN, J. O Jesus Histórico. A Vida de um Camponês Judeu do Mediterrâneo. Rio Janeiro: Imago, 1994. CROSSAN, J. O Nascimento do Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1998. CROSSAN, J. e REED, J. Em Busca de Paulo: Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007. DETTIENNE, M. Comparar o Incomparável. Aparecida: Letras e Ideias, 2004. ELLIOTT, N. Libertando Paulo. A justiça de Deus e a política do apóstolo. São Paulo: Paulus, 1998. EHRMAN, B. Quem escreveu a Bíblia? Por que os autores da Bíblia não são quem pensamos que são. Rio de Janeiro: Agir, 2013. GERDMAR, A. Roots of Theological Anti-Semitism. Leiden: Brill, 2009. GINZBURG, C. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. JEWETT, R. St. Paul at the Movies: The Apostle's Dialogue with American Culture. Louisville: John Knox Press, 1993. MEIER, J. Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico (vol. 3, livro 1). Rio de Janeiro: Imago, 1992.
G N A R U S | 136
Artigo
TRAÇOS GUERREIROS PRESENTES NA SANTIDADE DA LEGENDA ÀUREA: ALGUMAS QUESTÕES INTRODUTÓRIAS Por: Leilane Araujo Silva.
Resumo: Para a realização dessa proposta nosso estudo fundamenta-se nas hagiografias do século XIII. No entanto, sublinhamos que o nosso interesse está nos relatos dos santos guerreiros presentes na Legenda Áurea, essa obra não foi examinada integralmente. Portanto estabelecemos como critérios de seleção, os relatos que apresentam elementos da temática militar e da violência que caracteriza e aproxima da cavalaria medieval. Contudo, por se tratar de uma pesquisa que está em estágio inicial apresentaremos algumas questões introdutórias e o objetivo deste artigo será apresentar a historiografia que está sendo utilizada nesta pesquisa apesar da dificuldade de encontrar referências bibliográficas especificas que sirvam de base para a linha de pesquisa deste estudo. e o porquê desse destaque. Já que esse tema é Introdução
A
abordado de forma recorrente na obra e pelos
elaboração da nossa pesquisa foi desenvolvida a partir das reflexões levantadas sobre elementos da cavalaria
historiadores, refletimos sobre a possibilidade de abordarmos uma temática pouco explorada, mas que estivesse presente na obra.
medieval presentes nas hagiografias do século XIII,
A partir dessas questões, o intuito da nossa
onde analisamos a presença desses elementos em
pesquisa é fazer uma a análise comparativa da
quatro relatos presentes na obra de Jacopo de
presença da temática militar na produção
Varazze
conhecida
como
Legenda
Áurea.
Concluímos que a santidade é evidenciada e
hagiográfica do século XIII. Contudo, no presente artigo apresentaremos
comprovada no âmbito social por percursos
apenas
diferentes, mas que tem a mesma finalidade.
transformações ocorridas na sociedade medieval
algumas
ponderações
sobre
as
A partir das nossas leituras começamos a
no século XIII, a influência da Igreja e da Ordem
questionar o porquê das constantes e detalhadas
Mendicante na produção da Legenda Áurea e
descrições reservadas ás penas e macerações
alguns trabalhos produzidos entorno dessa obra.
sofridas pelos mártires descritas na Legenda Áurea
G N A R U S | 137 Contextualizações do período vivido por Jacopo de Varazze Acreditamos
ser
necessário
fazer
uma
ponderação sobre o século XIII e apresentar as principais transformações que ocorreram nessa época e que influenciaram o modo de ser das pessoas, em especial, a vida de Jacopo de Varazze.
Universidades e na religião teve início a interiorização dos sentimentos. Da mesma forma, no século XIII, a Igreja avistou o nascimento, organização e estabelecimento de associações que aprovou como as Ordens Mendicantes. O surgimento das ordens mendicantes, cuja prática de desprendimento dos bens materiais
No Ocidente dos séculos XII e XIII ocorreram transformações: como intensa urbanização e revitalização das cidades, crescimento comercial com maior produtividade agrícola e artesanal a partir da melhoria das técnicas empregadas, surgimento
de
ofícios
especializados,
desenvolvimento da filosofia escolástica e das literaturas
vernáculas,
o
nascimento
das
com apego a natureza, de intensa pregação e repressão aos hereges passou a atender as novas necessidades sociais e espirituais da sociedade depois das transformações ocorridas nesse período. Roert Ian Moore, no artigo La alfabetización y el
surgimento de la herejía, ca. 1000-ca.1105,
1
defende que, no século XIII, a sociedade ocidental
Jacopo com a Legenda em suas mãos. Ottaviano Nelli. Palácio Trinci. Foligno, Itália. MOORE, Robert Ian. La alfabetización y el surgimiento de la herejía, ca. 1000-ca.1105. In: GARCIA, Maria Loring 1
Isabel. La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003. p. 552-570.
G N A R U S | 138 passou por um processo de alfabetização,
se por ter sido desde sua origem constituída por
associado diretamente a uma clericalização.
clérigos e buscar o equilíbrio entre a pregação e a
Partindo de um argumento similar, Indro
erudição, valorizando o estudo continuo da bíblia
Montanelli e Roberto Gervaso, no livro Itália: os
na formação dos pregadores.
séculos decisivos, afirmam que o âmbito clerical possuía vantagem sobre o laico. No que diz respeito a certo “monopólio cultural” exercido pelo clero que seria o principal responsável pelo ensino.
Nesse momento já não era mais tão confortável manter a posição de uma Igreja que utiliza a grandeza do seu passado e a promessa impalpável da eternidade, como um ímã que atrai pra si, sem esforço, a limalha espalhada ao seu redor. Era
Em suma, as transformações de então atingiam
necessário mover-se ao encontro daqueles
toda a Europa católica, mas seu ponto central
homens que mudavam sua maneira de pensar por
estava de certa forma na Itália, região mais
conta de um mundo que crescia e trazia nesse
povoada, urbanizada e heretizada do Ocidente,
crescimento cada vez mais novidades.4
mas o trabalho contra a heresia requeria uma comunicação acessível à população em geral e não apenas aos doutos, daí a necessidade da L.A, 2 segundo Hilário Franco Júnior. Em síntese, podemos concluir que a hierarquia
Com isso, tornou-se preciso formar cristãos pelo convencimento e o uso da palavra passou a ser determinante. Pois, essa palavra era pautada na razão, construída no conhecimento gerado pelo estudo das Escrituras e fundamentada na reflexão
eclesiástica combateu os infiéis e o paganismo,
do
lidou com as divergências com o poder civil e
objetivando
combateu os movimentos heréticos. Acreditamos
dominicanos o meio para alcançar esses cristãos
que essa é a essência da produção literária de
deveria ser a fé, a inteligência e a união com Deus.
Jacopo de Varazze, composta por distintos sermões. Alguns aspectos da Ordem dos Dominicanos A Ordem dos Dominicanos nasceu em um mundo medieval que experimentava um grande impulso no seu desenvolvimento, 3 que era vedado pelas intervenções da Igreja que buscava afirmar a sua supremacia no poder espiritual sobre o poder
homem
perante o
sua
espiritualidade,
convencimento.
Para
os
Segundo André Vauchez, graças às orientações definidas nas Constituições Dominicanas de 1220, a ordem exerceu influência direta sobre a sociedade do seu tempo, porque Domingos soube compreender a importância da palavra na transmissão e na educação de fé cristã. Para isso não houve dúvida em priorizar o trabalho intelectual sobre a vida no convento e sobre a
temporal, mas a Ordem Dominicana diferenciou-
Escolástica. In: LE GOFF, J & SCHMITT, J-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/ São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial, 2006, p. 368. In: ABRAHÃO, Marcos. O Ratio Studiorum Domicano
Sigla referente à Legenda Áurea. JR, Hilário. A idade média – o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 36-44. In: ABRAHÃO, Marcos. O Ratio Studiorum Domicano
4ALÉSSIO, Franco.
da ANPHU-RIO Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro, 2010.
da ANPHU-RIO Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro, 2010.
2
3FRANCO
(1259): como a filosofia preservou a unidade no seio da Ordem Dos Frades Pregadores. XIV Encontro Regional
(1259): como a filosofia preservou a unidade no seio da Ordem Dos Frades Pregadores. XIV Encontro Regional
G N A R U S | 139 liturgia, privilegiando assim a educação para
consensualmente situada pelos medievalistas
fortalecer a palavra5.
entre 1226 e 1230. 6 Ele nasceu na cidade de
A erudição dominicana é um elemento construído e solidificado na origem da Ordem. A preocupação constante em se posicionar como um grupo de estudiosos, garantindo essa postura através
de
uma
legislação
disposta
criteriosamente e especifica, deu unidade à Ordem fazendo a educação um elemento de união entre os frades. O sentido de sua existência era
Varazze, e com a idade de dezoito anos ingressou na Ordem Dominicana, na qual se destacou rapidamente por causa da sua cultura e seu desvelo evangelizador. Durante anos estudou, pregou e ensinou os preceitos cristãos calcados no evangelho, no nordeste da Península Itálica. Em 1267, aos seus vinte anos tornou-se líder da Ordem na importante província da Lombardia. Com base em Os martírios na construção de
gerar um grupo fundamentado para combater as heresias, ou seja, um grupo apto para converter o
santidades
saber
no
comparativa dos relatos da Legenda Áurea de
encaminhamento dos fiéis à salvação, de acordo
Priscila Gonsalez Falci, em 1251, Jacopo rumou em
com Marcos Abrahão.
direção a Gênova onde manteve uma produção
em
argumentação
consistente
Sublinhamos que os dominicanos tiveram destaque no combate aos hereges, na defesa do poder papal em relação a elementos laicos, junto às cruzadas e durante a Santa Inquisição. Em suma, a necessidade da pregação ao povo conduziu os dominicanos a simplificarem e centralizarem a narrativa cristã. A partir dessa consideração, temos a Legenda Áurea como o exemplo mais importante do pensamento eclesiástico desse período, que mostra em sua narrativa textos hagiográficos voltados para a sacralidade, pois, tinham como objetivo, servir como exemplos a serem seguidos.
genderificadas:
uma
análise
epistolar solicitando auxilio ao clero para que combatessem a heresia naquela região. Sua preocupação com o crescimento de movimentos heréticos, especialmente o catarismo, aparece no corpo de sermões7composto por uma ampla gama de textos, distribuídos em quatro séries, a saber: 8 Semones de omnibus sanctis, Sermones
quadra Evangellis
gesimales,
Sermones
domenicalibuse
de
omnibus
Liber
Marialis,
produzidos a partir de 1255. Essa produção inicial estava direcionada ao auxílio de membros da Ordem no combate aos movimentos heréticos que viria a ser conhecida como sermões dourados –
sermones aurei – pela importância que tiveram. A Biografia de Jacopo de Varazze A vida do dominicano é perpassada pela imprecisão de sua data de nascimento, sendo
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental – Séculos VIII – XIII. Lisboa: Estampa, 1995, p.152. 6 AIRALDI, G. Jacopo da Varagine trasanti e mercanti. Milano: Camunia, 1988, p. 10; BOUREAU, Alain. La Légendedorée: Le systémenarratif de Jacques de Voragine ( ⃰ 1298). Paris: Cerf, 1984. 5
ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle Ages: Oxford University Press, 2004.WALEY, Daniel. Las ciudades-república italianas. Madrid: Guadarrama, 1969. 8 Cf. GUIDETTI, Stefania Bertini. I Sermones de Iacopo da Varazze. Firenze: SISMEL, 1998. 7
1000-1300.Oxford:
G N A R U S | 140 Em 1258, foi eleito prior da Gênova9 e se mantém
conjunto de textos (legenda, literalmente “aquilo
no cargo até 1267. Sua atuação indicaria que ele
que deve ser lido”, também tinha o sentido de
esteve presente nos capítulos provinciais e em
“leitura da vida de santos”) de grande valor (dai
muitos dos capítulos Gerais. Alguns pesquisadores
áurea, “de ouro”) moral e pedagógico, que o
apontam que o genovês teria participado dos
mesmo se encarregou de traduzir para o
capítulos de Luca, em 1288, e de Ferrara, em 1290.
português.
Assim, ele estava condicionado nos preceitos dominicanos,
como
também
na
hierarquia
eclesiástica, que certamente influenciaram na organização da Legenda Áurea, que respeitou o calendário litúrgico estabelecido pela Igreja e utilizado pela Ordem de acordo com Priscila Gonsalez Falci na sua dissertação Os martírios na
construção de santidades genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea. Segundo Hilário Franco Júnior, um fato significativo que marcou a vida de Jacopo, a Igreja
Com o aparecimento da L.A. podemos observa que a pregação do Cristianismo e a luta contra as heresias têm como explicação, a Itália ser o centro de reinterpretações das formas de viver o Cristianismo e a necessidade da população de ouvir ou seguir um modelo. Pois a Legenda Áurea servia de cunho didático para a educação moral da população, por conter lições de vida a partir da trajetória dos santos, contribuindo assim para a sua propagação nos meios sociais deste período, de acordo com Franco Júnior.
Católica tinha proibido a cidade de Gênova de manter contatos comerciais com a Sicília, mas apesar da proibição, tais práticas continuaram, o que resultou na excomunhão da cidade. Jacopo foi escolhido pela população para ir até Roma pedir
Em 1295, Jacopo de Varazze foi nomeado arcebispo de Gênova por Nicolau IV. Nesse cargo teve, em 1295, papel decisivo na reconciliação entre genoveses gibelinos (adeptos do imperador) e guelfos (adeptos do papa).
perdão em nome de todos. A partir dessa narrativa, podemos constatar que Jacopo de Varazze era uma personalidade importante e influente na cidade de Gênova. E de acordo com Dominique Coelho dos Santos a vida de Jacopo é marcada pelo
progresso
comercial
e
a
crescente
urbanização.
escreveu várias coisas, como sermões e a Crônica 1296,10
mais sua maior obra
foi à coletânea de hagiografias que ficou conhecida como Legenda Áurea, isto é, um RICHARDSON, Ernest..Materials for a Life of Jacobus de Varagine. Nova York: H. W. Wilson, 1935. 4V.,v. 2., p. 36. 10 Chronica civitatis Iannensis, ed. G. Monleone, Roma, Instituto Storico Italiano per Il Medio Evo, 1941. 9
a escrever a Cronoca dela cittadi Genova
dalleoriginial1297,11 cuja temática era a cidade e seus fundadores, abordando questões políticas, colocando as regras para o bom governo e argumentando como ser um bom cidadão, relatando também a trajetória de vários bispos ou
Franco Júnior afirma que Jacopo de Varazze
de Gênova escrita em
No ano após sua eleição, o dominicano começou
arcebispos, de acordo com Falci. Ernest Richardson em Materials for a Life of Jacobus de Varagine,12 sublinha que apesar da obra ter sido redigida e publicada nesse ano, ela foi editada pela segunda
JACOPO DA VARAGINE. Cronaca dela citta’ di Genova dalleoriginial1297.Torino: ECIG, s/d. 12 RICHARDSON, Ernest. Materials for a Life of Jacobus de Varagine .Nova York: H. W. Wilson, 1935.4V. 11
G N A R U S | 141 vez
em
1296,
sendo
reeditada
por,
aparentemente, Jacopo até sua morte.
passou a ser chamada de Legenda Áurea ainda no século XIII. Ela é “uma obra de cunho didático para
Jacopo de Varazze morreu em 1298, admirado pelos seus concidadãos, foi escolhido como
sermões que foi escrita por Jacopo de Varazze por volta de 1253 e 1270”.15
patrono da cidade de Varazze em 1645, daí o título
Richardson diz que por a L.A. ter uma datação
que acompanha o seu nome. Já em 1816 foi
controversa, ela foi redigida provavelmente após a
beatificado pelo papa Pio VII, 13 devido a sua
morte do Imperador Frederico II, em 1249, pois
conduta exemplar como arcebispo de Gênova.
este acontecimento é mencionado ao final do último capítulo sobre São Pelágio, e antes de 1258, já que ficaria implícito que desta data até a
A Legenda Áurea Originalmente
publicação da obra Milão ficaria livre da presença concebida
como
Legenda
herética.16
Sanctorum, vulgo Alias historia lombardica dicta,14
A Legenda Áurea é considerada uma obra Dominicana do final do século XIII, que apresenta aspectos da tradição cristã e o pensamento eclesiástico dessa época, que estavam inseridos numa forma escolástica de encadeamento dos documentos. A L.A está organizada em cinco partes: inicia com as festas do tempo da Renovação, indo do Advento ao Natal; segue com as celebrações ocorridas nos períodos da Reconciliação e em parte, da Peregrinação,
abrangendo
do
Natal
à
Septuagésima; depois, as que se comemoram no tempo do Desvio, indo da Septuagésima à Páscoa; depois vêm as que caem na parte da Reconciliação, da Páscoa a Pentecostes; em último, coloca as do Pentecostes ao Advento, simbolizando o período da Peregrinação. Paolo Giovanni Maggioni 17 afirma que a L.A. passou por várias revisões do próprio Varazze, ou
REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: UniversityPress,1985. 13
p.15. 14 O nome original da Legenda Áurea em Latim. 15 FRANCO JUNIOR, Hilário. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vida de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FORTES, Carolina Coelho. Os mártires na Legenda Áurea: a reinvenção de um tema antigo em um texto medieval. In: LESSA, Fábio& BUSTAMANTE, Regina (orgs.). Memória & Festa. Rio de Janeiro: Mauad, p.113, 16
2005. 17 IACOPO DA VARAZZE. Legenda Aurea su CD-Rom. Testo latino dell´edizione critica acura di Giovanni Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999.
G N A R U S | 142 consentidas por ele, ao longo de sua vida, na
complementado por um conjunto de documentos
opinião de Falci. Essa afirmação também é apoiada
à
por Richardson, tendo em vista a extensa
especificamente dos dominicanos.
quantidade de manuscritos produzidos, no mesmo século de sua produção. As diversas versões da L.A. começaram a serem publicadas quando a obra foi traduzida para o catalão, no último quarto do século XIII, para o alemão em 1282, em 1340 foi elaborada a primeira tradução para o francês e em 1470 surgiram edições da obra em latim.
Áurea não sai da tradição enciclopédica e está fundamentalmente no uso das fontes do século XII e também do XIII para escrever sobre as grandes solenidades do calendário Cristão. como
sua
originalidade
de
seus
contemporâneos
e
Pascal Collomb chegou a esta conclusão a partir da presença e da apresentação da Legenda Áurea nas bibliotecas. O autor cita dois casos: um do século XIV e outro do XV. No primeiro caso a L.A. está junto a instrumentos para a pregação. No segundo, a coletânea de sermões. Segundo Collomb trata-se de indícios sobre a função da
Na opinião de Pascal Collomb 18 a Legenda
Assim
disposição
estaria
exatamente em seguir os modelos dos tratados
De officiis eclesiasticis desses séculos e não a modelos mais antigos.
Legenda Áurea, como dedicada à pregação.19 No artigo Palavra de púlpito e erudição no século
XIII: a Legenda Áurea de Jacopo de Varazze de Néri de Almeida Souza, a autora afirma que a
Legenda Áurea tira sua consistência histórica do vasto
material,
de
diversas
proveniências
temporais e espaciais, organizado por Varazze. Este inclui textos litúrgicos, bíblicos, hagiográficos, doutrinários,
historiográficos,
compilatórios,
Já segundo Brenda Dunn-Lardeau e B. Fleith, a
cristãos e não cristãos, que se estendem da
Legenda Áurea, tem um suposto caráter “arcaico”
antiguidade tardia ao século XIII, contemplando
e os argumentos para essa classificação podem ser
desde santos bíblicos, passando por mártires,
resumidos nos seguintes pontos: preferência por
anacoretas, monges e confessores até os
modelos de santidade não usuais no século XIII:
reformadores e fundadores de ordens dos séculos
ênfase dos relatos no martírio; pouca ênfase na
XII e XIII.
biografia
e
maior
destaque
ás
anedotas
exemplares; poucos santos do século XIII e a referência ao purgatório em apenas duas legendas. No entanto, de acordo com Franco
Júnior, o que parece ser arcaísmo na verdade o texto revela a desconsideração pela história. Collomb afirma que Jacopo teria concebido a
A heterogeneidade temporal e espacial dos textos utilizados na L.A. e a concentração da narrativa na repetição exaustiva dos temas do martírio e do milagre colaboram para compor uma obra homogenia e complexa que acarreta uma série de problemas metodológicos. Um deles é a carência de definição autoral no corpus e a
Legenda Áurea não como uma obra total e isolada, mas um instrumento de trabalho que completa e é
COLLOMB, P..Le séléments liturgiques de la Légendedorée.Traditionet innovations.In: FLEITH, B. et MORENZONI, F. (org.) Dela saintété a l’ hagiographie: 18
gênese et usade de la Légendedorée. Genéve: DROZ, 2001. 19COLLOMB, P..Op. Cit., p.116-118.
G N A R U S | 143 frequente consideração de Jacopo apenas como
que se acredita serem fornecidos pela história
compilador para alguns historiadores.20
santa. E a unidade que a obra adquire na
No entanto ainda não há nada de consistente sobre as possíveis alterações feitas por Jacopo de Varazze no conteúdo original de tais hagiografias, porém, a especificidade da coletânea não é motivo para afirmarmos uma total imparcialidade do autor diante dos textos que tinha em mãos. Apesar
reprodução
desses
personagens,
permite
precisarmos o tratamento de compilador dado a Jacopo e identificá-lo como realizador do trabalho autoral na composição da maior de parte de suas legendas e na idealização do conjunto da obra, segundo Néri de A. Souza.
disso, a datação e a autoria das hagiografias
Um ponto importante da obra é a presença da
contidas na L.A. e a da própria obra ainda é motivo
defesa de atos bélicos e do contratualismo nas
de debates por um amplo número de historiadores
narrativas. O primeiro se define por mostrar o
de acordo com o historiador Bruno Gonçalves
universo como local de combate entre as forças do
Alvaro no artigo A espada, a lança e a cruz:
Bem e do Mal, aspecto importante na ideologia do
reflexões acerca da presença da militia na Legenda
cristianismo medieval. Os santos, cujas vidas são
Áurea através das vidas de São Jorge e São
apresentadas por Jacopo de Varazze, são
Mercúrio.
personalidades importantes para a vitória do Bem.
Contudo, para Néri de Almeida Souza a heterogeneidade das fontes utilizadas, formal ou informalmente, por Jacopo de Varazze cede diante de uma observação mais atenta, para revelar uma uniformidade entre as legendas o que dá a obra uma unidade autêntica. Para ela perfil de santidade presente na Legenda Áurea assemelha-
O segundo expõe a participação de todos os elementos da natureza nessa luta, até os homens, devem se posicionar de um lado ou de outro, nessa situação, o papel dos santos era essencial, pois através dos exemplos, como o martírio e a virtude, conquistaram novos seguidores da causa de Deus.21
se em torno dos feitos físicos heroicos dos santos,
Outro ponto importante é apontado por Franco
mas é interessante perceber a presença mítica,
Júnior, pois segundo ele, há atemporalidade dos
como por exemplo, a presença de homens que
fatos relatados nas vidas dos santos, pois Jacopo
abdicaram a vida de riqueza e que depois de
evita historicizar os personagens e ele aponta
mortos continuaram atuando junto a seus devotos
também, que devemos considerar o simbolismo
através de milagres.
presente na Legenda Áurea, a exemplo, as
A caracterização de cada personagem e legenda
etimologias dos nomes dos santos.
não se ocupa em definir individualidades. Na L.A.
Em suma, a Legenda Áurea representou o
interagem santos, santas, fieis, anjos, demônios,
reconhecimento público do equilíbrio entre
homens e mulheres, retratados dentro dos limites
diferentes camadas da espiritualidade, pois o
Néri de Almeida. Palavra de púlpito e erudição no século XIII: a Legenda Áurea de Jacopo de
Áurea através das vidas de São Jorge e São Mercúrio. In:SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da.Hagiografia& História: Reflexão Sobre a Igreja e o Fenômeno da Santidade na Idade Média Central. Andréia Cristina
20SOUZA,
Varazze. Revista Brasileira de História, vol. 22, n.43, p. 70, 2002. 21ALVARO, Bruno Gonçalves. A espada, a lança e a cruz:
reflexões acerca da presença da militia na Legenda
Lopes Frazão da Silva (organizadora).Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, 2008. p. 61.
G N A R U S | 144 cristianismo medieval girava em torno da palavra
vidas dos santos e fieis, as curtas histórias e o
“mito” que era abrigado pela cultura popular e do
constante uso de anedotas. Pois o seu caráter
“rito” resguardado pela cultura erudita. A obra de
breve, possivelmente, proporcionou uma fácil
Jacopo de Varazze registrava a nova harmonia da
memorização para os ouvintes e possíveis leitores.
dupla perspectiva, verbal e gestual.
Entretanto, a pesar da falta de referências sobre
E é notadamente uma obra voltada para a
a difusão da Legenda Áurea, a sedução que a
sacralidade e a autoridade da escrita, com sua
mesma exerceu residia segundo Alain Boureau 23
riqueza informativa destinada à oralidade dos
no fato dela ser composta como um universo de
pregadores
significação acabado e completo, que traça uma
e
interessada
em
atingir
a
sensibilidade de auditores iletrados. Entretanto tinha o objetivo de defender a vida cristã como o meio de alcançar a salvação através
origem e um fim e que nele tudo é dito, onde cada elemento remete à totalidade e todo cristão encontra o seu lugar.
dos santos, que funcionam como exemplos a serem
Em suma, acreditamos que a difusão da L.A. foi
seguidos, contudo eles “são santos porque
possível devido à presença de uma linguagem
nasceram com a marca da graça divina e que a vida
simples, direta, com historietas engraçadas, com
terrena deles apenas serviu para comprovar.”22
elementos fantásticos e mágicos, fáceis de
Néri de Barros Almeida acredita ser difícil que Jacopo de Varazze almejasse que a Legenda Área fosse modelo a ser seguido, já que a renúncia sobre-humana á corporalidade está expressa em grande parte das hagiografias. Tendo em vista que as legendas são claras no caráter excepcional dos santos e demonstram que eles ultrapassam os limites que a natureza reservou aos seres humanos. Logo, acreditamos que a L.A apresentava os santos
memorizar
e
dotados
de
cunho
moral,
evangelizador e civilizatório, alertando acerca dos perigos mundanos e das consequências, muitas vezes cruéis, para aqueles que se recusarem a trilhar o caminho da fé cristã. E que está obra teve como objetivo disseminar e popularizar o discurso religioso nas camadas mais populares devido ao seu caráter conversor, moralizador e educadora partir das hagiografias.
como personagens didáticos e estava voltada para a veneração. Por tanto, a Legenda Áurea foi constituída de forma narrativa e pedagógica, com o claro objetivo de auxiliar os frades pregadores e padres na preparação de seus sermões e isso fica explicito na forma como a narrativa é construída: a
Revisão Bibliográfica Ultimamente
vem
tendo
uma
cresceste
produção acadêmica sobre as Hagiografias presentes na Legenda Áurea de Jacopo de Varazze e cada vez mais há reflexões sobre esse tipo de documentação, que é analisada e discutida através
descrição de acontecimentos maravilhosos nas
FALCI, Priscila Gonsalez. Os martírios na construção de santidades genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea. Dissertação de mestrado na 22
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. 23 BOUREAU, A. La Légendedorée. Le système narratif de Jacques de Voragine (1298).Paris: Cerf, 1984, p.14.
G N A R U S | 145 de algumas temáticas presentes nela, a exemplo o martírio, santidade, o pecado, o Diabo, etc. Dessa forma destacaremos alguns trabalhos produzidos em torno da L.A. e que utilizaremos em
Consideramos o livro Hagiografia e História
reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central organizado Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva significativo, dado
nossa pesquisa. O livro História e Historiografia
que os textos apresentados nesta coletânea tem
sobre a Hagiografia Medieval organizado por Igor
como tema central a hagiografia, diante disso
Salomão Teixeira, essa obra reúne um conjunto de texto de alguns pesquisadores com abordagens variadas, que pesquisam sobre os relatos da vida dos santos produzidos no período medieval. Devido à importância que esta obra tem para este trabalho, por abordar pesquisas sobre a
Legenda Áurea através de uma gama de temáticas, vamos destacar três textos presentes nela. O primeiro é a apresentação escrita por Igor
destacaremos três textos.A espada, a lança e a
cruz: reflexões acerca da presença da militia na Legenda áurea através das vidas de São Jorge e São Mercúrio de Bruno G. Alvaro analisa a presença da temática militar na produção hagiográfica do século XIII com base na L.A. de Jacopo de Varazze.
Santidade e gênero: Vauchez e o modelo masculino de Carolina Coelho Fortes nesse texto Fortes nos apresenta de forma sucinta o modelo de
Salomão Teixeira intitulada de A Hagiografia no
santidade criado por André Vauchez bem como o
Brasil: a Legenda Áurea e os 10 anos da tradução
seu questionamento sobre esse modelo a partir de
brasileira, ela nos apresenta alguns dados sobre as pesquisas realizadas tendo a Legenda Áurea como fonte e sobre a hagiografia medieval, bem como faz uma análise quantitativa da produção acadêmica em torno dessas temáticas. O segundo é o de Neri de Barros Almeida intitulado de Intenção do autor e cultura
folclórica: o martírio na Legenda Áurea, que faz um relato breve de sua pesquisa sobre as produções realizadas em torno da Legenda Áurea, do mesmo modo que sobre a obra em si, as intenções de Varazze ao escrevê-la e a sua preleção por relatos martirológicos. Já o terceiro é A Legenda Áurea:
da tradução, edições, destinatários e modelo de santidade de Carolina Coelho Fortes, ela aborda as edições, os possíveis destinatários da L.A. e o modelo de santidade, pois a mesma considera fundamental para qualquer estudo sobre a
Legenda Áurea.
Frontispício da edição 1497 do Sermones De Sanctis , Biblioteca Nacional da Polônia
G N A R U S | 146 uma perspectiva de gênero e faz uma comparação
Enfim, considerando o contexto vivenciado por
entre o modelo de Vauchez e o de Varazze na
Varazze defendemos que o dominicano afirmou
Legenda Áurea.
valores e posturas políticas dentro de sua obra e
Jacopo de Varazze e a Legenda Áurea: relações
que reuniu o mais vasto material sobre os santos
entre contexto e produção escrito por Priscila
utilizando fontes variadas, caracterizado pela
Gonsalez Falci, tem como base o exame comparativo de dois relatos extraídos da L.A. e a discussão sobre o contexto e a produção da
heterogeneidade temporal e espacial, que foi organizada de acordo com o calendário litúrgico com o propósito de servir de exemplo, combater as heresias, auxiliar a formação dos clérigos e facilitar
Legenda Áurea. Temos que citar também a dissertação de
a composição dos sermões.
mestrado de Priscila Gonsalez Falci intitulada de
Os Martírios na Construção de Santidades Genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea, que tem como base teórica o estudo de gênero e como objetivo central
Leilane Araujo Silva é Graduanda de História pela Universidade Federal de Sergipe e integrante do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste). E-mail para contato: leila_rapunzel@hotmail.com
examinar as estratégias narrativas utilizadas nos relatos sobre os mártires selecionados para a construção de santidades genderificadas. Enfim, os trabalhos aqui citados são algumas das diversas análises feitas acerca da Legenda Áurea e do seu autor.
No século XIII a sociedade medieval passou por transformações,
ligadas
ao
desenvolvimento de um novo ideal de santidade e de vida cristã. Com isso, a Igreja combatia as diversas heresias e os movimentos religiosos laicos, como as Ordens Mendicantes. Diante deste contexto, consideramos como a relação entre a Ordem Mendicante e a Igreja influenciaram a produção da Legenda Áurea, tendo em vista os motivos e os objetivos de Jacopo de Varazze na produção desta obra. Nesse sentido, procuramos entender algumas particularidades do autor e de sua obra.
FALCI, Priscila Gonsalez. Os martírios na
construção de santidades genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea.Dissertação de mestrado na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da.Hagiografia & História: Reflexão Sobre a
Consideração final
diversas
Referências
Igreja e o Fenômeno da Santidade na Idade Média Central. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (organizadora). Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, 2008.
Igor Salomão. História e Historiografia sobre a Hagiografia Medieval.
TEIXEIRA,
Igor Salomão Teixeira (org.). São Leopoldo: Oikos, 2014.
VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vida de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
G N A R U S | 147
Artigo
PREMISSAS, HIPÓTESES E EVIDÊNCIAS: UM OLHAR SOBRE O MAGREB MEDIEVAL1 Por: José Wilton Santos Fraga RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de investigação no qual é destacada a importância do estudo da história das sociedades africanas, especificamente, as que atuaram na região do Magreb entre os séculos XI e XIII. Tendo como foco um contexto no qual, a partir da entrada islâmica em solo Ibérico, em meados do século VIII, pode-se observar o contato com a África se tornar mais constante para os medievais ocidentais e como consequência, a ocorrência de trocas culturais entre o mundo cristão o islâmico. Como na historiografia existiu um debate acerca de um possível “feudalismo islâmico” e o período referido, compreendido como Idade Média Central, foi onde se deu o processo de consolidação das relações senhoriais na Península Ibérica, a investigação levanta como matéria de estudo, a possibilidade da existência de práticas senhoriais no norte da África. Desse modo, aqui se faz uma breve e simples explanação, bem como um breve panorama apontando as nossas primeiras impressões, tais como: algumas características e elementos do cenário abordado, as dificuldades em que se enquadram fontes e bibliografias (bem como alguns nomes que trabalham o Magreb na Idade Média), o caráter interdisciplinar do campo de pesquisa dentro do espaço recortado, o debate teórico acerca do feudalismo e a riqueza da problemática a ser explorada. Contudo, o mais importante é notar a necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, convergindo assim, com o desejo da nova historiografia que se dedica ao assunto, contribuindo com a tentativa de trazer para o cenário acadêmico local abordagens desse campo. Palavras - chave: Idade Média; Feudalismo; Senhorio; Islã Medieval; Magreb.
A
sustentar esse interesse. Primeiro, as trocas intenção de investigar uma possível
culturais entre os mundos do Islã e o da
existência de práticas senhoriais no norte
Cristandade.
Segundo,
do continente africano (domínio do
historiografia
de
Império Islâmico) entre os séculos XI e XIII via
uma
a
existência
hipótese
sobre
na um
“feudalismo islâmico”.
contato com ocidente cristão pela Península Ibérica, está baseada em dois fatores que poderiam
Este artigo está associado ao projeto de pesquisa de iniciação científica Conexões entre a África e a Península Ibérica na Idade Média Central: Um estudo sobre a possibilidade de presença de relações senhoriais em território africano (262014), 1
financiado pelo Programa Jovens Talentos para a Ciência 2015 -2016 /Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Alvaro.
G N A R U S | 148
Cidade Medieval no Magreb (Toscana) - Ilustração para a Oxford University Press Sabe-se
que
o
mundo
islâmico
foi
um
contraponto ao Ocidente e sua expansão implicou
muçulmanas”. Já a respeito do lado mulçumano, ele afirma:
em contados por muitas vezes conflituosos, como as Cruzadas e as guerras de Reconquista, dada a ênfase em ambas as religiões dos dois mundos. Queira quer não, o choque entres as duas culturas foi inevitável e isto deve ser levado em conta. No entanto, não devemos reduzir as relações entre o ocidente e o mundo mulçumano apenas a conflitos de ordem religiosa e/ou militar, apesar do lado cristão ter quase se limitado a isso. Segundo Will Durant (2002, p. 307), “provavelmente dos cristãos resultaram o misticismo, o monasticismo e o culto de santos do maometismo. A figura e a história de Jesus tocaram a alma islamita a apareceram de maneira simpática na poesia e arte
A influência do Islã sobre a cristandade foi variada e imensa. Do Islã, a Europa cristã recebeu alimentos, bebidas, drogas, medicamentos, armadura, heráldica, motivos e gostos artísticos, artigos e técnica industrial e comercial, códigos e métodos marítimos e muitas vezes palavras para designar essas coisas: laranja, limão, açúcar, xarope, sorvete, julepo, elixir, jarro, arcabuz, algodão, sofá, musselina, cetim, fustão, bazar, caravana, cheque, tarifa, tráfego, aduana, magazine, azeite, chalupa, gabarra, chafariz, almirante. (DURANT, 2002, p. 307). Isso apenas a título de exemplos em contextos muitos mais amplos como os da filosofia, da ciência, da literatura, língua e arte. Sem falar da relação comercial apoiada em tratados, os quais favoreciam importações e exportações e até mesmo permitiam
G N A R U S | 149 que os comerciantes ibéricos se instalassem em
Ainda se inclui aos fatores, a deteriorização do solo
albergues (funduk) nos portos e no interior do
que perdera fertilidade por ser explorado ao
território mulçumano no Magreb. Essas trocas entre
máximo e a escassez de mão de obra, a qual era
as duas culturas foram favorecidas por um período
incapaz de recuperar a produção anterior e
de grande tolerância que, de acordo com
encontrava-se escassa pelo fato das pessoas
Mohamed Talbi, tinham como motivos “uma
estarem abandonado as terras, fechando assim uma
simpatia
estratégia
espécie de círculo vicioso. Esse fato nos indica uma
espiritual” (2010, p. 78). Portanto, nenhum era
característica predominante na região no que diz
“estranho” ao outro.
respeito à mão de obra utilizada pela agricultura:
desinteressada
e
uma
essas pessoas não viviam em regime de servidão. A época em análise compreende o período de domínio dos Almorávidas (do século XI a meados do
Sobre as propriedades onde trabalhavam e as
século XII), dos Almóadas, que estenderam um
relações jurídicas do uso da terra no período após a
império de Trípoli à Sevilha entre 1147 e 1269,
queda dos Almóadas, Hady Roger Idris comenta:
constituindo uma civilização ibero-magrebina, e
ocidente cristão. Visto que um dos elementos que
Alguns indivíduos poderosos tinham grandes propriedades, mas a grande maioria dos habitantes do campo vivia e trabalhava em propriedades coletivas. Muitos lotes eram habous privados ou públicos cultivados pelos próprios adjudicatários ou por eles arrendados. Frequentemente, se não na maioria dos casos, a terra era cultivada segundo um contrato concluído com o proprietário: as plantações eram arrendadas a diversos agricultores, e havia várias formas de arrendamento e parceria, sendo o quinto a mais comum. (IDRIS, 2010, p. 118).
marcaram esse panorama foi a dissidência de forças
Por outro lado, a configuração jurídica da grande
de “membros de famílias reinantes, chefes de tribos
propriedade fundiária criada no seio da sociedade
nômades, mercenários cristãos, xeques sufi,
feudal e que no geral determinava os laços de
xarifes”, todos em busca do poder; além da
dependência de indivíduos sob outros, era um
problemática do declínio das terras cultivadas que
fenômeno íntimo do ocidente ligado ao uso da
levou à baixa densidade demográfica da região
terra, e num primeiro momento, não se assemelha à
(abandono das terras), atribuída por Ivan Hrbek
encontrada no norte da África. Pois o que foi posto
(2010, p. 111) ao que ele chamou de “regime feudal
como objeto de investigação e modelo a ser
e instabilidade generalizada”.
encontrado, foi aquela relação dada entre os ditos
posteriormente, a queda desse império e sua fragmentação dividindo o Magreb em três estados governados por dinastias diferentes (a dos Haféssidas, a dos Zaianidas, e a dos Marínidas). O interessante aqui seria tentar compreender as forças dinâmicas internas que levaram ao declínio do poderio político, militar e econômico desses estados dentro do contexto das relações com o
Esse abandono também é associado à invasão dos nômades árabes, a partir do século XI, que passaram a utilizar terras antes cultivadas como pastagens, rompendo um equilíbrio secular entre seu modo de vida e o modo de vida sedentário dos camponeses. 2
ALVARO, 2013, passim;
senhores e camponeses2 (ou “vilões”, os habitantes da vila ou da aldeia, de acordo com a concepção da época no contexto ocidental). Onde os primeiros adquirem a sua condição ao receberem de outros senhores com mais poderes que os seus (isso dentro
G N A R U S | 150 das chamadas relações feudo-vassálicas) uma
sociedade dita feudal, é um mundo muito
propriedade na forma de feudo, o qual deve ser
diferente.
considerado como “a concessão de um poder senhorial, que pode dizer respeito a uma terra e
A historiografia espanhola desde a década de 70
seus habitantes, mas pode também limitar-se a um
vem discutindo sua existência na própria Península
direito particular, por exemplo, o de exercer a
Ibérica com configurações que possam sustentar
justiça, de recolher uma taxa ou cobrar um
essa ideia e consequentemente a de práticas
pedágio” (BASCHET, 2006, p.123). Já os segundos,
senhoriais nesse território que fora tempos antes
são aqueles que habitam na propriedade do senhor
posses dos mulçumanos. Obras de historiadores e
e dependem dela para produzir, concretizando
de arqueólogos produzidas em bom número a
assim um laço que lhes atribuem uma série de
respeito da problemática de aldeias fortificadas e o
obrigações.
acastelamento
na
região
são
avanços
na
historiografia que serviram de modelo para Isso são apenas linhas gerais de intrincadas e complexas dentro
relações de
rearranjo
um sócio
trabalhar o espaço rural no norte da África, assim afirmam
Mohamed
Ouerfelli
e
Élise
Voguet (2009).
espacial (o senhorio) onde pode-se ainda
Campo
este,
destacar a figura do
mundo
castelo (e também das
ocidente mulçumano
fortificações)
no medievo, muito
como
do
carente de estudos.
elementos constituintes
rural
o
desse
Porém
as
poucas
cenário. Porque além
iniciativas
já
nos
de ser a residência, o
proporcionam a noção
castelo era também a fortaleza de um senhor3. Ele
de que se trata de uma área com possibilidades de
controlava todas as terras circunvizinhas por meio
abordagens, pois fizeram e estão a fazer o uso de
de uma tropa montada nele aquartelado4.
fontes diversificadas e agregando pontos de vistas novos com a contribuição de outras áreas do
Sendo assim, não é demais lembrar ou esclarecer que a proposta de investigação colocada aqui
conhecimento como a arqueologia, a antropologia, a sociologia, a geografia e o direito.
apoia-se na discussão do feudalismo como uma “categoria de análise”, visto que para onde se
Mesmo considerando todos esses elementos
pretende levar esse modelo teórico que define
enunciados, à primeira vista, tentar considerar que
relações entre homens e o uso da terra inserido no
puderam ter existido práticas senhoriais ou
conjunto de elementos que constituem uma
elementos de uma sociedade feudal iguais ou
ZAHAR, 1997, passim; Em Portugal, a configuração política e social não permitiu que o uso do castelo fosse o mesmo do restante da Europa. Interessante então, procurar no Magreb se
havia uma configuração própria e se havia algo que desempenhasse o papel estratégico do castelo como o reduto do senhor, de acordo com os trabalhos referidos logo à frente.
3 4
G N A R U S | 151 semelhantes ao que ocorreram na Europa em domínios mulçumanos, não passa apenas de uma dose de eurocentrismo. Pelo contrário, o método comparativo e uma análise sincrônica desses elementos em conjuntura são plausíveis. Na historiografia já ouve caso similar. Lógico que só amparando-se em fontes é que se pode desenvolver
o
ofício
do
historiador
com
credibilidade. Enquanto isso ainda não é possível, vale o intuito de buscar novas linhas de investigação promovendo o estudo de áreas negligenciadas baseando-se em trabalhos já realizados. Em virtude disso, é essencial citar um debate historiográfico iniciado na década de 30 pelo
contestada posteriormente. As pesquisas pioneiras de Claude Cahen sobre o iqṭāˁ Oriental, incluindo o Egito, têm demonstrado os limites dessa correlação. O autor distingue quatro características básicas do sistema oriental, suficientes para dissociar claramente do feudalismo ocidental. São elas: - O controle do Estado sobre a aquisição da renda do iqṭāˁ; - O aspecto não hereditário da concessão; - A raridade de concessões atribuídas a uma pessoa para toda a vida; - O fato dos muqṭaˁ-s não desfrutarem de uma autoridade local independente do governo central. (BENHIMA, 2009, p. 28-29, tradução nossa).
historiador israelense Abraham Poliak. Ele tentou um estudo comparativo avançando a hipótese de
É bem verdade que a dissolução desse equívoco
um "feudalismo islâmico". O debate não teve muito
configura um rumo diferente na investigação por
fôlego e logo foi questionado por estudos do
retirar como evidência o uso do iqṭāˁ equivalente a
historiador francês Claude Cahen na década de 60.
um feudo. Porém, sabe-se que as sociedades
Dentre outros aspectos, o interesse em torno de
mulçumanas formadas no norte da África, mesmo
uma forma de concessão territorial/administrativa
herdando
praticada pelos estados mulçumanos com o
sociedades genuínas com seus próprios interesses
objetivo de obter a lealdade das suas elites e
políticos
consolidar sua autoridade, foi um ponto em
aprofundamento nos argumentos que levaram a
questão. O termo em árabe para essa forma de
esses historiadores a defenderem essa hipótese.
concessão dentre outras é iqṭāˁ. E foi muitas vezes confundida ou mal comparada com o feudo das sociedades ocidentais.
historiográfico
e
econômicos.
do
Oriente,
Cabe
eram
então,
um
Desse modo, essa proposta que se apresentou converge com o desejo da nova historiografia que se debruça sobre o espaço rural do Magreb
Yassir Benhima simplifica a explicação do equívoco
características
cometido
por
historiadores a respeito da concessão iqṭāˁ:
O termo iqṭāˁ designa "uma forma de concessão administrativa” praticada pelos Estados muçulmanos, que foi muitas vezes confundido, injustamente, com o feudo. Esta aproximação praticamente excessiva entre o sistema iqṭāˁ e o feudalismo Ocidental, certamente motivado pelo eurocentrismo de alguns orientalistas ou até mesmo por pressupostos marxistas, felizmente foi
medieval, que é sair de uma espécie de comodismo intelectual, o qual utiliza as informações contidas nas poucas fontes existentes de maneira repetitiva e estereotipada, limitando novas abordagens, dificultando um entendimento melhor das relações que as populações locais possuíam com o uso da terra. “Se a identidade da tribo ou da aldeia se forja, por exemplo, sobre a manutenção de uma mesquita, a apropriação da terra também é crucial para a construção de comunidades rurais”, é assim
G N A R U S | 152 o pensamento de Mohamed Ouerfelli e Élise Voguet (2009). Enfim, o que esses poucos parágrafos escritos acima trazem um pequeno esforço, porém não menos importante, de trazer para o cenário acadêmico
local
abordagens
desse
campo,
reconhecendo a importância da necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, mas que vem, cada dia mais, tomando fôlego e espaço não só na África e Europa, como também no nosso país. José Wilton Santos Fraga é graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe; Bolsista do Programa Jovens Talentos para a Ciência/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e integrante do Vivarium: Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste). Contato: josewilton55@hotmail.com
Referências Bibliográficas ALVARO, Bruno Gonçalves. As Veredas da
Negociação: Uma análise Comparativa das Relações entre os Senhorios Episcopais de Santiago de Compostela e de Sigüenza com a Monarquia Castelhano-Leonesa na Primeira Metade do Século XII. p. 31. Tese (Doutorado em História) – Programa
de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. BASCHET, Jérôme. Ordem senhorial e crescimento feudal. In:___. A Civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 122-137. BENHIMA, Yassir. Note sur l’evolution de l’iqṬaˁ au maroc medieval. L’Institut historique allemand. Paris: 16, 2009, p. 27-44. DURANT, Will. Grandeza e decadência do Islã. In: ______. A idade da fé: História da civilização Medieval, cristianismo, islamismo, judaísmo, de Constantino a Dante. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. Cap. 24, p. 278-309. HRBEK, Ivan. A desintegração da unidade política no Magreb. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 4, p. 89-115. IDRIS, Hady Roger. A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do
século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 5, p. 117-131. OUERFELLI, Mohamed. VOGUET, Élise. Introduction: Le monde rural dans L’Ocident musulman medieval. REMMM: Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée, França, n. 126, nov. 2009. Online: disponível na internet via http://remmm.revues.org/6359. SAIDI, O. A unificação do Magreb sob os Almóadas. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 2, p. 17-63. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Feudalismo. In:___. Dicionário de conceitos históricos. 2. ed., 2ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2009, p.150-154. TALBI, Mohamed. A expansão da civilização
magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História
geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 3, p. 65-87. ZAHAR, Jorge (Ed.). Castelos. In:___. Dicionário da Idade Média. [s.n.] Rio de Janeiro: 1997, p. 78-80.
G N A R U S | 153
ENTREVISTA: BRUNO LEAL Por Fernando Gralha e Cindye Esquivel
N
osso entrevistado deste número é o que
Humanidades Digitais”, além de também se dedi-
podemos considerar um historiador
car aos estudos Judaicos no Brasil. Historiador com
multimídia, caminha por guerras, pre-
vasta produção acadêmica é doutor em História so-
conceitos, novas tecnologias e redes sociais é o cri-
cial pela UFRJ e professor da Universidade Federal
ador da Rede Social “Café História” - a maior rede
Fluminense. Tudo isso faz do professor Bruno Leal
social online de história da internet1, coordenador
um ótimo “papo” no campo da História, da mídia e
de uma rede de pesquisadores unidos pela língua
da produção acadêmica, esperamos que gostem
portuguesa e pela inclusão da perspectiva digital
tanto do “papo” como nós.
em seus horizontes de pesquisa, a “Associação das
1
http://cafehistoria.ning.com
G N A R U S | 154 O senhor poderia começar falando sobre o processo de criação da rede social Café História? Quando e como surgiu a ideia, o que o motivou a criá-la? A ideia base do Café História surgiu os durante meus anos de graduação, entre 2003 e 2008. Eu cursava as faculdades de história e de comunicação social. Com o passar dos anos, eu me convenci cada vez mais que essas minhas duas áreas de formação podiam dialogar muito mais. E aí, eu gostaria de deixar bem claro uma posição que eu defendo com bastante veemência em meu trabalho: todo historiador é um comunicador. A comunicação está presente em cada aspecto do ofício do historiador. Artigos, teses, conferências, aulas, pesquisa, divulgação. O problema é que nem sempre nos damos conta dessa premissa. E quando não nos damos conta disso, não pensamos de forma sofisticada na elaboração das nossas estratégias de comunicação. Isso foi pra mim um grande motivador. E, claro, na época, eu estava bastante entusiasmado com os recentes avanços tecnológicos: redes sociais, popularização da banda larga, o iPhone, e etc. Tínhamos as ferramentas ideais para aproximar ainda mais a história da comunicação. Meu desejo era criar um espaço para trocas entre pesquisadores e divulgação
da história. Algo que, vale dizer, não existia. Tentei
várias plataformas. Criei blogs e comunidades no Orkut. Não foram experiências tão bem sucedidas, mas eu segui adiante. Nos primeiros dias de 2008, conheci uma plataforma norte-americana chamada Ning. Em resumo, o Ning – palavra chinesa que significa “paz” em português – permite que qualquer pessoa cria a sua própria rede social. O Ning era gratuito, altamente intuitivo e encontrava-se disponível em língua portuguesa. Na mesma hora eu entendi que era daquilo que eu precisava: de uma rede social online de história. Foi assim que começou o Café História, quase como uma epifania. Trabalhei dias e dias seguidos. O processo criativo levou aproximadamente duas semanas. Foram várias etapas: criação do nome, desenho das seções, inserção dos primeiros conteúdos, desenvolvimento da identidade visual e, por fim, divulgação. Na primeira semana, tínhamos mais ou menos 50 pessoas cadastradas na rede. Depois de um mês, já tínhamos rompido a casa dos mil usuários. Nos anos seguintes, a rede continuou se expandido. Hoje, temos mais de 60 mil perfis cadastrados. Mas nosso alcance vai muito além. Além do Ning, que continua sendo nossa "espinha dorsal", nós temos também
um canal no Youtube, o Café História TV, além de
G N A R U S | 155 perfis no Facebook, Twitter, Google Plus e Insta-
Bem poucos agem desta forma. Felizmente. Por se-
gram. Alcançamos por volta de 500 mil pessoas, no
rem colaborativas, as redes sociais podem funcio-
Brasil e no exterior.
nar sozinhas, no seu próprio ritmo. Mas uma coisa é certa: quanto mais intenso for o trabalho de media-
Como o senhor avalia hoje as características dessas interações que o Café História medeia? Como vê o desenvolvimento disso? As pessoas o procuram para divulgar coisas, conversam? A internet é um ambiente bastante imprevisível. Nenhuma fórmula é lá muito confiável para explicá-la. No entanto, há alguns comportamentos que se repetem no ambiente virtual. Em uma rede social, você tem vários tipos de usuários: há aqueles, por exemplo, que interagem todo os dias com a rede, são pessoas que passam boa parte do dia inteiro conectadas, comentando notícias, abrindo fóruns, enviando mensagens para outros participantes, publicando textos. Esses tipos são raros e desenvolvem um profundo sentimento de propriedade da rede. Há outros, por outro lado, que são mais low profile, que acessam a rede apenas para ler, mas nunca para comentar. E essas são apenas duas gradações de usuários. Há ainda aqueles que
ção e dinamização, maior será a qualidade das interações que ocorrem nesta rede. E sim, as pessoas me procuram bastante para divulgar eventos, conferências, livros, revistas, programas, etc. No fundo, as mensagens que recebo todos os dias vão muito além disso. Certa vez, uma professora me escreveu pedindo ajuda. Ela tinha brigado com a coordenadora pedagógica da escola em que trabalhava e queria saber o que fazer. Em outra ocasião, um homem me enviou a foto de um colar e pediu que o Café História avaliasse a peça, pois ele queria realizar um leilão. Já perdi a conta de quantos trabalhos escolares recebi para serem feitos e pedidos de orientação de trabalho de conclusão de curso. Muitos desses casos passam anos-luz do propósito da rede. Mas eles mostram o quanto o Café História se tornou uma referência nos últimos anos. É bastante legal testemunhar esse reconhecimento.
participam de fóruns, mas não os abrem, aqueles que conversam entre si, mas não interagem com o conteúdo, etc. Gosto de pensar rede social como uma cidade. Uma rede social, tal qual uma cidade, possui muitas vias, pessoas diferentes, zonas urbanas desiguais, assimétricas, coisas que fogem ao controle, etc. Os usuários do Café História, em geral, são muito bons. São pessoas bem informadas, educadas, que gostam de colaborar e compartilhar informações. Há exceções, evidentemente. Vez ou outra aparecem negacionistas do Holocausto, fanáticos religiosos ou gente que está ali para fazer propaganda política ou simplesmente desestabilizar o ambiente, o chamado troll. Mas isso é minoria.
O senhor consegue saber o perfil do seu público? É específico da área de História ou outros profissionais também se associam ao Café História? Há aproximadamente três anos, eu fiz uma pesquisa espontânea com usuários do Café História. Foram cerca de 800 respondentes. Embora não seja uma pesquisa muito recente, acho que as coisas não mudaram tanto desde então. Essa pesquisa revelou, por exemplo, que a rede é acessada por pessoas de todos os estados brasileiros. A maioria, contudo, provém de São Paulo e Rio de Janeiro, com 18,3% e 17,1%, respectivamente. Em termos de faixa etária, a maior parte dos nossos visitantes, 38,2%, é formado por pessoas que possuem mais de 40 anos.
G N A R U S | 156 54% são mulheres e 46% são homens. 30,5% pos-
ato pós-guerra, contudo, muitos judeus letões con-
suem superior incompleto e 27,3%, completo.
testaram a história contada por Cukurs. O aviador
49,6% são solteiros e 35,1% casados. A maior parte
foi apontado por vários sobreviventes do Holo-
(80,3%) acessa a internet de casa, sendo o Café His-
causto na Letônia como um dos principais respon-
tória acessado quase todos os dias ou semanal-
sáveis pela morte de milhares de judeus durante a
mente para mais da metade. A maior parte dos usu-
ocupação nazista, além do incêndio de sinagogas,
ários são de classe média. Quase 70% já cursou ou
perseguições, violação de cemitério judaico, desa-
cursa a faculdade de história.
propriação de imóveis, entre outros crimes bastante graves. Em 1944, perto da Letônia cair nova-
O senhor recentemente terminou seu doutorado, a qual temática ele se refere? Como foi a experiência da pesquisa? Fiz meu doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu trabalhei com uma questão que é bastante conhecida pelas pessoas, principalmente por causa da mídia e da cultura de massa, que produziram muito material a respeito, mas que ainda é muito pouco explorada pela historiografia: criminosos nazistas no Brasil. Eu pesquisei, mais especificamente, o caso do letão Herberts Cukurs. Cukurs era um aviador famoso na Letônia do pré-guerra. Na década de 1930, ele realizou dois voos de longa distância com aviões que ele próprio construiu. O primeiro até a Gâmbia, na África, e o segundo até Tóquio, no Japão. Por conta desses dois raides, ele se tornou uma espécie de herói nacional. Ganhou prêmios, reconhecimento internacional e até mesmo uma propriedade do governo letão. Na década seguinte, contudo, Cukurs desempenhou um papel muito menos nobre. Durante a ocupação nazista da Letônia, ele colaborou com os alemães. Ele fez parte de um grupo colaboracionista chamado “Comando Arajs”. Cukurs disse que foi apenas mecânico das forças de ocupação, além de soldado no front russo, movido pelo anticomunismo e pelo medo de uma nova ocupação soviética. No imedi-
mente nas mães dos soviéticos, Cukurs deixou o país. Foi para a Alemanha e depois para a França. Em quatro de março de 1946 chegou ao Brasil. Nos primeiros anos no país, Cukurs conseguiu montar uma nova vida. Na então capital federal, Cukurs levou pela primeira vez a Lagoa Rodrigo de Freitas os “pedalinhos”, que até hoje enfeitam esse que é um dos principais pontos turísticos do Rio de Janeiro. O negócio de divertimentos foi um sucesso imediato. Cukurs tornou-se bastante conhecido da população carioca. Era protagonista de várias reportagens. Ninguém sabia naquela época de seu passado de colaboração com os nazistas. Sabia-se apenas o que Cukurs contava aos jornais: de suas proezas como aviador, de sua fuga do comunismo e de seu trabalho de revitalização da Lagoa. Em junho de 1950, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro veio à público denuncia-lo como criminosos de guerra nazista. A notícia caiu como um escândalo. Os jornais se sentiram enganados por Cukurs. A coletividade judaica, organizações não governamentais e setores do legislativo, apoiados em grande parte pela mídia, iniciaram uma enorme campanha pública pela expulsão de Cukurs e contra a sua naturalização, que estava naquele início da década de 1950 muito próxima de sair. A mídia e até mesmo alguns historiadores dizem que as auto-
G N A R U S | 157 ridades brasileiras protegeram Herberts Cukurs, as-
que com certezas quanto a culpabilidade de Cu-
sim como teriam protegido toda sorte de crimino-
kurs. Por isso, nunca o expulsou. Porém, e isso é im-
sos nazistas no período do pós-guerra. Quando exa-
portante dizer, o governo brasileiro também nunca
minamos a fundo o caso, no entanto, vemos que a
lhe concedeu a sua naturalização, nem mesmo
coisa é bastante diferente. A perspectiva da “prote-
quando tinha argumentos para faze-lo. Isso pode
ção” ou do “acobertamento” não funciona muito
ser explicado pela força política mobilizada por vá-
bem. Ela não explica o Caso Cukurs. Cukurs não foi
rias entidades civis organizadas, por setores do pró-
expulso do país, é verdade. Mas a documentação
prio governo, por parte da sociedade brasileira e,
mostra que isso se deu em boa medida pela cons-
claro, por diversas instituições judaicas. No âmbito
trução problemática dos argumentos jurídicos le-
governamental, você encontra ex-integralistas atu-
vantados contra o letão. Os depoimentos dos ju-
ando no caso e até mesmo discursos antissemitas.
deus sobreviventes, que eram a base da acusação,
Porém, nada disso explica o caso a partir do clichê
não tinham sido tomados tendo em vista o rigor ju-
mal ajambrado de que o Brasil favoreceu delibera-
rídico. Minha pesquisa mostra que a própria Fede-
mente criminosos nazistas no longo período do
ração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro
pós-guerra. É preciso tomar muito cuidado com es-
admitia isso. Não que seus dirigentes duvidassem
sas fórmulas universais e autoexplicativas. Elas não
da palavra dos depoentes. Isso nunca aconteceu.
dão conta da complexidade da realidade brasileira
Mas eles sabiam que aqueles documentos não ti-
no pós-guerra. Enfim, foi uma pesquisa muito difí-
nham força suficiente para convencer o Ministério
cil, mas muito prazerosa de fazer. Para escreve-la,
da Justiça e Negócios Interiores a expulsar Cukurs.
viajei a Letônia e Uruguai. Pesquisei em diversos ar-
Essas evidências se tornaram ainda mais frágeis
quivos no Brasil e no exterior. Lidei com mais de
quando autoridades do Foreign Office, o Ministério
cinco mil páginas de documentos.
das Relações Exteriores da Inglaterra, uma vez abordadas pelo governo brasileiro, não colabora-
Os judeus no Brasil tiveram uma trajetória muito diversa da dos outros judeus pelo mundo?
ram ativamente com a investigação. Os ingleses
Esta é uma pergunta muito difícil de ser
forneceram informações equivocadas sobre o co-
respondida de forma simples. Cada imigrante, cada
mitê que tinha reunido as evidências contra Cukurs
família de imigrante possui uma história bastante
e demoraram uma eternidade para responder as so-
própria. As pessoas sentem e experimentam a vida
licitações brasileiras. Chegaram até mesmo a usar
de uma forma singular. Seus êxitos, insucessos,
uma tática conhecida como wait and see, que con-
ressentimentos,
sistia basicamente em silenciar sobre um tema até
significadas a partir de variáveis objetivas e
que as pessoas interessadas nele simplesmente se
subjetivas. Neste sentido, aqueles judeus que
esquecessem dele. O governo brasileiro, que nunca
vieram para o Brasil construíram trajetórias de vida
colocou o Caso Cukurs ou mesmo a questão dos cri-
diferentes daqueles que foram para outros países.
minosos nazistas como ponto principal de sua
Mesmo quando falamos nas trajetórias dos judeus
agenda no pós-guerra, acabou com mais dúvidas do
que vieram para o Brasil estamos falando de um
saudades,
memórias
são
universo bastante diverso. A ideia de “comunidade”
G N A R U S | 158 pode nos passar a falsa sensação de falar de um
houvesse a colaboração de franceses, italianos,
grupo homogêneo, que partilha das mesmas
japoneses, húngaros, poloneses, etc. Isso coloca a
memórias e trajetórias. Mas não é assim. As pessoas
coisa em uma outra perspectiva. Além disso, quanto
são diferentes e isso aparece dentro do grupo de
mais sabemos sobre a presença de criminosos
uma maneira quase sempre muito evidente. Por
nazistas no Brasil ou mesmo da participação
outro lado, a cultura judaica é muito forte. Então,
brasileira na Segunda Guerra Mundial, mais somos
você vai encontrar em vários países algumas
capazes de entender que o Holocausto é um tema
recorrências: rituais religiosos, sinagogas, clubes,
da história que nos diz respeito. O brasileiro ainda
associações, ideologias, querelas, tensões, formas
conhece pouco a história do Holocausto, mas
de organização, militância, etc. Neste ponto, a
conhecemos melhor o tema do que há 20 anos.
trajetória dos judeus no Brasil pode ser aproximada
Hoje, o Holocausto não é mais um box dentro de
da trajetória de judeus que foram para outros
uma capítulo da II guerra.
países, que também reconstruíram suas vidas com base “cultura judaica” (que também é múltipla e não una). Não estamos falando de uma forma, de uma fórmula, mas você vai encontrar similitudes na diáspora, claro.
Ao longo desse tempo de funcionamento do Café História e durante sua trajetória acadêmica e profissional como o senhor avalia o campo da História? Tem notado mudanças significativas? Outra pergunta difícil. (risos). Eu sou bastante otimista quanto a isso. Os historiadores são
Qual o grau de importância que o senhor percebe nos estudos sobre o holocausto na sociedade brasileira?
bastante respeitados em nosso país, na minha
Acho que durante muitos anos os brasileiros viram
Brasileira de Letras, temos historiadores prestando
o Holocausto como algo que dizia respeito
consultoria à diversas empresas, temos muitos
basicamente a judeus e alemães. Algo bem
historiadores na mídia, comentando fatos que em
afastado da realidade brasileira. Essa perspectiva,
anos anteriores eram comentados apenas por
no entanto, tem mudado. Acho que hoje parte dos
cientistas políticos ou sociólogos. Temos ótimos
brasileiros já entende que o aquilo aconteceu com
cursos de graduação e de pós-graduação. A
os judeus durante a guerra é um crime contra a
regulamentação da profissão está sendo discutida
humanidade. Esse crime extrapola nacionalidades
com força total. Os professores escolares já não
ou grupos sociais específicos. É claro que os nazistas
estão mais desamparados: temos mestrados
foram os principais perpetradores. Mas a escala de
profissionais extremamente importantes, como o
violência não seria esta que conhecemos se não
ProfHistória. Nossos eventos estão sempre cheios.
opinião. Nós temos historiadores na Academia
G N A R U S | 159 Os projetos de digitalização vão de vento em
metodologia, na crítica das fontes, uma escrita
pompa. A tecnologia tem nos ajudado. Eu sou talvez
altamente controlada, erudita, que passa pelo crivo
muito novo para fazer comparações com o passado.
dos
Mas eu diria que vivemos um bom momento. É um
desenvolvimento
bom momento para ser historiador.
conhecimento. Não se trata da história do senso
pares,
uma e
história que
sempre visa
em
construir
comum, que é sinônimo de passado. Essa história, Para finalizar temos duas perguntas que já são tradicionais a nossos entrevistados: o que é história? Qual o conselho que o senhor daria àquele aluno do primeiro período que está agora iniciando nos estudos da História? Quando eu penso na história que eu faço na
por fim, pode ser feita tanto para “iniciados” na matéria quanto para os leigos e o grande público. Em relação ao conselho, eu vou repetir o que eu sempre digo aos meus alunos: leia muito, leia de tudo,
seja
perfeccionista,
conheça
outras
universidade, eu penso em historiografia. E aí
disciplinas, continue estudando, acredite na força
estamos nos referindo a uma história baseada em
de sua geração.
G N A R U S | 160
Coluna:
PARA LER O CINEMA Por Renato Lopes
D
esde as aberturas teóricas no seio da
outros campos do saber, como a sociologia e a
ciência histórica, que ocorreram na
antropologia.
segunda metade do século passado, o cinema, e a imagem como um todo,
deixaram de ser meras ilustrações para algum conhecimento histórico previamente expresso em palavras e esquemas. O cinema passou a constituir uma matriz teórica importante na edificação do conhecimento histórico e como tal ganhou sua devida importância, além de dialogar com vários
Com as severas críticas feitas às abordagens teóricas calcadas em um historicismo determinista e num positivismo acrítico,1 passam a ganhar espaço conhecimentos históricos realizados a partir de uma leitura cultural, onde a sociedade é uma representação coletiva, com suas estruturas socialmente construídas. O filme é tanto uma forma de representação da coletividade ou um veículo interpretante de realidades históricas específicas,
LE GOFF, J. História e Memória. Campinas;SP. Editora UNICAMP. 2013.p.24 1
G N A R U S | 161 servindo também como um suporte de linguagem para o estudo da ciência
histórica2.
social capaz de gerar e ressignificar um
A partir de uma
determinado discurso a partir das condições
leitura histórica do filme podemos alcançar o
existentes na linguagem cultural do meio onde é
entendimento acerca daquela sociedade que o
produzido.4
produziu, o recepcionou, as memórias que infiltram
Todavia
suas estruturas e até
devemos
ressaltar que o filme não
mesmo as vinculações
traz
institucionais dos agentes
somente
motivações
sociais responsáveis pela
as
ideológicas
de seus realizadores, há
sua produção.
questões tangentes a sua
O cinema é portador de
produção,
que
ficam
uma gramática própria, e
evidentes quando o filme
também
é lançado em um circuito
carrega
ou
apropriando-se de uma
de
série
espectador, a despeito de
de
códigos
referenciais.
e
exibição
Assim
qualquer
análise
imposta
e
o
ortodoxia
mescla-se
à
histórica
do
filme
também
uma
análise
liberdade de se apropriar
dos
dos temas ali levantados.5
componentes técnicos e
Supera-se a ideia de que
artísticos, que convergem
o espectador é um agente
para a elaboração do
passivo, pois a forma
estética,
pelos
realizadores,
tem
seus a
discurso fílmico, da representação encarnada pelo
como este irá receber a mensagem exerce
filme. A intenção é justamente, através de seus
influência tamanha a partir da diversidade de
arranjos técnicos e teóricos, tender a manipulação
sentidos criados pelos que assistem a obra6 [6].
de sentimentos e emoções dos espectadores, alterando suas percepções e mentalidades e, por conseguinte, até mesmo seu papel de ator social na
Em relação as suas leituras históricas podemos dividir os filmes em
cadeia dos acontecimentos históricos.3 De modo
- Filmes Históricos: englobam os filmes épicos e os
que devemos entender o filme como uma prática
de ambientação histórica. Os primeiros estetizam
BARROS. José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In: NÓVOA, Jorge & BARROS, D´Assunção (Orgs). Cinema-História: Teoria e representações sociais no cinema/Jorge Nóvoa [et al] – Rio de Janeiro, Apicuri, 2008. p. 44 3 Furhamar, Leif. Cinema a política/por/Leif Furhamar/e/Folke Isaksson. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976. p.148 e 149 4 TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997., p.51 e 52
5
2
NAPOLITANO, Marcos. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; USP: História social. Série Coletâneas. P.65 6 JELIN, Elizabeth, Los trabajos de La memória. Apaud: MENDES, R.A.S. Argentina e Chile – Memórias em disputa e perspectiva democrática. Revista Intellectus. Ano 7, vol.2.2008. ISSN 1676-7640
G N A R U S | 162 ou representam processos históricos conhecidos,
mera ilustração de um conhecimento prévio.
que podem representar uma versão romanceada de
Colabore para que o cinema não seja só visto, como
eventos ou vida de personagens históricos.
também lido.
- Filmes de ambientação histórica: se referem a
Até a próxima.
enredos criados livremente, mas sobre um contexto histórico bem estabelecido, tendo na condução de seu fio narrativo personagens fictícios. Há ainda os documentários históricos, que passam na clivagem de
serem
trabalhos
de
Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina, agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema e colunista especialista em cinema da Gnarus Revista de História.
representação
historiográfica, só que em formato áudio visual, e diferenciam-se das categorias anteriores devido ao rigor documental em que se apoiam. O século XX é notadamente o século da imagem e por conseguinte, do cinema também. Foi a forma de expressão artística que mais alcançou corações e mentes em todas as latitudes e longitudes do globo terrestre ao longo do século passado. Foi a ferramenta mais usada com a intenção de doutrinação e tornou-se uma prática social. Não houve um único momento do século XX onde o cinema estivesse “em baixa” ou “fora de moda”. Utilizado para fins políticos, sociais e ideológicos observa-se algumas formas de fazer cinema que caíram em desuso e algumas estéticas que acabaram superadas por outras. Toda essa dinamicidade que envolve a história e a realização do cinema merece ser estudada com cada vez mais acuidade. O cinema, enquanto expressão artística e enquanto ciência, ainda tem muito a nos dizer. E s novas tecnologias usadas para sua realização, seja em pequena, média ou larga escala, constituem um mosaico de possibilidades de leituras possíveis sobre o tempo em que vivemos. Sempre que possível usem o filme em trabalhos, em salas de aula, em pesquisa. Ajude ainda mais a desconstruir a visão arcaica de cinema como uma
PARA SABER UM POUCO MAIS: BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru – SP: EDUSC, 2004 CABRERA, Julio. O cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro, Ed. Rocco CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos, SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007 CHARTIER, Roger. A História Cultural - entre práticas e representações. DIFEL. Lisboa FERRO, Marc. Cinema e História – São Paulo: Paz e Terra, 2010 STAM, R. Introdução a Teoria do Cinema. Campinas, SP. Papirus, 2003 (Coleção Campo Imagético) XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade a transparência. São Paulo, Paz e Terra. 2008.
G N A R U S | 163
Coluna:
Fotografias da História
A FOTOGRAFIA DE PIERRE VERGER: MAGIA E PRODUÇÃO DE SENTIDO. Por: Rafael Eiras
P
ierre Verger nasceu em Paris, no dia 04 de
fossem” bichos estranhos “, mas como gente da
novembro de 1902. Fotógrafo desde 1932
qual me tornei amigo”. (VERGER, 1997 p. 40). Assim
passou 14 anos viajando pelo mundo
ele acabou descobriu o Candomblé, tornando-se
ganham do a vida fotografando diversos países. No
não só um estudioso e fotografo do culto aos
ano de 1946 Verger desembarcou em Salvador e foi
Orixás, como também um iniciado.
logo seduzido pela riqueza cultural da cidade. Como fotografo procurava as periferias e a companhia do povo, dos lugares mais simples. Como ele mesmo relata: “Desde muito cedo me interessei pelo pessoal que lá vivia: não como se
Ao contrário de seus contemporâneos que entendiam o ato de fotografar como um momento em que se “roubava” os instantes, produzia suas imagens a partir de uma postura “passiva” diante dos seus alvos, suas fotos nascem de uma relação
G N A R U S | 164 íntima e longa ou, ainda, “desinteresada”, quase indolente ou movida totalmente pelo acaso que nasce de uma longa relação:
Ele não “rouba” a foto: se esforça para ser aceito como uma pessoa comum de modo que esqueçam seu estatuto de fotógrafo. De outra parte, toma suas fotos de maneira mais depreendida possível, sem dar importância aos priori geométricos e à composição rigorosa das formas. Em suas imagens, a vida humana e suas manifestações espontâneas prevalecem. Estas são apreendidas no justo momento que fazem eco à sensibilidade do fotografo.”( SOUTY, 2008, p.213)
Verger parece tirar uma fotografia guiada por seu inconsciente, elaborando-a através de uma técnica passiva no qual, a princípio, independeria de uma racionalidade.
Como
se
apoiasse
sobre
o
disparador da câmera sem saber por que. No entanto o que seu olhar de fotógrafo enxerga é justamente os conceitos sobre o que aprendeu com a sua passividade. Ao contrário de Cartier-Bresson ele não prepara o instante como um caçador prepara a armadilha, mas o instante se apresenta a ele quando seu inconsciente reconhece na cena algum conceito importante. (SOUTY, 2008). Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe rendeu diversas fotografias e pesquisas sobre os rituais de origem negra na África e no Brasil. Verger tornou-se um doutor autodidata, ganhando o título de Doutor em Estudos Africanos, na Sorbonne em Paris. Suas viagens entre o Brasil e a África foram constantes; passou a viver como um mensageiro entre esses dois lugares, transportando informações, mensagens, objetos e presentes. A intimidade com a religião, que tinha começado na Bahia, facilitou o seu contato com sacerdotes e autoridades em ambas as regiões.
“Voltando a minha viagem à áfrica, o fato de já ter participado um pouco das cerimônias de Candomblé na Bahia, da
minha cabeça ter sido dedicada a Xangô (...) Possibilitou que o meu retorno fosse diferente da primeira visita. Não era um turista curioso ou um antropólogo que chegava cheio de papeis perguntando coisas absurdas” (VERGER, 1997 p. 40)
Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações e livros. Em Fevereiro de 1996, Pierre Verger faleceu, deixando um legado de extrema importância para o estudo das religiões afro-brasileiras. Revelando com suas fotografias uma autêntica expressão cultural não só do Brasil mas do mundo, ao demostrar que as mesmas relações mágicas, ritualísticas e míticas coexistiam em outras partes do mundo. Como exemplo clássico destas relações, temos na obra de Verger o Candomblé no Brasil, nome dado ao culto das divindades provenientes de certas regiões do imenso continente africano. Ele representa para seus iniciados as tradições dos antepassados escravizados reelaboradas em uma religião originada de diversos povos que tinham culturas diferentes, falavam línguas diferentes e cultuavam suas divindades de formas diferentes. A religião no Brasil tomou diversas formas de acordo com a nação proveniente do seu culto, mas em geral ela acabou por fazer um grande amálgama de diversas culturas. A nação Keto, onde o fotografo se iniciou no Brasil, tem sua origem do povo Nagô ou Yorubá, provenientes dos atuais sudoeste da Nigéria, do Benim (antiga República do Daomé) e do Togo, que durante o século XVIII e até 1815, foram escravizados e trazidos em massa para o Brasil durante o chamado "Ciclo da Costa da Mina", ou "Ciclo de Benin e Daomé".
G N A R U S | 165 Os Yorubás chamavam as suas divindades de
da religiosidade, eram na verdade uma busca por
Orixás, divindades de origem ancestral derivados
indícios e semelhanças com a forma de se perceber
tanto de seres humanos divinizados como o Orixá
o culto da natureza na África, com o que acontecia
Xangô, que tem uma origem histórica por ter sido
na Bahia.
um rei e dado início a uma dinastia, ou derivados das formas da natureza como o orixá Iroco, que é uma árvore sagrada para o povo Nagô.
Ela é uma religião iniciática, de transe, sacrifícios e de fortes apelos mágicos. Foi desenvolvida no com
o
conhecimento
dos
africanos
escravizados, por isso originalmente era uma religião proibida pela igreja Católica e pelo governo. O Candomblé prosperou e expandiu-se consideravelmente desde o fim da escravatura em 1888. com
Estabeleceu-se seguidores
de
várias classes sociais e dezenas de milhares de
Toda a obra de Verger está repleta de imagens representam
religiosidade brasileira.
a
afro-
Tanto
Candomblé
do
baiano
como de regiões da África em que rituais parecidos
eram
encontrados.
Verger,
como iniciado no Brasil, podia perceber na África muitas
similaridades
entre os rituais. Por isso seu
denominado de “raspar a cabeça” no candomblé, mas foi tirada na África, gerando a ideia de que a ritual que acabava de acontecer, com seus elementos simbólicos enchendo o quadro de significados, acontece nos dois continentes. A Fotografia em questão foi tirada na cidade de Saketé, Republica do Benim. Nela se pode ver uma pessoa sendo guiada por uma outra, no caso duas mulheres. A que está sendo guiada é a iniciada e a que guia é sua iniciadora. Pode-se ver a mão vacilante do noviço sendo delicadamente segura por mãos firmes e decididas. Pode-se ver a cabeça do noviço raspada e
templos.
que
trata-se de uma imagem que retrata instantes depois de acontecer um importante ritual
“O culto ao orixá dirige-se, portanto, a dois elos que se juntam – parte fixada da força da natureza e ancestral divinizado – e que serve de intermediário entre o homem e o inconcebível”. (VERGER, 2000 p. 38)
Brasil
Uma foto parece ser icônica, neste sentido, pois
olhar,
suas
fotografias sobre o tema
suja de penas e sangue de animais sacrificados. Podese ver o rosto calmo e sereno de quem é mais
experiente,
como o rosto da mulher que carrega em seus dedos o iniciado
e
vai
ensinar tudo o que sabe. E ainda podese ver o gestual corpóreo da iniciada que
parece
encontra
se num
G N A R U S | 166 estado de transe suave, como um ser que ainda não
Dessa forma, para Lévi-Strauss, a magia, ou o
sabe como se colocar no mundo. As cabeças baixas
pensamento mítico, seria uma estratégia, paralela à
e o andar que parece ser desengonçado denotam
da ciência, de se perceber a realidade e não um
isso.
estágio inferior ao da ciência. Ela:
Com o advento das chamadas imagens técnicas, (FLUSSER, 2005) a fotografia e suas derivações, o significado da imagem toma novas proporções. A imagem parece cada vez mais representar o real, pois ela se mostra como uma “pegada da
“(…) elabora estruturas organizando os fatos ou os resíduos dos fatos, ao passo que a ciência, ”em marcha" a partir de sua própria instauração, cria seus meios e seus resultados sob a forma de fatos, graças às estruturas que fabrica sem cessar e que são suas hipóteses e teorias.” (Lévi-Strauss, 1976, p37).
realidade”. No entanto a fotografia somente atribui ou reconhece valores a um aspecto de uma cena.
“Apesar das imagens fílmicas, fotográficas e videográficas estarem impregnadas de resíduos do real, elas não são uma extensão da realidade, mas sim uma criação interpretativa que é fruto de uma imaginação social”. (PALMEIRO, 2005 p. 9) Esse fetiche na imagem como continuação da realidade é muito parecido com a função exercida
Flusser (2005) aponta para o caráter mágico eminente das novas formas de se produzirem a imagem, que parecem revitalizar esse pensamento mítico, rompendo com essa ideia evolucionista sobre a magia, dando a ela novos valores e sentidos num mundo já incorporado de valores científicos. Esse processo se daria com o desenvolvimento de
por ela na pré-história, onde se representava o
poderosos
pensamentos
mundo exercendo um efeito moldador da
consequentemente
realidade. Isso se dava, pela existência de um forte
produziu no decorrer dos séculos, tornando
pensamento mágico. Onde as imagens desenhadas
possível o desenvolvimento de máquinas e de
na caverna tinham o objetivo de alterar a realidade
aparelhos capazes de representar o mundo.
material da comunidade. (FLUSSER, 2005)
(FLUSSER, 2005)
técnicos,
conceituais, que
a
e
ciência
A noção de “pensamento mágico” é, em si mesma,
Exemplo disto é a máquina fotográfica que pode
complicada. Está relacionada com as noções
produzir novas imagens chamadas de “imagens
evolucionistas e, portanto, com a ideia evolutiva de
técnicas”. Estas novas imagens não têm mais nada a
ir do mágico ao religioso, e em seguida ao
ver com as antigas imagens, além do fato de
científico,
fortemente
também representar o mundo. Elas na verdade são
marcada pelo positivismo. Já as ideias de Lévi-
frutos de diversos conceitos. Uma imagem
Strauss sobre uma “ciência do concreto”, por
fotográfica,
exemplo
mais
conhecimentos em química, em física, em artes, em
interessantes: as formas de classificação nativas são
eletrônica e etc. Estas imagens são na verdade uma
antes pró-científicas do que pré-científicas. Em
fórmula, um cálculo. Elas não têm mais valor como
outras palavras, não se trata de dicotomizar
coisa, só como conceito. Ou seja, seu valor está na
magia/religião e tampouco opor magia/ciência,
virtualidade, e paradoxalmente geram um tipo de
mas compreender que a ciência e a magia operam
magia que não se coloca no mesmo nível histórico
como um princípio semelhante – controlar a
da imagem pré-histórica. Pois ela “não visa
natureza ou se antecipar aos fatos da natureza.
modificar o mundo lá fora, como fez a pré-história,
em
uma
perspectiva
(Lévi-Strauss,
1976)
são
por
exemplo,
é
formada
por
G N A R U S | 167 mas os nossos conceitos em relação ao mundo”.
com o mundo.
(FLUSSER, 2005, p.16)
interessante relação entre magia e técnica, Walter
Da mesma forma no Candomblé a magia existe muito mais como a força que visa modificar os conceitos do indivíduo com relação ao mundo através de procedimentos ritualísticos, do que simplesmente alterar o mundo material.
Seu
círculo de iniciações busca rememorar e repetir a passagem inaugural, em forma de ritual: “durante o processo, os corpos dos iniciados são transformados em verdadeiros “quadros vivos de regras e costumes” (...) na qualidade de significantes dos
Onde se pode traçar uma
Benjamin revela que a diferença entre técnica e a magia é uma variável histórica (BENJAMIN, 1985). A técnica vai na verdade levar a magia, como a magia a técnica. O que parece ser singular na fotografia, e no cinema para o autor, é o fato de ela ser uma obra criada para ser reproduzida, onde a sua “aura” como obra de arte, estaria presente nas suas cópias. (BENJAMIN, 1985) Assim como a cada ritual no Candomblé essa “aura”, essa essência do elemento mítico que ele revive estaria presente.
princípios sociais” (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993,
Uma fotografia de família pode representar uma
p.95). Ritos como o “raspar a cabeça” iniciam o
instituição que não existe mais, ela serve para
neófito na hierarquia da comunidade e é símbolo
rememorar e repetir esta família. Elas podem dar a
de uma forma de renascimento, de retorno à vida e
posse imaginária de um passado irreal, ou
um confronto da nova identidade com o mundo.
simbólico, assim como o ritual religioso rememora
Por exemplo o ritual da Romaria no Candomblé, quando este iniciado acaba de “raspar a cabeça”, e ainda vestindo as roupas e objetos sagrados vai assistir a uma missa Católica, é um jogo de resistência e rendição ao
acontecimentos ancestrais. O próprio ato de fotografar também pode ser visto como tal. “A fotografia não é meramente o encontro entre um evento e um fotógrafo, ela é um evento em si mesmo (SONTAG, 2004 p.21).
mesmo tempo. É resistência porque a romaria é
Para comparar essa magia existente na fotografia,
um enfrentamento: é preciso entrar no
pois “ela pertence ao mundo da magia e ao mundo
santuário cristão vestindo as suas insígnias
cientifico” (GURAN, 2000, v. 10), com o que ocorre
religiosas do Candomblé. Mas é rendição,
no Candomblé, a obra do fotografo Pierre Verger
porque é preciso assistir a missa e receber a
se mostra ideal como objeto de pesquisa pois nela
benção do padre. Um paradoxo, mas que no
pode-se perceber a presença das religiões de
entanto reafirma uma nova identidade ao
origem africanas, não só pelos olhos atentos de um
indivíduo. (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993)
antropólogo, ou de um repórter fotográfico, mas
Na fotografia apresentada, há um quadro semelhante, o neófito, ainda frágil devido sua condição simbólica de renascimento, deve ser
também pelos olhos de um indivíduo que foi incorporado a essa comunidade, e por isso pode decifrar os conceitos inerentes a esta.
apresentado à sua comunidade. Onde sua
A cerimônia de “Raspar a Cabeça”, é um ritual
iniciadora deve leva-lo em uma procissão por
de iniciação onde o noviço foi possuído pela
sua aldeia.
primeira vez pelo Orixá que rege a sua cabeça.
Nas religiões de matriz africana a magia aparece como um dado constitutivo da relação do homem
(VOGEL; MELLO; BARROS, 1993) A cena que a fotografia em questão fixou parece ser simples,
G N A R U S | 168 mas é justamente nesta simplicidade que se
Todos os elementos e códigos contidos na
encontra a destreza do olhar fotográfico. Num
fotografia de Verger só podem ser realmente
instante aquela cena se formou no visor
percebidos quando se conhece a natureza da
inquieto do fotógrafo e percebendo a
religião em questão. São conceitos transmitidos por
importância simbólica da cena que via,
gerações e que juntos formaram o gesto
disparou a câmera e eternizou este momento,
fotografado, que é a condensação de valores do
repleto de símbolos, importantíssimos para o
pensamento
conhecimento da cultura dos Orixás.
mentalidade de um Europeu “abrasileirado”.
Todos esses pequenos códigos e gestos restritos a um iniciado, que pode entender a importância de cada um, gera um ritual onde o acúmulo de
africano
traduzidos
por
uma
Criando, assim, um momento de magia, pois ele “rasga” todos estes conceitos traduzindo-os neste único gesto capitado pelos olhos de um fotógrafo.
conceitos e técnicas inerentes aquela forma de ver
Ali, no gesto onde a iniciada é guiada, se encontra
e interpretar o mundo transbordam em um gesto
um ponto de ligação onde os dois tipos de magia;
mágico. Para o crente o ritual não deixa de ser uma
tanto a fotográfica como a ritualística. Muito
narrativa, uma fotografia da realidade que ele
Parecido como o que pensava Roland Barthes em
acredita existir. Rito que representando tanto o
seu livro “A Câmera Clara” (BARTHES, 2006) com o
mundo em que vive como o ancestral, através da
termo punctum, que seria um pormenor na
repetição e a significação, evidenciando como na
fotografia que chama a atenção de forma diferente,
fotografia algo que no agora já foi passado.
gerando uma fotografia que marca o olhar para um
(BARTHES, 2006)
valor superior
A importância dada à imagem fotografia e o
Afinal a fotografia apresentada não é só uma
cinema, por exemplo, vem justamente deste fetiche
representação de um acontecimento, mas um
de realidade que a imagem tecnológica exerce
suporte onde a ancestralidade no ritual também é
sobre o pensamento humano. Onde da mesma
revivida. Uma imagem cheia de mistérios que
forma que um crente acredita estar na presença de
machucam o entendimento de quem não pode
um ancestral divinizado incorporado por meio de
compreender os significados e textos. E talvez esta
um transe, como acontece no Candomblé, se pode
condensação de magia em um gesto fotografado,
pensar que a fotografia de um ser humano já morto,
formando assim uma dupla magia, eleve essa
é este incorporado em um pedaço de papel. Como
fotografia para um outro patamar, onde não se
constata Roland Barthes quando afirma que a
pode traduzir a imagem simplesmente pelos filtros
fotografia traz em sua origem uma experiência da
morais e políticos da sociedade ocidental.
morte. (BARTHES, 2006) Não tão diferente é pensar em uma energia da natureza, como um raio, habitando um negativo fotográfico. Então, ao vermos uma fotografia acreditamos ser ela uma representação de uma realidade, e muitas vezes acreditamos ver a verdade, somos neste caso fieis da fé na fotografia.
Rafael Garcia Madalen Eiras é formado em Bacharel em Cinema pela faculdade Estácio de Sá, pos-Graduado em Fotografia, Imagem e memória pela Universidade Candido Mendes, e graduando em licenciatura em História pela Universidade Cândido Mendes e colaborador da Gnarus Revista de História.
G N A R U S | 169 Bibliografia BARROS, José Flávio Pessoa de.O segredo das
folhas: sistema de classificação de Vegetais no Candomblé Jêje-Nagô do Brasil. Rio de Janeiro:
Pallas. .1993 BARTHES, Roland. A Câmera Clara. Lisboa: Edições 70. 2006 BENJAMIN, W. A pequena história da fotografia. In:
Magia, arte e técnica: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1985a.Obras Escolhidas, v.1. _________. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia, arte e
técnica: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1985a. Obras Escolhidas, v.1. DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes 2007 FLUSSER, Valem. Filosofia da caixa Preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2005 GURAN, Milton. Fotografia para descobrir, fotografia para contar. Cadernos de antropologia e imagem (10) UERJ, 2000
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1976. PALMEIRO, Pedro Araújo; Antropologia e imagem 22p TM(graduação) – Universidade Candido Mendes. Orientação de Milton Guran. 2005 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Compania das Letras. 2001 SANTOS, Juana Elben dos; Mestra Didi, A religião
nagô, geradora e reserva dos valores culturais no Brasil. Bahia Analise e Dados, o Negro.
Salvador, v.3, n. 4, p. 47-55. Mar. 1994 SOUTY, Jerôme. “Em busca do olhar virgem: a
propósito das fotografias de Pierre Verger em torno do mundo, 1932-1946” Revista poiesis
número 12, UERJ, 2008 p209-221). SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2004 VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns. 2.ed.São Paulo: USP. 2000 VERGER, Pierre. Orixás, os deuses Iorubas na África e no novo mundo. Salvador: Corrupio. 1997 VOGEL, Arno: MELLO, Marco. Antonio da Silva: BARROS, José Flávio Pessoa de. A Galinha
D´angola,: iniciação e identidade na cultura Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas. 1993.
G N A R U S | 170
Coluna:
O ETERNAUTA Por: Renato Lopes
“O verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano. Isso reflete, embora sem premeditação, meu sentimento íntimo, o único herói válido é o herói “em grupo”, nunca o herói individual, o herói solitário” – do prefácio de Héctor G. Oesterheld.
B
uenos Aires, Argentina, 1957. Um autor de
homem. Passado o susto, este homem se apresenta
histórias em quadrinhos chamado German,
como “O Eternauta”, um viajante multidimensional
está sem seu escritório trabalhando. Já é
e temporal. A partir daí ele começa a narrar suas
tarde da noite, quando inesperadamente começa a
desventuras que o levarem até aquele momento.
se materializar na cadeira vazia diante dele um
Um náufrago perdido no espaço e tempo. Em seu
G N A R U S | 171 rica em detalhes, expressões e dinamicidade, quase um plano cinematográfico. Uma trama repleta de revira voltas, com importantes reflexões e com uma ação
extremamente crível. Um dos grandes
trunfos é o próprio cenário da história: Buenos Aires. Todas as ruas, avenidas, praças, rios e outros lugares que aparecem na trama são reais e colaboram para o desenvolvimento da história. Num dos pontos altos da trama ocorre uma batalha épica no estádio do River Plate. relato somos levados a um futuro não muito distante, na mesma Argentina, em 1963, quando uma nevasca mortal assola o país e uma ameaça se avizinha. E o mundo nunca mais seria o mesmo. Sem sombra de dúvidas uma das dez maiores histórias em quadrinhos já escritas e a melhor história em quadrinhos da história argentina, (junto com a Mafalda, de Quino) "O Eternauta" de Hector German Oesterheld, soberbamente desenhada por Francisco Solano Lopes. Publicado entre setembro 1957 e setembro 1959 na “Hora Cero” Suplemento Semanal, contando com a arte primordial de Solano Lopes. Tratava-se de uma releitura da história de Robinson Crusoé, mas dessa vez baseada no poder da coletividade sobre a individualidade. Em vez do mar o que cercava agora era a morte. Em vez do estar só numa ilha, agora era um homem com família, amigos e uma nação. Conta-se que o roteiro foi elaborado sem planejamentos prévios, sendo construído basicamente a cada semana, da forma mais orgânica possível. Oesterheld tinha um total domínio da narrativa, conseguindo manter o fôlego e o ritmo da história ao longo de suas 360 páginas, uma história densa e que cada quadrinho é uma pequena obra de arte,
Há um sentido de urgência na trama, isolados do restante do mundo por uma nevasca, que não é natural, e uma invasão alienígena, a sobrevivência dos personagens reside unicamente na sua capacidade de se relacionarem e confiarem uns nos outros. Cada personagem a sua maneira colabora para o desenrolar da trama. Os personagens são Juan Salvo (O Eternauta), sua esposa e filhas, Elena e Martita, Favalli, Herbert, Polski e Franco. Mas até mesmo os coadjuvantes mais provisórios dão sua contribuição para o andamento da trama. Que a cada página, a cada quadrinho, esconde uma surpresa, nunca gratuita e nuca mal elaborada. Numa pesquisa rápida percebe-se que a trama de “O Eternauta” não encontra paralelos em nenhum outro país, nesse mesmo período, seja pela sua forma, seu conteúdo ou sua mensagem (vale lembrar que nessa época nos EUA, um dos maiores produtores de quadrinhos no mundo, vigorava o temido CCA - Comic Code Authority, órgão responsável por censurar as obras). A obra faz as vezes de uma legítima ficção cientifica, com elementos amplamente calcados na realidade, não se limitando a ser somente uma distopia com elementos futurísticos, muito pelo contrário. A narrativa de Oesterheld dialoga mais com a realidade do período (a ameaça da destruição
G N A R U S | 172 mútua de uma guerra atômica entre duas
alienígenas), ele nunca se desloca da realidade, seja
superpotências, o terceiro mundismo, a América
física, moral ou psicológica.
Latina no cenário político mundial naquele momento) e como essas visões concorrem para a
A arte de Solano Lopes é epidérmica, detalhista, dinâmica
montagem da trama.
e
como
já
disse
mais
acima,
cinematográfica. A cada cena de ação é como se Aliás, o autor deixa muito clara sua posição
você pudesse sentir a pulsação e a respiração
política (ele se juntou aos Montoneros, juntamente
ofegante das personagens. A cada momento de
com suas filhas e genros), e este viés político da
suspense (e são muitos, executados com maestria),
trama só a enriquece, nunca resultando em algo
é como se o leitor tremesse e hesitasse junta com as
panfletário ou em vulgaridades ideológicas vazias.
personagens. A cada pausa é um suspiro, mas
Em um contexto de polarizações diversas, o autor
acompanhado de uma ansiedade sobre o que virar
reafirma seu humanismo e a necessidade de união
a seguir. Ler o Eternaura, mesmo passados quase 60
entre todos para a superação de problemas e a
anos de seu lançamento, ainda é uma experiência
busca por soluções maiores para o bem de todos. É
das mais fascinantes.
um legitimo trabalho de representação da realidade. E muito embora conte com elementos fantásticos
(viagens
temporais
e
invasões
ASSASSINATO Hector German Oesterheld e suas quatro filhas Beatriz Marta Oesterheld (19 anos), Estela Inés
G N A R U S | 173 Oesterheld (24 anos – mãe de um menino de 3 anos,
personagem da neve mortal, era possível ver o rosto
Martin,
mas
de Kirchner sorrindo. Assim ele se auto intitulava “o
bisavôs
salvador” da Argentina, o “eterno”. Obviamente tal
maternos), Marina Oesterheld (18 anos), Diana
uso não foi muito bem recebido por nenhum dos
Irene Oesterheld (23 anos), estas duas últimas
lados da corrida presidencial, nem mesmo pelos
grávidas, e seus três genros, Rual Carlos Araldi
seus próprios partidários. Gerou um mal estar muito
(marido de Diana), Oscar Alberto Seinendlis
grande e seu uso foi suspenso. Kirchner havia
(marido de Marina) e Raúl Oscar Mortola,
mexido num dos símbolos mais invioláveis do país
infelizmente fazem parte da lista dos cerca de 30
(no mesmo patamar de uma Evita Perón, me arrisco
mil mortos e desaparecidos da ditadura
a dizer).
que
também
posteriormente
argentina
foi
de
desapareceu
devolvido
aos
militar
1976-1983. A importância dá obra é tal, que em 2000, quando
Sequestrado em 1977, após uma reunião secreta
o Jornal Clarín anunciou a coleção “La Biblioteca
ser descoberta, passou meses preso e sendo
Argentina”, com os grandes clássicos da literatura
torturado, de modo que não pode ver a conclusão
do país, lá estava figurando “O Eternauta”, ao lado
de “O Eternauta II”. Aém da violência física a qual
de obras de escritores tais como Borges, Cortazar,
fora submetido há relatos, de presos que
Sábato e de outros clássicos como “Martin Fierro”
sobreviveram, que diziam que uma das formas de era
Hector German Oesterheld foi assassinado pela
submetido consistia em expor a ele fotos de suas
defesa de seus ideais e de seu povo. Puderam calar
filhas mortas e torturadas. Em mais um momento de
sua voz, mas não calaram sua arte e sua mensagem,
sadismo, chegaram a levar seu neto Martin, filho de
que estão vivas e alcançando a imaginação de
Estela, para vê-lo. Através de alguns contatos e dos
muitos leitores até hoje. Enquanto seus algozes são
esforços de sua esposa, Elsa Sanches ,que estava em
relegados ao lixo da História, sua mensagem e sua
liberdade, conseguiram reaver o seu neto aos
arte são cada dia mais atuais e cada vez mais lidas.
tortura psicológica a qual Oesterheld
bisavós maternos.
Até a próxima.
“O Eternauta” traz consigo muitos elementos caros ao povo Portenho. Com o passar dos anos tornou-se símbolo de uma época, bandeira de uma luta. Fora publicado logo após o fim da ditadura do General Juan Domingo Perón (1955) e próximo de
Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina, agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema e colunista especialista em quadrinhos da Gnarus Revista de História.
outros dois golpes militares que abalariam o país (1966-1973 e 1976-1983). Em 2011, durante sua última
campanha
presidencial,
o
falecido
presidente Nestor Kirchner usou uma clássica imagem do personagem Eternauta em sua campanha política, se fazendo passar pelo mesmo, atrás da clássica máscara que protegia o
Obras essenciais de Hector German Oesterheld
O Eternauta, desenhado por Francisco Solano Lopes (Lançado no Brasil pela editora Marins Fontes
G N A R U S | 174
O Eternauta: II, desenhado por Francisco Solano Lopes (Lançado no Brasil pela editora Marins Fontes
Che – Os últimos dias de um herói, desenhado por Alberto e Henrique Breccia (lançado no Brasil pela Conrad Editora
Sargento Kirk (personagem criado em parceria com Hugo Pratt) com desenhos de Hugo Pratt e posteriormente desenhado por Jorge Moliterni, Horacio Porreca, Gisela Dexter e Gustavo Trigo
Mortin Cinder, com desenhos de Jorge Moliterni
Ernie Pike (também criada em parceria com Hugo Pratt), com desenhos de Hugo Pratt e posteriormente desenhada por Alberto Breccia e Francisco Solano López
G N A R U S | 175
Resenha
UM CONVITE A LEITURA DE “O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa”. Por: Alex Rogério Silva
RESUMO: A resenha vem apresentar a obra O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa, organizado por Maria Isabel Morán Cabanas, José António Souto Cabo e Yara Frateschi Vieira, publicada pela editora Cosac Naify, em 2015. A obra traz uma visão inovadora, apresentando uma amostra da lírica galego-portuguesa tendo como fio condutor a cidade de Santiago de Compostela, capital da Galiza, que nos séculos XII e XIII foi o mais importante centro religioso, político e cultural de toda a Península Ibérica. Palavras-chave: Santiago de Compostela, Cantigas, Trovadores.
S
A ond'irá aquel romeiro, romeiro adond'irá? Camino de Compostela, non sei s'ali chegará. Os pes leva cheos de sangre, e non pode mais andar. Mal pocado! Pobre vello. sei s ali chegará! (Romance galego)1.
egundo Adriana Vidotte e Adaíson José Rui, em Caminhos físicos, imaginários e
simbólicos: O culto a São Tiago e a
peregrinação à Compostela na Idade Média2, “O homem medieval é o homo viator. Sua vida é um caminho percorrido em busca da perfeição, da salvação. A viagem que realiza na vida terrena, efêmera, visa a sua realização plena na vida celeste,
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Caminho de Santiago e Cultura Medieval Galaico-Portuguesa. Rio de
RUI, Adaílson José; VIDOTTE, Adriana. Caminhos físicos, imaginários e simbólicos: O culto a São Tiago e a peregrinação à Compostela na Idade Média. Projeto
1
2
Janeiro: Biblioteca Nacional – Divisão de Publicação e Divulgação, 1966.
História, nº 42, junho de 2011, p. 143-162.
175
G N A R U S | 176 eterna.” (RUI, VIDOTTE; 2011, p. 144). Nesse
(UNICAMP),
sentido,
grande
professora titular na área de Filologias Galega e
pois,
Portuguesa da Universidade de Santiago de
materializam no plano terreno maneiras de se
Compostela e José António Souto Cabo, também
purgar seus pecados, ou agradecer por graças
professor titular na área de Filologias Galega e
alcançadas.
Portuguesa da Universidade de Santiago de
as
importância
peregrinações na
vida
dos
são
de
medievos,
Nas palavras de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schimitt:
Maria
Isabel
Morán
Cabanas,
Compostela. Obra publicada em 2015, presenteia o leitor, em contraposição de obras que abordam a temática
(...) a caminhada durava semanas, às vezes meses (...) A rota é uma dura ascese. Aí sentese a fadiga do corpo, o sofrimento provocado pelos pés doloridos, a tensão dos músculos, a sede e a fome. Aí sofre-se o rigor das intempéries. Aí se enfrenta múltiplos perigos, sobretudo na passagem de rios e montanhas (...) mas o peregrino obtém com sua viagem benefícios espirituais e físicos: o perdão dos pecados e a cura de seu corpo (LE GOFF; SCHIMITT, 2002, p. 353, 354)3.
firmando-se na compilação poética, com uma visão inovadora da lírica galego-portuguesa. O livro é composto pela reunião de 55 textos originais em língua galego-portuguesa de 29 poetas do período medieval, dentre eles D. Afonso X, o Sábio, D. Dinis, Pai Soares de Taveirós, Bernal de Bonaval, que remontam passagens e ambientes de Santiago de Compostela. De um modo geral, na introdução é apresentado ao leitor a temática da obra,
Nas fontes medievais é frequente a menção a tais viagens com fins religiosos. Principalmente nas cantigas, que são bastante executadas no período. Canções que relatam milagres de santos e louvores, mas também, amores, e críticas das mais diversas vertentes. A partir disso, esta resenha vem apresentar a mais nova publicação da Editora Cosac Naify, intitulada
fornecendo informações básicas acerca do período e do estilo literário em questão. Há também um glossário explicativo, além de um mapa da localidade, ressaltando os locais relevantes para a
lírica galego-portuguesa. Fechando o conteúdo do livro, é presente uma bibliografia com estudos realizados acerca do tema proposto e imagens e dados dos cancioneiros medievais utilizados na pesquisa, a saber: Cancioneiro
da Ajuda4,
O Caminho Poético de Santiago: Lírica galegoportuguesa, organizado por Yara Frateschi Vieira, professora titular, aposentada, de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Campinas
3
LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean-Claude (orgs.).
Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Coord. de Trad. Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 2, p. 353, 354. 4 O Cancioneiro da Ajuda é um manuscrito em pergaminho, datável de finais do século XIII ou inícios do XIV. Está incompleto (mutilado e inacabado): faltam-lhe rubricas atributivas de autor; somente dezesseis iluminuras foram esboçadas e parcialmente pintadas; há
espaços reservados para a notação musical que, no entanto, não foi introduzida; algumas iniciais capitais (de cantiga ou de estrofe) foram deixadas em branco. A escrita, em preto, é feita na letra minúscula gótica. CABANAS, Maria Isabel Morán; CABO, José António Souto; VIEIRA, Yara Frateschi. O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 204.
176
G N A R U S | 177 Cancioneiro da Biblioteca
preocuparam
Nacional5
em
e
o
Cancioneiro
da
todos
cidade de Santiago de
leigo da temática da obra
Compostela,
e fornecer um aparato
fronteira entre Portugal e
de
Espanha,
notas
religioso,
lírica
cultural
galego-portuguesa, de a
propícias
saber: as cantigas de amor, cantigas de amigo e as cantigas de escarnio e maldizer. Além disso, tece breves considerações sobre as cantigas religiosas que tem por maior testemunho as Cantigas de
Santa Maria, de D. Afonso X, o Sábio, Rei de Leão e Castela. Mas não somente de cantigas se pautaram as considerações: os organizadores da obra se
O Cancioneiro da Biblioteca Nacional foi copiado por volta de 1525-26, na Itália, por ordem do humanista italiano Angelo Colocci. Contém, além do maior número de textos e autores do corpus galego-português a nós transmitido, também a fragmentária Arte de Trovar. . CABANAS, Maria Isabel Morán; CABO, José António Souto; VIEIRA, Yara Frateschi. Op, Cit, p. 208. 6 O Cancioneiro da Biblioteca Vaticana é uma coletânea com aproximadamente 1200 cantigas, compilado na Itália entre o final do século XV e início do século XVI. 5
de
toda
e a
para
a
lírica trovadoresca para
literaturas, inclusive a considerações sobre os gêneros das cantigas, a
político
implantação e difusão da
todas
brasileira, por se exprimir nesta língua. Há também
centro
isso sustenta condições
língua
portuguesa, patrimônio comum
mais
Península Ibérica, com
manifestação inicial da literatura
era o
importante
contextualizam a origem chamada
localizada
não muito longe da atual
breve do que o espera
da
episódios
No período medieval, a
modo a instruir ao leitor
As
os
Santiago de Compostela.
com algumas notas de
Santiago.
da
narrados por tais poemas:
A publicação tem início
Caminho
dados
localidade que conduz
Vaticana6.
pelo
trazer
também
as outras partes da península. Nas palavras dos organizadores da obra:
Na segunda metade do século XII, momento em que nasce a lírica galegoportuguesa, não havia no reino galaicoleonês outro centro urbano que pudesse competir com o prestígio de Santiago, cuja supremacia se devia ao uso eficiente dos recursos materiais e culturais gerados pela peregrinação (CABANAS; CABO; VIEIRA, 2015; p. 14).
As cantigas são apresentadas em dois blocos: “Os trovadores e Santiago de Compostela” em que Encontra-se depositado na Biblioteca do Vaticano, de onde deriva o nome por que é conhecido. Este cancioneiro, como o Cancioneiro da Biblioteca Nacional em Portugal, foi compilado após o século XIII e compreende um espaço de tempo bem maior. Apresenta não apenas obras dos poetas da corte de Afonso III de Portugal, mas também anteriores, como ainda os contemporâneos de D.Dinis e seus filhos. MONTEAGUDO, Henrique, et al. Três poetas medievais da ría de Vigo. Ed. Galaxia. 1998, p. 51.
177
G N A R U S | 178 tratam de temáticas que envolvem diretamente a
transcrição, quanto pela extensa bibliografia
localidade, seja para cantar louvores e amores ou
complementar, presente na publicação e generosa
para “maldizer” sobre pessoas, e, “Trovadores e
para os pesquisadores que visam encontrar
textos em diálogo”, que remetem a autores de
referências no assunto. Nesse sentido, diante do
outras localidades, mas que remetem cantigas a
que foi exposto, O Caminho Poético de Santiago:
Santiago de Compostela, como D. Dinis, Rei de
Lírica Galego-Portuguesa é uma obra de grande
Portugal e João Zorro. No final de cada grupo de
valor e que desafia o especialista mais rigoroso a
cantigas de determinado autor, há uma breve
encontrar algum demérito.
biografia do mesmo, de forma a apresentar ao leitor a vida de tal artista que é o trovador. Os textos selecionados proporcionam ao leitor uma viagem literária pela cidade compostelana e ilustram
os
gêneros
praticados
pela
Alex Rogério Silva é mestrando em História e Cultura Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus de Franca). E-mail: alex465@gmail.com.
lírica
portuguesa como as cantigas de amor, cantigas de amigo e as cantigas satíricas, que são as cantigas de escárnio e de maldizer. A grafia utilizada na transcrição das cantigas é a sugerida nas Normas de
edición para a poesia trobadoresca galegoportuguesa medieval7, de forma a manter a grafia o mais fiel possível das fontes originais. Além disso, mostra como os autores estavam ligados na cidade de Santiago de Compostela e interligados entre si seja por laços familiares, pessoais, sociais, políticos, sendo responsáveis pela disseminação da lírica pelas outras regiões da Península Ibérica. A obra se apresenta como uma inestimável referência àqueles que se interessam pela poesia galego-portuguesa, seja pela contemplação dos versos poéticos contidos, seja como base para a pesquisa acadêmica. No campo desta última, O
Caminho Poético de Santiago vem se afirmar como uma contribuição singular, tanto pelas cantigas em sua forma original e o glossário que auxilia sua AA.VV. Normas de edición para a poesia trobadoresca galego-portuguesa medieval. Universidade de Coruña. 7
Servizio de Publicacións, 2007. (Versão online disponível em
<http://www.udc.gal/export/sites/udc/publicacions/_g aleria_down/librariadixital/NormaEdicionPoesiaTF.pdf. > . Acesso em: 17 mai. 2015.
178
G N A R U S | 179
Resenha
UM CONVITE A LEITURA DE “Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia” Por: Geraldo Magella de Menezes Neto
SILVA, Hilton P., et al. Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia. Com a colaboração de Rodrigo Yuri C. Correa e Leonardo G. G. Trindade. Belém: Paka-Tatu, 2013.
P
or terra, céu e mar: Histórias e memórias da
professor da Faculdade de Educação Física da
Segunda Guerra Mundial na Amazônia é
UFPA; Murilo Ribeiro Teixeira, acadêmico da
uma obra lançada pela editora Paka-Tatu
Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)1,
no final de 2013, que possui quatro autores: Hilton
bolsista do PIBIC/CNPq, atuando no ensino médio
Pereira
em
da Escola de Aplicação da UFPA; e Samuel R.
Antropologia/Bioantropologia pela Ohio State
Mendonça, bolsista do PIBIC/CNPq, e também
University, é professor do Programa de Pós-
atuando no ensino médio da Escola de Aplicação da
Graduação em Antropologia e do Mestrado em
UFPA. Além disso, o livro possui dois colaboradores:
Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia da
Leonardo Gabriel Gomes Trindade e Rodrigo Yuri
Universidade Federal Do Pará (UFPA); Elton
Carvalho Correa, ambos bolsistas do PIBIC/CNPq,
Vinicius Oliveira de Sousa, Mestre em Saúde,
atuando no ensino médio da Escola de Aplicação da
Sociedade e Endemias da Amazônia pela UFPA, é
UFPA.
da
Silva,
Doutor
O livro não especifica qual o curso de formação do autor. 1
G N A R U S | 180 Tendo como justificativa
Pará (AECB-PA)2, contendo
o argumento de que os
várias
pracinhas
aqueles que atuaram na
da
Força
Expedicionária (FEB)
foram
pelo
governo
Brasileira
No primeiro capítulo, “A
pela
Amazônia e o Pará durante
sociedade brasileira, que
a
não lhes deram o devido reconhecimento, autores,
o
é
o
pracinhas
da
Pará na época da guerra.
de
Citam o afundamento de navios
FEB)
a sociedade brasileira ao longo de suas vidas.” (p.15). Não por acaso, o prefácio da obra, assinado por Aristóteles Miranda, tem um título significativo que corrobora com o objetivo do livro: “Memória e reconhecimento”.
pelos
submarinos do Eixo; falam
que merecem, que sejam sacrificaram e fizeram enormes contribuições para
mercantes
brasileiros
olhados com a dignidade amados e apreciados pelo que são, homens que se
Guerra
um resumo do contexto do
“colaborar para que sejam (os
Segunda
Mundial”, os autores fazem
objetivo da obra, segundo os
sobre
Segunda Guerra Mundial.
esquecidos e
imagens
da
perseguição
aos
“quinta-colunistas”, espiões que estariam atuando em favor dos países do Eixo; da construção do Hospital do Pronto Socorro Municipal de Belém e do Hospital Evandro Chagas, como parte da operação militar entre o Brasil e os Estados Unidos; o racionamento de combustíveis e de alimentos; e a existência de um “campo de concentração” em
Além da Introdução, o livro possui quatro
Acará (atual município de Tomé-Açu), no qual
capítulos: “A Amazônia e o Pará durante a Segunda
foram isolados imigrantes japoneses, italianos e
Guerra Mundial”; “A história que estava esquecida:
alemães.3
relatos da guerra pelos ex-combatentes”; “Os amazônidas que não voltaram”; e “As repercussões da FEB dentro e fora do Brasil”. Além disso, a obra possui uma seção intitulada “Memórias da
Interessante neste capítulo é o depoimento do Sr. Raimundo Santa Brígida, que morava na época da guerra em Carutapera, na fronteira entre o Maranhão e o Pará. Santa Brígida revelou que viu
Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - Seção A Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - Seção Pará (AECB-PA) foi fundada em 8 de maio de 1946, é considerada de utilidade pública pela Lei Estadual n. 524, de 16 de agosto de 1952, tendo sede na Avenida Governador José Malcher, n. 2887. Seu primeiro presidente foi o ex-combatente Cléo Bernardo de Macambira Bastos. (p. 29). O atual presidente é o excombatente Raimundo Nonato de Castro. Infelizmente, nos últimos anos a sede da Associação foi vítima de vários assaltos. Objetos históricos como capacetes de aço, fardas dos militares e documentos que contam a história dos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial já 2
foram roubados. Ver “No Pará, Associação dos Excombatentes do Brasil é assaltada”. Site G1 Pará. Disponivel em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2014/05/associ acao-dos-ex-combatentes-do-brasil-no-para-eassaltada.html> Acesso em 14 mar. 2015. 3 Sobre os campos de concentração no Pará e no Brasil, ver PERAZZO, Priscila Ferreira. Prisioneiros de guerra. Os cidadãos do Eixo nos campos de concentração brasileiros (1942-1945). Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2002.
G N A R U S | 181 “diversas embarcações, possivelmente nazistas nas
do contexto da guerra em Belém e o treinamento
cercanias do local”, e que tinha um tio que fazia
dos pracinhas da FEB.4
abastecimento de alguns submarinos alemães na cidade de Salinas-Pará, que estavam próximos da costa. Segundo o Sr. Raimundo, as autoridades locais descobriram tal fato e “desapareceram” com o tio “como forma de punição por sua traição à nação”. (pp.17-18). Tal depoimento é bastante revelador de algo que não foi pesquisado de forma profunda, o que poderia ser mais explorado pelos autores.
voltaram” faz uma breve abordagem dos excombatentes que morreram nos campos de batalha na Itália. Em contagem oficial, quatro combatentes paraenses da FEB, dois amazonenses e um acreano foram mortos. Já 21 paraenses foram mortos nos ataques dos submarinos alemães aos navios mercantes brasileiros. No quarto e último capítulo, “As repercussões da
No segundo capítulo, “A história que estava esquecida:
O terceiro capítulo “Os amazônidas que não
relatos
combatentes”,
há
da
guerra
vários
relatos
pelos
ex-
de
ex-
combatentes, termo que se refere aos cidadãos que, “de forma direta ou indireta, esteve a serviço da nação por ocasião da guerra.” (p. 30). O Contingente da Amazônia que fez parte da Força Expedicionária Brasileira (FEB) era formado por 786 homens. Esses homens saíram de Belém no dia 20 de dezembro de 1944 para o Rio de Janeiro, e de lá partiu em 8 de fevereiro de 1945 para os campos de batalha na Itália.
FEB dentro e fora do Brasil”, os autores exaltam em vários momentos a atuação da FEB, afirmando que os brasileiros “superaram todas as expectativas” (p. 87); que a criação da FEB e a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial “foi um marco fundamental da criação do Brasil e do mundo que conhecemos hoje” (p. 87); que o fato de as tropas brasileiras apresentarem homens e mulheres de todas as cores e matizes etnorraciais demonstrou a “falácia” do pensamento racista e da segregação racial, o que era comum no exército norteamericano, que separava brancos e negros; que
O livro traz depoimentos de ex-combatentes do
para o Brasil veio a ideia de “modernização das
exército, da aeronáutica e na marinha. A estrutura
relações na caserna e mais respeito aos suboficiais
basicamente
o
e soldados”, o que, segundo os autores, coloca as
entrevistado, com informações sobre a data e o
Forças Armadas Brasileiras hoje “entre as mais
local de nascimento, o momento em que fez parte
respeitadas do mundo”. (p. 88).
é
a
mesma:
apresenta-se
das forças armadas ou se alistou como voluntário, e qual a sua atuação durante a guerra. Além dos depoimentos, os autores utilizam outras fontes, tais como: diários, a exemplo do diário do praça Galliano Cei (1921-2007), que deixou registrado vários informações sobre a guerra; e o livro de Antonio Batista de Miranda (1923-2001), que trata
Ver MIRANDA, Antônio Batista de. Guerra: memórias... destino... . Belém: Evolution, 1998. 4
Podemos dizer que o grande mérito do livro é o de trazer à tona diversos depoimentos daqueles que viveram e participaram do contexto da Segunda Guerra Mundial, possibilitando aos leitores o conhecimento de inúmeras experiências que vão além do que foi registrado em discursos, relatórios de governo e jornais, por exemplo.
G N A R U S | 182 Destacamos os depoimentos dos ex-combatentes
Os autores exageram também ao falar das
da aeronáutica e da marinha, que geralmente são
repercussões da FEB fora do Brasil, focando apenas
deixados em segundo plano em relação aos
em aspectos positivos. Segundo Francisco César
soldados da FEB.
Ferraz, o Brasil, “ao recusar o uso de suas tropas
No entanto, o livro também apresenta alguns equívocos. No prefácio, Aristóteles Miranda afirma que a obra dá “o reconhecimento merecido aos pracinhas amazônidas e preenchendo uma lacuna na historiografia paraense.” (p. 8) Os autores afirmam ainda que “os eventos associados à guerra e os impactos do conflito no Pará e na Amazônia ainda são pouco conhecidos”. (p. 17) Se considerarmos que podem ser desconhecidos por um público em geral, não especialista no assunto, concordamos com os autores. No entanto, não
como forças de ocupação na Europa destruída, perdeu a oportunidade de ganhar importância nessa reordenação mundial”.6 Além disso, a aliança com os Estados Unidos não produziu os efeitos que se desejava, ou seja, uma proeminência brasileira na América do Sul, já que, com as mudanças nos responsáveis pela política externa nos Estados Unidos antes do fim da guerra, “não interessava compartilhar o poder político no continente sulamericano com o Brasil ou com qualquer outro país”.7
podemos generalizar esse “pouco conhecimento”
Outra questão problemática é que os autores não
em relação à produção científica acadêmica sobre
analisam as memórias dos ex-combatentes. Há uma
o tema, que possui muitas pesquisas sobre as
sucessão de narrativas, muitas delas desconexas,
repercussões da Segunda Guerra na Amazônia e no
sem relação entre si. Talvez por se tratar de um
Pará, muitas delas inclusive não citadas pelos
“reconhecimento” ao ex-combatentes, os autores
autores.5 Assim, a obra deixa de lado várias
não
pesquisas já realizadas que poderiam contribuir
problematizar os relatos dos entrevistados, nem de
para um debate maior acerca das memórias dos ex-
confrontar os depoimentos. Poderíamos dizer que
combatentes.
faltou um aporte teórico da história oral, que,
Ver por exemplo: FONTES, Edilza Joana de Oliveira. O pão nosso de cada dia: trabalhadores e indústria da
Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2003; PINON, Alerrandson Afonso Melo. Belém durante a Segunda Guerra Mundial: problemas de alimentação, energia elétrica e transporte (1939-1945). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2007; RODRIGUES, Venize Nazaré Ramos. “Memórias de guerra”. In: FARES, Josebel Akel (org.). Memórias da Belém de antigamente. Belém: EDUEPA, 2010, pp. 207215; SIMÕES, Adrialva. De pé pela honra do Brasil : o papel da imprensa paraense na divulgação da Segunda Guerra Mundial (1942-1945). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 1993. 6 FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 66. 7 Ibid. pp. 66-67.
5
panificação e a legislação trabalhista (Belém 19401954). Belém: Paka-Tatu, 2002; “A batalha da borracha, a imigração nordestina e o seringueiro: A relação história e natureza”. In: NEVES, Fernando Arthur de Freitas e LIMA, Maria Roseane Pinto (orgs.). Faces da História da Amazônia. Belém: Paka- Tatu, 2006; LIMA, Antonio José de Sousa. Guerra e memória: o cotidiano em IgarapéAçu durante o período de 1943 a 1945. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Castanhal-PA, 2006; MENEZES NETO, Geraldo Magella de. A Segunda Guerra Mundial nos folhetos de cordel do Pará. 82 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2008; A “ressurreição da alma cabana”: as passeatas de protesto contra o Eixo na Belém da Segunda Guerra. Em Tempo de Histórias. n. 23, Brasília, ago. – dez. 2013, p. 22-41; NAZARETH, Aleckssandra Guerreiro. Nunca vi tanta metralha: memórias de Belém do Pará no tempo da
tiveram
a
ousadia
de
questionar
e
G N A R U S | 183 segundo Verena Alberti “é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes”, que consiste “na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado.”8 Alessandro Portelli aponta que o que torna a história oral diferente é que ela “nos conta menos sobre eventos que sobre significados.” entrevistas
“sempre
revelam
As
eventos
desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos.”9. Portelli destaca que a história oral “é contada de uma multiplicidade de pontos de vista”, e que a confrontação de “diferentes parcialidades” é “uma das coisas que faz a história oral interessante.”10 Nesse sentido, a obra pode ser vista mais como um registro daqueles que atuaram direta ou indiretamente na Segunda Guerra Mundial do que um estudo crítico. Pode-se dizer que o livro conseguiu atingir o objetivo de olhar os pracinhas “com a dignidade que merecem”, mas que poderia ter ido muito além com a riqueza de depoimentos que trouxe.
Geraldo Magella de Menezes Neto é Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Professor da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, distrito Mosqueiro. Email: geraldoneto53@hotmail.com
ALBERTI, Verena. “Fontes orais - Histórias dentro da História”. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 155. 8
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, n. 14, fev., 1997, p. 31. 10 Ibid. p. 39. 9