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ANO III - Nº 6 - DEZEMBRO - 2015

GNARUS

Revista de História - ISSN: 2317-2002

MULHER

HONRAROCK

IDENTIDADE

ÁFRICA GUERRA

INQUISIÇÃO

MORTEDEUS PEC ADO FAVELA HISTÓRIA CINEMA

MAGREB

NEGROS

VIDA

HERÓI

MÍDIA

MÚSICA

QUADRINHOS MEMÓRIA

PAULO DE TARSO

PIERRE VERGER

FOTOGRAFIA

LEGENDA ÁUREA

MEIO-AMBIENTEPARAÍSO


G N A R U S |2

Equipe de Redação: Editores: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS) Pesquisa: Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Profª Cindye Esquivel (FIS) Prof. Renato Lopes (UNIRIO) Graduando Rafael Eiras (UCAM)

Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Profº. Felipe Castanho (UGF/FIS) Prof. Dr. Julio Gralha (UFF) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Rodrigo Amaral (UCAM/FIS) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS)

Apoio:  Faculdades Integradas Simonsen (FIS)  Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP)  Grupo de Estudos da Licenciatura em História - GELHIS

Revista Eletrônica Acadêmica/Gnarus Revista de História. Vol.6, n.6 (jul – dez 2015). Rio de Janeiro, 2015 [on-line]. Semestral. Gnarus Revista de História Disponível no Portal Simonsen em: www.gnarusrevistadehistoria.com.br ISSN 2317-2002 1. Ciências Humanas; História; Ensino de História


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Sumário Ao leitor .................................................................................................................................................................................................................. 4 Fernando GralhaErro! Indicador não definido.

ARTIGOS:

A construção de um herói humanizado no séc. VIII-V AEC. ......................................................................................................................... 5 Artur Vítor de Araújo Santana Erro! Indicador não definido. Meio ambiente nos anos 1970 – aspectos e reflexões sobre um conceito em (re)construção ............................................................. 16 Cássia Natanie Peguim Entre o contraste e o equilíbrio, Kemet e Duat: considerações sobre a vida e a morte no Egito Antigo ............................................ 23 Keidy Narelly Costa Matias A busca pelo saber: mulheres escritoras na Inglaterra do século XVIII ..................................................................................................... 29 Damaris Lima A origem do debate sobre o deus único e o surgimento da ideia da trindade no âmbito cristão (séculos III e IV D.C.) .................. 36 Flávio Henrique Santos de Souza Da civilização dos trópicos à barbárie das favelas cariocas ......................................................................................................................... 46 Dunstana Farias de Mello Entre o paraíso e o inferno: o “terceiro local” nas obras de Le goff e Vovelle ......................................................................................... 61 Airles Almeida dos Santos Griot: a memória da África ................................................................................................................................................................................ 72 Fernando Augusto Alves Batista Dentadura postiça: o rock durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) ................................................................................ 83 Gustavo Silva de Moura Identidade cultural, discriminação e preconceito ........................................................................................................................................ 92 Daiana Ximenes de Menezes e Cristiane Chaves de Oliveira Primeira visitação do santo ofício: o impacto sócio religioso na cultura brasileira sec. XVI.................................................................. 99 Luana Batista dos Santos Globalização e neoliberalismo na América Latina: limites entre teoria e prática .................................................................................107 Marco Antonio Correia de Carvalho Música e consumo: a industrialização da cultura ........................................................................................................................................114 Marília Luana Pinheiro de Paiva Da doutrina à parede: os sete pecados capitais representados em pinturas parietais inglesas..........................................................120 Amanda Basílio Santos Relendo Paulo. Reflexões metodológicas para os estudos paulinos ........................................................................................................129 Juliana B. Cavalcanti Traços guerreiros presentes na santidade da Legenda Áurea: algumas questões introdutórias ........................................................136 Leilane Araújo Silva Premissas, hipóteses e evidências: um olhar sobre o Magreb medieval .................................................................................................147 José Wilton Santos Fraga

ENTREVISTA

Bruno Leal...........................................................................................................................................................................................................153 Fernando Gralha e Cindye Esquivel

COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA

Para ler o cinema...............................................................................................................................................................................................160 Renato Lopes

COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA

A fotografia de Pierre Verger: Magia e produção de sentido. ..................................................................................................................163 Rafael Eiras

COLUNA: A HISTÓRIA NOS QUADRINHOS

O Eternauta ........................................................................................................................................................................................................170 Renato Lopes

RESENHA

Um convite a leitura de “O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa”.......................................................................175 Alex Rogério Silva Um convite a leitura de “Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia” .......................179 Geraldo Magella de Menezes Neto


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AO LEITOR

S

e de início na sua história o homem necessita de

a linguagem, o homem torna-se impossibilitado de

crenças e juízos prontos (nas formas de senso comum

compreender e atuar sobre o mundo que o cerca.

ou mito) a fim de serenar a agonia diante do caos e

Esta é uma de nossas ambições, uma ode ao pensamento

adquirir garantias para agir, com o tempo viu que ele

expresso na palavra, na linguagem. Se a palavra, que distingue

seja capaz de “reintroduzir o caos”, criticando as certezas e

o homem de todos os outros seres vivos, se encontra

verdades sedimentadas, abrindo frestas e fendas no “já

fortalecida na possibilidade de expressão, é o próprio homem

sabido”, de maneira a impetrar novas interpretações da

que se humaniza. Além disso, para que o distanciamento da

realidade.

ação seja possível, o homem faz uso da atividade coletiva, e na

Todo conhecimento oferecido tende a esclerosar-se no

linguagem da Gnarus que ao representar o mundo na palavra

costume, nos clichês, na superstição, no preconceito, no rigor

acadêmica, faz presente no pensamento o que está ausente e

das “escolas”, nas ideologias, no tempo. Esse conhecimento

comunica-se com o outro, com o mundo e o homem. Assim

deve ser revigorado pela construção de novas hipóteses e pelo

sendo, nosso trabalho se realiza então.

despertar de novas sensibilidades. É pelo empenho resultante

Nos trabalhos deste número, a palavra de nossos

do questionamento, que o saber tende a se tornar cada vez

colaboradores nos leva a muitos mundos, o dos vivos, o dos

mais complexo, geral e abstrato, que a razão forma o trabalho

mortos, o dos heróis, das mulheres, dos deuses, da barbárie,

de conceituação. A atuação do homem, de início fixada ao

da música, da política, dos pecados, dos guerreiros e muitos

mundo, é lentamente esclarecida pela razão, que consente

outros. Portanto buscamos somente um pouco de ordem para

“viver em pensamento” a circunstância que ele anseia

nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais aflitivo do

compreender e transformar.

que um pensamento que esquiva a si mesmo, ideias que

Este processo se dá no campo da representação máxima que

escapam, que esvanecem apenas tracejadas, já desgastadas

é a palavra, é pela palavra que somos capazes de nos colocar

pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também

no tempo, lembrando o que aconteceu no passado e

não dominamos.

antecipando o futuro pelo pensamento. Se a linguagem, através da representação simbólica e abstrata, permite o distanciamento do homem em relação ao mundo, ao mesmo tempo é o que permitirá seu retorno ao mundo para modificálo. Logo, se não tem oportunidade de desenvolver e aprimorar

1

Sobre o A-Letheia ver “Ao Leitor” Gnarus, nº 1.

Venham mais uma vez a navegar rumo ao A-Letheia.1

Fernando Gralha


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Artigo

A CONSTRUÇÃO DE UM HERÓI HUMANIZADO NO SÉC. VIII-V AEC Por: Artur Vítor de Araújo Santana

Resumo: No presente trabalho, busco construir uma imagem dos heróis gregos, estes que são seres de contradição, pois ao mesmo tempo que são mortais, possuem uma maior aproximação com o divino, já que em sua maioria são descendentes dos olimpianos. Procuro delimitar quais seriam as características humanas ou imortais presentes nos heróis, estabelecendo um paralelo entre as epopeias e as tragédias, tendo principalmente Romilly e Viera como referencial teórico.

Palavras-chave: herói; mortal; divinizado; epopeias; tragédias.

Odisseu e as Sereias, de John William Waterhouse, 1891.


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A edificação de um

exemplo da coragem,

herói e a herança

força,

astúcia

ou

homérica.

ainda

pela

sua

generosidade,

se

T

distanciam destes por

endo origem na

não

palavra

grega

‘hrvV

(íroias), o termo herói

p.87),

“homens divinizados

imortalidade.

Por

suas

fragilidades,

pois

destruiria-se forma,

essa

aura divinizada que

se prestava culto”

esses heróis tentam

mas a partir das

construir em volta de

de o

da

dessa

a quem após a morte,

Homero,

característica

ao máximo esconder

acordo com Romilly

influências

a

esse motivo, tentam

em grego designa, de (1970-2001,

possuírem

si mesmos.

termo

passou a transmitir o

O mérito heroico

ideal de homens sem

não se restringe a um

defeito

perfil guerreiro, pois

“praticamente

suas

imbatível, sublime no vigor

e

generosidade”,

na como

Representação de Héracles numa cratera grega do século V a.C., portando o seu arco, a sua clave e a pelo do leão de Neméia. Detalhe de Nióbidas, Museu do Louvre, Paris.

nos traz Viera,1 em seus

habilidades

divinas vão além da força textos

física.

Nos

homéricos

poderíamos citar alguns

comentários sobre a tragédia Héracles,

modelos desse ideal, como por exemplo, a

escrita por Eurípedes.

astúcia de Odisseu, que com o constante

Apesar desses semideuses persistirem na condição humana, sendo esses ideais transmitidos para o período clássico, esses heróis se tornam dessa forma, seres de contradição, pois ao mesmo tempo que estão próximos dos deuses olimpianos, através de suas habilidades grandiosas, a

VIEIRA, 2014A, p.144 Odisseia, Canto IX, vv. 216-566; 3 Idem, Canto X, vv. 275-555;

auxílio de Atena, leva a melhor sobre diversos oponentes, a exemplo de Polifemo2, Circe,3 as sereias4, Cila e Caríbdis5, entre outros. Assim como a generosidade de Heitor, que por seu irmão entra em batalha contra Pátroclo, pensando que seria Aquiles, pelo fato de estar usando a armadura do

1

4

2

5

Idem, Canto XII, vv. 156-200; Idem, Canto XII, vv. 223-262;


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pélida (presente de sua mãe, Tétis) tendo Heitor

a

vitória6.

Esse

fato

ocorreu

principalmente pela ajuda de Apolo, e mesmo não tendo linhagem divina, o troiano torna-se um grande herói.

dependem de sua vitória, pois ao serem derrotados, os habitantes da urbe estão sujeitos a escravidão ou a morte. Mesmo fazendo parte de um mundo humano, já que “nem toda magnitude

Por possuir esse desejo de alcançar o

heroica reúne forças suficientes para

estado divino, esses humanos estavam

enfrentar a enigmática instabilidade do

sempre preparados para a morte, desde que

destino divino”,8 pois constituem um grupo

ela ocorresse de forma honrosa, pois apenas

privilegiado,

dessa forma seriam eternizados. Essa glória

descendentes do trono, coincidindo dois

seria alcançada em batalha e nela, libertaria

importantes ideais, o de “nobre rei e

a sua coragem e força total, porquanto ao

poderoso guerreiro”.9

pressentir

a

proximidade

da

morte,

orgulhavam-se de matar ou de morrer, desde que fosse de uma maneira digna, que ocorreria através de algum duelo com um oponente a sua altura, surgindo dessa forma uma espécie de ligação com seu adversário, já que ambos entram de corpo e alma no combate, sendo essa a concepção de bela morte presente em Homero, onde “todos os heróis [...] vangloriam-se de seu feito, francamente e sem reservas”.7 Essa infinda coragem, se destaca entre os heróis, principalmente em tempos de guerra, quando vão defender sua pólis, quando sedentos de sangue lutam em defesa de suas mulheres, crianças e pelos anciões, que ficam nas cidades gregas, assim como todos seus bens. Nesse momento, não é apenas a busca de renome ou glória que se destaca, mas a proteção de seus entes queridos, que

Ilíada, Canto XVI, vv. 581-867; ROMILLY, 2001, p.93 8 VIEIRA, 2014A, p.150 9 ROMILLY, 2001, p.88 10 De forma sucinta, busquei identificar os personagens que mais se sobressaem tanto na Odis6 7

são

em

geral

reis

ou

Tanto nas epopeias, quanto nas tragédias, existem diversos personagens que se enquadram nessas características. Pode-se citar Odisseu (rei de Ítaca), Agamenon (rei de Micenas), Menelau (rei de Lacedemónia ou Esparta), Ájax (príncipe de Salamina), Aquiles (príncipe dos Mirmídones), Heitor (príncipe de Troia), Telêmaco (príncipe de Ítaca)10, entre outros. Que além do participarem da aristocracia,

carregam

consigo

feitos

grandiosos. Apesar da grandiosidade presente nesses humanos, os semideuses estavam em conformidade

com

um

“código

de

conduta”11, que disseminava algumas regras, as quais um herói não deveria fazer. Entre esses ideais pode-se destacar características como “fugir, bem entendido, mas também lesar outrem, faltar à sua palavra, matar voluntariamente,

trair”12

que

era

seia, como na Ilíada, assim como traçar sua região de origem, que também equivale a pólis que os heróis têm domínio político. 11 ROMILLY, 1970, p.92 12 Idem, 2001, p.92


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Corpo de Heitor sendo levado de volta a Troia – Alto relevo em mármore, detalhe de um sarcófago romano do século II, atualmente no Museu do Louvre. internalizado no íntimo de cada um desses

comum14, mas também sua aparência, já que

indivíduos, a ponto de que, ir contra a esse

são em sua maioria descendentes divinos,

código os aproxima da mortalidade e do

levando a sociedade grega a imagina-los

caráter humano, que os inferioriza dos

como uma representação dos deuses

deuses.

olimpianos na terra. Essa representatividade imagética que os

A divindade heroica; Vernant sintetiza a aparência heroica como “homens diferentes daquilo que são hoje: maiores, mais fortes, mais belos [...] é a raça de homens agora extinta”.13 Essa citação nos introduz a uma nova perspectiva voltada para os heróis, em que, não apenas suas habilidades os diferem da população

VERNANT, 2006, p.47 Homens sem nenhuma herança divina, mais distante dos olimpianos do que os heróis, que 13 14

semideuses ocupavam nas pólis gregas, criava o que Vernant denominou de “estatuto heroico”15, que seria a “promoção de um mortal a um estatuto, se não divino, pelo menos próximo do divino”,16 o que resultou

no

surgimento

de

diversos

santuários dedicados aos heróis, onde eram realizados sacrifícios e festividades. A importância desses mortais chegou ao ponto possuem uma relação com uma maior proximidade a essas divindades. 15 VERNANT, 2006, p. 48 16 Idem


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de denominar cidades e patrimônios, em

onde ao serem cultuados, vão aos poucos se

homenagem a seus grandiosos feitos.

imortalizando.

O culto desses heróis nas cidades, em altares ou no próprio sepulcro desses mortais, ficava sobre a responsabilidade do Estado, que possuía um caráter religioso, mas o culto heroico não se igualava aos rituais destinados ao divino, exercendo esses semideuses um papel de intercessores, onde “de um lado em relação ao culto divino, obrigatório para todos e de caráter permanente, e de outro em relação aos ritos funerários, reservados [...] a instituição heroica”17 constituindo um equilíbrio entre as adorações entre esses semidivinos e as divindades. Nesta outra citação de Vernant,18 pode-se observar que

“O rito aciona a mesma experiência do "divino" em geral, como potência supra –humana (to kreítton). Esse divino indeterminado, em grego tà thefon ou tà daimónion, subjacente aos deuses específicos, diversifica-se em função dos desejos ou dos temores aos quais o culto deve responder.”

Essa “heroicização”19 parte do pressuposto de que

“Os personagens heroicos cujos nomes sobrevivem e cujo culto era celebrado em seus túmulos apresentam-se muito frequente como o fruto desses encontros amorosos entre divindades e humanos dos dois sexos” 20 E dessa hierogamia21, nasce indivíduos que apesar de sua condição mortal, estão “mais próximos dos deuses, menos separados do divino do que a humanidade atual”.22 Podemos

citar como exemplo dessas

relações nas tragédias, a união Zeus e Alcmena23, que deu origem a Herácles. Não era apenas no nascimento que esses semideuses se destacavam,

dos rituais destinados aos heróis não se

“A morte também os coloca acima da condição humana. Em vez de descerem as trevas do Hades, eles são, graças ao divino ‘arrebatados’, transportados, alguns ainda vivos, a maioria após a morte, para um lugar especial, afastado, para a ilha dos Bem-Aventurados, onde continuam a gozar em permanente felicidade, de uma vida comparável à dos deuses”.24

igualarem aos prometidos aos deuses, há

Um exemplo da importância do culto

uma ascensão do caráter mortal dos mesmos,

heroico, pode ser observado na Odisseia,

Dessa forma, podemos notar que apesar

Canto XI, vv. 482-486, onde Odisseu

Idem, p.45 Idem, p.23 19 VERNANT, 2006, p. 49 20 Idem, p.48 21 “União sexual entre uma divindade e um indivíduo mortal” (GUERRA, 2008, p. 64), mas nunca revelando o imortal, sua potência divina ou levaria o ser humano a morte, sendo esse um dos motivos de Zeus se metamorfosear em algum animal para realizar o coito com suas pretendentes, a exemplo de Europa, que transformado em 17 18

um touro, a rapta e a leva para ilha de Creta, onde a desposou. 22 VERNANT, 2006, p.48 23 Segundo o mito, a mulher mais bela da terra, o que despertou os ciúmes de Hera, que culminaram com o surgimento do ódio destinado ao fruto da relação da mortal com seus esposo, Zeus, criança que veio se chamar Héracles (HÉRACLES, p.127, vv. 1.258-1.264) 24 VERNANT, 2006, p.48


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hidra. Obrei muitíssimo até descer ao mundo cadavérico, pois que Eurismeu mandara resgatar o cão tricéfalo, postado no Hades”.28

encontra com Aquiles no Hades, quando foi consultar Tirésias, a conselho de Circe, anunciando ao Pélida sua supremacia sobre os mortos, onde

Na “ordem hierárquica [...] no topo, os

“És o mais bem-aventurado no presente e no futuro: vivo, nós, argivos te rendíamos honores dos divinos; hoje, é enorme o teu poder restando entre os cadáveres aqui. Não te aniquile, Aquileu, a morte!” Apesar

de

possuírem

uma

theoí, os deuses grandes e pequenos, que formavam a raça dos Bem-aventurados imortais”29, possuíam uma superioridade diante dos mortais, e mesmo assim em um momento de fúria, Héracles renuncia os

posição

deuses, em sinal de repúdio a suas

privilegiada em relação aos outros mortais,

interferências na vida do mesmo, exaltando-

nada se compara aos tempos de renome e

se a Teseu, já que apesar de tantas provações,

glória, o que pode ser percebido no decorrer

ele mantem-se vivo, além de outro fatos que

do diálogo entre Odisseu e Aquiles no

o leva a negar a proteção divina.30

Hades, quando este último responde ao Héracles acredita que se “um deus, se é

Laércio que

deus, de nada necessita”,31 por esse motivo

“não queira embelezar a morte, pois preveria lavrar a terra de um ninguém depauperado, que quase não tem o que comer, a ser o rei de todos os defuntos cadavéricos”.25

não mereceriam de oferendas, rituais ou

Preferindo Aquiles dessa forma, ser um

idem”,32 dessa forma, se os olimpianos

criado de um pobre agricultor, do que rei dos

lançarem castigos sobre Héracles por sua

mortos, sendo um dos motivos para tal

oposição ao Olimpo, mas rude ele seria com

conclusão, a falta de informações sobre sua

as divindades.

família, em especial seu

pai26

e seu

festividades, pois sua imortalidade já seria o suficiente para se auto satisfazerem. E se por acaso os “deuses são duros e eu, com eles,

filho27. Héracles: A condição e a dor mortal;

Além dos benefícios que possuem os heróis, Mesmo com esse processo de divinização,

existe suas características divinas e com o auxílio delas, surgem os feitos grandiosos, como cita Herácles:

o

herói

persiste

comumente

passa

na

mortalidade,

e

por

momentos

de

provações, onde seu lado humano vem à

“Houve leões ou hordas de quadrúpedes centauros ou gigantes ou tifões tricorpos que eu não tenha trucidado? Dei cabo da cadela cujos crânios sempiespocavam, a ODISSEIA, Canto XI, vv. 487-491 Peleu; 27 Neoptólemo; 28 HÉRACLES, p.127, vv. 1.271-1.278 29 VERNANT, 2006, p. 53 25 26

“Não te irrites ancião, pois eu renego, ó pai, o olímpio” (HÉRACLES, p.127. vv. 1.264s) 31 EURÍDES, p. 61, vv.1.344 32 EURÍDES, p. 61, vv.1,243 30


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tona33, tomando o luto como ponto de

importante papel desempenhado pelo deus

partida.

em sua vitória.

Podemos perceber que,

Em contraposição a dor divina que é

“A imortalidade, que traça entre homens e deuses uma fronteira rigorosa, é um traço demasiadamente fundamental do divino para que o senhor do Olimpo possa ser assimilado de algum modo a uma daquelas divindades orientais que morrem e renascem.”.34

devastadora e permanece por um período mais longo, apesar de ser um fato muito raro, em contraposição “a dor humana é mais frequente, mas não é evocada com tanta força”.37 Podemos tomar como exemplo de um luto

Dessa forma, a imortalidade torna-se uma

divino, a morte de Sarpédon, filho de Zeus

barreira entre o que é ser herói e o que seria

com Europa, rei dos Lícios, que foi morto pela

o divino, por esse motivo os deuses

lança de Pátroclo38. Quando a divindade

constantemente

percebeu que o destino de seu filho seria a

estão

lembrando

os

semideuses dessa sua característica, como forma

de

se

sobressair

diante

morte, o mesmo resolveu interferir,

da

“Pobre de mim o Destino asselou que o mais caro dos homens o meu Sarpédon tombe hoje aos golpes de Pátroclo exímio! O coração sinto agora indeciso entre dois pensamentos: levá-lo-ei para longe da pugna lugente e o coloco neste momento com vida entre o povo opulento dos Lícios ou deixarei que o vigor lhe despoje o viril Menecíada?”

mortalidade. Esses heróis são continuamente testados, principalmente por intervenção divina, por esse motivo “as preces, os sacrifícios, as oferendas nunca são negligenciadas. A observância destas regras vale aos heróis a

39

amizade dos deuses”,35 pois através desses sacrifícios, eles alcançam que esses seres

Mas observando a insegurança do esposo e

divinizados os protejam e os garantam atos

a escolha que estava prestes a tomar, Hera o

gloriosos como vimos frequentemente nas

lembrou da lei que impossibilitava a

tragédias, a exemplo de Héracles, no livro As

interferência divina na vida dos mortais

Traquínias, de Sófocles, que ao concluir os

durante a guerra, o que poderia desencadear

doze trabalhos, não segue imediatamente ao

a ira dos demais olimpianos, pois havia vários

leito de sua casa, mas parte para realizar “o

filhos dos mesmos em combate.

rito em que oferece dádivas a Zeus pela

“Zeus prepotente nascido de Cronos que coisa disseste? Tens a intenção de livrar novamente da morte funesta ao lutador que se encontra fadado a morrer há já muito? Seja se o queres

conquista”,36 dessa forma, reconhecendo o

Não querendo dizer que os deuses não tenham sentimentos, mas buscar diferenciar um sofrimento divino de um mortal. 34 VERNANT, 2006, p. 37 35 ROMILLY, 2001, p.91 33

36

SÓFOCLES, 2014, p.37

37

ROMILLY, 2001, p.102

ILÍADA, Canto XVI, vv. 480-563 39 ILÍADA, Canto XVI, vv.433-438 38


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conquanto nós outras jamais te aprovemos. Ora outra coisa te quero dizer guarda-a bem no imo peito se resolveres enviar para casa a Sarpédon vivo não aconteça quererem também retirar outros deuses seus caros filhos do meio dos duros combates e pugnas pois ao redor das muralhas de Príamo lutam muitíssimos filhos de deuses: entre estes farás vicejar a discórdia”40

mãos de Heitor, com o auxílio de Febo Apolo, sendo uma forma de vingar-se da morte de Sarpédon42.

“Nuvem de dor envolveu a alma nobre do grande Pelida que tendo terra anegrada tomado nas mãos a derrama pela cabeça desta arte as graciosas feições afeando. De cinza escura manchado também fica o manto nectáreo. Logo na poeira se estende ocupando grande área no solo e os ondulados cabelos com ambas as mãos arrepela.”43

Ao seguir o conselho de sua cônjuge, e ver o fim de seu filho com a lança do pélida encravada no peito, a divindade entra em um luto profundo onde torna a “noite funesta Zeus grande estendeu sobre a pugna terrível para que em torno do corpo do filho maior fosse a luta”,41 criando um clima de desolamento,

que

acompanhava

profundos

seus

sentimentos.

Não parou neste trecho o luto do herói, já estando afastado do campo de batalha desde o primeiro canto, pelo fato de Agamémnon ter tomado Briseide, prima de Heitor, para si, de quem o Pélida gostava, e logo em seguida a morte de seu primo a quem tinha grande admiração, já que havia sido criado junto a si, possuindo até o mesmo tutor, o centauro Quíron.

Toda

essa

sequência

de

acontecimentos ruins favoreceram ainda mais para o desconsolo do herói,

“As mãos de Aquileu que fundos lamentos no peito agitava visto recear que ele o tenro pescoço com o ferro cortasse. Solta gemidos terríveis; ouviu-os a mãe veneranda das profundezas do mar onde ao lado do pai se encontrava. Em altos gritos prorrompe; cercaram-na logo afanosas todas as deusas nereides que o fundo do mar habitavam.” 44

Aquiles cura Pátroclo - Detalhe de vaso em técnica de cerâmica vermelha 500 a.C. Um sentimento parecido tomou conta de Aquiles, quando o mesmo descobriu a morte de seu amante Pátroclo, a quem havia emprestado sua armadura divina (presente

Como consolo, prometeu ao cadáver de seu primo que o vingaria, o que veio acontecer em batalha, vencendo Heitor e mutilando os restos mortais do troiano.

“Ainda que no Hades escuro te encontres alegra-te Pátroclo pois vou cumprir tudo

de sua mãe, a ninfa Tétis), que foi morto pelas

ILÍADA, Canto XVI, vv. 440-450 ILÍADA, Canto XVI, vv. 556-558 42 ILÍADA, Canto XVI, vv. 1-100 40

43

41

44

ILÍADA, Canto XVIII, vv. 22-27 ILÍADA, Canto XVIII, vv.33-38


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quanto afirmei que fazer haveria. Trouxe arrastado o cadáver de Héctor para aos cães atirá-lo e na fogueira sagrada pretendo imolar doze Teucros dos de mais lúcida estirpe por causa tão-só de tua morte.” 45

- Uma nuvem me estreita com lamentos. -Por isso eu lamento a tua sina. - Feito bacante, aniquilei meu lar? - Eis o que sei: tudo que é teu se arruína”47

Na tragédia grega também podemos encontrar exemplos da dor heroica, que aproxima

ainda

mais

o

semideus

a

mortalidade, como modelo desse ideal, podemos citar Héracles, que sob influência

Na tentativa de vingar a morte da esposa e dos filhos, Héracles pensa em se matar para não conviver com esse peso nas costas,

“Fará sentido preservar a vida do matador de seres tão queridos? Arrojo-me do precipício oblíquo, encravo o gládio firme contra o fígado, a fim de justificar o sangue infante? Ateio fogo sobre minha própria carne, poupando-me da infâmia que me resta” 48

da deusa Loucura, a mando de Hera, dizima toda sua família, que era composta por Mégara e seus filhos, sobrando apenas Anfítrion, seu pai terrestre, que ao chegar ao local do ocorrido, assusta-se com o que vê,

“As crias cadavéricas já são visíveis, diante do pai que é um traste adormecido, concluído o assassinato dos meninos. Em torno de se corpo, um complexo de amarras, cordas, nós cegos, que o prende ao colunário pétrio do solar” 46 Héracles ao voltar a si, encontra-se amarrado a um poste, sendo através de Anfítrion que fica a par do ocorrido, entrando em desespero o filho de Zeus.

Mas com os conselhos de seu pai e de Teseu, é convencido do contrário, onde ambos lhe dão dicas de como reverter a situação e seguir em frente, o que ameniza o luto que sente o herói, por fim demostrando outra característica que o aproxima da mortalidade, que seria a aceitação de sua minoridade diante de um mundo fútil, onde “não pensa bem quem sonha em ter riqueza e poderio, mas do que ter um amigo”.49

“- Olha no chão os corpos dos meninos! - Não posso crer! O que me vem a vista? - Guerreaste uma antiguerra com teus filhos. - Guerra? Não entendi! Quem os matou? - Tu mesmo, o arco e o nume responsável.

Ao decidir que irá seguir caminho ao lado de Teseu, Héracles ainda desconsolado e deprimido, chorando muito, se despede de seus pais e recomenta como realizar o sepultamento de sua família, mas seu amigo a qual resgatou do Hades, acredita que o

- O que anuncias pai? Que mal fiz eu?

herói

- Enlouqueceste! Indagas teu sofrer.

“criticarão de seu modo feminino”.50

deva conter

suas

lágrimas ou

- Fui matador também da minha esposa? - A mão de ninguém fez o que fez. 45

ILÍADA, Canto XXIII, vv. 19-23

EURÍPEDES, p.97, vv. 1.032-8 47 EURÍPEDES, p. 109-111, vv. 1.131-1.143 46

EURÍPEDES, p.112/3, vv.1.146-1.152 EURÍPEDES, p.141, vv. 1.425-6 50 EURÍPEDES, p.129, vv. 1.412 48 49


G N A R U S | 14

Ninguém há de tomar a iniciativa de arrancar-me a cabeça e dar fim à vida estígia? Ai!” 53

Outro momento em que Héracles inicia um processo de humanização, é logo após retornar de seus doze trabalhos, mas no enredo dessa tragédia51, ele está casado com Dejanira, sua segunda esposa, que está ansiosa para revê-lo, mas a mesma acaba descobrindo que seu marido traz consigo uma concubina, denominada Iole, filha do rei Êurito, da Ecália, a qual o herói destruiu para conseguir desposar a princesa. Enfurecida Dejanira envia um peplo envenenado por Licas, o arauto de Héracles, acreditando a mesma que sua encomenda seria dado de presente a outra mulher de seu esposo, o que não acontece, já que o próprio semideus veste-se com a túnica, o que o leva a sentir

Ainda que utilize tantos clamores, nenhum dos presentes, inclusive seu filho, realizou seu desejo, dizendo Hilo que o amparava, “mas não tenho interna ou externamente condições de dar alívio à sua dor, pois Zeus decide.”54 Ao perceber a decisão tomada pelo filho, o semideus conclui que é seu fim, e entende a profecia do oráculo. Por esse motivo ele transmite a Hilo, como quer seu funeral55, e pede-lhe que “evita derramar seu pranto. Ausente o pranto, ausente o teu lamento, se provéns de um hercúleo, age, ou pesa minha eterna maldição nos ínfernos!”56

emortecidas dores.

“O Zeus, onde me encontro? Que mortais ladeiam-me jazente, fustigado por inúmeras dores? Ai! Quanto sofrimento! Sinto que trincha o dente da moléstia!”52 Mas mesmo em um momento tão humano, que é no momento da morte, Héracles toma medidas dignas de um deus, que ao mesmo tempo são pautadas em princípios mortais, já que pede a Hilo, seu filho, que acelere sua morte, arrancando-lhe a cabeça,

“Deixai que durma o moiramarga, deixaime... a mim, entregue ao torpor extremo! Sinto tua mão que pesa! Onde me reclinas? Me eliminas? É o meu fim? Açodaste o que não bulia. Fisgou-me, ai!, no seu retorno. Onde vos encontrais, gregos, primazes na injustiça? Eu me empenhei em depurar por vós demasiados mares, jângal sem exceção, e adoecido no presente fogo não há, gládio tampouco, que tenha serventia. Ai! 51

As Traquínias, de Sófocles

SÓFOCLES, p.99, vv. 983-987 53 SÓFOCLES, p.101, vv.1.003-1.016 52

Conclusão: Em síntese, podemos observar que os heróis eram seres divinizados, tanto em sua aparência, quanto em seu caráter. São humanos descendentes dos olimpianos, e para não serem comparados a um simples mortal, vivem com seus feitos grandiosos, buscando alcançar o renome e a glória, o que os aproximaria da imortalidade. Por essa aproximação ao divino, eles serviriam

como

intercessores

entre a

população e as divindades, o que resultaria nas festividades e cultos heroicos. Mesmo com a construção dessa aura divinizada, os semideuses continuam persistentes nas características que os tornam mortais, como

SÓFOCLES, p.101, vv. 1.017ss SÓFOCLES, p.117, vv. 1.193-1.202 56 SÓFOCLES, p. 117, vv. 1.199-1.202 54 55


G N A R U S | 15

exemplo, na demonstração frequente de seus sentimentos. Artur Vítor de Araújo Santana é Graduando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana –UEFS.

Documentação: EURÍPIDES. Héracles; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014A. HOMERO. Odisseia; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2013. SÓFOCLES. As Traquínias; tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2014B.

Bibliografia: GUERRA, Lolita Guimarães. Entre dois mundos: ressurreição e hierogamia nas mitologias grega e judaico-cristã. Dissertação (Mestrado em História Comparada) UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, 2008. JAEGER, Werner. “Nobreza e arete”. In: Paidéia: A formação do homem grego; tradução Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa; tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. ROMILLY, Jacqueline. Homero: Introdução aos poemas homéricos. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 89-109. ROMILLY, Jacqueline. A tragédia grega. São Paulo: Editora UnB, 1998, p. 8-46. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia Antiga; tradução Joana Angélica D’Avila Melo – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006, p. 37- 57


G N A R U S | 16

Artigo

MEIO AMBIENTE NOS ANOS 1970 – ASPECTOS E REFLEXÕES SOBRE UM CONCEITO EM (RE)CONSTRUÇÃO Por: Cássia Natanie Peguim Resumo: As últimas décadas do século XX foram marcadas por uma economia mundial globalizada e por mudanças nos valores sociais. Neste contexto, os movimentos ambientalistas, a formação de partidos verdes e ONGs ambientais refletem preocupações de ordem econômica, social e política para com a manutenção da qualidade do meio ambiente humano, particularmente em relação às instituições e aos valores humanos, políticos e de mercado das sociedades industriais. Diante da necessidade de se desenvolver novas concepções que explicassem as características daquele momento, a pesquisa científica e os acordos políticos e científicos subsequentes foram os meios para a compreensão do meio ambiente e das transformações na sociedade do Pós-Segunda Guerra, tendo como finalidade o controle de recursos necessários ao desenvolvimento econômico. Essa dupla função demonstra que a relação do ser humano com o seu ambiente envolve poder político. Palavras-chave: História; meio ambiente; sociedade.

O

lhando retrospectivamente para os anos

uma nova face da política, não mais dual –

1970 podemos vislumbrar algumas de

direita/esquerda - mas fragmentada e focada em

suas características: a economia mundial

problemas específicos de uma sociedade que

globalizada, a crise econômica provocada pelo

ganhava novas formas após a Segunda Guerra. A

salto dos preços do petróleo, as disputas políticas

formação de partidos verdes e a organização da

entre as potências da Guerra Fria, o avanço do

sociedade

conhecimento científico e as mudanças dos valores

Governamentais

da sociedade. Especificidades que se configuraram

internacionais, nas últimas décadas do século XX,

como indicadores de transformações históricas

refletem preocupações de ordem econômica,

importantes desencadeadas naquela década.

social e política para com a manutenção da

civil

em -

Organizações ONGs,

nacionais

Não e

Na trilha deixada pela efervescência dos

qualidade do meio ambiente, particularmente em

movimentos sociais do fim dos anos 1960 e de toda

relação às instituições das sociedades industriais e

a década de 1970, o movimento ambientalista, ao

seus valores humanos, políticos e de mercado. Na

lado dos raciais e de gênero, se configura como

esfera das instituições intergovernamentais como a


G N A R U S | 17 Biosfera,

popularmente

conhecida

como

Conferência da Biosfera, organizada pela UNESCO em 1968. Estas questões partiram de problemas reais como o crescimento populacional, a fome endêmica,

a

desigualdade

nos

lucros

da

produtividade - tanto industrial como agrícola - a crise dos recursos não renováveis, a necessiade de desenvolvimento econômico, a urbanização e a poluição.

ONU e a UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a compreensão da dinâmica biológica da Terra é colocada como meta dos programas de pesquisa. O pequeno grupo de cientistas reunidos no Clube

de Roma em parceria com o MIT - Massachusetts Institut of Technology, organiza o programa de pesquisa Um Projeto sobre o Dilema da

Humanidade que tem os resultados de sua primeira fase

divulgados

no

relatório

Limites

do

Crescimento, elaborado entre 1968 e 1972 sob direção de Dennis Meadows. Neste último ano outro relevante relatório é elaborado: Uma Terra

Somente, destinado à Conferência do Meio Ambiente Humano, organizada pelas Nações Unidas, em Estocolmo, no ano de 1972. Ambos os relatórios buscaram sintetizar os temas que provocavam inquietações a respeito dos efeitos que a atividade humana estava causando à natureza e qual seria o impacto das mudanças da natureza sobre o homem. Limites do Crescimento e Uma

Terra Somente intensificaram a discussão sobre o meio ambiente já em debate na política das organizações intergovernamentais como a ONU e a UNESCO, uma vez que aprofundaram as questões de cunho científico levantadas na Conferência Intergovernamental sobre as Bases Científicas para Uso e Conservação Racionais dos Recursos da

Alguns aspectos da abordagem dada ao meio ambiente nas discussões desenvolvidas sobre o tema durante a década de 1970 são abordados neste artigo. São consideras as percepções que a sociedade do pós-guerra, no período mencionado, tinha do ambiente em que vivia a partir de suas manifestações políticas e da produção material que a caracterizava, ou seja, a indústria, a agricultura, a ciência e a tecnologia. A análise busca tratar a questão ambiental por meio de uma perspectiva histórica,

reunindo

elementos

sociais

determinantes na relação sociedade-natureza a partir da leitura, compreensão, avaliação e comparação entre os conteúdos dos relatórios

Limites do Crescimento e Uma Terra Somente. O caráter político da abordagem aqui empregado se pauta

metodologicamente

na

análise

das

percepções sobre a natureza, como sugerido por Donald Worster em Para fazer História Ambiental (WORSTER, 1991). Também nos orientamos pela interpretação

historiográfica

retrospectiva

sugerida por Eric Hobsbawm que compara o passado para entender o presente possibilitando equacionar

determinada

problemática.

Particularmente no livro Era dos Extremos (HOBSBAWM, 2005) em que o autor foca os elementos que particularizaram o século XX, como acontecimentos, ações, decisões, transformações e questionamentos que marcaram este contexto.


G N A R U S | 18 Para a historiadora Regina Horta Duarte, a atitude das sociedades humanas em relação ao meio

referênciais e declinara para a instabilidade e a crise.

natural não é única, antes ela é variável e diversa de

Para o historiador Eric Hobsbawm, esta descrença

acordo com os sentidos conferidos por sociedades

nas instituições se relacionava com um processo de

distintas ao longo do espaço e do tempo de forma

desestruturação das características políticas das

descontínua, cabendo ao historiador

duas décadas anteriores a 1970, por uma dissolução

“entender como foi possível, durante certo período de tempo, a construção e a imposição de certa ideia como verdadeira e por que contestações eram inadmissíveis” (DUARTE, 2005, p.77).

A partir da Conferência do Meio Ambiente Humano a natureza foi associada à indústria, à pesquisa científica, às relações internacionais, à e

ao

desenvolvimento.

Podemos

considerar que estas eram as cinco esferas em torno das quais instituições intergovernamentais como a ONU e a UNESCO pensavam o meio ambiente - um conceito em formação no início da década de 1970. O momento é abordado em Limites do

Crescimento e Uma Terra Somente como marcado por uma situação inédita e complexa vinculada ao caráter interdependente dos problemas que envolviam o meio ambiente. Para o Clube de Roma, o ritmo acelerado da industrialização, o rápido crescimento

demográfico,

a

desnutrição

generalizada e o esgotamento dos recursos naturais não renováveis eram tidos como “tendências

aceleradoras do mundo moderno” (MEADOWS, 1973, p.18).

e por um mundo ligado à economia transnacional (HOBSBAWM, 2005, p.393-413). A política se desprendera da dicotomia direita/esquerda e

Esta é a tarefa que se busca realizar neste artigo.

economia

das antigas instituições sociais, entre elas o Estado,

Somava-se a estes fatores o que

Bárbara Ward e René Dubos, responsáveis pela redação final de Uma Terra Somente, chamaram de “a ameaça a certos valores naturais que

transcendem as necessidades orgânicas” (WARD; DUBOS, 1973, p.20). De modo que a pobreza, a deterioração do meio ambiente e a perda de confiança nas instituições estatais e socioculturais se colocam como algumas das características desse mundo moderno. Um mundo que perdera seus

fragmentara-se

em

movimentos

sociais

especializados. Os movimentos verdes fizeram parte dessa nova força política ao lado de grupos étnico/nacionalistas.

Paralelamente,

a

consolidação da economia globalizada atingira as bases do Estado-Nação territorial, uma vez que seus limites físicos não agiam mais sobre o intercâmbio de mercadorias, informações e também resíduos industriais (HOBSBAWM, 2005, p.406-413). De acordo com o observado no estudo Limites do

Crescimento, havia uma necessidade de se desenvolver novas concepções que explicassem as características daquele momento. O poder, a extensão e a profundidade das intervenções do homem, seja na ciência, nas novas políticas ou no mercado consumidor, pareciam pressagiar uma “nova época revolucionária na história humana,

talvez a mais revolucionária que o pensamento pudesse conceber” (WARD; DUBOS, 973, p.39). As determinantes dessa nova época seriam a escala e a velocidade destas transformações. Ambas atuariam num contexto caracterizado pela interação de um número crescente de pessoas que consumiriam mais energia e materiais, todas tendendo a aglomerar-se nas regiões urbanas e concentrando em um novo grau as demandas de consumo, movimentos, ruídos e refugos. Observando-se estes fatores, é possível verificar que a demografia e a ecologia eram dois aspectos centrais e, em longo


G N A R U S | 19 prazo, decisivos nas discussões políticas e

agrícola. Uma situação exemplificadora é o fato de

científicas daquele período.

ecologistas darem séria atenção aos efeitos do

O ano 2000 aparece como um fator norteador das

tráfego de automóveis e da poluição atmosférica

preocupações de ambos os relatórios. Vivia-se uma

somente após 1973, quando a OPEP – Organização

expectativa pela virada do século acompanhada

dos Produtores e Exportadores de Petróleo; decidiu

por uma apreensão diante dos problemas que o

finalmente cobrar o que o mercado podia pagar por

século que então anunciava seu fim poderia levar

ele (HOBSBAWM, 2005, p.258). Apesar de uma

para o novo. Um crescimento sem limites da

política de bem-estar-social, a política industrial

população e um colapso mundial figuravam entre

pautava-se na economia de livre mercado.

as previsões. A estas, relacionavam-se medidas

Com o desdobrar destas transformações nas

sobre o comportamento individual e coletivo, como

últimas décadas do século XX, o homem passaria a

maior produção de alimentos, reaproveitamento

habitar dois mundos: o natural e o das instituições

de materiais e novos padrões de consumo. O

sociais e dos artefatos que constrói para si mesmo;

momento exigia a obtenção de um estado de

o que corresponderia a Biosfera e a Tecnosfera

equilíbrio.

(WARD; DUBOS, 1973, p.37). A relação do ser

De acordo com Limites do Crescimento, a

humano com sua sociedade e a natureza passa

sociedade equilibrada teria que ver a Terra como

então a ser definida por uma atuação, onde ele,

finita e elaborar alternativas a esta condição,

homem, não somente sobreviveria, mas modelaria

levando em consideração os valores humanos

o ambiente e por ele seria modelado.

daquele contexto e as futuras gerações. Para isso

Na perspectiva dos elaboradores de Uma Terra

aquela sociedade precisaria de melhores recursos

Somente, o conceito de Ambiente Humano,

do que os já possuídos, esclarecer e realizar

divulgado na Conferência de Estocolmo,

alternativas definidas como realistas e viáveis e estabelecer metas sociais compatíveis com os objetivos a longo e curto prazo exigidos para a manutenção da qualidade de vida do ser humano (MEADOWS, 1973, p.178-179). A atenuação da poluição e a redução demográfica dos países, particularmente dos então chamados países do Terceiro Mundo, eram duas das medidas propostas.

“[...] significa mais que a manutenção do equilíbrio ecológico, que o controle econômico dos recursos naturais e mais que o controle das forças que ameaçam a saúde biológica e mental. Idealmente requer também que os grupos sociais e indivíduos tenham a garantia de oportunidade de desenvolverem estilos de vida e ambientes de sua própria escolha” (WARD; DUBOS, 1973, p.25).

Ambas geraram polêmica, pois afetavam o

As ações inclusas no conceito deveriam restaurar

crescimento industrial de paises desenvolvidos e

o equilíbrio e a esperança, moderar os desesperos e

em desenvolvimento.

as pressões sociais e fixar normas comuns para a

O ambiente ganha um valor semelhante a uma

obtenção de uma política que viabilizasse este

mercadoria num contexto de descontrole das

projeto (WARD; DUBOS, 1973, p. 66). O controle

operações capitalistas, crise da política de bem-

deveria ser exercido sobre as formas de uso dos

estar-social, transição para o neoliberalismo,

espaços e dos recursos, inclusive do ar e da água, e

flutuações

consequências

dependeria de estratégias para a sobrevivência das

ecológicas devidas à mecanização da produção

nações. A elaboração destas estratégias tinha como

na

economia

e


G N A R U S | 20 meta “convencer as nações a aceitarem uma

ambiental das relações entre seus integrantes [...] Foi preciso criar normas de conduta para evitar a degradação da vida”

responsabilidade coletiva de descobrir mais sobre o sistema natural e como as atividades humanas o afetam e vice-versa” (WARD; DUBOS, 1973, p.269). Ou seja, a compreensão de uma condição fundamental de interdependência. De modo que, como enfatiza o documento, a política planetária deveria agir no sentido do conhecimento, da economia e da nação soberana. Tais objetivos

(RIBEIRO, 2001, p.12).

As mudanças do contexto precisavam ser compreendidas

e

normatizadas.

Procurando

atender a esta dupla necessidade, a Conferência do Meio Ambiente Humano produziu uma Declaração de Princípios e um Plano de Ação que deram base para a estruturação do Programa de Meio

implicariam na “supervisão cooperativa, pesquisa e

estudo em escala sem precedentes, criação de uma rede mundial intensiva para o intercâmbio sistemático de conhecimento e experiência, a fim de levar a pesquisa a toda parte com apoio financeiro internacional” (WARD; DUBOS, 1973, p.269).

Ambiente das Nações Unidas – PNUMA. O plano consistia em cento e nove recomendações distintas, estabelecendo objetivos específicos e gerais em três grandes categorias: avaliação ambiental, administração ambiental e medidas de apoio. Estas medidas deveriam atuar sobre a soberania dos

Como último quesito para a obtenção do

Estados em explorar, conservar e proteger seus

Ambiente Humano, os autores abordam a relação

recursos sem prejudicar o desenvolvimento de

entre a lealdade humana e o ambiente.

outros países. O Programa também incentivava o

É possível apontar que no período a percepção

intercâmbio de informações entre os Estados. Tal

que se tinha da natureza era a de um organismo

intercâmbio fora organizado em torno do

antes considerado como inferior ao homem, mas

Earthwatch - uma rede patrocinada pela ONU,

que passara a se sobrepor a este em um processo

planejada para pesquisar, monitorar e avaliar as

constante a partir do momento em que se tornou

tendências e processos ambientais, notificando os

evidente que os recursos materiais oferecidos eram

Estados-membros sobre riscos e situação dos

finitos – a crise do petróleo já se anunciava. Por

recursos naturais (MCCORMICK, 1992, p.114). A

esse motivo a natureza necessitava ser controlada.

ciência, base para a tecnologia que dominara o

Nota-se

crescimento econômico da segunda metade do

uma

profunda

necessidade

de

compreender o crescimento pelo qual a sociedade

século

XX,

aparece

como

um

mecânismo

dos anos 1970 passara, lembrando que segundo

propiciador da compreensão e normatização do

Hobsbawm, as diferenças entre o cotidiano dos

ambiente.

nascidos nas duas décadas anteriores haviam se

Ao expor o Projeto da UNESCO para os anos de

acentuado em relação ao cotidiano vivido por seus

1975-76 o diretor Geral da UNESCO Amadou-

pais quando tinham a mesma idade.

Mahtar M’Bow (1974-1987), aponta que o

Wagner Costa Ribeiro coloca que:

compromisso da organização durante estes anos

“O modelo de desenvolvimento adotado pelos países centrais e por parte dos países periféricos gerou impactos ambientais que se sobrepõe aos limites territoriais dos Estados. O sistema internacional não contava com o mecanismo de regulação na área

seria com a pesquisa científica e com o progresso e futuro da humanidade, cabendo a UNESCO atuar como uma vanguarda no movimento de unificação dos povos. A ação ética da instituição deveria


G N A R U S | 21 basear-se na promoção do saber e na definição de

e da modernização diante das transformações das

normas universais em prol dos desfavorecidos

estruturas econômicas e sociais, da busca por novos

(M’BOW, 1975, p.25). As metas previstas no Projeto

tipos de desenvolvimento e da crise monetária e

se direcionavam à promoção do acesso a educação,

energética. Ciência e técnica deveriam estar a

ciência e tecnologia, com ênfase nestes dois

serviço do homem, pois conhecimento equivaleria

últimos, destacando a difusão e a qualidade do

a poder (UNESCO, 1977, p.19-20).

conhecimento científico e tecnológico. As políticas

A ênfase na pesquisa científica nos planos da

culturais deveriam estar em harmonia com as

UNESCO, no PNUMA, em Limites do Crescimento

políticas educativas e científicas. Integrar, agir e

e

financiar eram as palavras de ordem. Segundo

representatividade que a ciência possuía sobre o

representantes da instituição, as raízes da crise pela

ambiente. Desde as décadas de 1950-60, era

qual se passava estavam plantadas no poder que o

grande o investimento dos países capitalistas

homem adquirira devido à ciência e a tecnologia;

desenvolvidos na pesquisa científica, e os últimos

resultado das relações sociais organizadas em torno

vinte e cinco anos do milênio têm a ciência como

da evolução científica e tecnológica do contexto.

base de seu desenvolvimento, seja acadêmico ou

Diante disto a necessidade de se pensar nas

econômico, ambos interligados à indústria bélica,

gerações futuras e estabelecer relações fecundas

alimentícia ou farmacêutica.

Uma

Terra

Somente

demonstra

a

entre homem e meio ambiente se apresentam

“O espírito científico – que marcou a ciência moderna desde o seu início – tem na concepção de progresso uma de suas referências fundamentais. [...] Suprir as necessidades por meio do conhecimetno científico e tecnológico passa a ser a palavra de ordem, uma das máximas da civilização ocidental.” (RIBEIRO, 2001. p.65).

como imprescindíveis. Tais medidas tinham como base as definições do que se denominou Nova Ordem

Econômica

Mundial,

proposta

na

Assembleia Geral da ONU de 1974. A UNESCO caberia o compromisso com a objetividade científica, promoção da justiça, e busca pela dimensão sociocultural do desenvolvimento. A

ciência

apresentadas

e

a

tecnologia

como

também

ferramentas

As são do

desenvolvimento no Plano de Médio Prazo da UNESCO para os anos de 1977 a 1982. Na avaliação realizada pela Conferência Geral da UNESCO, de 1976, a meta era buscar por uma ordem moral mais justa e equitativa e incentivar a elaboração de tecnologias próprias que integrassem ciência e tradições das sociedades, contra a chamada importação de tecnologias. Prática realizada pelos países em desenvolvimento. As metas se pautavam na importância da identidade cultural, de modo que a consciência desta identidade é apontada como sustentáculo do desenvolvimento econômico

linhas

intepretativas

da

ciência,

particularmente as teorias do caos e do catastrofismo, atuaram sobre as interpretações dadas à dinâmica da relação homem-ambiente. Caos pautado no perigo que o desenvolvimento econômico oferecia - o medo, na sua essência não era de que os acontecimentos fossem fortuitos, mas que os efeitos que se seguissem não pudessem ser previstos.

Catástrofe

ocasionada

por

um

bombardeio vindo do espaço - medo que exteriorizava, em parte, o receio da guerra nuclear. (HOBSBAWM, 2005, p.522-530) Caos e catástrofe permeavam as perspectivas de um crescimento populacional

exponencial

incontrolável

que

excedesse a capacidade da Terra de alimentar e


G N A R U S | 22 abrigar seus habitantes, levando a uma mortalidade

Os problemas do meio ambiente partem do político

sem precedentes até que a população se

e encontram seu fim no político.

estabilizasse. (MEADOWS, 1973, p.141) O sistema natural e o mecanismo das ações humanas sobre o ambiente deveriam ser desvendados pela ciência.

Cássia Natanie Peguim é Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação “ História e Sociedade”. Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Assis.

Diante da repercussão de Limtes do Crescimento e da Conferência do Meio Ambiente Humano, a pesquisa e os acordos políticos e cientifícos que se seguiram colocaram-se como os meios para a compreensão

do

meio

ambiente

e

das

transformações sociais, com a finalidade de controlar

os

recursos

necessários

ao

desenvolvimento econômico. Essa dupla função -

compreensão e controle - demonstra que a relação do ser humano com o seu ambiente envolve poder político. Instituições como a ONU e a UNESCO passaram a atuar no que pode se chamar de normatização do meio ambiente, sintetizando o destaque dado à temática dentro do sistema global. Os conceitos são mutáveis, não possuem uma definição fixa, pronta e acabada. Pelo contrário, estão sujeitos ao jogo político do contexto em que se inserem. O ambiente diante das discussões políticas na década de 1970 aparece relacionado à imagem de uma natureza hegemônica, atuante sobre as expectativas do mercado e sobre a continuidade da espécie humana e de tudo o que ela construíra. Nesse sentido a expressão ambiente natural reproduz a natureza como algo exterior à vida humana a que se atribuem valores de troca e uso. Ambiente e natureza se confundiam sob um único conceito ainda disforme. Ao longo do processo histórico as medidas normatizadoras e o conceito de meio ambiente são reelaborados a cada nova conferência ou comissão a partir de um jogo de sutilezas que, na maioria das vezes, estão articulados com o que se diz fora da definição, no desenvolvimento do texto escrito, na fala ou na forma de implantação dos acordos estabelecidos.

Referências DUARTE, Regina Horta. História e Natureza. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. HOBSBAWM, E.J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. LE PRESTRE, Philippe. Ecopolítica Internacional. Trad. Jacop Gorender, 2ªed. São Paulo: Senac, 2005. MARTINEZ, Paulo Henrique. História Ambiental no Brasil: pesquisa e ensino. São Paulo: Cortez, 2006. M’BOW, Amadou- Mahtar. “Uma era de solidariedade ou uma era de barbárie?”. O Correio da UNESCO. Abr./ 1975. Mc CORMICK, John. Rumo ao Paraíso: A história do movimento ambientalista. Trad. Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992. MEADOWS, Donella H. [et ali] Limites do crescimento: um relatório para o Projeto do Clube de Roma sobre o dilema da humanidade; Trad. Inês M. F. Litto. São Paulo: Perspectiva, 1973. RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo. Contexto, 2001. UNESCO. O Correio da UNESCO. Nossos recursos minerais ocultos. Abr./ 1975. UNESCO. O Correio da UNESCO. HORIZONTE 1982 – A Unesco e o mundo. Maio/1977. WARD, Bárbara; DUBOS, René. Uma terra Somente. Trad. Antônio Lamberti. São Paulo: Edgar Blücher, Melhoramentos, Ed. Universidade de São Paulo, 1973. WORSTER, Donald. “Para fazer história ambiental”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: 4 (8) p.198-215, 1991.


G N A R U S | 23

Artigo

ENTRE O CONTRASTE E O EQUILÍBRIO, KEMET E DUAT: CONSIDERAÇÕES SOBRE A VIDA E A MORTE NO EGITO ANTIGO Por: Keidy Narelly Costa Matias

Resumo: O presente artigo versa acerca da oposição entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos no Egito Antigo; consideramos o segundo como sendo uma representação concebida do primeiro. Trataremos da natureza do mundo dos vivos (Kemet), elencando alguns exemplos que norteiam seu contraste e seu equilíbrio quando comparado com o mundo dos mortos (Duat). Palavras-Chave: Mundo dos vivos, Mundo dos mortos, Natureza, Antigo Egito.

B

aseado em Hecateu de Mileto, Heródoto

que a maneira egípcia de enxergar o mundo e de se

(II, X) afirmou ser o Egito “uma dádiva do

encontrar nele é muito distante da nossa, tanto no

Nilo” (a frase, tal como se encontra no

tempo

quanto

no

espaço.

Entretanto,

ao

livro, é “a maior parte do país é uma dádiva do

estudarmos o Egito, percebemos que a vida

Nilo”. A julgar pelo modo de vida egípcio, podemos

terrena/real é separada da vida no além por uma

pensar que essa ideia norteia todos os aspectos da

linha tênue, justamente de âmbito material, dado

vida prática daquele povo. O mundo egípcio

que

terreno se interliga com o mundo divino através de suas singularidades e diferenças; são duas percepções fazendo parte do mesmo cosmos. Essa ideia pode parecer confusa à primeira vista, dado

“o conceito de paraíso osiríaco oferece uma existência confortável e semelhante à existência conhecida em vida pelos egípcios sendo, desta maneira, o mundo terreno aprimorado” (GAMA, 2008, p. 174).


G N A R U S | 24

Esse dado nos permite inferir acerca da estreita

Seth (seca, deserto, esterilidade). A natureza,

relação que aquele povo tinha com a natureza. Essa

portanto, correlaciona-se com todos os aspectos da

vivência quase que romanceada bem pode ser

vida prática que, por sua vez, interliga-se

entendida como um dos fatores responsáveis pela

intimamente com a natureza. O fato é que não é

maneira singular que os egípcios tinham de

possível imaginar o Egito tal como foi sem o Nilo,

conceber seu mundo.

mas se faz necessário demarcar que não foi

O mundo se tornava ordenado a partir do controle do caos; a fome, por exemplo, pode ser

somente o rio que conduziu o Egito ao que ele representou na Antiguidade.

entendida como um descontrole, como uma

Interessa destacar que o equilíbrio, ou seja, a

manifestação da incompetência do faraó perante o

ordem cósmica entre as forças que compõem a vida

seu povo e, especialmente, perante os deuses –

se faz através do ato de vencer o caos. Para que

podemos pensar na utilização da natureza pelos

Maat (a ordem) exista é fundamental que o caos

deuses como maneira tanto de abastecer quanto de

também exista na medida em que se apresenta

retirar donativos do povo. À medida que situamos a

como seu contraponto – um não vive sem o outro,

fé como elemento diretamente relacionado com a

pois

natureza se faz fundamental demarcar a noção da

fundamentalmente a existência de uma desordem,

importância que o rio Nilo possuía,

do temível. A superação do caos aparece em

a

manutenção

da

ordem

pressupõe

inúmeros eventos da vida cotidiana/religiosa

a paisagem (era) fortemente orientada, com o rio fluindo para o norte e os dois horizontes ocres dos desertos arábico e líbico, atrás dos quais surgia e desaparecia o disco solar toda manhã e toda tarde. [...] O lado fértil que seguia o rio ostentava tons puros: negro no momento da lavra, verde brilhante e luminoso quando cresciam as culturas, amarelo ardente quando o trigo estava maduro. [...] A orla do deserto marcava brutalmente o limite entre o mundo ordenado e nomeado da planície fértil e as vastas extensões informes e inorganizadas de areia e rochedos estéreis. [...] A grande uniformidade dessa paisagem, que se repetia de Elefantina ao Delta, era outro traço específico do Egito (TRAUNECKER, 1995, p. 27-28).

Ao imaginarmos esse cenário e ao considerarmos que ainda hoje a questão da falta de alimentação não é um problema superado, podemos ter maior ciência da importância do Nilo. A partir daí começam a aparecer associações entre a natureza e a religião: Osíris (fartura, húmus, virilidade) versus

/política: aparece no ato de vencer a fome, no paraíso osiríaco, no bom governo de um faraó.

Maat é, portanto, o equilíbrio, a vida e a verdade nas inúmeras dimensões da existência, tanto do homem no mundo dos vivos quanto no mundo dos mortos. É nesse sentido que podemos fazer uma oposição entre a ordem e o caos ao considerarmos que o momento da morte representa a quebra de uma ordem, ou seja, a morte está associada ao caos; os ritos fúnebres podem ser vistos como mecanismos de restabelecimento de Maat. É nesse contexto que aparece a Duat, mundo dos mortos que se porta como paisagem e território e que atua como um dos mecanismos salientadores da identidade egípcia. Algumas fontes (um exemplo bastante conhecido é a “História de Sinuhe”) nos permitem inferir que era temível morrer fora do Egito. Dessa forma, aparece aqui tanto o fator geográfico quanto aquele da religião e acreditamos não ser possível


G N A R U S | 25

fazer

diferenciações

esses

negação do estático e o medo do desconhecido e

Antigo.

do perigoso etc. Estamos dizendo que a religião e a

Concordamos com Barry Kemp (1996) no sentido

magia, a vida cotidiana do homem vivo e sua

de ser o território egípcio em sua singularidade um

preocupação com o além – com a (não) morte –

mecanismo definidor de ideologias e identidades; a

exigem a criação de inúmeros espaços capazes de

concepção de um território através da percepção

albergar os múltiplos desejos do homem. A

da paisagem norteia o desenvolvimento de uma

paisagem e o território concebidos são, portanto,

identidade.

frutos do real; trata-se da concepção de mundo de

conceitos

para

o

profundas caso

do

entre Egito

Um fator definidor de uma identidade de lugar é

um povo que via no espaço do post-mortem seu

a maneira de enxergar a morte e os mortos.

meio de continuar existindo. Essa cosmovisão era

Campagno (2011, p. 27) afirma que no Egito existia

um atenuante do medo do desconhecido,

“um laço ideológico forte entre os vivos, os mortos

especialmente

e a terra”. O culto aos ancestrais e o respeito à

modo, que na Antiguidade o homem estava mais

memória destes também podem ser vistos como

ligado à religião do que nós contemporâneos. Dada

laços diretamente ligados à percepção da

a quantidade de fontes que a arqueologia

identidade de uma comunidade. No Egito Antigo

encontrou e encontra, podemos inferir que, mesmo

existia uma clara situação relacional entre os vivos

para o menos crente dos homens, o medo do

e os mortos – os mortos, ao continuarem existindo

desconhecido era presente e latente: podia-se

no pós-vida, permaneciam fazendo parte do seio da

desenvolver maneiras de encará-lo, mas nunca de

população, ou seja, um morto egípcio participava

evitá-lo.

quando

consideramos,

grosso

intensamente do mundo dos vivos. A paisagem possui uma carga de sentidos que interliga o real e

Rosalie David (2011, p. 22) admoesta que a

o imaginado. O homem só concebe o fantástico a

relação do homem egípcio com a natureza fazia

partir de um mundo real, ou seja, o irreal e o surreal

com que existisse “um padrão estruturado de ideias

são pautados na realidade e no contexto da época

que foi projetado para perpetuar o princípio de

em que foram produzidos. No caso do Egito, temos

Ma’at [...] e desafiar e subverter continuamente as

a concepção de uma paisagem, de um mundo

forças do caos”. Essa assertiva, utilizada para

imaginado – não irreal (a Duat) – a partir da

descrever o mundo terreno, pode ser aplicada sem

percepção do mundo pelo homem vivo (em

necessidade de substituição de qualquer termo

Kemet). A carga de sentidos desembocada pela

para o campo do além. A Duat é, portanto, uma

percepção e tratamento da paisagem aparece, na

terra reproduzida: o Egito com suas especificidades

esfera religiosa, através da fabricação da Duat, que

foi em grande medida uma dádiva do Nilo (se não

tanto é um contraste em relação ao mundo dos

houvesse o Nilo todo o Egito seria diferente – tanto

vivos quanto é também o seu próprio equilíbrio.

no campo da natureza quanto naquele reservado à

A concepção da Duat enquanto paisagem e

religião); a Duat é uma reprodução do mundo

território pressupõe a existência de muitas

terreno, ou seja, se o Egito no âmbito terreno foi em

preocupações advindas da vida cotidiana: o medo

grande medida uma dádiva do Nilo, a Duat de certa

da noite, a necessidade de se movimentar, a


G N A R U S | 26

maneira também o foi, visto que era um espelho do

perigosos,

desafios

a

serem

vencidos

e

mundo dos vivos.

encantamentos que não podiam ser esquecidos. O

É importante demarcarmos que a oposição entre

medo do escuro também aparecia como espelho

Kemet e Duat representa também a oposição entre

dos dois mundos: a noite era sinônimo de perigo

a vida e a morte, entre homens e deuses.

(ladrões, sobretudo) e, no mundo dos mortos,

Acreditamos

associada ao estático, Osíris, enquanto Rê era “um

que

tudo

está

intimamente

encadeado, por exemplo,

princípio organizador e criador (dos) espaços do Além” (GAMA, 2008: 158). O deus do mundo dos

“com o mesmo radical mut, os egípcios formavam o verbo morrer e os substantivos morto e morte. Este último é claramente uma contraposição com aquele da vida, ankh. Do deus se diz que é o 'senhor da vida e da morte'” (DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 181).

mortos não tinha conotação negativa, mas o fato é que todos os egípcios desejavam navegar na barca do sol, a barca do deus Rê. Tanto na vida quanto na morte se buscava a luz e o movimento. Movimentar-se era estar vivo. Tanto Kemet quanto a Duat se equivaliam em

Vemos, ao mesmo tempo, a admissão e a negação da morte.

ordem de importância e os dois mundos eram

Como ocorre com Osíris, deus morto que deve deixar a mulher, o filho e este mundo, os mortos humanos também devem deixar a terra, mas eles “não vão como mortos, eles vão como vivos” (Textos das Pirâmides 134), eles não têm uma vida no mundo dos mortos como fantasmas, eles acordam para uma vida nova, com plena possessão de corpo e espírito (GAMA, 2008, p. 172).

Egito. O homem egípcio sabia da brevidade da vida

admitidos dentro de um cosmos maior, o próprio terrena e, por isso, preocupava-se com a eternidade, ou seja, Kemet estava para o homem vivo assim como a Duat estava para o homem morto – era necessário viver bem nessas duas dimensões. Conclusão O mundo dos vivos (Kemet) e o mundo dos mortos

Quando nos reportamos ao estudo das religiões

(Duat), apesar de serem dois espaços diferentes,

antigas, percebemos que a egípcia é, dentre todas

eram indissociáveis através das relações entre vivos

as outras, a que mais apresenta caráter positivo. A

e mortos e da própria concepção do espaço. Os

morte não é vista como um fim e, tampouco, o

mortos faziam parte da vida cotidiana dos vivos

mundo dos mortos visto como um ambiente hostil.

uma vez que, habitando a Duat, haviam garantido a

Essa visão positiva não elimina os perigos do mundo

possibilidade de continuarem existindo. Através da

post-mortem, “a ideia de um castigo no Além que

importância das relações com os ancestrais, os

punia a conduta da vida terrena (era) muito antiga”

mortos eram sempre lembrados e podiam adquirir

(DUNAND; ZIVIE-COCHE, 2003, p. 343).

tanto caráter positivo quanto negativo.

Portando-se como espelho da terra do Egito, no mundo dos mortos os perigos também estavam presentes: se temos, por um lado, crocodilos e animais peçonhentos no mundo dos vivos, por outro lado, no mundo dos mortos, temos lagos

A partir da geografia do Egito é que a Duat foi imaginada e produzida; as relações dos egípcios com sua natureza ajudaram na concepção dos deuses e de suas características e do espaço dos


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mortos, imaginado de maneira semelhante ao espaço dos vivos. O espelhamento entre esses dois mundos se dava tanto na dimensão geográfica quanto na social, fazendo com que a separação dessas esferas no cosmos se desse de maneira tênue. Duat e Kemet são espaços contrastantes que, cada um a seu modo, atuavam no sentido de estabelecer e restabelecer o equilíbrio no cosmos.

Keidy Narelly Costa Matias é estudante pesquisadora da Cátedra UNESCO Archai, da Universidade de Brasília, e do MAAT – Núcleo de Estudo de História Antiga, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientada pela Dra. Marcia Vasques, cursa Mestrado em História e Espaço pela UFRN.

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Artigo

A BUSCA PELO SABER: MULHERES ESCRITORAS NA INGLATERRA DO SÉCULO XVIII. Por Damaris Lima Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar os ideais e as dificuldades que uma mulher escritora inglesa setecentista enfrentava, para isto foram analisadas biografias de duas mulheres consideradas importantes para o século XVIII (mas deixando claro ao leitor que estas não foram as únicas escritoras importantes da época), mostrando através de seus trabalhos escritos, suas dificuldades e dilemas acarretados por suas posições sociais. Jane Austen e Mary Wollstonecraft foram escritoras que ocupavam lugares opostos, mas que buscavam alcançar o mesmo objetivo: a publicação de suas obras e, consequentemente, a disseminação de suas ideias, o que nos leva a observar uma constante luta das mulheres representadas por elas para uma maior autonomia social. Pode-se dizer que a sociedade feminina setecentista é bem peculiar e heterogênea, visto que as mulheres estavam dividas em escalas sociais, logo isso diferia muito no que se refere ao seu papel social, aos seus costumes, afazeres e obviamente ao seu cotidiano de modo geral. Neste artigo é possível observar que, no século XVIII, apesar de o casamento ser aparentemente o melhor caminho para as mulheres, este não era o único.

Introdução

doméstica, ou seja, para que ela soubesse ser uma boa dona de casa futuramente, isso cabia

É

possível afirmar que a vida da mulher inglesa

principalmente à plebe, pois a burguesia e a

setecentista está restrita ao privado, ou seja,

nobreza tinham seus próprios empregados, e não

a ela cabia os afazeres domésticos, ela não

havia necessidade de executar esses serviços

poderia interferir em assuntos do Estado e, por isso,

domésticos:

ela não recebia uma educação formal como os homens recebiam, ela poderia ter apenas alguns preceptores e receber instruções intermitentes de seus pais, a isto se resumia a educação feminina. No entanto, se ela fosse camponesa e não tivesse muitos recursos, sua educação era somente

Pois sua ocupação é prioritariamente doméstica; o cenário: a casa; sua vocação: encarnar a imagem de esposa e mãe, arraigada pela Igreja e pela sociedade civil. A exigência de honra – feita de aparência, fidelidade aos seus e a sua boa reputação – resume-o muito bem; portanto, uma


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dedicação constante a todos que vivem sob seu teto a destina a servir, ou seja, a cuidar: alimentar, criar, atender na doença, assistir na morte – essa é a ocupação das mulheres, que a ela se devotam gratuitamente; aliás, não se costuma reconhecer sua participação, tão frequente, na produção para melhor enaltecê-las ou gratificá-las em testamento.

destacando-se pela sua peculiaridade e por lutar

Dessa maneira, fica clara a particularidade do

A educação feminina, que ocorria pela prática e

papel feminino, no qual é formulado todo um

pelo costume, limitava-se ao ensino de algumas

modelo de mulher ideal para a era setecentista. A

prendas exigidas socialmente das mulheres como: a

mulher sempre estava sujeita à Igreja, ao Estado, ao

música, a literatura, a costura e aos afazeres

seu marido e, quando solteira, aos pais, ela não

domésticos.Além

tinha sua individualidade e, quando tinha esta era

numerosos tratados de conduta tornaram-se

limitada, sua importância na sociedade está ligada

populares no século XVIII e eram frequentemente

ao casamento e, consequentemente, a vida

utilizados na instrução das moças.

(CASTAN, 2009, p.407)

pelo que acreditam, o que é muito importante mesmo dentro de uma sociedade extremamente conservadora quando se trata do feminilismo. A Educação feminina

dos

conselhos

das

mães,

doméstica, onde ela era a principal gestora. Embora

A maioria dos tratados de conduta do século XVIII

houvesse internatos para moças na Inglaterra do

ensinavam que para se conseguir uma posição de

século XVIII, a educação feminina na alta e baixa

honra e manter a boa imagem e, dessa forma,

aristocracia inglesa era uma responsabilidade da

alcançar um casamento vantajoso, muitas mulheres

própria

(e até homens) não deveriam hesitar em dissimular

família,

sobretudo

da

mãe,

que

normalmente contava com

defeitos

e

a ajuda de uma governanta

qualidades,

na criação das filhas. Sobre

hipocrisia

era

esse aspecto Ariès (1981)

vergonhosa do que a má

ressalta que, com exceção

reputação” (ARIÈS, 1981, p.

de algumas meninas que

252).

eram “pequenas

enviadas escolas”,

às

Esses

a

simular que

“a

menos

manuais

disseminaram o ideal de

maioria delas era educada

atitude

em casa, ou na casa de uma

mostra uma mulher casta e

parenta ou vizinha. Logo

pronta para agradar a

vemos como era difícil para

todos,

uma mulher que não se

apresentavam uma série de

enquadrasse aos padrões sociais, ela era excluída da

Na imagem respectivamente: Jane Austen e Mary Wollstonecraft.

sociedade, e mal vista pela

regras

feminina

por e

reforçavam

que

isso

sermões

que

doutrinas

morais e religiosas. Além

mesma. No entanto, mesmo com todas as regras

disso, ensinavam à jovem senhorita aspectos

impostas, vemos ao longo da história mulheres

domésticos para torná-la uma boa dona de casa e


G N A R U S | 31 como se comportar em diferentes situações. No

moravam na sua casa durante os estudos. De acordo

entanto no século XVIII, com a propagação do

com Todd (2006), a família Austen dispunha de uma

iluminismo os seus ideais geraram uma profunda

vasta biblioteca com mais de quinhentos livros,

mudança no pensamento europeu, rompendo com

onde Jane fizera as principais leituras que

paradigmas existentes nos principais segmentos da

contribuíram para o seu talento literário. Desde

sociedade da época. A educação também foi

cedo, ela demonstrou um interesse pela escrita, ao

diretamente

pensadores

criar textos, como paródias de algumas obras

iluministas que defendiam a criação de um sistema

literárias da época e peças teatrais, para o

de

entretenimento de sua família.

educação

influenciada formal

pelos com

bases

sólidas

fundamentadas na razão. Entretanto, esse ideal de

A escritora teve seis irmãos e uma irmã,

educação não incluía as mulheres, pois “uma

Cassandra, que era também sua melhor amiga e

educação sólida era considerada desnecessária e

com quem trocou diversas cartas. Depois da morte

acima da capacidade feminina” (VASCONCELOS,

do pai, George Austen, em 1805, Jane e Cassandra

1995, p. 90). No entanto, muitas mulheres inglesas

ficaram em situação economicamente delicada e

através da sua escrita revelam uma autonomia

passaram a depender da ajuda financeira dos

intelectual incomum para a época. Havia mulheres

irmãos. Nenhuma das duas se casou. Alguns

que descreviam seu cotidiano em diários, o que

estudiosos afirmam que Jane chegou a receber um

facilitou o surgimento posterior de importantes

pedido de casamento, que inicialmente aceitou,

escritoras da literatura inglesa: “os diários de

mas logo no dia seguinte recusou. O fato de não ter

mulheres são mais numerosos na Inglaterra. As

se casado, dificultou ainda mais a vida de Austen,

mulheres falam sobre si mesmas.” (FOISIL, 2009,

visto que um casamento era extremamente

p.321)

importante para uma moça, principalmente, para a que não possuía situação financeira favorável, pois

Jane Austen: Entre a imaginação e a realidade.

nesse caso o matrimônio era uma forma de sustento econômico. O fato de depender financeiramente

Apesar de a escrita literária não ser considerada

de seus irmãos foi um agravante para a publicação

uma profissão honrável para as mulheres dessa

de seus livros, além do fato de ser uma mulher

época, algumas se destacaram nesse meio e

solteira, o que nos mostra certo preconceito da

conseguiram até mesmo serem sustentadas por

sociedade da época.

seus ganhos editoriais. Entre essas mulheres,

Em vida, Austen publicou quatro de suas seis obras

encontra-se Jane Austen, que, apesar de não ter

concluídas: Razão e Sensibilidade (1811), Orgulho

alcançado sucesso em vida, possui uma obra

e Preconceito (1813), Mansfield Park (1814) e

literária de relevante valor para o romance inglês.

Emma (1815). Em 1817, após ter maiores

Jane Austen nasceu no dia 16 de dezembro de

complicações

causadas

por

uma

doença

1775, no povoado de Steventon, Hampshire, no sul

desconhecida, a autora foi levada a Winchester

da Inglaterra. Seu pai, George Austen (1731-1805),

para ser tratada e lá faleceu no mesmo ano. Após a

um pároco anglicano, complementava a renda anual da família sendo tutor de alunos que


G N A R U S | 32 sua morte, seus irmãos publicaram Northanger

posição permitia. Em vida a autora não foi muito

Abbey1 e Persuasão, em 1818.

conhecida e teve muitas dificuldades de publicar

Segundo Biguelini (2009), os romances de Jane

seus livros, sendo que o primeiro que conseguiu

Austen são marcados por uma descrição com um

publicar foi com o nome de um de seus irmãos, pois

fundo crítico e moralizador do ser humano, bem

a sociedade não aceitava que uma mulher sozinha

como de suas relações interpessoais. Seus

poderia se aventurar na escrita. No entanto após

personagens exemplificam os membros das

sua morte seus livros ficaram famosos por todo o

principais classes sociais, como a aristocracia e a

mundo e no século XX e XXI várias séries e filmes

classe média. Tais personagens refletem os

foram produzidos a partir de suas obras deixando

costumes, os vícios e as contradições de uma

um rico legado. Jane Austen é um grande exemplo

sociedade onde os convencionalismos eram

de que mesmo sem um casamento, uma moça pode

supervalorizados,

o

tentar outras possibilidades dignas para sua

individualismo, sobretudo o feminino. Através de

sobrevivência, sem ter que depender de outras

suas obras, podemos identificar facilmente a

pessoas.

delimitando,

assim,

característica da sociedade inglesa da época em que foram escritos. Possivelmente inspirados nas observações feitas pela autora de seu meio social. As protagonistas (ou heroínas) de Austen pertencem à gentry2 e são jovens que possuem aproximadamente vinte anos, a idade em que, normalmente, o matrimônio se concretizava na vida de uma mulher inglesa. No início dos romances, essas jovens estão solteiras e são apresentadas no convívio com os membros de sua família, com os amigos e os vizinhos. Ao frequentarem os principais

Trecho de um dos manuscritos de Austen

encontros sociais, essas moças deparam-se com seus pretendentes e, então, enfrentam uma série de situações que tipificam as pressões sociais presentes no cotidiano da vida feminina no século XVIII. Estudiosos afirmam que Jane Austen tinha um estilo próprio literário não se adequando há um especificamente, e levando em consideração toda a riqueza de informações que suas obras possuem, vemos como ela é uma mulher a frente do seu tempo, que foi capaz de se sustentar sozinha mesmo com toda dificuldade que seu sexo e sua

1 2

A abadia de Northanger. Pequena nobreza rural europeia.

Mary Wollstonecraft, para muitos historiadores, foi a precursora do proto-feminismo inglês. Em 1792, ela publica o livro A Vindicantion of the rights

of Woman3, causando grande polêmica na sociedade setecentista. Em sua vida adulta, Mary tinha boa posição social e situação econômica bem satisfatória, vemos então grande diferença com relação à escritora Jane Austen, diferentemente Mary não tinha dificuldades em publicar seus 3

Uma reivindicação dos direitos da mulher.


G N A R U S | 33 escritos, e eles rapidamente chegavam às mãos da

que viriam a influenciar de forma decisiva a sua

sociedade inglesa, muitas pessoas tinham acesso às

ideologia e a desenvolver a autoconfiança em suas

suas ideias.

observações de cunho social, político e estético presentes em seus escritos. Uma de suas primeiras

As reivindicações de Wollstonecraft não são isoladas, se inserem num debate mais amplo, ecoando os ideais de educação, autonomia e racionalidade do movimento ilustrado inglês. A crítica iluminista aos privilégios e hierarquias tradicionais e a retórica universalista presente na defesa dos ideários de igualdade e liberdade provocaram reações contrastantes em relação às mulheres. (TAYLOR, 2003, p.45) A autora foi criada por uma família fortemente patriarcal, o que é bem relevante já que a sociedade também segue esse modelo em que as filhas eram muitas vezes ignoradas e ficavam em segundo plano, veio a provar-se decisiva nas suas reivindicações

posteriores

relativamente

aos

direitos das mulheres. Assim, ela sai de casa numa longa jornada pela independência financeira. O que não agradou em nada a seus pais. Mary

Wolltonecraft

trabalhou

em

várias

ocupações apropriadas para uma jovem solteira, tais como preceptora e ama até que se tornou jornalista. No entanto ela teve que regressar a sua casa após a morte de sua mãe, e por sua vez teve que cuidar do seu pai que estava doente e ainda assim cuidar das finanças de sua, pois tinha de sustentar financeiramente o pai e os irmãos e irmãs. Lançou-se então em busca de sua autossuficiência financeira, mas acabou fracassando, pois não conseguiu encontrar uma profissão que realmente lhe desse certo prazer. Após diversas tentativas enfim consegue um emprego de crítica e tradutora que lhe permitiu conhecer diversos textos de Catherine Macaulay4, 4 5

Historiadora inglesa setecentista. Reflexões sobre a educação de filhas.

obras impressas foi Thoughts on the Education of

Daughters5 (1787), que se conecta aos manuais de conduta tradicionais ao sugerir e expor a submissão e o autocontrole feminino, fatores considerados fundamentais para atrair um bom partido. No entanto desafia a noção consagrada, pois inclui em sua obra traços de divergência religiosa e a defesa da igualdade de homens e mulheres. Assim, a obra mostra dicotomias, tais como submissão e rebeldia, afabilidade espiritual e independência racional, dever doméstico e participação política. Mary Wollstonecraft também foi bastante influenciada

pelas

Revoluções

americana

e

Francesa, inclusive alguns historiadores relatam que a própria deslocou-se para a França com a finalidade de sentir em primeira mão o ambiente revolucionário e absorver os novos ideais que se impunham na altura. Em França conheceu o escritor norte-americano Robert Imlay, com quem se envolveu romanticamente, tendo nascido uma filha bastarda fruto dessa união. Findando o romance a escritora atravessa uma fase de depressão. Mais tarde, já regressada à Inglaterra, casa como William Godwin, autor de Enquiry Concernng Political

Justice6 (1773), o qual já conhecia há bastante tempo das reuniões informais de um círculo eclético de artistas, poetas e revolucionários que se juntavam para debater questões políticas e filosóficas. Os escritos de Wollstonecraft tiveram grande importância para a sociedade, fugia aos padrões da época e tinha caráter revolucionário, reivindicador

Investigação sobre a justiça política, escrito pelo jornalista inglês William Godwin. 6


G N A R U S | 34 que fazia com que as pessoas refletissem sobre os assuntos referentes à mulher na vida pública, com isso Wollstonecraft ficou bastante conhecida no final do século XVIII, inclusive Adriana Cracium nos diz que:

“Ela [Wollstonecraft] agora era uma intelectual pública, corajosamente entrando na briga política ao lado de radicais mais experientes, como Thomas Paine7 e da historiadora feminista Catharine Macaulay" (2002, p.9). Ela não era anônima como Jane Austen era. Ela tinha voz embora muitos discordassem de suas ideias, outros achavam inteligentes e até citavam em seus livros como o poeta William Blake que ilustrou alguns escritos da autora. No entanto, Mary Wollstonecraft fugia tanto aos padrões sociais e tinha tantos ideais peculiares que segundo a

Publicação de uma das obras mais conhecidas de Wollstonecraft.

perspectiva da época. A vida da ensaísta pautou-se por escândalos decorrentes da sua conduta, vista como promíscua, e pela sua atitude revolucionária, o que suscitou numerosas críticas de todos os quadrantes. O que alguns não sabem é que Mary Wollstonecraft foi mãe de Mary Shelly, autora de

Frankenstein (1818), o que nos possibilita pensar que esta teve alguma influência de sua mãe que embora não escrevesse romances, ainda assim era uma escritora de cunho revolucionário, conhecida por muitos da sua época mas seu trabalho não é muito comentado atualmente.

Considerações finais Ao longo da história, a escrita foi considerada uma prática predominantemente masculina, dessa forma as mulheres eram retratadas a partir do ponto de vista dos homens. Diante disso, a história se limitou a manter a mulher no privado, isolada dos principais círculos políticos e sociais.Contudo, a partir do momento em que a escrita passa também a estar à disposição do universo feminino, esse cenário começa a se reconfigurar, uma vez que as mulheres passam a utilizar a escrita para se lançarem num mundo quase exclusivamente masculino. A Inglaterra do final do século XVIII é onde estas escritoras viveram, escreveram e publicaram numa época em que a escrita de mulheres começava a ser mais aceita, o que pode ser percebido pela grande quantidade de publicações de mulheres nesta época.

7

Panfletário Revolucionário e político inglês.


G N A R U S | 35 As obras destas autoras, como de muitas outras tratam do cotidiano a partir de um ponto de vista exclusivo delas, que nos foi deixado através de seus textos. Desta forma, a literatura produzida por elas nos dá acesso à percepção de outro ponto de vista da História e da criação literária: o destas mulheres que se casavam ou não, mas que dependiam do dinheiro que a escrita lhes gerava como forma de sustento. Dentre estas autoras Jane Austen talvez seja a mais conhecida atualmente fora da academia. Seu vasto conjunto de obras trata de uma grande quantidade de assuntos, entre eles o amor, o casamento, a família e a amizade.

É tempo de efetuar uma revolução nos modos das mulheres, tempo de devolverlhes sua dignidade perdida e fazê-las trabalhar, como parte da espécie humana, para reformar o mundo mediante sua própria mudança. (WOLLSTONECRAFT, 2000, p. 53). Considerando o contexto social inglês do século XVIII no que se refere às limitações impostas às mulheres, pode-se afirmar que essas duas mulheres citadas neste trabalho (não somente estas) tiveram certa importância no que diz respeito aos paradigmas, não apenas por escrever, mas por utilizar a escrita para deixar as suas impressões sobre seu meio social, dando voz às mulheres de sua época, que eram retratadas, na maioria das vezes, apenas pela escrita masculina. Damaris Lima é graduada em História pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da família. Trad. Dora Flaskman. 2 ed. LTC: São Paulo, 1981. AUSTEN-LEIGH,James Edward.Uma memória de Jane Austen . trad. José Loreiro e stephanie savalla. Espírito Santo: Pedrazul, 2014.

BIGUELINI, Elen. O triunfo do casamento por amor: Jane Austen e o matrimônio. Paraná: UFPR, 2009, p. 12. BURDIEL, Isabel. “Introducción”. In: WOLLSTONCREAFT, Mary. Vindicación de los Derechos de la Mujer. Madri: Ediciones Cátedra, 2000. CASTAN, Nicole; CHARTIER, Roger. (org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das letras, 2009. v.3. FOISIL, Madelaine. CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada. São Paulo: Companhia das letras, 2009. v.3. GOMES, Anderson Soares. Mulheres, Sociedade e

Iluminismo: o surgimento de uma filosofia protofeminista na Inglaterra do século XVII, Rio de Janeiro: Matraga, 2011.v.18. PORTER, Roy. England in the Eightheenth Century. Harvard University Press: 1998. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n° 2, jul/dez, 1995. TAYLOR, B. Mary Wollstonecraft and the Feminist Imagination. London: Cambridge University Press, 2003. TODD, Janet. The Cambridge Introduction to Jane Austen. Cambridge University Press: New York, 2006, p. 2. VASCONCELOS, Sandra Guardini Teixeira.

Construções do feminino no romance inglês do século XVIII. Revista Polifonia, v. 2. Cuiabá. Ed UFMT, 1995.


G N A R U S | 36

Artigo

A ORIGEM DO DEBATE SOBRE O DEUS ÚNICO E O SURGIMENTO DA IDEIA DA TRINDADE NO ÂMBITO CRISTÃO (SÉCULOS III E IV D.C.) Por: Flávio Henrique Santos de Souza RESUMO : Neste artigo abordaremos a discussão do Deus que é tido como uno, mas que é apresentado de forma trina no âmbito do pensamento cristão. Nem todos os grupos cristãos da Antiguidade (como também da contemporaneidade) comungavam com esse ideário, e, ainda hoje é uma questão que disponibiliza fortes embates entre alguns cristãos (trinitarianos e unitarianos). Como também, muito debate entre historiadores e teólogos. Mas, será que o Antigo Testamento faz alusão ao chamado dogma Trindade? Será que os primeiros escritores cristãos fizeram menção da Trindade no que, posteriormente, veio a se chamar Novo Testamento? É o que discorreremos ao longo dessa pesquisa. Palavras-chave: Cristianismo, Trindade, Judaísmo, Monoteísmo.

Introdução

a controvérsia do valor da circuncisão na assembleia de Jerusalém1, a fé cristã em menor

notório que o cristianismo “bebeu” da fonte

escala ainda continuou com influências judaizantes

judaica no tocante a diversos preceitos e leis

no seu âmago teológico. Destarte, a maior parte

hebraicas, que tiveram uma nova roupagem

dos cristãos assim como os judeus tem a perspectiva

ao serem alocadas no cerne do seu corpo

na crença do Deus único. O Deus que é tido como o

doutrinário. E isso veio se reverberar no que é

criador do universo, “reitor” da natureza, e que

chamado de tradição judaico-cristã. A despeito de

pode intervir no curso natural das suas criações para

ter ocorrido o cisma da crença cristã quanto ao

perpetrar os seus desígnios. Logo, tanto para

arcabouço de crenças judaicas no século I d.C. após

cristãos como para os judeus, existem enumerações

Atos 15. Disputa “teológica” ocorrida aproximadamente no ano de 49 d.C. em Jerusalém entre os representantes dos cristãos judaizantes e Paulo de Tarso, defensor da missão gentílica de cristianização. Nessa reunião, ficou decidido que os gentios que

abraçassem a fé cristã não precisariam seguir algumas questões do rito mosaico. JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 11-12.

É 1


G N A R U S | 37 daquilo que eles convencionaram chamar de

Foi esse o ponto de total discrepância que levou

atributos de Deus. Por exemplo, a onipotência

os cristãos a se diferenciarem dos judeus. Esse

(todo poder é executado por Deus), a onipresença

fragmento de fonte supracitado faz parte do

(não existe lugar que Deus não esteja, pois está em

Pentateuco3, e os judeus o chamam de Shemá. Ou

toda parte) e onisciência (Deus tem a ciência de

seja, é a confissão fundamental de fé do judaísmo.

todas as incidências).

A exortação que teria sido “dada” por Deus começa com o termo hebraico shemá, que significa o ato de

Até aqui nesse sistema de crenças, não há

ouvir. Isto é, o povo judaico deveria atender esse

divergências entre os prismas cristãos e judaicos em

comando para que o mesmo viesse responder

relação ao Deus uno. Porém, os cristãos,

devidamente e propriamente ao seu Deus. O povo

posteriormente, vão se notabilizar e diferenciar dos

deveria ouvir e obedecer, pois Deus o teria

Judeus nesse aspecto pelo acréscimo de mais duas

escolhido como “povo eleito” e não foram os judeus

“deidades” em Deus. Contudo, para a fé cristã (a

que intentaram e fizeram essa escolha. Mas a

maior parte) Deus

predestinação teria

continuaria sendo

ocorrido por parte

único.

de

Seria

se

Deus

como

Origem do monoteísmo judaico Na

Deus.

judeus

ser “solitário”, ou

acreditam

que foram “eleitos”

seja, não existem

por Deus. Segundo

outros deuses, ou

Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração!2.

dos

Dele. Por isso, os

judaica, Deus é um

documento veterotestaméntário:

“busca”

homens em “busca”

monoteísta

companhia. Como pode ser evidenciado no

em

homens e não os

crença

melhor, personalidades divinas para Lhe fazerem

estivesse

os adeptos do judaísmo, Deus teria salvado Israel da escravidão do Egito, teria os guiado através do deserto e forneceu-lhes instrução para que o povo viesse a viver bem na “Terra Prometida”. Além disso, Deus estabelecera um “relacionamento íntimo” com seu povo. Por isso, os judeus quando se referem a Deus o reconhece como Senhor que é o único Deus verdadeiro. Com isso, para os proponentes do judaísmo, Deus teria “revelado” sua unicidade no monte Sinai a

Deuteronômio 6: 4-6. Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) que para os judeus 2 3

são chamados de Torá (“A Lei”). SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p. 391.


G N A R U S | 38 Moisés4. E depois dessa “revelação”, o povo de

Desfechada a visão judaica sobre o Deus uno,

Israel recebeu de Moisés o decálogo que teria sido

agora, analisaremos na esfera do cristianismo o

“dado” por Deus ao profeta para comunicar aos

mesmo

judeus

dez

peculiaridades que faz com que exista um abismo

mandamentos outorgados, fica bem claro a

de discrepâncias em comparação com o judaísmo.

condição de distinção entre Deus e os deuses

Como acentua o historiador Paul Jonhson:

mandamentos.

E

dentre

os

ensinamento,

mas

com

algumas

existentes. Essa passagem do livro de Êxodo é retratada da seguinte forma:

“Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: Eu sou Iahweh teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da servidão. Não terá outros deuses diante de mim”5. Os judeus afiançam que depois de terem passado mais de quatrocentos anos no Egito sendo supliciados pelos egípcios6, Deus teria livrado o povo hebreu dessa subjugação e se “revelou” no

O que o distinguia do judaísmo era a crença na divindade de Cristo. Se Jesus fosse um mero messias, os dois sistemas religiosos seriam conciliáveis, como, aliás, argumentaram os cristãos judeus. Contudo, a insistência de que Jesus era o filho de Deus deixou o movimento de fora dos limites mais extremos do pensamento judaico e não apenas separou os sistemas como criou entre eles uma inimizade mortal. Essa situação acabaria gerada pela vitória da teologia paulina. A divindade de Cristo dotou o cristianismo de seu extraordinário impacto inicial e auxiliou em sua universalidade 8.

monte Sinai como o Deus verdadeiro e que não aceita nenhuma outra divindade. E depois disso, Moisés prescreveu os dez mandamentos que começa com ordenanças no âmbito da adoração do verdadeiro Deus (Iahweh), é salientado como os judeus se relacionariam com seus patrícios e os povos gentílicos, e, é ressaltado a construção de práticas litúrcicas para rituais. Destarte, pode ser visualizado que o ponto capital do judaísmo é a unicidade absoluta de Deus como o criador que é onipotente, onisciente, onipresente. Logo, depois dessas instruções do decálogo, qualquer tentativa dos judeus de querer pender para o politeísmo seria uma abominação. E doravante, aquele que não crumprisse esses preceitos e uma série de outros, seria ameaçado com a destruição e poderia perder a própria vida7.

Êxodo 19. Êxodo 20: 1-3. 6 Ibid., 12:40. 7 Levítico 26. 8 JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 109. 4 5

Desde o século I d.C., grande parte dos adeptos da fé cristã professavam a crença em um único Deus, mas esse Deus singular com o passar do tempo, tornou-se uno e trino concomitantemente. A doutrina cristã “ortodoxa” diz que existe uma “Santíssima Trindade”, isto é, Deus é um ser perene e coexiste com três pessoas eternas, diferentes e que não podem ser fragmentadadas da sua coesão. Esse sistema de crença se dogmatizou no século IV d.C. após o Concílio de Niceia9. De sorte que o Deus uno passou a ser “manifestado” como Pai, o Filho e o Espírito Santo:

No início o dogma da Trindade foi um dogma cristão muito particular. Deus é uno e trino, quer dizer, um Deus em três pessoas. Deus está frequentemente representado por três anjos que serão a encarnação da Trindade. E é, sobretudo em torno dessa 9 Primeira

assembleia “universal” de eclesiásticos que foi convocada pelo imperador Constantino. Ocorreu na cidade de Niceia da Bitínia em 325 d.C. O escopo da reunião foi a busca pelo consenso de diversas questões entre as comunidades cristãs.


G N A R U S | 39

noção bizarra da Trindade que nascem as heresias, quer dizer, “buscas” que não são lícitas, que levam ao abandono da ortodoxia, do verdadeiro dogma, da verdadeira crença e que são injúrias feitas a Deus 10.

essencial para a salvação de cada um foi a Paixão e a morte na cruz”.13 Porém, essa questão da divindade de Jesus foi sendo construída ao longo do tempo. Os

Essa doutrina dos cristãos difere radicalmente do

Evangelhos de Mateus , Marcos e Lucas não

monoteísmo judaico, visto que no judaísmo não

chamam Jesus de Deus em nenhum momento. Já o

existem três pessoas na divindade, há apenas a

Evangelho de João, que foi o último a ser escrito, vai

unicidade absoluta de Deus. E qualquer outra forma

retratar Jesus como um ser preexistente14. Assim, o

de divindade é uma aberração e um sacrilégio.

Evangelho de João foi um dos portadores da alta

Como é salientado nas Escrituras judaicas: “Assim

cristologia15. Os outros três Evangelhos do Novo

diz o Senhor, rei de Israel e seu Redentor, o Senhor

Testamento vão chamar Jesus de Filho de Deus, mas

dos exércitos: Eu sou o primeiro e eu sou o último, e

vão discordar quando isso acontece, ou seja, o

fora de mim não há Deus”11.

momento exato que Jesus se “transformou” em Filho de Deus. Para Mateus e Marcos Jesus se

O estrito monoteísmo judaico foi sendo

tornou o Filho de Deus no batismo16. Segundo

substituído pelos cristãos em um processo de

Lucas, Jesus é o Filho de Deus desde o ato da

deificação de Jesus de Nazaré, o ponto crucial para

“concepção virginal” de Maria17.

os cristãos se dá na centralidade da figura de Jesus. Os cristãos salientam a suma relevância de seus

Contudo, ser Filho de Deus para os judeus antigos

ensinamentos no que tange à moral, dentre os

não era ser um indivíduo com natureza divina. O

principais destacam-se o amor a Deus e ao

teólogo Bart Erhman especialista em Novo

próximo12.

Testamento pontua que:

Mas o âmago da fé cristã se dá na morte

e “ressureição” de Jesus. A vida de Jesus é tida como

O rei muito humano de Israel era chamado de Filho de Deus (2 Samuel 7:14), e a nação de Israel era vista como Filho de Deus (Oseias 11:1). Ser Filho de Deus Costumava significar ser o intermediário humano de Deus na Terra18.

um exemplo a ser seguida, pois no prisma da maioria dos cristãos ele é o Deus “encarnado” (que seria 100% homem e 100% Deus ao mesmo tempo). E para aprender acerca dos “planos” de Deus para o homem, seria preciso observar seus ensinamentos. Assim como pontua o historiador Jacques Le Goff:

“Jesus se torna não apenas o Deus dos homens, mas Deus feito homem, cujo ato

Nos séculos II e III d.C., a maior parte dos cristãos já reconhecia Jesus como Deus. Que segundo a crença “tradicional” dos primeiros cristãos, veio a Terra para libertar e salvar os seres humanos do pecado, e, através da crença na sua morte e

LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.33. 10 11

Isaías 44:6.

Mateus 22:37-39. LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.38. 14 João 1:1-14. 12 13

Descrição de Jesus de Nazaré de forma sobremodo exaltada e divina. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 311. 16 Mateus 3:13-17. Marcos 1:9-11. 17 Lucas 1:35. 18 EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 307. 15


G N A R U S | 40 “ressurreição”, livraria do sofrimento eterno

Além

desses

grupos

cristãos

supracitados

aqueles que confiassem nos seus ensinamentos. A

(ebionitas, marcionistas e gnósticos), ainda tinha os

despeito da construção teológica de Jesus sendo de

judeus “ortodoxos” que também questionavam essa

fato “plenamente divino” e plenamente humano ter

suposta divindade de Jesus que teria sido criada

se tornado majoritária entre os cristãos, existiam

pelos seus discípulos, pois argumentavam que ele

pequenos grupos que não reconheciam esses

jamais teria a natureza divina. Porquanto foi apenas

ensinos. Afinal de contas, ser Filho de Deus não era

mais um ser mortal que exercia alguns “poderes” de

igual a ser divino. Porém, se Jesus fosse Deus, não

cura e exorcismo. De sorte que ao contrário do que

haveria como ter apenas um Deus, mas sim dois

se conta no “mito” da crença cristã, Jesus não teria

deuses (e posteriormente três, com o acréscimo do

ressuscitado, mas teria tido o seu cadáver roubado

Espírito Santo).

pelos seus discípulos para simular uma possível ressurreição.

Nesse contexto, um recorrente e ríspido debate aconteceu entre grupos adocionistas (criam apenas

O surgimento da doutrina da trindade

na humanidade de Jesus) e docetistas (criam apenas na divindade de Jesus). Como no caso dos judeus-

No início do século III d.C., um apologista

cristãos chamados de ebionitas, que diziam haver

(“defensor da fé”) chamado Tertuliano22 se

apenas um Deus e exigiam a necessidade de se

destacou entre os demais e se notabilizou por ser

manter muitos dos preceitos judaicos. Sendo assim,

um heresiologista (“caçador de heresias”) e por ser

Jesus para eles era o Messias19 judeu e

o primeiro a fazer a adesão do termo Trindade para

absolutamente humano. Já para os marcionistas20,

se buscar compreender a tríade Pai, Filho e Espírito

Jesus era completamente Deus e não tinha

Santo.

resquício nenhum de humanidade, pois ele só parecia humano. Todavia, para os marcionistas existia o Deus iracundo do Antigo Testamento e o Deus amoroso de Jesus. Além disso, tinha a perspectiva de vários grupos de gnósticos21 que reconheciam Jesus como divino. Isso era uma prática muito comum entre eles, haja vista que para esses grupos (de gnósticos) muitos outros seres poderiam ser portadores da deidade.

Os cristãos que defendiam a divindade de Jesus estribam-se em escritos da Bíblia (aliás, o cânone do Novo Testamento ainda não estava coligido, mas todos os livros já existiam). Segundo a crença dos mesmos, através da postura de Jesus na trajetória da sua vida e dentro do próprio contexto cultural judaico da época, Jesus teria deixado clara sua condição divina (isso apenas no Evangelho de João, que foi escrito aproximadamente entre 60 a 65 anos após a morte de Jesus). Eles alocam Jesus como

No âmbito judaico, o Messias nunca foi considerado como Deus. Porém, era visto como um mediador entre Deus e os homens para que a vontade de Deus graçasse na Terra. Ibid., p. 316. 20 Seguidores das doutrinas do pregador e “teólogo” Marcião no século II d.C. 21 A palavra grega gnosticismo significa conhecimento. O termo designa grupos cristãos existentes desde o 19

século I d.C. e que professavam que a salvação era adveniente do conhecimento secreto revelado por Jesus, e, não pela fé na sua morte e “ressureição”. EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014, p. 406. 22 Importante “teólogo” da comunidade cristã de Cartago, que ficava ao norte da África. Ibid., p. 416.


G N A R U S | 41 Para Tertuliano o termo Trindade queria dizer três-em-um, de sorte que a palavra sendo aplicada a Deus significaria um único Deus que subsiste em três pessoas. Ficando assim: “O Pai é um, o Filho um e o Espírito Santo um, e eles são distintos um do outro”23. Assim, ao mesmo tempo em que a maior parte dos cristãos dizem haver um único Deus, afirma que o Pai é Deus, o Filho é Deus e que o Espírito Santo é Deus. Porém, essas três pessoas seriam distintas e não teriam a mesma essência e substância. Depois do Concílio de Niceia no século IV d.C., os cristãos “vencedores” desses debates cristológicos se posicionaram ainda mais rigidamente sobre o assunto, pois diziam que é uma insolência discorrer Ícone retratando o Primeiro Concílio de Niceia. a segunda pessoa da Trindade. Todavia, como já ressaltamos nesse trabalho, a deificação de Jesus foi sendo construída aos poucos. Os primeiros cristãos do século I d.C. não tinham essa perspectiva. Analisaremos agora, a explicação trinitária e

sobre questões que não são reveladas aos homens e primavam pelo que ficou acertado no Credo Niceno24. A opinião que se fez “ortodoxa” sobre o assunto, diz que as três pessoas são um Deus. Pois as Escrituras se harmonizam com essa hipótese e tem sido a crença da Igreja desde o primeiro século (argumento já refutado ao longo de nossa pesquisa). Doravante, o Credo atribuído ao bispo

bíblicas

Anatásio25 tentou explicar mais exaustivamente o

veterotestamentárias e neotestamentárias para

obscuro dogma da Trindade. Segue uma parte

elucidar a base de fundamentação cristã proposta

desse documento:

trabalharemos

com

fontes

por Tertuliano (outros escritores eclesiásticos

Todo o que se quiser salvar, deve mais do que tudo ter a fé católica. Aquele que não a guardar pura e inteira, de certo perecerá eternamente. A fé católica, pois, é esta: Adoramos um Deus em Trindade e a Trindade em Unidade. Sem confundirmos as Pessoas ou dividir a substância. Porque uma é a Pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo. Mas o Pai, o Filho e o Espírito

participaram também desse labor teológico) quanto à divindade de Jesus de Nazaré e do Espírito Santo. E a explicação do que, doravante, veio a se tornar o dogma da Trindade.

EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014, p. 420. 24 Declaração de fé que foi construída no Concílio de Niceia para alijar todas as formas alternativas de se conceber Deus. 23

Atanásio foi um diácono de Alexandria no Egito no século IV d.C., que se engajou durante o Concílio de Niceia contra as ideias arianas. Posteriormente, Atanásio se tornou bispo. EHRMAN, Bart D. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010, p. 321. 25


G N A R U S | 42

Santo têm uma só divindade, Glória igual e co-eterna Majestade. O que o Pai é, tal é o Filho e tal o Espírito Santo. O Pai é incriado, o Filho é incriado e o Espírito Santo é incriado (...)26.

judeus, se tornou também o Deus cristão. E segundo

Discutiremos agora, as bases de fundamentação

homem no princípio da raça humana. No livro de

do dogma que foram utilizadas pelos cristãos após

Êxodo, teria se “revelado” ao povo através do pacto

a “vitória” do grupo majoritário em Niceia.

mosaico etc. No Novo Testamento de forma geral,

os cristãos “ortodoxos”, esse é o nome pelo qual Deus teria se “revelado” ao homem pecador. No livro do Gênesis, Deus teria se “revelado” ao

Deus teria se “revelado” como o trino e uno Iahweh. Os cristãos que arrogaram serem “ortodoxos”,

Dessa forma, os “cristãos ortodoxos” consideraram

utilizaram tanto o Antigo Testamento como os

que a Trindade é um “mistério” que aparece no

escritos do que, posteriormente, veio a se chamar

Antigo Testamento na expressão da palavra Elohim.

Novo Testamento para se aferrar no dogma da

Como nos mostram mais algumas fontes das

Trindade. No Antigo Testamento, a Trindade é

Escrituras judaicas: “Deus disse: façamos o homen à

inferida pelos trinitarianos através dos nomes que

nossa imagem, como nossa semelhança (...)”29,

Deus teria se “revelado” aos homens. Nessa

“depois disse Iahweh Deus: se o homem já é como

perspectiva, isso indicaria que pode haver

um de nós (...)”30, “vinde! Deçamos! Confundamos

pluralidade de pessoas na divindade. Como é visto

(...)”31. Mas, nessas passagens supracitadas, apenas

no termo hebraico Elohim, que é uma palavra no

é evidenciado um “plural de majestade” que denota

plural e é empregada em alguns lugares do Antigo

a grandiosidade de quem está falando. E não faz

Testamento como relata a fonte: “no princípio criou

menção alguma de uma suposta pluralidade de

Deus (Elohim) os céus e a Terra”27. Os “ortodoxos”

divindades atreladas à Iahweh.

postularam que nesse fragmento, o nome plural é aplicado como sujeito de um verbo singular,

Na perspectiva dos eclesiásticos autointitulados

significando que o Deus uno também é trino.

“ortodoxos”, esses trechos do Antigo Testamento

Contudo, o termo Elohim não existe apenas no

como

plural, pois ele também pode ser aplicado no

satisfatoriamente à pluralidade de pessoas na

singular. Quando empregado no singular se refere

unidade divina. Mas convém lembrarmos que esses

ao Deus monoteísta (Iahweh) e quando é utilizado

textos são de escritores judeus, que foram os

no plural se refere aos deuses pagãos28.

primeiros monoteístas da história universal das

também

outros,

podem

explicar

religiões. E o elemento de capital importância do Nesse processo de construção teológica cristã, o cânone

veterotestamentário

foi

judaísmo é a crença na unicidade de Deus, que é

alocado,

invisível e que não pode ser divisível. Contudo,

doravante, com o cânone neotestamentário. Assim,

esses cristãos (trinitarianos) alegaram que tanto o

Iahweh, que inicialmente era o Deus estrito dos

Credo

de

Atanásio.

Disponível em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/dialogo_ecume nico/os_credos_ecumenicos. Acesso em: 14 de Agosto de 2013. 27 Gênesis 1:1. 26

Ibid., 35:2, Êxodo 18:11, Jó 1:6 e Salmos 8:5. Gênesis 1:26. 30 Ibid., 3:22. 31 Ibid., 11:7. 28 29


G N A R U S | 43 Antigo e o Novo Testamento corroboram com a

que fica claro que há um só Deus: “há um só Deus e

visão da tri-unidade de Deus.

Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos”34; Que este Deus teria enviado seu

Em

relação

ao

Novo

Testamento,

Filho: “quando, porém, chegou a plenitude do

especificamente nos Evangelhos, os adeptos da

tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma

doutrina trinitariana dizem que se tem o

mulher, nascido sob a Lei”35; Que o Filho é Deus

reconhecimento da atuação das três pessoas da

“manifestado” em carne: “seguramente, grande é o

Trindade. Para eles, um dos exemplos mais patente

mistério da piedade: ele foi manifestado na carne,

aparece nos três Evangelhos canônicos (Mateus,

justificado no Espírito, comtemplado pelos anjos,

Marcos e Lucas), que é a narrativa de Jesus sendo

proclamado às nações, crido no mundo, exaltado na

batizado por João Batista. Segundo os evangelistas,

glória36; E que Jesus se ofereceu a si mesmo a Deus:

quando ocorreu o batismo o Espírito Santo teria

“quanto mais o sangue de Cristo que, por um Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha, há de purificar a nossa consciência das obras mortas para que prestemos um culto ao Deus vivo”37.

“descido” do céu na “forma corpórea” de uma pomba e Deus teria “falado” que Jesus era seu filho amado32. Mas, nenhum desses textos abordam sobre a doutrina da Trindade, apenas há inferências teológicas.

Nestas passagens acredita-se que se veem três Outro fragmento do Novo Testamento defendido

“personalidades”, porém ao mesmo tempo unidas

pelos triunitários seria a “fórmula do batismo” onde

em uma só divindade. Não é possível citar todos os

Jesus teria prescrito o seguinte: “ide, portanto, e

textos da Bíblia que supostamente abordam essa

fazei que todas as nações se tornem discípulos,

doutrina, pois comprometeria nossa discussão pela

batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito

falta de espaço. Mas vamos rapidamente analisar os

Santo”33. Na visão “ortodoxa” cristã, se não

textos de Paulo38 mencionados anteriormente e do

houvesse distinção pessoal entre o Pai, o Filho e o

escritor da carta aos Hebreus.

Espírito Santo, não seria necessário o emprego dos três nomes nessa passagem. Esse é um dos poucos

Para Paulo de Tarso, realmente existe um só Deus,

pontos da narrativa bíblica que aparece os três

porque o mesmo antes da sua conversão a fé cristã

sendo evidenciados claramente e de forma distinta,

foi judeu e fariseu39. No que tange à epístola escrita

mas não relata nenhuma “fusão três em um” de

para as comunidades cristãs da Galácia, fica

Iahweh, Jesus e Espírito Santo.

evidente que para Paulo, Jesus em hipótese nenhuma era o Deus-Pai, claro que sendo Filho de

Já nos escritos apostólicos, a “ortodoxia” se

Deus, ele seria Deus em algum sentido (como nas

fundamentou no que Paulo escreveu. Ela afiança

mitologias grega e romana). Outra questão

32 Marcos 1.9-11, Mateus,

37

1:32-34. 33 Mateus 28:19. 34 Efésios 4:6. 35 Gálatas 4:4. 36 1 Timóteo 3:16.

3: 13-17, Lucas 3:21-22 e João

Hebreus 9:14.

38 Paulo de Tarso foi um dos grandes escritores cristão do

século I d.C., como também um grande propagador da fé cristã entre os gentios na Antiguidade. 39 Atos 23:6-7, Filipenses 3:5-6.


G N A R U S | 44 morrer, então, ele se entregou a si mesmo e se autodesamparou?41 Estes textos são plenamente utilizados para tentar provar uma doutrina que nunca fez parte do ideário dos primeiros cristãos enquanto Jesus ainda estava com eles e muitos anos depois que ele morreu. O dogma da Trindade foi sendo construído em um processo teológico e teve seu apogeu com a deliberação “ortodoxa” (no século IV d.C.). De modo que todas as outras formas de se “compreender” Deus entre os cristãos foram tidas como “heréticas” e excluídas. Considerações finais Os esclesiásticos criadores da “ortodoxia” buscaram clarificar a questão da Trindade com todos esses apontamentos textuais abordados Ícone com os Pais Sagrados do Primeiro Concílio de Niceia e o imperador Constantino, que exibe não o texto original do Credo Niceno (do ano 325) senão uma versão modificada do Credo niceno-constantinopolitano do Primeiro Concílio de Constantinopla (ano

anteriormente (e tantos outros, a nossa discussão não foi exaustiva. Pois frisamos apenas nos pontos centrais). Todavia, deixamos mais dois fragmentos de textos bíblicos para nossa análise final. O primeiro é de Paulo, que finalizando sua carta aos

importante nessa passagem, é que Paulo diz que

cristãos de Corinto disse o seguinte: “a graça do

Jesus nasceu de uma mulher. Mas não mencionou o

Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão

nome de Maria e nem a “virgindade na concepção”.

do Espírito Santo estejam com todos vós!”42. Mais uma vez as três “pessoas divinais” aparecem citadas,

Com relação aos textos de Efésios e 1 Timóteo

entretanto, não há aquele sistema unificador do

também citados anteriormente, essas cartas não

Deus uno com o trino criado a partir do século III

fazem parte dos ecritos de Paulo, pois são

d.C., e que teve seu desenvolvimento e apogeu no

falsificações feitas no seu nome40. No tocante ao

século IV d.C. O segundo é do profeta Isaías, onde

texto de Hebreus, o autor fala que Cristo (Jesus) se

Deus teria feito as seguintes indagações: “a quem

entregou a Deus por um Espírito eterno que

podereis comparar-me ou igualar-me? Quem

forçadamente a “ortodoxia” interpretou como

podereis em paralelo comigo, que seja igual?43.

Espírito Santo para justificar suas doutrinas

Para os judeus, esse é mais um texto que mostra a

triunitárias. Mas, Se Jesus se entregou a Deus para 40 As epístolas de Paulo aceitas pelos estudiosos do Novo

Quem Pensamos Que São. Rio de Janeiro: Agir, 2013, p.

Testamento como advindo dele são apenas sete (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicences e Filemom). EHRMAN, Bart D. Quem

97-118. 41 Mateus 27:46. Marcos 15: 34. 42 2 Coríntios 13:13. 43 Isaías 46: 5.

Escreveu a Bíblia?: Por que os Autores da Bíblia Não São


G N A R U S | 45 incomparabilidade de Deus com os seres humanos e divinos. Em resumo, constata-se que nenhum dos escritos do

Antigo

e Novo

Testamento

defendem

claramente essa crença tida como dogma da Trindade.

No

Antigo

Testamento,

seria

inconcebível que escritores judeus salientassem esse pluralismo em Deus. No Novo Testamento, são feitas analogias para tentar confirmar o ponto de vista dos cristãos que se sagraram “vitoriosos” do Concílio de Niceia em detrimento de cristãos que foram tidos como heterodoxos. Flávio Henrique Santos de Souza é Licenciado em História pela Universidade Castelo Branco (UCB) e Pósgraduado em História Antiga e Medieval pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEA-UERJ).

Referências bibliográficas Documentação

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Nova Edição, Revista: Paulus, 1973.

Credo

de Atanásio. Disponível em: http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/dialogo _ecumenico/os_credos_ecu. Acesso em: 14 de Agosto de 2013.

Bibliografia geral CURTIS A. Kenneth. Os 100 Acontecimentos Mais

Marcantes da História do Cristianismo: do Incêndio de Roma ao Crescimento da Igreja na China. São Paulo: Editora Vida, 2003.

EHRMAN, Bart D. Como Jesus se Tornou Deus. São Paulo: Leya, 2014. ____________. Evangelhos Perdidos. Rio de Janeiro: Record, 2012. ____________. O Que Jesus disse? O Que Jesus Não disse?: Quem Mudou a Bíblia e Por quê? Rio de Janeiro: Agir, 2015. ____________. Quem Escreveu a Bíblia?: Por que os

Autores da Bíblia Não São Quem Pensamos Que São? Rio de Janeiro: Agir, 2013.

____________. Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? Rio de Janeiro: Ediouro, 2010. FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I-VII). São Paulo: Paulus, 1995. GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O Livro das Religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. Editora Vida: São Paulo, 2007. HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Edições Risari, 2008. JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. JOSHUA, Abraham Heschel. Deus em Busca do Homem. São Paulo: ARX, 2006. LE GOFF, Jacques. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Monsenhor Cristiani. Breve História das Heresias. São Paulo: Flamboyant, 1962. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006.


G N A R U S | 46

Artigo

DA CIVILIZAÇÃO DOS TRÓPICOS À BARBÁRIE DAS FAVELAS CARIOCAS Por: Dunstana Farias de Mello

Resumo: Ao longo do século XIX as jovens nações americanas procuraram construir suas identidades nacionais, apoiando-se na exuberância da natureza, pois consideravam inexpressivos e inadequados os elementos culturais e étnicos, decorrentes da miscigenação. A natureza foi considerada por muito tempo o lugar da barbárie à espera da ação do homem branco para transformá-la em civilização. O conceito de civilização, valorizado no século XIX, foi empregado utilizado para justificar o domínio dos europeus sobre outros povos e depois o domínio dos seus descendentes americanos sobre os negros e os indígenas. A dicotomia civilização/barbárie foi empregada em diversos contextos. Entre eles, podemos citar o estabelecimento do contraste entre as favelas (barbárie) e a cidade formal (civilização), no Rio de Janeiro.

"Cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra." (Michel de Montaigne)

A

o longo do século XIX o cientificismo

novos países ansiosos em forjar suas identidades

contribuiu para o desenvolvimento e a

nacionais. Na América do Norte, os Estados Unidos

aceitação da convicção da superioridade

já haviam se libertado da Inglaterra desde 1776 e,

da raça branca sobre os outros povos do mundo, o

no século seguinte, rapidamente se uniram sob o

que convenientemente abriu as portas para a

princípio de Destino Manifesto, que os impulsionou

conquista e colonização da África e da Ásia pelos

para a conquista do oeste. Entretanto, na América

europeus. Na América, o século XIX foi o palco da

Latina, de um modo geral, as nações recém-

independência da maioria das colônias, surgindo

independentes tomaram rumos diferentes visando


G N A R U S | 47 o mesmo objetivo: construir-se enquanto nação. A

aguarda a ação do homem civilizado para sua

forte presença de indígenas (na América andina) e

transformação.

de africanos (principalmente, no caso do Brasil), que nas nações recém-independentes da América Latina estavam integrados economicamente e que, portanto, eram necessários à continuidade da produção de matérias-primas destinadas aos mercados europeus, não contribuía para a formação de uma identidade nacional calcada na formação do povo e exigia uma urgência em buscar novos elementos para dar base a essa unidade. O enaltecimento da beleza e originalidade da natureza americana foi o amálgama encontrado para constituir as jovens nações.

A

dicotomia

civilização/barbárie

adquiriu

diversos contornos na América oitocentista: cidade/pampa, na Argentina; litoral/sertão, no Brasil; como podemos ver, respectivamente, nos escritos de Domingos Faustino Sarmiento e do Visconde do Uruguai. Esse processo desaguou no século XX, quando, no Brasil, a República intensificou as ações destinadas a integrar esses dois polos, promovendo expedições com diversas finalidades objetivamente, mas com um único intuito abrangente de levar a civilização ao sertão. No caso especificamente urbano carioca, os novos

Desde o século XVIII, se argumentava na Europa

bárbaros são os moradores das favelas. Na cidade

sobre fragilidade ou mesmo a insalubridade da

do Rio de Janeiro, a civilização e a barbárie

natureza americana e dos seus nativos. Ao clima

conviveram

tropical, especialmente da América do Sul, era

respectivamente, no branco livre e no escravo. As

atribuído a fonte de doenças e de degeneração

obras de Jean Baptiste-Debret expõem a distinção

humana.

intelectuais,

entre a vida reservada das famílias nos ambientes

principalmente americanos, que se esforçaram para

domésticos e as ruas da cidade onde circulavam os

desconstruir essa imagem negativa do continente.

negros, principalmente os negros de ganho. O fim

No México, a resistência de antiquários crioulos,

da escravidão deslocou a barbárie para os cortiços

com a tentativa de preservação de documentos dos

e posteriormente para as favelas, local de absorção

povos

fortes

dos pobres que chegavam à cidade, vindos da

questionamentos às ideias negativas sobre a

Europa e de outras regiões do país. Ao longo do

América e seus habitantes, que se consolidavam na

século XX, foi-se formando gradativamente a

Europa. Com os movimentos de independência

imagem da favela como um lugar de exclusão, um

americanos as elites se viram impossibilitadas de

mundo a parte, violento e insalubre, mas que às

extrair elementos favoráveis à unidade nacional da

vezes ganhará contornos de interior que se

essência dos povos miscigenados e de suas

avizinha, de roça tranquila e atrasada, carente de

heranças históricas. Coube à natureza o lugar de

civilização.

Muitos

foram

pré-colombianos,

os

provocou

refúgio aonde era possível construir as imagens de nações exuberantes, com um futuro promissor que as aguardava. A natureza selvagem não seria mais o lugar que brutaliza o homem, mas se transformaria no “vazio”, na ausência de civilização, no lugar que

durante

séculos

incorporados,

Neste artigo, veremos como o conceito de barbárie se deslocou, adquirindo novas formas, dependendo dos interesses daqueles que se julgaram exemplos da civilização que pretendiam propagar.


G N A R U S | 48 A América sob a ótica do estrangeiro

intenção de conhecer para melhor explorar essas

A influência do meio natural na construção da identidade nacional de um povo foi valorizada na América a partir do século XIX. No caso brasileiro, durante o Império, veremos a necessidade de buscar elementos de orgulho nacional, que pudessem servir de amálgama para conferir uma unidade à diversidade presente a uma nação tão extensa geograficamente. Nosso passado colonial não era um motivo de orgulho, portanto não era um passado a ser lembrado sem críticas, e o passado indígena só seria motivo de idealização de uma época distante e perdida. O pensamento científico ao longo do século XIX, por outro lado, determinou a existência da superioridade de uma raça sobre as outras e o Brasil, um país fortemente miscigenado, não encontraria na constituição do seu povo um motivo de orgulho nacional. Coube à exuberância do meio natural do território brasileiro o papel de

Maria Elisa Noronha de Sá (2012: 109-110), em obra

Civilização

e

barbárie,

observa que, desde o século XVIII, pensadores como o naturalista francês Conde de Buffon e o holandês Cornelius De Pauw teorizaram sobre a inferioridade da América quando comparada à Europa. Para Buffon, a América era “imatura”. Para De Pauw, mais radical, os trópicos provocariam a degeneração dos homens que aqui viviam, mesmo os descendentes de europeus. Suavizando o discurso de De Pauw, outros pensadores, inclusive Buffon, acreditavam na juventude do continente americano

e

no

seu

destino

natural

Nos

moldes

iluministas,

cientistas

dedicados a diversas áreas do conhecimento viajaram ao continente americano para conhecer as espécies animais, os minerais e os habitantes nativos. Embora houvesse vozes discordantes, as ideias mais aceitas na Europa deram ao homem americano a imagem de insensível e inepto. Um bom exemplo a ser citado é a Relation Abrégée, de Charles-Marie de La Condamine, que teve uma grande aceitação na França, em 1745. La Condamine, após ser enviado por uma missão francesa para medir a circunferência da Terra à altura do Equador, decidiu descer o Rio Solimões desde sua origem até a desembocadura do Amazonas no Pará para conhecer e descrever as plantas, os animais e os homens que ali se encontravam. No século XVIII, relatos de viagens tinham grande receptividade no meio acadêmico e literário europeu e La Condamine logo encontrou

representante do nosso valor enquanto nação.

sua

regiões.

de

desenvolvimento a ser conduzido pelos europeus. “Viagens filosóficas” foram implementadas pelos europeus no século XVIII, para visitar outros continentes como a África e a América, com a

ecos as suas observações sobre os nativos da América. La Condamine recolheu informações com europeus que já viviam na América há algum tempo, como o Marques de Valleumbruso e o jesuíta Jean Magnin, que conheceu em Quito, antes de começar sua viagem. Deles, La Condamine tomou como suas as impressões bastante negativas sobre os nativos e reforçou as ideias já difundidas de Buffon sobre a imaturidade do indígena e também sobre a falta de caráter, a preguiça e a incapacidade intelectual dos mesmos, defendidas por De Pauw (SAFIER, 2009). Também criou polêmica ao afirmar a existência de mulheres guerreiras, vivendo isoladas na floresta: as amazonas. Segundo Neil Safier (2009:110), que escreveu sobre o impacto causado pelo relato de La Condamine ao reforçar tais ideias, o malefício


G N A R U S | 49 causado por ele não pôde ser superado, apesar das

mais bem exposto no texto de Maria Ligia Coelho

várias contestações que se seguiram. Como

Prado (1999: 197), ao analisar a visão sobre a

exemplo, Safier cita as críticas feitas pelo português

natureza presente nas obras literárias e políticas e

Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que percorreu

na pintura, especialmente nos pintores da Escola do

o Rio Negro, visitando, trinta anos depois, muitos

Rio Hudson, que se dedicavam a pintar a natureza

lugares onde esteve La Condamine, e questionou

daquela região. Esses pintores estudaram na

várias de suas afirmações sobre a natureza do

Europa, absorveram os padrões técnicos europeus,

nativo, negando a existência das amazonas. O

mas dedicavam-se a uma temática completamente

naturalista alemão Alexander von Humboldt,

norte-americana. A natureza ganhava caráter

embora discordasse das ideias de Buffon e De

divino. O wilderness,

Pauw, apoiou fortemente La Condamine quanto ao

aproximava o homem de Deus. Ao analisar as

mito das amazonas (Idem: 108). O mesmo

pinturas, especialmente as do pintor Thomas Cole,

Humboldt influenciou o meio acadêmico europeu

Prado observa que constantemente os homens são

ao buscar fundamentos científicos para negar a

retratados com uma dimensão bem pequena, em

inferioridade da América e afirmar a igualdade

contraste com a natureza grandiosa. Com a

entre as raças humanas.

expansão para o Oeste, os temas da natureza

Segundo Maria Ligia Coelho Prado (1999: 185), Humboldt apresentou de forma entusiástica a natureza americana e saiu em sua defesa, contra as ideias de Buffon e De Pauw, tão aceitas na Europa. Humboldt se transformou em leitura obrigatória na América Espanhola. Ainda segundo Prado, as críticas às ideias de Buffon e De Pauw tiveram diferentes origens quando se compara a América do Norte e a América Espanhola: na primeira, coincidiu com uma nação já independente buscando a construção de uma identidade nacional e os principais defensores pautavam-se na grandiosidade da natureza americana, chegando mesmo a pretenderem provar a sua superioridade frente à europeia; enquanto na segunda, o prisma religioso católico era dado pelos jesuítas recémexpulsos que retornaram à Europa. Uma forte reação a essas ideias também se apresentou nas colônias americanas no Norte, após se libertarem do domínio inglês, valorizando a grandiosidade da natureza americana. O caso norte-americano está

a natureza intocada

diversificaram-se em novas paisagens sempre grandiosas. A fronteira era o local onde a barbárie e a civilização se encontravam. Segundo o historiador Frederick Jackson Turner, os Estados Unidos tinham um futuro grandioso a ser alcançado. É a ideia do Destino Manifesto. A marcha para o Oeste teria moldado o caráter do homem norte-americano e teria também formado suas convicções políticas na democracia. No caso sul-americano, os pintores presentes tanto no Brasil, quanto na Argentina e em outros países do continente na primeira metade do século XIX, eram quase sempre estrangeiros que apresentavam um gosto pelo exótico, diferentemente do tom nacionalista de exaltação da natureza, presente nas obras dos pintores norte-americanos. Os pintores interessavam-se pelos tipos físicos, como o gaúcho, nos pampas, por exemplo.


G N A R U S | 50 A

visão

do

civilizado),

na

rua

estrangeiro sobre as

onde é feita e servida

terras

a

pode pela

americanas ser

comida

ilustrada

passagem

(ato

incivilizado).

de

Civilização e barbárie

Jean-Baptiste Debret

convivendo

pelo

ambiente urbano do

Brasil,

mais

precisamente pelo Rio

Rio

de Janeiro, durante a

oitocentista.

presença

episódio

portuguesa primeiro

da

corte e

o

no

de

Janeiro O que

se

passou em torno da Jean-Baptiste Debret: castigo de escravo.

reinado.

Verifica-se em sua obra

pintura elaborada por Debret para o pano de

Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil uma

boca que seria usado na encenação da coroação de

predominância de imagens relativas aos negros de

D. Pedro I demonstra o confronto entre civilização

ganho, seguidas de outras também em grande

e barbárie presente nos interesses da nova nação:

número sobre costumes indígenas, somando mais

Debret colocou duas palmeiras ladeando o trono

da metade das 104 pinturas ali reunidas. O próprio

onde a Monarquia, representada por uma figura

título da obra já revela a intenção do autor: mostrar

feminina deveria estar, o que foi categoricamente

o que há de exótico aos olhos de um europeu.

rejeitado por José Bonifácio, para quem era

Enquanto na obra de outros artistas, seus

fundamental que o Brasil assumisse uma imagem

contemporâneos, como Johann Moritz Rugendas e

civilizada, que as palmeiras contrariavam. Debret

Nicolas-Antoine Taunay, os negros se misturam na

abriu mão de sua intenção de ressaltar o exótico, o

paisagem, em Debret eles aparecem como tema

que havia de pitoresco, e trocou as palmeiras por

central de seus quadros. Essa observação se torna

colunas gregas, eliminando a barbárie em favor da

particularmente

imagem de civilização que a monarquia pretendia

interessante

quando

nos

deparamos com declarações de Debret sobre os negros, descrevendo-os com inúmeros adjetivos pejorativos,

entre

eles

preguiçosos

e

indisciplinados. A visão de Debret correspondia à mentalidade da época: a escravidão, embora condenável, tinha a qualidade de dar ao negro um pouco de civilidade. Os conceitos de civilização e da função civilizadora do branco estão claramente presentes em uma de suas obras, Negras

cozinheiras, vendedoras de angu. Nesse quadro, Debret retrata uma negra comendo com talher (ato

demonstrar (BORGES, 2008). Na América Hispânica, especialmente na região andina e na Meso-América, diante dos grandes impérios que ali os espanhóis encontraram, veremos uma valorização das culturas précolombianas como um passado do qual devem se orgulhar,

porém

sem

vínculo

com

seus

descendentes. Uma grandiosidade que ficou no passado. Os mestiços urbanos eram usados como exemplo de um povo desprezível, composto de mentirosos, corruptos e de seres de pouca


G N A R U S | 51 inteligência pelos europeus, no que os crioulos

velho continente, não sendo capazes de comportar

concordavam, mas diziam que eles não poderiam

a diversidade americana. Com a intenção de expor

servir de modelo de comparação com os

e discutir os relatos dos estrangeiros sobre a

ameríndios do passado, esses sim, capazes de feitos

América, Alzate y Ramirez lançou as Gacetas de

grandiosos e que não se deixaram conquistar

Literatura, onde criticava, por exemplo, os escritos

facilmente pelos espanhóis. Já no final do século

do francês La Porte, do inglês Lord George Anson e

XVIII surgiu no México debates calorosos sobre o

o barão Ignaz von Born. Outro estudioso crioulo,

passado ameríndio a partir da investigação dos

Antonio de León y Gama, embora discordasse de

vestígios deixados por esses povos. Pesquisadores

Alzate y Ramirez quanto a impossibilidade de

locais divergiam entre si e, principalmente,

compreensão dos registros nas pedras astecas,

divergiam dos europeus quanto ao valor da cultura

admitia também a incapacidade dos europeus em

dos povos ameríndios que viviam naquela região

entender a grandiosidade da cultura ameríndia.

antes dos espanhóis. Após a descoberta de duas

Embora Alzate y Ramírez e León y Gama

pedras com inscrições que foram reconhecidas

discordassem em muitos pontos, eram ambos

como calendários astecas, houve por parte dos

patriotas que buscavam através de um Iluminismo

estudiosos crioulos um esforço para interpretá-las e

hispano-americano valorizar o passado ameríndio e

um reconhecimento do grau elevado daquela

estabelecer um distanciamento das críticas dos

civilização. Também as ruínas de Xochiclaco, um

europeus ao novo mundo. Deve-se a eles, entre

castelo fortificado, deram elementos aos crioulos

outros crioulos estudiosos dos povos pré-

para contradizer os iluministas europeus que

colombianos, a preservação de documentos

insistiam em afirmar a fragilidade da cultura

ameríndios no México. Não faltaram esforços da

ameríndia. Buffon De Pauw e outros pensadores

coroa espanhola para se apoderar de documentos

europeus da época desprezavam a cultura os povos

originais indígenas reunidos por Lorenzo Butorini,

pré-colombianos e diziam que os registros nas

no início do século XVIII. Foi o empenho e a astúcia

pedras não poderiam ser inteligíveis, porque não

desses estudiosos que fizeram com que as

havia nada ali a ser decifrado. Entre os crioulos,

expedições destinadas ao resgate desse material se

temos o exemplo de José Antonio de Alzate y

frustrassem com a aquisição de cópias produzidas

Ramírez que neste ponto concordava em parte com

por eles e também pelos desencontros que não

os europeus, pois também considerava as inscrições

permitiram aos espanhóis encontrar os originais.

ininteligíveis, mas descartava todas as outras

Lamentavelmente, no início do século XIX, novos

observações feitas por eles sobre o passado

ventos republicanos acabaram por espalhar grande

ameríndio. Considerava que os europeus eram

parte desses documentos pela Europa e Estados

despreparados para entender a América e seu

Unidos. Mesmo assim muitos deles podem ser

passado, que podiam ser facilmente enganados

encontrados hoje no México. (CAÑIZARES-

pelos mestiços e os descendentes dos ameríndios

ESGUERRA, 2011: 327-365).

atuais, e que suas sistematizações científicas estavam restritas ao conhecimento que tinham do

A descoberta de ruinas na Meso-América, mais precisamente ruínas maias em Palenque, no


G N A R U S | 52 México, no final do século XVIII, suscitou várias

natal”. Segundo Smith, “todo conceito de

interpretações sobre o passado americano, que em

identidade nacional se baseia no processo de

muitas ocasiões foi relacionado com passagens

assimilar, delimitar e reinterpretar uma terra natal

bíblicas e lendas europeias de povos perdidos.

autêntica que una os ancestrais com os vivos e com

Ainda no século XVIII, três expedições foram

os que estão para nascer.” (SÁ, 2012: 117-118).

enviadas a Palenque: a de José Antonio Calderón, a

Deste modo, é possível identificar a exaltação da

de Antonio Bernasconi e a de Antonio del Rio. A

natureza feita por diversos povos como forma de

primeira concluiu rapidamente se tratar de um

criar uma identidade nacional, não apenas na

grande achado que glorificaria a Espanha, pois

América. De terra imatura e até mesmo

havia indícios que sugeriam não ser sido construída

degenerada do século XVIII a América passou, no

por ameríndios, mas por outros povos, romanos ou

século XIX, à terra destinada a ocupação dos

cartagineses. Na seguinte, o arquiteto Bernasconi

europeus e seus descendentes que a fariam

contava com sua reputação para fazer valer suas

civilizar-se. As ideias europeias sobre a América não

conclusões sobre as ruínas que considerou sem

eram ignoradas pelos colonos, que as aceitavam,

grande importância e descartou a possibilidade de

adaptavam ou rejeitavam, conforme os interesses

ter sido construída por outros povos que não os

das elites interessadas na construção de uma

antepassados ameríndios. A terceira expedição

identidade que conferisse uma nacionalidade.

concluiu que, pela grandiosidade arquitetônica do local, aquela cidade só poderia ter sido erguida pelos romanos. Também sugeriram que poderia ter havido

a

presença

de

fenícios

e

gregos

(CAÑIZARES-ESGUERRA, 2011: 384-393). É curioso notar como a possibilidade de ter sido originada por povos não americanos, no caso os europeus, trazia uma valorização das ruinas, e como no imaginário dos antiquários crioulos do México, do final do século XVIII e início do século XIX havia a permanente preocupação em construir um passado glorificado, seja através do reconhecimento do valor do passado ameríndio, ainda que seus descendentes fossem indignos dele, seja através da busca por semelhança com ancestrais bíblicos ou romanos.

Mais

ao

sul

da

América,

a

dicotomia

barbárie/civilização está presente na expressão pampa/cidade, na Argentina, demonstrada na obra de

Domingos

Faustino

Sarmiento,

que

se

preocupou com a construção de uma identidade nacional daquele país na segunda metade do século XIX. O pampa se encontra descrito por Sarmiento

não

como

um

lugar

selvagem,

degenerador do caráter, tal qual o descreveram os viajantes europeus do século XVIII, mas como um vazio populacional a ser ocupado pela civilização, embora não fossem exatamente vazios. Os nativos que ocupavam a região não eram considerados por Sarmiento. A civilização encontrava-se nas cidades, que detinham as instituições políticas e culturais, de onde esta se irradiaria para o campo, o pampa

Segundo Anthony Smith, a construção de uma

incivilizado, principalmente Buenos Aires, por estar

identidade nacional passa tanto pelo fundamento

em estreita ligação com as nações europeias.

histórico e pela composição étnica de um povo,

Porém em Sarmiento se encontra também uma

como também pela “natureza histórica da terra

valorização do gaúcho, que embora rude, era capaz


G N A R U S | 53 de dominar a natureza do pampa. A natureza

facções políticas comandadas pelas famílias que

original da América, especialmente do pampa

desejam tão somente o poder local para perseguir

argentino, conferia um caráter único ao povo que o

seus inimigos. Tanto na obra de Sarmiento quanto

ocupava, constituindo um povo “distinto e

dos textos do Visconde do Uruguai, a dicotomia

autônomo” (SÁ, 2012). Para Sarmiento, a vastidão

civilização/barbárie não é excludente, já que o que

do pampa, a natureza selvagem, tornava o gaúcho

se deseja é a transformação tanto do pampa quanto

quase um bárbaro tendente ao despotismo. A

do sertão em espaço civilizado através do

mesma natureza intocada que segundo Turner, nos

povoamento (SÁ, 2012).

Estados Unidos, dava ao homem um individualismo que fazia brotar a democracia, para Sarmiento, na Argentina, o afastava da civilização (PRADO, 1999: 212). A construção de uma identidade nacional passa pela interpretação que cada povo faz de seus costumes seu passado histórico comum e do espaço geográfico onde atuam, segundo Smith, criando o que ele chamou de “mapa cognoscitivo”. Então, a afetividade que cada povo desenvolve para com a sua terra natal é um elemento constitutivo da identidade nacional (SÁ, 2012: 118). Também

no

Brasil

essa

Além dos escritores e pintores quanto à composição de uma imagem da América, também podemos destacar a fotografia, que (apesar de, e também justamente porque traz em si mesma o selo de representação fidedigna da realidade) difundiu ainda mais os tipos físicos e as paisagens não europeias na Europa. A litografia contribuiu para tornar mais barato e acessível a reprodução de pinturas e fotografias que passaram a decorar os papéis de parede da burguesia europeia com imagens pitorescas na segunda metade do século

dicotomia

XIX. Em 1857, chegou ao Brasil o fotógrafo Victor

civilização/barbárie vai aparecer nos textos do

Frond que, junto com Charles Ribeyrolles, compôs

Visconde do Uruguai, estudado por Maria Elisa

um álbum chamado de Brazil pitoresco, destinado a

Noronha de Sá. De forma semelhante à Argentina,

abordar o caminho rumo à civilização em que se

o contraste será sertão/litoral (e algumas vezes,

encontrava a sociedade brasileira de então,

sertão/Corte), visto que as cidades do Brasil

fotografando,

Imperial estão localizadas principalmente no

situações de trabalho. Dois anos antes, em 1855,

litoral. Tal qual o pampa, o sertão é despovoado e

vindo de Açores, o fotógrafo português Christiano

incivilizado, mas o Visconde do Uruguai não lança

de Freitas Henrique Júnior, passou por Maceió, Rio

um olhar poético para o sertão, como faz

de Janeiro e Buenos Aires, registrando imagens de

Sarmiento. Para o Visconde, só um governo

tipos considerados pitorescos aos olhos europeus:

centralizado político-administrativamente seria

um grande número de imagens dedicadas a negros

capaz de promover a civilização do sertão, mesmo

e

porque, ao estudar as organizações políticas locais,

desaparecendo. Os seus “typos pretos” eram

o Visconde vai concluir que uma política

retratados em diversos ofícios, como ambulantes,

organizada em torno de princípios políticos só é

barbeiros, entre outros, com poses montadas em

possível no meio civilizado urbano, pois nas

fundo neutro, sugerindo que os negros poderiam

pequenas localidades o que predomina são as

ser da África ou de qualquer outro lugar onde a

a

ofícios

paradoxalmente,

que

na

Europa

escravos

em

estavam


G N A R U S | 54 combater a rebeldia no campo; a instalação de telégrafos no interior do Mato Grosso, para integrar a comunicação das regiões de fronteira com o Paraguai e a Bolívia com a capital federal, e que mais tarde se estendeu à Amazônia; e a repressão à Coluna Prestes; a pesquisa e o combate a doenças tropicais, feita pelos médicos e pesquisadores do Instituto Osvaldo Cruz. São ações bastante diversificadas que convivem com a antítese de reconhecimento do sertão ora como local de deserto de pessoas e de civilização, ora com local de autenticidade cultural, que não existe mais nas cidades influenciadas pelo estrangeiro. O combate a Canudos deixa claro o papel civilizador de suprimir a barbárie do sertanejo. Mesmo assim, "Typos de pretos" de Christiano Junior

vemos em Os Sertões, de Euclides da Cunha, um sertão antes de tudo resistente às mudanças, com

escravidão de africanos existiu. (BORGES, 2008). A

uma cultura tradicional, ao invés de bárbaro. A

busca pela civilização intensificou-se com o fim da

oposição entre litoral e sertão parece, então, se

escravidão e o início da República, e teve grande

diluir e se transformar em conciliação quando se

ênfase nas missões civilizatórias destinadas à

observa as atividades do sertanista Cândido

integração do país.

Mariano da Silva Rondon, que após assumir diversas

A ótica do estrangeiro, no que diz respeito

atividades no interior do país, como, por exemplo,

ao seu papel civilizador, ganharou uma nova

a inspeção de fronteiras e a construção de linhas

perspectiva aos olhos das elites urbanas, mais

teleféricas no Mato Grosso e na Amazônia, vai se

precisamente na visão de missão civilizadora da

notabilizar pelo trabalho junto a o Serviço Nacional

cidade sobre o sertão. Apesar do Brasil já ter suas

de Proteção ao Índio. As expedições de Rondon não

fronteiras quase que integramente definidas desde

se limitavam a uma só atividade: enquanto linhas

o século XVII, ainda durante o Império já havia a

teleféricas eram instaladas, se desenvolvia um

preocupação

país,

trabalho de reconhecimento dos rios, da flora e da

principalmente ligando o litoral ao interior, trajeto

fauna das regiões visitadas, além dos contatos com

que levaria a civilização para os recantos

os indígenas, o reconhecimento das línguas faladas

despovoados, garantindo a ocupação do território

e as condições epidemiológicas encontradas.

nacional e a construção de uma nação civilizada. Na

Contribuições igualmente importantes foram

República essas preocupações se intensificaram e

somadas pelas viagens científicas empreendidas

ganharam novos significados. Podemos citar como

pelos pesquisadores de Manguinhos. Seguindo a

exemplos: a guerra de Canudos e a necessidade de

esteira dos engenheiros, médicos eram enviados

com

a

integração

do


G N A R U S | 55 para o interior onde estavam sendo construídas

janelas fechadas, demonstrando que o espaço do

ferrovias para tratar de doenças tropicais que

negro é a rua, separada do ambiente doméstico das

frequentemente acometiam os trabalhadores.

famílias brancas (BORGES, 2008). Esse contraste

Exemplares de hospedeiros do mal de Chagas, da

tomou novos rumos, porém permaneceu vivo,

malária e outras moléstias foram recolhidos e

mesmo depois do fim da escravidão.

estudados pelo Instituto Osvaldo Cruz, trazendo grande contribuição para o tratamento dessas doenças. Os médicos e sanitaristas não foram convocados

apenas

para

solucionar

as

enfermidades recorrentes no interior do país. Também a capital federal vinha sendo assolada por essas e outras doenças, necessitando de urgentes

No início do século XX, o prefeito Francisco Pereira Passos expulsou os moradores dos cortiços do centro da cidade do Rio de Janeiro para dar lugar a Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco). Os moradores expulsos dirigiram-se aos morros próximos, especialmente ao atual Morro da Providência, que na época também era conhecido

reformas

como Morro da

direcionadas

Favella, já então

para

a

urbanização

e

parcialmente ocupado, desde

saneamento

1897,

(LIMA, 1998).

soldados vindos da

foi

guerra

Canudos,

A convivência entre a civilização e a barbárie na cidade do Rio de Janeiro Como

por

Bahia,

de na para

cobrar promessas feitas

Morro da Favela (Augusto Malta)

visto anteriormente

Ministério

pelo da

Guerra, localizado

nas obras de Debret, na cidade do Rio de Janeiro

nas proximidades.

conviviam o branco e o negro, o livre e o escravo; os

cidade passaram a ser chamados de favelas e foram

primeiros como representantes da civilização,

inicialmente ocupados, além dos ex-moradores dos

enquanto os outros condenados à barbárie. Dois

cortiços, por imigrantes estrangeiros pobres,

mundos diferentes que se justapunham e que

portugueses, espanhóis e italianos, que não

estavam ao mesmo tempo separados e juntos. Em

encontravam moradias na cidade. Mas tarde,

Debret, nas obras onde são retratados os negros de

começaram a chegar os imigrantes provenientes de

ganho, o elemento branco não aparece, apesar de

diversos Estados da Federação, principalmente da

o mesmo não ocorrer sempre quando os brancos

Região Nordeste, fugindo da seca, da falta de

são os objetos da pintura. Nas obras onde o negro é

oportunidades e da exploração no campo. O nome

o elemento de enfocado, quando as construções

Providência refere-se às providências que estavam

servem de pano de fundo, elas sempre estão de

sendo aguardadas pelos sodados, primeiros

Desde então, os morros da


G N A R U S | 56 moradores, enquanto o termo Favella, está ligado a

construídas com caixotes, “a impressão lida da

uma planta abundante nos morros próximos ao

estrada do arraial de Canudos” (VALLADARES,

Arraial de Canudos, na Bahia.

2000: 6). Valladares deixa claro a identificação das

Em 1900, o Morro da Providência ou Favella foi denunciado

nos

jornais

como

reduto

de

vagabundos e criminosos e, em 1907, o mesmo local chegou a ser saneado pela campanha liderada por Osvaldo Cruz. As favelas, desde seus primeiros anos,

foram

reconhecidas

como

um

local

assustador. A favela foi identificada como um sinônimo de problema: de segurança, de saúde e de falta de ordenamento arquitetônico. Até os anos 50, as observações feitas sobre as favelas e seus moradores ficaram a cargo dos jornalistas, cronistas,

engenheiros,

arquitetos,

médicos,

administradores públicos e assistentes sociais. Só a partir da segunda metade do século XX, elas se tornaram objeto de estudo das ciências humanas e sociais. (VALLADARES, 2000: 2). Segundo demonstra Lícia Valladares (2000), em seu ensaio A Gênese da Favela Carioca, independentemente da origem do discurso, havia um consenso formador de um arquétipo da favela

favelas cariocas e de seus habitantes com o Arraial de Canudos:

“A ideia de comunidade, tão presente no arraial analisado por Euclides da Cunha, acaba se transpondo para a favela, servindo como modelo aos primeiros observadores que tentaram caracterizar a organização social dos novos territórios da pobreza na cidade. À semelhança de Canudos, a favela é vista como uma comunidade de miseráveis com extraordinária capacidade de sobrevivência diante de condições de vida extremamente precárias e inusitadas, marcados por uma identidade comum. Com um modus vivendi determinado pelas condições peculiares do lugar, ela é percebida como espaço de liberdade e como tal valorizada por seus habitantes. Morar na favela corresponde a uma escolha, do mesmo modo que ir para Canudos depende da vontade individual de cada um. Como comunidade organizada, tal espaço constitui-se um perigo, uma ameaça à ordem moral e à ordem social onde está inserida. Por suas regras próprias, por sua persistência em continuar favela, pela coesão entre seus moradores e por simbolizar, assim como Canudos, um espaço de resistência.” (VALLADARES, 2000: 8)

com um “mundo diferente”, na “contramão da

A favela era o sertão bruto, sem ordem, sem

ordem”, que estaria inegavelmente ligado à origem

governo e, portanto, selvagem, que precisava ser

no Arraial de Canudos. O sertão se avizinhava da

civilizado, porque sua proximidade ameaçava a

cidade através das favelas. Para Valladares, o relato

cidade. Essa preocupação pode ser observada em

de Euclides da Cunha, em Os Sertões, publicado em

Valladares, quando cita João Augusto de Mattos

1902, contribuiu fundamentalmente para compor a

Pimenta, membro do Rotary Club, e o urbanista

visão da época sobre as favelas. Os Sertões formou

francês Alfred Agache, que veio ao Rio de Janeiro

a compreensão dos intelectuais da época sobre os

pela primeira vez em 1927, a convite oficial do

sertanejos e sobre os moradores das favelas e foi

prefeito Antonio Prado Junior, para demonstrar

fundamental para que o episódio de Canudos não

como ocorreu a evolução da constituição do

caísse no esquecimento. Para demostrar essa

conceito de favela. Mattos Pimenta visitou favelas

afirmação, cita, entre outros, João do Rio que, em uma de suas visitas ao Morro de Santo Antônio, identifica na escuridão da noite, diante das casas


G N A R U S | 57 entre 1926-27 e as chamou de “lepra da esthetica”1.

22). A favela era a nova fronteira a ser vencida, seja

Promoveu uma campanha pública a favor da ordem

pela integração à cidade através da urbanização e

urbana, para mostrar o incomodo que elas

educação de seus moradores, seja pela sua retirada,

causavam e chegou a realizar um filme, intitulado

para “limpeza” da cidade.

As Favellas, onde mostra de dentro o que chamou de “espetáculo

dantesco”2

daquele lugar, com

casebres construídos com madeiras e latas, que abrigava capoeiras e vagabundos, e aonde a lei e a ordem não chegavam. Procurava com isso sensibilizar o governo e a sociedade carioca de então, ressaltando a necessidade de ações sanitaristas, urbanísticas e arquitetônicas para o embelezamento da cidade. As ideias de Mattos Pimenta influenciaram Alfred Agache, responsável pelo Plano de Remodelação da Cidade do Rio de Janeiro, que foi engavetado após as mudanças que ocorreram a partir de 1930. Em 1937, o Código de Obras reconhece a existência das favelas e proíbe a sua expansão. Ao mesmo tempo, o governo preocupou-se permitissem

em

promover

compreender

estudos

quem

eram

que os

moradores das favelas e identificou a necessidade de investir na educação. Só a educação seria capaz de controlar e direcionar as populações de favelas

Nos anos 40 e 50 do século XX, houve no Brasil um aumento da preocupação com a valorização da cultura nacional. Era preciso reencontrar os valores da nossa cultura que estavam certamente nas manifestações folclóricas. Regatar e divulgar as lendas, danças e músicas nacionais fazia parte do projeto de educação, desde os tempos de Getúlio Vargas, para o fortalecimento do sentimento de nacionalidade. O sertão era visto como detentor de tradições

censo das favelas, promovido pelo prefeito do Distrito Federal, Ângelo Mendes de Moraes. O conhecimento sobre a favela se ampliou, mas não se distanciou da construção de uma imagem de pobreza e criminalidade (VALLADARES, 2000: 9-

O conceito de “lepra esthetica” foi pronunciado por Mattos Pimenta para ressaltar a necessidade de ordenamento urbanístico para a cidade do Rio de Janeiro, para que “se levante uma barreira prophylactica contra a infestação avassaladora das lindas montanhas do Rio de Janeiro pelo flagelo das "favelas”". Ver VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000, p.12. 1

que

não

poderiam

ser

esquecidas pela história. O “sertão” representado pela favela, apesar de ser quase sempre descrito como local da marginalidade e da violência, por vezes incorporava a imagem de “roça” tranquila com um “modo de vida simples e harmônico”. Mas as manifestações culturais de cunho popular, de um modo

geral

valorizadas

no

campo,

se

transformavam em incômodo quando ocorriam no meio urbano, como por exemplo, o teatro de revista. (AMOROSO, 2012: 194-195).

ao caminho da ordem. Em 1948 foi possível obter informações mais precisas, a partir do primeiro

culturais

Em uma fotografia de Milton Santos, publicada no jornal Correio da Manhã, que registra o desmonte do morro de Santo Antônio, os moradores da favela, que ali existia então, são retratados distantes, no alto, observando o movimento dos caminhões abaixo, com a cidade ao fundo. A imagem

Mattos Pimenta sabia que, naquela época, poucas pessoas haviam se aventurado a conhecer de perto a realidade das favelas e apostava que as imagens mostradas pelo filme causariam um grande impacto junto à opinião pública. Buscava com isso atrair adeptos as suas intenções de promover a remoção das favelas. Idem, p. 13. 2


G N A R U S | 58 entre os anos 60 e 70 do século XX, vai recair sobre o elemento humano, representando o atraso e a miséria, como crítica social e política, para o que se deseja mudar. Este período ficou marcado pela implementação de uma forte política de remoção das favelas, principalmente as da Zona Sul, em direção a áreas menos ocupadas da cidade (AMOROSO, 2012).

A favela é o que se quer apagar, porque é sinônimo de atraso e de vergonha:

Correio da Manhã, 03/12/1954, p. 7. demonstra o contraste entre o mundo civilizado ao longe e a favela, representada pelos moradores, intermediados

pelo

progresso

que

inexoravelmente se aproximava. A ideia de progresso está sempre presente nesta e em outras fotografias e textos jornalísticos publicados nos jornais da época representada pelas máquinas, caminhões e tratores, que remodelavam a cidade. Particularmente, esta fotografia é uma exceção, porque a figura humana quase sempre estava em segundo plano na maioria das imagens de então, pois o morador da favela representava o atraso, enquanto as máquinas significavam o progresso que se queria propagar, num momento em que a cidade do Rio de Janeiro estava prestes a perder o título de Distrito Federal. Outra favela do Rio de Janeiro, a favela do Pinto, vai figurar nos noticiários cariocas, a partir dos anos 60, como representação

Uma recente propaganda da empresa Petrobrás vinculada na mídia impressa mostrava uma representação aérea do Rio de Janeiro na qual as favelas haviam sido digitalmente retiradas dos morros. Parte da população se manifestou contra a presença de um grande número de favelas no Google Maps. Eco-limites e muros de contenção em algumas favelas cariocas. Diversas comunidades sofrem ameaças de remoção por supostamente ameaçar

o

meio

ambiente,

mesmo

não

apresentando nenhum crescimento relevante e já existindo há décadas, como o caso da Vila Autódromo, Santa Marta e comunidade do Horto. Além dessas iniciativas radicais, a Prefeitura do Rio de Janeiro já tentou implementar outras formas de mascarar as favelas como pintar todas as casas de uma única cor; uma espécie de Grécia perdida entre os morros cariocas.

da barbárie que se quer eliminar ou afastar da

Apesar de já fazerem parte da paisagem urbana,

cidade. Utilizando fotografias que mostram o

as favelas parecem não existir no imaginário ideal

atraso e a insalubridade do local, os jornais

do Rio de Janeiro. (BAKER&BAKER, 2012)

apoiavam a remoção da favela do Pinto para algum

Ainda hoje, temos, particularmente na cidade do

lugar distante da cidade, alegando que traria, ao

Rio de Janeiro, a repetição dessa mesma dicotomia

mesmo tempo, melhoria de vida para o “favelado”,

civilização/barbárie quando falamos do contraste

como para aquela região da cidade de crescente

entre bairro/favela, ou asfalto/morro. As favelas são

valorização imobiliária. O enfoque fotográfico,


G N A R U S | 59 vistas como lugares sempre insalubres onde todos que ali residem são ignorantes, “estrangeiros” na cidade, vindo de um mundo rural “bárbaro” tentando se integrar a “civilização urbana”, mas ao mesmo tempo incapazes de pertencer à civilização devido ao seu grau de ignorância e pelo atraso em que vivem. O “favelado” é o “outro”. Os cidadãos são os moradores dos bairros, conscientes de sua participação política, enquanto os moradores das favelas são desprovidos de consciência política, agindo pelas paixões, incapazes de reivindicar seus direitos e vivendo sob o jugo do clientelismo, seja do

traficante,

seja

do

miliciano.

Bárbaros

subjugados, vivendo em um estado paralelo, que agem sem consciência, estão a mercê da violência que assola suas vidas e são perigosos. Seja em decorrência de sua origem, seja pela situação socioeconômica em que vive, ou mesmo por sua composição étnica, o morador da favela é o outro, que

vive

separado

da

cidade,

que

ocasionalmente a frequenta, quase sempre em função de um trabalho, raramente por lazer. Ocupam boa parte das atividades de baixa remuneração da cidade, trabalhando em prédios como porteiros, ou na construção civil, ou em muitas outras ocupações, mas são sempre vistos como indesejáveis, desocupados, traficantes, sem aspirações

de

progredir

na

vida,

e

que

constantemente ameaçam a ordem pública. Embora a imagem que a cidade tenta ter de si mesma seja a da harmonia entre seus moradores, a violência presente no lugar do “outro” está sempre ameaçando o lugar da civilização. A cidade ideal seria sem favelas, sem moradores indesejados, que mancham o cenário de cidade maravilhosa (BRUM, 2013).

Conclusão A dicotomia civilização/barbárie, que também pode

ser

compreendia

como

urbano/rural,

litoral/serão, favela/bairro, ao longo dos dois últimos séculos mudou suas feições em decorrência do objeto ao qual ela foi empregada, mas permanece viva no imaginário de todos. Se o selvagem era o nativo da América no século XVIII, hoje esse papel continua tendo um ator, o morador da favela. Segundo alguns influentes pensadores europeus do século XVIII, o destino da América estaria no seu amadurecimento auxiliado pelos europeus, incumbidos dessa missão. O conceito de civilização se tornou um referencial muito caro no século XIX e serviu de justificativa para as conquistas, colonização e exploração de outras regiões do planeta pelos europeus até a segunda metade do século XX. Enquanto isso, nos países que se tornaram independentes da América Latina, especialmente onde a escravidão ocorreu (como no Brasil), o conceito de civilização vai ser direcionado para justificar a exploração de indígenas e africanos, que precisavam ser retirados do estado de barbárie em que se encontravam. Ao longo do século XIX se cristaliza a imagem do branco civilizador, europeu ou, no caso da América e do Brasil particularmente, dos seus descendentes. As nações americanas empregaram muitos esforços para buscar ao longo dos séculos XIX uma imagem de civilização e se apoiaram na natureza. Transformaram a visão que se tinha da selvagem natureza americana de local de bárbarie em um lugar exuberante e formador do caráter original do seu povo. Era necessário apoiar-se na natureza, pois ela era grandiosa e carregavam muitas promessas de um futuro rico e promissor, em detrimento de valores étnicos ou históricos, já que um povo


G N A R U S | 60 miscigenado e um passado de escravidão não correspondiam à imagem de uma nação civilizada. Tarefa árdua é a missão civilizadora do homem branco que ainda não se concretizou, já que o objeto da barbárie se deslocou, depois da abolição da escravatura e ao longo do século seguinte, para o sertão, primeiramente o nordestino, que passaram a compor a grande maioria dos moradores das áreas periféricas das grandes cidades da Região Sudeste do Brasil. Nas favelas se encontram hoje os bárbaros de sempre. Através da grande imprensa, o imaginário de local violento, insalubre e habitado por pessoas ignorantes continua sendo propagado diariamente. Dunstana Farias de Mello é Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Professora Regente da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas: AMOROSO, Mauro. Duas faces da mesma

fotografia: atraso versus progresso na cobertura fotojornalística de favelas do Correio da Manhã. In: MELLO, Marco Antonio da Silva. [et al.].

Favelas cariocas: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. BRUM, Mário Sérgio. Tráfico, favelas e a cidade do Rio de Janeiro. In: Revista Cantareira, UFF. Disponível em http://www.historia.uff.br/cantareira/v3/wpcontent/uploads/2013/05/e04a06.pdf. BAKER, Eduardo e BAKER, Julia. Civilização como Barbárie. In: Revista Global Brasil. Edição 16. 2012. Disponível em http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=121 5. BORGES, Maria Eliza Linhares. A escravidão em imagens no Brasil oitocentista. In: FURTADO, Júnia F. (org). Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, América e África. São Paulo: Annablume, 2008. ESGUERRA-CAÑIZARES, Jorge. Como escrever a história do Novo Mundo. São Paulo: Edusp, 2011. LIMA, N. S. Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil. In: História Ciencias, Saúde – Manguinhos. V. 5 (suplemento), 163193, julho 1998. PRADO, MARIA Lígia. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos. São Paulo: Edusp, 2004. SÁ, Maria Eliza Noronha de. Civilização e barbárie:

a construção da ideia de nação – Brasil e Argentina. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. SAFIER, Niel. Como era ardiloso meu francês. Charles-Marie de la Condamine e a Amazônia das Luzes. In: Revista Brasileira de História. V. 29,

n. 57, pp 91-114, 2009. VALLADARES, Lícia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 15, n. 44, Oct. 2000.


G N A R U S | 61

Artigo

ENTRE O PARAÍSO E O INFERNO: O “TERCEIRO LOCAL” NAS OBRAS DE LE GOFF E VOVELLE Por Airles Almeida dos Santos

Resumo: Sem sombra de dúvidas, dos três lugares do além cristão o purgatório foi o que mais tardou para ser definido e o que causou mais divergências tanto entre religioso quanto entre leigos. Esse “espaço” indefinido e de difícil representação apareceu como resultado das transformações sociais e mentais da Idade Média e correspondia às exigências religiosas de uma época marcada por forte espiritualidade. Neste trabalho analisaremos duas obras sobre o “nascimento” e as “figurações imagéticas” desse lugar que permeou o imaginário cristão medieval. Selecionamos O Nascimento do Purgatório de Jacques Le Goff e As Almas do

Purgatório ou o trabalho de Luto de Michel Vovelle a fim de comparamos suas interpretações com o intuito de contribuir à História da morte e a compreender melhor o assunto no Medievo. Palavras-chave: Purgatório, Historiografia, Idade Média. Introdução

M

interdito de hoje, em toda a História, ela foi motivo de indagações. orte.

Palavra

carregada

de

singela,

porém

simbolismo.

O início do interesse pelo estudo da morte é

Na

relativamente novo na historiografia, datada por

contemporaneidade esse fenômeno

volta dos anos 60 e 70 do século XX, quando

se tornou tabu. Ninguém o menciona, ninguém

emergem novas maneiras de abordagens ligadas à

quer pensar nele, e todos querem disfarçar quando

Terceira Geração dos Analles, influenciadas

chega. A sociedade recusa-se a encará-lo apesar de

diretamente pela Antropologia e pela Psicologia,

saber tratar-se de uma coisa certa, sem dia nem

cuja produção mais abundante sobre o assunto é de

hora marcada, mas certa. Em todas as culturas

origem francesa, podendo afirmar tratar-se de uma

humanas a morte nunca foi um fato corriqueiro,

linha de especificidade desses historiadores.

insignificante. Pelo contrário. Sempre teve papel de

Doravante eles passam a produzir trabalhos sobre

destaque; era pensada; sentida; vivida. E apesar do

as atitudes, os comportamentos, os modos de agir,


G N A R U S | 62 sentir

e

pensar

o

O “terceiro local” nas

fenômeno bem como as

obras de Le Goff e Vovelle

mudanças que ele sofreu ao longo das épocas.

Le Goff modificou de

Atualmente esses estudos

forma

fundamental

a

tem ido além da fronteira

percepção que tínhamos

da França e encontramos

do Medievo e inovou ao

monografias, artigos e

introduzir a ideia de longa

textos nos mais variados

Idade Média, prolongada

aspectos da celebração

até o século XVIII e

mortuária.

findada com a Revolução Industrial. O mesmo nos

Sem

sombra

de

explica

dúvidas, dos três lugares do

além

cristão

o

purgatório foi o que mais tardou para ser definido e o

que

causou

mais

divergências tanto entre religioso quanto entre leigos. Esse “espaço” indefinido e de difícil representação apareceu como resultado das transformações sociais e mentais da Idade Média e correspondia às exigências religiosas de uma época marcada

por

forte

espiritualidade.

Aqui

Eu fui voluntariamente provocador ao falar de uma longa Idade Média que se prolongou até o século 18. Continuo a pensar que há uma certa verdade na ideia de que a Idade Média vai até o fim do século 18, se observamos aspectos essenciais, como a fome, as pestes, a indústria – a economia capitalista do século 18 é uma grande virada (...). Mas, mesmo que consideremos que o fim da Idade Média acontece no fim do século 15, ela não era decadente, não era triste, mas sim soberba, até exagerada”.3

analisaremos duas obras de autores diferentes sobre o “nascimento” e as “figurações imagéticas” desse lugar que permeou o imaginário cristão medieval. Selecionamos as obras O Nascimento do

Purgatório1 de Jacques Le Goff e As Almas do Purgatório ou o trabalho de Luto2 de Michel Vovelle a fim de comparamos suas interpretações.

Esse medievalista francês dedicou boa parte de sua longa carreira à “antropologia histórica medieval”, disciplina que enriqueceu ao abordar todos os aspectos da vida em sociedade e foi um dos pais do movimento Nova História. Como um dos representantes da terceira geração dos Annales, dedicou-se à História das Mentalidades e ao Imaginário Medieval. Também se aprofundou nas generalizações de autores anteriores a ele e se

LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. São Paulo: Estampa 1995. 2 VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 3 LE GOFF, Jacques. Entrevista ao Estadão. Outubro de 1

2010. Disponível em http://www.estadao.com.br/ noticias/arte-e-lazer,jacques-le-goff-foi-decisivo-parao-estudo-da-idade-media,1148193,0.htm. Último acesso 23/01/2015.


G N A R U S | 63 preocupou em criar um novo tipo de história voltada à pesquisa interdisciplinar, além de ter se voltado

ao

sensibilidades

resgate

de

humanas.

uma

história

Segundo

das

Agostinho

Menotti Orlandi sobre a concepção de história desse historiador

Jacques Le Goff, que marcou a historiografia contemporânea com as suas ideias e com suas obras, explica o trabalho do historiador segundo as relações entre o que são a memória e as oposições passado/presente, antigo/moderno, progresso/ reação. O passado como uma construção e uma reinterpretação constante.4 Antes de nos aprofundarmos, é importante que façamos uma distinção. Como mostrou Barros, “a História do Imaginário não se ocupa propriamente destas longas durações nos modos de pensar e de sentir, mas sim da articulação das imagens visuais, verbais e mentais com a própria vida que flui em uma determinada sociedade”.5 Sendo assim, não é como a História das Mentalidades que maneja o abstrato, aquilo que pode ou não se expressar por imagens. O imaginário nem sempre se forma em longa duração, pode ser uma questão particular e dinâmica, muito relacionado à representação propriamente dita. Foi buscando essa articulação de imagens à vida que flui em sociedade, em outras palavras, a mútua interação entre o imaginário religioso medieval e a sociedade que o produziu que Jacques Le Goff redigiu O Nascimento do

Purgatório. Tanto Le Goff como Vovelle, ambos os autores analisados a seguir, andaram pelo mesmo caminho: se preocuparam com a história dos modos de ser,

ORLANDI. Agostinho Menotti. Le Goff vs Vovelle: um embate de longa duração. Disponível em www. webartigos.com/artigos/le-goff-vs-vovelle/38140/. Último acesso em 20/01/2015. 4

BARROS, José D’Assunção. Imaginário, Mentalidades e Psico-História – uma discussão historiográfica. Labirinto 5

pensar ou agir; das sensibilidades humanas na longa duração e com o imaginário no período medieval. No entanto, enquanto Le Goff se preocupou ao menos inicialmente em seus trabalhos, com a inércia das estruturas mentais, com “o nível mais estável, mais imóvel da sociedade”,6 Com o passar do tempo acabou revendo seu conceito de “mentalidade”.

A

partir

de

então,

metodologicamente, não se volta nos seus estudos apenas para aquilo que anteriormente acreditava imutável, mas sim daquilo que se sabe mudar lentamente e que, apesar disso, possui certa dinamicidade. Conciliou a curta com a longa duração. A obra analisada aqui reflete muito bem isso, essa nova maneira de conceber a história. Por outro lado, Vovelle tendeu a se afastar dessa análise –Revista Eletrônica do Centro de Estudos do Imaginário, 2000. Disponível em http://www.cei.unir.br/artigo71. html. 6 LE GOFF, Jacques. NORA, Pierre. História: Novas Abordagens. São Paulo: Francisco Alves, 1976, p.69.


G N A R U S | 64 totalizante para não cair no reducionismo. Segundo

Média

a

partir

ele não é interessante à análise da totalidade em

representações

uma ou outra camada social, na cultura da elite e da

Fundamentando-se em grande parte nas Sagradas

cultura popular.7 Rejeita a ideia de passividade das

Escrituras e nos textos de variadas naturezas

massas conservadoras ou receptoras à força, pois o

produzidos por religiosos, aponta esse terceiro

imaginário coletivo age sobre elas.

local como uma criação dos próprios medievais,

da

das

transformações

vida

após

a

das

morte.

Enquanto Vovelle preocupou-se mais com as

sem equivalência nos textos sagrados, cuja ideia de

imagens ao invés de se debruçar sobre textos,

surgimento – ou nas suas palavras, nascimento –

usando a iconografia não apenas como anexos ou

fazia parte da transformação do cristianismo

suportes, mas como portadoras de discursos

feudal, havendo conexões entre as mudanças

regidos pela dinâmica dessas mesmas imagens, Le

intelectuais e as sociais. Aponta Agostinho como

Goff preocupou-se com o valor das palavras, com a

precursor dessa ideia, na emergência da noção de

importância delas, chegando

um lugar intermediário nos primeiros séculos do

a criticar os

historiadores que as negligenciam

“sem dúvida, os historiadores não dão ainda a importância suficiente às palavras. (...) Para os historiadores das ideias e das mentalidades, as palavras – certas palavras – fenómenos (sic) a longos prazos vindos lentamente das profundezas, têm a vantagem de aparecer, de nascer e de trazer assim elementos cronológicos sem os quais não há verdadeira história.”8 Por isso tem a preocupação de analisar textos em língua vulgar a fim de melhor comparar a evolução desse lugar intermédio tanto no imaginário quanto na palavra escrita. Apesar das diferenças, os dois contribuíram de

cristianismo, apesar de não haver citação direta nas obras desse teólogo. Ao mesmo tempo, insistia na “mediação” de “estruturas mentais”, de “hábitos de pensamento”, ou de “aparatos intelectuais” – mentalidades – observando que, nos séculos XII e XIII, surgiram novas atitudes em relação ao tempo, espaço e número, inclusive o que ele chamava do “livro contábil da vida depois da morte” em referência ao julgamento individual de cada um após o trespasse. O Purgatório apenas passa a ser substantivado, ou seja, a existir, a partir da “espacialização do pensamento” em referência a esse local no fim do século XII.

forma significativa para a compreensão desse “intervalo propriamente espacial que se insinua entre o Paraíso e o Inferno”.9 Vamos ao conteúdo dos trabalhos. Obra célebre sobre o assunto, O Nascimento do

purgatório10 de Le Goff trata sobre a historicidade do conceito de purgatório e sua instalação na Idade

Apesar de sua aproximação com o materialismo histórico no início de sua carreira como historiador, Vovelle tornou-se um dos maiores representantes da história das mentalidades. Cf. VOVELLE. Michel. Ideologias e Mentalidades. 2a ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. 7

O livro encontra-se dividido em três partes: a primeira intitulada O Além antes do Purgatório que expõe os elementos de formação secular – a herança de outras religiões e os locais da préhistória desse “local” – que estruturaram e formaram no século XII; a segunda – O Século XII:

O Nascimento do Purgatório, quando surge a LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. São Paulo: Estampa 1995, p. 17. 9 Ibdem, p.20. 10 Ibdem. 8


G N A R U S | 65 “crença” nesse além intermédio, onde os mortos

Para que o purgatório nasça é necessário que a

passam por provações abreviadas pelos sufrágios

noção de ponto intermédio ganhe consistência ao

dos vivos. Nesta parte procura examinar a sua

mesmo tempo em que ele possa substituir ou

lógica de funcionamento e aponta a mutação da

predominar sobre esses outros lugares existentes

sociedade que o criou; e por fim O Triunfo do

entre o Céu e o Inferno. A crença na imortalidade

Purgatório, se bem que atenuado e limitado, graças

da alma e na ressurreição, a noção de julgamento e

à Escolástica no século XIII.

de responsabilidade individual contribuíram para a

Um dos principais apontamentos de Le Goff diz

expansão desse espaço no imaginário social e na

respeito mesmo a esse “nascimento”. Apesar da

geografia do além num século de explosão da

ressalva que faz – “É verdade que não se data uma

cristandade latina: o século XII.

crença como um acontecimento, mas devemos

O século seguinte ao aparecimento do lugar de

afastar a ideia de que a história a longo prazo é uma

purgar os pecados aparece como um período de

história sem datas” – 11 propõe que o surgimento do

organização, em que os teólogos latinos sentem a

purgatório “faz parte de um conjunto ligado à

necessidade de melhor defini-lo devido a uma

transformação da Cristandade Feudal, da qual a

“dupla desconfiança quem vem, sem

criação de esquemas lógicos ternários com a

dúvida, de certo mal-estar perante uma

introdução de uma categoria intermediária foi uma

crença tão pouco e mal fundamentada na

expressão essencial”.12 Em se comparando à Alta

Santa Escritura, e, sobretudo, do medo de ver

Idade Média, que era marcada pelo sistema binário

essa crença submersa pela piedade vulgar e

(Deus/Satã;

supersticiosa”.13

Vícios/Virtudes;

Clérigos/Laicos;

Poderosos/Pobres), na virada do ano mil as

Esse mesmo século XIII aparece como período

mutações sociais modificaram as atitudes em

do triunfo social do purgatório, uma exigência das

relação à geografia imaginária do além. A partir de

massas no Ocidente.

então, esse esquema é substituído pelo modelo

No

que

diz

respeito

à

relação

ternário (as três ordens do feudalismo; os três

purgatório/cultura popular, duvidamos quanto a

lugares do além). O autor diz que o maior apego as

essa necessidade, essa exigência do purgatório (no

coisas terrestres e a consciência do julgamento

sentido próprio do termo) de grande parte da

individual entre a morte e a ressurreição foram

sociedade mais humilde. Enquanto para Vovelle a

elementos necessários à criação desse espaço. Isso

crença

nos leva a uma indagação do autor: o que equivale

exclusivamente na religião popular, visto não está

o aparecimento desse lugar? Na verdade, equivale

contida de forma alguma no discurso original da

a uma necessidade de justiça, maior até que o

Igreja cristã, Le Goff diz tratar-se de uma mescla

desejo de salvação, onde as injustiças do mundo

entre a cultura folclórica e a erudita, em que as

terrestre seriam reparadas.

pressões exercidas pela primeira no século XII

no

terceiro

local

vai

se

fundar

contribuíram de forma decisiva para o seu

11 12

Ibdem, p. 17. Ibdem, p. 269.

13

Ibdem, p. 285.


G N A R U S | 66 aparecimento. Mas seria apenas uma influência do

Augustodunensis e outros clérigos, utilizado por Le

cristianismo que se encontrava quase que soberano

Goff

em grande parte da Europa medieval? Trata-se de

dificuldade de elaboração mais objetiva e

uma necessidade das massas ou da própria Igreja

específica do purgatório e de sua imposição. Essa

para reforçar seu poderio nas coisas do além-

mentalidade de lugar de descanso vai persistir pelo

túmulo? Se retomarmos o pensamento de Ariès

menos até o XVI, o que nos leva a indagar sobre a

perceberemos que não.14 Ele nos fala sobre a

real motivação da criação do purgatório e por que

permanência de uma antiga noção do além

estrato

presente na literatura da Alta Idade Média, em que

transformada em dogma, vai ser elaborada. Dessa

o trespasse era identificado ao descanso, lugar de

maneira, nossa hipótese é que sim, a cultura

espera antes da ressurreição onde a preocupação

popular influenciou de maneira significativa a

era menos com a punição aos condenados e mais

elaboração, a “substantivação” – nas palavras de Le

como

documento,

social

essa

mostra

doutrina,

bem

logo

essa

depois

com as recompensas

Goff – desse terceiro

aos

local. Mas foi a

bem-

aventurados.

O

própria

instituição

próprio Vovelle nos

eclesiástica que se

mostra

ao

esforçou em melhor

analisar as imagens

defini-la ao longo do

que

isso

representam

tempo,

esse lugar. Essa ideia

apropriando-se

de

de

modificando aquela

refrigério – inclusive,

crença já arraigada

muito

condenada

no folclore cristão

por Agostinho – vai

medieval com raízes

lugar

e

permanecer por muito mais tempo na cultura

na antiguidade, o que nos faz relativizar o

popular e na sua materialização, disseminada a

pensamento de Le Goff no que diz respeito a essa

partir da oralidade. Por mais que a criação do

“exigência”, pois como explicar essa “necessidade”

Purgatório como lugar intermediário excluísse essa

se muitos permaneciam fieis a seus antigos modos

possibilidade de repouso antes do Juízo final e da

de figuração?

ressurreição dos corpos, a antiga concepção do

Em síntese, para Le Goff, nesse além-cristão em

além continuou a existir entre as classes mais baixas

constante desenvolvimento, o lugar central “foi o

da população mesmo com a imposição da Igreja. O

elemento intermédio, efêmero, frágil e no entanto

material produzido por grandes teólogos urbanos

essencial”,15 cujo êxito se deu graças à sua

como

Honorius

espacialização e ao imaginário social cujo

Retomaremos um dos artigos de Ariès a fim de comparar com os dos outros dois autores e melhor fundamentar nossa hipótese. Cf. ARIÉS, Philippe. Uma Antiga Concepção do Além, p. 79-87. In: BRAET,

Herman; VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1996. 15 Ibdem, p.427.

14

Gregório

o

Grande,


G N A R U S | 67 parte de um estudo sobre as origens da ideia de purgatório, aqui apenas trataremos da parte que diz respeito diretamente à Idade Média. Partindo do tipo de fonte e da análise que Vovelle empreende, ele segue o caminho inverso. Ao invés de se debruçar sobre textos e usar a iconografia apenas como anexos ou suportes, prefere tratá-las não apenas como figuração desses textos, mas como portadoras de discursos regidos pela dinâmica das imagens. “A imagem fala mesmo quando se cala”,18 justifica. Sendo assim, inverte o procedimento habitual. Podemos situar o livro no meio caminho entre a História das Mentalidades e a

do

Imaginário,

onde

as

figurações

e

representações dizem mais do que os discursos cristalizados acerca das mudanças de sensibilidade coletiva, que nutre o imaginário social do período medieval. Para a compreensão do imaginário acerca do purgatório,

desde

sua

criação

quase

ao

total

seu

desenvolvimento pleno permitiu. O Nascimento do

desaparecimento

na

Purgatório foi sua contribuição mais substancial

contemporaneidade, Vovelle parte de alguns

para a história das mentalidades e do imaginário.

questionamentos: estaria esse local reconhecido e

Uma obra inovadora.

estabelecido na virada dos séculos XIII e XIV?

Em As Almas do Purgatório ou o trabalho de

Haveria dois purgatórios, um de inspiração da

Luto,16 Vovelle procura interpretar a partir de

cultura popular e outra da cultura erudita? É

imagens como o Ocidente cristão conseguiu

possível tratar dele em imagens sem deixar de

reconstruir o imaginário do terceiro local a fim de

evocar os “fantasmas” e outros locais de existência

conviver com os mistérios da morte e apaziguar o

temporária na busca mesma desse terceiro local?

trabalho de luto. Para isso se utiliza de iluminuras,

Porque abundam apenas no século XV as

afrescos, retábulos, xilogravuras, o cinema, a

representações sobre o purgatório?

televisão dentre outras fontes iconográficas.

Ambos os autores trabalhados neste capítulo

Apesar de a obra abarcar do final do século XIII ao

concordam no fato de a criação do purgatório

XX, abordando “o purgatório no mesmo período

refletir uma mudança de mentalidade no meio da

em que Jacques Le Goff o abandona”,17 ou seja,

Idade Média, passando a se impor à antiga, mas

VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010. 16

17 18

Ibdem, p.14. Ibdem, p.15.


G N A R U S | 68 durante muito tempo persistente, figuração binária

na visão de mundo dos medievais o problema dele

dos espaços do além – inferno e paraíso. Para eles,

já se encontra resolvido, pois os mortos “viviam”

é a tomada de consciência individual que recusa

entre os vivos. Schmitt nos mostra relatos de

esse esquema binário. Diferentemente de Le Goff,

aparições de fantasmas com determinadas funções

que centra seu estudo no “nascimento” desse

sociais. Ele privilegia o coletivo, o morto ordinário e

emergente local, Vovelle dá uma atenção maior no

não os casos excepcionais. Se observarmos bem, as

que diz respeito ao Medievo ao século XV, onde

teses dos dois autores se complementam. Schmitt

ocorre a explosão da imagem, e passa a ser

nos fala que em plenos séculos XII e XIII,

representado para toda a cristandade e não mais

principalmente nesse último, vão multiplicar textos

como antes restrito a uma elite. Essa hipótese

que tratam dessas aparições. Apesar de também

levantada pelo autor, bem como “a dificuldade

trabalhar com imagens, na grande maioria dos

material de representar o que por muito tempo não

casos trata-se de textos. Se essa numerosa

teve nome, o que permaneceu um estado antes de

quantidade de textos sobre aparições que estão

se tornar um local a ser preenchido e povoado”,19

estreitamente relacionados ao purgatório tratam

explicaria o fato de apenas mais de um século

mais especificamente dos mortos comuns, dá para

depois da criação da palavra purgatorium (1170-

entender a hipótese inicial de Vovelle sobre as

1200) por Pierre Le Mangeur aparecer a primeira

representações imagéticas desse terceiro espaço

figuração gráfica desse

do além, “ao caráter por

local, o que leva também

tanto tempo elitista de

Le

um local ainda reservado

Goff

ao

questionamento: conservadorismo

(...)

aos

soberanos

e

da

príncipes, e que só irá se

imagem? Nesse sentido,

abrir seletivamente aos

podemos ver que a obra

monges e monásticos nos

de Vovelle conversa com

séculos XII e XIII, com

outra inovadora: Os vivos

algumas

e os mortos na sociedade

meio

medieval,20

Podemos

de

Jean-

entradas

no

cavalheiresco”.21 levantar

a

Claude Schmitt. Vovelle

seguinte hipótese para o

nos

problema: para os mortos

diz

que

anteriormente

a

multiplicação

de

referências escritas; para

figurações do purgatório,

os mais abastados, textos

Ibdem, p. 29. SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras. 1999. O título original Lesrevenants, “Os fantasmas” (ou, mais literalmente, “Os 19 20

comuns,

relatos

e

que voltam”), foi excluído do livro em português, batizado com o subtítulo da edição francesa, Les vivants

et les morts dans la société médiévale. 21 VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p.29.


G N A R U S | 69 e imagens, principalmente imagens. Parece

aos mortos”,22 o que contribuiu segundo à

paradoxal se levarmos em conta que durante a

interpretação do historiador, ao aumento da

época medieval a maioria da população europeia

importância dada a missa, substituta no fim da

era iletrada e que os membros da igreja utilizavam

Idade Média das oferendas aos mortos.23

a iconografia para a evangelização. Mas como

Assim como Vovelle, Le Goff atribui ao

Schmitt apontou muitos dos relatos analisados

purgatório uma função de combate. Entretanto,

eram transcritos pelos clérigos, sendo uma

enquanto aquele nos diz ser um combate contra o

quantidade bem menor auto registrada. Quanto

protestantismo que o negou, por volta dos séculos

mais detalhada a figuração, melhor o material

XVI e XVII, o outro diz tratar-se também e anterior

utilizado pra isso, o que requer um custo mais

da luta contra os hereges (XII e XIII) e os gregos (XIII

elevado.

e XV).24 Le Goff também enfatizou sobre o papel

Durante muito tempo, as figuras desse lugar

desempenhado pelo fogo nas descrições do

intermediário apareceram relacionadas, direta ou

purgatório. Ele servia para punir, purificar ou era

indiretamente, ao juízo final. No entanto, para

um fogo probatório? Ao depender o tipo de texto

preencher esse espaço que existia entre o juízo

em que essa relação aparece, pode significar a

particular e o coletivo, outros lugares começam a

mesma coisa e como mostrou bem Vovelle, existia

surgir na iconografia como, por exemplo, o seio de

diferença de tonalidades na hora de retratar

Abraão e o que outros autores também chamam de

iconograficamente o fogo do purgatório e o fogo

limbo dos patriarcas. Porém, com a emergência e

infernal.

fixação do purgatório como um espaço fixo fez com

No livro de Vovelle o purgatório parece como

que o seio de Abraão fosse pouco a pouco

um espaço equívoco, ao mesmo tempo prisão e

abandonado nas pinturas e retábulos, não

lugar de passagem. Sobre ele aparecem também as

acontecendo o mesmo com o limbo devido a sua

ambiguidades presentes na evolução de sua

simbologia. Pelo que foi explicitado acima, resta

representação

nos interrogarmos: o que fez a representação do

Protestante no século XVI, onde aparecem as

seio desaparecer? Segundo o autor, a consciência

primeiras contestações, não somente devido a

dos pecados e da impossibilidade da passagem

crítica às indulgências, mas ao próprio status desse

direta com a morte – o contrário encontrava-se

ambiente de tema tão metafísico.

inscrito nas imagens do seio – faz com que aos poucos essa representação fosse abandonada.

até pelo menos

a Reforma

Como salientou Jerônimo Teixeira sobre aspectos apontados por Vovelle na obra

Associado a isso, um novo contexto emerge para a explosão de imagens mais elaboradas desse terceiro local: “a implantação excepcionalmente vivaz das crenças populares no tocante à morte e

Ibdem, p.54. A partir de então as oferendas passam a ser direcionados aos pobres, substitutos dos mortos na terra. 24 Paradoxalmente, segundo o medievalista, os 22 23

No Concílio de Lyon, em 1274, o purgatório já era promulgado como dogma – e confirmado nessa condição no Concílio de Florença, em 1439. O novo conceito ajudou a Igreja a administrar crenças populares “fundadores” do Purgatório foram os gregos Clemente de Alexandria e Orígenes, uma heresia aos olhos dos dois cristianismos – grego e latino.


G N A R U S | 70

antigas e renitentes: a noção supersticiosa de que os falecidos conservam influência sobre os vivos, seja na forma de entes protetores do lar, seja na de assombrações de cemitério. Essas concepções chocavam-se com o esquema binário céu-inferno, no qual não se admite acesso ao mundo dos mortos. O purgatório, ao contrário, é permeável às súplicas dos viventes. O fiel pode rezar pela salvação de seus entes queridos. E ainda pagar indulgência à Igreja, para redimi-los – ou, antecipadamente, para salvar a si mesmo.25 Percebemos

assim,

que

o

purgatório

representou um lance de criatividade teológica, permitindo aos cristãos a administração melhor de

As Almas do Purgatório ou o trabalho de Luto, fruto de uma investigação assídua e do laborioso manejo das imagens, mostra que o espaço indeciso entre a danação e a salvação sempre foi um desafio para as artes visuais. Ora expressava a figuração de um lugar (ígneo ou aquático) de passagem, de viagem, de prisão ou conciliava as ideias antigas às novas leituras do além. Reservada primeiramente às ilustrações voltadas para uma elite, a figuração do purgatório aos poucos vai ganhando dinamicidade e no século XV sai das margens dos livros de horas e passam ao interior das igrejas para chegar a todos Le Goff concluiu seu livro defendendo esse terceiro local e colocando-o como símbolo do na

Idade

Média

e

relacionando-o ao reconhecimento da consciência individual de cada um no memento da morte. Entre a publicação de sua obra e a de Vovelle – cerca de TEIXEIRA, Jerônimo. O Terceiro Lugar. Disponível em http://veja.abril.com.br/020610/terceiro-lugar-p238.shtml. Último acesso em 15/01/2015. 26 Voltando a um assunto que permeou todo esse trabalho até aqui, a questão da familiaridade com os mortos na Idade Média proposta por Ariès também foi contestada por Vovelle. Segundo este último, existia 25

argumento do primeiro. Segundo Michel Vovelle, “o purgatório passou de uma conquista para, ao mesmo tempo tornar-se um instrumento ambíguo de controle social e ideológico, e também, olhando de baixo, o reconhecimento assumido do pecado do qual precisa purgar-se por própria conta (...)”.27 Apesar das diferenças metodológicas entre os autores, poderíamos classificar esses dois trabalhos como complementares. Enquanto o primeiro lida com as palavras, com textos – documentos no imagem.

Ambos

contribuíram

de

forma

significativa para a explicação e compreensão desse espaço complexo e gerador de querelas dentro e fora do ambiente religioso ocidental. Foi justamente a sua elaboração que possibilitou uma modificação

espaço-temporal

do

imaginário

cristão medieval ao mesmo tempo em que proporciona uma terceira via de resgate da alma após a morte. A instituição do purgatório, muito impulsionada pelo surgimento de novos estratos sociais, traduzia a necessidade de mudança, pois cada vez mais se rejeitavam ideias e explicações de caráter simplista.

da Cristandade.26

intelectual

desmorona, o que faz este último atualizar esse

sentido positivista – o segundo se preocupou com a

sua relação com os mortos.

progresso

quinze anos – essa visão de progresso linear

Atualmente o dogma do purgatório é um tema em desuso, desacreditado, esquecido e até mesmo combatido. Nos meios acadêmicos tornou-se quase obsoleto. Como explicar esse processo? O discurso da igreja teria mudado? Uma lenta, mas profunda mudança de

medo dos mortos agressivos e sanguinários na época em que a problemática do purgatório ainda não estava bem estabelecida. Cf. VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o Trabalho do Luto. São Paulo: Editora UNESP, 2010, p. 30-38. 27 Ibdem, p.326.


G N A R U S | 71 mentalidade. Tudo começa em pleno século XIX,

próprio período medieval, cujo resultado foi a

um novo momento de contestação. Não mais

substituição de esquemas lógicos binários por

colocada em dúvida por religiosos, mas por

ternários. Já Vovelle se voltou para a investigação

filósofos e novos espíritos críticos. Eis que surge a

assídua das imagens. Reservada primeiramente às

questão acompanhada de uma lógica invertida: as

ilustrações voltadas para uma elite, a figuração do

almas sobem aos céus ou descem para a terra?

purgatório aos poucos vai ganhando dinamicidade

Como Ariès nos mostrou bem, nesse mesmo século

e no século XV sai das margens dos livros de horas e

XIX, as rezas pelas almas do purgatório sofreram a

passa ao interior das igrejas para chegar a todos da

intervenção da doutrina espírita que abandonou a

Cristandade.

representação individual e personificada dos

Apesar das diferenças metodológicas entre os

supliciados. Entra em cena outra perspectiva

autores, poderíamos classificar esses dois trabalhos

religiosa: as almas transformam-se em espíritos,

como complementares. Enquanto o primeiro lida

instaurando o silêncio nas imagens. O que Vovelle

com as palavras, com textos – documentos no

confirma – “a grande arte se afasta do purgatório.

sentido positivista – o segundo se preocupou com a

Chegou o tempo de uma volta à morte selvagem,

imagem.

longe de qualquer ideia de consolação”.28

significativa para a explicação e compreensão

Ambos

contribuíram

de

forma

No século XII ele surge; em pleno XIV ele reina.

desse espaço complexo e gerador de querelas

Reina nas práticas, nos testamentos. Reina na

dentro e fora do ambiente religioso ocidental. Foi

mentalidade e no imaginário intelectual e aos

justamente a sua elaboração que possibilitou uma

poucos vai sendo assimilado pelas massas

modificação

europeias. No século XIX ele agoniza e no seguinte

cristão medieval ao mesmo tempo em que

padece.

proporciona uma terceira via de resgate da alma

espaço-temporal

do

imaginário

após a morte. Considerações finais Neste trabalho desenvolvemos a maneira como elaborou-se ao longo da Idade Média uma concepção do “terceiro local” e a coexistência de posições demasiadamente opostas da localização e significação desse lugar na geografia do além. Le Goff concluiu seu livro defendo esse terceiro local e colocando-o como símbolo do progresso intelectual na Idade Média e relacionando-o ao reconhecimento da consciência individual de cada um no memento da morte; um fruto da dinâmica do 28

Ibdem, p. 308.

Airles Almeida dos Santos é Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe e integrante do Vivarium (Núcleo Nordeste).


G N A R U S | 72

Artigo

GRIOT: A MEMÓRIA DA ÁFRICA Por: Fernando Augusto Alves Batista

RESUMO A história oral tornando-se uma das principais ferramentas de pesquisa do historiador, com a finalidade de estudar povos que não tiveram uma forte ou até nenhuma tradição escrita, como é o caso de vários povos Africanos. Assim, um personagem africano torna-se uma grande ferramenta de estudo e pesquisa histórica, um Griot, uma espécie de memória viva da África, um guardião de seus costumes, crenças e tradições. PALAVRAS CHAVE: África, Griot, História oral. ABSTRACT The oral history is one that has become one of the main tools to research of historian, to study folks who hadn’t a strong written tradition, or even no, as example of many African peoples. Therefore, an African personage becomes a great tool to study and historical research, O Griot, a kind of memory alive of Africa, a guardian of their customs, beliefs and traditions. KEYWORDS: Africa, Griot, Oral History.

INTRODUÇÃO

D

esde os primórdios da humanidade, a

A principal forma de transmissão destes

espécie humana, que evoluía de acordo

conhecimentos era a oralidade, pois, mesmo

com as vivências adquiridas pelo tempo,

enquanto existiam as pinturas rupestres e os

sentia a necessidade de transmitir o conhecimento

primeiros alfabetos inventados, ainda tinha-se a

gerado pelas suas experiências ao próximo. Assim,

necessidade de um interlocutor do conhecimento.

ocorria um desenvolvimento mais rápido e

Para isso, se fazia preciso alguém que lesse,

gradativo, das sociedades e da espécie, devido aos

entendesse e transmitisse aquilo que estava

conhecimentos adquiridos e acumulados.

contido nas pinturas, ou nas escritas.


G N A R U S | 73 Ao longo dos séculos, a oralidade fez com que as

embasamento sobre o passado. Porém, isso acabou

sociedades pudessem se desenvolver de forma mais

por causar uma lacuna no estudo da história de

rápida e eficaz.

algumas sociedades, que durante os seus processos

Após o surgimento das mais diversas formas de escrita, a oralidade foi perdendo espaço como principal forma de preservação e transmissão do conhecimento. Com o tempo, o número de pessoas capazes de ler, interpretar e escrever aumentava, fazendo com que os ensinamentos não fossem mais adquiridos de forma oral em coletividade e sim pela leitura, de forma individual. Quando a população

de desenvolvimento, não constituíram uma forma de escrita, ou mesmo não adotaram uma, como principal fonte de preservação da história social de seu povo. Então, como estudar uma sociedade que existiu a milhares de anos, mas que não deixou nada escrito, ou, até mesmo, como estudar uma sociedade que ainda existe, mas que não deixou nenhum relato escrito de sua história?

necessitava de obter conhecimento sobre a história

Este artigo busca em seu curso explicar tal

de seu povo, buscavam por livros e não mais pelos

questionamento. Ao analisar, a priori, a importância

anciões que a viveram, ou que a aprenderam, ao

da oralidade como preservadora do conhecimento

ouvir de seus antepassados.

e seu papel verossímil e eficaz como fonte de embasamento

para

estudos

científicos

e

acadêmicos, além de analisar o fato descrito por Thompson, de que a história oral: “Pode devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar

fundamental,

mediante

suas

próprias

palavras” 1 Analisando o exemplo das sociedades e etnias africanas, que foram sendo deixadas de lado nas pesquisas históricas, por conta de possuírem, em sua maioria, uma forte tradição oral. Sendo então, um excelente exemplo para o estudo. Mas em âmago, este artigo visa mostrar o papel

Griots "passando" histórias

dos guardiões da história destes povos que

Essas buscas cada vez maiores por fontes escritas,

utilizavam da história oral e que tem como papel,

ou documentais, fizeram com que a oralidade,

serem os arquivos vivos das memórias da sociedade

primeira forma de transmissão de conhecimento,

em que viveram, nas suas jornadas. Em principal,

fosse sendo esquecida, fazendo com que a mesma

tendo os griots2 como fonte de estudo e analise,

ficasse de lado, como fonte de pesquisa e

pelo

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 22. 2 (pronúncia: “griô”) ou ainda jeli (ou djéli), termo do vocabulário franco-africano criado na época colonial para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes para as quais, em

geral, está a serviço. Presente, sobretudo na África ocidental, notadamente onde se desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali e etc.). O termo griot (guiriot originalmente escrito, pronunciado grau-oh) fez sua primeira aparição no Travelogue Relation du voyage du Cap-Verd (1637) pelo missionário francês Alexis de Saint-Lô, contando suas viagens no Senegal, dois anos antes.

1

fato deles terem sido

os principais


G N A R U S | 74 personagens de preservação e disseminação das

“a história oral é tão antiga quanto à própria

histórias africanas.

história. Ela foi à primeira espécie de história” 4. E não só dentro do meio histórico, mas também, a

Desenvolvimento

história oral é usada por outros profissionais do saber em diversas áreas:

O método da história oral é utilizado também por muitos estudiosos, particularmente sociólogos e antropólogos, que não se consideram historiadores orais. O mesmo se dá com os jornalistas. Contudo, todos eles podem estar escrevendo história; e, sem dúvida estão provendo à história. 5

Escrita é uma coisa, e o saber outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é a uma luz que existe no homem. 3

Desde a criação da disciplina de História, várias discussões foram travadas por seus idealizadores e

Mesmo com a alegação de Thompson, sabemos

suas escolas de estudo, acerca das fontes de

que historicamente a tradição oral é alvo de várias

pesquisa em que o historiador deve basear-se

críticas acerca de sua veracidade em relação aos

durante a elaboração de seus estudos, pesquisas

fatos estudados. Segundo Peter Burk: “a maior

acadêmicas e cientificas. Neste contexto, é visível a

parte dos historiadores profissionais em geral são

supremacia das fontes escritas como principal fonte

bastante céticos ao valor das fontes orais na

de pesquisa e de embasamento para tais trabalhos.

reconstrução do passado” 6. Assim, essa vertente de

Mas, com o decorrer dos séculos, a escrita vem

fonte histórica é analisada por ele da seguinte

sendo questionada como fonte primordial de

forma:

pesquisa, por conta de que ela não poder ser usada

A fragilidade implícita das fontes orais é considerada universal e irreparável; por isso, para as sociedades sem registro escrito, o alcance convencional do discernimento é considerado desanimador. 7

em todas as pesquisas históricas, como no exemplo deste estudo, que, ao analisar a África, depara-se com sociedades que não tiveram uma forte tradição escrita, ou até mesmo nenhuma. Torna-se necessária a utilização de novas fontes

Com isso, sociedades que utilizavam oralidade

de pesquisa que consigam completar as lacunas

como fonte de transmissão de conhecimento e,

deixadas pela falta da tradição escrita nestas

também, como forma de manter viva e preservada

sociedades em questão. E neste contexto, a

suas histórias e tradições ao longo de sua existência,

oralidade vem ganhando destaque, papel esse que

foram taxadas erroneamente pelos historiadores

ela possui desde a criação da própria disciplina

como sociedades sem história. A exemplo disso,

História, como alega Poul Thompson ao dizer que:

temos as sociedades africanas que, com exceção do

História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 167. 4 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 55.

5

3

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 104. 6 A escrita da História: Novas perspectivas. BURKE, Peter. (org.) Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 163. 7 Loc. cit.


G N A R U S | 75

boca do povo, que todos diziam e repetiam, camponeses, gente da cidade, velhos, mulheres, até mesmo crianças; aquela que podemos ouvir ao entrar à noite numa taverna de aldeia” 8

A essa tradição nacional citada acima discorre sobre as lembranças espalhadas, de boca em boca, pela população de uma determinada sociedade ou povo, ao longo de suas conversas cotidianas ou interações sociais. Lembranças essas que são encontradas no dia a dia, graças à interação gerada pela convivência em sociedade. Neste fato, pode ser notado um fenômeno de reconhecimento daquilo que se é falado, pois se uma pessoa fala e a outra consegue compreender e discernir sobre o que lhe foi apresentado durante o

Griot wolof do Senegal, 1890

discurso, de forma quase que automática, é porque o que lhe foi dito pertence à tradição e a vida

Egito, eram tidas por não possuir história, por conta

cotidiana em que a pessoa está inserida. Esse

de não utilizar da escrita como recurso de

fenômeno então descreve o quanto a oralidade é

preservação da história de seu povo. Porém essas

importante nas diversas sociedades existentes,

sociedades adotaram a oralidade como a principal

inclusive nas que têm tradições escritas, pois, de

ferramenta para manter viva as suas heranças

uma forma única, a oralidade transmite mais

culturais.

rapidamente

A história oral é sim ferramenta precisa de

conhecimentos entre a população, pois o acesso

embasamento para as pesquisas históricas, sendo

aos documentos escritos acontece de forma

de suma importância para o estudo da cultura dos

individual e somente para aquelas pessoas que

diversos povos africanos e de vários outros que

dominam a leitura e a interpretação da escrita. Já a

fizeram preservar, ao longo dos séculos, suas

oralidade abrange a todos, desde que aquele que

tradições, graças à oralidade. A essa história oral

narra fale o mesmo idioma ou dialeto daquele que

que estamos a fazer referência é a mesma descrita

está sendo o interlocutor da fala.

pela autora Michelet, em seu livro: “A Voz do Passado de Tompson”, onde afirma:

“Quando digo tradição oral, estou falando de tradição nacional, aquela que permaneceu espalhada de modo geral na THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 45-46. 8

os

acontecimentos

e

os

Tendo então visto o papel da oralidade como fonte histórica de valida e de precisão para pesquisas,

passamos

então

ao

seguinte

questionamento: Onde então pode-se encontrar a


G N A R U S | 76 história de um povo em uma narrativa oral

Vários outros exemplos podem ser citados, como

completa, sem que ela esteja fragmentada graças

os skald escandinavo, os rajput na India, e, no

as intervenções pessoais durante esse passar de

exemplo da própria história do Rei Artur dada

boca em boca? Para responder essa pergunta,

acima, também podemos referenciar Merlin,

primeiro deve-se ter em mente a frase do

mesmo como figura lendária, pois ele representa os

historiador africano A. Hampaté Bâ: “Não faz a

sacerdotes druidas que, através da tradição

oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos

ritualística oral, também ajudavam a manter a

séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros

história deste povo, pois a oralidade também pode

arquivos ou bibliotecas do mundo foram o cérebro

ser transmitida nos ensinamentos das tradições

dos homens.” 9. Sabendo, então, que a história oral

ritualísticas das religiões professadas pelos povos

é aquela preservada na mente dos homens,

de tradição oral.

passamos a discorrer sobre os homens que tem o papel de serem os grandes guardiões da história de seu povo.

Essas pessoas que agiam como disseminadores e preservadores da história, passaram a ter essa atividade quase como um oficio em várias

Ao longo dos milênios foram surgindo, nas

sociedades. Em alguns lugares, as pessoas que

sociedades de tradição oral, pessoas cujo seus

tinham tal papel eram sim entidades do Estado,

ofícios eram o de serem arquivos históricos vivos de

onde tiveram o dever de manter viva, ao longo das

seu povo. Na Grécia antiga, antes de serem escritas

gerações, a história de seu povo.

obras como Ilíada e a Odisseia, os poetas líricos chamados de Aedos cantavam as ações dos deuses

“A importância social de algumas dessas tradições orais resultou também em sistemas confiáveis para sua transmissão de uma geração a outra, com um mínimo de distorção. Práticas tais como o testemunho grupal em ocasiões rituais, disputas, escolas para o ensino do saber tradicional e recitações ao assumir um posto podiam preservar por séculos padrões exatos, inclusive arcaísmos, mesmo quando não fossem mais compreendidos. Tradições deste tipo assemelhavam-se a documentos legais, ou livros sagrados e seus detentores tornavam-se funcionários altamente especializados em muitas cortes africanas.” 10

e semideuses, além de descrever as armaduras e adereços dos heróis, declamando os seus grandes feitos que ficaram na história; tudo isso graças as narrativas feitas pelos Aedos. Já na Idade Média europeia, o bardo era o grande Trovador, um personagem que cantava os feitos dos nobres, honrados cavaleiros e reis a todos que encontravam e em todos os lugares por onde passavam, fazendo com que a história, por eles narrada, se espalhasse por todo o mundo; chegando até mesmo a influenciar nos filmes, lendas e histórias dos dias de hoje. Muitas histórias foram preservadas vivas no

Essas pessoas, ou guardiões da história de seu

imaginário da população europeia graças a eles,

povo, eram consultados sempre que necessário

como o caso da história do Rei Arthur, seus cavaleiros e da távola redonda.

História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 168. 9

como espécies de arquivos vivos; o que é percebido na análise de Thompson. Além de ter a obrigação THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 46-47. 10


G N A R U S | 77 de ensinar as tradições e a histórias, tinham que

comunidade com raízes e personalidade regionais,

transmitir as mesmas sempre que tivessem a

muitas

possibilidade, como mostrado acima. Essas ocasiões

modernidade. ” 12

variavam muito, como nos rituais ou nos eventos sociais da região. Feita então, as análises necessárias sobre o papel da oralidade como fonte preservadora da história, e da figura de alguns homens que eram os grandes guardiões da história, voltemos então ao âmago desta pesquisa. A África pré-colonial, em sua maioria, não possuía uma forte tendência por preservar sua história de forma documental, com exceção do povo egípcio e alguns outros povos isolados dentro do território do continente. Por

vezes

perdidas

na

amálgama

da

As narrativas, então, são as mais importantes fontes de transmissão dos valores das sociedades africanas, como ainda vemos na continuação do estudo de Rosário:

“Na sociedade africana, em particular a campesina, onde a tradição oral é o veículo fundamental de todos os valores, quer educacionais, quer sociais, quer políticoreligiosos, quer económicos, quer culturais, apercebe-se mais facilmente que as narrativas são a mais importante engrenagem na transmissão desses valores.” 13

isso, os primeiros historiadores e cientistas que fizeram análises sobre a cultura dos diversos povos

E o papel de ser o narrador destas histórias,

africanos, a tomaram como um continente sem

juntamente com o dever de propagar os valores

história; generalizando assim todas as sociedades e

dentro da sociedade africana, está sobre os ombros

povos existentes no continente. Esse fato mesmo,

de alguns personagens africanos, conhecidos como

tendo uma prática teórica lógica para a sociedade

Tradicionalistas e Griots.

acadêmica da época, é passível de discursão, pois segundo o discurso de Marwick:

“a história de uma sociedade africana, pode ser uma história mais imprecisa e menos satisfatória do que a de uma estriada de documentos, mas de todo modo é uma história” 11 então a história oral dos povos africanos é de fato uma fonte de baseamento e pesquisa para se

Quando a história da África surgiu ganhando a importância que antes tinha sido negada a ela, as teorias do continente ser um lugar sem história caiu. Graças aos novos estudos e vertentes das escolas históricas, a oralidade foi o recurso principal adotado pelos historiadores para refazer os caminhos percorridos por essas histórias a muito esquecidas. Vemos isso de força bela, na frase do

estudar a história do mundo. Porém, onde podemos

livro Griots - culturas africanas: linguagem,

encontrar essa história africana fora das análises

memória, imaginário: “Sabemos que, quando a

documentais? A resposta está na narrativa oral,

África acordou o mundo com o som dos seus

como dito por Rosário: “As narrativas de tradição

tambores silenciosos, os Griots surgiram como

oral são o reservatório dos valores culturais de uma

poesia” 14. Os Griots tornam-se as fontes vivas de

BURKE, Peter. (org.) A escrita da História: Novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. p. 163-164) 12 ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de expressão oral: transcrita em português. 11

Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Luanda: Angolê, 1989. p. 40. 13 Loc. cit. p. 40. 14 Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel


G N A R U S | 78 preservação destas tradições africanas. E logo eles

tradições culturais, históricas, religiosas e as demais

são os lugares onde essa história africana esquecida

tradições do povo em que eles estão inseridos, ou

deverá ser buscada. E, no decorrer deste artigo,

de um leque maior de ramificações sociais da

iremos analisar a importância dos Griots para as

África, pois nem todo griot e tradicionalista está

sociedades africanas, de modo a compreender o

vinculado a um determinado povo, podendo ser

seu papel na sociedade.

também um itinerante, uma espécie de viajante que

Para

se

estudar

a

história

da

África,

necessariamente temos que adotar a oralidade como fonte primordial de pesquisa, caso contrário,

vive espalhando e disseminando a história dos povos africanos por onde passa; fazendo assim o papel de preservar e espalhar a história pela África.

a pesquisa não terá êxodo, ou falhará em algum

Os griots e os tradicionalistas não são figuras

ponto encontrando uma lacuna histórica deixada

diferentes que exercem o mesmo papel. São

pela falta de fontes de pesquisa de outras espécies.

também diferentes em seus princípios e atividades

Assim afirma o historiador africano A. Hampaté Bâ:

sociais. “Os grandes depositários da herança oral

”Quando falamos de tradição em relação a história africana, referimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de conhecimento de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. “15

são chamados “tradicionalistas”. Memórias vivas da África, eles são suas melhores testemunhas”

17,

como afirma A. Hampaté Bâ, os tradicionalistas, também chamados de Dama, são pessoas que desempenham um oficio especifico, ou não, dentro da África. Eles podem ser conhecedores da metalurgia, iniciados na arte das ervar medicinais, ritualistas, especialistas na caça e vários outros

Desde o começo da colonização europeia na

ofícios, sendo, também, espécies de mestres destes

África, ao longo dos séculos, o continente foi tido

conhecimentos.

como sem história, sendo deixado de lado e

africanas, não existe uma divisão tão formal dos

fazendo, então, com que sua herança cultural fosse

conhecimentos entre as pessoas. Um tradicionalista

esquecida. Mas como afirma A. Hampaté Bâ: “Essa

pode ser um conhecedor de um leque maior de

herança ainda não se perdeu e reside na memória

informações e não um especialista determinado de

da última geração de grandes depositários, de

uma área. Então, os tradicionalistas são pessoas que

quem se pode dizer são a memória viva da África. ”

têm um conhecimento cientifico prático. Nas atuais

(KI-ZERBO, 2010, p. 167).16

sociedades, vemos essas pessoas como os médicos,

Mas,

como

nas

sociedades

Essa memória viva de vários dos povos africanos

conhecedores de ervas, especialistas em caça,

está nos ombros dos Tradicionalistas e Griots, que

tornando-se personagens especializados em uma

são as figuras responsáveis por ser depositário das

ou várias áreas do saber, porém, também podendo desempenhar o papel de historiadores, mas de uma

Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p. 4. 15 História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 167.

Loc. Cit. p. 167. História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p 174. 16 17


G N A R U S | 79 forma mais tecnicista, como um arquivista de fatos

encontram-se os vestígios de uma memória cultural

ou genealogista.

e do que foi apagado pela história oficial.” 19

Já os griots eram mais como os aedos e os bardos,

Eles, muitas vezes, eram contratados por reis para

citados anteriormente neste artigo. Eram espécies

narrarem à história de seus feitos, sua linhagem e

de trovadores ou menestréis do conhecimento dos

genealogia, para que, assim, os reis pudessem

povos africanos. Como dito por A. Hampaté Bâ:

validar o seu poder ou enaltecer os seus feitos

“a música, a poesia lírica e os contos que animam as recreações populares, e normalmente também a história, são privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o país ou estão ligados a uma família.” 18

perante seus súditos. Além de lutar com eles em várias batalhas, sendo muitas vezes um recurso fundamental que poderia dar aos seus mestres o recurso necessário para que a vitória na batalha viesse:

“Os griots tomaram parte em todas as batalhas da história, ao lado de seus mestres, cuja coragem estimulavam relembrandolhes a genealogia e os grandes feitos dos antepassados.” 20

Nas sociedades africanas, era costumeiro sentarse sobre a sombra de uma grande árvore e passar horas ouvindo as narrativas e histórias fantásticas, contadas ou cantadas pelos griots. O griot tem o papel de preservar a memória

Com isso, vários griots tinham papel de

coletiva dos povos africanos ou de um leque maior

importância dentro das sociedades africanas, tendo

de sociedades. A importância do griot está em

até mesmo postos de autoridade. Eles também

guardar a palavras, narrativas, mitos, tradições,

eram temidos, pois um griot, de certa forma,

fatos e grandes feitos de seu povo.

poderia contar uma história, tornando alguém um

Na prática um griot é um escritor que não usa um papel e algo para escrever, guardando a história na memória e lendo-a para os outros ao usar sua fala. Ele, ao usar a oralidade, mantém vivo, nos corações dos seus conterrâneos, aquilo que deve ser preservado ao longo das gerações. Então, o griot é a fonte histórica perfeita para se estudar os povos do continente africano, pois ele é um grande

grande vilão, inimigo ou covarde, podendo, também, torná-lo um herói, pois sabemos que a história oral recebe influência de seu locutor, podendo então ser adaptada durante a sua narração. Por isso ao contar uma história, os griots eram questionados sobre a forma com que a história estaria sendo contada, como afirma A. Hampaté Bâ:

depositário e preservador dessa história, além de ser uma espécie de entidade pública, como um

“Quando um griot conta uma história, geralmente lhe perguntam: “É uma história de dieli ou uma história de doma?” Se for uma história de dieli, costuma -se dizer: “Isso

arquivista histórico, o que comprova-se na abordagem de Lima: “Na voz de um Griots,

Loc. Cit. p. 193. Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p. 6. 18 19

História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 196. 20


G N A R U S | 80

é o que o dieli diz!”, e então se pode esperar alguns embelezamentos da verdade, com a intenção de destacar o papel desta ou daquela família – embelezamentos que não seriam feitos por um tradicionalista ‑doma, que se interessa, acima de tudo, pela transmissão fiel.” 21

quando a hora de sua morte chegava, acontecia um ritual descrito por Marta Aparecida:

“Quando um Griot falecia, seu corpo era sepultado dentro de uma enorme árvore, o Baobá, para que suas canções e histórias, assim como as folhas da árvore continuassem a germinar nas aldeias ao seu entorno.” 24

O griot, então, pode desempenhar na sociedade africana diversos papéis distintos. O historiador A. Hampaté Bâ separa esses papéis do griot nas

Considerações finais

seguintes categorias:

A utilização da história oral como fonte de

•os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra, cora, tantã, etc.). Normalmente são excelentes cantores, preservadores, transmissores da música antiga e, além disso, compositores.

pesquisa

•os griots “embaixadores” e cortesãos, responsáveis pela mediação entre as grandes famílias em caso de desavenças. Estão sempre ligados a uma família nobre ou real, às vezes a uma única pessoa.

em um modo quase que geral. Segundo Thompson:

vem

crescendo

dentro

do

meio

acadêmico, mas ainda é muito escassa a busca por esse método. Mesmo porque a própria transmissão oral vem sendo deixada de lado pelas sociedades

“em geral, apenas entre grupos de menos prestigio, tais como as crianças, os pobres da cidade, as pessoas isoladas no campo, é que hoje se coletam outras tradições orais, tais como jogos, canções, baladas e narrativas históricas.” 25

•os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo), que em geral são igualmente contadores de história e grandes viajantes, não necessariamente ligados a uma família. 22

Ainda na fala de Thompson, vemos que ele, mesmo sendo um defensor da oralidade, mostra-se

Vemos que a importância do griot para a sociedade é imensa e seu papel é o que manteve,

pessimista em relação à continuação da utilização de tal método no futuro, quando afirma que:

ao longo de gerações, viva a memória de todo o

“As pessoas ainda se lembram de rituais, nomes, canções, histórias, habilidades; mas agora é o documento que se mantem como autoridade final e como garantia de transmissão para o futuro.” 26

continente africano. E, como afirma A. Hampaté Bâ sobre os griots: “tornaram-se naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes historiadores.”23. A figura do griot era de tamanha importância e de

A importância da história oral como fonte

tal reconhecimento da sociedade que o papel de

primordial de pesquisa nas sociedades onde a

destaque deles era lembrado enquanto viviam e,

Loc. Cit. p. 198. História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 193. 23 loc. cit. p. 197. 21 22

Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel 24

Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. p.170. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 51. 26 Ibid. 25


G N A R U S | 81 escrita é usada de

verdadeira

forma fragmentada,

biblioteca

ou mesmo, onde a

riquíssima

escrita não é usada,

conhecimentos;

para

morte

de

um

arquivo

vivo

da

fazer-se

preservar

a

em a

memória, cultura e

história da África.

tradições

Uma

povo, então

de

um

provou-se de

importância.

esse que se torna

que

pode ser irreparável

suma Fato

perda

Griots de Sambala, rei de Medina (povo Fula, Mali), 1890.

evidente dentro da maioria das sociedades africanas pré-coloniais e até mesmo em sociedades africanas dos dias de hoje, pois vários povos mantêm suas características orais, mesmo com tantas mudanças no mundo a sua volta. Os personagens que fazem a história manter-se viva dentro destas sociedades africanas são os griots, a memória viva da África.

para

aquela

sociedade

e

mesmo

para

até a

história mundial. Para que isso não ocorra, os griots transmitem seus conhecimentos a sucessores. Eles escolhem jovens dentro da sociedade em vivem para que o acompanhe em sua jornada. E, no processo, o griot vai ensinando tudo o que sabe ao jovem ascendente ao cargo. Esse fato é de suma importância para as sociedades africanas, pois, quando ele morrer, toda

Sem os griots, os nomes dos reis, os grandes feitos,

a biblioteca de conhecimentos que ele possui em

as conquistas e derrotas nas batalhas, tudo isso

sua memória não se perde, e sim, permanece viva

cairia no esquecimento. Se não fosse o trabalho

dentro de um novo guardião.

destes menestréis do conhecimento africano, boa parte da história das mais de duas mil etnias existentes hoje na África teria se perdido com o passar do tempo, fora as várias etnias e sociedades que já deixaram de existir e que, mesmo assim, suas histórias mantêm-se vivas na memória coletiva africana, graças às narrativas contadas ou cantadas pelos griots nas noites africanas ao redor das grandes fogueiras. Deve ser lembrado com isso que, quando na África morre um griot, não é só a morte de mais uma pessoa da aldeia, cidade ou vila, e sim o fim de uma História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasilia: UNESCO, 2010. p. 169. 27

Além deste método, o griot mantém viva a história que ele adquiriu com suas vivencias ao longo do tempo, no processo em que ele a dissemina por todos os cantos onde suas trovas, versos, poesias e contos podem ser ouvidos e compreendidos. Por isso como afirma Hampaté Bâ, ao falar da história africana: “os griots estão longe de ser seus únicos guardiães e transmissores” 27 e sim, os guardiões das histórias, não só da África ou das sociedades orais, mas de todas as sociedades, culturas e povos, somos


G N A R U S | 82 todos nós, pois todos somos a memória da humanidade.

Fernando Augusto Alves Batista é Pós Graduando em Gestão e Orientação Educacional e em História da África – Instituto Educacional Centro Oeste, Licenciado em História – Faculdade Projeção de Taguatinga DF e Licenciado como professor de Ensino Religioso – FATEO (Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília). http://lattes.cnpq.br/7977877644910871

Referências BURKE, Peter. (org.) A escrita da História: Novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Ed. UNESP, 1992. Griots - culturas africanas: linguagem, memória, imaginário / Organizadores: Tânia Lima, Izabel Nascimento, Andrey Oliveira. – 1.ed. Natal: Lucgraf, 2009. História geral da África. I: Metologia e pré-história da África/Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2, Ed. Ver. – Brasília: UNESCO, 2010. ROSÁRIO, Lourenço Joaquim da Costa. A Narrativa Africana de expressão oral: transcrita em português. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; Luanda: Angolê, 1989. THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História oral. Tradução Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.


G N A R U S | 83

Artigo

DENTADURA POSTIÇA: O ROCK DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA (19641985)

Por: Gustavo Silva de Moura

RESUMO O presente artigo tem como objetivo explanar o Rock brasileiro durante o período de ditadura civil-militar no Brasil, com isso a explanação do comportamento e sonoridade se dará sobre as décadas de 1960, 1970 e 1980. Atitudes contraculturais foram abraçadas por uma parte da juventude em vários lugares do mundo, por meio do Rock, inclusive no Brasil, que se tornaria um terreno fértil para a construção de pensamentos subversivos de uma juventude insatisfeita. Essa fertilidade se deu nas condições individuais e coletivas que os indivíduos viviam inseridos. Palavra-Chave: Rock, Ditadura Civil-Militar, Juventude, Contestação.

O

presente trabalho tem como objetivo

vemos que o Rock, consideravelmente, aparece em

explanar as transformações do Rock1

vários momentos na história, com novas vertentes e

durante o período de ditadura civil-

diferentes ideologias.

militar no Brasil, com isso a explanação do

Grosso modo, o Rock pode ser divido em duas

comportamento e sonoridade se dará sobre as

partes: o rock música e o rock comportamento. Este

décadas de 1960, 1970 e 1980.

trabalho se mune do primeiro. O rock como uma

Discorrendo sobre essa temática temos como

expressão musical compõe-se de vários aspectos

norteadores desse texto algumas questões: Quais as

culturais: música, corpo, indumentária, mercado

atitudes dos roqueiros durante o período civil-

fonográfico, imaginário, sensações, dentre outros.

militar brasileiro? Que bandas se destacaram nesse

Nisso, vemos que o Rock é mais do que um simples

meio? Qual o reflexo do Rock na juventude desse

estilo musical, ele ecoa os sons e transforma o

período?

cotidiano da pessoa que escolhe seguir esse modo

O Rock por muito tempo foi objeto de estudo de

de vida. Desde seus primeiros acordes, ele traz a

jornalistas que desde a década de 1960 narram a

contracultura2 na sua composição que, mesmo

sua evolução musical. Diante dessa bibliografia

sendo uma arte comercializada para as massas, não

O termo Rock com letra maiúscula se refere ao clima dos movimentos musicais e de rock música (com

minúscula) (CHACON, 1983. P. 19). 2 Foi um termo veiculado pelos meios de comunicação

1


G N A R U S | 84

perdeu o espirito contestador.

que não somente a fome ou o instinto humano é

O Rock assim como culturas que tem como bases

causador de revoltas, mas também representações

a realidade local, é colocado como inferior pelas

culturais de determinados grupos, lutam em frente

classes altas, pois seus praticantes são em grande

às consequências sobre os costumes e crises da

parte das camadas economicamente inferior. Mas o

sociedade capitalista.

alcance do Rock transpassa essas barreiras,

Numa sociedade que saía de uma grande guerra,

conseguindo conquistar jovens de camadas altas,

a juventude começou a ver ao seu modo os lados

mostrando que a cultura e os costumes são

que se confrontavam: o comunista e o capitalista,

maleáveis em relação a diálogos entre os sujeitos

regimes rivais que estavam em alta naquele

sociais interclasses.

momento pós-guerra, chamada “Guerra Fria”. Mas

Eric Hobsbawm fala das transformações que

nenhuma das alternativas oferecia uma perspectiva

começam a ficar evidentes na sociedade sendo “a

de futuro que agradasse uma parte dos jovens. Com

terceira transformação em certos aspectos a mais

isso, essa juventude começou a buscar alternativas

perturbadora, é a desintegração de velhos padrões

que “agredissem” a sociedade como um todo. De

de relacionamento social humano, e com ela, aliás,

todas essas contestações, nascem movimentos

a quebra dos elos entre as gerações, quer dizer,

como o Hippie3, Rock Psicodélico, comunidades

entre passado e presente” (1995, P. 24). O Rock

alternativas dentre outros.

conseguiu

efetivamente

quebrar

esses

elos

geracionais, pois consegue unir pessoas que

O que é esse tal de rock?

coincidem com pensamentos similares.

Após a Segunda Guerra Mundial, houve um

O Rock é uma cultura advinda do mundo

grande crescimento populacional chamado de

capitalista como forma de subversão, mostrando

“Baby Boom” 4, fazendo com que as décadas de

na década de 1960, onde caracteriza novas práticas culturais, que agrediam diretamente aos hábitos das famílias de classe média que tinha ambição pela ascensão social. Essa manifestação chamada de contracultura não se limitava somente ao estético, como por exemplo, homens com cabelos grandes, roupas coloridas, músicas ou drogas, eles também tinham como projeto novas maneiras de pensar, modos diferentes de encarrar e de se relacionar com a sociedade. (PERREIRA, 1992. P. 08)

3

Era um movimento acorrido na década de 1960, baseado na prática da Paz, vivencias em comunidades, dentre outros fatores que caracterizam uma sociedade alternativa ao capitalismo mundial, no Brasil tivemos algumas comunidades consideradas Hippie, dentre elas podemos destacar a comunidade baiana, organizada pelos integrantes da banda Novos Baianos, mostrando uma alternativa para a juventude em meio a ditadura civil-militar. 4 É uma definição genérica para crianças nascidas


G N A R U S | 85 1960 e 1970 tivessem um número significativo de

Urbano foi fonte de inspiração para grandes

jovens, faixa etária importante para a crescente

guitarristas como Eric Clapton, Jimi Hendrix e

expansão do consumo. Após esse crescimento

outros. De cultura marginalizada, o Rock começou

populacional, já na metade da década de 1950, a

a tomar um caráter de contracultura.

população jovem se constituía de um mercado consumidor com proporções razoáveis.

Nos anos de 1950, a maioria das músicas rock tinha temas juvenis, como conflitos amorosos,

O rock mesmo sendo originário dos Estados

namoros e a vida adolescente sem regras. Nos anos

Unidos da América, teve grande difusão em vários

de 1960, devido ao contexto de guerra e de lutas

outros países. Ele se adapta as condições sociais e

pelos direitos civis dos negros, que os EUA estavam

culturais da realidade local5. Constituído de uma

vivendo, as temáticas das músicas rock começam a

mistura de ritmos estadunidenses, o Rock and Roll

mudar, inserindo temas que levassem a uma

obteve uma característica que marcou o seu

reflexão política e às condições que a sociedade

começo, eram ritmos de brancos, pobres e negros

estadunidense vivia.

em um mesmo estilo musical. Para a época e lugar,

Temos no Rock a contracultura, que é constituída

causaria um desconforto em um país onde as

pela subversão à sociedade, seja física, ou seja,

diferenças

intelectual

raciais

ainda

predominavam

na

população.

dos

conceitos

e

paradigmas

estabelecidos por ela (BRANDÃO; DUARTE, 1990,

O Rock and Roll no seu início vem como uma

p.50). Esse “espírito crítico”, antes adotado pelo

cultura marginalizada. A cultura pode ser

Rock and Roll, não tinha críticas políticas diretas ao

entendida como uma tradição estabelecida por um

governo. A sua crítica vinha nos corpos daqueles

grupo, referindo-se às práticas relacionadas aos

que o faziam, por ser um estilo que, em suas batidas,

processos técnicos, heranças de ideias, hábitos e

inevitavelmente, leva seu espectador a sentir as

valores, sendo o que constitui um homem como

vibrações sonoras, fazendo com que o dançar num

membro de alguma sociedade (BURKE, 2005, p,

sentido libertador aconteça, sendo um exemplo

43). Porém a cultura não somente se limita a

disso Elvis Presley:

reproduções de padrões culturais, sendo ela dinâmica, propiciando transformações sociais. Temos uma das raízes do rock na música negra dos EUA: o Blues. Com a migração negra nos anos de Depressão e da Segunda Guerra Mundial essa população começou a se instalar nos grandes centros urbanos, criando várias comunidades afro-

Se não houver reação corpórea "quente", não há rock. É verdade que as cortes renascentistas também dançavam. E é por isso que eu digo "quentes": não pode haver regras, cenas determinadas, linhas do salão a cobrir, músculos tensos a esperar o próximo movimento. O rock precisa de liberdade física, o que ficou claro de Elvis (The Pelvis, lembram-se?)(CHACON, 1983, p.13).

americanas ao final da guerra, em 1945. Esse Blues

Com o Rock, surge toda uma cultura de

durante uma explosão populacional - Baby Boom em inglês, ou, em uma tradução livre significa “Explosão de Bebês”. Em geral se refere aos filhos da Segunda Guerra Mundial, já que logo após a guerra houve uma explosão populacional. Nascidos entre 1943 e 1964, hoje são indivíduos que foram jovens durante as décadas de 60 e 70 e acompanharam de perto as mudanças

culturais e sociais dessas duas décadas. 5 Para Paulo Chacon o Rock é originário dos EUA, possuindo o seu maior manancial de grupos, mas ele é absolutamente internacional. Pois a construção do Rock é baseada na aproximação das culturas regionais e locais (CHACON, 1983. P.19-20)


G N A R U S | 86 contestação juvenil, usada para chocar os padrões morais da sociedade. A sociedade temia que sua influência sobre os jovens, com sua dança “rebolativa”, fizesse a juventude subversiva. O rock funcionou como um modo de estabelecer uma

demonstrações contra a guerra do Vietnam, quando os ouvir cantar as canções de Bob Dylan, senti de algum modo, e isto é muito difícil de definir, que esta é na verdade a única linguagem revolucionária que hoje nos resta. (MARCUSE, 1990, p. 245).

inversão psicológica na juventude branca. Essa

Herbet Marcuse sentiu o mesmo que vários jovens

inversão psicológica era fazer com que o “jovem

relatam sentir, mesmo sabendo que esse é um

branco”, viesse a ter valores da comunidade negra

relato como o próprio Marcuse fala, “romântico”,

que era considerada inferior. Essa juventude se

podemos perceber o poder revolucionário que o

tornou oprimida diante dos valores dos seus pais

Rock traz em suas atitudes, sendo uma alternativa

por isso, tomavam para si valores da cultura negra.

de contestação gerada por uma juventude

Mesmo tendo sido anexado à indústria cultural,

marginalizada.

O Rock ainda pode

O Rock and Roll chega ao Brasil por meio do

ser definido como um tipo de linguagem

cinema na década de 1950, mais precisamente em

revolucionária. Sobre isso temos como referência o

1955, com o filme “Sementes de Violência7” que foi

diálogo entre dois filósofos contemporâneos:

exibido no eixo Rio-São Paulo, um filme que mostra

Theodor

um drama juvenil que tinha como trilha sonora o

através da produção

Adorno

industrial6.

e

Herbert

Marcuse,

que

discordam sobre o sentido que a arte pode ter.

rock and roll (PAVÃO, 1989, p. 21).

Adorno coloca que a arte tornou-se uma mercadoria e por conta dessa relação de troca e lucro de quem a obtêm, não consegue tomar uma posição de mudança na sociedade, pois ela serve aos interesses capitalistas. Marcuse nos coloca outro ponto de vista, onde as práticas artísticas levam em si à sensibilidade de uma “verdade” e que mesmo podendo ser comercializada, não perde esse caráter de transmissão de vida singular. Na década de 1960, nos EUA, o Rock começa a ser veiculado não somente como uma agressão visual, como Elvis e a juventude transviada relatadas no cinema, mas também como uma contestação política no contexto de suas músicas. Marcuse afirmou que:

Quando assisti e participei de suas

Abrange, além da música, setores do lazer, esportes, cinema, imprensa (tanto a escrita como a falada), espetáculos públicos, literatura, moda, resumindo, a indústria cultural são produtos que caracterizam o estilo de vida do homem contemporâneo do meio urbanoindustrial. (CALDAS, 1986. P 83) 7 Filme estadunidense, filmado por Richard Brooks, 6

baseado em um romance de Evan Hunter que tem como título original “The Blackboard Jungle”, que mostrava um drama juvenil que tinha como trilha sonora o Rock and Roll,. No Brasil foi exibido com o nome Sementes de Violência, teve exibições no Brasil dentro do eixo RioSão Paulo, na década de 1950.


G N A R U S | 87 O Brasil vivia um período chamado de “Anos Dourados”, Jucelino Kubitscheck tinha como plano de metas do seu governo o desenvolvimento brasileiro: Slogan, “50 anos em 5” . Com esse plano de desenvolvimento, havia um incentivo à indústria estrangeira, com isso cresce o consumo, não somente no Brasil, mas em todo mundo. Os Estados Unidos da América buscavam perpetuar o seu estilo de vida, vendendo uma imagem: o American Way

of Life (Modo de Vida Americano). No Brasil os EUA tinham ajuda de empresas de Rádio e de Televisão. Essa indústria do consumo via grande força no mercado jovem, o maior reflexo do poderio de compra da juventude foi refletido na indústria de discos (HOBSBAWN, 1995. p. 321-322). No Brasil a propaganda e o sistema de crediário aumentavam, estendendo o poder de consumo da juventude. Como uma das consequências temos a chegada do

rock and roll na década de 1950, havendo registro da primeira gravação de rock and roll brasileiro8. Influenciados pelo rock and roll americano, que chegava ao Brasil pelo cinema, os jovens brasileiros começavam a imitar os personagens dos filmes, vestindo as mesmas roupas, anexando palavras em inglês a sua fala. Isso mostra que parte da juventude brasileira começava a se inserir em um sistema que tinha como base uma cultura estrangeira, mas que poderia se encaixar às condições do Brasil. Podendo haver semelhanças entre os conflitos da juventude, seja no âmbito social, seja no individual.

É proibido proibir essa mosca na sopa, que país é esse?! Os militares por mais de vinte anos, entre 1964 e 1985, governaram o Brasil dando início a novo período ditatorial no país, tendo como ápice repressor o AI59, que durou de 1968 a 1978. Temos como determinações influentes no âmbito da música: 

Proibia manifestações populares de caráter

político; 

Suspendia o direito de habeas corpus (em

casos de crime político, crimes contra ordem econômica, segurança nacional e economia popular). 

Impunha a censura prévia para jornais,

revistas, livros, peças de teatro e músicas. O rock da década de 1960 tem como protagonistas, bandas e artistas, da Jovem Guarda e Tropicália. Se a Jovem Guarda era o reflexo dos

Beatles fase “iê-iê-iê” 10, a Tropicália era o reflexo dos Beatles na fase “Revolver11”. O primeiro foi colocado como forma de protesto e o segundo como despolitizado. Com a justificativa que em uma época de tanta repressão, ao invés de estarem protestando contra os abusos da ditadura, estavam cantando músicas que falavam de carros, garotas e festas, ostentando assim uma imagem dita “norteamericanizada”, numa época de tanta repressão. O segundo foi colocado por alguns como subversivo, mesmo assim ocorreram momentos em que foram estigmatizados.

O Primeiro rock and roll feito por brasileiros é uma composição de Miguel Gustavo, com o título, “Rock and Roll em Copacabana” essa música foi gravada por Cauby Peixoto pela RCA em Janeiro de 1957, mas só foi lançada em Maio. (MOURA, 2013. P. 70) 9 O Ato institucional Numero 5 (AI5) foi instituído no Governo Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968 e perdurou até o Governo Geisel sendo extinto em 1978, ele concedia poderes plenos ao Presidente da República para dar recesso à Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras de vereadores, sendo que o Presidente assumiria a função desses poderes. A 8

determinação deste ato que afetou diretamente as artes foi a censura prévia para jornais, revistas, livros, peças de teatro e música. 10 Fase iê-iê-ê remete à música “She Loves You”, que tem como refrão “She loves you Yeah, yeah, yeah”, na qual fala de um drama amoroso adolescente, tema tratado correntemente nas composições da jovem guarda. 11 Disco de 1966 que é considerado como o grande marco da psicodelia e da contracultura, em que mostra um Beatles, maduro e ousado (DAPIEVI; ROMANHOLLI, 2004. P. 32,33)


G N A R U S | 88 A Tropicália até hoje é apontada como parâmetro

Proibir”, cantada por Caetano Veloso, debaixo de

para arte politizada em questões musicais, tendo

vaias no III Festival da canção em 1968 e

uma significativa participação no Rock brasileiro.

desclassifica após Caetano ter discutido com a

Uma de suas peças, Os Mutantes, aparece na capa

plateia no meio da apresentação.

do disco manifesto: “Tropicália ou Panis et

“Me dê um beijo meu amor / Eles estão nos esperando/ Os automóveis ardem em chamas/ Derrubar as prateleiras/ As estantes, as estátuas/ As vidraças, louças/ Livros, sim…/ E eu digo sim/ E eu digo não ao não/ E eu digo: É!/ Proibido proibir/ É proibido proibir…”13

Circenses”, mesmo não sendo um disco de rock tinha uma postura Rock em seus integrantes. Os Mutantes era uma banda de rock classificada como progressivo. Foi muito criticada pela juventude dita “politizada” por ser acusada de ceder ao espírito

Em 27 de dezembro de 1968, Veloso e o parceiro

capitalista norte-americano12. Temos como um exemplo de uma música com estrutura e atitude Rock à canção “È proibido

Gilberto Gil foram presos, acusados de terem desrespeitado o hino nacional e a bandeira brasileira. Foram levados para o quartel do Exército de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro e tiveram suas cabeças raspadas. Ambos foram soltos em 19 de fevereiro de 1969 e seguiram para Salvador, onde tiveram de se manter em regime de confinamento, sem aparecer nem dar declarações em público. Em julho de 1969, Caetano e Gil partiram com suas mulheres para o exílio na Inglaterra. A década de 1970 foi o período em que a ditadura mais reprimiu, a instituição do AI-5, forçou muitos artistas a saírem do país. Foram excluídos do país ícones como Raul Seixas, que defendia uma sociedade

alternativa,

fora

dos

padrões

estabelecidos pelos governos e sociedade, baseada Caetano Veloso de Verde com sua roupa de plástico, juntamente com a banda Os Mutantes, todos de Laranja

Rock progressivo é um rock com pretensões de “obra de arte”, usa influências de música erudita, Jazz e ritmos regionais. Os maiores ícones desse estilo são Pink Floyd, Frank Zappa, Yes, Genesis, dentre outros. No Brasil algumas das principais bandas são: O Terço; Perfume Azul do Sol; Som nosso de cada dia; Terreno Baldio dentre outras. 13 Trecho da canção “É proibido proibir” interpretada por Caetano Veloso na eliminatória do III FIC da TV Globo, em 15 de setembro de 1968, sendo desclassificada e amplamente vaiada pelo público, gerando uma discussão entre Caetano Veloso X Plateia. 14 Termo utilizado para definir o Rock Brasileiro 12

na Thelema. Raul Seixas é colocado como o patriarca do BRock14. A partir do 7º FIC15, Raul se

produzido no final da década de 1970 e 1980. “Brock: Era

o reflexo retardado no Brasil menos da música do que da atitude do movimento punk anglo-americano: do-ityourself, ainda que não saiba tocar, ainda que não saiba cantar, pois o rock não é virtuoso. Era um novo rock brasileiro, (…) falado em português claro das coisas comuns ao pessoal de sua própria geração: amor, ética, sexo, política, polaroides urbanos, dores de crescimento e maturação – mensagens transmitidas pelas brechas do processo de redemocratização. Era um corte proposital em relação à MPB, era a valorização da juventude nos anos 80. diz Renato Russo” (DAPIEVI, 1995. P 195,196) 15

7º FIC: 7º Festival Internacional da Canção realizado


G N A R U S | 89

era. Era uma coisa mais espiritual. Preferiria dizer que tinha pacto com o demônio a dizer que tinha parte com a revolução. Então foi isso, me escoltaram até o aeroporto." (...) (Raul Seixas sobre o exílio ocorrido em 1974, em uma entrevista publicada na revista Bizz, em março de 1987) Nos anos de 1970 outros artistas fizeram sons marginais. Outro grupo foi o Secos & Molhados, que mesmo tendo pouco menos de três anos de Imagem retirada do Clipe Mosca na Sopa, música de 1973, mostra Raul Seixas e Capoeiristas, atividade ilegal na época.

duração, foi marcante no Rock brasileiro. Serviu de embrião para a década de 1980. Vemos que o rock brasileiro começou a se fortalecer na década de 70,

tornaria uma referência para aqueles que insistiam

período

em

que

começa

em fazer Rock no Brasil.

redemocratização do Brasil.

o

processo

de

Raul Seixas teve canções censuradas pela

O Brasil no governo do general Geisel viveu um

ditadura civil-militar por serem ofensivas aos bons

período de endividamento econômico, mas

“costumes da época”. Algumas canções censuradas:

diferentemente dos outros países na década de

Mosca na Sopa/ Cachorro Urubu/ Sociedade

1970, desenvolveu uma política de metas

Alternativa/ Como Vovó Já Dizia/ Sapato 36/ Abre-

ambiciosas, mostrando para o mundo uma

te Sézamo/ Aluga-se/ Metrô Linha 743/ Mamãe Eu

tranquilidade, que para o povo brasileiro não era

não Queria/ Cowboy Fora da Lei. Temos como

palpável. Com isso, o Brasil começa a ser mostrado

exemplo a música “Mosca na Sopa”, do disco Krig-

na comunidade internacional como a oitava

há, Bandolo de 1973:

potência mundial, fazendo com que acontecessem várias parcerias com outros países, mas a crise

Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa/ Eu sou a mosca/ Que pintou prá lhe abusar… (...) E não adianta/ Vir me detetizar/ Pois nem o DDT/ Pode assim me exterminar/ Porque você mata uma/ E vem outra em meu lugar. Raul Seixas relata sua prisão em 1974 do seguinte modo:

“Veio uma ordem de prisão do Exército e me detiveram no Aterro do Flamengo. Me levaram para um lugar que não sei onde era. Imagine a situação: estava nu, com uma carapuça preta. E veio de lá mil barbaridades. Tudo para eu dizer os nomes de quem fazia parte da Sociedade Alternativa, que, segundo eles, era um movimento revolucionário contra o governo. O que não

em 1972.

nacional viria a seguir, por exemplo, a “crise do petróleo” em 1973. A partir do momento de Abertura Política, o Rock começou a ter mais força no país, emergiram grupos em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, estados que tiveram mais repercussão no cenário brasileiro. Formou-se assim a primeira divisão do BRock, como coloca Arthur Dapievi, em seu livro

BRock: O rock no Brasil dos anos 80. Mas não podemos esquecer que não somente nesses grandes centros houveram emergência de bandas de rock. Paralelo a esses centros surgiram divisões de base do BRock, em várias outras localidades do


G N A R U S | 90

Após o Rock in Rio 1985, começa emergir bandas em várias localidades do Brasil, dos mais variados estilos de rock. Assim houve um fortalecimento do

Heavy Metal brasileiro que começava a ter força em Minas Gerais, com bandas que são referências mundiais, como o Sepultura e Sarcófago. Com esse cenário de crescimento comercial, ocorre o surgimento de várias bandas e de novos admiradores em todas as camadas sociais a partir da década de 1990. Por conta desses novos Carimbo da Censura na música Faroeste Caboclo da banda Legião Urbana

admiradores, de classes altas da sociedade, essas bandas compostas por filhos de empresários e políticos, conseguem se inserir mais ativamente na

Brasil, como em estados do Nordeste e Norte do

indústria fonográfica, buscando seu “lugar ao sol”

país.

no mundo midiático, fazendo com que tenham mais

Temos como um dos marcos do avanço do Rock

cuidados em tratar de temas agressivos, para

brasileiro o festival chamado Rock in Rio, que

manter sua imagem na mídia e vender mais discos,

aconteceu no ano de 1985, considerado um dos

ampliando assim a aceitação na sociedade, mesmo

maiores festivais do mundo. As principais bandas do

que não inteiramente.

cenário Rock/Metal mundial se apresentaram nesse festival, nomes como os dos alemães do Scorpions, dos ingleses do Iron Maiden e dos australianos do AC/DC, bandas que estavam no auge de suas carreiras e que antes nunca estiveram no Brasil. Esse festival levou bandas do cenário nacional para abrir os shows dessas grandes bandas. Entre as que abriram esses shows, temos o Barão Vermelho, Paralamas

do

Sucesso,

dentre

outros.

Na

apresentação da banda Barão Vermelho, seu vocalista até então, enfatizou a situação política que o Brasil vivia, antes da última música da banda na noite, intitulada “Pro dia nascer feliz”:

Estamos bem por um triz/ Pro dia nascer feliz(...)/ O mundo inteiro acordar/ E a gente dormir, dormir/ Pro dia nascer feliz/ Pro dia nascer feliz/ O mundo inteiro acordar/ E a gente dormir...16

16

Música do álbum, Barão Vermelho 2 (1983), sendo, ultima

Foto do Público no Rock in Rio 1985

canção da banda no Rock in Rio 1985.


G N A R U S | 91 Considerações finais Atitudes contraculturais foram abraçadas por uma parte da juventude em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil, que se tornaria um terreno fértil para a construção de pensamentos subversivos de uma juventude insatisfeita. Essa fertilidade se deu nas condições individuais e coletivas que os indivíduos viviam inseridos. No caso do Brasil, uma sociedade caracterizada por ter um padrão familiar e de religião católica que estabelece regras, e vários outros fatores, além disso, o sistema governamental que retirava da população

seus

direitos

sobre

a

política,

encontramos oposição na subjetividade de cada sujeito inserido nesse meio. Com novos anseios, a juventude passa a buscar na música uma alternativa de vida, fazendo com que talentos individuais surgissem, mas enfatizando o sentimento de colaboração entre os praticantes do Rock. O movimento Rock estava em todas as camadas sociais, seja ela a classe rica seja da classe pobre. Novas possibilidades se abriram, a partir da inserção do rock na política institucional, fazendo a juventude tornar-se ativa na criação e elaboração de shows, evidenciando que os poderes públicos e privados perceberam o crescimento e vincularamse em alguns momentos a “Cena Rock” local. O rock,

portanto,

constitui

uma

relação

de

negociação política e cultural. Gustavo Silva de Moura é Graduado em Licenciatura Plena em História Pela Universidade Estadual do PiauíUESPI e Especializando em História do Brasil pela UCAM.

Referências BRANDÃO, Antônio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos Culturais da Juventude. São Paulo: Moderna, 1990. BURKE, Peter. O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

CALDAS, Waldenyr. O que todo cidadão precisa saber sobre cultura. São Paulo: Global, 1986. CHACON, Paulo. O Que é Rock. 3. Ed, São Paulo: Brasiliense, 1983. DAPIEVE, Arthur. Brock: O rock brasileiro dos anos 80. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. ______________; ROMANHOLLI, Luiz Henrique. Guia de rock em CD. 2. Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX 1914-1991 São Paulo, Cia das Letras, 1995. PEREIRA, Carlos Alberto M.. O que é Contracultura. 3° Ed. Editora Brasiliense, 1983. MARCUSE, Herbert. A Arte na Sociedade Unidimencional. In: LIMA, Luiz Costa (Org). Teoria da Cultura de Massa. 4. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pg. 245-256. MOURA, Gustavo Silva. Primeiros acordes distorcidos: a construção de um rock and roll brasileiro na década de 1950. Gnarus- Revista de História, v. 3, Rio de Janeiro: 2013. P. 65-72. NAPOLITANO, Marcos. História & Música. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. PAVÃO, Albert. Rock Brasileiro 1955-65: Trajetória, Personagens e Discografia, São Paulo: EDICON, 1989. REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. SAGGIORATO, Alexandre. Anos de chumbo: rock e repressão durante o AI-5. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2012.


G N A R U S | 92

Artigo

IDENTIDADE CULTURAL, DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITO Por: Daiana Ximenes de Menezes e

Cristiane Chaves de Oliveira

A

pós a independência em 1822, se

nacional, baseado num projeto nacionalista e

começa a criar valores brasileiros, e com

desenvolvimentista, onde o contexto histórico era

a Proclamação da República, em 1889,

caracterizado por desigualdades econômicas,

ocorre à reconstrução de um projeto de nação

sociais e culturais entre classes, etnias e regiões.

baseado na necessidade de se criar uma

Gilberto Freyre é um dos poucos autores que

identidade nacional brasileira. Ocorrerão debates

falam do processo de mestiçagem e sua

políticos sobre novos projetos para representar o

importância para a formação de nossa sociedade.

governo, com discursos etnocêntricos que

Ele

ecoavam desde meados do século XIX até no

miscigenação e da visão de “O que é ser

decorrer do século XX.

brasileiro”, onde vê na mistura das três raças

irá se destacar pela

valorização

da

Veremos que a construção da identidade

(branco, negro e índio) a formação de nossa

nacional Brasileira realmente ganhará força em

identidade. Antes disso, não existia a ideia de

1930 com o Estado Novo de Getúlio Vargas, tendo

miscigenação das três raças, e sim a do branco e

que enfrentar o problema étnico do paradigma

do índio, pois o negro estava excluído por causa

racialista da sociologia, que será substituído pela

da sua condição de escravo. Freyre vê as três raças

miscigenação de Gilberto Freyre, pois era grande

de forma igualitária, o que foi revolucionário para

a necessidade de uma identidade nacional

a época em que se lançavam ao mundo, teorias de

compartilhada, mostrando que essa construção

branqueamento. Ele fala que houve uma

não era só um processo cultural, mais também um

miscigenação total, onde nada ficou puro.

processo político que necessitava de uma coesão


G N A R U S | 93 Analisando por vários ângulos, sem eufemismo

concepções de selvageria.

as relações de poder de uma sociedade dividida

A questão afro religiosa no Brasil abre vários

entre conquistadores e conquistados. Mesmo

discursos e parênteses que em muitas das vezes,

tendo sido feito de forma literária, “Casa grande &

ficam

senzala” é considerada o primeiro estudo

preconceito,

antropológico de nossa sociedade. Dentro da

relaxamento nas denúncias ou simplesmente pelo

casa-grande onde as relações sociais e culturais se

desrespeito as religiões de matriz africana. Falar

misturavam criaram um novo modo de vida.

da formação de identidade brasileira é também

Freyre é o autor que fala da importância do

difíceis

de falta

existiam

também nas interpretações, um

esses

Antes

dos

portugueses

já tinham a sua forma

eram analfabetos.

religiosa

Ele vê o negro como um

plantas

retratou de forma expressionista a vida intima e cotidiana de senhores e escravos, os negócios e a religiosidade. Esta última embutida de um para que os negros

pudessem expressar sua religiosidade e culto a seus deuses. esse

sincretismo

o

nela, eles já manipulavam

Foi

inovador em sua obra, onde

sincretismo religioso

encarar

aos deuses que habitavam

ambiente cultural para ser Brasil.

de

mundo, ligados a natureza e

civilizador que saiu do seu

com

várias

Oceano Atlântico, os índios

portugueses, que na maioria

Mesmo

com

chegarem do lado de cá do

dos índios como as dos

no

Brasil

maneiras demonstrar sua fé.

negros

com cultura superior tanto a

escravo

do

Um país rico nesse aspecto e

da nossa identidade cultural. E africanos,

conhecimento,

multiculturalismo do Brasil.

mas

entre

por

sabemos

principalmente na construção que

de

seja

falar sobre quais povos formam ou formaram essa

economia dessa sociedade

revela

fechado,

identidade. E que identidade seria essa, se

escravo africano não só para a escravocrata,

ser

a

afro-

religiosidade será objeto de discriminação e perseguição no Brasil, tendo na Igreja Católica Apostólica Romana o seu principal algoz. Pois ela criou tabus a respeito de seus rituais e de suas divindades, os associando a feitiços maléficos e a

para

a

cura

e

proteção. Com a chegada dos portugueses e as crenças de que o que lhes é diferente é inferior, o índio foi convertido. Seriam mais adeptos para religião católica que perdia força com o protestantismo na Europa. Sem respeito algum, portugueses catequizaram índios e os diminuiriam. Eis que nasce o Brasil, descoberto

pelos

portugueses.

Anos

de

exploração e povoação, e com os índios fugindo ou sendo dizimados, fazendo com que os portugueses precisassem de outra mão de obra. Começa o

tráfico

negreiro, transformam


G N A R U S | 94 habitantes de um continente em escravos, trazem

tradicional

o negro para o Brasil, sem achar que essa pessoa

universidades.

de pele escura tem alma, o trazem em navios com nomes que nos fazem refletir. Como o tumbeiro chamado de Boa Esperança. Esperança para o português e o descendente de português nascido no Brasil, pois o negro aqui só encontrou indiferença, preconceito e dificuldade.

de

médicos

formados

por

Enquanto os líderes do calundu atendiam a população carente e não chamavam muito a atenção, não havia perseguição, o problema começou quando eles começaram também a ter uma clientela branca e a participar das revoltas. Eles representavam uma forma de poder e, além

Quando chegam ao Brasil ou ainda nos portos

disso, eram respeitados pela comunidade local,

da África são batizados e chamados por um novo

sendo de forte influência. O que os tornavam um

nome dado a ele pelo português. Trazido ao Brasil

desafio para as autoridades coloniais.

ele tem que aprender uma nova língua, ter contato com grupos rivais de pele igual. Chegando a colônia portuguesa na América, o negro escravizado tem uma história, uma crença, uma religiosidade. Há um conflito de mundos diferentes para esse negro. Baseada na oralidade e na ancestralidade os africanos passam a cultuar aqui seus ancestrais, seus orixás.

Com a perseguição e a pouca forma de conseguir cultuar seus deuses, os negros utilizarão o sincretismo religioso como estratégia. Iniciam a ligação entre os santos católicos e os orixás, para sair do olhar dos senhores brancos. Os mais conhecidos são Ogum relacionado a São Jorge; Santa Barbara á Iansã; Nossa Sra. da Conceição á Iemanjá; Oxossi a São Sebastião e assim por diante. Os negros além de aprenderem a língua dos

Segundo Luis Nicolau Parés, o vudum era o

senhores, também conheciam o local em que

termo usado na Bahia do século XIX. Do vudum

estavam e a rotina a sua volta, enquanto que os

formou-se o candomblé na Bahia e o Tambor de

senhores pouco sabiam sobre os seus escravos. Isso

Mina no Maranhão.

de certa forma facilitava a movimentação e a

Na África cada tribo cultuava um único orixá, mas aqui o culto de várias divindades num mesmo

ocultação de seus ritos afros, até mesmo dentro das igrejas católicas.

templo era prática comum nas tradições vudum

Tanto a política quanto a religião são elementos

africanas desde do século XVIII. Mas há relatos

que unem ou segregam. Entre o final do século

que desde o século XVII existia cultos africanos em

XVIII e o início do século XIX a Bahia viveu tempos

terras brasileiras. As informações falam de um

de prosperidade política, para nos anos seguintes

calundu colonial. Festejos com datas marcadas em

viver momentos de tensão com o governo de

calendário e sem lugar fixo para ser feito, ou seja,

Conde da Ponte, que após entrar para irmandade

sem terreiro. O calunduzeiro curava doenças

dos Martírios, começa a dar liberdade para as

simples e graves manipulando ervas, curavam

nações africanas, estimulando de certa forma a

também transtornos mentais e da alma. Isso ia de

rixa entre elas, impedindo as mesmas de se unirem

encontro com a supremacia da igreja Católica em

contra a ordem colonial.

bases de poder e cura, e também com a medicina

A perseguição às religiões de matriz afro se


G N A R U S | 95 estendem a todos os estados em que se

tornava-se ainda mais intensa. Alguns locais ditos

estabeleciam. Nesses lugares estava a lei para

protegidos não sofriam ou eram avisados quando

declarar “guerra”, Rio de Janeiro, Minas Gerais,

a “batida” policial iria chegar. A casa da tia Ciata é

Bahia, Maranhão, Pernambuco. Todos contra a tal

um exemplo, permaneceu durantes anos sendo

curanderia.

frequentada não só pela população pobre, mas

Com o passar dos anos, muitos acontecimentos

teve seu nome ligado a sambista e até ao

não mudam, mas tomam uma nova forma de

presidente Wenceslau Brás, que por intermédio

serem feitos. Segundo o texto “O arsenal da

de um investigador conheceu Tia Ciata e curou-se

macumba – Yvonne Maggie” - “se há crença na

com ela. O presidente perguntou se a mesma

feitiçaria, há combate aos feiticeiros. ” E mesmo

precisava de alguma coisa e ela respondeu que

com o Brasil se tornando um estado laico com a

para ela nada, mas que precisava de um emprego

Constituição de 1891, os cultos afros permanecem

para o marido, pois a família era grande. O marido

no código penal como delito. Ao longo do século

foi trabalhar na polícia. A casa da tia Ciata também

XX a polícia monta grandes coleções de objetos

era palco para os sambistas. A perseguição, o

dos terreiros.

preconceito era muito, mas para alguns parecia

Com a promulgação do código penal vários feiticeiros eram presos e julgados. A perseguição

de certa forma ser um pouco mais brando. Parecia uma caçada as bruxas. Policiais, juízes,

Um exemplo de sincretismo entre candomblé e catolicismo é a Lavagem do Bonfim, que ocorre anualmente em Salvador, na Bahia, no Brasil


G N A R U S | 96 advogados, promotores todos envolvidos na caça

ainda mantém crucifixos em seus prédios públicos.

aos feiticeiros. Julgando qual exercia de fato a religião e qual não. Alguns pais e mães de santo foram julgados como charlatões, que enganavam ao povo, extorquindo dinheiro, usando sua fé. O material recolhido e apreendido foi exposto e se tornavam prova material de que existia a “macumba”. Sem pensar na história da religião como feito sempre, sem perguntar, indagar ou

Intolerância ou discriminação, qual seria a expressão correta quando se trata de religião dentro do Brasil, dentro de um país com um histórico não só de desigualdade como também de perseguição e discriminação das religiões de matriz afro, como já dito nesse texto, fica claro que para as religiões que cultuam a ancestralidade a expressão correta seria discriminação.

analisar e como sempre caindo no senso comum. Em

1970,

alguns

movimentos

Levando em consideração que intolerância é

políticos

devolveram os objetos, que foram apreendidos pela polícia, para seus donos originais. Essas peças ficavam expostas no museu da polícia, que as mantinha em uma ordem que parecia com a de um terreiro, pois só com os objetos na disposição correta é que realmente o feitiço funcionaria. Nessa época algumas pessoas visitavam o museu e fazia seus pedidos, acreditando que ali realmente existia magia.

quando há pouca disposição de alguém para escutar ideias opostos as suas, e que discriminação é quando alguém é colocado à parte, com tratamento desigual ou injusto dado a um grupo ou pessoa, discriminação então torna-se dentro do conceito que vimos desde o início do texto. O fato de tolerar uma religião pode perfeitamente conviver com a discriminação dessa mesma pratica religiosa. Por todos os assuntos que deram base a esse

Os anos passaram mais a perseguição religiosa continua. O princípio da liberdade religiosa, o caráter laico e a igualdade das religiões foram determinados pela Declaração Universal dos Diretos Humanos, artigo 18 de 1948.

“Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.”

texto foi criado em 2008 a Comissão de Combate a

Intolerância

Religiosa

(CCIR)

composto

inicialmente por umbandistas e candomblecistas, mas que logo depois se juntou a diversas religiões que tem o mesmo propósito combater a intolerância,

ou

melhor

seria

dizer,

a

discriminação religiosa. Apoiados ou embasados, pela lei 11.635 que é a Lei Contra a intolerância religiosa. A CCIR tem como propósito lutar pela

liberdade religiosa garantida por lei. No Rio de Janeiro foi criado o MUDA (Movimento Umbanda do Amanhã), que nasceu

Ou seja, segundo a declaração universal dos

devido a união de alguns centros de Umbanda que

direitos humanos, pode existir e co-existir todas

viram a necessidade de um movimento que

as formas de crença e religião, o que não temos

esclarecesse à sociedade o que é e para que serve

no Brasil de hoje nem no Brasil do passado.

a Umbanda. O maior objetivo deste movimento é

Mesmo o país se declarando um país laico ele

reafirmar a Umbanda como religião que deve se


G N A R U S | 97 prestar única e exclusivamente à caridade e ao

estudos sobre a história da cultura africana e

amor próximo, respeitando as diferenças de

afro-brasileira. Temos a lei 11.635 aprovada em

práticas. A finalidade do movimento é que todas

2007 contra a Intolerância Religiosa e também

as casas que praticam esta religião possam se unir

temos a lei 12.288 aprovada em 2010 que garante

e mostrar a sociedade a pratica do bem, para que

a população negra a efetivação da igualdade de

a sociedade possa respeitar e praticar a Umbanda

oportunidades a defesa dos direitos étnicos

sem medo e preconceito. Desmistificando

individuais, coletivos e difusos e o combate à

quaisquer dúvidas ou mal entendidos que existam

discriminação e às demais formas de intolerância

sobre essa religião.

étnica. Apesar das leis ainda vemos casos de

Acreditam que a liberdade religiosa deve ser defendida não só por eles, mas por cada religioso

discriminação e preconceito nas escolas e nos espaços públicos.

e garantida por vivermos em um Estado sem uma

Como é o caso da adolescente que saiu nos

religião oficial, o que garante o direito

jornais, que foi apedrejada, por estar com a

democrático de qualquer um praticar a sua

indumentária do candomblé. O direito de ir e vir

religião.

passa a não ser respeitado. Essa agressão contra a

Em virtude do que foi mencionado, uma coisa

religião passa a retirar direitos que todos temos

prevalece, a falta de conhecimento sobre as

como cidadão. Também há o caso do menino que

religiões de matrizes africanas, o senso comum de

foi impedido de frequentar a escola por estar com

um Brasil colonial ainda impera. Apesar dessas

suas guias de santo. Apesar das leis ainda há sim a

religiões terem um crescente número de adeptos,

perseguição, a falta de respeito, a superstição,

isso não as faz serem menos discriminadas dentro

o medo de feitiço como no Brasil colonial.

da sociedade. Estudos relatam que as agressões ou perseguições que foram citadas no texto continuam e que o fato das casas, terreiros e barracões terem legalização jurídica, alvará ou CNPJ, não impedem as agressões. Em alguns artigos da professora e antropóloga Sônia Giacomin, ela cita que as agressões geralmente são feitas perto dos terreiros, ou seja, o agressor muita das vezes é o vizinho. Isso só nos mostra que a questão do respeito não está ligada a lei ou a conformidade que as casas se apresentam. Mesmo com as leis que são feitas para que esse tipo de acontecimento não seja repetido eles ainda sim o são. Temos a lei 10.639 aprovada em 2003 que implementa no ensino fundamental, no ensino médio e nas universidades a obrigatoriedade de

Como no Brasil colônia e no decorrer dos anos até chegar à atualidade, a sociedade parece não ter ser informado o suficiente, estudado, aprendido, que temos uma identidade brasileira multifacetada e que dentro dessa identidade estão todos os povos que compõe o Brasil. E que as diferenças enriquecem nossa cultura, e não devem ser motivo de exclusão ou discriminação em um país que possui uma enorme diversidade cultural de Norte a Sul. Para haver identificação também é necessário haja empatia e para isso é imprescindível haver a questão do respeito do “não sou pertencente a essa religião, mas ela faz parte do local em que vivo, ela coexiste no mesmo espaço. ” Levando-se em consideração esses aspectos


G N A R U S | 98 veremos que para conseguir que a discriminação acabe e não só diminua precisamos encontrar uma forma de conscientizar, de fazer os demais entenderem que não é porque não conhecem que a religião do outro está errada e a sua religião é o caminho da verdadeira fé, se somos brasileiros e somos reconhecidos como tal por outros, logo somos identificados pela mistura de todos os povos, culturas e religiões que habitam este país. Todas essas diferenças deveriam nos tornar mais tolerantes uns com os outros e não o contrário, elas deveriam nos unir e não nos separar. Daiana Ximenes de Menezes é licenciada em História pela Universidade Estácio de Sá pós-graduanda em História e Cultura Afrodescendente pela PUCRio. Cristiane Chaves de Oliveira é licenciada em História pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduanda em História do Brasil Contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá.

Referências bibliográficas: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Record, 2001.Erro! A referência de hiperlink não é válida. Acesso em 03/08/2015. http://youtu.be/_scqR6kuyeU. Acesso em 03/08/2015. http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologica

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G N A R U S | 99

Artigo

PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO: O IMPACTO SÓCIO RELIGIOSO NA CULTURA BRASILEIRA SEC. XVI Por: Luana Batista dos Santos

Resumo O Brasil colonial se tornou abundante em práticas religiosas diferentes do que pregava o catolicismo oficial. Os traços europeus, africanos e indígenas, remodelaram o cenário religioso, trazendo consigo espiritualidades diversas na dinâmica social da colônia, o hibridismo cultural passou a fazer parte do cotidiano dessa população, as práticas indígenas fundiram-se com as católicas, ritos e mitos africanos aliaram-se a religião oficial, tradições judaicas que haviam sido incorporadas pelo catolicismo europeu, permaneceram e cresceram na colônia portuguesa.1 O nosso objeto de estudo percorre sobre um personagem emblemático, um senhor de engenho chamado Fernão Cabral de Ataíde, de estatuto social cristão-velho, nascido em Silves (Portugal), fidalgo, casouse com Dona Margarida da Costa de estatuto social cristã- velha, e se tornou um dos grandes senhores de engenho, do Recôncavo Baiano da geração quinhentista. Fernão Cabral nos presenteou com um dos melhores indícios com a chegada da primeira Visitação do Santo Oficio que são os processos inquisitoriais que surgiram por causa da aceitação do novo sincretismo indígena, resultado este ocasionado pela reação de reforma do catolicismo e sua ampliação além-mar, que foram praticadas através do padroado2, foram os jesuítas os principais responsáveis pela expansão da fé, ensinamentos passados através da catequese, Pero Vaz de Caminha no dia cinco de maio de 1500 relata em uma carta3 para D.Manuel que o grande elemento motivador para a colonização do Brasil, seria levar a fé católica para os habitantes aqui encontrados.4

“A Inquisição foi uma instituição repressiva, de extermínio, própria de um regime político totalitário. Hoje o mundo sofre ameaças do fundamentalismo, do fanatismo, e isso é preocupante para o futuro da

MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1896. P. 93-97. tema em questão o padroado funcionou através dos mandos e desmandos do Rei, ele quem decidia qual ordem religiosa se estabeleceria na colônia, no caso do Brasil colonial, os jesuítas vieram neste primeiro momento de povoamento, alem de catequizar os índios tinham um papel de colonizador. “Explicação retirada do dicionário do Brasil colonialRonaldo Vainfas.” 3 ANTT, Carta de Pero Vaz de Caminha, 01/05/1500. Código PT/TT/GAV/8/2/8. 4 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2000. P. 26. 1

2Ao


G N A R U S | 100

humanidade. Conhecendo o passado histórico, talvez os homens se conscientizem dos perigos que corremos.” 5

Teoria e metodologia utilizada

P

ara

desenvoltura

trabalharemos

três

como suas estratégias, percebendo os indivíduos deste

artigo

conceitos

da

historiografia: Hibridismo cultural, micro-

alcançarmos

“hibridismo

o

cultural”,

conceito onde

da

tempo histórico determinado. Como a meta é a redução de escala poderá ser alvo de análise um determinado grupo ou indivíduo e ressalta o ganho

analise e analogia de processos inquisitoriais. Para

que estão atrelados ao seu objeto de pesquisa no

teoria

historiadores

contemporâneos como Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas concluíram ao término dos seus objetos de pesquisa, utilizaremos a obra de Peter Burke com o título de “Hibridismo cultural”. Segundo Peter Burke a teoria de hibridização cultural, no caso deste objeto de estudo, em que a missão da reforma católica estende seus braços sobre a América portuguesa, seria axiomático quando o indivíduo obrigatoriamente larga sua primeira religião e se torna um recém converso e muitas vezes fazendo uma fusão de duas

que se tem, quando a busca por indícios do seu objeto de pesquisa é realizada em arquivos.7 O terceiro e ultimo conceito foi retirado do capítulo VII – “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas implicações”. De acordo com o historiador Carlo Ginzburg, são através destes arquivos-processos inquisitoriais, que podemos destacar um grande número de informações riquíssimas para o resultado do objeto de estudo, e em contrapartida, explana o cuidado que se deve ter em fazer uma análise desse tipo de fonte, pois o inquirido sofria uma coação psíquica e física por parte do inquiridor. 8

religiosidades, delineando não só como um acréscimo ou uma metamorfose cultural, mas também enfatizando que este tipo de prática traz danos ao indivíduo porque ele se estorva de sua prática cultural inaugural.6

concentra-se na micro- análise, de acordo com o Ronaldo

Vainfas

Segundo a historiadora Laura de Mello e Souza, Fernão Cabral de Ataíde permitiu em suas terras o culto sincrético indígena, onde se mesclava hábitos

O conceito metodológico utilizado neste artigo historiador

Study case

no

livro

“Os

indígenas e católicos, sendo ele, um dos pioneiros aqui na colônia a utilizar essa permissão da fusão religiosa como técnica de controle social.9

Protagonistas Anônimos da História” a microhistória enquanto método tem a responsabilidade de descortinar as relações sociais e culturais, bem Entrevista concedida para RHBN pela Profª. Anita Novinsky da USP, em 10/2011, Rio de Janeiro, RJ. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Rio Grande do Sul, Unisinus, 2010, PP 17-18. 7 VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da historia: micro-história. Rio de janeiro: Campus, 2002. PP.114116. 8 Ginzburg, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel: Rio de Janeiro, Bertrand, 1989, PP. 206-207. 9 MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1896. PP.93-95. 5 6


G N A R U S | 101 O historiador Ronaldo Vainfas em seu Livro

De forma que é difícil ter a exatidão de datas do

“Heresia dos Índios” também analisou o caso da

surgimento até a sua completa destruição do

“santidade de Jaguaripe”, relata que a intenção do

sincretismo indígena, é possível trabalhar apenas

senhor de engenho, era de manter o controle social,

com estimativas de 1580 a 1585, foi quando parte

além de, arrebanhar mais índios para seus domínios,

da santidade se deslocou para o engenho de Fernão

fossem os forros que estavam sob domínios da

Cabral, e perdurou aproximadamente entre cinco e

ordem jesuítica ou aqueles que viviam sob os

seis meses, até que o governador Manoel Teles

domínios de outros senhores de engenho, mesmo

Barreto, ordenou a completa destruição da igreja

que fosse para seu beneficio momentâneo, o que os

indígena, ainda emitiu uma certidão que isentava o

indícios apontam

senhor

do

é que essa atitude

engenho

de

culminou

Jaguaripe de suas

em

vários

efeitos,

culpas,

pois

Fernão

importante

Cabral passou a

ressaltar que com

referenciar

a

os

“ídolos

sendo

chegada

da

primeira comitiva

indígenas”

para

conquistar

a

inquisitorial,

a

igreja indígena, já

simpatia dos seus

havia

sido

seguidores, e isso

aniquilada

das

gerou

terras

um

tremendo

Jaguaripe.

desconforto com os senhores de engenho das proximidades e com os próprios jesuítas, pois muitos foram dizimados ao prejuízo com a fuga de seus escravos ou no caso dos jesuítas os forros, para o engenho de Jaguaripe. Sendo um equívoco pontuar que os integrantes que faziam parte do novo sincretismo eram apenas fugitivos, alguns obtiveram a permissão dos seus senhores, e de acordo com o autor Ronaldo Vainfas houve casos de aceitação de Africanos, mamelucos e os próprios portugueses.

de

A

10

primeira

comitiva oficial do Santo Ofício chegou à Bahia em nove de junho de 1591, conduzida pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça, o meirinho Francisco Gouvêa e o notário Manoel Francisco. Depois das apresentações, recebidas todas as honrarias de funcionários régios e eclesiásticos, no dia 22 de julho foi feita a leitura do edital da fé e o monitório da inquisição, dando trinta dias para os moradores da Bahia se confessar e denunciarem os pecados, com discurso de ter a misericórdia e bens não confiscados.11

VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. PP. 76-98. 10

VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. PP.17-20. 11


G N A R U S | 102 No tocante do início dos dias de graça tão logo

falecido governador Manoel Teles Barreto dizia

surgiram denúncias contra Fernão Cabral e seu

todos os serviços prestados a coroa em aniquilar a

envolvimento com a chamada “abusão gentílica”,

dita “erronia gentílica”, documento este oficial,

os primeiros a formalizarem suas queixas foram

pedindo ao visitador que transladasse.13 Em suma,

Domingos de Almeida e Pero Novais, o primeiro

parte desta confidência não condiz com o conceito

simplesmente apontando que “ouvira dizer” e o

de veracidade dos fatos, sendo evidenciado que

segundo sendo um senhor de engenho, obteve uma

Fernão Cabral mentiu para Heitor Furtado de

autorização de Fernão Cabral, para visitar na época

Mendonça. Em uma parte da sua confidencia

a dita “igreja indígena”, ou seja, testemunha de

Fernão Cabral relata:

presente12.

“E que à sua noticia veio que algumas pessoas dizem que ele confessante,quando entrou na dita chamada igreja, fizera reverência e tirara o chapéu ao dito ídolo, porém que ele confessante em sua memória não se afirma que tal fizesse, mas em caso se ache que o fez pede perdão disso, e assim o pede de toda a mais culpa que neste caso cometeu como dito tem”14

Três dias após as primeiras denuncias, no dia 02 de agosto de 1591, Fernão Cabral de Ataíde compareceu ao Santo Ofício para fazer sua confissão, assim se prevalecendo dos trinta dias de misericórdia concedidos pelo visitador. Em sua confissão Fernão Cabral admitiu que

O senhor de Jaguaripe durante sua confissão

aceitou uma parte dos seguidores do sincretismo

também resolveu falar sobre uma de suas escravas

indígena, e que mandou uma expedição para o

que se chamava Isabel, que por motivo banal,

sertão atrás do restante dos adeptos que lá

mandou seu feitor e seu escravo atearem fogo nela,

estavam, e do cairaba-mor que se chamava

tratou de relatar o acontecido que não competia ao

Antônio, intitulado o “papa” da santidade indígena,

Santo Oficio julgar. Ao que se sabe, Isabel contou

a expedição foi chefiada pelo mameluco Domingos

um segredo amoroso de Fernão Cabral para sua

Fernandes Nobre e que tudo isso ele fez a mando

esposa D. Margarida. E este fato de incendiar a

do governador da época Manoel Teles Barreto,

escrava viva, tomou uma grande proporção na

perpetuando

meses

Bahia, pois Isabel estava grávida.15 Mais uma vez

aproximadamente, logo após este período ele

preferiu por omitir sua culpa. Fernão Cabral antes

mandou derrubar a igreja indígena que havia sido

da chegada da comitiva inquisitorial agia conforme

construída em suas terras e entregou ao governador

a maioria dos senhores de engenho e escravocratas

em

torno

de

três

uma “gentia” que atendia pelo nome de “Mãe de Deus”, o seu marido e todos os escravos que ali estavam, e para confirmar a versão de sua confidência , apresentou para o visitador uma certidão, que abonava sua conduta, onde o já

VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 188. 13 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit.PP. 188-189. 12

VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. P.65. 15 VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 93. 14


G N A R U S | 103

em épocas quinhentistas, como se a própria lei

denúncias para o visitador. Fernão Cabral foi pego

fossem eles em seus domínios. Segue um trecho do

tentando fugir para Lisboa em setembro, foi preso

relato de Fernão Cabral ao visitador Heitor Furtado:

e ficou sobre cárcere do Santo Ofício, onde era

“E outrossim, confessando, disse que uma noite, estando uma sua negra inchada de comer terra e quase para morrer, por fazer medo e terror aos outros que não comesse terra, disse a dois negros seus que a botasse na fornalha e, depois dele recolhido, os ditos negros a lançaram na fornalha onde se queimou.”16

localizado o colégio dos jesuítas. Foi somente após sua prisão, que se deu seqüência a maior parte das confissões daqueles indivíduos que estiveram de alguma forma, envoltos com o sincretismo tupi, a começar pela sua esposa Dona Margarida da Costa no dia 30 de outubro. Fernão Cabral perdurou quase um ano sobre cárcere da visitação do Santo

Ao fim de sua confissão Fernão Cabral, pediu misericórdia, jurou segredo e assinou. Certo estava o senhor de Jaguaripe que sua situação iria se complicar, pois havia ganhado vários inimigos por conta da “santidade”, logo não tardariam as VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. PP.65-66. 16

Oficio, foi inquirido outras vezes, ate que ele fizesse um exame de consciência, se redimisse, ou estivesse apavorado com aquela situação e assumisse todas suas “culpas”, de certo que o grande senhor do engenho de Jaguaripe após esses meses, após essa


G N A R U S | 104 coação psicológica de interrogatórios estaria

inquisitorial recebeu e estava apta a julgar, 38 se

abalado e toda sua arrogância não perdurariam.17

dirigiram a Fernão Cabral, relativos ao seu

Alguns processos inquisitoriais atrelados a este cotidiano social dos primeiros séculos do Brasil colonial, ligados a Fernão Cabral e ao hibridismo cultural indígena, nos apontam para a incapacidade do visitador Heitor Furtado de Mendonça, para interrogar esse tipo de sincretismo. Podemos observar com o processo de Gonçalo Fernandes, de estatuto social cristão-velho/mameluco, no dia 13 de janeiro de 1592:

“(...) E com estes da dita freguesia de Paripe ele denunciante se ajuntou, e por espaço de dois meses pouco mais ou menos fez com eles as ditas cerimônias, tomando os ditos fumos e falando a sua linguagem e crendo que era a verdade o que eles diziam e que vinha o seu Deus, e tendo fé na dita idolatria e abusão, assim como os ditos mantedores dela, parecendo-lhe ser certo e bom o por eles dito daquela sua santidade. (...)” 18

envolvimento com o novo sincretismo indígena19. Certamente, não poderia deixar de citar neste artigo uma confissão onde claramente podemos observar

o

seu

depoente,

denunciando

o

comportamento de Fernão Cabral ao Visitador Heitor Furtado. Esta Confissão trata-se de um dos trabalhadores do engenho de Fernão Cabral, chamado Cristovão de Bulhões, estatuto social cristão-velho/ mestiço, no dia 20 de janeiro de 1592 segue parte da sua confissão:

“(...) E também aí viu a Fernão Cabral de Taíde reverenciar e abaixar a cabeça ao dito

Ele Relata também que pediu a autorização para Fernão Cabral para ir ao sertão juntar-se com Fernandes Tomacaúna encontrar com a “dita abusão”, e junto com a licença e as cartas, o senhor do engenho de Jaguaripe deu-lhe um pouco de farinha, e adentrando pelo sertão, ficou perdido e

ídolo e assim também viu a Francisco d´Abreu, casado e morador em Tassuapina, e a Simão da Silva, sobrinho de Manuel Teles, que foi governador deste estado, que se foi para o Reino, fazer as ditas reverências ao dito ídolo, e assim fizeram na fazenda de Fernão Cabral as ditas reverências e idolatrias os mesmos da companhia acima nomeados(...)”20

retornou para casa. No decorrer da confissão, Heitor Furtado o questiona: Como poderia Gonçalo Fernandes se dizer cristão e acreditar que Cristo viria na “dita abusão” transformar os “brasis em senhores” e “os brancos escravos”! Isso não haveria o menor sentindo. E de acordo com uma fabulosa pesquisa feita pelo historiador Ronaldo Vainfas, de 212 confissões sobre os principais crimes que a comitiva VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 189-193. 18 VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 184. 17

Em síntese os processos inquisitoriais que surgiram através do sincretismo indígena, nos deixam evidências das tensões causadas na

VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 187. 20 VAINFAS, Ronaldo (ORG). Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 221. 19


G N A R U S | 105 sociedade através da figura do visitador, causando

Ao que se refere o sincretismo indígena não

assim um mal-estar entre senhores de engenho,

poderia deixar de mencioná-lo, até porque o

brancos e mamelucos ate mesmo dentro dos

principal alvo deste artigo se concentrou em

próprios grupos de riquezas e poder na colônia do

explicar as influências culturais que se fundiram no

primeiro século.

Brasil colonial, os principais membros do “clero da

A mesa do despacho se reuniu no dia 20 de agosto de 1592, presidida por Heitor Furtado de Mendonça e contando com a presença de Fernão Cardim, Antonio Barreiros, Marçal Beliarte, todos julgaram a atitude de Fernão Cabral grave, porque ele aceitou e colaborou com a “dita santidade” em seu engenho. Conceberam também, que a intenção dele, não era de errar contra a fé católica, pois acreditavam que por se tratar da sua pureza de sangue e ser um nobre da terra, isso suavizava seus

santidade” foram presos e enviados para Portugal, quanto à igreja indígena destruída, os escravos fugitivos devolvidos aos seus senhores, e o mesmo aconteceu com os forros do aldeamento jesuítico. Ao que é relativo à santidade máxima que foram buscar no sertão o chamado “papa” Antônio, Ronaldo Vainfas fez um debate historiográfico de vários autores e sendo impossível se alcançar o conceito de verdade, as principais hipóteses debruçam sobre:

“(...) Teles Barreto, o papa permaneceu vivo, mas a santidade fora destruída por mérito de seu Fernão Cabral. Na dos Jesuítas, o papa fora justiçado pelos próprios índios, como falso mártir de uma seita diabólica: vitória da verdadeira fé, simbolizada no castigo exemplar do heresiarca indígena.” 23

erros. E optaram por uma sentença benevolente. Para satisfação dos seus inimigos Fernão Cabral ouviu sua penitência na Sé de Salvador em público, foi sentenciado a viver por dois anos fora da Bahia, recebeu penitências espirituais e pagar o valor de vinte escravos africanos para o Santo Ofício.21 E para completar nosso estudo de caso, cabe descortinar audácia que teve o grande senhor de Jaguaripe, na época do degredo quando já estava em Portugal, Fernão Cabral queria recorrer da

Conclusão

sentença no Conselho Geral do Santo Oficio ao qual

Em síntese, o que deveria ter servido como um

chegou uma carta para o visitador Heitor Furtado

exemplo culminou em várias rebeliões no

de Mendonça em 1594, quando estava inquirindo

Recôncavo Bahiano. Foi neste cenário do período

em Olinda, uma solicitação de uma cópia do

da primeira Visitação do Santo Ofício, que os

processo inquisitorial, pedindo que transladasse e

documentos nos deixam indícios por parte dos

de acordo com a hipótese do autor Ronaldo

confidentes, mediante suas confissões ou delações

Vainfas, que o único motivo plausível para tal

ao visitador, uma conduta mediada através do

atitude seria que, Fernão Cabral gostaria de reaver

pânico ou por mostrar cooperação, podendo assim,

a multa que Havia pagado ao tribunal.22

camuflar suas transgressões. Em síntese, este objeto de pesquisa pretende também salientar que a

21 22

VAINFAS, Ronaldo. Op.cit.p 63. Idem, PP. 214-217.

VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, PP .220-221. 23


G N A R U S | 106 comitiva de Heitor Furtado de Mendonça, assegurou uma desorganização, dos laços de amizade e de reciprocidade entre vizinhos, contribuindo para desunir parentelas ou um conjunto de pessoas que faziam parte do mesmo ambiente social.24

Este artigo priorizou em

pesquisar o primeiro século da América Portuguesa, bem como as repressões sociais e culturais, ao qual se moldou a religiosidade multifacetada da America Lusa, elucidando assim a intolerância como principal tema de um regime político totalitário. Luana Batista dos Santos é Graduada e licenciada em História pela Faculdades Integradas Simonsen.

Bibliografia: Fontes Primárias: Arquivo Nacional da Torre do Tombo: Carta de Pero Vaz de Caminha, 01/05/1500. Código PT/TT/GAV/8/2/8. PROC. 17065, sentença. Fernão Cabral de Ataíde. PROC. 17762, sentença. Gonçalo Fernandes. PROC. 7950, sentença Cristovão de Bulhões. Artigo: NOVINSKY, Anita. A nova geração pesquisa a História desse tribunal corrupto. IN: Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 2011. Fontes secundárias: BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Rio Grande do Sul, Unisinus, 2010. GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, Bertrand, 1989. MELLO E SOUZA, Laura. O diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia das Letras, 1896. VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

24

VAINFAS, Ronaldo. Op.cit.p25-29.

VAINFAS, Ronaldo. Heresia dos Índios: Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da historia: micro-história. Rio de janeiro: Campus, 2002. VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, Sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2000.


G N A R U S | 107

Artigo

GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO NA AMÉRICA LATINA: LIMITES ENTRE TEORIA E PRÁTICA Por: Marco Antonio Correia de Carvalho

RESUMO O presente artigo visa analisar as características centrais do fenômeno conhecido como globalização e da ideologia do neoliberalismo até o seu enraizamento e desenvolvimento na América Latina no século XX. Destacaremos também o protagonismo dos Estados Unidos nesse processo, como um dos baluartes dos preceitos neoliberais na tentativa de restabelecer a sua hegemonia na região, a partir do chamado “Consenso de Washington”. Palavras-chave: Globalização, Neoliberalismo, América Latina, Consenso de Washington. ABSTRACT This article aims to analyze the central features of the phenomenon known as globalization and the ideology of neoliberalism until its implementation and development in Latin America in the 20th century. Highlight also the role of the United States in this process, as one of the bastions of liberal principles in an attempt to re-establish its hegemony in the region, from the so-called "Washington Consensus". Keywords: Globalization, Neoliberalism, Latin America, Washington Consensus.


G N A R U S | 108

A países

globalização é um processo que objetiva transformar o mundo em um grande mercado e uniformizar as economias dos

segundo

o

modelo

imposto

pelo

neoliberalismo. Para Alessandro André Leme1, a busca de inteligibilidade ao neoliberalismo e a globalização vão além da capacidade de defini-los, pois perpassam a capacidade de identificá-los na maneira em que esses processos são incorporados e na forma que influenciam as orientações políticas e econômicas dos países. Dessa forma, cabe aqui, primeiramente, fazermos um breve levantamento sobre a história desses dois processos para que seja possível perceber em que medida e extensão os mesmos se aproximaram e se desenvolveram ao longo do século XX no mundo e, especialmente, na América Latina. Após quase 50 anos de hegemonia, o “Welfare State”, em 1970, passou a mostrar sinais de exaustão em função dos novos problemas que começaram a surgir no período, como: a recessão econômica, a desaceleração do crescimento, crise fiscal nos Estados, etc. Nesse momento, a conjuntura favoreceu o surgimento de novos teóricos, que adotando a perspectiva liberal, percebiam no liberalismo econômico a válvula de escape para superar a crise. “É este novo (velho) ideário liberalizante que surge como a (única)

do consumo – pois percebe o Estado como a fonte de toda coerção e associa ao mercado, à liberdade. Essa ideia do mercado associado à liberdade passa a ser uma das bases do pensamento neoliberal, porque este seria “(...) o espaço natural pelas quais as liberdades individuais ocorreriam e tenderiam ao equilíbrio. Pra que essas duas características sejam realmente efetivadas o Estado não deveria influenciar nem intervir no jogo de mercado”. 3 A partir dos anos de 1980, essas ideias passaram a influenciar os governos de Ronald Reagan (EUA) e de Margaret Thatcher (Inglaterra), combatendo a ação dos sindicados e flexibilizando os mercados. Os efeitos “positivos” verificados no período transformaram os Estados Unidos e a Inglaterra em exemplos a serem seguidos em diversos países e regiões diferentes, como na própria América Latina. Assim,

solução a crise econômica. Daí a ascensão teórica

O Neoliberalismo, nessa nova forma com que aparece, apresenta a fábula do ‘único caminho possível’ para a história econômica acontecer (...) e, no entanto, não se deve perder de vista que o neoliberalismo e o processo de globalização (como o veiculado pelos discursos hegemônicos) seriam partes constituintes dessa mesma ‘fábula’4.

de um monetarismo como sendo a nova face dos neoclássicos”.2 Esse monetarismo, ainda segundo Alessandro André Leme, se contrapõe a perspectiva do “Estado de Bem-Estar Social” - que elogiava a intervenção governamental na economia, as políticas sociais voltadas para o pleno emprego e a democratização

LEME, Alessandro André. Neoliberalismo, globalização e reformas do estado: reflexões acerca da temática . 1

Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n. 32, jun. 2010, p.114.

2

LEME, 2010, p. 121.

Ibidem, p. 122. 4Ibidem, p. 124. 3


G N A R U S | 109 Essa íntima relação entre neoliberalismo e globalização foi percebida também por Milton

verdade, não desaparece, mas se fortalece para atender os interesses internacionais e financeiros.

Santos,5 que a entende como o ápice do processo

Assim, para ultrapassar a fantasia é preciso

de internacionalização do mundo capitalista. Essa

enxergar o mundo como ele é – o lado perverso da

tendência a uma economia mundo já era possível

globalização – caracterizado pelo desemprego

de ser observada desde século XIX, através da

crescente e aumento da pobreza, pela classe média

expansão do capital financeiro e pela divisão

perdendo em qualidade de vida, pelo aumento da

internacional do trabalho. Mas, foi apenas no

mortalidade infantil e pela inacessibilidade de uma

século XX que esse processo se acentuou,

educação de qualidade para todos. Dessa forma,

ganhando

avanços

“alastram-se e aprofundam-se males espirituais e

tecnológicos em diversas áreas - que possibilitaram

morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção

a circulação mais intensa de capitais e mercadorias

(...) todas essas mazelas são direta ou indiretamente

pelo planeta; e com a criação da Internet -

imputáveis ao presente processo de globalização”7.

interligando pessoas e países a “rede” mundial de

Mas, é possível pensar em um mundo diferente,

novos

contornos

pelos

computadores.

globalizado de uma forma mais humana –“o mundo

A partir desse ponto, as mudanças ocasionadas pelo

advento

da

globalização

como pode ser”.

Alguns fatores poderiam

alteraram

colaborar para tal objetivo: o contato cultural entre

significativamente as relações econômicas, sociais

povos distintos, produzindo um novo discurso

e políticas criando uma conjuntura favorável à

crítico, possibilitaria o surgimento de uma outra

hegemonia e a padronização cultural6. Daí decorre

globalização, voltada para a solução dos problemas

a crítica de Milton Santos em afirmar que esse novo

apresentados acima em detrimento do atual estado

mundo globalizado tem por característica principal

de exclusividade e supremacia dos interesses

uma existência trina: a globalização enquanto

econômicos.

“fábula” (aquilo que nos fazem acreditar –

Entretanto, essa supremacia do capital ainda se

encucando falsas verdades); a globalização como

faz

presente

e,

“perversidade” (aquilo que ela é – a disparidade do

submetendo

processo que ao invés de unir, exclui) e, por “uma

artificializando as relações sociais e excluindo as

outra globalização” (aquilo que ela pode se tornar).

populações mais vulneráveis. David Harvey8, por

A “fantasia”, nesse fenômeno, para Milton Santos,

seu turno, salienta que a supremacia dos interesses

reside no momento em que se toma como verdade

econômicos também é uma barreira difícil de ser

um conjunto de ideias que não se sustentam por si

superada, pois a mesma está intimamente ligada ao

só, caso dos termos “aldeia global” – onde, em

projeto neoliberal que se transformou na diretriz

teoria, o mercado teria o poder de homogeneizar o

central de quase todos os países (por escolha,

planeta, mas, na prática, aprofunda as diferenças

imposição ou adaptação de alguns dos seus

locais; e a tese da “morte do Estado” – que, na

preceitos) a partir dos anos de 1970, retirando e/ou

os

por

consequência, interesses

acaba

nacionais,

diminuindo também funções do Estado (no que Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de 5SANTOS,

Janeiro: Record, 2000, p.12. 6 LEME, op.cit., p. 126.

SANTOS, 2000, p. 10. David. O Neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008. 7

8HARVEY,


G N A R U S | 110 tange ao bem-estar social, por exemplo). Segundo

indivíduos melhor informados podem adquirir

o autor, essa doutrina, originalmente, parte do

vantagens que lhes garantam mais poder. E, por fim,

princípio de que o bem-estar do ser humano só

quando diante de movimentos coletivos que

seria alcançado de maneira efetiva se os indivíduos

possam intervir no mercado e na ordem das coisas

tivessem resguardados seus direitos a liberdade e a

ou colocá-lo em risco, o Estado neoliberal intervém

propriedade privada, e se tivessem a possibilidade

dissuadindo movimentos contrários pela via

de

pacífica

desenvolverem

as

suas

capacidades

(utilizando-se

da

propaganda,

por

empreendedoras no livre mercado. Já ao Estado

exemplo) ou pela autorização do uso da força (pelo

caberia o papel de intervir o mínimo possível na

poder de polícia). Assim,

economia e preservar um ambiente propício para o funcionamento pleno dos mercados, favorecendo a mobilidade do capital entre países e regiões diferentes. O tripé privatização – passagem de antigos setores do Estado para as mãos da iniciativa privada; desregulação – remoção de entraves burocráticos; e competição – entre indivíduos, regiões, empresas, cidades - auxiliariam em tais objetivos. Dessa forma, a globalização se liga a orientação neoliberal porque transforma a autonomia nacional

(...) o neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo. O processo de neoliberalização, no entanto, envolveu muita ‘destruição criativa’, não somente dos antigos poderes e estruturas institucionais (chegando mesmo a abalar as formas tradicionais de soberania do Estado), mas também das divisões do trabalho, das relações sociais, da promoção do bem-estar social, das combinações de tecnologia, dos modos de vida e pensamento (...).

em dependência, principalmente financeira9. Contudo, essa interpretação neoliberal possui

Na América Latina, esse padrão neoliberal de

entraves, abrindo brechas para críticas a sua

desenvolvimento,

segundo

Carlos

Eduardo

aplicação. Destacam-se aqui as principais: em

Martins11, teve início nos anos setenta a partir das

primeiro lugar, a competição tão elogiada por essa

experiências no Chile, Argentina e Uruguai,

perspectiva, várias vezes resultou em monopólios,

avançando em três grandes fases: A primeira, nos

pois “(...) as empresas

anos de 1980 – quando os

mais

vão

Estado Unidos, em crise,

expulsando do mercado

escoaram os excedentes

empresas mais fracas” 10.

da economia mundial e

Além disso, acredita-se

não ofereceu nenhum

que todos os indivíduos e

tipo de organização da

empresas atuantes no

divisão do trabalho ou um

mercado têm o mesmo

projeto

de

acesso a informações,

desenvolvimento

da

mas na realidade os

região. A segunda, em

9

fortes

LEME, op.cit., p. 128. HARVEY, 2008, p. 77.

10

Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo, Boitempo 11 MARTINS, Carlos Eduardo.

Editorial, 2012, p. 313.


G N A R U S | 111 1990 – sob a influência do “Consenso de Washington”, desenvolveram

em

que

um

os

(...) a dívida externa, mediante a liderança do SELA, do Grupo de Cartagena e de um ativo papel de Cuba nesse processo. Brasil e Argentina, através do governo Sarney e Alfonsín, estabelecem as bases de um acordo de integração econômica que priorizou setores estratégicos, buscando a integração do segmento de bens de capitais, a cooperação científica e nuclear e mercados para a produção de trigo. Os Estados Unidos assistem a esse processo durante grande parte da década de 1980, sem muita condição de reverter. Eles retornarão a iniciativa a partir de mudanças em suas políticas públicas.14.

norte-americanos

projeto

de

inserção

internacional da América Latina. E, a terceira, na primeira década dos anos 2000 – quando o projeto neoliberal se modificou em resposta a ascensão econômica chinesa e ao avanço do antineoliberalismo

“(...)

que

adaptam

a

macroeconomia neoliberal à políticas externas independentes e sociais compensatórias”12. O neoliberalismo, enquanto instrumento ideológico foi utilizado para tentar contornar a crise de competitividade pela qual os Estados Unidos passavam - haja vista que se tornaram captadores da poupança internacional pelos déficits em sua conta corrente, a partir dos anos de 1970. Assim, tal como Carlos Eduardo Martins, notamos que essa crise de hegemonia norte-americana começou pela economia, fazendo-os se voltar para os países latino-americanos para conseguir:

(...) reduzir seus déficits comerciais com o mundo por meio da conquista de saldos comerciais com a América Latina; criar as condições para que investimentos venham a auferir rendas e incorporar ativos através da especulação e da barganha; e baixar ao mínimo as restrições à circulação de mercadores e capitais, viabilizando uma reorganização da divisão do trabalho regional que reduza os custos de produção e aumente a competitividade de suas empresas13.

O “Consenso de Washington” representou a retomada dessa iniciativa estadunidense em face da questão do desenvolvimento latino-americano, objetivando a elevação das taxas de crescimento econômico; ingressos de capitais estrangeiros e aumento da competição – com o consequente aumento da produtividade. Para Alessandro André Leme15, isso correspondeu a um dos marcos principais da influência do neoliberalismo na América Latina porque essas reformas exigiram novos arranjos político-institucionais visando à aproximação das esferas nacionais com a esfera global

“(...) sob a forma de organização e de integração dos mercados (...) não mais sob a regulação dos Estados Nacionais, mas, sim, numa lógica espacial multilateral ensejando um ‘Estado mínimo’”16.

Esse estado deveria ser mínimo quanto à Entretanto, na década seguinte, os Estados Unidos não conseguiram oferecer um projeto viável que pudesse expandir as economias latinoamericanas. Dessa maneira, os países da região se

intervenção e forte, no que tange proteção das liberdades do mercado e do seu alcance. Porém, o que se viu na prática não correspondeu às expectativas.

uniram para pensar em alternativas, como a

(...) os resultados alcançados foram profundamente medíocres. O crescimento

renegociação das dívidas externas.

MARTINS, 2012, p. 314. MARTINS, op. cit., p. 316. 14Ibidem, pp. 317 -318.

LEME, op. cit., p.129. Ibidem, p.130.

12

15

13

16


G N A R U S | 112

do PIB per capita não se sustenta e leva à crise e estagnação entre 1998 e 2003. As ilusões de consumo e de aumento do poder de compra dos trabalhadores estabelecidas pela supervalorização das moedas são revertidas e levam à deterioração dos níveis salariais que se combinam com o aumento do desemprego e da pobreza. Ao mesmo tempo se elevam o endividamento externo, a desnacionalização e a destruição dos segmentos de maior valor agregado da região, impulsionando a deterioração dos termos de troca17.

troca, da demanda interna, os nacionalismos e a mobilização das massas, que possibilitaram a crítica das exigências do capital, em um período de enfraquecimento das oligarquias19. Dessa forma,

Produzem-se inflexões significativas no modelo político da democracia burguesa, como nos casos de Venezuela, Bolívia e Equador, que instituem mecanismos de democracia direta e possibilitam em uma base institucional à mobilização popular para sustentar as políticas públicas antioligárquicas. Tais processos se desenvolvem sob fortes conflitos sociais e políticos, não tendo nesse, em função da drástica desmoralização de sua liderança, as oligarquias e o grande capital capacidade de extirpar tais experiências por golpes civismilitares. Para isso teriam de esperar o fracasso de legitimidade dessas experiências, para o que conspiram através dos terrorismos ideológico, econômico e político20.

A partir daí, já no final dos anos de 1990, mais uma vez, a hegemonia norte-americana passava por uma severa crise de legitimidade frente às burguesias nacionais que a ela se vinculam. Essa crise atingiu especialmente as relações de dependência entre o capital estrangeiro e o capital nacional. “Esse capital já é, desde o seu nascedouro, dependente e dirige o Estado como instrumento de negociação e conciliação de interesses”.18 Mas, com a afirmação do neoliberalismo na América, segundo Carlos Eduardo Martins, se torna obsoleta as bases desse

CONSIDERAÇÕES FINAIS

compromisso. A partir daí, são destruídas as

Objetivamos com esse estudo analisar os

estruturas produtivas das burguesias nacionais, que

conceitos de globalização e neoliberalismo à luz

são desnacionalizadas ao passo que se restringe a

das suas implicações nas relações econômicas,

iniciativa do Estado nacional, submetendo-o ao

sociais e políticas na América Latina ao longo do

“mercado global”. A consequência principal de tal

século XX, destacando a mudança na orientação

movimento é a perda da autonomia burguesa

político-econômica na região promovida pelo

frente ao desenvolvimento das forças produtivas.

renascimento neoliberal, levando a derrocada do

Com isso, a conjuntura latino-americana passou

preceito keynesiano do “Estado de Bem-Estar

por um momento em que se aplicam políticas

Social”, a partir do elogio do mercado enquanto

voltadas à “terceira via” (Brasil, Uruguai e Chile) ou

“lócus” perfeito das liberdades e da diminuição da

a nacionalismos moderados (Argentina) com o

intervenção do Estado na economia.

redirecionamento do comércio latino-americano

Também destacamos o papel da globalização

em direção à China, na metade dos anos 2000,

nesse processo, pois a mesma acabou por

contribuindo para a sua expansão econômica

reverberar esses preceitos neoliberais pelo mundo,

visando à reconstituição do poder burguês. A essa

após o êxito dos governos de Ronald Reagan e

realidade, se somou a melhora das relações de MARTINS, op. cit., p. 318. Ibidem., p. 319.

Ibidem., pp. 319 - 320. MARTINS, op.cit., p. 322.

17

19

18

20


G N A R U S | 113 Margaret Thatcher, elevando-os a categoria de

objetivo ser alcançado será necessário superar

“única

latino-

alguns dos traços mais marcantes do processo de

americanos, se quisessem se integrar ao mercado

globalização e do neoliberalismo: a dependência, a

global. Esse receituário tomou forma nas medidas

desigualdade e a assimetria de desenvolvimento.

do chamado “Consenso de Washington”, imposto

Só então, a integração regional soberana terá lugar,

como

algo que se choca diretamente com a ordem atual

saída

possível”

“(...)

aos

orientação

Estados

político-econômica

dominante na década de 90 para os países em desenvolvimento”.21 Mas,

tal

como

Carlos

Eduardo

Martins,

percebemos que mesmo depois dessa fase e após o período de crescimento verificado na metade dos anos 2000, promovido pela guinada à esquerda, ao nacionalismo e a “terceira via”, se faz necessário à construção de um novo padrão de desenvolvimento

das coisas. Marco Antonio Correia de Carvalho é graduado em História – Licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – Instituto Multidisciplinar (UFRRJ-IM). Atualmente, é Bolsista de Treinamento e Capacitação Técnica IV da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) no projeto O Testemunho como Janela, coordenado pelo professor Doutor Marcos Luiz Bretas da Fonseca (Instituto de História – UFRJ).

para a América Latina, com foco na distribuição de renda, articulando crescimento com equilíbrio interno e ecológico a partir de uma integração latino-americana baseada no planejamento e na razão. Dito isto,

HARVEY, David. O Neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008. LEME, Alessandro André. Neoliberalismo,

globalização e reformas do estado: reflexões acerca da temática. Barbaroi, Santa Cruz do Sul, n.

O século XXI exige a utopia (...) a liberação da América Latina do engodo de dependência e exclusão em que se encontra. Essa liberação, como tal ainda não existe. Mas seus elementos já se apresentam nas tensões e no movimento das forças sociais. Temos a convicção de que o século XXI, antes do que em geral se imagina, colocará o desafio da liberação em nossas portas22.

32, jun. 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_a rttext&pid=S010465782010000100008&lng=pt&nrm=iso Acesso em: 18 jun. 2015. MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização,

Assim, a integração latino-americana se coloca

São Paulo, Boitempo Editorial, 2012. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

como um desafio no século XXI, pois para tal

21

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LEME, op.cit., p. 134.

dependência e neoliberalismo na América Latina.

22

MARTINS, op. cit., p.346.


G N A R U S | 114

Artigo

MÚSICA E CONSUMO: A INDUSTRIALIZAÇÃO DA CULTURA. Por: Marília Luana Pinheiro de Paiva Resumo: Este artigo busca discutir as relações sobre música e o mercado industrial. Uma crítica as músicas que são fabricadas pela mesma linha de produção, o famoso “clichê” da contemporaneidade, músicas, letras e melodias repedidas são as músicas da moda, as mais consumidas. Muitas vezes sem nenhuma letra com sentido ou até mesmo arranjo elaborado, são apenas produtos para serem vendidos; mais do mesmo. Nesse sentido procura relacionar a crítica de Theodor W. Adorno sobre a indústria cultural e o padrão que a música assume na sua concepção histórica. Pois a música, atual é vista como mercadoria, seguindo padrões estéticos e fazem sujeitos refém da arte de massa, transformaram em escravos passiveis da música de sucesso. Compreende-se que a música filha do seu tempo de uma sociedade globalizada e capitalista e da industrialização da cultura. Palavras chaves: Indústria cultural, música, história.

A

dorno (1996, p. 65) faz uma critica a indústria

cultural

no

capitulo

O

Fetichismo na Música e a Regressão da

Audição, escrita em 1938, na obra Os pensadores referir-se a decadência do gosto musical, a música desde tempos gregos foi sempre considerada como um “bem supremo”, mas em dias atuais, o que está em voga, e todos seguem para uma tendem a obedecer a moda, assim como em outras instâncias. A ordem é obedecer cegamente a uma moda que se expande comercialmente. Adorno exprime essa obediência da massa nessa passagem:

De resto, já não há campo para escolha; nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados; a existência do próprio indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no polo oposto, o direito à liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente. Se perguntarmos a alguém se "gosta" de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. (ADORNO, 1996, p.66)


G N A R U S | 115 A indústria fonográfica se detinha das músicas

docilidade. Adorno a comparava a música de massa

com intuito comercial, caracterizando um produto

com o cinema mudo, como algo de pano de fundo.

de massa, com exigências padronizadas para

Contesta que alguns ouvintes mesmo ouvindo uma

atender o público de forma geral.

música muitas vezes não dão atenção ao que a

Ao julgar a música como boa ou ruim, o que se pensava era se estava ou não na moda, se era ou não sucesso

e

conforme

Adorno

se perdia a

música traz, e acaba-se por não compreender a própria música que está se ouvindo. (ADORNO, 1996, p.67)

sensibilidade e o valor, a música estava sobre

A nova forma sentimental com destinado ao

moldes de padronização do mercado. Uma vez que

público de massa, o autor trata como uma

o sujeito não conseguia diferenciar a sua opinião da

“degeneração”. E com a variedade de músicas e

opinião pública, da mesma forma não se podia

circulação, acaba-se que o ouvinte não pensa na

decidir com liberdade, pois os padrões musicais

música como um todo, não se posiciona contra, e se

seguiam uma mesma linha de produção, pois tudo

entrega ao prazer momentâneo convertendo-se a

se tornara tão próximo e

um comprador passivo.

igual.

Atingiu todas as camadas

Adorno

lamenta

desvalorização

da sociedade e o rádio

a

contribuiu

na

proporcionar

contemporaneidade da como

entretenimento

música

disseminou

Napolitano (2002, p.

sociedade

eruditos, iam contra a

recusava valores que já havia concebidos nesse campo. Mas ela trazia um novo elemento o entretenimento e prazer. Que na verdadeira analise dele não era totalmente concebida pois a sua crítica se firmava diante da afirmação que tal música acabava por contribuir para uma destruição da linguagem como forma de expressão e desqualificação da comunicação. A música de entretenimento se firmava no gosto daqueles que não tinham sequer exigências e aceitava com

valores

culturais, nas quais a

10) apontava que críticos

Adorno reforça esse aspecto que essa nova música

e

assim como promoveu e

apreciada como outrora.

que desconsiderava as heranças ocidentais, e assim

seu

distração aos ouvintes,

séria qual já não é mais

nova música popular que se consolidava por conta

em

totalitarismo

música clássica a qual ele chama

ao

colocou

a

música comercial como superior a música séria (que seria a música erudita) caminhando para uma liquidação do indivíduo e formando uma nova época musical em que estamos. A música ligeira, como Adorno coloca, a música comercial se consolidou a partir da viabilização de seu consumo, enquanto que a música erudita, consumida grande parte pela camada elitista da sociedade era consumida e comprada conforme o preço do seu conteúdo. A música comercial não possui padrões técnicos, podendo qualquer um exercer a função de ser cantor sem precisar


G N A R U S | 116 dominar os recursos técnicos. Desta forma Adorno

por liquidar a individualidade do sujeito. Se este

(1996, p. 77) argumenta sobre a música de mercado

sujeito aceita pacientemente o produto que lhe é

e seus valores:

dado, não existe gosto algum apenas uma prisão na

O fato de que "valores" sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria.

qual ele nem se dá conta, das suas grades. Não há uma resistência por parte dos consumidores de massa, ou seja a consciência dos ouvintes de massa está na mesma frequência com a música

fetichizada, aquela que o autor descreve como padronizada.

Adorno

aponta

que

a

A música, atual é vista como mercadoria,

contemporaneidade avança para um regresso, não

seguindo padrões estéticos. Marx descreve o

o regresso do ouvinte individual, e nem o regresso

caráter fetichista da mercadoria, no qual a relação

do nível coletivo, o que regrediu e permaneceu em

da troca e do consumo, o produtor como o

um estado infantil foi à audição moderna. Na qual

consumidor se alienam. A mercadoria devolve ao

os ouvintes perdem a liberdade de escolha e se

homem como um espelho, os aspectos sociais do

limitam a um conhecimento consciente da música.

trabalho, aspectos do produto do trabalho, assim

A música ligeira, como a música popular e o jazz,

como propriedades naturais e sociais. A mercadoria

entra nessa concepção de música de massa, na qual

também reflete a relação social dos produtores e o

a audição regressiva está intimamente relacionada

trabalho, ela se compõe na relação de troca e valor

com a propaganda e o anuncio publicitário detém

de uso, uma aparência ilusória que os bens de

o poder de coação. Influenciando e determinando

cultura deve conservar.

gostos musicais. Assim se acerca uma reflexão em

A música se modifica como arte e assume seu caráter de mercadoria na medida que é concebida como bem de consumo, de troca em troca de seu uso, como mercadoria, e mascara o valor de troca como sendo um objeto de prazer, formando um

torno do jazz comercial, caracterizada como música de massa que só pode ser ouvida sem muita atenção, como pano de fundo de uma conversa ou de um baile, assim ela estará exercendo a sua função. (ADORNO, 1997, p.93).

caráter abstrato de troca. O valor de troca assume

A música popular era composta pelo resto da

alguns traços dentre eles o poder de coesão. Um

música erudita em um plano harmônico simplista e

exemplo desse consumismo seria tanto uma mulher

repetitivo. Para os críticos folcloristas como Mário

que vai as compras em um shopping Center, e um

de Andrade no Brasil e Bartok na Hungria, a música

homem que compra um carro do ano e modelo que

popular urbana significava o desaparecimento de

gosta, assim como o cliente da arte de massa de

uma lucidez sociológica, étnica e estética. Alguns

nosso tempo, se transformaram em escravos

críticos à música popular urbana apontavam a

passiveis da música de sucesso.

impossibilidade de estuda-la, e pesquisa-la, pois

A indústria cultural investe na produção

devido a influência de músicas internacionais, a

padronizada dos bens de consumo que produz uma

música urbana era designada como sem identidade

escala de produtos iguais destinados ao todos os cidadãos, seguida de leis de mercado, que acaba

própria. (NAPOLITANO, 2002, p.11)


G N A R U S | 117 Viana aponta que a indústria cultural está

com uma mera intenção comercial de lucro

presente no dia-a-dia da população e exerce forte

contribuindo com a alienação da sociedade. Assim

coerção sobre a sociedade. A indústria cultural

a sua coesão e manipulação é tão intrínseca que

produz aquilo que a sociedade quer aquilo que ela

consumidores já não se dão conta, daquilo que

quer ver e ouvir, a indústria cultural é um produto

estão comprando e que estão nos moldes da

da

indústria. (HORKHEIMER; ADORNO, 1997, p. 57)

sociedade

com

caráter

manipulador

e

conservador. (VIANA, 2004, p.2)

Como Horkheimer & Adorno discorrem sobre a

Para Adorno & Horkheimer representantes da

passagem do telefone ao rádio, no qual o primeiro

Escola de Frankfurt, a indústria cultural ela é uma

permitia que os participantes desempenhassem um

fábrica de ilusões e de consumo superficial, a qual

papel do sujeito, enquanto o rádio transforma

aponta que o lucro é o principal interesse da

todos igualmente em ouvintes, para inserir em um

produção

sistema de programas iguais uns dos outros, das

capitalista,

pois

realizam

a

mercantilização da arte e da cultura, produzindo as

diferentes estações.

chamadas “mercadorias culturais”,

era

Se referindo as grandes

um

músicas de sucesso, e as

sistema de dominação

famosas

ideológica, na qual o

padronizadas, a indústria

indivíduo inserido não se

cultural

dava conta e sentia a

com

necessidade de consumir

as

consumidor e induz o

Como Horkheimer & Adorno (1997, p. 60) discute:

Atualmente, a atrofia da imaginação e da espontaneidade do consumidor cultural não precisa ser reduzida a mecanismos psicológicos. Os próprios produtos (...) paralisam essas capacidades em virtude de sua própria constituição objetiva.

a

ideias

e

as

características próprias

sujeito a sentimentos pensar, mas apenas escolher (VIANA, 2004, p.2)

e

obra, assim sucumbindo

um

coletivos e previsíveis, no qual ele não precisa

eficácia

da performance sobre a

vê no homem um objeto trabalho

desenvolveu

denominação do efeito e

mais. A indústria cultural de

músicas

de

cada

obra

(HORKHEIMER; ADORNO, 1997, p. 59). A sua totalidade abarcou especificidades e caraterísticas próprias, deixando obras medíocres e semelhantes umas das outras, com uma falta de identidade e de originalidade, estando reduzida a um estilo e a um enquadramento obedecendo a uma hierarquia social e estética estabelecida (HORKHEIMER; ADORNO, 1997, p. 62). Horkheimer & Adorno são os grandes críticos da

Indústria cultural é um negócio, como outro qualquer, utilizam uma ideologia para legitimar o lixo que eles mesmos produzem. São mercadorias

interpretação e crítica indústria cultural. Afirmam que

a

indústria

cultural

produz

uma

estandardização e racionalização da produção cultural.


G N A R U S | 118 Assim Walter Benjamin, também representante

composição é sensibilidade e emoção, é romance e

da Escola de Frankfurt apresenta uma concepção

contestação. A música é uma expressão artística e

sobre a percepção coletiva e a sua intercessão no

cultural de um povo, expressada e ritmada com

processo histórico:

nuances e textura, é obra do seu tempo, é cultura

No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente (BENJAMIN, 1987, p. 169).

transformada em embalo dançante é letra crítica e imponente. Ou apenas é música com a intenção de divertir, ou com a intenção de inquietar o espirito ou a consciência, é libertação da alma, veículo de expressão de sentimentos. Às vezes como pano de fundo, outras vezes como fator principal, a música compões o campo social e

Benjamin ao falar da obra de arte, distingue a arte

emocional. A música é subjetividade e identidade,

convencional e a reprodutível, elabora a partir

sobretudo é expressividade. É a mistura de ritmo,

dessa perspectiva o conceito de “aura”, ou seja

harmonia

apenas na obra de arte original, na singular e

instrumental transmitida ao mundo. Há vários tipos

especifica que se encontra a “aura”. A reprodução,

e estilos de músicas, que vai do samba ao rock, da

a replica levam um grande abalo na tradição, que

ópera a música clássica, com letra ou não, cada qual

segundo Benjamin é uma contrapartida estética dos

expressa suas significações e identidades, a qual

movimentos de massa no século XX. (DUARTE,

está ligada a um tempo e a uma estrutura social.

2003, p. 22).

e

melodia,

é

uma

organização

Há, a música engajada, a música politizada, e

Napolitano (2007, p. 5) aponta que a música é

música para divertir, cada música traz consigo a sua

uma espécie de repertório de memória coletiva.

definição marcada pelo tempo e pela sua cultura,

Filha do seu tempo de uma sociedade globalizada e

esteja ela no quadro social ou de lazer de alguma

capitalista e da industrialização da cultura. A

maneira ela integra a relação social e cultural. Pois

música popular brasileira é um mosaico de culturas,

a música é uma produção de indivíduos que

amplo e complexo que envolve artistas, produtores,

constituem um campo social, no qual estão

audiência e crítica. A música popular brasileira é a

diretamente relacionados.

expressão de tradições populares, o que faz legar uma tradição, entre os anos de 1930 e 1960 o samba, a bossa nova e a mpb foram os gêneros principais que representaram a música popular brasileira. A MPB é formada por vários gêneros e estilos.

Assim como Wisnik (2004, p.15) como Ross (2011, p. 12) concorda que na música há muito subjetividade, e expressões singulares como aponta Vinci de Moraes (1997, p. 211), pois através de suas letras podemos constatar e compreender a identidade de uma geração, que através da música

A música é uma arte, dotada de simbologias,

enxerga um novo caminho para contestação e

timbre, ritmo, melodias. Em sua maioria composta

retratar indignações, assim como insatisfações no

por letras, em grande parte letras que comunicam

plano político e social no país. A música se destacou

que expressam mensagens e significados. Está

ao longo dos anos, mais que uma expressão artística

diretamente ligado com o seu tempo, sua

e cultural, ela se tornou um estilo de viver, ser e


G N A R U S | 119 sentir está em todo lugar como fundo, trilha sonora de nossas vidas modernas. Porém estamos marcados pelo modismo e padrões que nos corrompe e acaba nos escravizando desse processo do capitalismo e da industrialização da cultura que acaba por apenas reproduzir o mais do mesmo e nos fazer refém da arte de massa.

Marília Luana Pinheiro de Paiva é graduada em Licenciatura plena em História pela UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa). Especialista em Metodologia no ensino de Sociologia e Filosofia (FACEL). Mestranda em Ciências Sociais Aplicadas (UEPG) contato e-mail: marilia-lua1@hotmail.com.

Referências ADORNO, Wiesengrund, Theothor. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin: obras escolhidas v1, 3ed. São Paulo: Editora 34, 1987. DUARTE, Rodrigo. Teoria Crítica da Indústria Cultural. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2003. HORKHEIMER, Max. & ADORNO, Wiesengrund, Theothor. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia-história, cultura e música popular em São Paulo nos anos 30. Tese apresentada com exigência parcial para a obtenção de Doutor em História. Universidade Estadual de São Paulo, 1997. NAPOLITANO, Marcos. História & Música. História cultural da música popular. Autêntica: Belo Horizonte, 2002. ____________. A síncope das ideias. A questão da tradição na música brasileira popular brasileira. Editora Fundação Perseu Abramo: São Paulo, 2007. ROSS, Alex. Escuta só: do clássico ao pop. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. VIANA, Nildo. Reflexões sobre a Indústria Cultural: Humanidade em foco. Goiânia, v.2, n.3, 2004 WINISK, José Miguel; SQUEFF, Enio. O Nacional e o popular. Na cultura brasileira. São Paulo; Editora Brasiliense, 2004.


G N A R U S | 120

Artigo

DA DOUTRINA À PAREDE: OS SETE PECADOS CAPITAIS REPRESENTADOS EM PINTURAS PARIETAIS INGLESAS. Por: Amanda Basílio Santos Resumo Neste trabalho, o que se pretende é investigar, ainda que introdutoriamente, sobre os padrões representativos em pinturas parietais inglesas que versam sobre a temática dos Sete Pecados Capitais. Para tanto, serão usadas como base as pinturas murais moralizantes que abordam a temática do pecado, localizadas na Inglaterra. Devemos ter em mente que os Sete Pecados foram primeiramente concebidos em modo doutrinário filosófico, para depois passarem a ter representações iconográficas. Foram selecionadas duas árvores do pecado para análise.

Introdução

E

ste artigo trata-se de um recorte da

período, em particular as imagens do pecado, que

pesquisa

serviam como guia moral para os fiéis.

que

se

encontra

em

desenvolvimento na Especialização em

Embora tenhamos uma imensa gama de produção

Artes, pela Universidade Federal de Pelotas

iconográfica durante o medievo, nos primeiros

(UFPel), que resultará em um trabalho monográfico

passos do cristianismo a imagem ficou condenada

que conta com a análise iconográfica de dezesseis

diante da filosofia, pois a produção de imagens era

pinturas parietais inglesas, que versam sobre as

vista com suspeita, por perigo de idolatria de ídolos

virtudes e os vícios medievais.

imagéticos, que deste modo colocaria a prática

Como bem sabemos, para muito além da

cristã muito próxima de uma adoração pagã, sendo

documentação escrita, a iconografia serviu como

assim, a iconografia era vista como inconveniente e

veículo de informação e instrumento pedagógico no período medieval, levando em consideração uma população massivamente analfabeta e desconhecedora da língua latina. Por este motivo, é relevante o estudo das imagens murais deste


G N A R U S | 121 desviante da forma maior de adoração à Deus, que

temáticas e possuem distintos propósitos dentro do

seria através da contemplação filosófica.1

espaço religioso. Na Inglaterra há poucas pinturas

Como divisor de águas nesta questão há a carta

preservadas de um período anterior à conquista

que o Papa Gregório Magno escreveu ao Bispo

normanda, porém temos um número considerável

Sereno de Marselha2, que passou a influenciar

de pinturas preservadas do século XII até a Reforma

profundamente a ideia da função da arte medieval

Protestante no século XVI, sendo que muito

que temos até os dias atuais. Nesta carta, ele

material se perdeu exatamente pelo ideal

destaca a função didática3 do uso das imagens,

iconoclasta que acabou fazendo parte das

permitindo à massa de iletrados compreender a

propostas reformistas.

doutrina, ensinando-os através de imagens o que

Sobre as pinturas parietais na Inglaterra, Anne

eles não podem ler. Embora, na própria carta, ele

Marshall observa que é provável que as paredes das

destaque outras funções para a imagem - elas

igrejas devem tenham sido pintadas desde que

servem de lembrança dos dogmas, e possuem um

começou o hábito de as cobrir com estuque,

poder sobre os fiéis, pois cumprem um papel de

incluindo as igrejas anglo-saxãs, embora pouco

sensibilização destes e fazem com que eles se

tenha restado para afirmar-se tal fato. A maior

arrependam de seus pecados - o papel didático

parte das pinturas parietais que restaram são do

acabou se sobrepondo na literatura aos outros,

período normando em diante, tendo algumas do

colocando a iconografia medieval como a bíblia dos

século XI que foram preservadas. É possível verificar

iletrados

pensamento

uma dinâmica transformação estilística até o

propagado na historiografia através da obra do

advento da Reforma Protestante, quando muda

historiador da arte, Émile Mâle4. No entanto, se a

radicalmente a postura para com as pinturas

função fosse puramente ensinar a doutrina aos fiéis

parietais. Em questões técnicas, os materiais

não haveria função para a abundância de imagens

utilizados, são em geral, bastante simples, sendo

circunscritas nos coros e nas absides das igrejas,

dominante pigmentos terrosos, como o amarelo

locais de acesso restrito ao clero, que ao menos na

ocre e o vermelho, o que nos demonstra a sua

sua massiva maioria, era letrado.

grande disponibilidade. Estes tons ganhavam

(SCHMITT,

2006),

A pintura parietal medieval inglesa ainda é muito

diversas variações em misturas com o preto e o

pouco estudada no Brasil, porém, é uma vasta fonte

branco, formando uma paleta bastante rica. Os

da iconografia medieval e, portanto, importante

pigmentos azulados são raros, e eram muito caros,

para a compreensão do período e das funções desta

considerando que o azul oriundo do lápis-lazúli

arte dentro do contexto de sua produção. As

custava mais que folhagem de ouro, e mesmo os

pinturas

diferentes

azuis mais escuros e comuns, eram caros. O verde

Tal visão sobre a produção de imagens religiosas já remontam a críticas desde Platão, o qual salientava que as imagens cívicas são desviantes para uma forma maior e mais profunda de contemplação religiosa que se dá através da compreensão filosófica. (BESANÇON, 2006, p. 32) 2 GREGORIO MAGNO, Epistulae ad Serenus, XI, 13, (Patrologia Latina 77, col. 1128-1130).

3 “O que os escritos proporcionam a quem os lê, a pintura

1

parietais

versam

sobre

fornece aos analfabetos que a contemplam porque assim esses ignorantes vêem o que devem imitar; as pinturas são a leitura daqueles que não sabem ler, de modo que funcionam como um livro, sobretudo entre os pagãos. ” (GREGÓRIO MAGNO, apud PEREIRA, 2006, p.2). 4 MÂLE, Émile. L'art religieux au XIIIe siècle en France. Étude sur l’iconographie du Moyen Âge et ses sources d’inspiration. Paris: Armand Colin, 1910.


G N A R U S | 122 também é raro, mas por vezes é encontrado, feito a

redescobertas no século XIX e no início do século

partir do sal de cobre, e também é possível

XX, e este processo continua em andamento.

encontrar o vermelho escarlate. (MARSHALL, 2000,

(ROSEWELL, 2008).

disponível

em

Antes de analisarmos as pinturas em si, é

<http://www.paintedchurch.org/introduc.htm>,

fundamental que se reflita sobre o papel que a ideia

acessado em 4 de novembro de 2015).

de pecado exercia no contexto em que tais pinturas

Estas questões técnicas e econômicas limitam as

foram feitas. A noção do Pecado era algo que

representações iconográficas que encontramos em

norteava constantemente a mentalidade cristã no

solo inglês, mas é provável que pinturas parietais

período medieval. Segundo Carla Casagrande e

estivessem presentes assim que se começou a ter

Silvana Vecchio:

Os homens e as mulheres da Idade Média aparecem dominados pelo pecado. A concepção de tempo, a organização do espaço, a antropologia, a noção do saber, a ideia do trabalho, as ligações com Deus, a construção das relações sociais, a instituição de práticas rituais, toda a vida e a noção de mundo do homem medieval gira em torno da presença do pecado. (CASAGRANDE;

uma base para pintar. Podemos, deste modo, ver que as imagens sempre possuíram um papel central dentro da arquitetura religiosa, e por consequência na vida social, sendo não apenas um patrimônio material, mas um patrimônio que resguarda elementos culturais do passado, sendo ao mesmo tempo um patrimônio imaterial. As igrejas

VECCHIO, 2006, p. 337).

medievais eram coloridas por belas pinturas em suas paredes. Como Geofrey Chaucer ressaltava, elas possuíam um papel nuclear na passagem dos conhecimentos

e

dos

costumes

católicos,

auxiliando aqueles que não podiam ler os textos sagrados a compreenderem a doutrina através das Porém, seu estado atual é de bastante desgaste. deve-se

das árvores que os e apresentam alegoricamente, os acontecimentos e a consequência dos atos pecaminosos estão sempre presentes como lembretes. Nas imagens das igrejas medievais, seja em cenas da morte do homem, da morte de Cristo,

imagens. Isso

As representações dos pecados vão muito além

a

alguns

fatores

específicos:

primeiramente as pinturas parietais inglesas não se tratam (em sua massiva maioria) de afrescos, portanto elas começam a craquelar e desgastar-se muito mais rapidamente do que outras pinturas, pois são feitas sobre um estuque seco, que acaba por fazer com que a tinta depositada não se integre ao suporte. Em segundo lugar, exatamente por conta deste desgaste, muitas pinturas foram cobertas por estuque, pois não se encontravam em um estado esteticamente atraente. A maioria das pinturas parietais inglesas se encontravam sob camadas de estuque e começaram a ser

do Juízo Final, do Céu e do Inferno, a ideia do pecado e as consequências dos atos pecaminosos estão disseminados. Lembretes visuais instigavam os fiéis ao entrarem em uma igreja, lembretes do que os pecados humanos foram responsáveis, pelo sofrimento que Cristo, que enviado por Deus para redimir os pecados humanos, teve de sofrer. Construções visuais como estas que podem ser vistas,

por

exemplo,

nos

chamados

“Os

Instrumentos da Paixão”, vistos ainda hoje nos azulejos medievais da Igreja do Priorado em Great

Malvern do século XV e que também estão retratados em seus vitrais, desta forma tornando constante o sofrimento que se pode impor a Cristo


G N A R U S | 123 ao pecar, fazendo com que ele esteja eternamente

deve-se sempre analisar a constituição visual dos

sofrendo pelos pecados dos homens.

mesmos em um conjunto, nunca isolando um

Os Sete Pecados Capitais não estão organizados

pecado do outro.

na Bíblia Sagrada, apesar de serem parte

Na Inglaterra, há diversas pinturas murais que

fundamental da episteme medieval. Estes foram

tratam diretamente dos Sete Pecados, porém,

compilados pelo Papa Gregório, o Grande, em

neste artigo, iremos nos concentrar em duas

torno de 590 d.C.5, baseado nos oito pensamentos

pinturas, uma que se localiza na Igreja de St.

pecaminosos elencados por Evagrius Ponticus6, um

Ethelbert, localizada em Hessett, em Suffolk, do

monge cristão que viveu em meados de 375 d.C,

século XIV e outra na Igreja de St. Peter localizada

que após passar por um período de privação auto

em Raunds, Northants do século XIII. Foram

imposta no deserto egípcio organizou os piores

selecionadas estas duas por conta de seu estado de

sentimentos e tentações que o abateram.

conservação, assim como por termos dois tipos

A lista de Evagrius não foi muito difundida até sua reorganização no século VI, porém em torno de 400

representativos clássicos que cada uma é capaz de elucidar.

d.C, seu contemporâneo Prudêncio, um advogado, escreveu uma obra intitulada Psychomachia7

Pinturas Murais Moralizantes

(Batalha da Alma), que foi de fundamental

Durante o medievo as igrejas eram coloridas, e

importância para o ocidente, com uma lista

suas paredes repletas de pinturas, que hoje

semelhante de pensamentos e ações terríveis e

encontram-se sob o estuque branco moderno. A

boas, uma alegoria da ambiguidade humana entre

importância que estas pinturas tinham podem ser

o vício e a virtude, que ficou muito popularizada,

compreendidas através da afirmação de Migne:

It is good to represent the fruits of humility and pride as a kind of visual image so that anyone studying to improve himself can clearly see what things will result from them. Therefore we show the novices and untutored men two little trees, differing in fruits and in size, each displaying the characteristics of the virtues and the vices, so that people may understand the products of each and choose which of the trees they would establish in themselves.8 (MIGNE,

pois cada vício e virtude é um ser que fala e sente, muito próxima da realidade e das pessoas para quem se destinava, tornando a obra realística através da personificação. Traço muito importante desta obra é que não é apenas uma batalha das pessoas pela sua alma, é em essência uma batalha entre os valores do cristianismo e o paganismo. Para que seja possível o entendimento da

apud CAIGER-SMITH, 1963, p.50)

concepção dos pecados é necessário compreender a relação simbiótica que estes têm entre si, por isso, Epístola, Moralia on Job (esp. XXXI.45). Evagrius Ponticus, De octo spiritibus malitiae (PG 79: 1157). Documento disponível em grego no site: <http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_0345 0399__Evagrius_Ponticus__De_octo_spiritibus_malitiae_ _MGR.pdf.html>, acessado pela última vez em 5 de novembro de 2015. 7 Poema disponível em latim no site: < http://www.thelatinlibrary.com/prudentius/prud.psych o.shtml>, acessado pela última vez em 4 de novembro de 2015. 5 6

Tradução da Autora: “É bom representar os frutos da humildade e do orgulho como uma espécie de imagem visual de modo que qualquer pessoa estudando para melhorar a si mesmo possa ver claramente que coisas vão resultar a partir deles. Portanto vamos mostrar aos noviços e aos homens ignorantes duas árvores pequenas, diferindo em frutas e em tamanho, cada uma exibindo as características das virtudes e os vícios, para que as pessoas possam compreender os produtos de cada uma e escolher qual das árvores que irão estabelecer para si mesmos” 8


G N A R U S | 124 O que veremos nas imagens abaixo são construções visuais de ideias doutrinárias, de modo que fosse possível exemplificar aos fiéis as atitudes correspondentes aos

pecados

representados.

Através do método de Panofsky pretendemos dar destaque às alegorias9 iconográficas criadas para representação dos Pecados Capitais. Em Hessett, Suffolk, temos uma árvore do pecado bastante tradicional, pintada no século XV. A distribuição dada aos pecados ao longo da árvore é bastante representativa de um padrão da construção visual para o pecado, podendo ser vista na maioria das árvores encontradas. Em seu topo vemos o pior dos pecados, o pecado da Soberba, com um homem elegantemente vestido, com uma longa pena em seu chapéu, quase como se exibindo em seu topo. A Soberba é considerado o maior dos pecados – inclusive sendo responsável pela rebelião e queda do anjo Lúcifer. Ao verificar outras pinturas murais, é visível a recorrência da Soberba sendo representada por alguém muito bem vestido, o que indica um status social

elevado,

nem

sempre

da

nobreza

necessariamente, mas podendo ser pertencente a uma classe burguesa, que começava a se formar no século XII. Os aspectos de representação social

Imagem 1: Árvore do Pecado em Hessett, século XV. Fonte: http://paintedchurch.org/hessds.htt, acessado em 5 de setembro de 2015.

estão sempre presentes nas árvores do pecado ou

dos Soberbos sempre são fortes, e com boa

das virtudes.

diversidade coral, o que indica uma vida e

O pecado da Soberba é centrado em pessoas com

personalidade leviana, de alguém com pouca

posses, o que indica que se pensava ser mais

atenção às atitudes e comportamentos virtuosos,

suscetível a este pecado aqueles que vivessem uma

levando em consideração que a Virtude para a

vida abastada, onde se possuísse um juízo de

Soberba era a Humildade. Como destaca Evagrius,

superioridade entre outros homens, o que levaria

“a soberba é um tumor da alma, cheio de pus. Se

ao sentimento de superioridade. As cores das vestes

maduro, explodirá, emanando terrível fedor. [...]. A

Uma alegoria é aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra através de uma ilação moral [...]. Etimologicamente, o grego allegoría significa "dizer o outro", "dizer alguma coisa diferente do sentido literal" [...] Na arte medieval, o processo de construção das grandes catedrais, como a de Chartres, por exemplo,

obedece também a complicados esquemas alegóricos, pois acredita-se que tudo na Natureza significa algo mais do que o simplesmente observável. (CEIA, C. Sobre o Conceito de Alegoria. Matraga, nº10, p. 1-7, agosto de 1998. p. 1-4).

9


G N A R U S | 125 alma do soberbo alcança grandes altitudes e, daí, cai no abismo.”10 Como podemos ver nesta frase, há uma clara conexão entre a questão simbólica, onde a “alma do soberbo alcança grandes altitudes”, pois na imagem em Hessett, o soberbo ocupa o topo da árvore. O fato deste desabar no abismo é visto pelos pequenos demônios que serram a árvore, o que o Um galho abaixo estão duas representações, à esquerda do homem ao topo temos a Ira, com um homem com uma arma em posição de combate, visivelmente irado e aparentemente jovem, em uma mão uma adaga e na outra um chicote. A Ira reveste-se de importância por seu caráter destruidor de homens, que os coloca diretamente e fatalmente um contra o outro. Enquanto na posteriormente

estabelecida

pelo

cristianismo da soberba como o maior dos pecados, para Evagrius, era a Ira o mais preocupante, pois a Ira cega o homem para Deus e para os outros homens, por seu malefício direto à convivência humana a qualifico como um pecado social. Uma de suas definições está no desejo de vingança, e vingança no código próprio dos homens medievais era um mal necessário e regulamentador da sociedade, utilizada para manutenção da honra e dos privilégios. Assim sendo, a violência compreendida dentro do sistema social medieval como imperativa e até mesmo como um direito pessoal ou comunitário, afasta o conceito de vínculo com o pecado da Ira. Segundo Claude Gauvard:

Para ela11, a violência é o resultado de um encadeamento de fatos necessários à manutenção da honra ou do renome, qualquer que seja a procedência social dos indivíduos, sejam eles nobres ou não nobres. Tradução do De Octo Spiritibus Malitiae de Evagrius Ponticus, por Carlos Martins Nabeto. Disponível em: <http://www.apologeticacatolica.com.br/cocp/fixas/oit 10

(GAUVARD, 2006, p. 606)

Na sequência, à direita, temos um casal de namorados que sem inibição se abraçam e se beijam apaixonadamente, representando a Luxúria, à esquerda o homem, à direita a mulher, ambos

fará cair no Inferno.

tradição

A violência não está então ligada a um estado moral condenável em si; é o meio de provar a perfeição de uma identidade.

bem vestidos. Esta é uma forma clássica que iremos encontrar nas árvores do pecado, a luxúria é sempre representada por um casal jovem, com um homem e uma mulher, que se entregam aos prazeres de sua relação. Abaixo,

à

esquerda

temos

um

invejoso,

simbolicamente representado em verde, que segura seu cinto e aponta, como que desdenhoso do que possui, sua face é cadavérica, pois a inveja nada produz, ela consome o pecador, sendo que o invejoso se torna um peso na sociedade em que vive, e que possui em seu cerne um desejo predatório, melhor definido como Schadenfreude. (NEWHAUSER, 2000). No mesmo nível, à direita, temos a Preguiça, representado por um homem que está deitado, podendo estar dormindo, e seu rosto, como o da Inveja, tem aparência cadavérica, resultado da falta de atividade do preguiçoso que se deixa na inércia, mesmo que isso o custe a própria vida, um ser que também não produz, e por sua falta de entusiasmo pela vida demonstra profunda ingratidão à Deus. Os preguiçosos também estavam associados às atitudes suicidas, o que não era admissível de perdão no período medieval. Apesar da aparente inocência da preguiça, dela provém sofrimentos, a fome, as necessidades, e a falta de vontade para alterar esta ovicios.htm>, acessado pela última vez em 5 de novembro de 2015. 11 Referência à Idade Média.


G N A R U S | 126 realidade, sendo deste modo, considerada uma

exigente ou se preocupar em excesso com o sabor

aversão ao trabalho e ao esforço, e o trabalho é um

ou modo de preparo de um alimento, lhe

demando de Deus, após a expulsão do Paraíso. O

dedicando muita atenção; apetite excessivo que faz

ócio é um mal para o homem, e para o

com que os pensamentos estejam sempre voltados

desenvolvimento da sociedade e seu êxito.

para a comida, ou seja, apenas o desvio do

No próximo nível temos a Avareza, representada

pensamento se tornava um pecado em fato.

por uma mulher que segura em suas mãos sacos de

Em última instância, tratava-se de uma violação

dinheiro. Este é um pecado interessante por possuir

ao corpo, que seria a morada divina da alma. A

uma forte característica dualística, pois embora

comida tornava os homens menos humanos e mais

seja um pecado tanto quanto os demais, há um nível

animalescos, e para Santo Agostinho apenas gostar

de tolerância, pois a avareza pode ser oriunda de

de comer seria uma ofensa a Deus. Embora seja

um profundo estado de pobreza e necessidade,

dada tanta atenção à comida, na iconografia, a

portanto, os desprovidos do básico para sua

forma mais comum da representação da Gula é

sobrevivência se tornam avarentos pela dificuldade

através da bebedeira e não de comilança.

de sobreviver e a dor de suas privações. O mal da Avareza

reside

que

século XV, o tronco central é o próprio pecador,

possuindo mais do que o necessário para si, negam

que é novamente o destaque do pecado da

aos

sua

Soberba, ao seu redor, como que originado deste,

comunidade que poderia viver de sua abundância,

surgem os demais pecados apoiados em bocas

o que o faz ser comparável a um assassino. Um

infernais. De dentro das bocas das figuras

avarento não contribui com a Igreja e não é

demoníacas, semelhantes a dragões, saem os outros

caridoso, o que causa danos tanto à sociedade

pecados. Na parte superior esquerda, temos a

quanto à instituição.

representação da Avareza, que apesar de estar

outros,

basicamente

ou

acabam

naqueles,

Quanto à imagem de Raunds, Northants, do

prejudicando

Por fim, há uma representação da Gula que já não

muito apagada, guarda resquícios de já ter tido em

é muito aparente e não dá margens confiáveis para

mãos sacos de dinheiro. Abaixo deste vemos a Ira,

interpretação. De qualquer forma o demônio

um homem com o peito ensanguentado por

representativo da Gula é Belzebu, sempre retratado

ferimentos auto infligidos, tamanha a sua raiva. A

com uma aparência repugnante, que chega a

figura abaixo da Ira, possivelmente representa a

inspirar asco, exatamente pela ligação que foi

Inveja, onde a pessoa se encontra com as mãos

estabelecida entre o alimento em descomedimento

cruzadas no peito como em sinal de frustração.

com um aspecto ascoso. O Papa Gregório Magno,

Ao lado direito, o primeiro a ser representado de

ao organizar a lista dos Sete Pecados Capitais,

cima para baixo, é possivelmente a Preguiça, abaixo

também elaborou maneiras precisas pelas quais

temos uma representação clara da Luxúria, com um

estes são cometidos e havia algumas maneiras de se

homem e uma mulher deitados sobre uma espécie

tornar um glutão: comendo em excesso; comer em

de sofá, como em ato de formicação. Por último,

períodos do dia que não deveriam ser destinados à

vemos um homem vomitando em uma tigela, sendo

comida,

pré-

uma clara representação do excesso advindo do

determinados, sem o controle devido; ser muito

pecado da Gula, aqui representado na iconografia

ou

seja,

em

períodos

não


G N A R U S | 127 pelo ato de vomitar que resulta do exagero do

o auxílio do fiel, através de situações que lhe sejam

glutão.

familiares. (SCOMPARIM, 2008).

Refletindo sobre as formas pelas quais os Pecados

O ato de condenação, na iconografia das árvores

foram representados, apesar de haver um certo tom

dos pecados, ainda se encontra em suspenso, as

de ameaça, de aviso do que espera o pecador, há

pessoas estão nos galhos da árvore que por toda a

ironia e um pouco de graça ao utilizar situações

Idade Média teve uma conotação simbólica

corriqueiras, alertando, acima de tudo, ao cuidado

extremamente positiva, ligada à prosperidade,

com as atitudes mais triviais, aos comportamentos

abundância. A importância de ser uma árvore o

Imagem 2: Árvore do Pecado em Hessett, século XV. Fonte: http://paintedchurch.org/raundsds.htm acessado em 5 de setembro de 2015.

mais mundanos, através de ações que podem ser

suporte dos Pecados é fundamental, pois mesmo

cometidas inocentemente se não houver uma

quando a árvore é substituída por uma pessoa, a

constante vigilância das próprias atitudes. É

pintura é feita de modo a lembrar uma árvore, com

estabelecido que para um pecado ser considerado

a formação de animais que seguram as pessoas

capital são necessários três elementos: ser de uma

semelhantes a galhos de árvores. Isso nos leva a uma

imensa

o

consideração interessante de compreensão, e

conhecimento de que se trata de um pecado e, por

chance de redenção, ao invés de uma condenação

fim, ser cometido com total consentimento e

irreversível. No livro de Caroline Walker Bynum,

consciência pelo pecador. (Rom. 5:12; 6:23). Assim

vemos uma mudança no seio da fé cristã, na busca

sendo, é fundamental constituir a iconografia para

e na concepção de um Deus que não apenas

gravidade,

ser

cometido

com

castiga, mas compreende e perdoa. Isso podemos


G N A R U S | 128 ver refletido na iconografia dos pecados, um Deus mais próximo, que alerta sobre o mal, que condena se necessário, mas que também deixa uma oportunidade para o perdão. Conclusão Considerando a iconografia como fruto de uma intenção e de um envolto cultural, a imagem dos pecados, ao tentar exemplificá-los de forma simples e acessível à “leitura” deste código visual, podemos concluir que seu objetivo final seja didaticamente doutrinar os fiéis, com base em ilustrações que retratam a simplicidade de atos humanos, auxiliando ao entendimento das ações que levam ao pecado e incitando a não cometê-los, sendo que há um incentivo para que não pequem, já que há uma promessa de sofrimento, de que ao cruzar certos padrões e normas divinas, as consequências advindas serão severas. Podemos observar um contraste nítido entre as imagens dos pecados em si e as imagens das consequências dos pecados cometidos. Os pecados são

retratados

com

certa

inocência,

com

naturalidade, como se não fossem em fato tão terríveis, mostrando como o ato pecaminoso pode ser

traiçoeiro,

porém

as

implicações

são

aterradoras, e as suas imagens tendem a inspirar medo e horror. Há a intenção da formação de um caráter vigilante dos atos aparentemente mais inocentes que levam a sofrimentos terríveis, pois escondem no dia-a-dia das atitudes humanas a sua verdadeira natureza. Amanda Basilio Santos é Bacharela mestranda em História (PPGH – UFPel) com Especialização em Artes em andamento (PPGA – UFPel). Membro do LAPI (Laboratório de Política e Imagem da UFPel). E-mail de contato: amanda_hatsh@yahoo.com.br

Referências bibliográficas: BESANÇON, A. Arte e Cristianismo. In: FABRIS, A.; KERN, M. L. B. Imagem e Conhecimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 31-53. BYNUM, C. W. Jesus as Mother: Studies in the Spirituality of the High Middle Ages. California: University of California Press, 1984. CAIGER-SMITH, A. English Medieval Mural Paintings. Oxford: Clarendon Press, 1963. CASAGRANDE, C.; VECCHIO, S. Histoire de péchés capitaux au Moyen Age. Paris: AUBIER/Collection historique, 2003. CASAGRANDE, C.; VECCHIO, S. Pecado. In: GOFF, J. L.; SCHMITT, J.-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, v. II, 2006. p. 337-351. EDWARDS, R. Art and context in late Medieval English narrative. Cambridge: Cambridge University Press, 1994. GAUVARD, C. Violência. In: GOFF, J. L.; SCHMITT, J.-C. Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, v. II, 2006. p. 605-612. MARSHALL, A. Painted Church. Medieval Wall Painted: A short introduction, 2000. Disponivel em: <http://www.paintedchurch.org/introduc.htm>. Acesso em: 4 Julho 2015. MATTOSO, J. Pecados Secretos. Signum, São Paulo, n. 2, p. 11-42, 2000. NEWHAUSER, R. The Early History of Greed: the sin of avarice in early medieval thought and literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. PANOFSKY, E. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991. PEREIRA, M. C. Uma arqueologia da História das Imagens. In: GOLINO, W. A importância da teoria para a produção artística e cultural. Vitória: [s.n.], 2006. p. 1-10. Disponivel em: <http://www.tempodecritica.com/link020122.htm>. REFOULE, F. Evagrius Ponticus. New Catholic Encyclopedia, Nova York, 5, 1997. 644-645. ROSEWELL, R. Medieval Wall Paintings. Woodbridge: The Boydell Press, 2008. SCHMITT, J.-C. Imagens. In: GOFF, J. L.; SCHMITT, J.-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, v. 1, 2006. p. 591-605. SCOMPARIM, A. F. A Iconografia na Igreja Católica. São Paulo: Paulus, 2008.


G N A R U S | 129

Artigo

RELENDO PAULO. REFLEXÕES METODOLÓGICAS PARA OS ESTUDOS PAULINOS. Por: Juliana B. Cavalcanti Resumo: O artigo visa prescrever alguns apontamentos sobre a importância de se estabelecer um diálogo transdisciplinar entre diferentes campos do saber (Teologia, História, Sociologia, Antropologia, Arqueologia, entre outras) nos estudos paulinos. De forma, a ampliar e repensar diferentes temáticas no interior deste campo. Possibilitando assim a formulação de uma interessante metodologia capaz de evitar leituras teleológicas e/ou distorcidas da documentação, permitindo ainda lê-la de forma plural e não monolítica. Em outras palavras, através da transdisciplinaridade é possível se pensar o texto dentro de seu contexto e seu Sitz in Leben (“lugar de vida”). Neste sentido, será importante nos ancorarmos nos trabalhos de John Dominic Crossan (1991, 1998) um importante teólogo e historiador que guiado pela percepção da relevância do caminho transdisciplinar propõe três níveis teórico-metodológicos para problematizar os palecristianismos de forma geral, são eles: microcósmico, mesocósmico e macrocósmico. Palavras-Chaves: Paulo, Crossan, Metodologia Abstract: The paper aim to speak about the importance of establish a transdisciplinary dialogue between different areas of knowing (Theology, History, Sociology, Anthropology, Archaeology, etc) in the Pauline’s studies. Making possible the formulation of an interesting methodology able of to avoid theological interpretations and/or distorted of documentation, allowing still to read of form plural and not monolithic. In other words, through of transdisciplinary is possible to known the text in of your context and your Sitz in Leben. In the respect, will be important the works of John Dominic Crossan (1991, 1998), a great theologian and historian that to see the relevancy of transdisciplinary camp propose three levels theoretical and methodological to problematize the Christianity of the general form, they are: microcosmic, mesocosmic, macrocosmic. KeyWords: Paul, Crossan, Methodology.


G N A R U S | 130

E

m outro momento, ao falar sobre a

E estamos falando de discursos, mas se

historiografia dos estudos sobre mulheres

quiséssemos pensar o impacto de Paulo sobre o

em Paulo1, ponderei que a relevância dos

cinema e nas artes de uma forma geral igualmente

estudos sobre a personagem e toda a produção

não seria uma tarefa dolorosa de ser realizada até

existente sobre o mesmo se dá, em primeiro lugar,

que obtivéssemos resultados consideráveis. Robert

por talvez ser a figura mais importante na história

Jewett em “St. Paul at the Movies: The Apostle's

dos Cristianismos, sejam eles Católico, Protestante

Dialogue with American Culture” (1993) fez um

ou Evangélico, após Jesus. E, em segundo lugar, por

mapeamento do pensamento paulino ou ideias que

conta da série de títulos ou agremiações que o

são legadas a Paulo em dez filmes voltados a cultura

apóstolo vem recebendo ao longo dos séculos.

de massa. Demonstrando que estes filmes

Com um pouco de paciência podemos perceber

perpetuam um tipo de interpretação de Paulo que

as inúmeras referências, diretas ou indiretas, ao

contribui para a construção de uma sociedade que

nome de Paulo e não apenas em contexto religioso.

tem como um dos discursos de preservação e/ou

Ou melhor, sua relevância foi capaz de ultrapassar

manutenção das desigualdades e controle de

os muros dos ambientes religiosos e acabou se

produtos escassos a retórica religiosa ou divina, mas

tornando como parte de uma tradição ocidental. O

sem

que

apropriação.

acaba

tornando

completamente

deixar

claro,

evidentemente,

a

sua

compreensível a evocação de 2Tm 4: 7, uma fala

Contudo, há de se indagar se toda esta memória

atribuída a Paulo, nas últimas eleições presidenciais

acionada, direta ou indireta, de Paulo dialoga e/ou

no Brasil pelo então candidato do Partido da Social

condiz com o Paulo Histórico ou se todas estas

Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves. A frase

referências são fruto da história da domesticação

empregada por ele em seu pronunciamento frente

do apóstolo. Para isto, se faz necessário buscar uma

à derrota na campanha eleitoral foi: “Combati o

metodologia capaz de levar em conta estas

bom combate, cumpri minha missão e guardei a

questões, de forma que possamos pensar se os usos

fé”.2

de Paulo condizem com a personagem histórica. E

Ou ainda lembrarmos uma série de teólogos que

mais se todos os textos atribuídos a ele são

produziram diferentes trabalhos entre as décadas

realmente seus ou se há produções que não

de 1920 e 1940, uma produção capaz de usar Paulo

condizem com o mesmo. Neste sentido, o presente

como a principal argumentação de que os judeus

artigo visa discutir uma metodologia para o Paulo

em sua essência eram maus e desvirtuantes das

Histórico.

normas e regras divinas, sendo o judaísmo-cristão apenas mais uma tentativa dos judeus de corromper com os ensinamentos de Jesus. O verdadeiro

Paulo ou Paulos? Explanações Metodológicas para os Estudos Paulinos.

cristianismo seria o gentílico pautado na tese de Paulo da justificação pela fé (ELLIOTT, 1998: 15-16;

A busca pelo Paulo Histórico tal como o do Jesus Histórico tem suas bases com o advento do

GERDMAR, 2009: 10-12). 1

O referente artigo é: CAVALCANTI, J. “Mulheres em Paulo. Observações metodológicas e um breve balanço historiográfico”. In: Fatos e Versões, 2014 (Prelo).

2

É possível conferir a fala completa do referido candidato a presidência da República do Brasil de 2014 em: http://www.psdb.org.br/aecio-neves-combati-o-bomcombate-cumpri-minha-missao-e-guardei-fe/


G N A R U S | 131 Iluminismo e foram intensificadas em meados à

mas também acabou por evocar a primordialidade

finais do século XIX com teorias darwinistas sobre o

de uma metodologia, principalmente no contexto

modelo ou a forma de se fazer ciência. E se a busca

pós-Segunda Guerra. Momento em que todas as

se entende dentro do campo do científico ou do

Ciências Humanas começam a serem revistas de

acadêmico, estamos querendo dizer que os estudos

forma a ponderar a necessidade da construção de

paulinos perpassam pelo crivo da razão, do lógico.

modelos teóricos que fossem capazes de se

Logo, a pesquisa delimita uma clara distinção entre

produzir conhecimento não associadas ao horror do

o Paulo dá fé e o Paulo dos centros acadêmicos ou

que foi a Segunda Guerra Mundial.

o Paulo Histórico. O que não significa dizer que não seja possível

O resultado disto foi, num primeiro momento, a percepção de que tanto Jesus quanto Paulo passavam por filtros de leitura ao logo do desenvolvimento dos respectivos estudos. O que fomentou a analogias e ao entendimento de que em ambos os casos era possível adotar o mesmo tratamento metodológico. Em outras palavras, ao se perceber que tal como Jesus a personagem Paulo também foi e é utilizada como uma projeção dos valores e concepções dos indivíduos e/ou grupos buscou-se num primeiro momento adotar um conjunto de critérios análogos ou muito próximo dos mesmos adotados para a pesquisa do Jesus Histórico, que são eles: (a) Dessemelhança: útil para distinguir as tendências das ‘tradições’ ou memórias

São Paulo (por Diego Velázquez)

cristãs forjadas para atender as demandas fruto de tensões entre comunidades ou

traçar paralelos entre estes dois tipos de Paulo,

lideranças rivais. Tendo a imagem do

muito pelo contrário a discussão aqui passa pelo

apóstolo como um meio de impor uma

campo metodológico. Ou melhor, na compreensão

verdade

do que é ciência e na necessidade de promulgar um

oficial/verdadeiro

modelo de estudo que seja capaz de remover todas

Estabelecendo assim que “a não ser que seja

as camadas temporais e discursivas até se chegar à

requerido claramente pelas cartas genuínas

camada mais dura de objeto de pesquisa: o Paulo

de Paulo, interpretações que assimilam o

do século I EC que teve uma experiência mística

pensamento e a práxis de Paulo aos

com o Jesus ressuscitado e que viajou e escreveu a

propósitos

comunidades distintas.

pseudopaulinas,

As diferentes fases da busca pelo Paulo Histórico acabaram trazendo novos olhares sobre o campo,

ou

um (Erhman,

ensinamento 2013:

reconhecidos devem-se

duvidosas” (Elliott, 1999: 117).

17).

das considerar


G N A R U S | 132 (b) Inteligibilidade Histórica: busca interpretar

reconhecemos que este primeiro modelo não só é

Paulo a partir de um ambiente judaico, onde

uma reposta consistente a virada dos estudos

interpretações ou leituras que implicam em

paulinos a partir dos anos 1950, bem como

suposição prévia de que o pensamento

apresenta aspectos positivos ao tentar criar

paulino era antijudaico devem-se considerar

elementos lógicos para o desenvolvimento da

duvidosas. Em outras palavras, leituras que

pesquisa.

busquem afirmar ou ler (1) o centro do

No entanto, eles não pensam ou não comportam

pensamento paulino como contra a lei

uma análise mais completa e/ou aprofundada do

(Torá), (2) a lei (Torá) para Paulo não tendo

contexto e do “lugar de vida” (sitz in leben) dos

mais peso ou significado prático ou (3) a

textos. Em suma, estes critérios tomam por vezes

literatura judaica não constituindo nenhuma

uma perspectiva muito mais teleológica do que

fonte para elucidar as cartas, segundo este

propriamente

critério devem ser desconsideradas ou

metodologia aplicadas às Ciências Sociais, onde a

colocadas em dúvida.

disciplina História se situa. E por tender a

dito

uma

teoria

e/ou

uma

(c) Inteligibilidade Retórica: visa respeitar o

desconsiderar corre o risco de acabar por

contexto das cartas de Paulo, entendendo

obscurecer determinadas questões ou anula a

que leituras que não trazem a concepção de

possibilidade de novas indagações sobre um

que Paulo não escreveu buscando persuadir

mesmo assunto.

os leitores e/ou ouvintes devem ser questionadas.

Neste sentido, se faz necessário recorrermos a outro modelo que abarque as questões deixadas de lado ou não consideradas pelo arquétipo de Meier.

Estes critérios apresentados por Meier (1992: 19-

Crossan (1991, 1998) propõe três níveis teórico-

23) em muitos sentidos nos parecem em parte

metodológicos para pensar os cristianismos

interessantes, já que eles oferecem bases para

originários3, são eles:

tentar problematizar o Jesus Histórico, os paleocristianismos, o Paulo Histórico, bem como toda a documentação a ele atribuída. Tais critérios, no entanto, apresentam também determinadas ‘deficiências’

e/ou

delimitações.

Em

outras

palavras, tais pressupostos disponibilizados por Meier são importantes para o estudo dos

(a)

Microcósmico.

Ele

está

ligado

à

documentação literária, uma análise dos textos sem o contexto, buscando perceber memórias ou ‘tradições’ formadas de e sobre Paulo levando em conta a datação dos mesmos.

cristianismos por apresentar ou tentar se apresentar

(b) Mesocósmico. Ele busca uma reconstrução

como um modelo científico e que entende que o

histórica do ambiente e do tempo em que

Jesus de século I EC não é o Jesus existente no

Paulo viveu; teríamos assim um estudo do

interior de igrejas e congregações. Assim sendo, 3

Os níveis foram num primeiro momento proposto em suas obras O Jesus Histórico (1991) e O nascimento do Cristianismo (1998). O intuito de Crossan era assim pensar as memórias de e sobre Jesus nos primeiros anos de cristianismo que se seguiram após a morte de Jesus e o momento anterior aos escritos de

Paulo em meados dos anos 50 do primeiro século da era comum. Ao se voltar à personagem Paulo, Crossan em seu livro Em busca de Paulo (2004) transporta estes níveis para os estudos paulinos.


G N A R U S | 133

Conversão do procônsul Sérgio Paulo, de quem Saulo pode ter tomado emprestado o nome. Por Rafael, no Victoria and Albert Museum, em Londres. contexto sem os textos. Cabe aqui conhecer

(c) Macrocósmico. Ele envolve uma análise do

a realidade político-social, religiosa e

movimento paulino na perspectiva da

econômica da Bacia Mediterrânica nos

Antropologia Social e Cultural. Busca-se

séculos I e II EC. Uma realidade distinta da

reconstruir a dinâmica e a estrutura social

Palestina deste mesmo período, que estaria

que Paulo viveu. Um mundo norteado por

vivendo uma violenta tensão sociopolítica e

relações de honra e vergonha e patronato

econômica, em particular no campesinato

em grandes centros urbanos cosmopolitas,

judaico. Abrindo espaço para resistências

contando com uma intensa mobilidade de

judaicas entre elas de bandidos sociais,

pessoas e mercadorias, beneficiados pela

profetas e messias. O Mediterrâneo, por

integração estabelecida no Mediterrâneo

gozar neste mesmo período de uma maior

tanto por via marítima quanto terrestre, e

estabilidade

tendo consequentemente uma enorme

econômica,

e

integração

acabou

por

político-

conhecer

ou

florescer outras lógicas de organização religiosa.

circularidade cultural e de ideias. Estes níveis, especialmente o último, nos parecem interessantes, pois nos permitem traçar um


G N A R U S | 134 comparativismo construtivo, como diria Detienne

conceitos.

(2004: 9), para se pensar/problematizar os

metodologia transdisciplinar abrimos espaço em

documentos pertencentes ao estudo do Paulo

primeiro lugar para um ambiente plural de ideias e

Histórico. De forma que ao se admitir que não há

acima de tudo de autores que são entendidos como

um valor implícito para a construção do que pode

agentes de seu tempo e por isto mesmo a

ou nãoser ‘comparável’, passamos a ver todo o

documentação não é esgotável, pois a todo o

objeto não como algo exclusivo, particular ou

momento e a luz de novos olhares novas questões

isolado de um todo, mas como parte de vetores

irão emergir.

próprios da experiência humana: tempo e espaço. Ou

seja,

ampliam-se

as

bases

Em

outras

palavras,

com

uma

E é este caminho comparativista que devemos

teórico-

percorrer para apreender a busca pelo Paulo

metodológicas ao inserir percepções advindas de

Histórico. Sob este víeis poderemos dar respostas

diferentes campos, como da Antropologia, da

mais plausíveis sobre os rituais de iniciação e

Arqueologia e da Sociologia.

manutenção

nas

comunidades

paulinas,

ou

O que também implica dizer que o olhar sobre a

compreender todos os textos existentes no cânon

documentação também deve ser repensada, ou

cristão são realmente de Paulo ou não e quais as

melhor, a fonte não deve ser pensar como um

razões nos levam a delegá-los ou não como de

relato, mas como um inventário (VEYNE, 1983: 34).

Paulo e se não o são quais as razões para a produção

De forma, assim, a romper com a ideia de relato

de textos sendo atribuídos ao apóstolo. E mais do

contínuo. Relato contínuo este que é fruto da

que isto, nos indagar se tal postura era comum e

individualização dos acontecimentos pelo tempo

como era vista pelos contemporâneos da produção.

que acaba por impedir comparações. Uma vez que

Esta proposta metodológica vislumbra ainda

se compreende a documentação por inventário ao

perceber que o Paulo Histórico falou, pensou e

invés de relatos, o autor afirma que a história passa

escreveu a partir de uma herança cultural

a ser compreendida como a ciência que estuda os

compartilhada. Um ótimo exemplo disto está na

materiais humanos subsumidos nos conceitos. Em

historieta do corpo (1Cor 12:12-27), onde a igreja é

outras

das

comparada ao corpo humano. Destacam-se neste

comparáveis advém da análise que se faça das

ponto específico três aspectos: (a) o corpo seria

fontes. A priori, nada é incomparável. Pois

composto por uma multiplicidade de membros,

dependendo da perspectiva em que se compara,

onde cada um deles é diferente do outro,

podem aparecer ou não comparações. Já que como

desempenhando funções bem definidas; (b) a

diz

essencialmente

necessidade que cada uma das partes do corpo tem

comparativista. E a história se estabelece por

de se mutuamente para que o corpo na sua

intermédio das comparações que são feitas

inteireza possa sobreviver; e (c) tal como o corpo

constantemente.

humano é composto de diferentes partes e cada

palavras,

Veyne,

o

o

estabelecimento

homem

é

Assim sendo, ao admitir tal percepção teórico-

uma delas concorre para a manutenção do corpo,

metodológica compreende-se que o que é dito e

assim também a igreja deve superar as partes para

falado é fruto dos interesses do Cientista Social, em

que o todo sobressaia.

que a pesquisa é sempre materialmente escrita com

Sem esta metodologia transdisciplinar a análise

fatos e formalmente, com uma problemática e

final seria a exposta acima com a leitura de que a


G N A R U S | 135 fala de Paulo é original, uma invenção paulina e

elementos da personagem histórica, mas que ela

distante de qualquer possível diálogo com o seu

também esteve e está constantemente sujeita a

ambiente. Contudo, ao nos voltarmos para os textos

recriações e sob outras lentes de leitura que não

de dois analistas romanos, Dionísio de Halicarnaso

necessariamente atendem as propostas do apóstolo

e Tito Lívio, vislumbramos que essa história na

que viveu como um judeu no contexto político-

realidade

por

econômico e social da Bacia Mediterrânica de

inúmeras culturas mediterrânicas tocadas pela

século I EC. E a chave para a construção desta

civilização grega (CHEVITARESE, 2011: 83-87). Em

perspectiva sobre os estudos paulinos, está a nosso

outras palavras, o que se percebe é que a

ver, na adoção dos três níveis do historiador e

originalidade paulina não estava na historieta, mas

teólogo John Crossan.

era

amplamente

empregada

na forma em que foi empregada. Uma vez que, o apóstolo soube se valer de metáforas e analogias próprias de seu tempo para transmitir uma determinada

mensagem

e

Juliana B. Cavalcanti é Mestranda em História no PPGHC-IH/UFRJ, pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-IH/UFRJ).

garantindo,

consequentemente, que ela fosse compreendida por seus ouvintes e/ou leitores. Referências Bibliográficas. Conclusão. O Historiador italiano Carlo Ginzburg observa e tenta discutir em seu livro “Mitos, Emblemas, Sinais” (1982) a construção silenciosa de um novo modelo epistemológico a partir do final século XIX: o paradigma indiciário. Que pode ser facilmente traduzido pela comparação feita pelo mesmo, ele diz: “O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis a maioria” (GINZBURG, 1982: 145). Com esta fala o autor nos sugere a documentação, independentemente de ser oral, escrita ou visual, deve ser pensada sempre dentro de um todo. Ou melhor, entender que o objeto está contido dentro de uma ampla e complexa rede e não como algo independente, desvinculado. E para isto se faz necessário imprimir uma lente nos pequenos detalhes sempre recorrendo a comparações ou paralelos com a macroestrutura em que se constituiu esta microestrutura. Garantindo assim, a interpretação de que é possível se acessar a

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G N A R U S | 136

Artigo

TRAÇOS GUERREIROS PRESENTES NA SANTIDADE DA LEGENDA ÀUREA: ALGUMAS QUESTÕES INTRODUTÓRIAS Por: Leilane Araujo Silva.

Resumo: Para a realização dessa proposta nosso estudo fundamenta-se nas hagiografias do século XIII. No entanto, sublinhamos que o nosso interesse está nos relatos dos santos guerreiros presentes na Legenda Áurea, essa obra não foi examinada integralmente. Portanto estabelecemos como critérios de seleção, os relatos que apresentam elementos da temática militar e da violência que caracteriza e aproxima da cavalaria medieval. Contudo, por se tratar de uma pesquisa que está em estágio inicial apresentaremos algumas questões introdutórias e o objetivo deste artigo será apresentar a historiografia que está sendo utilizada nesta pesquisa apesar da dificuldade de encontrar referências bibliográficas especificas que sirvam de base para a linha de pesquisa deste estudo. e o porquê desse destaque. Já que esse tema é Introdução

A

abordado de forma recorrente na obra e pelos

elaboração da nossa pesquisa foi desenvolvida a partir das reflexões levantadas sobre elementos da cavalaria

historiadores, refletimos sobre a possibilidade de abordarmos uma temática pouco explorada, mas que estivesse presente na obra.

medieval presentes nas hagiografias do século XIII,

A partir dessas questões, o intuito da nossa

onde analisamos a presença desses elementos em

pesquisa é fazer uma a análise comparativa da

quatro relatos presentes na obra de Jacopo de

presença da temática militar na produção

Varazze

conhecida

como

Legenda

Áurea.

Concluímos que a santidade é evidenciada e

hagiográfica do século XIII. Contudo, no presente artigo apresentaremos

comprovada no âmbito social por percursos

apenas

diferentes, mas que tem a mesma finalidade.

transformações ocorridas na sociedade medieval

algumas

ponderações

sobre

as

A partir das nossas leituras começamos a

no século XIII, a influência da Igreja e da Ordem

questionar o porquê das constantes e detalhadas

Mendicante na produção da Legenda Áurea e

descrições reservadas ás penas e macerações

alguns trabalhos produzidos entorno dessa obra.

sofridas pelos mártires descritas na Legenda Áurea


G N A R U S | 137 Contextualizações do período vivido por Jacopo de Varazze Acreditamos

ser

necessário

fazer

uma

ponderação sobre o século XIII e apresentar as principais transformações que ocorreram nessa época e que influenciaram o modo de ser das pessoas, em especial, a vida de Jacopo de Varazze.

Universidades e na religião teve início a interiorização dos sentimentos. Da mesma forma, no século XIII, a Igreja avistou o nascimento, organização e estabelecimento de associações que aprovou como as Ordens Mendicantes. O surgimento das ordens mendicantes, cuja prática de desprendimento dos bens materiais

No Ocidente dos séculos XII e XIII ocorreram transformações: como intensa urbanização e revitalização das cidades, crescimento comercial com maior produtividade agrícola e artesanal a partir da melhoria das técnicas empregadas, surgimento

de

ofícios

especializados,

desenvolvimento da filosofia escolástica e das literaturas

vernáculas,

o

nascimento

das

com apego a natureza, de intensa pregação e repressão aos hereges passou a atender as novas necessidades sociais e espirituais da sociedade depois das transformações ocorridas nesse período. Roert Ian Moore, no artigo La alfabetización y el

surgimento de la herejía, ca. 1000-ca.1105,

1

defende que, no século XIII, a sociedade ocidental

Jacopo com a Legenda em suas mãos. Ottaviano Nelli. Palácio Trinci. Foligno, Itália. MOORE, Robert Ian. La alfabetización y el surgimiento de la herejía, ca. 1000-ca.1105. In: GARCIA, Maria Loring 1

Isabel. La Edad Media a debate. Madrid: Akal, 2003. p. 552-570.


G N A R U S | 138 passou por um processo de alfabetização,

se por ter sido desde sua origem constituída por

associado diretamente a uma clericalização.

clérigos e buscar o equilíbrio entre a pregação e a

Partindo de um argumento similar, Indro

erudição, valorizando o estudo continuo da bíblia

Montanelli e Roberto Gervaso, no livro Itália: os

na formação dos pregadores.

séculos decisivos, afirmam que o âmbito clerical possuía vantagem sobre o laico. No que diz respeito a certo “monopólio cultural” exercido pelo clero que seria o principal responsável pelo ensino.

Nesse momento já não era mais tão confortável manter a posição de uma Igreja que utiliza a grandeza do seu passado e a promessa impalpável da eternidade, como um ímã que atrai pra si, sem esforço, a limalha espalhada ao seu redor. Era

Em suma, as transformações de então atingiam

necessário mover-se ao encontro daqueles

toda a Europa católica, mas seu ponto central

homens que mudavam sua maneira de pensar por

estava de certa forma na Itália, região mais

conta de um mundo que crescia e trazia nesse

povoada, urbanizada e heretizada do Ocidente,

crescimento cada vez mais novidades.4

mas o trabalho contra a heresia requeria uma comunicação acessível à população em geral e não apenas aos doutos, daí a necessidade da L.A, 2 segundo Hilário Franco Júnior. Em síntese, podemos concluir que a hierarquia

Com isso, tornou-se preciso formar cristãos pelo convencimento e o uso da palavra passou a ser determinante. Pois, essa palavra era pautada na razão, construída no conhecimento gerado pelo estudo das Escrituras e fundamentada na reflexão

eclesiástica combateu os infiéis e o paganismo,

do

lidou com as divergências com o poder civil e

objetivando

combateu os movimentos heréticos. Acreditamos

dominicanos o meio para alcançar esses cristãos

que essa é a essência da produção literária de

deveria ser a fé, a inteligência e a união com Deus.

Jacopo de Varazze, composta por distintos sermões. Alguns aspectos da Ordem dos Dominicanos A Ordem dos Dominicanos nasceu em um mundo medieval que experimentava um grande impulso no seu desenvolvimento, 3 que era vedado pelas intervenções da Igreja que buscava afirmar a sua supremacia no poder espiritual sobre o poder

homem

perante o

sua

espiritualidade,

convencimento.

Para

os

Segundo André Vauchez, graças às orientações definidas nas Constituições Dominicanas de 1220, a ordem exerceu influência direta sobre a sociedade do seu tempo, porque Domingos soube compreender a importância da palavra na transmissão e na educação de fé cristã. Para isso não houve dúvida em priorizar o trabalho intelectual sobre a vida no convento e sobre a

temporal, mas a Ordem Dominicana diferenciou-

Escolástica. In: LE GOFF, J & SCHMITT, J-C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru/ São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial, 2006, p. 368. In: ABRAHÃO, Marcos. O Ratio Studiorum Domicano

Sigla referente à Legenda Áurea. JR, Hilário. A idade média – o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 36-44. In: ABRAHÃO, Marcos. O Ratio Studiorum Domicano

4ALÉSSIO, Franco.

da ANPHU-RIO Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro, 2010.

da ANPHU-RIO Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro, 2010.

2

3FRANCO

(1259): como a filosofia preservou a unidade no seio da Ordem Dos Frades Pregadores. XIV Encontro Regional

(1259): como a filosofia preservou a unidade no seio da Ordem Dos Frades Pregadores. XIV Encontro Regional


G N A R U S | 139 liturgia, privilegiando assim a educação para

consensualmente situada pelos medievalistas

fortalecer a palavra5.

entre 1226 e 1230. 6 Ele nasceu na cidade de

A erudição dominicana é um elemento construído e solidificado na origem da Ordem. A preocupação constante em se posicionar como um grupo de estudiosos, garantindo essa postura através

de

uma

legislação

disposta

criteriosamente e especifica, deu unidade à Ordem fazendo a educação um elemento de união entre os frades. O sentido de sua existência era

Varazze, e com a idade de dezoito anos ingressou na Ordem Dominicana, na qual se destacou rapidamente por causa da sua cultura e seu desvelo evangelizador. Durante anos estudou, pregou e ensinou os preceitos cristãos calcados no evangelho, no nordeste da Península Itálica. Em 1267, aos seus vinte anos tornou-se líder da Ordem na importante província da Lombardia. Com base em Os martírios na construção de

gerar um grupo fundamentado para combater as heresias, ou seja, um grupo apto para converter o

santidades

saber

no

comparativa dos relatos da Legenda Áurea de

encaminhamento dos fiéis à salvação, de acordo

Priscila Gonsalez Falci, em 1251, Jacopo rumou em

com Marcos Abrahão.

direção a Gênova onde manteve uma produção

em

argumentação

consistente

Sublinhamos que os dominicanos tiveram destaque no combate aos hereges, na defesa do poder papal em relação a elementos laicos, junto às cruzadas e durante a Santa Inquisição. Em suma, a necessidade da pregação ao povo conduziu os dominicanos a simplificarem e centralizarem a narrativa cristã. A partir dessa consideração, temos a Legenda Áurea como o exemplo mais importante do pensamento eclesiástico desse período, que mostra em sua narrativa textos hagiográficos voltados para a sacralidade, pois, tinham como objetivo, servir como exemplos a serem seguidos.

genderificadas:

uma

análise

epistolar solicitando auxilio ao clero para que combatessem a heresia naquela região. Sua preocupação com o crescimento de movimentos heréticos, especialmente o catarismo, aparece no corpo de sermões7composto por uma ampla gama de textos, distribuídos em quatro séries, a saber: 8 Semones de omnibus sanctis, Sermones

quadra Evangellis

gesimales,

Sermones

domenicalibuse

de

omnibus

Liber

Marialis,

produzidos a partir de 1255. Essa produção inicial estava direcionada ao auxílio de membros da Ordem no combate aos movimentos heréticos que viria a ser conhecida como sermões dourados –

sermones aurei – pela importância que tiveram. A Biografia de Jacopo de Varazze A vida do dominicano é perpassada pela imprecisão de sua data de nascimento, sendo

VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental – Séculos VIII – XIII. Lisboa: Estampa, 1995, p.152. 6 AIRALDI, G. Jacopo da Varagine trasanti e mercanti. Milano: Camunia, 1988, p. 10; BOUREAU, Alain. La Légendedorée: Le systémenarratif de Jacques de Voragine ( ⃰ 1298). Paris: Cerf, 1984. 5

ABULAFIA, David. Italy in the Central Middle Ages: Oxford University Press, 2004.WALEY, Daniel. Las ciudades-república italianas. Madrid: Guadarrama, 1969. 8 Cf. GUIDETTI, Stefania Bertini. I Sermones de Iacopo da Varazze. Firenze: SISMEL, 1998. 7

1000-1300.Oxford:


G N A R U S | 140 Em 1258, foi eleito prior da Gênova9 e se mantém

conjunto de textos (legenda, literalmente “aquilo

no cargo até 1267. Sua atuação indicaria que ele

que deve ser lido”, também tinha o sentido de

esteve presente nos capítulos provinciais e em

“leitura da vida de santos”) de grande valor (dai

muitos dos capítulos Gerais. Alguns pesquisadores

áurea, “de ouro”) moral e pedagógico, que o

apontam que o genovês teria participado dos

mesmo se encarregou de traduzir para o

capítulos de Luca, em 1288, e de Ferrara, em 1290.

português.

Assim, ele estava condicionado nos preceitos dominicanos,

como

também

na

hierarquia

eclesiástica, que certamente influenciaram na organização da Legenda Áurea, que respeitou o calendário litúrgico estabelecido pela Igreja e utilizado pela Ordem de acordo com Priscila Gonsalez Falci na sua dissertação Os martírios na

construção de santidades genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea. Segundo Hilário Franco Júnior, um fato significativo que marcou a vida de Jacopo, a Igreja

Com o aparecimento da L.A. podemos observa que a pregação do Cristianismo e a luta contra as heresias têm como explicação, a Itália ser o centro de reinterpretações das formas de viver o Cristianismo e a necessidade da população de ouvir ou seguir um modelo. Pois a Legenda Áurea servia de cunho didático para a educação moral da população, por conter lições de vida a partir da trajetória dos santos, contribuindo assim para a sua propagação nos meios sociais deste período, de acordo com Franco Júnior.

Católica tinha proibido a cidade de Gênova de manter contatos comerciais com a Sicília, mas apesar da proibição, tais práticas continuaram, o que resultou na excomunhão da cidade. Jacopo foi escolhido pela população para ir até Roma pedir

Em 1295, Jacopo de Varazze foi nomeado arcebispo de Gênova por Nicolau IV. Nesse cargo teve, em 1295, papel decisivo na reconciliação entre genoveses gibelinos (adeptos do imperador) e guelfos (adeptos do papa).

perdão em nome de todos. A partir dessa narrativa, podemos constatar que Jacopo de Varazze era uma personalidade importante e influente na cidade de Gênova. E de acordo com Dominique Coelho dos Santos a vida de Jacopo é marcada pelo

progresso

comercial

e

a

crescente

urbanização.

escreveu várias coisas, como sermões e a Crônica 1296,10

mais sua maior obra

foi à coletânea de hagiografias que ficou conhecida como Legenda Áurea, isto é, um RICHARDSON, Ernest..Materials for a Life of Jacobus de Varagine. Nova York: H. W. Wilson, 1935. 4V.,v. 2., p. 36. 10 Chronica civitatis Iannensis, ed. G. Monleone, Roma, Instituto Storico Italiano per Il Medio Evo, 1941. 9

a escrever a Cronoca dela cittadi Genova

dalleoriginial1297,11 cuja temática era a cidade e seus fundadores, abordando questões políticas, colocando as regras para o bom governo e argumentando como ser um bom cidadão, relatando também a trajetória de vários bispos ou

Franco Júnior afirma que Jacopo de Varazze

de Gênova escrita em

No ano após sua eleição, o dominicano começou

arcebispos, de acordo com Falci. Ernest Richardson em Materials for a Life of Jacobus de Varagine,12 sublinha que apesar da obra ter sido redigida e publicada nesse ano, ela foi editada pela segunda

JACOPO DA VARAGINE. Cronaca dela citta’ di Genova dalleoriginial1297.Torino: ECIG, s/d. 12 RICHARDSON, Ernest. Materials for a Life of Jacobus de Varagine .Nova York: H. W. Wilson, 1935.4V. 11


G N A R U S | 141 vez

em

1296,

sendo

reeditada

por,

aparentemente, Jacopo até sua morte.

passou a ser chamada de Legenda Áurea ainda no século XIII. Ela é “uma obra de cunho didático para

Jacopo de Varazze morreu em 1298, admirado pelos seus concidadãos, foi escolhido como

sermões que foi escrita por Jacopo de Varazze por volta de 1253 e 1270”.15

patrono da cidade de Varazze em 1645, daí o título

Richardson diz que por a L.A. ter uma datação

que acompanha o seu nome. Já em 1816 foi

controversa, ela foi redigida provavelmente após a

beatificado pelo papa Pio VII, 13 devido a sua

morte do Imperador Frederico II, em 1249, pois

conduta exemplar como arcebispo de Gênova.

este acontecimento é mencionado ao final do último capítulo sobre São Pelágio, e antes de 1258, já que ficaria implícito que desta data até a

A Legenda Áurea Originalmente

publicação da obra Milão ficaria livre da presença concebida

como

Legenda

herética.16

Sanctorum, vulgo Alias historia lombardica dicta,14

A Legenda Áurea é considerada uma obra Dominicana do final do século XIII, que apresenta aspectos da tradição cristã e o pensamento eclesiástico dessa época, que estavam inseridos numa forma escolástica de encadeamento dos documentos. A L.A está organizada em cinco partes: inicia com as festas do tempo da Renovação, indo do Advento ao Natal; segue com as celebrações ocorridas nos períodos da Reconciliação e em parte, da Peregrinação,

abrangendo

do

Natal

à

Septuagésima; depois, as que se comemoram no tempo do Desvio, indo da Septuagésima à Páscoa; depois vêm as que caem na parte da Reconciliação, da Páscoa a Pentecostes; em último, coloca as do Pentecostes ao Advento, simbolizando o período da Peregrinação. Paolo Giovanni Maggioni 17 afirma que a L.A. passou por várias revisões do próprio Varazze, ou

REAMES, Sherry. The Legenda Aurea: A reexaminat of its paradoxical History. Wisconsin: UniversityPress,1985. 13

p.15. 14 O nome original da Legenda Áurea em Latim. 15 FRANCO JUNIOR, Hilário. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vida de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

FORTES, Carolina Coelho. Os mártires na Legenda Áurea: a reinvenção de um tema antigo em um texto medieval. In: LESSA, Fábio& BUSTAMANTE, Regina (orgs.). Memória & Festa. Rio de Janeiro: Mauad, p.113, 16

2005. 17 IACOPO DA VARAZZE. Legenda Aurea su CD-Rom. Testo latino dell´edizione critica acura di Giovanni Paolo Maggioni. Firenze: SISMEL-Galuzzo, 1999.


G N A R U S | 142 consentidas por ele, ao longo de sua vida, na

complementado por um conjunto de documentos

opinião de Falci. Essa afirmação também é apoiada

à

por Richardson, tendo em vista a extensa

especificamente dos dominicanos.

quantidade de manuscritos produzidos, no mesmo século de sua produção. As diversas versões da L.A. começaram a serem publicadas quando a obra foi traduzida para o catalão, no último quarto do século XIII, para o alemão em 1282, em 1340 foi elaborada a primeira tradução para o francês e em 1470 surgiram edições da obra em latim.

Áurea não sai da tradição enciclopédica e está fundamentalmente no uso das fontes do século XII e também do XIII para escrever sobre as grandes solenidades do calendário Cristão. como

sua

originalidade

de

seus

contemporâneos

e

Pascal Collomb chegou a esta conclusão a partir da presença e da apresentação da Legenda Áurea nas bibliotecas. O autor cita dois casos: um do século XIV e outro do XV. No primeiro caso a L.A. está junto a instrumentos para a pregação. No segundo, a coletânea de sermões. Segundo Collomb trata-se de indícios sobre a função da

Na opinião de Pascal Collomb 18 a Legenda

Assim

disposição

estaria

exatamente em seguir os modelos dos tratados

De officiis eclesiasticis desses séculos e não a modelos mais antigos.

Legenda Áurea, como dedicada à pregação.19 No artigo Palavra de púlpito e erudição no século

XIII: a Legenda Áurea de Jacopo de Varazze de Néri de Almeida Souza, a autora afirma que a

Legenda Áurea tira sua consistência histórica do vasto

material,

de

diversas

proveniências

temporais e espaciais, organizado por Varazze. Este inclui textos litúrgicos, bíblicos, hagiográficos, doutrinários,

historiográficos,

compilatórios,

Já segundo Brenda Dunn-Lardeau e B. Fleith, a

cristãos e não cristãos, que se estendem da

Legenda Áurea, tem um suposto caráter “arcaico”

antiguidade tardia ao século XIII, contemplando

e os argumentos para essa classificação podem ser

desde santos bíblicos, passando por mártires,

resumidos nos seguintes pontos: preferência por

anacoretas, monges e confessores até os

modelos de santidade não usuais no século XIII:

reformadores e fundadores de ordens dos séculos

ênfase dos relatos no martírio; pouca ênfase na

XII e XIII.

biografia

e

maior

destaque

ás

anedotas

exemplares; poucos santos do século XIII e a referência ao purgatório em apenas duas legendas. No entanto, de acordo com Franco

Júnior, o que parece ser arcaísmo na verdade o texto revela a desconsideração pela história. Collomb afirma que Jacopo teria concebido a

A heterogeneidade temporal e espacial dos textos utilizados na L.A. e a concentração da narrativa na repetição exaustiva dos temas do martírio e do milagre colaboram para compor uma obra homogenia e complexa que acarreta uma série de problemas metodológicos. Um deles é a carência de definição autoral no corpus e a

Legenda Áurea não como uma obra total e isolada, mas um instrumento de trabalho que completa e é

COLLOMB, P..Le séléments liturgiques de la Légendedorée.Traditionet innovations.In: FLEITH, B. et MORENZONI, F. (org.) Dela saintété a l’ hagiographie: 18

gênese et usade de la Légendedorée. Genéve: DROZ, 2001. 19COLLOMB, P..Op. Cit., p.116-118.


G N A R U S | 143 frequente consideração de Jacopo apenas como

que se acredita serem fornecidos pela história

compilador para alguns historiadores.20

santa. E a unidade que a obra adquire na

No entanto ainda não há nada de consistente sobre as possíveis alterações feitas por Jacopo de Varazze no conteúdo original de tais hagiografias, porém, a especificidade da coletânea não é motivo para afirmarmos uma total imparcialidade do autor diante dos textos que tinha em mãos. Apesar

reprodução

desses

personagens,

permite

precisarmos o tratamento de compilador dado a Jacopo e identificá-lo como realizador do trabalho autoral na composição da maior de parte de suas legendas e na idealização do conjunto da obra, segundo Néri de A. Souza.

disso, a datação e a autoria das hagiografias

Um ponto importante da obra é a presença da

contidas na L.A. e a da própria obra ainda é motivo

defesa de atos bélicos e do contratualismo nas

de debates por um amplo número de historiadores

narrativas. O primeiro se define por mostrar o

de acordo com o historiador Bruno Gonçalves

universo como local de combate entre as forças do

Alvaro no artigo A espada, a lança e a cruz:

Bem e do Mal, aspecto importante na ideologia do

reflexões acerca da presença da militia na Legenda

cristianismo medieval. Os santos, cujas vidas são

Áurea através das vidas de São Jorge e São

apresentadas por Jacopo de Varazze, são

Mercúrio.

personalidades importantes para a vitória do Bem.

Contudo, para Néri de Almeida Souza a heterogeneidade das fontes utilizadas, formal ou informalmente, por Jacopo de Varazze cede diante de uma observação mais atenta, para revelar uma uniformidade entre as legendas o que dá a obra uma unidade autêntica. Para ela perfil de santidade presente na Legenda Áurea assemelha-

O segundo expõe a participação de todos os elementos da natureza nessa luta, até os homens, devem se posicionar de um lado ou de outro, nessa situação, o papel dos santos era essencial, pois através dos exemplos, como o martírio e a virtude, conquistaram novos seguidores da causa de Deus.21

se em torno dos feitos físicos heroicos dos santos,

Outro ponto importante é apontado por Franco

mas é interessante perceber a presença mítica,

Júnior, pois segundo ele, há atemporalidade dos

como por exemplo, a presença de homens que

fatos relatados nas vidas dos santos, pois Jacopo

abdicaram a vida de riqueza e que depois de

evita historicizar os personagens e ele aponta

mortos continuaram atuando junto a seus devotos

também, que devemos considerar o simbolismo

através de milagres.

presente na Legenda Áurea, a exemplo, as

A caracterização de cada personagem e legenda

etimologias dos nomes dos santos.

não se ocupa em definir individualidades. Na L.A.

Em suma, a Legenda Áurea representou o

interagem santos, santas, fieis, anjos, demônios,

reconhecimento público do equilíbrio entre

homens e mulheres, retratados dentro dos limites

diferentes camadas da espiritualidade, pois o

Néri de Almeida. Palavra de púlpito e erudição no século XIII: a Legenda Áurea de Jacopo de

Áurea através das vidas de São Jorge e São Mercúrio. In:SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da.Hagiografia& História: Reflexão Sobre a Igreja e o Fenômeno da Santidade na Idade Média Central. Andréia Cristina

20SOUZA,

Varazze. Revista Brasileira de História, vol. 22, n.43, p. 70, 2002. 21ALVARO, Bruno Gonçalves. A espada, a lança e a cruz:

reflexões acerca da presença da militia na Legenda

Lopes Frazão da Silva (organizadora).Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, 2008. p. 61.


G N A R U S | 144 cristianismo medieval girava em torno da palavra

vidas dos santos e fieis, as curtas histórias e o

“mito” que era abrigado pela cultura popular e do

constante uso de anedotas. Pois o seu caráter

“rito” resguardado pela cultura erudita. A obra de

breve, possivelmente, proporcionou uma fácil

Jacopo de Varazze registrava a nova harmonia da

memorização para os ouvintes e possíveis leitores.

dupla perspectiva, verbal e gestual.

Entretanto, a pesar da falta de referências sobre

E é notadamente uma obra voltada para a

a difusão da Legenda Áurea, a sedução que a

sacralidade e a autoridade da escrita, com sua

mesma exerceu residia segundo Alain Boureau 23

riqueza informativa destinada à oralidade dos

no fato dela ser composta como um universo de

pregadores

significação acabado e completo, que traça uma

e

interessada

em

atingir

a

sensibilidade de auditores iletrados. Entretanto tinha o objetivo de defender a vida cristã como o meio de alcançar a salvação através

origem e um fim e que nele tudo é dito, onde cada elemento remete à totalidade e todo cristão encontra o seu lugar.

dos santos, que funcionam como exemplos a serem

Em suma, acreditamos que a difusão da L.A. foi

seguidos, contudo eles “são santos porque

possível devido à presença de uma linguagem

nasceram com a marca da graça divina e que a vida

simples, direta, com historietas engraçadas, com

terrena deles apenas serviu para comprovar.”22

elementos fantásticos e mágicos, fáceis de

Néri de Barros Almeida acredita ser difícil que Jacopo de Varazze almejasse que a Legenda Área fosse modelo a ser seguido, já que a renúncia sobre-humana á corporalidade está expressa em grande parte das hagiografias. Tendo em vista que as legendas são claras no caráter excepcional dos santos e demonstram que eles ultrapassam os limites que a natureza reservou aos seres humanos. Logo, acreditamos que a L.A apresentava os santos

memorizar

e

dotados

de

cunho

moral,

evangelizador e civilizatório, alertando acerca dos perigos mundanos e das consequências, muitas vezes cruéis, para aqueles que se recusarem a trilhar o caminho da fé cristã. E que está obra teve como objetivo disseminar e popularizar o discurso religioso nas camadas mais populares devido ao seu caráter conversor, moralizador e educadora partir das hagiografias.

como personagens didáticos e estava voltada para a veneração. Por tanto, a Legenda Áurea foi constituída de forma narrativa e pedagógica, com o claro objetivo de auxiliar os frades pregadores e padres na preparação de seus sermões e isso fica explicito na forma como a narrativa é construída: a

Revisão Bibliográfica Ultimamente

vem

tendo

uma

cresceste

produção acadêmica sobre as Hagiografias presentes na Legenda Áurea de Jacopo de Varazze e cada vez mais há reflexões sobre esse tipo de documentação, que é analisada e discutida através

descrição de acontecimentos maravilhosos nas

FALCI, Priscila Gonsalez. Os martírios na construção de santidades genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea. Dissertação de mestrado na 22

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. 23 BOUREAU, A. La Légendedorée. Le système narratif de Jacques de Voragine (1298).Paris: Cerf, 1984, p.14.


G N A R U S | 145 de algumas temáticas presentes nela, a exemplo o martírio, santidade, o pecado, o Diabo, etc. Dessa forma destacaremos alguns trabalhos produzidos em torno da L.A. e que utilizaremos em

Consideramos o livro Hagiografia e História

reflexões sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central organizado Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva significativo, dado

nossa pesquisa. O livro História e Historiografia

que os textos apresentados nesta coletânea tem

sobre a Hagiografia Medieval organizado por Igor

como tema central a hagiografia, diante disso

Salomão Teixeira, essa obra reúne um conjunto de texto de alguns pesquisadores com abordagens variadas, que pesquisam sobre os relatos da vida dos santos produzidos no período medieval. Devido à importância que esta obra tem para este trabalho, por abordar pesquisas sobre a

Legenda Áurea através de uma gama de temáticas, vamos destacar três textos presentes nela. O primeiro é a apresentação escrita por Igor

destacaremos três textos.A espada, a lança e a

cruz: reflexões acerca da presença da militia na Legenda áurea através das vidas de São Jorge e São Mercúrio de Bruno G. Alvaro analisa a presença da temática militar na produção hagiográfica do século XIII com base na L.A. de Jacopo de Varazze.

Santidade e gênero: Vauchez e o modelo masculino de Carolina Coelho Fortes nesse texto Fortes nos apresenta de forma sucinta o modelo de

Salomão Teixeira intitulada de A Hagiografia no

santidade criado por André Vauchez bem como o

Brasil: a Legenda Áurea e os 10 anos da tradução

seu questionamento sobre esse modelo a partir de

brasileira, ela nos apresenta alguns dados sobre as pesquisas realizadas tendo a Legenda Áurea como fonte e sobre a hagiografia medieval, bem como faz uma análise quantitativa da produção acadêmica em torno dessas temáticas. O segundo é o de Neri de Barros Almeida intitulado de Intenção do autor e cultura

folclórica: o martírio na Legenda Áurea, que faz um relato breve de sua pesquisa sobre as produções realizadas em torno da Legenda Áurea, do mesmo modo que sobre a obra em si, as intenções de Varazze ao escrevê-la e a sua preleção por relatos martirológicos. Já o terceiro é A Legenda Áurea:

da tradução, edições, destinatários e modelo de santidade de Carolina Coelho Fortes, ela aborda as edições, os possíveis destinatários da L.A. e o modelo de santidade, pois a mesma considera fundamental para qualquer estudo sobre a

Legenda Áurea.

Frontispício da edição 1497 do Sermones De Sanctis , Biblioteca Nacional da Polônia


G N A R U S | 146 uma perspectiva de gênero e faz uma comparação

Enfim, considerando o contexto vivenciado por

entre o modelo de Vauchez e o de Varazze na

Varazze defendemos que o dominicano afirmou

Legenda Áurea.

valores e posturas políticas dentro de sua obra e

Jacopo de Varazze e a Legenda Áurea: relações

que reuniu o mais vasto material sobre os santos

entre contexto e produção escrito por Priscila

utilizando fontes variadas, caracterizado pela

Gonsalez Falci, tem como base o exame comparativo de dois relatos extraídos da L.A. e a discussão sobre o contexto e a produção da

heterogeneidade temporal e espacial, que foi organizada de acordo com o calendário litúrgico com o propósito de servir de exemplo, combater as heresias, auxiliar a formação dos clérigos e facilitar

Legenda Áurea. Temos que citar também a dissertação de

a composição dos sermões.

mestrado de Priscila Gonsalez Falci intitulada de

Os Martírios na Construção de Santidades Genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea, que tem como base teórica o estudo de gênero e como objetivo central

Leilane Araujo Silva é Graduanda de História pela Universidade Federal de Sergipe e integrante do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste). E-mail para contato: leila_rapunzel@hotmail.com

examinar as estratégias narrativas utilizadas nos relatos sobre os mártires selecionados para a construção de santidades genderificadas. Enfim, os trabalhos aqui citados são algumas das diversas análises feitas acerca da Legenda Áurea e do seu autor.

No século XIII a sociedade medieval passou por transformações,

ligadas

ao

desenvolvimento de um novo ideal de santidade e de vida cristã. Com isso, a Igreja combatia as diversas heresias e os movimentos religiosos laicos, como as Ordens Mendicantes. Diante deste contexto, consideramos como a relação entre a Ordem Mendicante e a Igreja influenciaram a produção da Legenda Áurea, tendo em vista os motivos e os objetivos de Jacopo de Varazze na produção desta obra. Nesse sentido, procuramos entender algumas particularidades do autor e de sua obra.

FALCI, Priscila Gonsalez. Os martírios na

construção de santidades genderificadas: uma análise comparativa dos relatos da Legenda Áurea.Dissertação de mestrado na

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008. SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da.Hagiografia & História: Reflexão Sobre a

Consideração final

diversas

Referências

Igreja e o Fenômeno da Santidade na Idade Média Central. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (organizadora). Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, 2008.

Igor Salomão. História e Historiografia sobre a Hagiografia Medieval.

TEIXEIRA,

Igor Salomão Teixeira (org.). São Leopoldo: Oikos, 2014.

VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vida de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


G N A R U S | 147

Artigo

PREMISSAS, HIPÓTESES E EVIDÊNCIAS: UM OLHAR SOBRE O MAGREB MEDIEVAL1 Por: José Wilton Santos Fraga RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma proposta de investigação no qual é destacada a importância do estudo da história das sociedades africanas, especificamente, as que atuaram na região do Magreb entre os séculos XI e XIII. Tendo como foco um contexto no qual, a partir da entrada islâmica em solo Ibérico, em meados do século VIII, pode-se observar o contato com a África se tornar mais constante para os medievais ocidentais e como consequência, a ocorrência de trocas culturais entre o mundo cristão o islâmico. Como na historiografia existiu um debate acerca de um possível “feudalismo islâmico” e o período referido, compreendido como Idade Média Central, foi onde se deu o processo de consolidação das relações senhoriais na Península Ibérica, a investigação levanta como matéria de estudo, a possibilidade da existência de práticas senhoriais no norte da África. Desse modo, aqui se faz uma breve e simples explanação, bem como um breve panorama apontando as nossas primeiras impressões, tais como: algumas características e elementos do cenário abordado, as dificuldades em que se enquadram fontes e bibliografias (bem como alguns nomes que trabalham o Magreb na Idade Média), o caráter interdisciplinar do campo de pesquisa dentro do espaço recortado, o debate teórico acerca do feudalismo e a riqueza da problemática a ser explorada. Contudo, o mais importante é notar a necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, convergindo assim, com o desejo da nova historiografia que se dedica ao assunto, contribuindo com a tentativa de trazer para o cenário acadêmico local abordagens desse campo. Palavras - chave: Idade Média; Feudalismo; Senhorio; Islã Medieval; Magreb.

A

sustentar esse interesse. Primeiro, as trocas intenção de investigar uma possível

culturais entre os mundos do Islã e o da

existência de práticas senhoriais no norte

Cristandade.

Segundo,

do continente africano (domínio do

historiografia

de

Império Islâmico) entre os séculos XI e XIII via

uma

a

existência

hipótese

sobre

na um

“feudalismo islâmico”.

contato com ocidente cristão pela Península Ibérica, está baseada em dois fatores que poderiam

Este artigo está associado ao projeto de pesquisa de iniciação científica Conexões entre a África e a Península Ibérica na Idade Média Central: Um estudo sobre a possibilidade de presença de relações senhoriais em território africano (262014), 1

financiado pelo Programa Jovens Talentos para a Ciência 2015 -2016 /Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e coordenado pelo Prof. Dr. Bruno Gonçalves Alvaro.


G N A R U S | 148

Cidade Medieval no Magreb (Toscana) - Ilustração para a Oxford University Press Sabe-se

que

o

mundo

islâmico

foi

um

contraponto ao Ocidente e sua expansão implicou

muçulmanas”. Já a respeito do lado mulçumano, ele afirma:

em contados por muitas vezes conflituosos, como as Cruzadas e as guerras de Reconquista, dada a ênfase em ambas as religiões dos dois mundos. Queira quer não, o choque entres as duas culturas foi inevitável e isto deve ser levado em conta. No entanto, não devemos reduzir as relações entre o ocidente e o mundo mulçumano apenas a conflitos de ordem religiosa e/ou militar, apesar do lado cristão ter quase se limitado a isso. Segundo Will Durant (2002, p. 307), “provavelmente dos cristãos resultaram o misticismo, o monasticismo e o culto de santos do maometismo. A figura e a história de Jesus tocaram a alma islamita a apareceram de maneira simpática na poesia e arte

A influência do Islã sobre a cristandade foi variada e imensa. Do Islã, a Europa cristã recebeu alimentos, bebidas, drogas, medicamentos, armadura, heráldica, motivos e gostos artísticos, artigos e técnica industrial e comercial, códigos e métodos marítimos e muitas vezes palavras para designar essas coisas: laranja, limão, açúcar, xarope, sorvete, julepo, elixir, jarro, arcabuz, algodão, sofá, musselina, cetim, fustão, bazar, caravana, cheque, tarifa, tráfego, aduana, magazine, azeite, chalupa, gabarra, chafariz, almirante. (DURANT, 2002, p. 307). Isso apenas a título de exemplos em contextos muitos mais amplos como os da filosofia, da ciência, da literatura, língua e arte. Sem falar da relação comercial apoiada em tratados, os quais favoreciam importações e exportações e até mesmo permitiam


G N A R U S | 149 que os comerciantes ibéricos se instalassem em

Ainda se inclui aos fatores, a deteriorização do solo

albergues (funduk) nos portos e no interior do

que perdera fertilidade por ser explorado ao

território mulçumano no Magreb. Essas trocas entre

máximo e a escassez de mão de obra, a qual era

as duas culturas foram favorecidas por um período

incapaz de recuperar a produção anterior e

de grande tolerância que, de acordo com

encontrava-se escassa pelo fato das pessoas

Mohamed Talbi, tinham como motivos “uma

estarem abandonado as terras, fechando assim uma

simpatia

estratégia

espécie de círculo vicioso. Esse fato nos indica uma

espiritual” (2010, p. 78). Portanto, nenhum era

característica predominante na região no que diz

“estranho” ao outro.

respeito à mão de obra utilizada pela agricultura:

desinteressada

e

uma

essas pessoas não viviam em regime de servidão. A época em análise compreende o período de domínio dos Almorávidas (do século XI a meados do

Sobre as propriedades onde trabalhavam e as

século XII), dos Almóadas, que estenderam um

relações jurídicas do uso da terra no período após a

império de Trípoli à Sevilha entre 1147 e 1269,

queda dos Almóadas, Hady Roger Idris comenta:

constituindo uma civilização ibero-magrebina, e

ocidente cristão. Visto que um dos elementos que

Alguns indivíduos poderosos tinham grandes propriedades, mas a grande maioria dos habitantes do campo vivia e trabalhava em propriedades coletivas. Muitos lotes eram habous privados ou públicos cultivados pelos próprios adjudicatários ou por eles arrendados. Frequentemente, se não na maioria dos casos, a terra era cultivada segundo um contrato concluído com o proprietário: as plantações eram arrendadas a diversos agricultores, e havia várias formas de arrendamento e parceria, sendo o quinto a mais comum. (IDRIS, 2010, p. 118).

marcaram esse panorama foi a dissidência de forças

Por outro lado, a configuração jurídica da grande

de “membros de famílias reinantes, chefes de tribos

propriedade fundiária criada no seio da sociedade

nômades, mercenários cristãos, xeques sufi,

feudal e que no geral determinava os laços de

xarifes”, todos em busca do poder; além da

dependência de indivíduos sob outros, era um

problemática do declínio das terras cultivadas que

fenômeno íntimo do ocidente ligado ao uso da

levou à baixa densidade demográfica da região

terra, e num primeiro momento, não se assemelha à

(abandono das terras), atribuída por Ivan Hrbek

encontrada no norte da África. Pois o que foi posto

(2010, p. 111) ao que ele chamou de “regime feudal

como objeto de investigação e modelo a ser

e instabilidade generalizada”.

encontrado, foi aquela relação dada entre os ditos

posteriormente, a queda desse império e sua fragmentação dividindo o Magreb em três estados governados por dinastias diferentes (a dos Haféssidas, a dos Zaianidas, e a dos Marínidas). O interessante aqui seria tentar compreender as forças dinâmicas internas que levaram ao declínio do poderio político, militar e econômico desses estados dentro do contexto das relações com o

Esse abandono também é associado à invasão dos nômades árabes, a partir do século XI, que passaram a utilizar terras antes cultivadas como pastagens, rompendo um equilíbrio secular entre seu modo de vida e o modo de vida sedentário dos camponeses. 2

ALVARO, 2013, passim;

senhores e camponeses2 (ou “vilões”, os habitantes da vila ou da aldeia, de acordo com a concepção da época no contexto ocidental). Onde os primeiros adquirem a sua condição ao receberem de outros senhores com mais poderes que os seus (isso dentro


G N A R U S | 150 das chamadas relações feudo-vassálicas) uma

sociedade dita feudal, é um mundo muito

propriedade na forma de feudo, o qual deve ser

diferente.

considerado como “a concessão de um poder senhorial, que pode dizer respeito a uma terra e

A historiografia espanhola desde a década de 70

seus habitantes, mas pode também limitar-se a um

vem discutindo sua existência na própria Península

direito particular, por exemplo, o de exercer a

Ibérica com configurações que possam sustentar

justiça, de recolher uma taxa ou cobrar um

essa ideia e consequentemente a de práticas

pedágio” (BASCHET, 2006, p.123). Já os segundos,

senhoriais nesse território que fora tempos antes

são aqueles que habitam na propriedade do senhor

posses dos mulçumanos. Obras de historiadores e

e dependem dela para produzir, concretizando

de arqueólogos produzidas em bom número a

assim um laço que lhes atribuem uma série de

respeito da problemática de aldeias fortificadas e o

obrigações.

acastelamento

na

região

são

avanços

na

historiografia que serviram de modelo para Isso são apenas linhas gerais de intrincadas e complexas dentro

relações de

rearranjo

um sócio

trabalhar o espaço rural no norte da África, assim afirmam

Mohamed

Ouerfelli

e

Élise

Voguet (2009).

espacial (o senhorio) onde pode-se ainda

Campo

este,

destacar a figura do

mundo

castelo (e também das

ocidente mulçumano

fortificações)

no medievo, muito

como

do

carente de estudos.

elementos constituintes

rural

o

desse

Porém

as

poucas

cenário. Porque além

iniciativas

nos

de ser a residência, o

proporcionam a noção

castelo era também a fortaleza de um senhor3. Ele

de que se trata de uma área com possibilidades de

controlava todas as terras circunvizinhas por meio

abordagens, pois fizeram e estão a fazer o uso de

de uma tropa montada nele aquartelado4.

fontes diversificadas e agregando pontos de vistas novos com a contribuição de outras áreas do

Sendo assim, não é demais lembrar ou esclarecer que a proposta de investigação colocada aqui

conhecimento como a arqueologia, a antropologia, a sociologia, a geografia e o direito.

apoia-se na discussão do feudalismo como uma “categoria de análise”, visto que para onde se

Mesmo considerando todos esses elementos

pretende levar esse modelo teórico que define

enunciados, à primeira vista, tentar considerar que

relações entre homens e o uso da terra inserido no

puderam ter existido práticas senhoriais ou

conjunto de elementos que constituem uma

elementos de uma sociedade feudal iguais ou

ZAHAR, 1997, passim; Em Portugal, a configuração política e social não permitiu que o uso do castelo fosse o mesmo do restante da Europa. Interessante então, procurar no Magreb se

havia uma configuração própria e se havia algo que desempenhasse o papel estratégico do castelo como o reduto do senhor, de acordo com os trabalhos referidos logo à frente.

3 4


G N A R U S | 151 semelhantes ao que ocorreram na Europa em domínios mulçumanos, não passa apenas de uma dose de eurocentrismo. Pelo contrário, o método comparativo e uma análise sincrônica desses elementos em conjuntura são plausíveis. Na historiografia já ouve caso similar. Lógico que só amparando-se em fontes é que se pode desenvolver

o

ofício

do

historiador

com

credibilidade. Enquanto isso ainda não é possível, vale o intuito de buscar novas linhas de investigação promovendo o estudo de áreas negligenciadas baseando-se em trabalhos já realizados. Em virtude disso, é essencial citar um debate historiográfico iniciado na década de 30 pelo

contestada posteriormente. As pesquisas pioneiras de Claude Cahen sobre o iqṭāˁ Oriental, incluindo o Egito, têm demonstrado os limites dessa correlação. O autor distingue quatro características básicas do sistema oriental, suficientes para dissociar claramente do feudalismo ocidental. São elas: - O controle do Estado sobre a aquisição da renda do iqṭāˁ; - O aspecto não hereditário da concessão; - A raridade de concessões atribuídas a uma pessoa para toda a vida; - O fato dos muqṭaˁ-s não desfrutarem de uma autoridade local independente do governo central. (BENHIMA, 2009, p. 28-29, tradução nossa).

historiador israelense Abraham Poliak. Ele tentou um estudo comparativo avançando a hipótese de

É bem verdade que a dissolução desse equívoco

um "feudalismo islâmico". O debate não teve muito

configura um rumo diferente na investigação por

fôlego e logo foi questionado por estudos do

retirar como evidência o uso do iqṭāˁ equivalente a

historiador francês Claude Cahen na década de 60.

um feudo. Porém, sabe-se que as sociedades

Dentre outros aspectos, o interesse em torno de

mulçumanas formadas no norte da África, mesmo

uma forma de concessão territorial/administrativa

herdando

praticada pelos estados mulçumanos com o

sociedades genuínas com seus próprios interesses

objetivo de obter a lealdade das suas elites e

políticos

consolidar sua autoridade, foi um ponto em

aprofundamento nos argumentos que levaram a

questão. O termo em árabe para essa forma de

esses historiadores a defenderem essa hipótese.

concessão dentre outras é iqṭāˁ. E foi muitas vezes confundida ou mal comparada com o feudo das sociedades ocidentais.

historiográfico

e

econômicos.

do

Oriente,

Cabe

eram

então,

um

Desse modo, essa proposta que se apresentou converge com o desejo da nova historiografia que se debruça sobre o espaço rural do Magreb

Yassir Benhima simplifica a explicação do equívoco

características

cometido

por

historiadores a respeito da concessão iqṭāˁ:

O termo iqṭāˁ designa "uma forma de concessão administrativa” praticada pelos Estados muçulmanos, que foi muitas vezes confundido, injustamente, com o feudo. Esta aproximação praticamente excessiva entre o sistema iqṭāˁ e o feudalismo Ocidental, certamente motivado pelo eurocentrismo de alguns orientalistas ou até mesmo por pressupostos marxistas, felizmente foi

medieval, que é sair de uma espécie de comodismo intelectual, o qual utiliza as informações contidas nas poucas fontes existentes de maneira repetitiva e estereotipada, limitando novas abordagens, dificultando um entendimento melhor das relações que as populações locais possuíam com o uso da terra. “Se a identidade da tribo ou da aldeia se forja, por exemplo, sobre a manutenção de uma mesquita, a apropriação da terra também é crucial para a construção de comunidades rurais”, é assim


G N A R U S | 152 o pensamento de Mohamed Ouerfelli e Élise Voguet (2009). Enfim, o que esses poucos parágrafos escritos acima trazem um pequeno esforço, porém não menos importante, de trazer para o cenário acadêmico

local

abordagens

desse

campo,

reconhecendo a importância da necessidade de voltar-se para uma área há tempos negligenciada, mas que vem, cada dia mais, tomando fôlego e espaço não só na África e Europa, como também no nosso país. José Wilton Santos Fraga é graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe; Bolsista do Programa Jovens Talentos para a Ciência/ Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e integrante do Vivarium: Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste). Contato: josewilton55@hotmail.com

Referências Bibliográficas ALVARO, Bruno Gonçalves. As Veredas da

Negociação: Uma análise Comparativa das Relações entre os Senhorios Episcopais de Santiago de Compostela e de Sigüenza com a Monarquia Castelhano-Leonesa na Primeira Metade do Século XII. p. 31. Tese (Doutorado em História) – Programa

de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. BASCHET, Jérôme. Ordem senhorial e crescimento feudal. In:___. A Civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 122-137. BENHIMA, Yassir. Note sur l’evolution de l’iqṬaˁ au maroc medieval. L’Institut historique allemand. Paris: 16, 2009, p. 27-44. DURANT, Will. Grandeza e decadência do Islã. In: ______. A idade da fé: História da civilização Medieval, cristianismo, islamismo, judaísmo, de Constantino a Dante. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. Cap. 24, p. 278-309. HRBEK, Ivan. A desintegração da unidade política no Magreb. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 4, p. 89-115. IDRIS, Hady Roger. A sociedade no Magreb após o desaparecimento dos Almóadas. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do

século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 5, p. 117-131. OUERFELLI, Mohamed. VOGUET, Élise. Introduction: Le monde rural dans L’Ocident musulman medieval. REMMM: Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée, França, n. 126, nov. 2009. Online: disponível na internet via http://remmm.revues.org/6359. SAIDI, O. A unificação do Magreb sob os Almóadas. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 2, p. 17-63. SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Feudalismo. In:___. Dicionário de conceitos históricos. 2. ed., 2ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2009, p.150-154. TALBI, Mohamed. A expansão da civilização

magrebina: seu impacto sobre a civilização ocidental. In: NIANE, Djibril Tamsir (Ed.). História

geral da África, IV: África do século XII ao XVI. 2. ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010. Cap. 3, p. 65-87. ZAHAR, Jorge (Ed.). Castelos. In:___. Dicionário da Idade Média. [s.n.] Rio de Janeiro: 1997, p. 78-80.


G N A R U S | 153

ENTREVISTA: BRUNO LEAL Por Fernando Gralha e Cindye Esquivel

N

osso entrevistado deste número é o que

Humanidades Digitais”, além de também se dedi-

podemos considerar um historiador

car aos estudos Judaicos no Brasil. Historiador com

multimídia, caminha por guerras, pre-

vasta produção acadêmica é doutor em História so-

conceitos, novas tecnologias e redes sociais é o cri-

cial pela UFRJ e professor da Universidade Federal

ador da Rede Social “Café História” - a maior rede

Fluminense. Tudo isso faz do professor Bruno Leal

social online de história da internet1, coordenador

um ótimo “papo” no campo da História, da mídia e

de uma rede de pesquisadores unidos pela língua

da produção acadêmica, esperamos que gostem

portuguesa e pela inclusão da perspectiva digital

tanto do “papo” como nós.

em seus horizontes de pesquisa, a “Associação das

1

http://cafehistoria.ning.com


G N A R U S | 154 O senhor poderia começar falando sobre o processo de criação da rede social Café História? Quando e como surgiu a ideia, o que o motivou a criá-la? A ideia base do Café História surgiu os durante meus anos de graduação, entre 2003 e 2008. Eu cursava as faculdades de história e de comunicação social. Com o passar dos anos, eu me convenci cada vez mais que essas minhas duas áreas de formação podiam dialogar muito mais. E aí, eu gostaria de deixar bem claro uma posição que eu defendo com bastante veemência em meu trabalho: todo historiador é um comunicador. A comunicação está presente em cada aspecto do ofício do historiador. Artigos, teses, conferências, aulas, pesquisa, divulgação. O problema é que nem sempre nos damos conta dessa premissa. E quando não nos damos conta disso, não pensamos de forma sofisticada na elaboração das nossas estratégias de comunicação. Isso foi pra mim um grande motivador. E, claro, na época, eu estava bastante entusiasmado com os recentes avanços tecnológicos: redes sociais, popularização da banda larga, o iPhone, e etc. Tínhamos as ferramentas ideais para aproximar ainda mais a história da comunicação. Meu desejo era criar um espaço para trocas entre pesquisadores e divulgação

da história. Algo que, vale dizer, não existia. Tentei

várias plataformas. Criei blogs e comunidades no Orkut. Não foram experiências tão bem sucedidas, mas eu segui adiante. Nos primeiros dias de 2008, conheci uma plataforma norte-americana chamada Ning. Em resumo, o Ning – palavra chinesa que significa “paz” em português – permite que qualquer pessoa cria a sua própria rede social. O Ning era gratuito, altamente intuitivo e encontrava-se disponível em língua portuguesa. Na mesma hora eu entendi que era daquilo que eu precisava: de uma rede social online de história. Foi assim que começou o Café História, quase como uma epifania. Trabalhei dias e dias seguidos. O processo criativo levou aproximadamente duas semanas. Foram várias etapas: criação do nome, desenho das seções, inserção dos primeiros conteúdos, desenvolvimento da identidade visual e, por fim, divulgação. Na primeira semana, tínhamos mais ou menos 50 pessoas cadastradas na rede. Depois de um mês, já tínhamos rompido a casa dos mil usuários. Nos anos seguintes, a rede continuou se expandido. Hoje, temos mais de 60 mil perfis cadastrados. Mas nosso alcance vai muito além. Além do Ning, que continua sendo nossa "espinha dorsal", nós temos também

um canal no Youtube, o Café História TV, além de


G N A R U S | 155 perfis no Facebook, Twitter, Google Plus e Insta-

Bem poucos agem desta forma. Felizmente. Por se-

gram. Alcançamos por volta de 500 mil pessoas, no

rem colaborativas, as redes sociais podem funcio-

Brasil e no exterior.

nar sozinhas, no seu próprio ritmo. Mas uma coisa é certa: quanto mais intenso for o trabalho de media-

Como o senhor avalia hoje as características dessas interações que o Café História medeia? Como vê o desenvolvimento disso? As pessoas o procuram para divulgar coisas, conversam? A internet é um ambiente bastante imprevisível. Nenhuma fórmula é lá muito confiável para explicá-la. No entanto, há alguns comportamentos que se repetem no ambiente virtual. Em uma rede social, você tem vários tipos de usuários: há aqueles, por exemplo, que interagem todo os dias com a rede, são pessoas que passam boa parte do dia inteiro conectadas, comentando notícias, abrindo fóruns, enviando mensagens para outros participantes, publicando textos. Esses tipos são raros e desenvolvem um profundo sentimento de propriedade da rede. Há outros, por outro lado, que são mais low profile, que acessam a rede apenas para ler, mas nunca para comentar. E essas são apenas duas gradações de usuários. Há ainda aqueles que

ção e dinamização, maior será a qualidade das interações que ocorrem nesta rede. E sim, as pessoas me procuram bastante para divulgar eventos, conferências, livros, revistas, programas, etc. No fundo, as mensagens que recebo todos os dias vão muito além disso. Certa vez, uma professora me escreveu pedindo ajuda. Ela tinha brigado com a coordenadora pedagógica da escola em que trabalhava e queria saber o que fazer. Em outra ocasião, um homem me enviou a foto de um colar e pediu que o Café História avaliasse a peça, pois ele queria realizar um leilão. Já perdi a conta de quantos trabalhos escolares recebi para serem feitos e pedidos de orientação de trabalho de conclusão de curso. Muitos desses casos passam anos-luz do propósito da rede. Mas eles mostram o quanto o Café História se tornou uma referência nos últimos anos. É bastante legal testemunhar esse reconhecimento.

participam de fóruns, mas não os abrem, aqueles que conversam entre si, mas não interagem com o conteúdo, etc. Gosto de pensar rede social como uma cidade. Uma rede social, tal qual uma cidade, possui muitas vias, pessoas diferentes, zonas urbanas desiguais, assimétricas, coisas que fogem ao controle, etc. Os usuários do Café História, em geral, são muito bons. São pessoas bem informadas, educadas, que gostam de colaborar e compartilhar informações. Há exceções, evidentemente. Vez ou outra aparecem negacionistas do Holocausto, fanáticos religiosos ou gente que está ali para fazer propaganda política ou simplesmente desestabilizar o ambiente, o chamado troll. Mas isso é minoria.

O senhor consegue saber o perfil do seu público? É específico da área de História ou outros profissionais também se associam ao Café História? Há aproximadamente três anos, eu fiz uma pesquisa espontânea com usuários do Café História. Foram cerca de 800 respondentes. Embora não seja uma pesquisa muito recente, acho que as coisas não mudaram tanto desde então. Essa pesquisa revelou, por exemplo, que a rede é acessada por pessoas de todos os estados brasileiros. A maioria, contudo, provém de São Paulo e Rio de Janeiro, com 18,3% e 17,1%, respectivamente. Em termos de faixa etária, a maior parte dos nossos visitantes, 38,2%, é formado por pessoas que possuem mais de 40 anos.


G N A R U S | 156 54% são mulheres e 46% são homens. 30,5% pos-

ato pós-guerra, contudo, muitos judeus letões con-

suem superior incompleto e 27,3%, completo.

testaram a história contada por Cukurs. O aviador

49,6% são solteiros e 35,1% casados. A maior parte

foi apontado por vários sobreviventes do Holo-

(80,3%) acessa a internet de casa, sendo o Café His-

causto na Letônia como um dos principais respon-

tória acessado quase todos os dias ou semanal-

sáveis pela morte de milhares de judeus durante a

mente para mais da metade. A maior parte dos usu-

ocupação nazista, além do incêndio de sinagogas,

ários são de classe média. Quase 70% já cursou ou

perseguições, violação de cemitério judaico, desa-

cursa a faculdade de história.

propriação de imóveis, entre outros crimes bastante graves. Em 1944, perto da Letônia cair nova-

O senhor recentemente terminou seu doutorado, a qual temática ele se refere? Como foi a experiência da pesquisa? Fiz meu doutorado no Programa de Pós-Graduação em História Social, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Eu trabalhei com uma questão que é bastante conhecida pelas pessoas, principalmente por causa da mídia e da cultura de massa, que produziram muito material a respeito, mas que ainda é muito pouco explorada pela historiografia: criminosos nazistas no Brasil. Eu pesquisei, mais especificamente, o caso do letão Herberts Cukurs. Cukurs era um aviador famoso na Letônia do pré-guerra. Na década de 1930, ele realizou dois voos de longa distância com aviões que ele próprio construiu. O primeiro até a Gâmbia, na África, e o segundo até Tóquio, no Japão. Por conta desses dois raides, ele se tornou uma espécie de herói nacional. Ganhou prêmios, reconhecimento internacional e até mesmo uma propriedade do governo letão. Na década seguinte, contudo, Cukurs desempenhou um papel muito menos nobre. Durante a ocupação nazista da Letônia, ele colaborou com os alemães. Ele fez parte de um grupo colaboracionista chamado “Comando Arajs”. Cukurs disse que foi apenas mecânico das forças de ocupação, além de soldado no front russo, movido pelo anticomunismo e pelo medo de uma nova ocupação soviética. No imedi-

mente nas mães dos soviéticos, Cukurs deixou o país. Foi para a Alemanha e depois para a França. Em quatro de março de 1946 chegou ao Brasil. Nos primeiros anos no país, Cukurs conseguiu montar uma nova vida. Na então capital federal, Cukurs levou pela primeira vez a Lagoa Rodrigo de Freitas os “pedalinhos”, que até hoje enfeitam esse que é um dos principais pontos turísticos do Rio de Janeiro. O negócio de divertimentos foi um sucesso imediato. Cukurs tornou-se bastante conhecido da população carioca. Era protagonista de várias reportagens. Ninguém sabia naquela época de seu passado de colaboração com os nazistas. Sabia-se apenas o que Cukurs contava aos jornais: de suas proezas como aviador, de sua fuga do comunismo e de seu trabalho de revitalização da Lagoa. Em junho de 1950, a Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro veio à público denuncia-lo como criminosos de guerra nazista. A notícia caiu como um escândalo. Os jornais se sentiram enganados por Cukurs. A coletividade judaica, organizações não governamentais e setores do legislativo, apoiados em grande parte pela mídia, iniciaram uma enorme campanha pública pela expulsão de Cukurs e contra a sua naturalização, que estava naquele início da década de 1950 muito próxima de sair. A mídia e até mesmo alguns historiadores dizem que as auto-


G N A R U S | 157 ridades brasileiras protegeram Herberts Cukurs, as-

que com certezas quanto a culpabilidade de Cu-

sim como teriam protegido toda sorte de crimino-

kurs. Por isso, nunca o expulsou. Porém, e isso é im-

sos nazistas no período do pós-guerra. Quando exa-

portante dizer, o governo brasileiro também nunca

minamos a fundo o caso, no entanto, vemos que a

lhe concedeu a sua naturalização, nem mesmo

coisa é bastante diferente. A perspectiva da “prote-

quando tinha argumentos para faze-lo. Isso pode

ção” ou do “acobertamento” não funciona muito

ser explicado pela força política mobilizada por vá-

bem. Ela não explica o Caso Cukurs. Cukurs não foi

rias entidades civis organizadas, por setores do pró-

expulso do país, é verdade. Mas a documentação

prio governo, por parte da sociedade brasileira e,

mostra que isso se deu em boa medida pela cons-

claro, por diversas instituições judaicas. No âmbito

trução problemática dos argumentos jurídicos le-

governamental, você encontra ex-integralistas atu-

vantados contra o letão. Os depoimentos dos ju-

ando no caso e até mesmo discursos antissemitas.

deus sobreviventes, que eram a base da acusação,

Porém, nada disso explica o caso a partir do clichê

não tinham sido tomados tendo em vista o rigor ju-

mal ajambrado de que o Brasil favoreceu delibera-

rídico. Minha pesquisa mostra que a própria Fede-

mente criminosos nazistas no longo período do

ração das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro

pós-guerra. É preciso tomar muito cuidado com es-

admitia isso. Não que seus dirigentes duvidassem

sas fórmulas universais e autoexplicativas. Elas não

da palavra dos depoentes. Isso nunca aconteceu.

dão conta da complexidade da realidade brasileira

Mas eles sabiam que aqueles documentos não ti-

no pós-guerra. Enfim, foi uma pesquisa muito difí-

nham força suficiente para convencer o Ministério

cil, mas muito prazerosa de fazer. Para escreve-la,

da Justiça e Negócios Interiores a expulsar Cukurs.

viajei a Letônia e Uruguai. Pesquisei em diversos ar-

Essas evidências se tornaram ainda mais frágeis

quivos no Brasil e no exterior. Lidei com mais de

quando autoridades do Foreign Office, o Ministério

cinco mil páginas de documentos.

das Relações Exteriores da Inglaterra, uma vez abordadas pelo governo brasileiro, não colabora-

Os judeus no Brasil tiveram uma trajetória muito diversa da dos outros judeus pelo mundo?

ram ativamente com a investigação. Os ingleses

Esta é uma pergunta muito difícil de ser

forneceram informações equivocadas sobre o co-

respondida de forma simples. Cada imigrante, cada

mitê que tinha reunido as evidências contra Cukurs

família de imigrante possui uma história bastante

e demoraram uma eternidade para responder as so-

própria. As pessoas sentem e experimentam a vida

licitações brasileiras. Chegaram até mesmo a usar

de uma forma singular. Seus êxitos, insucessos,

uma tática conhecida como wait and see, que con-

ressentimentos,

sistia basicamente em silenciar sobre um tema até

significadas a partir de variáveis objetivas e

que as pessoas interessadas nele simplesmente se

subjetivas. Neste sentido, aqueles judeus que

esquecessem dele. O governo brasileiro, que nunca

vieram para o Brasil construíram trajetórias de vida

colocou o Caso Cukurs ou mesmo a questão dos cri-

diferentes daqueles que foram para outros países.

minosos nazistas como ponto principal de sua

Mesmo quando falamos nas trajetórias dos judeus

agenda no pós-guerra, acabou com mais dúvidas do

que vieram para o Brasil estamos falando de um

saudades,

memórias

são

universo bastante diverso. A ideia de “comunidade”


G N A R U S | 158 pode nos passar a falsa sensação de falar de um

houvesse a colaboração de franceses, italianos,

grupo homogêneo, que partilha das mesmas

japoneses, húngaros, poloneses, etc. Isso coloca a

memórias e trajetórias. Mas não é assim. As pessoas

coisa em uma outra perspectiva. Além disso, quanto

são diferentes e isso aparece dentro do grupo de

mais sabemos sobre a presença de criminosos

uma maneira quase sempre muito evidente. Por

nazistas no Brasil ou mesmo da participação

outro lado, a cultura judaica é muito forte. Então,

brasileira na Segunda Guerra Mundial, mais somos

você vai encontrar em vários países algumas

capazes de entender que o Holocausto é um tema

recorrências: rituais religiosos, sinagogas, clubes,

da história que nos diz respeito. O brasileiro ainda

associações, ideologias, querelas, tensões, formas

conhece pouco a história do Holocausto, mas

de organização, militância, etc. Neste ponto, a

conhecemos melhor o tema do que há 20 anos.

trajetória dos judeus no Brasil pode ser aproximada

Hoje, o Holocausto não é mais um box dentro de

da trajetória de judeus que foram para outros

uma capítulo da II guerra.

países, que também reconstruíram suas vidas com base “cultura judaica” (que também é múltipla e não una). Não estamos falando de uma forma, de uma fórmula, mas você vai encontrar similitudes na diáspora, claro.

Ao longo desse tempo de funcionamento do Café História e durante sua trajetória acadêmica e profissional como o senhor avalia o campo da História? Tem notado mudanças significativas? Outra pergunta difícil. (risos). Eu sou bastante otimista quanto a isso. Os historiadores são

Qual o grau de importância que o senhor percebe nos estudos sobre o holocausto na sociedade brasileira?

bastante respeitados em nosso país, na minha

Acho que durante muitos anos os brasileiros viram

Brasileira de Letras, temos historiadores prestando

o Holocausto como algo que dizia respeito

consultoria à diversas empresas, temos muitos

basicamente a judeus e alemães. Algo bem

historiadores na mídia, comentando fatos que em

afastado da realidade brasileira. Essa perspectiva,

anos anteriores eram comentados apenas por

no entanto, tem mudado. Acho que hoje parte dos

cientistas políticos ou sociólogos. Temos ótimos

brasileiros já entende que o aquilo aconteceu com

cursos de graduação e de pós-graduação. A

os judeus durante a guerra é um crime contra a

regulamentação da profissão está sendo discutida

humanidade. Esse crime extrapola nacionalidades

com força total. Os professores escolares já não

ou grupos sociais específicos. É claro que os nazistas

estão mais desamparados: temos mestrados

foram os principais perpetradores. Mas a escala de

profissionais extremamente importantes, como o

violência não seria esta que conhecemos se não

ProfHistória. Nossos eventos estão sempre cheios.

opinião. Nós temos historiadores na Academia


G N A R U S | 159 Os projetos de digitalização vão de vento em

metodologia, na crítica das fontes, uma escrita

pompa. A tecnologia tem nos ajudado. Eu sou talvez

altamente controlada, erudita, que passa pelo crivo

muito novo para fazer comparações com o passado.

dos

Mas eu diria que vivemos um bom momento. É um

desenvolvimento

bom momento para ser historiador.

conhecimento. Não se trata da história do senso

pares,

uma e

história que

sempre visa

em

construir

comum, que é sinônimo de passado. Essa história, Para finalizar temos duas perguntas que já são tradicionais a nossos entrevistados: o que é história? Qual o conselho que o senhor daria àquele aluno do primeiro período que está agora iniciando nos estudos da História? Quando eu penso na história que eu faço na

por fim, pode ser feita tanto para “iniciados” na matéria quanto para os leigos e o grande público. Em relação ao conselho, eu vou repetir o que eu sempre digo aos meus alunos: leia muito, leia de tudo,

seja

perfeccionista,

conheça

outras

universidade, eu penso em historiografia. E aí

disciplinas, continue estudando, acredite na força

estamos nos referindo a uma história baseada em

de sua geração.


G N A R U S | 160

Coluna:

PARA LER O CINEMA Por Renato Lopes

D

esde as aberturas teóricas no seio da

outros campos do saber, como a sociologia e a

ciência histórica, que ocorreram na

antropologia.

segunda metade do século passado, o cinema, e a imagem como um todo,

deixaram de ser meras ilustrações para algum conhecimento histórico previamente expresso em palavras e esquemas. O cinema passou a constituir uma matriz teórica importante na edificação do conhecimento histórico e como tal ganhou sua devida importância, além de dialogar com vários

Com as severas críticas feitas às abordagens teóricas calcadas em um historicismo determinista e num positivismo acrítico,1 passam a ganhar espaço conhecimentos históricos realizados a partir de uma leitura cultural, onde a sociedade é uma representação coletiva, com suas estruturas socialmente construídas. O filme é tanto uma forma de representação da coletividade ou um veículo interpretante de realidades históricas específicas,

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas;SP. Editora UNICAMP. 2013.p.24 1


G N A R U S | 161 servindo também como um suporte de linguagem para o estudo da ciência

histórica2.

social capaz de gerar e ressignificar um

A partir de uma

determinado discurso a partir das condições

leitura histórica do filme podemos alcançar o

existentes na linguagem cultural do meio onde é

entendimento acerca daquela sociedade que o

produzido.4

produziu, o recepcionou, as memórias que infiltram

Todavia

suas estruturas e até

devemos

ressaltar que o filme não

mesmo as vinculações

traz

institucionais dos agentes

somente

motivações

sociais responsáveis pela

as

ideológicas

de seus realizadores, há

sua produção.

questões tangentes a sua

O cinema é portador de

produção,

que

ficam

uma gramática própria, e

evidentes quando o filme

também

é lançado em um circuito

carrega

ou

apropriando-se de uma

de

série

espectador, a despeito de

de

códigos

referenciais.

e

exibição

Assim

qualquer

análise

imposta

e

o

ortodoxia

mescla-se

à

histórica

do

filme

também

uma

análise

liberdade de se apropriar

dos

dos temas ali levantados.5

componentes técnicos e

Supera-se a ideia de que

artísticos, que convergem

o espectador é um agente

para a elaboração do

passivo, pois a forma

estética,

pelos

realizadores,

tem

seus a

discurso fílmico, da representação encarnada pelo

como este irá receber a mensagem exerce

filme. A intenção é justamente, através de seus

influência tamanha a partir da diversidade de

arranjos técnicos e teóricos, tender a manipulação

sentidos criados pelos que assistem a obra6 [6].

de sentimentos e emoções dos espectadores, alterando suas percepções e mentalidades e, por conseguinte, até mesmo seu papel de ator social na

Em relação as suas leituras históricas podemos dividir os filmes em

cadeia dos acontecimentos históricos.3 De modo

- Filmes Históricos: englobam os filmes épicos e os

que devemos entender o filme como uma prática

de ambientação histórica. Os primeiros estetizam

BARROS. José D’Assunção. Cinema e história: entre expressões e representações. In: NÓVOA, Jorge & BARROS, D´Assunção (Orgs). Cinema-História: Teoria e representações sociais no cinema/Jorge Nóvoa [et al] – Rio de Janeiro, Apicuri, 2008. p. 44 3 Furhamar, Leif. Cinema a política/por/Leif Furhamar/e/Folke Isaksson. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1976. p.148 e 149 4 TURNER, Graeme. O cinema como prática social – São Paulo. Summus, 1997., p.51 e 52

5

2

NAPOLITANO, Marcos. A escrita fílmica da história e a monumentalização do passado: uma análise comparada de Amistad e Danton. In: História e cinema/ Maria Helena Capelato [et AL.]. – São Paulo: Alameda, 2007; USP: História social. Série Coletâneas. P.65 6 JELIN, Elizabeth, Los trabajos de La memória. Apaud: MENDES, R.A.S. Argentina e Chile – Memórias em disputa e perspectiva democrática. Revista Intellectus. Ano 7, vol.2.2008. ISSN 1676-7640


G N A R U S | 162 ou representam processos históricos conhecidos,

mera ilustração de um conhecimento prévio.

que podem representar uma versão romanceada de

Colabore para que o cinema não seja só visto, como

eventos ou vida de personagens históricos.

também lido.

- Filmes de ambientação histórica: se referem a

Até a próxima.

enredos criados livremente, mas sobre um contexto histórico bem estabelecido, tendo na condução de seu fio narrativo personagens fictícios. Há ainda os documentários históricos, que passam na clivagem de

serem

trabalhos

de

Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina, agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema e colunista especialista em cinema da Gnarus Revista de História.

representação

historiográfica, só que em formato áudio visual, e diferenciam-se das categorias anteriores devido ao rigor documental em que se apoiam. O século XX é notadamente o século da imagem e por conseguinte, do cinema também. Foi a forma de expressão artística que mais alcançou corações e mentes em todas as latitudes e longitudes do globo terrestre ao longo do século passado. Foi a ferramenta mais usada com a intenção de doutrinação e tornou-se uma prática social. Não houve um único momento do século XX onde o cinema estivesse “em baixa” ou “fora de moda”. Utilizado para fins políticos, sociais e ideológicos observa-se algumas formas de fazer cinema que caíram em desuso e algumas estéticas que acabaram superadas por outras. Toda essa dinamicidade que envolve a história e a realização do cinema merece ser estudada com cada vez mais acuidade. O cinema, enquanto expressão artística e enquanto ciência, ainda tem muito a nos dizer. E s novas tecnologias usadas para sua realização, seja em pequena, média ou larga escala, constituem um mosaico de possibilidades de leituras possíveis sobre o tempo em que vivemos. Sempre que possível usem o filme em trabalhos, em salas de aula, em pesquisa. Ajude ainda mais a desconstruir a visão arcaica de cinema como uma

PARA SABER UM POUCO MAIS: BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru – SP: EDUSC, 2004 CABRERA, Julio. O cinema pensa – uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro, Ed. Rocco CAPELATO, Maria Helena, MORETTIN, Eduardo, NAPOLITANO, Marcos, SALIBA, Elias Thomé (orgs.). História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007 CHARTIER, Roger. A História Cultural - entre práticas e representações. DIFEL. Lisboa FERRO, Marc. Cinema e História – São Paulo: Paz e Terra, 2010 STAM, R. Introdução a Teoria do Cinema. Campinas, SP. Papirus, 2003 (Coleção Campo Imagético) XAVIER, Ismail. O Discurso cinematográfico: a opacidade a transparência. São Paulo, Paz e Terra. 2008.


G N A R U S | 163

Coluna:

Fotografias da História

A FOTOGRAFIA DE PIERRE VERGER: MAGIA E PRODUÇÃO DE SENTIDO. Por: Rafael Eiras

P

ierre Verger nasceu em Paris, no dia 04 de

fossem” bichos estranhos “, mas como gente da

novembro de 1902. Fotógrafo desde 1932

qual me tornei amigo”. (VERGER, 1997 p. 40). Assim

passou 14 anos viajando pelo mundo

ele acabou descobriu o Candomblé, tornando-se

ganham do a vida fotografando diversos países. No

não só um estudioso e fotografo do culto aos

ano de 1946 Verger desembarcou em Salvador e foi

Orixás, como também um iniciado.

logo seduzido pela riqueza cultural da cidade. Como fotografo procurava as periferias e a companhia do povo, dos lugares mais simples. Como ele mesmo relata: “Desde muito cedo me interessei pelo pessoal que lá vivia: não como se

Ao contrário de seus contemporâneos que entendiam o ato de fotografar como um momento em que se “roubava” os instantes, produzia suas imagens a partir de uma postura “passiva” diante dos seus alvos, suas fotos nascem de uma relação


G N A R U S | 164 íntima e longa ou, ainda, “desinteresada”, quase indolente ou movida totalmente pelo acaso que nasce de uma longa relação:

Ele não “rouba” a foto: se esforça para ser aceito como uma pessoa comum de modo que esqueçam seu estatuto de fotógrafo. De outra parte, toma suas fotos de maneira mais depreendida possível, sem dar importância aos priori geométricos e à composição rigorosa das formas. Em suas imagens, a vida humana e suas manifestações espontâneas prevalecem. Estas são apreendidas no justo momento que fazem eco à sensibilidade do fotografo.”( SOUTY, 2008, p.213)

Verger parece tirar uma fotografia guiada por seu inconsciente, elaborando-a através de uma técnica passiva no qual, a princípio, independeria de uma racionalidade.

Como

se

apoiasse

sobre

o

disparador da câmera sem saber por que. No entanto o que seu olhar de fotógrafo enxerga é justamente os conceitos sobre o que aprendeu com a sua passividade. Ao contrário de Cartier-Bresson ele não prepara o instante como um caçador prepara a armadilha, mas o instante se apresenta a ele quando seu inconsciente reconhece na cena algum conceito importante. (SOUTY, 2008). Esse interesse pela religiosidade de origem africana lhe rendeu diversas fotografias e pesquisas sobre os rituais de origem negra na África e no Brasil. Verger tornou-se um doutor autodidata, ganhando o título de Doutor em Estudos Africanos, na Sorbonne em Paris. Suas viagens entre o Brasil e a África foram constantes; passou a viver como um mensageiro entre esses dois lugares, transportando informações, mensagens, objetos e presentes. A intimidade com a religião, que tinha começado na Bahia, facilitou o seu contato com sacerdotes e autoridades em ambas as regiões.

“Voltando a minha viagem à áfrica, o fato de já ter participado um pouco das cerimônias de Candomblé na Bahia, da

minha cabeça ter sido dedicada a Xangô (...) Possibilitou que o meu retorno fosse diferente da primeira visita. Não era um turista curioso ou um antropólogo que chegava cheio de papeis perguntando coisas absurdas” (VERGER, 1997 p. 40)

Como colaborador e pesquisador visitante de várias universidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos, comunicações e livros. Em Fevereiro de 1996, Pierre Verger faleceu, deixando um legado de extrema importância para o estudo das religiões afro-brasileiras. Revelando com suas fotografias uma autêntica expressão cultural não só do Brasil mas do mundo, ao demostrar que as mesmas relações mágicas, ritualísticas e míticas coexistiam em outras partes do mundo. Como exemplo clássico destas relações, temos na obra de Verger o Candomblé no Brasil, nome dado ao culto das divindades provenientes de certas regiões do imenso continente africano. Ele representa para seus iniciados as tradições dos antepassados escravizados reelaboradas em uma religião originada de diversos povos que tinham culturas diferentes, falavam línguas diferentes e cultuavam suas divindades de formas diferentes. A religião no Brasil tomou diversas formas de acordo com a nação proveniente do seu culto, mas em geral ela acabou por fazer um grande amálgama de diversas culturas. A nação Keto, onde o fotografo se iniciou no Brasil, tem sua origem do povo Nagô ou Yorubá, provenientes dos atuais sudoeste da Nigéria, do Benim (antiga República do Daomé) e do Togo, que durante o século XVIII e até 1815, foram escravizados e trazidos em massa para o Brasil durante o chamado "Ciclo da Costa da Mina", ou "Ciclo de Benin e Daomé".


G N A R U S | 165 Os Yorubás chamavam as suas divindades de

da religiosidade, eram na verdade uma busca por

Orixás, divindades de origem ancestral derivados

indícios e semelhanças com a forma de se perceber

tanto de seres humanos divinizados como o Orixá

o culto da natureza na África, com o que acontecia

Xangô, que tem uma origem histórica por ter sido

na Bahia.

um rei e dado início a uma dinastia, ou derivados das formas da natureza como o orixá Iroco, que é uma árvore sagrada para o povo Nagô.

Ela é uma religião iniciática, de transe, sacrifícios e de fortes apelos mágicos. Foi desenvolvida no com

o

conhecimento

dos

africanos

escravizados, por isso originalmente era uma religião proibida pela igreja Católica e pelo governo. O Candomblé prosperou e expandiu-se consideravelmente desde o fim da escravatura em 1888. com

Estabeleceu-se seguidores

de

várias classes sociais e dezenas de milhares de

Toda a obra de Verger está repleta de imagens representam

religiosidade brasileira.

a

afro-

Tanto

Candomblé

do

baiano

como de regiões da África em que rituais parecidos

eram

encontrados.

Verger,

como iniciado no Brasil, podia perceber na África muitas

similaridades

entre os rituais. Por isso seu

denominado de “raspar a cabeça” no candomblé, mas foi tirada na África, gerando a ideia de que a ritual que acabava de acontecer, com seus elementos simbólicos enchendo o quadro de significados, acontece nos dois continentes. A Fotografia em questão foi tirada na cidade de Saketé, Republica do Benim. Nela se pode ver uma pessoa sendo guiada por uma outra, no caso duas mulheres. A que está sendo guiada é a iniciada e a que guia é sua iniciadora. Pode-se ver a mão vacilante do noviço sendo delicadamente segura por mãos firmes e decididas. Pode-se ver a cabeça do noviço raspada e

templos.

que

trata-se de uma imagem que retrata instantes depois de acontecer um importante ritual

“O culto ao orixá dirige-se, portanto, a dois elos que se juntam – parte fixada da força da natureza e ancestral divinizado – e que serve de intermediário entre o homem e o inconcebível”. (VERGER, 2000 p. 38)

Brasil

Uma foto parece ser icônica, neste sentido, pois

olhar,

suas

fotografias sobre o tema

suja de penas e sangue de animais sacrificados. Podese ver o rosto calmo e sereno de quem é mais

experiente,

como o rosto da mulher que carrega em seus dedos o iniciado

e

vai

ensinar tudo o que sabe. E ainda podese ver o gestual corpóreo da iniciada que

parece

encontra

se num


G N A R U S | 166 estado de transe suave, como um ser que ainda não

Dessa forma, para Lévi-Strauss, a magia, ou o

sabe como se colocar no mundo. As cabeças baixas

pensamento mítico, seria uma estratégia, paralela à

e o andar que parece ser desengonçado denotam

da ciência, de se perceber a realidade e não um

isso.

estágio inferior ao da ciência. Ela:

Com o advento das chamadas imagens técnicas, (FLUSSER, 2005) a fotografia e suas derivações, o significado da imagem toma novas proporções. A imagem parece cada vez mais representar o real, pois ela se mostra como uma “pegada da

“(…) elabora estruturas organizando os fatos ou os resíduos dos fatos, ao passo que a ciência, ”em marcha" a partir de sua própria instauração, cria seus meios e seus resultados sob a forma de fatos, graças às estruturas que fabrica sem cessar e que são suas hipóteses e teorias.” (Lévi-Strauss, 1976, p37).

realidade”. No entanto a fotografia somente atribui ou reconhece valores a um aspecto de uma cena.

“Apesar das imagens fílmicas, fotográficas e videográficas estarem impregnadas de resíduos do real, elas não são uma extensão da realidade, mas sim uma criação interpretativa que é fruto de uma imaginação social”. (PALMEIRO, 2005 p. 9) Esse fetiche na imagem como continuação da realidade é muito parecido com a função exercida

Flusser (2005) aponta para o caráter mágico eminente das novas formas de se produzirem a imagem, que parecem revitalizar esse pensamento mítico, rompendo com essa ideia evolucionista sobre a magia, dando a ela novos valores e sentidos num mundo já incorporado de valores científicos. Esse processo se daria com o desenvolvimento de

por ela na pré-história, onde se representava o

poderosos

pensamentos

mundo exercendo um efeito moldador da

consequentemente

realidade. Isso se dava, pela existência de um forte

produziu no decorrer dos séculos, tornando

pensamento mágico. Onde as imagens desenhadas

possível o desenvolvimento de máquinas e de

na caverna tinham o objetivo de alterar a realidade

aparelhos capazes de representar o mundo.

material da comunidade. (FLUSSER, 2005)

(FLUSSER, 2005)

técnicos,

conceituais, que

a

e

ciência

A noção de “pensamento mágico” é, em si mesma,

Exemplo disto é a máquina fotográfica que pode

complicada. Está relacionada com as noções

produzir novas imagens chamadas de “imagens

evolucionistas e, portanto, com a ideia evolutiva de

técnicas”. Estas novas imagens não têm mais nada a

ir do mágico ao religioso, e em seguida ao

ver com as antigas imagens, além do fato de

científico,

fortemente

também representar o mundo. Elas na verdade são

marcada pelo positivismo. Já as ideias de Lévi-

frutos de diversos conceitos. Uma imagem

Strauss sobre uma “ciência do concreto”, por

fotográfica,

exemplo

mais

conhecimentos em química, em física, em artes, em

interessantes: as formas de classificação nativas são

eletrônica e etc. Estas imagens são na verdade uma

antes pró-científicas do que pré-científicas. Em

fórmula, um cálculo. Elas não têm mais valor como

outras palavras, não se trata de dicotomizar

coisa, só como conceito. Ou seja, seu valor está na

magia/religião e tampouco opor magia/ciência,

virtualidade, e paradoxalmente geram um tipo de

mas compreender que a ciência e a magia operam

magia que não se coloca no mesmo nível histórico

como um princípio semelhante – controlar a

da imagem pré-histórica. Pois ela “não visa

natureza ou se antecipar aos fatos da natureza.

modificar o mundo lá fora, como fez a pré-história,

em

uma

perspectiva

(Lévi-Strauss,

1976)

são

por

exemplo,

é

formada

por


G N A R U S | 167 mas os nossos conceitos em relação ao mundo”.

com o mundo.

(FLUSSER, 2005, p.16)

interessante relação entre magia e técnica, Walter

Da mesma forma no Candomblé a magia existe muito mais como a força que visa modificar os conceitos do indivíduo com relação ao mundo através de procedimentos ritualísticos, do que simplesmente alterar o mundo material.

Seu

círculo de iniciações busca rememorar e repetir a passagem inaugural, em forma de ritual: “durante o processo, os corpos dos iniciados são transformados em verdadeiros “quadros vivos de regras e costumes” (...) na qualidade de significantes dos

Onde se pode traçar uma

Benjamin revela que a diferença entre técnica e a magia é uma variável histórica (BENJAMIN, 1985). A técnica vai na verdade levar a magia, como a magia a técnica. O que parece ser singular na fotografia, e no cinema para o autor, é o fato de ela ser uma obra criada para ser reproduzida, onde a sua “aura” como obra de arte, estaria presente nas suas cópias. (BENJAMIN, 1985) Assim como a cada ritual no Candomblé essa “aura”, essa essência do elemento mítico que ele revive estaria presente.

princípios sociais” (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993,

Uma fotografia de família pode representar uma

p.95). Ritos como o “raspar a cabeça” iniciam o

instituição que não existe mais, ela serve para

neófito na hierarquia da comunidade e é símbolo

rememorar e repetir esta família. Elas podem dar a

de uma forma de renascimento, de retorno à vida e

posse imaginária de um passado irreal, ou

um confronto da nova identidade com o mundo.

simbólico, assim como o ritual religioso rememora

Por exemplo o ritual da Romaria no Candomblé, quando este iniciado acaba de “raspar a cabeça”, e ainda vestindo as roupas e objetos sagrados vai assistir a uma missa Católica, é um jogo de resistência e rendição ao

acontecimentos ancestrais. O próprio ato de fotografar também pode ser visto como tal. “A fotografia não é meramente o encontro entre um evento e um fotógrafo, ela é um evento em si mesmo (SONTAG, 2004 p.21).

mesmo tempo. É resistência porque a romaria é

Para comparar essa magia existente na fotografia,

um enfrentamento: é preciso entrar no

pois “ela pertence ao mundo da magia e ao mundo

santuário cristão vestindo as suas insígnias

cientifico” (GURAN, 2000, v. 10), com o que ocorre

religiosas do Candomblé. Mas é rendição,

no Candomblé, a obra do fotografo Pierre Verger

porque é preciso assistir a missa e receber a

se mostra ideal como objeto de pesquisa pois nela

benção do padre. Um paradoxo, mas que no

pode-se perceber a presença das religiões de

entanto reafirma uma nova identidade ao

origem africanas, não só pelos olhos atentos de um

indivíduo. (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993)

antropólogo, ou de um repórter fotográfico, mas

Na fotografia apresentada, há um quadro semelhante, o neófito, ainda frágil devido sua condição simbólica de renascimento, deve ser

também pelos olhos de um indivíduo que foi incorporado a essa comunidade, e por isso pode decifrar os conceitos inerentes a esta.

apresentado à sua comunidade. Onde sua

A cerimônia de “Raspar a Cabeça”, é um ritual

iniciadora deve leva-lo em uma procissão por

de iniciação onde o noviço foi possuído pela

sua aldeia.

primeira vez pelo Orixá que rege a sua cabeça.

Nas religiões de matriz africana a magia aparece como um dado constitutivo da relação do homem

(VOGEL; MELLO; BARROS, 1993) A cena que a fotografia em questão fixou parece ser simples,


G N A R U S | 168 mas é justamente nesta simplicidade que se

Todos os elementos e códigos contidos na

encontra a destreza do olhar fotográfico. Num

fotografia de Verger só podem ser realmente

instante aquela cena se formou no visor

percebidos quando se conhece a natureza da

inquieto do fotógrafo e percebendo a

religião em questão. São conceitos transmitidos por

importância simbólica da cena que via,

gerações e que juntos formaram o gesto

disparou a câmera e eternizou este momento,

fotografado, que é a condensação de valores do

repleto de símbolos, importantíssimos para o

pensamento

conhecimento da cultura dos Orixás.

mentalidade de um Europeu “abrasileirado”.

Todos esses pequenos códigos e gestos restritos a um iniciado, que pode entender a importância de cada um, gera um ritual onde o acúmulo de

africano

traduzidos

por

uma

Criando, assim, um momento de magia, pois ele “rasga” todos estes conceitos traduzindo-os neste único gesto capitado pelos olhos de um fotógrafo.

conceitos e técnicas inerentes aquela forma de ver

Ali, no gesto onde a iniciada é guiada, se encontra

e interpretar o mundo transbordam em um gesto

um ponto de ligação onde os dois tipos de magia;

mágico. Para o crente o ritual não deixa de ser uma

tanto a fotográfica como a ritualística. Muito

narrativa, uma fotografia da realidade que ele

Parecido como o que pensava Roland Barthes em

acredita existir. Rito que representando tanto o

seu livro “A Câmera Clara” (BARTHES, 2006) com o

mundo em que vive como o ancestral, através da

termo punctum, que seria um pormenor na

repetição e a significação, evidenciando como na

fotografia que chama a atenção de forma diferente,

fotografia algo que no agora já foi passado.

gerando uma fotografia que marca o olhar para um

(BARTHES, 2006)

valor superior

A importância dada à imagem fotografia e o

Afinal a fotografia apresentada não é só uma

cinema, por exemplo, vem justamente deste fetiche

representação de um acontecimento, mas um

de realidade que a imagem tecnológica exerce

suporte onde a ancestralidade no ritual também é

sobre o pensamento humano. Onde da mesma

revivida. Uma imagem cheia de mistérios que

forma que um crente acredita estar na presença de

machucam o entendimento de quem não pode

um ancestral divinizado incorporado por meio de

compreender os significados e textos. E talvez esta

um transe, como acontece no Candomblé, se pode

condensação de magia em um gesto fotografado,

pensar que a fotografia de um ser humano já morto,

formando assim uma dupla magia, eleve essa

é este incorporado em um pedaço de papel. Como

fotografia para um outro patamar, onde não se

constata Roland Barthes quando afirma que a

pode traduzir a imagem simplesmente pelos filtros

fotografia traz em sua origem uma experiência da

morais e políticos da sociedade ocidental.

morte. (BARTHES, 2006) Não tão diferente é pensar em uma energia da natureza, como um raio, habitando um negativo fotográfico. Então, ao vermos uma fotografia acreditamos ser ela uma representação de uma realidade, e muitas vezes acreditamos ver a verdade, somos neste caso fieis da fé na fotografia.

Rafael Garcia Madalen Eiras é formado em Bacharel em Cinema pela faculdade Estácio de Sá, pos-Graduado em Fotografia, Imagem e memória pela Universidade Candido Mendes, e graduando em licenciatura em História pela Universidade Cândido Mendes e colaborador da Gnarus Revista de História.


G N A R U S | 169 Bibliografia BARROS, José Flávio Pessoa de.O segredo das

folhas: sistema de classificação de Vegetais no Candomblé Jêje-Nagô do Brasil. Rio de Janeiro:

Pallas. .1993 BARTHES, Roland. A Câmera Clara. Lisboa: Edições 70. 2006 BENJAMIN, W. A pequena história da fotografia. In:

Magia, arte e técnica: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo:

Brasiliense, 1985a.Obras Escolhidas, v.1. _________. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia, arte e

técnica: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São

Paulo: Brasiliense, 1985a. Obras Escolhidas, v.1. DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes 2007 FLUSSER, Valem. Filosofia da caixa Preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2005 GURAN, Milton. Fotografia para descobrir, fotografia para contar. Cadernos de antropologia e imagem (10) UERJ, 2000

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1976. PALMEIRO, Pedro Araújo; Antropologia e imagem 22p TM(graduação) – Universidade Candido Mendes. Orientação de Milton Guran. 2005 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Compania das Letras. 2001 SANTOS, Juana Elben dos; Mestra Didi, A religião

nagô, geradora e reserva dos valores culturais no Brasil. Bahia Analise e Dados, o Negro.

Salvador, v.3, n. 4, p. 47-55. Mar. 1994 SOUTY, Jerôme. “Em busca do olhar virgem: a

propósito das fotografias de Pierre Verger em torno do mundo, 1932-1946” Revista poiesis

número 12, UERJ, 2008 p209-221). SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras. 2004 VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns. 2.ed.São Paulo: USP. 2000 VERGER, Pierre. Orixás, os deuses Iorubas na África e no novo mundo. Salvador: Corrupio. 1997 VOGEL, Arno: MELLO, Marco. Antonio da Silva: BARROS, José Flávio Pessoa de. A Galinha

D´angola,: iniciação e identidade na cultura Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas. 1993.


G N A R U S | 170

Coluna:

O ETERNAUTA Por: Renato Lopes

“O verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano. Isso reflete, embora sem premeditação, meu sentimento íntimo, o único herói válido é o herói “em grupo”, nunca o herói individual, o herói solitário” – do prefácio de Héctor G. Oesterheld.

B

uenos Aires, Argentina, 1957. Um autor de

homem. Passado o susto, este homem se apresenta

histórias em quadrinhos chamado German,

como “O Eternauta”, um viajante multidimensional

está sem seu escritório trabalhando. Já é

e temporal. A partir daí ele começa a narrar suas

tarde da noite, quando inesperadamente começa a

desventuras que o levarem até aquele momento.

se materializar na cadeira vazia diante dele um

Um náufrago perdido no espaço e tempo. Em seu


G N A R U S | 171 rica em detalhes, expressões e dinamicidade, quase um plano cinematográfico. Uma trama repleta de revira voltas, com importantes reflexões e com uma ação

extremamente crível. Um dos grandes

trunfos é o próprio cenário da história: Buenos Aires. Todas as ruas, avenidas, praças, rios e outros lugares que aparecem na trama são reais e colaboram para o desenvolvimento da história. Num dos pontos altos da trama ocorre uma batalha épica no estádio do River Plate. relato somos levados a um futuro não muito distante, na mesma Argentina, em 1963, quando uma nevasca mortal assola o país e uma ameaça se avizinha. E o mundo nunca mais seria o mesmo. Sem sombra de dúvidas uma das dez maiores histórias em quadrinhos já escritas e a melhor história em quadrinhos da história argentina, (junto com a Mafalda, de Quino) "O Eternauta" de Hector German Oesterheld, soberbamente desenhada por Francisco Solano Lopes. Publicado entre setembro 1957 e setembro 1959 na “Hora Cero” Suplemento Semanal, contando com a arte primordial de Solano Lopes. Tratava-se de uma releitura da história de Robinson Crusoé, mas dessa vez baseada no poder da coletividade sobre a individualidade. Em vez do mar o que cercava agora era a morte. Em vez do estar só numa ilha, agora era um homem com família, amigos e uma nação. Conta-se que o roteiro foi elaborado sem planejamentos prévios, sendo construído basicamente a cada semana, da forma mais orgânica possível. Oesterheld tinha um total domínio da narrativa, conseguindo manter o fôlego e o ritmo da história ao longo de suas 360 páginas, uma história densa e que cada quadrinho é uma pequena obra de arte,

Há um sentido de urgência na trama, isolados do restante do mundo por uma nevasca, que não é natural, e uma invasão alienígena, a sobrevivência dos personagens reside unicamente na sua capacidade de se relacionarem e confiarem uns nos outros. Cada personagem a sua maneira colabora para o desenrolar da trama. Os personagens são Juan Salvo (O Eternauta), sua esposa e filhas, Elena e Martita, Favalli, Herbert, Polski e Franco. Mas até mesmo os coadjuvantes mais provisórios dão sua contribuição para o andamento da trama. Que a cada página, a cada quadrinho, esconde uma surpresa, nunca gratuita e nuca mal elaborada. Numa pesquisa rápida percebe-se que a trama de “O Eternauta” não encontra paralelos em nenhum outro país, nesse mesmo período, seja pela sua forma, seu conteúdo ou sua mensagem (vale lembrar que nessa época nos EUA, um dos maiores produtores de quadrinhos no mundo, vigorava o temido CCA - Comic Code Authority, órgão responsável por censurar as obras). A obra faz as vezes de uma legítima ficção cientifica, com elementos amplamente calcados na realidade, não se limitando a ser somente uma distopia com elementos futurísticos, muito pelo contrário. A narrativa de Oesterheld dialoga mais com a realidade do período (a ameaça da destruição


G N A R U S | 172 mútua de uma guerra atômica entre duas

alienígenas), ele nunca se desloca da realidade, seja

superpotências, o terceiro mundismo, a América

física, moral ou psicológica.

Latina no cenário político mundial naquele momento) e como essas visões concorrem para a

A arte de Solano Lopes é epidérmica, detalhista, dinâmica

montagem da trama.

e

como

disse

mais

acima,

cinematográfica. A cada cena de ação é como se Aliás, o autor deixa muito clara sua posição

você pudesse sentir a pulsação e a respiração

política (ele se juntou aos Montoneros, juntamente

ofegante das personagens. A cada momento de

com suas filhas e genros), e este viés político da

suspense (e são muitos, executados com maestria),

trama só a enriquece, nunca resultando em algo

é como se o leitor tremesse e hesitasse junta com as

panfletário ou em vulgaridades ideológicas vazias.

personagens. A cada pausa é um suspiro, mas

Em um contexto de polarizações diversas, o autor

acompanhado de uma ansiedade sobre o que virar

reafirma seu humanismo e a necessidade de união

a seguir. Ler o Eternaura, mesmo passados quase 60

entre todos para a superação de problemas e a

anos de seu lançamento, ainda é uma experiência

busca por soluções maiores para o bem de todos. É

das mais fascinantes.

um legitimo trabalho de representação da realidade. E muito embora conte com elementos fantásticos

(viagens

temporais

e

invasões

ASSASSINATO Hector German Oesterheld e suas quatro filhas Beatriz Marta Oesterheld (19 anos), Estela Inés


G N A R U S | 173 Oesterheld (24 anos – mãe de um menino de 3 anos,

personagem da neve mortal, era possível ver o rosto

Martin,

mas

de Kirchner sorrindo. Assim ele se auto intitulava “o

bisavôs

salvador” da Argentina, o “eterno”. Obviamente tal

maternos), Marina Oesterheld (18 anos), Diana

uso não foi muito bem recebido por nenhum dos

Irene Oesterheld (23 anos), estas duas últimas

lados da corrida presidencial, nem mesmo pelos

grávidas, e seus três genros, Rual Carlos Araldi

seus próprios partidários. Gerou um mal estar muito

(marido de Diana), Oscar Alberto Seinendlis

grande e seu uso foi suspenso. Kirchner havia

(marido de Marina) e Raúl Oscar Mortola,

mexido num dos símbolos mais invioláveis do país

infelizmente fazem parte da lista dos cerca de 30

(no mesmo patamar de uma Evita Perón, me arrisco

mil mortos e desaparecidos da ditadura

a dizer).

que

também

posteriormente

argentina

foi

de

desapareceu

devolvido

aos

militar

1976-1983. A importância dá obra é tal, que em 2000, quando

Sequestrado em 1977, após uma reunião secreta

o Jornal Clarín anunciou a coleção “La Biblioteca

ser descoberta, passou meses preso e sendo

Argentina”, com os grandes clássicos da literatura

torturado, de modo que não pode ver a conclusão

do país, lá estava figurando “O Eternauta”, ao lado

de “O Eternauta II”. Aém da violência física a qual

de obras de escritores tais como Borges, Cortazar,

fora submetido há relatos, de presos que

Sábato e de outros clássicos como “Martin Fierro”

sobreviveram, que diziam que uma das formas de era

Hector German Oesterheld foi assassinado pela

submetido consistia em expor a ele fotos de suas

defesa de seus ideais e de seu povo. Puderam calar

filhas mortas e torturadas. Em mais um momento de

sua voz, mas não calaram sua arte e sua mensagem,

sadismo, chegaram a levar seu neto Martin, filho de

que estão vivas e alcançando a imaginação de

Estela, para vê-lo. Através de alguns contatos e dos

muitos leitores até hoje. Enquanto seus algozes são

esforços de sua esposa, Elsa Sanches ,que estava em

relegados ao lixo da História, sua mensagem e sua

liberdade, conseguiram reaver o seu neto aos

arte são cada dia mais atuais e cada vez mais lidas.

tortura psicológica a qual Oesterheld

bisavós maternos.

Até a próxima.

“O Eternauta” traz consigo muitos elementos caros ao povo Portenho. Com o passar dos anos tornou-se símbolo de uma época, bandeira de uma luta. Fora publicado logo após o fim da ditadura do General Juan Domingo Perón (1955) e próximo de

Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina, agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema e colunista especialista em quadrinhos da Gnarus Revista de História.

outros dois golpes militares que abalariam o país (1966-1973 e 1976-1983). Em 2011, durante sua última

campanha

presidencial,

o

falecido

presidente Nestor Kirchner usou uma clássica imagem do personagem Eternauta em sua campanha política, se fazendo passar pelo mesmo, atrás da clássica máscara que protegia o

Obras essenciais de Hector German Oesterheld 

O Eternauta, desenhado por Francisco Solano Lopes (Lançado no Brasil pela editora Marins Fontes


G N A R U S | 174 

O Eternauta: II, desenhado por Francisco Solano Lopes (Lançado no Brasil pela editora Marins Fontes

Che – Os últimos dias de um herói, desenhado por Alberto e Henrique Breccia (lançado no Brasil pela Conrad Editora

Sargento Kirk (personagem criado em parceria com Hugo Pratt) com desenhos de Hugo Pratt e posteriormente desenhado por Jorge Moliterni, Horacio Porreca, Gisela Dexter e Gustavo Trigo

Mortin Cinder, com desenhos de Jorge Moliterni

Ernie Pike (também criada em parceria com Hugo Pratt), com desenhos de Hugo Pratt e posteriormente desenhada por Alberto Breccia e Francisco Solano López


G N A R U S | 175

Resenha

UM CONVITE A LEITURA DE “O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa”. Por: Alex Rogério Silva

RESUMO: A resenha vem apresentar a obra O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa, organizado por Maria Isabel Morán Cabanas, José António Souto Cabo e Yara Frateschi Vieira, publicada pela editora Cosac Naify, em 2015. A obra traz uma visão inovadora, apresentando uma amostra da lírica galego-portuguesa tendo como fio condutor a cidade de Santiago de Compostela, capital da Galiza, que nos séculos XII e XIII foi o mais importante centro religioso, político e cultural de toda a Península Ibérica. Palavras-chave: Santiago de Compostela, Cantigas, Trovadores.

S

A ond'irá aquel romeiro, romeiro adond'irá? Camino de Compostela, non sei s'ali chegará. Os pes leva cheos de sangre, e non pode mais andar. Mal pocado! Pobre vello. sei s ali chegará! (Romance galego)1.

egundo Adriana Vidotte e Adaíson José Rui, em Caminhos físicos, imaginários e

simbólicos: O culto a São Tiago e a

peregrinação à Compostela na Idade Média2, “O homem medieval é o homo viator. Sua vida é um caminho percorrido em busca da perfeição, da salvação. A viagem que realiza na vida terrena, efêmera, visa a sua realização plena na vida celeste,

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Caminho de Santiago e Cultura Medieval Galaico-Portuguesa. Rio de

RUI, Adaílson José; VIDOTTE, Adriana. Caminhos físicos, imaginários e simbólicos: O culto a São Tiago e a peregrinação à Compostela na Idade Média. Projeto

1

2

Janeiro: Biblioteca Nacional – Divisão de Publicação e Divulgação, 1966.

História, nº 42, junho de 2011, p. 143-162.

175


G N A R U S | 176 eterna.” (RUI, VIDOTTE; 2011, p. 144). Nesse

(UNICAMP),

sentido,

grande

professora titular na área de Filologias Galega e

pois,

Portuguesa da Universidade de Santiago de

materializam no plano terreno maneiras de se

Compostela e José António Souto Cabo, também

purgar seus pecados, ou agradecer por graças

professor titular na área de Filologias Galega e

alcançadas.

Portuguesa da Universidade de Santiago de

as

importância

peregrinações na

vida

dos

são

de

medievos,

Nas palavras de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schimitt:

Maria

Isabel

Morán

Cabanas,

Compostela. Obra publicada em 2015, presenteia o leitor, em contraposição de obras que abordam a temática

(...) a caminhada durava semanas, às vezes meses (...) A rota é uma dura ascese. Aí sentese a fadiga do corpo, o sofrimento provocado pelos pés doloridos, a tensão dos músculos, a sede e a fome. Aí sofre-se o rigor das intempéries. Aí se enfrenta múltiplos perigos, sobretudo na passagem de rios e montanhas (...) mas o peregrino obtém com sua viagem benefícios espirituais e físicos: o perdão dos pecados e a cura de seu corpo (LE GOFF; SCHIMITT, 2002, p. 353, 354)3.

firmando-se na compilação poética, com uma visão inovadora da lírica galego-portuguesa. O livro é composto pela reunião de 55 textos originais em língua galego-portuguesa de 29 poetas do período medieval, dentre eles D. Afonso X, o Sábio, D. Dinis, Pai Soares de Taveirós, Bernal de Bonaval, que remontam passagens e ambientes de Santiago de Compostela. De um modo geral, na introdução é apresentado ao leitor a temática da obra,

Nas fontes medievais é frequente a menção a tais viagens com fins religiosos. Principalmente nas cantigas, que são bastante executadas no período. Canções que relatam milagres de santos e louvores, mas também, amores, e críticas das mais diversas vertentes. A partir disso, esta resenha vem apresentar a mais nova publicação da Editora Cosac Naify, intitulada

fornecendo informações básicas acerca do período e do estilo literário em questão. Há também um glossário explicativo, além de um mapa da localidade, ressaltando os locais relevantes para a

lírica galego-portuguesa. Fechando o conteúdo do livro, é presente uma bibliografia com estudos realizados acerca do tema proposto e imagens e dados dos cancioneiros medievais utilizados na pesquisa, a saber: Cancioneiro

da Ajuda4,

O Caminho Poético de Santiago: Lírica galegoportuguesa, organizado por Yara Frateschi Vieira, professora titular, aposentada, de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Campinas

3

LE GOFF, Jacques; SCHIMITT, Jean-Claude (orgs.).

Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Coord. de Trad. Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 2, p. 353, 354. 4 O Cancioneiro da Ajuda é um manuscrito em pergaminho, datável de finais do século XIII ou inícios do XIV. Está incompleto (mutilado e inacabado): faltam-lhe rubricas atributivas de autor; somente dezesseis iluminuras foram esboçadas e parcialmente pintadas; há

espaços reservados para a notação musical que, no entanto, não foi introduzida; algumas iniciais capitais (de cantiga ou de estrofe) foram deixadas em branco. A escrita, em preto, é feita na letra minúscula gótica. CABANAS, Maria Isabel Morán; CABO, José António Souto; VIEIRA, Yara Frateschi. O Caminho Poético de Santiago: Lírica galego-portuguesa. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 204.

176


G N A R U S | 177 Cancioneiro da Biblioteca

preocuparam

Nacional5

em

e

o

Cancioneiro

da

todos

cidade de Santiago de

leigo da temática da obra

Compostela,

e fornecer um aparato

fronteira entre Portugal e

de

Espanha,

notas

religioso,

lírica

cultural

galego-portuguesa, de a

propícias

saber: as cantigas de amor, cantigas de amigo e as cantigas de escarnio e maldizer. Além disso, tece breves considerações sobre as cantigas religiosas que tem por maior testemunho as Cantigas de

Santa Maria, de D. Afonso X, o Sábio, Rei de Leão e Castela. Mas não somente de cantigas se pautaram as considerações: os organizadores da obra se

O Cancioneiro da Biblioteca Nacional foi copiado por volta de 1525-26, na Itália, por ordem do humanista italiano Angelo Colocci. Contém, além do maior número de textos e autores do corpus galego-português a nós transmitido, também a fragmentária Arte de Trovar. . CABANAS, Maria Isabel Morán; CABO, José António Souto; VIEIRA, Yara Frateschi. Op, Cit, p. 208. 6 O Cancioneiro da Biblioteca Vaticana é uma coletânea com aproximadamente 1200 cantigas, compilado na Itália entre o final do século XV e início do século XVI. 5

de

toda

e a

para

a

lírica trovadoresca para

literaturas, inclusive a considerações sobre os gêneros das cantigas, a

político

implantação e difusão da

todas

brasileira, por se exprimir nesta língua. Há também

centro

isso sustenta condições

língua

portuguesa, patrimônio comum

mais

Península Ibérica, com

manifestação inicial da literatura

era o

importante

contextualizam a origem chamada

localizada

não muito longe da atual

breve do que o espera

da

episódios

No período medieval, a

modo a instruir ao leitor

As

os

Santiago de Compostela.

com algumas notas de

Santiago.

da

narrados por tais poemas:

A publicação tem início

Caminho

dados

localidade que conduz

Vaticana6.

pelo

trazer

também

as outras partes da península. Nas palavras dos organizadores da obra:

Na segunda metade do século XII, momento em que nasce a lírica galegoportuguesa, não havia no reino galaicoleonês outro centro urbano que pudesse competir com o prestígio de Santiago, cuja supremacia se devia ao uso eficiente dos recursos materiais e culturais gerados pela peregrinação (CABANAS; CABO; VIEIRA, 2015; p. 14).

As cantigas são apresentadas em dois blocos: “Os trovadores e Santiago de Compostela” em que Encontra-se depositado na Biblioteca do Vaticano, de onde deriva o nome por que é conhecido. Este cancioneiro, como o Cancioneiro da Biblioteca Nacional em Portugal, foi compilado após o século XIII e compreende um espaço de tempo bem maior. Apresenta não apenas obras dos poetas da corte de Afonso III de Portugal, mas também anteriores, como ainda os contemporâneos de D.Dinis e seus filhos. MONTEAGUDO, Henrique, et al. Três poetas medievais da ría de Vigo. Ed. Galaxia. 1998, p. 51.

177


G N A R U S | 178 tratam de temáticas que envolvem diretamente a

transcrição, quanto pela extensa bibliografia

localidade, seja para cantar louvores e amores ou

complementar, presente na publicação e generosa

para “maldizer” sobre pessoas, e, “Trovadores e

para os pesquisadores que visam encontrar

textos em diálogo”, que remetem a autores de

referências no assunto. Nesse sentido, diante do

outras localidades, mas que remetem cantigas a

que foi exposto, O Caminho Poético de Santiago:

Santiago de Compostela, como D. Dinis, Rei de

Lírica Galego-Portuguesa é uma obra de grande

Portugal e João Zorro. No final de cada grupo de

valor e que desafia o especialista mais rigoroso a

cantigas de determinado autor, há uma breve

encontrar algum demérito.

biografia do mesmo, de forma a apresentar ao leitor a vida de tal artista que é o trovador. Os textos selecionados proporcionam ao leitor uma viagem literária pela cidade compostelana e ilustram

os

gêneros

praticados

pela

Alex Rogério Silva é mestrando em História e Cultura Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus de Franca). E-mail: alex465@gmail.com.

lírica

portuguesa como as cantigas de amor, cantigas de amigo e as cantigas satíricas, que são as cantigas de escárnio e de maldizer. A grafia utilizada na transcrição das cantigas é a sugerida nas Normas de

edición para a poesia trobadoresca galegoportuguesa medieval7, de forma a manter a grafia o mais fiel possível das fontes originais. Além disso, mostra como os autores estavam ligados na cidade de Santiago de Compostela e interligados entre si seja por laços familiares, pessoais, sociais, políticos, sendo responsáveis pela disseminação da lírica pelas outras regiões da Península Ibérica. A obra se apresenta como uma inestimável referência àqueles que se interessam pela poesia galego-portuguesa, seja pela contemplação dos versos poéticos contidos, seja como base para a pesquisa acadêmica. No campo desta última, O

Caminho Poético de Santiago vem se afirmar como uma contribuição singular, tanto pelas cantigas em sua forma original e o glossário que auxilia sua AA.VV. Normas de edición para a poesia trobadoresca galego-portuguesa medieval. Universidade de Coruña. 7

Servizio de Publicacións, 2007. (Versão online disponível em

<http://www.udc.gal/export/sites/udc/publicacions/_g aleria_down/librariadixital/NormaEdicionPoesiaTF.pdf. > . Acesso em: 17 mai. 2015.

178


G N A R U S | 179

Resenha

UM CONVITE A LEITURA DE “Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia” Por: Geraldo Magella de Menezes Neto

SILVA, Hilton P., et al. Por terra, céu e mar: Histórias e memórias da Segunda Guerra Mundial na Amazônia. Com a colaboração de Rodrigo Yuri C. Correa e Leonardo G. G. Trindade. Belém: Paka-Tatu, 2013.

P

or terra, céu e mar: Histórias e memórias da

professor da Faculdade de Educação Física da

Segunda Guerra Mundial na Amazônia é

UFPA; Murilo Ribeiro Teixeira, acadêmico da

uma obra lançada pela editora Paka-Tatu

Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)1,

no final de 2013, que possui quatro autores: Hilton

bolsista do PIBIC/CNPq, atuando no ensino médio

Pereira

em

da Escola de Aplicação da UFPA; e Samuel R.

Antropologia/Bioantropologia pela Ohio State

Mendonça, bolsista do PIBIC/CNPq, e também

University, é professor do Programa de Pós-

atuando no ensino médio da Escola de Aplicação da

Graduação em Antropologia e do Mestrado em

UFPA. Além disso, o livro possui dois colaboradores:

Saúde, Ambiente e Sociedade na Amazônia da

Leonardo Gabriel Gomes Trindade e Rodrigo Yuri

Universidade Federal Do Pará (UFPA); Elton

Carvalho Correa, ambos bolsistas do PIBIC/CNPq,

Vinicius Oliveira de Sousa, Mestre em Saúde,

atuando no ensino médio da Escola de Aplicação da

Sociedade e Endemias da Amazônia pela UFPA, é

UFPA.

da

Silva,

Doutor

O livro não especifica qual o curso de formação do autor. 1


G N A R U S | 180 Tendo como justificativa

Pará (AECB-PA)2, contendo

o argumento de que os

várias

pracinhas

aqueles que atuaram na

da

Força

Expedicionária (FEB)

foram

pelo

governo

Brasileira

No primeiro capítulo, “A

pela

Amazônia e o Pará durante

sociedade brasileira, que

a

não lhes deram o devido reconhecimento, autores,

o

é

o

pracinhas

da

Pará na época da guerra.

de

Citam o afundamento de navios

FEB)

a sociedade brasileira ao longo de suas vidas.” (p.15). Não por acaso, o prefácio da obra, assinado por Aristóteles Miranda, tem um título significativo que corrobora com o objetivo do livro: “Memória e reconhecimento”.

pelos

submarinos do Eixo; falam

que merecem, que sejam sacrificaram e fizeram enormes contribuições para

mercantes

brasileiros

olhados com a dignidade amados e apreciados pelo que são, homens que se

Guerra

um resumo do contexto do

“colaborar para que sejam (os

Segunda

Mundial”, os autores fazem

objetivo da obra, segundo os

sobre

Segunda Guerra Mundial.

esquecidos e

imagens

da

perseguição

aos

“quinta-colunistas”, espiões que estariam atuando em favor dos países do Eixo; da construção do Hospital do Pronto Socorro Municipal de Belém e do Hospital Evandro Chagas, como parte da operação militar entre o Brasil e os Estados Unidos; o racionamento de combustíveis e de alimentos; e a existência de um “campo de concentração” em

Além da Introdução, o livro possui quatro

Acará (atual município de Tomé-Açu), no qual

capítulos: “A Amazônia e o Pará durante a Segunda

foram isolados imigrantes japoneses, italianos e

Guerra Mundial”; “A história que estava esquecida:

alemães.3

relatos da guerra pelos ex-combatentes”; “Os amazônidas que não voltaram”; e “As repercussões da FEB dentro e fora do Brasil”. Além disso, a obra possui uma seção intitulada “Memórias da

Interessante neste capítulo é o depoimento do Sr. Raimundo Santa Brígida, que morava na época da guerra em Carutapera, na fronteira entre o Maranhão e o Pará. Santa Brígida revelou que viu

Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - Seção A Associação dos Ex-Combatentes do Brasil - Seção Pará (AECB-PA) foi fundada em 8 de maio de 1946, é considerada de utilidade pública pela Lei Estadual n. 524, de 16 de agosto de 1952, tendo sede na Avenida Governador José Malcher, n. 2887. Seu primeiro presidente foi o ex-combatente Cléo Bernardo de Macambira Bastos. (p. 29). O atual presidente é o excombatente Raimundo Nonato de Castro. Infelizmente, nos últimos anos a sede da Associação foi vítima de vários assaltos. Objetos históricos como capacetes de aço, fardas dos militares e documentos que contam a história dos ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial já 2

foram roubados. Ver “No Pará, Associação dos Excombatentes do Brasil é assaltada”. Site G1 Pará. Disponivel em: <http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2014/05/associ acao-dos-ex-combatentes-do-brasil-no-para-eassaltada.html> Acesso em 14 mar. 2015. 3 Sobre os campos de concentração no Pará e no Brasil, ver PERAZZO, Priscila Ferreira. Prisioneiros de guerra. Os cidadãos do Eixo nos campos de concentração brasileiros (1942-1945). Tese (Doutorado em História Social) Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2002.


G N A R U S | 181 “diversas embarcações, possivelmente nazistas nas

do contexto da guerra em Belém e o treinamento

cercanias do local”, e que tinha um tio que fazia

dos pracinhas da FEB.4

abastecimento de alguns submarinos alemães na cidade de Salinas-Pará, que estavam próximos da costa. Segundo o Sr. Raimundo, as autoridades locais descobriram tal fato e “desapareceram” com o tio “como forma de punição por sua traição à nação”. (pp.17-18). Tal depoimento é bastante revelador de algo que não foi pesquisado de forma profunda, o que poderia ser mais explorado pelos autores.

voltaram” faz uma breve abordagem dos excombatentes que morreram nos campos de batalha na Itália. Em contagem oficial, quatro combatentes paraenses da FEB, dois amazonenses e um acreano foram mortos. Já 21 paraenses foram mortos nos ataques dos submarinos alemães aos navios mercantes brasileiros. No quarto e último capítulo, “As repercussões da

No segundo capítulo, “A história que estava esquecida:

O terceiro capítulo “Os amazônidas que não

relatos

combatentes”,

da

guerra

vários

relatos

pelos

ex-

de

ex-

combatentes, termo que se refere aos cidadãos que, “de forma direta ou indireta, esteve a serviço da nação por ocasião da guerra.” (p. 30). O Contingente da Amazônia que fez parte da Força Expedicionária Brasileira (FEB) era formado por 786 homens. Esses homens saíram de Belém no dia 20 de dezembro de 1944 para o Rio de Janeiro, e de lá partiu em 8 de fevereiro de 1945 para os campos de batalha na Itália.

FEB dentro e fora do Brasil”, os autores exaltam em vários momentos a atuação da FEB, afirmando que os brasileiros “superaram todas as expectativas” (p. 87); que a criação da FEB e a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial “foi um marco fundamental da criação do Brasil e do mundo que conhecemos hoje” (p. 87); que o fato de as tropas brasileiras apresentarem homens e mulheres de todas as cores e matizes etnorraciais demonstrou a “falácia” do pensamento racista e da segregação racial, o que era comum no exército norteamericano, que separava brancos e negros; que

O livro traz depoimentos de ex-combatentes do

para o Brasil veio a ideia de “modernização das

exército, da aeronáutica e na marinha. A estrutura

relações na caserna e mais respeito aos suboficiais

basicamente

o

e soldados”, o que, segundo os autores, coloca as

entrevistado, com informações sobre a data e o

Forças Armadas Brasileiras hoje “entre as mais

local de nascimento, o momento em que fez parte

respeitadas do mundo”. (p. 88).

é

a

mesma:

apresenta-se

das forças armadas ou se alistou como voluntário, e qual a sua atuação durante a guerra. Além dos depoimentos, os autores utilizam outras fontes, tais como: diários, a exemplo do diário do praça Galliano Cei (1921-2007), que deixou registrado vários informações sobre a guerra; e o livro de Antonio Batista de Miranda (1923-2001), que trata

Ver MIRANDA, Antônio Batista de. Guerra: memórias... destino... . Belém: Evolution, 1998. 4

Podemos dizer que o grande mérito do livro é o de trazer à tona diversos depoimentos daqueles que viveram e participaram do contexto da Segunda Guerra Mundial, possibilitando aos leitores o conhecimento de inúmeras experiências que vão além do que foi registrado em discursos, relatórios de governo e jornais, por exemplo.


G N A R U S | 182 Destacamos os depoimentos dos ex-combatentes

Os autores exageram também ao falar das

da aeronáutica e da marinha, que geralmente são

repercussões da FEB fora do Brasil, focando apenas

deixados em segundo plano em relação aos

em aspectos positivos. Segundo Francisco César

soldados da FEB.

Ferraz, o Brasil, “ao recusar o uso de suas tropas

No entanto, o livro também apresenta alguns equívocos. No prefácio, Aristóteles Miranda afirma que a obra dá “o reconhecimento merecido aos pracinhas amazônidas e preenchendo uma lacuna na historiografia paraense.” (p. 8) Os autores afirmam ainda que “os eventos associados à guerra e os impactos do conflito no Pará e na Amazônia ainda são pouco conhecidos”. (p. 17) Se considerarmos que podem ser desconhecidos por um público em geral, não especialista no assunto, concordamos com os autores. No entanto, não

como forças de ocupação na Europa destruída, perdeu a oportunidade de ganhar importância nessa reordenação mundial”.6 Além disso, a aliança com os Estados Unidos não produziu os efeitos que se desejava, ou seja, uma proeminência brasileira na América do Sul, já que, com as mudanças nos responsáveis pela política externa nos Estados Unidos antes do fim da guerra, “não interessava compartilhar o poder político no continente sulamericano com o Brasil ou com qualquer outro país”.7

podemos generalizar esse “pouco conhecimento”

Outra questão problemática é que os autores não

em relação à produção científica acadêmica sobre

analisam as memórias dos ex-combatentes. Há uma

o tema, que possui muitas pesquisas sobre as

sucessão de narrativas, muitas delas desconexas,

repercussões da Segunda Guerra na Amazônia e no

sem relação entre si. Talvez por se tratar de um

Pará, muitas delas inclusive não citadas pelos

“reconhecimento” ao ex-combatentes, os autores

autores.5 Assim, a obra deixa de lado várias

não

pesquisas já realizadas que poderiam contribuir

problematizar os relatos dos entrevistados, nem de

para um debate maior acerca das memórias dos ex-

confrontar os depoimentos. Poderíamos dizer que

combatentes.

faltou um aporte teórico da história oral, que,

Ver por exemplo: FONTES, Edilza Joana de Oliveira. O pão nosso de cada dia: trabalhadores e indústria da

Segunda Guerra Mundial, 1939-1945. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2003; PINON, Alerrandson Afonso Melo. Belém durante a Segunda Guerra Mundial: problemas de alimentação, energia elétrica e transporte (1939-1945). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2007; RODRIGUES, Venize Nazaré Ramos. “Memórias de guerra”. In: FARES, Josebel Akel (org.). Memórias da Belém de antigamente. Belém: EDUEPA, 2010, pp. 207215; SIMÕES, Adrialva. De pé pela honra do Brasil : o papel da imprensa paraense na divulgação da Segunda Guerra Mundial (1942-1945). Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 1993. 6 FERRAZ, Francisco César. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 66. 7 Ibid. pp. 66-67.

5

panificação e a legislação trabalhista (Belém 19401954). Belém: Paka-Tatu, 2002; “A batalha da borracha, a imigração nordestina e o seringueiro: A relação história e natureza”. In: NEVES, Fernando Arthur de Freitas e LIMA, Maria Roseane Pinto (orgs.). Faces da História da Amazônia. Belém: Paka- Tatu, 2006; LIMA, Antonio José de Sousa. Guerra e memória: o cotidiano em IgarapéAçu durante o período de 1943 a 1945. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) Universidade Federal do Pará - UFPA, Castanhal-PA, 2006; MENEZES NETO, Geraldo Magella de. A Segunda Guerra Mundial nos folhetos de cordel do Pará. 82 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) - Universidade Federal do Pará - UFPA, Belém, 2008; A “ressurreição da alma cabana”: as passeatas de protesto contra o Eixo na Belém da Segunda Guerra. Em Tempo de Histórias. n. 23, Brasília, ago. – dez. 2013, p. 22-41; NAZARETH, Aleckssandra Guerreiro. Nunca vi tanta metralha: memórias de Belém do Pará no tempo da

tiveram

a

ousadia

de

questionar

e


G N A R U S | 183 segundo Verena Alberti “é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes”, que consiste “na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado.”8 Alessandro Portelli aponta que o que torna a história oral diferente é que ela “nos conta menos sobre eventos que sobre significados.” entrevistas

“sempre

revelam

As

eventos

desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos.”9. Portelli destaca que a história oral “é contada de uma multiplicidade de pontos de vista”, e que a confrontação de “diferentes parcialidades” é “uma das coisas que faz a história oral interessante.”10 Nesse sentido, a obra pode ser vista mais como um registro daqueles que atuaram direta ou indiretamente na Segunda Guerra Mundial do que um estudo crítico. Pode-se dizer que o livro conseguiu atingir o objetivo de olhar os pracinhas “com a dignidade que merecem”, mas que poderia ter ido muito além com a riqueza de depoimentos que trouxe.

Geraldo Magella de Menezes Neto é Mestre em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Professor da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), Professor da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC) de Belém-PA, distrito Mosqueiro. Email: geraldoneto53@hotmail.com

ALBERTI, Verena. “Fontes orais - Histórias dentro da História”. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 155. 8

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, n. 14, fev., 1997, p. 31. 10 Ibid. p. 39. 9


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