ANO IV - Nยบ 7 - AGOSTO - 2016
GNARUS
Revista de Histรณria - ISSN: 2317-2002
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Equipe de Redação: Editores: Prof. Ms. Fernando Gralha (FIS/UCAM/UAB) Prof. Jessica Corais (FIS) Pesquisa: Prof. Germano Vieira (UGF/FIS) Profª Cindye Esquivel (FIS) Prof. Renato Lopes (UNIRIO) Prof. Rafael Eiras (UCAM)
Conselho Consultivo: Prof. Dr. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Prof. Dr. Júlio Gralha (UFF) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Rodrigo Amaral (UCAM/FIS) Prof. Dr. Sérgio Chahon (FIS)
Apoio: Faculdades Integradas Simonsen (FIS) Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP) Grupo de Estudos da Licenciatura em História - GELHIS
Revista Eletrônica Acadêmica/Gnarus Revista de História. Vol.7, n.6 (Jan-Ago 2016). Rio de Janeiro, 2016 [on-line]. Semestral. Gnarus Revista de História Disponível no Portal Simonsen em: www.gnarusrevistadehistoria.com.br ISSN 2317-2002 1. Ciências Humanas; História; Ensino de História
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Sumário Ao leitor .................................................................................................................................................................................................................. 4 Fernando GralhaErro! Indicador não definido.
ARTIGOS:
A busca pela geometrização da matéria.......................................................................................................................................................... 5 Adílio Jorge Marques Erro! Indicador não definido. A construção da santidade e a cavalaria medieval: algumas considerações ............................................................................................ 12 Leilane Araujo Silva A heresia dos valdenses: “a pregação não autorizada” (1173-1206)......................................................................................................... 21 Flávio Henrique Santos de Souza A natureza amazônica e o homem do século XVIII: breves considerações sobre o relato de José Gonçalves da Fonseca na exploração dos rios Madeira e Guaporé (1749)................................................................................................................................... 31 Maria Luiza Rocha Barbalho Uma viagem ao Nilo: a religião no antigo EGITO do reino novo (c. 1550-1070 a.C) ............................................................................. 38 Danielle Guedes dos Santos Encontro de bois de Olinda – uma tradição inventada? .............................................................................................................................. 45 Lucio Enrico Vieira Attia Individualismo norte americano: reflexões sobre a história e a cultura dos Estados Unidos ................................................................ 55 Lucas Schuab Vieira Música: História e cultura.................................................................................................................................................................................. 61 Marília Luana Pinheiro de Paiva Social-democracia: o paradigma do “socialismo parlamentar” ................................................................................................................ 73 Leonardo Mello Silva A historiografia e suas descontinuidades: criando pontes entre Peter Burke e Michel Foucault ......................................................... 81 Odenício Junior Marques de Melo Reflexões sobre carnaval e samba na historiografia brasileira ................................................................................................................... 91 Augusto Neves da Silva Um breve estudo das legendas em torno do ritual de sagração de Henrique V – Inglaterra, século XV .........................................105 Caio de Barros Martins Costa Túndalo e Rolando: visão e canção do paraíso (séc. XII) ............................................................................................................................115 Fernando Augusto Alves Batista Viva a Penha! .....................................................................................................................................................................................................132 Luís Tadeu de Farias Góes
COLUNA: NO ESCURO DO CINEMA
A montagem cinematográfica na busca de uma “realidade possível” ....................................................................................................140 Rafael Eiras
COLUNA: FOTOGRAFIAS DA HISTÓRIA
Imagem, instante e morte na fotografia de Robert Capa. ........................................................................................................................150 Fernando Gralha
COLUNA: A HISTÓRIA NOS QUADRINHOS
Perramus - dente por dente ............................................................................................................................................................................155 Renato Lopes
RESENHA
Um convite a leitura de “O Nome da Rosa”. ................................................................................................................................................159 Cyndie Esquivel
MONOGRAFIA
Máscaras sobre máscaras em busca de uma perspectiva: Foucault (1960- 1975)................................................................................163 Daniel Diego A. da Silva de Souza
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AO LEITOR
C
hegamos ao número sete, uma longa viagem pelo mundo da História nos trouxe até aqui, uma viagem
que interroga ao passado nos leva a ler, escrever, ler, escrever em um eterno ciclo virtuoso.
cheia de personagens, mitos, casos, acasos, afirmações,
viagem, tópicos como “geometrização da matéria”, “A
negações, pesquisas que abrem diante de nós todos os
natureza Amazônica" e “Uma viagem ao Nilo antigo”
caminhos do mundo, mas principalmente o caminho do
extrapolam as ciências exatas para adentrar em seus aspectos
homem em sua eterna busca pela verdade. O discurso
humanos, já temas como “santidade cavalheiresca”, “Heresia
historiográfico é uma das muitas cosmovisões do mundo que
dos Valdenses”, “Visões do paraíso” e “Sagração de Henrique
através de uma linguagem, do logos, criam uma explicação
V” nos fazem pensar como religião, política e História se
sobre o mundo, sobre nós mesmos e sobre a relação entre nós
confundem no tempo.
eo
documentos,
escritas,
debates,
Neste sétimo ciclo temos grandes possibilidades para nossa
mundo.1
Mas temos outras searas a desvendar através das práticas
Em Wittgenstein, o conjunto discursivo instituidor de uma
sociais da política em abordagens como “O Individualismo
visão de mundo é uma “semântica formal”, análoga ao
norte-americano” e as questões da “Social-democracia e o
kosmos2 grego, e, dependendo da forma como é arquitetada,
parlamentarismo”. Mas nem tudo na escrita da história é tão
proclama juízos éticos e estéticos específicos, mas que não são
sisudo, a Gnarus também nos leva a um “Encontro de bois” em
inefáveis, ou seja, a rigor, não podem ser descritos com
Olinda, a um “Carnaval na Penha” e a discussão da relação
palavras, apenas sentidos pela forma com que são expressos.
entre “História e Música”, além é claro dos temas já habituais
E assim é a escrita da História, uma viagem ao passado que
de nossa revista, cinema, fotografia e quadrinhos, mais
é sentido pela forma como nós historiadores nos expressamos.
adiante o convite à leitura de um clássico, a obra desta vez é
Assim como a filosofia, a História preocupa-se com a “questão
“O Nome da Rosa” de Umberto Eco. E para fechar, filosofia
da verdade”, com o estabelecimento da validade dos
pura com Peter Burke e Foucault à vontade.
discursos, frente à falsidade, à ilusão ficcional. Essa
Venham mais uma vez a navegar rumo ao A-Letheia.3
preocupação, acreditamos, é uma preocupação permanente dos seres humanos, e por isso a Gnarus chegou tão longe,
Fernando Gralha
nosso desejo pela viagem, pelo saber, pelo sentimento de hoje
1
Na Filosofia, “mundo” designa a ordem do ser, ou seja, as formas de ordenamento que podemos compreender, e das quais encontramos várias subdivisões, sendo que mundo sensível e mundo inteligível são as duas subdivisões mais freqüentes nas correntes filosóficas (MORA, 1998, s.v. mundo).
2
Vocábulo grego que gerou o nosso termo “cosmos”. No Dicionário Aurélio, cosmos designa universo, ordem, disciplina, organização, mundo. 3 Sobre o A-Letheia ver “Ao Leitor” Gnarus, nº 1.
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Artigo
A BUSCA PELA GEOMETRIZAÇÃO DA MATÉRIA Por Adílio Jorge Marques
Resumo: Os gregos da Antiguidade, em contraposição a outras culturas, fizeram uma notável descoberta advinda da razão: a natureza obedece a leis universais e eternas, e que podem ser investigadas pelos homens. O objetivo deste texto é mostrar a tentativa inicial de se estabelecer uma correspondência entre a forma e as propriedades e a estrutura da matéria desde a ideia dos sólidos de Platão. A ideia persistiu ao longo dos séculos, a partir da premissa de que, na natureza, as formas complexas se originam de entidades simples. Palavras Chave: História das Ciências. Platão. Geometrização. Química.
Platão e os sólidos geométricos
M
esmo que as leis do movimento
assim o ordena, ou deseja, mas porque existe uma lei
expressas pelos filósofos gregos se
natural da qual depende o comportamento dessa
tenham mostrado equivocadas, como
pedra, e à qual os próprios deuses estariam sujeitos.
no caso da Física aristotélica, a descoberta da
Tal proposta grega foi uma ruptura notável com os
regularidade da natureza e da possibilidade de que
padrões de pensamento vigentes nas outras
os homens possam penetrar seus segredos foram
civilizações da Antiguidade, nas quais o mito
descobertas monumentais, cuja importância, num
predominava, e introduziu uma nova forma de pensar
mundo como o de hoje, em que isso é considerado
o mundo.
corriqueiro, nunca é demais enfatizar. Sabemos que
Dentre as muitas cogitações da Filosofia grega
uma pedra cai não porque determinada divindade
sobre o mundo natural, uma das mais importantes foi
GNARUS |6 aquela da constituição da matéria, sobre a qual
corresponde ao tetraedro, associado à forma de uma
inúmeros filósofos tiveram algo a dizer, muitos dos
chama, o ar ao octaedro, com a possibilidade de
quais com profundas implicações sobre a ciência de
movimento ascendente e descendente, enquanto a
nosso tempo. Talvez o mais profundo deles tenha sido
água, moldável e fluida, corresponde ao icosaedro. A
Platão de Atenas (428/427 - 347 a.C.).
terra, associada à noção de solidez e estabilidade,
Discípulo
de Sócrates, fundou a conhecida Academia de
corresponde ao sólido de faces quadradas, o cubo. O
Atenas, sendo posteriormente mestre de Aristóteles
quinto sólido platônico, o icosaedro, com doze faces
(384 - 322 a.C.). A sua teoria sobre a constituição da
pentagonais, corresponde à quintessência, ou
matéria foi formulada na magistral obra “Timeu” (ou
elemento celeste (MARQUES & SENRA, 2008, 725-
“Diálogo sobre a natureza”), pertencente à chamada
730).
fase final ou da maturidade de Platão, na qual mostra os seus pensamentos sobre a physis, ou natureza.
O pensador ateniense busca, também, estabelecer uma cosmologia que parte da distinção entre dois
Platão utiliza os quatro elementos de Empédocles
mundos: o mundo mutável do devir (baseado no “vir-
(495 – 430 a.C.), ou seja, terra, água, ar e fogo,
a-ser” heraclitiniano1) e as formas que existiriam de
associando-os aos sólidos constituídos por faces de
maneira eterna. Ele reconhece a mudança constante
polígonos regulares, para criar o seu quinteto
do mundo sensível em oposição ao mundo das ideias,
geométrico, conforme a Figura 1 abaixo. Três desses
este estabelecido na permanência e na estabilidade
sólidos têm faces triangulares, o tetraedro, o
proposta por Parmênides (cerca de 530 a.C. - 460
octaedro e o icosaedro. Nesta classe o fogo
a.C.).
Figura 1. Os cinco sólidos platônicos (Timeu, 54-56): 1 – tetraedro; 2 – octaedro; 3 – icosaedro; 4 – cubo; 5 – dodecaedro. Imagem da obra Timeu e Crítias ou A Atlântida. São Paulo: Hemus, 1990, p. 49. 1
Heráclito de Éfeso (540 - 470 a.C.).
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A construção dos sólidos
associou ao elemento fogo pela sua forma pontiaguda e ascendente.
Para Platão a figura geométrica que engloba todas
Ainda, considerando os sólidos geométricos
as formas possíveis é a esfera. Da esfera podemos
regulares simples, é possível unir quatro triângulos
inferir a simetria entre dois lados de algo que foi
equiláteros, cuja soma dos ângulos internos
criado (PLATÃO, 1990). Usando a simetria (VLASTOS,
adjacentes nos vértices é 240º, formando o octaedro,
1987) pode-se obter qualquer outra forma possível,
associado ao elemento ar, lembrando a Platão o
pois as formas harmoniosas do espaço (logo,
movimento ascendente e descendente. Com cinco
simétricas) são as chamadas classes de simetria
desses triângulos num vértice, a soma é 300º, ainda
(PLATÃO, 1990, 84): “Por isso, Deus tornou o Todo em
inferior a 360º, surgindo o icosaedro, figura de 20
forma esférica e circular, sendo todas as distâncias
faces, que foi relacionada por Platão ao elemento
iguais, do centro à extremidade. ” (Timeu, 33).
água e à sua fluidez e possibilidade de ser moldável
Da perfeita simetria da esfera (representação platônica
do
mundo
ideal)
obtemos
(VLASTOS, 1987).
as
A partir de seis triângulos equiláteros surge um
representações mais simples da natureza, assim como
problema matemático. A soma dos ângulos internos
os movimentos lineares e circulares que os antigos
adjacentes unidos pelos vértices, neste caso, é 360º,
observavam nos céus nas órbitas dos planetas visíveis.
o que não permite fechar a figura por esse mesmo
A partir do formato esférico, todas as outras formas
vértice (ou seja, não permite formar um ângulo
podem ser derivadas, como classes particulares e
sólido). Também não é possível um número maior de
finitas de simetria, a partir do caso geral e infinito da
triângulos equiláteros em torno de um vértice para a
esfera (REALE, 1993). A natureza busca uma
construção de um outro poliedro. Logo, com quatro
ordenação interna que possibilite a ligação das
vértices, Platão verifica que a geometria o obriga a
formas umas com as outros. As relações entre as
partir para o cubo, que para ele tinha a estabilidade
formas e sua simetria pode ser de variados graus,
do elemento terra (PLATÃO, 1990, 109): “Pois a terra,
formando sistemas mais ou menos complexos
das quatro espécies, é a mais difícil de mover e é, de
(MARQUES & SENRA, 2008, 725-730).
todos os corpos, o mais tenaz” (Timeu, 55).
Na construção dos sólidos platônicos devemos
Passando às figuras de cinco lados, os pentágonos,
utilizar apenas polígonos regulares congruentes, ou
apenas é possível construir o dodecaedro, figura de
seja, aqueles para os quais a razão de 360 pela soma
12 lados, que Platão associou diretamente à
dos ângulos internos é um número maior que 1. Se
quintessência, da qual o próprio Cosmos seria
esta razão for 1, não é possível a construção de um
derivado. Com pentágonos, cada vértice possuirá
ângulo sólido. Vejamos, então, como Platão
108º. Com hexágonos não é possível construir sólidos
estruturou os sólidos.
platônicos (MARCONDES, 2000).
Partindo-se da forma mais simples do triângulo
Há uma relação dual geométrica entre os sólidos
equilátero constrói-se um tetraedro, que Platão
propostos por Platão, e que pode ser verificada na substituição de faces por vértices e de vértices por
GNARUS |8 faces. Por exemplo, as 12 faces e os 20 vértices do
no qual faces e vértices são de mesmo número
dodecaedro são transformados nas 20 faces e 12
(quatro). Ver Tabela 1 abaixo (TRINAJSTIC, NIKOLIC,
vértices do icosaedro. O mesmo pode ser verificado
MIHALIC, 1994, 62).
nos outros casos, com exceção do tetraedro, poliedro
Tabela 1 Sólidos de Platão Tetraedro Cubo Octaedro Dodecaedro Icosaedro
Faces 4 6 8 12 20
A correspondência química
Vértices 4 8 6 20 12
Arestas 6 12 12 30 30
traduzir o livro do filósofo grego do texto original para o alemão, como um exercício para aprender a
A tentativa de estabelecer uma correspondência
língua grega, que seu pai lecionava em Munique. Ele
entre a forma e as propriedades e a estrutura da
confessa
que
ficou
matéria persistiu ao longo do tempo, a partir da
(HEISENBERG, 1972, 8-9):
perplexo
a
princípio
premissa de que na natureza as formas complexas se originam de entidades simples. Esta questão está relacionada à busca pela ordem imanente na natureza, em que o caos aparente das formas macroscópicas na verdade encobre o cosmos, ou ordem, existente em microescala. É proposital aqui o uso dessas duas palavras de origem grega, que são antônimas em sua acepção de origem. As propriedades de simetria da matéria, tão importantes na Química e na física atuais, como mostra o pensamento de um dos fundadores da mecânica quântica, Werner Heisenberg (1901 – 1976), remetem-nos às cogitações de Platão. Heisenberg, em seu livro de memórias Physics and
Beyond confessa a perplexidade que lhe causou a leitura de Platão no Timeu. A provocação de Platão nunca o abandonaria. Em 1920, quando ainda um estudante na Universidade de Munique ele se pôs a
“A coisa toda parecia uma especulação absurda, perdoável talvez pelo fato de os gregos não possuírem o conhecimento empírico necessário. Contudo entristeci-me de ver um filósofo da perspicácia de Platão sucumbindo a fantasias desse tipo. Procurei um princípio que me pudesse ajudar a encontrar alguma justificação para a especulação de Platão, mas por mais que tentasse, não conseguia descobrir nada. Mesmo assim, eu estava fascinado pela ideia de que as menores partículas de matéria devem reduzir-se a alguma forma matemática. Afinal, minha tentativa de desenrolar o denso novelo de fenômenos naturais dependia da descoberta de formas matemáticas, mas a razão de Platão ter escolhido os corpos regulares da geometria sólida, entre tantas coisas, permanecia um completo mistério para mim. Eles não pareciam ter qualquer valor como explicação. Se continuei, todavia, a ler os Diálogos, foi simplesmente para melhorar meu grego.... Continuei pensando, por que um grande filósofo como Platão teria imaginado que podia reconhecer ordem nos fenômenos naturais, quando nós próprios não podíamos?”
GNARUS |9 Os estudos de simetria realmente se mostraram
aquela do conjunto das moléculas que formam a rede
cruciais na ciência moderna, começando com uma
cristalina do sólido molecular. A nova abordagem
visão macroscópica desde o estabelecimento da nova
evidenciou uma geometrização muito mais ampla e
mineralogia na virada do século XIX. Aqueles estudos
interessante da matéria, ao mostrar as razões de
ganharam muita força após o estabelecimento da
muitas propriedades não aparentes a partir do
teoria do carbono tetraédrico por Jacobus H. van’t
conhecimento
Hoff na década de 1870. Duas décadas depois um
individuais. Esta geometrização mais ampla, com
tratamento análogo foi efetuado por Alfred Werner
todas as suas consequências, faz-nos refletir sobre a
para compostos de coordenação octaédricos,
profundidade da intuição platônica ao querer
quadráticos e tetraédricos.
descobrir os segredos da estrutura íntima da matéria
Ao longo do século XX, a espectroscopia e a
das
estruturas
de
moléculas
a partir da geometria.
cristalografia por difração de raios X consagraram
Por exemplo, quando se estudam os sólidos iônicos,
definitivamente o papel fundamental da simetria no
covalentes e metálicos, isto é, aqueles em que todas
entendimento da constituição da matéria. Contudo,
as partículas estão unidas umas às outras por forças
durante a maior parte do século XX, a preocupação
iguais, obtêm-se em geral estruturas para os
maior dos químicos e outros investigadores da
conjuntos
estrutura dos materiais foi sobretudo a geometria de
correspondendo
moléculas individuais. Nas últimas décadas, os
platônicos ou a eles relacionadas (SHERDEN &
estudos se ampliaram consideravelmente no sentido
ALLAN, 2005). Algumas dessas estruturas podem ser
de que, para se conhecer a estrutura de uma
vistas na Figura 2, a saber, dois cubos e a estrutura de
substância molecular, é necessário estudar não só a
um octaedro metálico.
estrutura da molécula individual como também
A)
B)
de
partículas
que
frequentemente
se aos
repetem, sólidos
G N A R U S | 10
C)
Figura 2 – a) Estrutura de um cubo iônico, NaCl. b) Sólido covalente cúbico, diamante. c) Forma dos orbitais ligantes (bolas azuis) ao redor de um íon metálico com seus orbitais d em um octaedro metálico.
As estruturas dos sólidos iônicos, exemplificados na
também para o entendimento das interações
Fig. 2, foram obtidas por difração de raios X de
intermoleculares, cujo papel é crucial para o
monocristais daqueles materiais. A descrição da
conhecimento das propriedades da substância.
estrutura de sólidos moleculares, contudo, teve um tratamento diverso. Tradicionalmente se dava uma ênfase muito maior à estrutura da molécula, ficando
Conclusão
a estrutura do cristal, de que a molécula é o bloco fundamental, em segundo plano. Nos últimos anos,
Ao fazer um estudo da estrutura cristalina dos
percebeu-se que ambos os aspectos têm peso
sólidos moleculares nas ciências físicas e químicas,
considerável
sólidos
curiosamente retornam, com grande frequência, as
moleculares, ou seja, é necessário conhecer a
imagens dos sólidos platônicos e outros deles
estrutura da molécula individual, mas também a
derivados, assim como acontece nos sólidos iônicos,
maneira em que as várias moléculas se agrupam
covalentes e metálicos. Desta maneira, podemos
formando o retículo cristalino do sólido. Isto é
dizer que essas estruturas têm enorme importância
importante não só do ponto de vista estrutural como
para o estudo dos sólidos em geral, qualquer que seja
no
entendimento
dos
G N A R U S | 11 a forma de ligação entre os átomos que constituem o sólido. A Química necessita estudar os sólidos de Platão, assim como a área da cristalografia, para melhor entender a natureza íntima da matéria. Adílio Jorge Marques é Doutor em História e Epistemologia das Ciências pela UFRJ e Professor Adjunto da UFF/INFES.
Bibliografia HEISENBERG, W. Physics and Beyond. New York: Harper Tochbooks, 1972. KAUFFMAN, G. B. Coordination Chemistry – a Century of Progress. Washington, D.C.: American Chemical Society, 1994.
MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. MARQUES, A. J. & SENRA, A. V. D. Scientiarum Historia. Livro de Anais. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. PLATÃO. Timeu e Crítias ou A Atlântida. São Paulo: Hemus, 1990. REALE, G. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993. SHERDEN, Nat & ALLAN, Kevin. The Platonic Solids. 2005. In http://www.3quarks.com/GIFAnimations/PlatonicSolids/. Acesso em 03 jun 2016. TRINAJSTIC, Nenad; NIKOLIC, Sonja; MIHALIC, Zlatko. On the Complexity of Platonic Solids.
Bulletin of the Chemists anf Teclmologists of Macedonia. vol. 13, no. 2, 1994. VAN´T HOFF, J. H. Stéréochimie. Paris: Georges Carré
Éditeur, 1892. VLASTOS, G. O universo de Platão. Brasília: EdUnB, 1987.
A Academia de Platão em Atenas Mosaico em Pompéia, ca. século I
G N A R U S | 12
Artigo
A CONSTRUÇÃO DA SANTIDADE E A CAVALARIA MEDIEVAL: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Por Leilane Araujo Silva. Resumo: Em nossa pesquisa, procuramos demonstrar a existência de elementos militares e de santos como guerreiros nas hagiografias do século XIII a partir de reflexões a cerca de elementos da cavalaria medieval presentes nos quatro relatos de santos militares presentes na obra de Jacopo de Varazze conhecida como Legenda Áurea. Contudo, apresentaremos nessa comunicação nossas conclusões historiográficas sobre a pouca disponibilidade de pesquisas relacionando cavalaria e santidade com base nas nossas conclusões obtidas a partir do nosso trabalho de conclusão de curso em história.
Introdução
O
Entretanto, o intuito deste trabalho é fazer presente trabalho está baseado nas
algumas ponderações sobre santidade e cavalaria e
conclusões obtidas a partir da pesquisa
apresentar alguns trabalhos produzidos sobre essas
realizada para a nossa monografia
temáticas, em virtude de apenas o historiador
intitulada de Santidade Armada: uma análise sobre
Bruno Gonçalves Álvaro havia dedicado sua
os traços guerreiros na hagiografia do século XIII
atenção à pesquisa sobre os santos militares e da
que faz uma análise comparativa da presença da
pouca disponibilidade de historiografias a cerca da
temática militar na produção hagiográfica do
relação entre a santidade e a cavalaria.
século XIII com base nos relatos hagiográficos de São Jorge, São Sebastião, São Longino e São
A Construção da santidade
Mercúrio assinalando assim a presença de aspectos
O culto dos santos teve início na Antiguidade
militares presentes na cavalaria medieval e do
clássica com o culto aos mártires, que na
discurso legitimador do que identificamos como
perspectiva cristã por eles terem morrido como
“Santidade Armada”,1 presente nas hagiografias do
seres humanos seguindo Cristo e empenhados com
século XIII.
lealdade na sua palavra, entraram no paraíso,
1É
descrita muito próxima da realidade militar de combate presente na Idade Media.
G N A R U S | 13 tiveram a vida eterna e passaram a servir como
mudanças
na
realidade
monástica
e
que
intermediários entre o céu e a terra.
influenciaram no aumento e na propagação do
Na Idade média a concepção de santidade era
culto aos santos, que abrange não apenas
marcada pela convicção de que o santo é marcado
anacoretas e monges, pois ele engloba sobretudo
desde o seu nascimento pela graça divina e que a
outras personalidades eclesiásticas, como bispos.
sua existência entre os homens era para atestar a
Em vista disso, o culto aos santos passou de um
sua santidade através da manifestação de suas
evento religioso e social concentrado em figuras e
virtudes e para interceder pelos homens perante
vivências que estão distantes, que eram lembradas
Deus.
através dos seus cultos e suas relíquias que eram
De acordo com o historiador André Vauchez o
vistas como capazes de prolongar por assim dizer a
culto dos mártires populariza-se através do santo
presença física no presente dos santos para que eles
patrono que baseia as suas características nas
fizessem a intervenção e auxilio aos homens, para
mesmas noções de uma relação de clientela, ou
se concentrar em modelos mais próximos e que
seja, na lealdade do protegido e no dever de
eram considerados mais aptos a terem suas vidas
proteção por parte do patrono em relação a quem
imitadas.
a ele se recomendou. Porém foi a partir do século VII e com maior
Algumas particularidades da Cavalaria Medieval
intensidade no século X que surgiu como modelo
Partilhamos da mesma opinião que Cláudio de
de santidade santos pautados na nobreza, devido o
Cicco em A Igreja Católica, as Ordens de Cavalaria
fortalecimento da união entre a nobreza e o clero,
e os Templários2 quando afirma que existem três
houve
por
documentos que nos servem de base para o
desempenharem a função de cristianizar o seu
conhecimento sobre a Cavalaria. O primeiro
povo.
documento seria as “Canções de Gesta” escritas na
nobres
que
foram
santificados
A sacralização dos nobres foi extinta no século XI
França por “Chanson de Roland” que narra histórias
a partir da reforma empreendida pela Igreja com o
dos cavaleiros, foi feito um estudo baseado nessas
intuito de purificar-se do poder laico, a partir disso
canções sobre a vida do cavaleiro por Léon Gautier
a vida sacerdotal voltou a ser modelo de santidade,
no livro La Chévalerie.
na qual predominava o voto de pobreza e
O segundo documento são as Regras das Ordens
humildade, mas para eles serem reconhecidos
da Cavalaria conforme Cicco essas regras nos
como santos eles seriam investigados de acordo
mostram o que significava o ideal que era proposto
com as leis da canonização.
para os indivíduos que entravam para as Ordens de
Acreditamos que a história da santidade e a
Cavalaria, a exemplo o livro da Ordem da Cavalaria
criação do culto dos santos estão profundamente
de Raimundo Lúlio que é considerado um tratado
ligados a relação, se não exclusiva, mas pelo menos privilegiada entre a vida monástica e a santidade, devido as modificações na sociedade que geraram
Cláudio de. A Igreja Católica, as Ordens de Cavalaria e os Templários. Em https://tradicaocatolicaes.wordpress. 2CICCO,
com/2011/09/09/as-ordens-de-cavalaria-e-os-templarios/ acessado 04 de maio de 20158 ás 20:03h.
G N A R U S | 14 sobre a ética cavaleiresca.
integrantes.
E o terceiro são os sermões
disso
da Idade Média, pois
passaram a ter uma
existem
oportunidade
de
ascensão
ao
podemos
sermões
que
vislumbrar
o
A
os
partir plebeus
social
ideal de vida e da época
pertencerem
referente à cavalaria.
cavalaria.
à
Acreditamos que numa
Na Cavalaria havia um
tentativa de restabelecer o
código que devia ser
equilíbrio perdido a partir
decorado
da queda do Império
iniciação na Ordem, ele
Romano e num momento
é um código simples e
em
que
não
praticamente
havia
Selo dos Templários
uma
antes
da
de fácil memorização, pois nessa época poucas
autoridade centralizada, mas que se desenvolvia o
pessoas sabiam ler e escrever, por isso ele contém
regime feudal de pequenos reis ou suseranos com
apenas dez mandamentos.
vastas terras apesar de não ter nenhuma
Os mandamentos eram o de que o cavaleiro
salvaguarda contra os assaltantes, a Cavalaria teve
deveria crer em Deus, ele tinha que proteger os que
início como uma autoridade de fiscalização social.
acreditavam em Deus, respeitar os mais fracos,
Com a criação da Cavalaria a entrada dos
amar o seu país, nunca recuar perante o seu
indivíduos a essa ordem era feita por uma
inimigo, fazer guerra contra os inimigos da fé, ser
cerimônia, conhecida como a entronização ou
fiel a palavra dada, ser liberal e generoso e por fim,
iniciação na Ordem da Cavalaria, que era
ser o campeão do direito e da justiça contra o mal e
compreendida como um sacramento que seria
a injustiça.
recebido e que só poderia ser dado por alguém que
A vida do cavaleiro era uma vida relativamente
já foi sacralizado, ou seja, somente um cavaleiro
comum, pois apesar de gozar de privilégios
poderia transformar em um cavaleiro quem não o
especiais sua vida cotidiana decorria normalmente
fosse.
de acordo com a sua posição social. A guerra e o
O ingresso na cavalaria tinha como pré-requisito
torneio faziam parte da atividade normal de um
a entrada não obrigatória, pois ele não poderia ser
cavaleiro, o torneio servia como treinamento para
forçado por ser visto como um sacramento, para a
uma guerra e distração já a guerra era a ocasião
própria instituição era uma indignidade alguém ser
para mostrar o valor do cavaleiro, por isso a
forçado. Além disso, alguém que tivesse sido
qualquer momento que visse uma pessoa sendo
acusado de qualquer traição jamais poderia ser
humilhada ou oprimida deveria tomar a sua defesa.
admitido à Cavalaria.
A cavalaria passou a ser valorizada e a ter
A entrada dos indivíduos na cavalaria no início era
prestigio, o que possibilitou a aristocracia fazer uso
independente da condição social e todos tinham as
de seu prestigio a partir de sua aproximação, pois
mesmas obrigações e direitos, pois o que era levado
ser cavaleiro nesse período passou a ser sinônimo
em conta era a força guerreira e o maior número de
de pureza religiosa e ser título nobiliárquico, por
G N A R U S | 15 mais simples que fosse.3 Com o reconhecimento da
fossem protegidos, elaborou-se a cultura de
cavalaria na sociedade a aristocracia passou a
incumbir na figura do cavaleiro medieval a
tomar para si própria o título de cavaleiro e isso
proteção destas categorias sociais.
culminou no século XIII numa absorção por completo da cavalaria pela
aristocracia.4
De acordo com o que pudemos perceber, acreditamos que a Igreja conseguiu inserir no seio
Segundo Jean Flori depois dessa aproximação a
da cavalaria elementos dá ética cristã através do
cavalaria passou a ser entendida em duas esferas a
que consideramos como a sacralização da cavalaria.
militar e social-religiosa, pois a Igreja também se
Pois, após o século XI a Igreja passou a sugerir a
aproximou da cavalaria na forma de recrutamento
sacralização da cavalaria por meio de cerimônias,
de cavaleiros de diversas localidades para proteção
sagrações, ritos litúrgicos, bênçãos no ato da
de seu território frente às incursões de normandos
entrega das armas e na função do cavaleiro em
no sul da Itália e ao tentar por meio de diversos
defender a fé cristã, com o intuito de que a ética
procedimentos inserir elementos da ética cristã na
cristã dentro da cavalaria auxiliasse no controle das
ideologia cavaleiresca.
ações cavalheirescas.
Acreditamos que um desses elementos está
Em suma, a sacralização do cavaleiro medieval a
presente na opinião de Cicco quando ele diz que
nosso ver se dá através da tentativa da Igreja de
acredita que a Igreja com o propósito de segurar o
regular e canalizar a violência desses cavaleiros a
ardor guerreiro dos cavaleiros, que tinha uma
seu favor, impondo a eles o respeito por um “tempo
grande influência nesse período, proibiu a guerra
sagrado” e conduzindo-os para contribuir na defesa
na quaresma por ser considerada um período de
da Igreja e seu patrimônio, assegurando a sua
oração e esse período passou a ser conhecido como
independência e o seu poder material, bem como
a “trégua de Deus”, além disso, passou a ser
afirmando o seu magistério sobre a sociedade.
proibido o ataque de clérigos, mulheres e crianças
Enfim, acreditamos que a formação do ideal
que ficou conhecido como a “paz de Deus” e foi
cavaleiresco na Idade Média esteve intimamente
decretado que a guerra deveria ser travada num
ligada à ética cristã, pois no decorrer dos séculos a
campo, chamado “campo de batalha” com o intuito
Igreja a partir de diversos modos regularizou,
de evitar ao máximo que a população seja atingida
regulamentou e controlou o meio guerreiro de
e ferisse assim gravemente o Código da Cavalaria.
certa forma.
E na opinião de Cyro de Barros Rezende Filho em
Guerra e poder na sociedade feudal5 diz que em um esforço para proteger os elementos indefesos da sociedade feudal, a Igreja mobilizou-se em decretos que proibiam os combates entre senhores em determinados dias da semana, como Domingo.
Algumas considerações acerca da simbologia presente no armamento do cavaleiro Pudemos perceber a existência de relação
simbólica entre os objetos usados pelos cavaleiros e um significado relacionado à sacralidade deles. Jean Flori sugeri que objetivo dessa relação é
Para garantir que fieis, crianças, freiras, idosos 3FLORI,
Jean. 2010, p. 185-188. In: CRUZ, Paulo Christian Martins Marques da. Algumas questões sobre a sacralização da cavalaria no Ocidente Medieval. VII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica, XIII Encontro Latino Americano de Pós-Graduação e VII Encontro Latino Americano
de Iniciação Cientifica Júnior, Universidade do Vale do Paraíba, 2013. 4FLORI, Jean. A cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo: Madras, 2005. p. 113-123. 5REZENDE FILHO, Cyro de Barros. Guerra e poder na sociedade feudal. São Paulo: Ática, 1995.
G N A R U S | 16 inculcar
na
cavalaria
as
regras
de
um
por ela seria salvo. Ao ser cravada no infiel, o
comportamento que coloque o cavaleiro a serviço
cavaleiro traçaria o desenho de uma cruz como
da Igreja e do bem, dando às armas do cavaleiro um
forma de salvação para expiar a sua alma perdida e
significado ético e religioso da mesma ordem,
desligada da palavra de Deus.
mostrando que todo cavaleiro serve ao povo e a Deus.
A lança é uma das principais armas do cavaleiro, o seu significado é visto como a verdade, pois em um
Paula Carolina Teixeira Marroni no artigo A
combate o cavaleiro deve confiar na sua lança e ela
simbologia das armas do cavaleiro medieval
não deve torcer ou quebrar já que o seu papel é o
presente no Livro da Ordem de Cavalaria, de
de derrubar e deixar fora de combate o seu
Raimundo Lúlio: a retomada saudosista da
adversário. Acredita-se que a lança combate a
importância de enfatizar valores cristãos afirma que
falsidade e que a verdade não se dobra diante
a defesa da Igreja pelo cavaleiro está representada
desta.
na relação entre as armas e a função do cavaleiro
O escudo é considerado uma arma de defesa, de
em defender a fé de Cristo. Podemos perceber isso
acordo com Lúlio o escudo é como o próprio ofício
em O livro da Ordem da Cavalaria de Raimundo
de cavaleiro, ou seja, ele representa o próprio
Lúlio,6 pois ele nos apresenta a espada, a lança, o
cavaleiro que por sua vez seria o escudo do senhor.
chapéu de ferro, a cota de malha, as calças de ferro,
Sendo assim acredita-se que como o escudo fica
a espora, a gorjeia, a maça, o escudo e seu brasão, a
entre o inimigo e o cavaleiro, este deve postar-se
sela, o cavalo, o freio e as rédeas, a testeira do
entre o Deus e o infiel.
cavalo, assim como suas guarnições, o perponte e a
A maça segundo Raimundo Lúlio é dada ao
bandeira relacionando cada um deles com
cavaleiro e representa força e coragem, ela golpeia
elementos importantes para a fé cristã de maneira
todas as armas e feri em todas as partes do corpo,
simbólica.
portanto, é considerada uma defesa ativa do
Devido à grande quantidade de armas citadas
cavaleiro, pois enquanto ele se defende também
acima e por considerar que não caberia aqui tratar
feri. Acredita-se que enquanto o cavaleiro age com
da simbologia de todas as dezoito armas,
coragem para evitar o vicio, fortifica cada vez mais
ressaltamos aquelas que mais nos chamou atenção
suas virtudes.
e serão citadas nas vidas dos santos que analisados no próximo capítulo.
O cavalo é considerado por Lúlio uma arma, pois foi fabricado por Deus e é visto um presente do
Em suma, acredita-se que a espada é feita em
mesmo, logo é considerado a arma mais importante
semelhança à cruz e seu duplo gume confere a ela
e a que determina esta função tão nobre. Este autor
a manutenção da justiça e da cavalaria, vista como
apresenta a tese de que o cavalo coloca o cavaleiro
um símbolo cruzado de força, poder e decisão. Para
mais alto do que qualquer outro homem, indicando
Lúlio a espada simbolizava o sacrifício da morte
assim o seu papel na sociedade. E por ele ser
pela cruz, pois da mesma forma que Cristo morreu,
superior deve agir e fazer justiça em prol dos mais
o infiel morreria pela cruz formada pela espada e
fracos.
Raimom. O livro da Ordem da Cavalaria. Trad. Ricardo da costa. São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramom Llull), 2000. 6LLULL,
G N A R U S | 17 A cota de malha é apontada por Lúlio como impenetrável e é vista como uma fortaleza que protege o cavaleiro por todos os lados dos vícios e faltas. Já as calças de ferro são vistas como protetoras dos caminhos do cavaleiro. Enfim,
acreditamos
que
esta
simbologia
estabelece um elo entre os elementos que fazem parte da vida do cavaleiro, como as virtudes, a verdade, a justiça, a necessidade de obediência, a honra, a luta com coragem contra os vícios, a função de se posicionar entre a igreja e os infiéis, e os elementos presentes nos valores religiosos. O que nos remete a ligação entre a Ordem da Cavalaria e a Igreja.
Breve relato sobre a Ordem dos Templários Acreditamos que a ligação entre Ordem da Cavalaria e a Igreja tornou possível à criação de uma Ordem Monástica-Militar, como a primeira experiência de monges-guerreiros, a partir da necessidade de proteção dos Estados Latinos recém-criados na Terra Santa após a Primeira Cruzada (1095-1099). A Ordem dos Hospitalários foi a primeira a surgir, eles tinham a finalidade de socorrer os peregrinos, proporcionando-lhes
escolta,
medicamentos,
sustento, abrigo e defesa em seu retorno a Europa. No entanto, percebeu-se que era necessária uma organização que além de proteger os peregrinos, ocupassem militarmente os lugares conhecidos como
“lugares
santos”
uma
vez
que
a
Constantinopla estava ameaçada pelos turcos. Diante desta necessidade surgiu no ano de 1118 a Ordem dos Templários fundada por Hugo de
Cavaleiros de Cristo, por Jan van Eyck, (1432)
G N A R U S | 18 Payens7 que era um cavaleiro francês, mas só foi
temática militar e da violência, que supomos
reconhecida pela Igreja em 1129 no Concílio de
caracterizar e aproximar-se da cavalaria medieval.
Troyes por causa do apoio do abade Bernardo de
E a partir dessa seleção fizemos a nossa pesquisa e
Claraval. Nesta instituição os cavaleiros viviam
constatamos a pouca disponibilidade de material
juntos em um mosteiro, como se fossem monges, e
especifico para consulta do nosso tema, por isso
era exigido que eles deixassem de lado os prazeres
utilizamos como base a análise da nossa fonte
mundanos e adotassem a pobreza absoluta por ser
primária e fontes secundarias, colhidas através de
obrigatório a simplicidade.
livros, revistas, artigos.
Segundo Omar Cartes em A História dos
No entanto, como o objetivo deste trabalho foi
Templários8 antes dos cavaleiros pronunciarem os
apresentar algumas ponderações sobre cavalaria e
votos para entrar na Ordem dos Templários eles
santidade bem como trabalhos sobre essas
deveriam cumprir um noviciado e somente a partir
temáticas, concluiremos o presente trabalho
do pronunciamento dos votos é que podiam ser
destacando alguns trabalhos produzidos em torno
considerados religiosos.
destas temáticas e que foram importantes para a
Cabe ressaltar que os templários pronunciavam
nossa pesquisa. Os artigos de Bruno G. Alvaro, A
os votos de castidade, pobreza e obediência e
legenda de São Jorge e a santidade cavalheiresca:
assistências aos ofícios religiosos de dia e noite
algumas reflexões que analisa a presença da
obrigatoriamente. Gostaríamos de chamar atenção
temática militar na produção hagiográfica do
ao fato de que os votos e regras dos templários são
século XIII com base na Legenda Áurea e A espada,
tipicamente religiosos.
a lança e a cruz: reflexões acerca da presença da
Em suma, acreditamos que a formação e a
militia na Legenda áurea através das vidas de São
instituição da Ordem dos Cavaleiros Templários é o
Jorge e São Mercúrio que visa apontar a presença
ponto culminante da sacralização da imagem do
de
cavaleiro da Idade Média, que teve seus feitos no
hagiografias. Esses dois artigos foram de extrema
campo de batalha e na mentalidade coletiva
importância para a nossa pesquisa pois eles
refletindo nesta instituição como artífice da
abordam de forma mais especifica a temática
Cristandade e protetor da mesma.
trabalhada por nós.
elementos
da
cavalaria
medieval
nas
Consideramos os livros, História e Historiografia
Conclusão
sobre a Hagiografia Medieval organizado por Igor
Devido às transformações ocorridas na Igreja em
Salomão Teixeira, essa obra reúne um conjunto de
especial no século XIII, às hagiografias passaram a
texto de alguns pesquisadores com abordagens
ser adotadas nas pregações e serem utilizadas como
variadas, que pesquisam sobre os relatos da vida
exemplos a ser seguido com o intuito de lutar
dos santos produzidos no período medieval.
contra os infiéis e combater as heresias. Em vista
A cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da
disso, estabelecemos como critérios de seleção as
Idade Média deJean Flori que apresenta uma
hagiografias que apresentam elementos da
síntese de pesquisas realizadas de cunho histórico e
7CICCO,
Cláudio de., Op. cit. Omar. A História dos Templários. Disponível emhttp://www.ostemplarios.org.br/txt/bib/b2120407112954. pdf Acessado em 04 de maio de 2014 ás 20h:15min. 8Cartes,
G N A R U S | 19 literário a respeito da nobreza, das guerras e da mentalidade medieval no qual o ideal cavaleiresco foi constituído.
A sociedade Cavaleiresca de Georges Duby, neste livro Duby nos apresenta as origens da cavalaria, como a ideia de nobreza uniu-se a cavalaria. EA
cavalaria da Germânia Antiga á França do século XII de Dominique Bartthélemy que discute a definição de cavalaria, o quanto da nossa imaginação sobre a cavalaria faz parte da literatura. Gostaria de sublinhar que as discussões abordadas neste livro são importantes para quem pretende tecer comentários sobre a cavalaria. Enfim,
supomos
que
Hagiografia& História: reflexão sobre a Igreja e o fenômeno da santidade na Idade Média Central. . Rio de Janeiro: HP Comunicação
Editora, 2008. SILVA, Leila Rodrigues da. Reflexões sobre a
construção de um herói no discurso hagiográfico. O caso frutuoso de Braga na Vita Sancti Fructuosi. In: PINTO, Ana Paula; SILVA,
João Amadeu Carvalho da; LOPES, Maria José; GONÇALVES, Miguel António (orgs.). Mitos e Heróis: a expressão do imaginário. Braga: Aletheia, Publicação da Faculdade de Filosofia, UCP, 2012. TEIXEIRA, Igor Salomão. História e Historiografia sobre a Hagiografia Medieval. Igor Salomão Teixeira (org.). São Leopoldo: Oikos, 2014.
contribuímos
significativamente para trazer a tona um novo enfoque sobre a relação entre cavalaria e santidade e destaque para as pesquisas sobre essas temáticas. Leilane Araujo Silva é Graduada de História pela Universidade Federal de Sergipe e integrante do Vivarium – Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (Núcleo Nordeste). E-mail: leila_rapunzel@hotmail.com
Referências: Fonte VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea: Vida de Santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Bibliografia
A cavalaria da Germânia Antiga á França do século XII.
BARTHÉLEMY,
ff, tradução de Maria Jorge Vitar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1989. SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. (Org.)
Dominique.
Dominique Bartthélemy, tradução de Néri de Barros Almeida e Carolina Gual da Silva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2010. DEMURGER, Alain. Os Templários: uma cavalaria cristã na Idade Média. Alain Demurger, tradução Karina Jannini. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007. DUBY, Georges. A sociedade Cavaleiresca. Georges Duby, tradução de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes LTDA, 1989. FLORI, Jean. A cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média. Jean Flori, tradução Eni Tenório dos Santos. São Paulo: Madras, 2005.
Artigos ALVARO, Bruno Gonçalves. A legenda de São Jorge
e a santidade cavaleiresca: algumas reflexões.
In: SILVA, Andréia C.L. F.; SILVA, Leila Rodrigues (orgs.). Atas da VI Semana de Estudos Medievais, Rio de Janeiro: Programa de Estudos Medievais, p. 79-85, 2006. AMATUZZI, Renato Toledo Silva. Ritos
taumatúrgicos, relíquias sagradas e santos curadores na Legenda Áurea de Jacopo de Varazze, Itália, século XIII. XII Jornada de
Estudos Antigos e Medievais e IV Jornada Internacional de Estudos Antigos e Medievais, Universidade Estadual de Maringá, 2013. Disponível em: <http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2013/pdf/0 4.pdf>. Acessado em 23 de abril de 2014 ás 18h:20min. CRUZ, Paulo Christian Martins Marques da.
Algumas questões sobre a sacralização da cavalaria no Ocidente Medieval. VII Encontro
Latino Americano de Iniciação Científica, XIII Encontro Latino Americano de Pós-Graduação e VII Encontro Latino Americano de Iniciação Cientifica Júnior, Universidade do Vale do Paraíba,2013. Disponível em: <http://www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2013/ anais/arquivos/0079_0750_01.pdf>. Acessado em 23 de abril de 2014 ás 18h:30min. Publicações periódicas ALMEIDA, Néri de Barros. Hagiografia, propaganda
e memória, histórica: o monasticismo na Legenda Áurea de Jacopo de Varazze. Revista Territórios & Fronteiras, Curitiba, Vol. 07, nº 2, jul-dez, 2014.
G N A R U S | 20 BOUREAU, Alain. No coração da Idade Média: os dominicanos e a maestria narrativa.In: ______. L’
évenement sans fin: Récitet christianisme au Moyenage.Tradução de Igor Salomão. Revista
TEIXEIRA, Igor Salomão. O tempo da santidade: reflexão sobre um conceito. Revista Brasileira de História, São Paulo, Vol. 32, nº63, p. 207-223, 2012.
de História Comparada, Rio de Janeiro, 4-1:141168, 2010. Bossi, Paulo Henrique da Silva. O culto a São Jorge:
um estudo das representações do santo a partir das orações. Revista Brasileira de História das
Religiões, Maringá, Vol. 1, nº 3, 2009. CAMACHO, Victor Mariano. Considerações sobre a
construção da santidade franciscana no início do século XIII. Alétheia Revista de Estudos sobre
Antiguidade e Medievo, Vol. 9, nº 1, 2014. GAETA, Maria Aparecida Junqueira Veiga. “Santos”
que não são santos: estudos sobre a religiosidade popular brasileira. Mimesis, Bauru,
Vol. 20, nº 1, p. 57-76, 1999. ROCHA, Tereza Renata Silva. Os Diabos cômicos: as
criaturas do mal na Legenda Áurea (século XIII).
Revista do corpo discente do Programa de PósGraduação em História da UFRGS. Disponível em <http://www.seer.ufrgs.br/index.php/aedos/art icle/view/9862/5717>. Acessado em 22 de abril de 2014 ás 18h:00min. SOUZA, Néri de Almeida. Palavra de púlpito e
erudição no século XIII: a Legenda Áurea de Jacopo de Varazze. Revista Brasileira de história, São Paulo, Vol. 22, nº 43, p. 67-84, 2002.
Cena alegórica de mulher sob a proteção da cavalaria.
G N A R U S | 21
Artigo
A HERESIA DOS VALDENSES: “A PREGAÇÃO NÃO AUTORIZADA” (1173-1206) Por Flávio Henrique Santos de Souza Resumo: O tema de nossa pesquisa é relativo à heresia dos Valdenses, também conhecida como dos “pobres de Lyon”. A origem desse grupo tido como herético é atribuída ao comerciante Pedro Valdo de Lyon que após sua conversão ao cristianismo (em 1173) decidiu viver em pobreza apostólica pregando o Evangelho. Em 1179, O Papa Alexandre III entrou em contato com esse movimento de pregadores e teria gostado da postura dos mesmos, entretanto, fixou que os Valdenses só deveriam pregar com a autorização eclesiástica. Inicialmente, o grupo decidiu obedecer à norma da Igreja, mas não por muito tempo. Pois mais tarde, o movimento rompeu com a obediência e voltou a pregar sem o aval do clero. Assim, em 1184, os Valdenses foram declarados hereges no Sínodo de Verona pelo Pontífice Lúcio III. Nessa conjuntura, levantamos os seguintes questionamentos: por que os Valdenses não obedeceram às ordens papais? E o que caracterizou o movimento como herético? Palavras-Chave: Valdenses, Cristianismo, Pregação não autorizada, Heresia.
Introdução
É
período moderno, foram incluídos na categoria de
interessante notar que até os dias de hoje quando ouvimos o termo heresia, associamo-
hereges as “bruxas”, os praticantes do paganismo etc).
lo de imediato com relação a algum “infiel”
Segundo o historiador Nachman Falbel, “a palavra
que começou a pensar e proferir um ideário
heresia (do grego hairesis, hairein, que significa
diferente do que é ensinado em alguma instituição
escolher) acompanhou a vida da Igreja desde os
religiosa, mas, a palavra herege só pode ter a
inícios, e para os escritores eclesiásticos o termo
conotação negativa apropriada quando aplicada
designava uma doutrina contrária aos princípios de
aos grupos cristãos. Pois em outras tendências
fé oficialmente declarada”1.
religiosas como, por exemplo, no judaísmo ou no islamismo,
existem
sistemas
de
crenças
diferenciados em relação ao cristianismo. Portanto, o herege se tornou um inimigo interno no próprio seio do cristianismo (já na Baixa Idade Média e FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 13. 1
Mas, a terminologia heresia em sua raiz não se remete a uma doutrina contrária, essa definição foi sendo construída ao longo da história da Igreja pelos escritores eclesiásticos. De acordo com o
G N A R U S | 22
Dicionário Bíblico de João Batista Ribeiro Santos,
Assim, analisaremos a perspectiva dos Valdenses
no verbete heresia, é elencado as gradações que
de pregar o Evangelho sem autorização clerical que
ocorreram na concepção da palavra:
foi arbitrariamente tida como herética.
“Este nome deriva de uma palavra grega, que primeiramente queria dizer o ato de tomar (uma cidade, por exemplo); depois teve o sentido de escolha e eleição, de inclinação ou preferências; e a significação da própria coisa escolhida; e por fim veio significar um princípio filosófico ou sistema, as pessoas que seguem esses princípios, uma seita ou uma escola de pensamentos.”2
Objeções à prédica valdense A heresia dos Valdenses (movimento também conhecido como os “pobres de Lyon”) é considerada como uma seita por Nachman Falbel
Então, observando à concepção do termo heresia, podemos visualizar que ele foi sendo erigido ao longo de um processo histórico, porquanto desde a Antiguidade
até
a
Baixa
Idade
Média
a
terminologia foi ganhando matizes e sentidos
que diz que “ela foi fundada pelo rico comerciante Pedro Valdo ou Valdes de Lyons que, segundo o testemunho
algo sobremodo “espiritual”, isto é, o herético tornou-se alguém que é influenciado pelo diabo para dividir comunidades cristãs. Com isso, o indivíduo passa a não aceitar mais as doutrinações e tradições da Igreja que antes aceitava. Assim como sublinha a historiadora Tereza Aline Queiroz: “É preciso lembrar, também, que a definição de heresia foi se modificando gradativamente durante a Idade Média. Por certo, esteve sempre relacionada com o cristianismo e a revelação, segundo a fórmula de Isidoro de Sevilha: é herético aquele que não mais aceita, ou critica os dogmas cristãos, e recusa o magistério da Igreja romana que antes reconhecia.”3
de
Laon,
ficou
profundamente abalado pela leitura das Escrituras
Sagradas, por volta de 1173”5. Em 1173, após Pedro Valdo se converter ao
diferenciados. O termo que em sua etimologia grega significa escolha, se tornou posteriormente
Anônimo
cristianismo teria começado a pregar o Evangelho de forma itinerante na cidade de Lyon, e, conseguiu reunir em torno de si um grupo de homens e mulheres que aderiram à pobreza voluntária. Todavia, essa pregação posteriormente geraria problemas com relação ao papel dos sacerdotes (“mediadores” entre Deus e os homens) que eram os únicos autorizados à preleção. Por causa da insistência do grupo na questão da prédica, os Valdenses doravante foram tidos como heréticos. O movimento dos Valdenses surgiu na cidade de Lyon, que teria sido fundada pelos romanos em 43 d.C. e sua localização ficava às margens do rio Rhône. “Desde a época de Augusto até Diocleciano
Destarte, a pessoa e a imagem do herege foram
foi a capital política, econômica, militar e religiosa
sendo construídas por quem se achava “ortodoxo”, ou seja, pelos sacerdotes. Logo, “todo herético tornou-se tal por decisão das autoridades ortodoxas. Ele é antes de tudo um herético aos olhos dos outros”4.
SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006, p.207. 3 QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As Heresias Medievais. São Paulo: Atual, 1988, p. 11. 2
BARROS, José D´Assunção. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012, p.56. 5 FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: 4
Perspectiva, 1976, p. 61.
G N A R U S | 23 das três Gálias (...)”6. Hoje, Lyon é considerada a
Evangelho.
segunda maior cidade da França.
circunscrita ao clero, de modo que só se poderia
Já na segunda metade do século XII, o controle da cidade de Lyon estava nas mãos do poder condal que fazia parte do reino da Borgonha, isto é, os condes de Forez e de Roanez a dominavam e o Imperador tinha apenas um “controle nominal” do território. Isso porque o mesmo estava distante da região e o poder, de fato, pelo controle da cidade estava sendo disputado pelos condes e os arcebispos. Esse embate entre os poderes se
O recorte temporal da nossa pesquisa fica entre os séculos XII e XIII (que se convencionou abarcar pela historiografia como Baixa Idade Média) e foi o cenário do surgimento de novas questões espirituais, pois segundo Brenda Bolton, teria ocorrido uma crise religiosa no século XII que fez com que os clérigos fizessem uma reforma medieval na estrutura da Igreja. De sorte que com a crise em termos religiosos, as novas práticas e propostas de espiritualidade estavam se avolumando pelo fato de algumas pessoas estarem descontentes com a
a
prédica
estava
pregar quem fosse sacerdote. A Igreja se posicionava como quem tivesse o monopólio da pregação, mas de acordo com alguns textos do
Novo Testamento, podemos visualizar que no século I d.C., a prática de pregações daquilo que Jesus de Nazaré teria chamado de evangelho do Reino de Deus era comum aos que criam e recebiam a fé. No Evangelho atribuído a Lucas7, está relatado o caso do “endemoninhado” da Jesus foi apregoando por toda a cidade sobre as benesses que Jesus o teria feito. Já em 1ª aos Corintíos8, o apóstolo Paulo exortou a comunidade cristã de Corinto sobre a necessidade de ordem no ajuntamento. Pois a mesma estava em grande desordem no que tangia à organização da adoração. Dessa forma, Paulo asseverou que todos da comunidade cristã poderiam partcipar do culto, mas cada um na sua vez. Retroagimos, agora, a nossa análise para os Valdenses na Baixa Idade Média. Desde a eleição papal de Gregório VII (1073-
moral da Igreja institucionalizada. Nesse contexto, muitos grupos que buscaram uma forma de “espiritualidade alternativa” foram tidos como ortodoxos (os franciscanos, os dominicanos etc.), como também, muitos grupos que aspiravam uma nova forma de vida espiritual foram classificados como heterodoxos pela Igreja (os Valdenses, os
1085), se buscou tomar medidas para reformar a Igreja e redefinir seu papel ante a sociedade. Isso porque a Igreja estava vivendo as raízes de uma grande crise, porquanto “a Igreja tornara-se negligente e mundana nas suas actividades. Reinava a simonia, isto é, o abuso do tráfico de dignidades eclesiásticas, e os leigos exerciam uma
humiliati etc.) das
porque
cidade de Gadara que após ter sido exorcizado por
estendeu por um longo período.
Uma
Isso
características
dos
Valdenses
estigmatizada como heterodoxa pela Igreja foi a
influência desproporcionada na nomeação de dignitários da Igreja”9.
renitência do grupo leigo em querer pregar o
THOMÉ, Laura Maria Silva. Da Ortodoxia a Heresia: os valdenses (1170-1215). Dissertação de mestrado em História, Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. 2004, p. 87. 6
7
Lucas, 8: 26-39. 1 Coríntios, 14: 26-33. 9 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983, p. 20. 8
G N A R U S | 24 Os Valdenses surgiram como uma proposta nova
mesma vivia de forma totalmente antagônica
de espiritualidade que tinha o desejo de evocar e
daquilo que dizia (nem todos os clérigos se
retomar os princípios de vida espiritual que teriam
encaixavam nesse dilema), ou seja, havia um imenso
sido desenvolvidos pela Igreja primitiva, onde a
abismo entre a fala sacerdotal e a prática dos
fraternidade, humildade, pobreza e altruísmo
mesmos naquela sociedade. Por isso, para os
grassavam na vida da comunidade cristã. Segundo
Valdenses:
o historiador André Vauchez, “a vita apostolica, enfatizando a comunidade dos bens, abolia a distinção entre ricos e pobres”10. E Vauchez ainda diz que: “O ideal da Ecclesiae primitivae se tornou a referência obrigatória da nova espiritualidade, que, de maneira aparentemente paradoxal, procurava, em uma fidelidade intensificada no testemunho dos apóstolos e na mensagem evangélica, a resposta para os problemas levantados por uma sociedade em mutação.”11
“Seguir o modelo da Igreja primitiva não era pois unicamente viver em comunidade, sem propriedade privada, mas também ir até outros homens. Essa abertura para o mundo exterior tomou formas muito diversas segundo os casos, desde o desenvolvimento da hospitalidade e da assistência até o ministério da pregação”13
Após o grupo dos Valdenses ter pregado a pobreza voluntária e a penitência por seis anos (1173-1179), e conseguir formar uma pequena comunidade, o sacerdote Guichard de Lyon o
Logo, os Valdenses se idenificavam com a vida
proibiu de continuar. Pedro Valdo conjuntamente
simples de Jesus e dos adeptos iniciais da fé cristã.
com o grupo “(...) desejavam o reconhecimento
Com isso, visualizaram uma enorme incongruência
papal e achavam que a interdição que lhes fora
entre a vida abastada do clero e a simplicidade com
imposta pelo bispo Guichard de Lyon estava em
que Jesus de Nazaré vivia. E por conseguinte,
contradição com a exortação bíblica para pregar e
atacaram rispidamente a instituição eclesiástica
viver uma vida apostólica”14.
com seus discursos:
Assim, em 1179, os Valdenses participaram do III Concílio de Latrão15 e conseguiram ter seu modo de
“As heresias dos séculos XII-XIII foram essencialmente movimentos sociais contestadores, que assumiam forma religiosa por ser, é óbvio, produto de seu tempo. Noutros termos, o discurso ideológico dominante, clerical, só poderia ser negado por um discurso que partisse dele. Só poderia ser quebrado por dentro. Eis o sentido das heresias.”12
Sendo assim, as preleções dos Valdenses buscavam debelar o discurso oficial da Igreja que ressaltava a simplicidade para os outros, pois a
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 10
1995, p. 74. 11 Ibid., p. 71. 12 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 67. 13 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995, p. 72.
vida parcialmente aceito pelo Papa Alexandre III (porque ainda não eram tidos como heréticos) entretanto, ao regressarem para a cidade de Lyon receberam orientações papais de que não deveriam pregar sem antes ter a autorização eclesiástica local. Pois logo após a conversão de Pedro Valdo ao cristianismo,
houve
uma
radicalização
de
pregadores leigos que proclamavam uma forma alternativa de se conceber a vida espiritual.
14 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições
70, 1983, p. 65. 15 Este foi o décimo primeiro Concílo Ecumênico da história da Igreja e foi presidido pelo Pontífice Alexandre III. O escopo do Concílio foi remover os vestígios ainda existentes do Grande Cisma (em 1054), como também condenar os Valdenses e os Cátaros que foram considerados heréticos, e, pressionar por uma restauração da disciplina eclesiástica. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 112-114.
G N A R U S | 25 Inicialmente, os Valdenses obedeceram às ordens
foram bastante utilizados em termos de memória
de não fazerem preleções e até ajudaram a Igreja
pelos eclesiásticos, e segundo Jacques Le Goff o
no combate à heresia cátara16 que estava
registro por escrito tem algumas funcionalidades:
atormentando os clérigos pondo em perigo o prestígio do sacerdócio católico, pois o catarismo tinha tendências anticlericais e dualistas. Porém, mais tarde os Valdenses romperam com a obediência e reiniciaram suas pregações.
“Neste tipo de documento a escrita tem duas funções principais: Uma é o armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro; a outra, ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual, permite reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas”18
A desobediência clerical dos Valdenses se deu pelo fato de o grupo querer buscar viver uma
Então, é coerente afirmarmos que esse tipo de
espiritualidade de acordo com a vita apostólica, ou
documentação escrita (a bula papal) serviu para
seja, um estilo de vida onde privilegiavam os
comunicar através do tempo e do espaço questões
exemplos deixados por Jesus de Nazaré e pelos
políticas e religiosas relacionadas à Igreja, e,
apóstolos como falamos anteriormente. Pois para
estigmatizar grupos que foram considerados
os Valdenses, a Igreja se tornou assaz preocupada
transgressores na perspectiva do clero, como
com o poder temporal e por isso negligenciou a sua
também, delimitar e fixar a doutrina da Igreja para
missão espiritual. Vauchez pontua que:
as futuras gerações engendrando, assim, um avanço nas reflexões teológicas. Dessa forma, se postulava
“Em uma época em que a Igreja, pelo menos no nível do seu clero, escolhera claramente agir sobre o mundo e colocá-lo sob sua tutela, para torná-lo de acordo com o plano de Deus, muitos fiéis quiseram protestar contra essa evolução, afirmando sua fidelidade a um paleocristianismo, baseado na simplicidade evangélica e na recusa do mundo”.17
uma advertência, a fim de que outros indivíduos não incorressem nos mesmos erros dos que foram tidos como heterodoxos no prisma clerical. Nesta bula, aparece a primeira menção aos Valdenses (pobres de Lyon) como hereges que foram condenados à excomunhão e também foram
Com isso, em 1184, os Valdenses foram declarados heréticos no Sínodo de Verona pelo Papa Lúcio III (o sucessor de Alexandre III) que publicou um decreto condenando também outras heresias. O documento que oficializou a condenação dos Valdenses foi a bula Ad abolendam promulgada pelo Papa Lúcio III no Sínodo de Verona. De uma
anatematizados19 perpetuamente. O intuito do decreto era abolir não só o ideal dos Valdenses, mas também alcançava diversas heresias existentes no período. A bula também “impôs a plena categorização legal da heresia como crime capital e público, razão suficiente para legitimar diversas ações de marginalização e expropriação dos acusados, antes mesmo da formalização da
forma geral, as bulas eram decretos papais que
16 Grupo de heréticos que tinha a perspectiva de que no mundo
existia um grande embate entre as forças do Bem e do Mal, isto é, uma batalha entre o espírito e a carne. Para os Cátaros, tudo que era material advinha do demônio. LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p, 202. 17 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995, p. 103-104.
18 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 1990, p. 433. 19 Anátema no grego (anáthema) significa votado à maldição. Esse termo quando empregado no Novo Testamento pode significar “alguém que não compartilha da mesma doutrina (Gl, 1:8)”. Assim, por não partilhar do mesmo ideário doutrinal o indivíduo é tido como amaldiçoado. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006. p. 33.
G N A R U S | 26 princípio gerador de todos os pensamentos e ações, segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural, ou seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do mundo social.”22
sentença”20. Pode-se dizer que esta bula foi um dos “textos fundadores da Inquisição”. A relevância de se estudar as heresias dos séculos XII e XIII (sobretudo a dos Valdenses) na perspectiva da Igreja ocidental, se encontra no fato
Com isso, não se pode perder de vista as relações
de que nesse período os discursos dos intitulados
de poder contidas em dado campo simbólico.
hereges deixaram de ser sobremaneira teológicos
Porque o poder político age imiscuído na mediação
como na Antiguidade e na Alta Idade Média,
dos sistemas simbólicos que passam a existir através
porquanto os mesmos se tornaram instrumentos de
de linguagens específicas e que encobre os
resistência dos descontentes contra a instituição
objetivos materiais do poder constituído. Desse
clerical. Pois “a heresia medieval desencadeia-se
modo, o autor discute as origens e a estrutura do
por razões de ordem moral e infiltra-se em todos os
campo religioso fazendo uma associação direta
meios sociais”21.
entre religião e política. Mostrando que o
Analisaremos, agora, o porquê da Igreja não
“produto” religioso se torna em uma oferta para
querer facultar a pregação para grupos leigos (isso
atender às demandas dos clientes de diversas
somente até o pontificado de Lúcio III).
camadas sociais. Pois: “Assim, o capital de autoridade propriamente religiosa de que dispõe uma instância religiosa depende da força material e simbólica dos grupos ou classes que ela pode mobilizar oferecendolhes bens e serviços capazes de satisfazer seus interesses religiosos, sendo que a natureza destes bens e serviços depende, por sua vez, do capital de autoridade religiosa de que dispõe levando-se em conta a mediação operada pela posição da instância produtora na estrutura do campo religioso. ”23
Embate pelo monopólio dos bens da salvação Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, existem formas de dominação simbólicas em cada sociedade e os mecanismos para subjugar têm por escopo legitimar os grupos dominantes. O autor mostra que existe uma esfera simbólica que busca ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações. Esses elementos simbólicos são alegorias que querem se passar por realidade, mas na verdade são questões ideológicas que se tornam o bastião do sistema de dominação. Como salienta Bourdieu: “Em função de sua posição na estrutura da distribuição do capital de autoridade propriamente religiosa, as diferentes instâncias religiosas, indivíduos ou instituições, podem lançar mão do capital religioso na concorrência pelo monopólio da gestão dos bens da salvação e do exercício legítimo do poder religioso enquanto poder de modificar em bases duradouras as representações e as práticas dos leigos, inculcando-lhes um habitus religioso, RUST, Leandro Duarte. Bulas Inquisitoriais: Ad Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Revista de História, São Paulo, n. 166, p. 129-161, jan./jun. 2012, p. 135. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/48532/52 451. Acesso em: 11/12/14. 20
A religião que faz parte da esfera cultural é vista por Bourdieu como uma espécie de mercado de bens simbólicos. Logo, a funcionalidade da religião se encaixa na lei da oferta e da procura, e, é adaptada entre as camadas sociais existentes. Nessa conjuntura, a querela pelo monopólio do exercício do poder religioso sobre o laicato e o embate administrativo pelos bens da salvação, encontra-se em ebulição entre a Igreja, o profeta e sua seita.
QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As Heresias Medievais. São Paulo: Atual, 1988, p. 23-24. 22 BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 57. 23 Ibid., p. 58. 21
G N A R U S | 27 assegurando a manutenção da ordem no interior do corpo de especialistas) e pela delegação do corpo de sacerdotes (funcionários do culto intercambiáveis e, portanto, substituíveis do culto do ponto de vista do capital religioso) do monopólio da distribuição institucional ou sacramental e, ao mesmo tempo, de uma autoridade (ou uma graça) de função (ou de instituição).”25
E foi justamente isso que ocorreu com os Valdenses, o grupo que foi considerado herético se enveredou em querer pregar a “Palavra de Deus” sem autorização eclesiástica, logo, o bispo Guichard de Lyon proibiu que pregassem. Pedro Valdo apelou para o Papa Alexandre III e lhe foi permitido comparecer ao Terceiro Concílio de Latrão (em 1179). O Papa decidiu que o grupo pregaria somente com a autorização da Igreja (permissão essa que na prática não se concretizaria, porque a Igreja só facultava a pregação para os que fossem ordenados ao sacerdócio) e os Valdenses obedeceram durante um curto período de tempo às ordens papais, pois mais tarde, se estribaram no texto de Atos dos Apóstolos que é um pronunciameto atribuído a Pedro e outros apóstolos que teriam dito que o “mais importante seria obedecer a Deus do que aos homens”24. Destarte, os Valdenses foram excomungados pela
Em relação ao herege e sua seita, eles são caracterizados
contexto,
vão
ser
ordenado.
conseguinte, surgiu uma nova categoria de heresia. Tendo feito isso: “(...) A Igreja visa conquistar ou preservar um monopólio mais ou menos total de um capital de graça institucional ou sacramental (do qual é depositária por delegação e que constitui um objeto de troca com os leigos e um instrumento de poder sobre os mesmos) pelo controle do acesso aos meios de produção, de reprodução e de distribuição dos bens de salvação (ou seja, 24
Atos, 5: 29. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 58. 25
angariando
adeptos
de
uma
maneira
“A força de que dispõe o profeta (empresário independente de salvação) cuja pretensão consiste em produzir bens de salvação de um tipo novo e propensos a desvalorizar os antigos – tarefa para a qual conta exclusivamente com sua “pessoa” como única caução ou garantia na falta de qualquer capital inicial –, depende da aptidão de seu discurso e de sua prática para mobilizar os interesses religiosos virtualmente heréticos de grupos ou classes determinados de leigos, graças ao efeito de consagração que o mero fato da simbolização e da explicitação exerce.”26
fosse
Por
os
pontua Bourdieu:
excomungou e rotulou como heréticos os que sem
que
transformação do status quo da Igreja. Como
questionada. Por isso, a bula Ad abolendam os pregar
pontuarmos
totalmente voluntária com uma promessa de
“Palavra de Deus” fez com que a exclusividade da
quisessem
coerente
questionam a Igreja institucionalizada, e com isso,
Essa atitude dos Valdenses de querer pregar a Igreja
é
subjetivas, e após divulgarem essas experiências,
e à assistência pastoral.
da
grupo
considerados heréticos surgem com experiências
viver de forma itinerante dedicando-se a pregação
sacerdotes
um
doutrinários ou institucionais da Igreja. Nesse
Papa Lúcio III. Apesar disso, o grupo continuou a
dos
aparece
antagônico a todos ou a alguns aspectos
desobediência em 1184 no Sínodo de Verona pelo
mediação
quando
Dessa forma, os chamados heréticos fundadores das seitas são dotados de um carisma pessoal que pode até denotar uma forma revolucionária de buscar um cisma nas estruturas tradicionais. Com isso, oferecem uma mensagem de mudança e salvação que são contrárias ao discurso das autoridades tradicionais.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 60. 26
G N A R U S | 28 monopólio total dos instrumentos de salvação consiste na oposição entre a ortodoxia e a heresia. (...) O conflito pela autoridade propriamente religiosa entre os especialistas (conflito teológico) e/ ou o conflito pelo poder no interior da Igreja conduz a uma contestação da hierarquia eclesiástica que toma a forma de uma heresia do momento em que, em meio a uma situação de crise, a contestação da monopolização do monopólio eclesiástico por parte de uma fração do clero depara-se com os interesses anticlericais de uma fração dos leigos e conduz a uma contestação do monopólio eclesiástico enquanto tal.”29
Nesse ínterim, Bourdieu sublinha que para a Igreja se consolidar em relação ao herege, precisa reprimi-lo fisicamente ou simbolicamente: “(...) Quando as relações de força são favoráveis à Igreja, a consolidação dessa depende da supressão do profeta (ou da seita) por meio da violência física ou simbólica (excomunhão), a menos que a submissão do profeta (ou do reformador), ou seja, o reconhecimento da legitimidade do monopólio eclesiástico (e da hierarquia que o garante) (...).”27
Assim, o heresiarca será sempre associado como alguém que quer promover bruscas mudanças em relação à instituição tradicional. E a ruptura causada por ele separa a tradição e a burocracia. Na
Desse jeito, o embate entre a Igreja e os hereges se dá para buscar a legitimidade no campo religioso e político, visando manutenir, sobretudo, o monopólio dos bens da salvação.
perspectiva do herege, a “verdade” da fé está com ele e seu objetivo sempre será retroagir a um estado
Considerações finais
“genuíno” dessa fé, isto é, haverá um suposto regresso aos ensinos dos idealizadores da mesma. Como afiança Falbel:
Os Valdenses preferiram seguir às ordens atribuídas a Jesus de Nazaré e por isso desobedeceram às ordens papais no tocante à
“Na verdade, podemos ver na crítica herética, ou melhor dito, em parte desta crítica, uma tentativa de apontar os erros e os desvios da instituição eclesiástica, da sua intervenção no poder secular à custa de sua missão espiritual; enfim, uma tentativa de alertar a sociedade cristã de que os seus representantes desvirtuaram a verdadeira imagem da religião fundada por Cristo.”28
pregação do Evangelho. Rompendo assim, com o monopólio da pregação da Igreja. Portanto, queriam estribar seu estilo de vida fundamentado nos ensinos e no modelo da Igreja primitiva, ou seja, queriam viver uma forma mais “pura” de cristianismo. Foram utilizados pelos Valdenses três textos do
Com as novas propostas de espiritualidade trazidas
pelos
heresiarcas,
eles
Novo Testamento que corroboravam a busca de um
conseguem
paleocristianismo. O primeiro texto se encontra no
seguidores que estão insatisfeitos com a religião
livro de Atos dos Apóstolos30, onde se descreve o
tradicional e assim iniciam uma seita. Para a Igreja,
exemplo de uma vida simples e compartida da
a seita é um grupo de pessoas “influídas” pelo mal
comunidade de Jerusalém. Para os Valdenses a vita
que buscam semear a desordem com seus ensinos
apostólica não significava apenas a pregação da
danosos e desvirtuadores da “verdade”. Esse
“Palavra de Deus”, mas também compartilhar os
embate se dá pelo fato de a Igreja ter o monopólio
haveres com todos aqueles que atravessavam
da salvação e de não querer perdê-lo:
momentos de necessidades. O segundo texto está
“Uma forma particular da luta pelo monopólio que se instaura quando a Igreja detém um 27
Ibid., p. 62. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 14. 28
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 62. 30 Atos, 4:32. 29
G N A R U S | 29 no Evangelho arrogado a Lucas31, onde Jesus de
Referências bibliográficas
Nazaré teria evidenciado aos discípulos a observância da pobreza, e, no seu discurso fez uma
Documentação
ilustração de uma grande colheita. Isso sugeriria
DECRETAL del papa Lucio III Ad Abolendam.
aos
discípulos
que
deveriam
proclamar
a
mensagem do Evangelho, ou seja, Jesus teria instituído uma missão local de proselitismo. E o terceiro texto está no Evangelho atribuído a Marcos, onde teria sido salientado por Jesus: “ide por todo mundo, pregai o evangelho a toda criatuara”32. O objetivo dessa suposta alegação de Jesus, seria a expansão universal de seus ensinamentos através da pregação. Em 1207, Pedro Valdo faleceu e o grupo dos Valdenses se dividiu ainda mais. Isso porque desde 1200, o próprio Valdo tinha alijado grupos discrepantes no Languedoque e na Lombardia. Logo depois da morte de Valdo, dois grupos decidiram regressar à tutela da Igreja, porém, a maioria continuou na desobediência clerical. Com isso, os grupos dos Valdenses que se fragmentaram começaram a questionar os dogmas e sacramentos da Igreja, assim, fundaram suas Igrejas e liturgias próprias. Sendo assim, os Valdenses posteriores à morte de Pedro Valdo se distanciaram bastante dos ideais dos primeiros Valdenses, que só tinham por escopo desmonopolizar a prédica do clero romano, viver uma nova proposta mais “pura” de cristianismo (isso na perspectiva deles), proclamála através das pregações vernáculas de forma itinerante e ajudar os necessitados. Flávio Henrique Santos de Souza é Licenciado em História pela Universidade Castelo Branco (UCB) e Pósgraduado em História Antiga e Medieval pelo Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (NEA-UERJ). E-mail: flaviofever@hotmail.com
31
Lucas, 10: 1-12.
Disponível em: <http://usuarios.advance.com.ar/ p.fernando/DocsIglMed/Inquisicion_Medieval. html>. Acesso em: 06/08/2014. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Nova Edição, Revista: Paulus, 1973.
Bibliografia geral BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA, 2009. BARROS, José D´Assunção. Papas, Imperadores e Hereges na Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Perspectiva, 1976. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. FRANGIOTTI, Roque. História das Heresias (séculos I-VII). São Paulo: Paulus, 1995. LE GOFF, Jacques. A Civilização no Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. _____________. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990. LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. As Heresias Medievais. São Paulo: Atual, 1988. MONGELLI, Lênia Márcia (coordenadora).
Mudanças e Rumos: O Ocidente Medieval (séculos XI - XIII). São Paulo: ÍBIS, 1997. RIBEIRO, Daniel Valle. Igreja e Estado na Idade Média: Relações de Poder. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1995. RUST, Leandro Duarte. Bulas Inquisitoriais: Ad
Abolendam (1184) e Vergentis in Senium (1199). Revista de História, São Paulo, n. 166, p.
129-161, jan./jun. 2012. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/v iew/48532/52451. Acesso em: 11/12/14. SANTOS, João Batista Ribeiro. Dicionário Bíblico. São Paulo: Didática Paulista, 2006. THOMÉ, Laura Maria Silva. Da Ortodoxia a Heresia: os valdenses (1170-1215). Dissertação de mestrado em História, Curso de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras 32
Marcos, 16:15.
G N A R U S | 30 e Artes, Universidade Federal do Paraná. 2004. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/ bitstream/handle/1884/2371/Desserta%C3%A 7%C3%A3o-Final.pdf?sequence=1. Acesso em: 11/12/14. VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1995.
Estátua de Pedro Valdo no Memorial Lutero em Worms , Alemanha (1868)
G N A R U S | 31
Artigo
A NATUREZA AMAZÔNICA E O HOMEM DO SÉCULO XVIII: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O RELATO DE JOSÉ GONÇALVES DA FONSECA NA EXPLORAÇÃO DOS RIOS MADEIRA E GUAPORÉ (1749) Por Maria Luiza Rocha Barbalho
Resumo: No presente trabalho analisamos o relato de exploração dos rios Madeira e Guaporé de José Gonçalves da Fonseca (1749), onde a descrição da natureza assume a função central da construção do texto. Através da análise discursiva, intentamos mostrar uma visão produzida acerca de tal natureza. Palavras-chave: José Gonçalves da Fonseca; Natureza; Século XVIII;
Introdução
do início do processo de colonização no século XVI, pois,
“A terra é mui graciosa, Tão fértil eu nunca vi” (Carta de Pero Vaz, Murilo Mendes).
A
“Na era de 1530 o território entre Maranhão e Santa Catarina foi dividido em 12 capitanias hereditárias, desiguais em superfície, limitadas toda a Este pelo Atlântico, o Oeste pela linha fantástica de Tordesilhas.” (ABREU, 1982, P. 175).
história colonial brasileira foi escrita de diferentes formas1, pois o processo de
A União das Coroas Ibéricas, em 1580,
colonização não foi homogêneo nas
diversas regiões do nosso país2.
Sua própria
configuração espacial é bem diferente atualmente
proporcionou um processo de interiorização no espaço que antes pertencia à Coroa espanhola, mas que então passou a ser compartilhado por ambas as
1
WEHLING, Arno, WEHLING, Maria José. Como se pensou a formação colonial brasileira. IN: Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1999. p. 13-17.
2
ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial (15001800): os caminhos antigos e povoamentos do Brasil (1907). Brasília: Universidade de Brasília, 1982.
G N A R U S | 32 coroas, portuguesa e espanhola. À medida que
explicação norteia as considerações acerca da
antigas
natureza no texto de José Gonçalves da Fonseca.
fronteiras
foram
ultrapassadas,
a
transformação do espaço desconhecido em território conhecido foi sendo consolidada. É interessante notar a singularidade do relato de José
Os limites do território de José Gonçalves da Fonseca (1749)
Gonçalves da Fonseca, dotado de uma proto-
O processo de conquista do território brasileiro se
ciência, que observamos a partir do caráter
iniciou oficialmente pelo governo português a
científico e da natureza exploratória, ambos bem
partir de 1530. Na região da Amazônia esse
definidos. José Gonçalves escreve em 1749, às
processo foi iniciado pelos espanhóis e pelos anglo-
vésperas da assinatura do Tratado de Madri (1750)3.
holandeses ainda nesse período. Nos relatos
Seu texto
observamos a revelação de um imenso espaço em
“compõe-se de três partes: a viagem desde o Pará até à boca do rio Madeira, a navegação do Madeira e a travessia das 19 cachoeiras deste rio e a subida do rio Guaporé até Mato Grosso. O diário da navegação é completado pela sua descrição das minas do Mato Grosso e Cuiabá, conhecido pelo título Noticia da Situação de Mato‑Grosso e Cuyaba: Estado de Umas e Outras Minas e Novos Descobrimentos de Ouro e Diamantes “(ALMEIDA, 2009, p. 221).
A natureza desta colônia, mais especificamente da região amazônica, se torna protagonista da narrativa de José Gonçalves, demonstrando a diferença das relações que o homem passa a ter com ela. “A definição da relação sociedade-natureza está assentada principalmente no reforço da ideia cristã do homem como centro do mundo. A sociedade humana se auto constituiu sujeita da história terrena, criando a visão de progresso ligado ao domínio crescente sobre a natureza (Almeida et al. 2002). ” (MANTOVANI, 2009, p. 3)
Assim, ter o controle sobre os aspectos dessa natureza passa a ser não somente uma necessidade
estado de natureza. Com o período de união entre as coroas portuguesa e espanhola (1580-1640), o processo de interiorização no território colonial brasileiro começou a se configurar. A ocupação luso-brasileira na região amazônica só irá ocorrer a partir de 1614, com a expedição de Castelo Branco, capitão-mor português, fundador da cidade de Belém. Com a dissolução da União das Coroas Ibéricas em 1640, tornou-se possível a existência de disputas territoriais
entre
Portugal
e
Espanha,
estabelecendo assim região como “fronteira natural a marcar os pontos extremos das coroas ibéricas.” (HOLANDA, 1985, p. 258). Com a fixação dos portugueses neste território, a expansão se deu de
forma
rápida,
realizada
sem
grandes
contingentes humanos e resultou para Portugal em uma nova fronteira.
do homem em seu cotidiano, mas do Estado como
De forma legítima, apenas com o Tratado de
forma de estabelecer suas conquistas territoriais e
Madri, em 17504, foi que o problema com os limites
mensurar as dimensões de suas fronteiras. Essa
– estabelecidos com o processo de interiorização do sertão e da região amazônica – tornou-se
3
O Tratado de Madri (1750) foi o documento oficial que estabeleceu de forma definitiva as fronteias da América espanhola e da América portuguesa. O objetivo do tratado era substituir o de Tordesilhas, o qual já não era mais respeitado na prática. 4 “Para a historiografia brasileira, o Tratado de Madri representa a base histórico-jurídica da formação territorial do
país, por ser o primeiro documento a definir com precisão suas fronteiras naturais. Para historiadores argentinos, no entanto, este tratado teria sido extorquido ao governo espanhol, por incapacidade ou por influência da rainha da Espanha, filha do rei português.”. Cortesão, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid: Parte I Tomo I (1695-1735). Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1950.p. 7-8.
G N A R U S | 33
Mapa da rota dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé ligando Belém do Pará ao Mato Grosso. [ca. 1752]. Fundação Biblioteca Nacional
provisoriamente oficial entre as duas coroas. As fronteiras finais que configuraram o atual espaço brasileiro foram estabelecidas pelo Tratado de Santo Ildefonso, em 1777. Conhecer os limites
desígnio de fazer viagem pelo rio Amazonas, e deste entrar no Madeira seu confluente da margem do Sul, e buscar por elle os Arrayaes do Mato-Grosso, na forma de ordens d’El-Rey Nosso Senhor.” (FONSECA, 1749, p. 269).
dessa fronteira, para poder defender sua posse no campo jurídico era o primeiro objetivo da expedição de José Gonçalves da Fonseca: “Sahirão as canoas de Sua Magestade em 14 de julho do porto da cidade do Grão-Pará com 5
Período do governo de D. João V.
A primeira exploração dos rios Madeira e Guaporé foi ordenada pelo governo del-Rey D. João V (1706-1750)5, que procurou resolver as recorrentes disputas com a Espanha pelas
G N A R U S | 34 possessões coloniais da América do Sul; “a grande
A natureza até meados do século XVII ainda não
prioridade, porém, sempre foi o Brasil, a defesa de
havia sido conquistada pela ciência7. Mas o relato
suas rotas e a definição de suas fronteiras” (CADIM,
de Jose Gonçalves da Fonseca (século XVIII) já é
1998). Entretanto, poucos relatos detalhavam os
marcado por apresentar uma natureza “sob
territórios do Norte, em especial a região
controle”, revelando uma mudança de mentalidade
amazônica.
certa
em relação à natureza. É possível inclusive observar
cartográficos
ao longo da narrativa uma série de elogios a essa
Isto
obsolescência
se
dos
deu
por
trabalhos
haver
portugueses6.
natureza e seus componentes:
“A cartografia em Portugal, no século XVIII, tornou-se limitada a copias dos mapas e atlas estrangeiros ou confecção de mapas topográficos. Este é o cerne dos problemas das demarcações; era necessário realizar observações e cálculos científicos in loco que pudessem ser acreditados pela comunidade cartográfica, uma vez que os mapas haviam se tornado incapazes de legitimar pretensões territoriais se não fossem embasados por uma construção cientifica acreditada.” (PEIXOTO, 2011)
Os diversos adjetivos que utiliza para elogiá-la –
Devido a essa necessidade cientifica, este relato
salutífera, abundante, fértil, admirável, diáfana,
faz uma minuciosa descrição do território, mais
aprazível, agradável, formidável, saborosa, grande,
especificamente
Sua
viçosa, formosa, caudalosa, dilatada – aparecem em
narrativa que é essencialmente descritiva, em que
maior quantidade sempre em seu relato do que os
estabelece um rígido controle geométrico e
que aparecem para depreciá-la. O processo de
geográfico do espaço descrito como também da
controle e/ou domínio desta natureza, faz parte
natureza.
não só do seu relato unicamente, mas da posse do
da
região
amazônica.
“He o mesmo rio abundante de peixe, e suas margens e ilhas de toda sorte de caça, e gosão aquelles habitantes desta fertilidade que a natureza espontaneamente lhes offerece, e poderão adiantar a sua utilidade dos fructos, se cultivassem as terras com cuidado, pois são todas de huma e outra margem de admirável disposição para todo gênero de lavoura. “ (FONSECA, 1749, p. 270-271)
mito de Adão. No que era representação do Paraíso
A natureza e seu mundo na narrativa de José Gonçalves da Fonseca (1749)
terrestre – o Novo Mundo: “Deus já dera ao homem o domínio sobre a Natureza” (LENOBLE, 2002. p.
Para Mary Louise Pratt (1999), a natureza é região
266). Este homem – o branco civilizado e cristão –
ou ecossistema não dominado pelo europeu. Nos
deveria, pois, tomar posse daquilo que lhe
relatos de viagem os quais analisa em sua obra,
pertencia, conforme assegurado pelo direito de
intitulada Os Olhos do império, nota-se a presença
Adão.
de um fascínio advindo do exotismo da natureza do
[...] em lugar de querer ser o centro do mundo, aceita-se que a Natureza tenha seus mecanismos e suas próprias leis, sem qualquer relação com os nossos desejos afetivos; é preciso que ela se torne completamente autônoma, “outra”, para que possamos possuir, e até subjulgar esta alteridade capaz, no futuro de nos enriquecer pela sua novidade. (LENOBLE, 2002, p. 262)
“Novo Mundo”. Inclusive, o mesmo ocorreu em relação à região amazônica, “(...) houve um novo fascínio entre os europeus, que iam à América, já não apenas para ocupar cargos burocráticos, mas em expedições de estudo, demonstrando um interesse renovado sobre a Amazônia.” (PORTO, 2006, p. 6)
6 Segundo Peixoto (2011), a cartografia portuguesa nos séculos
XVII e XVIII, se encontrava em processo decadente em relação aos avanços ocorridos em outros lugares da Europa.
A forma como essa natureza aparece pacificada corresponde a uma metáfora da pacificação dos 7
LENOBLE, Robert. Historia da ideia de Natureza. Lisboa: Ed. 70, 2002. P. 258.
G N A R U S | 35 destituído de Igreja e claustros, porem tem muito melhor asseio para o Culto Divino.” (FONSECA, 1749, p. 270).
A descrição de José Gonçalves, grosso modo, é muito mais espacial e geográfica do que social e, por conseguinte, cultural. Da mesma forma, a presença dos indígenas aparece como integrante de uma natureza harmonizada; não como um ameaça ou obstáculo. Inclusive são os índios da aldeia do Parejó que em sua jornada aparecem para o serviço de condução do explorador, não apenas por estarem familiarizados com a geografia local, mas também por possuírem uma extraordinária habilidade cartográfica8. Inegavelmente José Gonçalves utilizou o conhecimento indígena para produzir o seu relato, mas como era uma tendência dos cronistas da época9, essa contribuição era Gravura de John White retratando família de índios tupinambás (também chamados tamoios), a etnia indígena que ocupava a região de Niterói na época da chegada dos primeiros europeus, no século XVI.
diminuída ou negativada, e quando aparecia possuía até mesmo um tom de descrença, como podemos notar a partir do seguinte trecho: “se houver de se dar credito ao que dizem os Índios, ha nestes Lagos cobras de tão desmedida grandeza em comprimento e grossura, que depois da balêa não se sabe que no Oceano hajão outros animaes tão avultados, como as taes cobras.” (FONSECA, 1749, p. 279).
indígenas, tidos como selvagens e pagãos na medida em que não eram brancos e, tampouco, europeus. A natureza e os índios são o Outro. Enquanto
a
geografia
nesta
fonte
é
minuciosamente documentada, o mundo humano é naturalizado fazendo com que a presença das
A integração do índio com a natureza é tanta que
sociedades locais desapareça no relato, ou quando
o desenvolvimento da hoje chamada, medicina
aparece, é de forma extremamente suavizada.
natural, data deste período. As interações culturais
Como exemplo disto, é possível citar a descrição da
ocorridas nas relações assimétricas de poder
Villa do Camutá:
configuraram o processo de miscigenação cultural
“Acha-se esta Villa situada em 2gr. e 40 min. de elevação austral na margem dos Tocantins, á parte occidental, em sitio pouco elevado, aonde faz huma planície capaz de se construir nella muito melhor povoação da que existe, que se contem em huma pequena rua de cazas humildes, e sómente duas com cobertura de telha; tem Igreja Matriz mui pobres edifícios e ornatos; e hum hospício de Mercenários, não menos 8 HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e fronteiras. São Paulo:
Companhia das letras, 1994. P. 23.
entre o indígena e o homem branco – transmitidas por tradições e costumes variados que chegaram aos dias atuais. “Existiu, portanto, um reconhecimento da base de sabedoria popular e da existência de uma medicina indígena, assim como a larga influência na que foi introduzida pelos europeus, que talvez 9
Ibidem. P. 77.
G N A R U S | 36 possamos dizer que seja consensual. A diferença estaria apenas em que medida este saber indígena é destacado ou possui um lugar específico, tanto na construção do espaço amazônico quanto para a formação de uma cultura científica.” (PORTO, 2006, p. 158)
Tornou-se necessário um maior conhecimento desta região e de seus limites, algo que ajuda a explicara existência de viagens exploratórias tais como àquela de José Gonçalves da Fonseca em 1749, posto que a ênfase de seu relato nos aspectos
Esse conhecimento medicinal não é destacado de forma direta por José Gonçalves, mas podemos
naturais e geográficos fazia parte da necessidade cartográfica da época.
observá-lo no que se refere às qualidades dos ares
A natureza para ele não aparece em uma
e das águas, que neste aspecto eram de extrema
perspectiva desafiadora, ou pelo menos isto é
importância para o século XVII, o que é evidenciado
atenuado no decorrer do relato. Aparece como
em seu relato através da adjetivação de ambos:
resultado da efetiva colonização da região – o que
“[...] os ares dos Tocantins são salutiferos, os horizontes mui alegres, as agoas do rio mui crystallinas e saborosas.” (FONSECA, 1749, p. 270). “A meia ladeira de elevação corre de hum penhasco huma fonte d’agoaexcellente, mui diáfana, saborosa, e com a circunstância ou qualidade de mui diurética.” (FONSECA, 1749, p. 279).
nos faz perceber que a natureza é tão “Outro” quanto o indígena: José Gonçalves procurou controlar tanto a natureza quanto o índio. Seu relato ainda minimiza a presença das povoações existentes por onde ele passa, pois seu objetivo aparece como sendo o de descrever mais a flora do que os povoamentos e a fauna. As contribuições
A relação entre José Gonçalves e os índios era de bastante proximidade, o que atuou no sentido de promover uma transculturação, segundo Pratt (1999), ou mesmo uma miscigenação cultural -
indígenas também são diminuídas, mesmo que José Gonçalves não a explicite, pois a não explicitação aparece como estilo e finalidade de relatar, sobretudo, as características do território.
fenômeno particular das zonas de contato. Essa
Os indígenas deram muitas contribuições e isso
troca, ao que podemos concluir, permitiu a riqueza
possibilitou um relato rico em detalhes, tendo
do
como centro a descrição da natureza: a natureza é
relato
e
as
diversas
apropriações
do
a protagonista da fonte. O documento se torna de
conhecimento indígena.
suma importância para a historiografia do período colonial, pois apresenta a ação da coroa portuguesa
Considerações finais
dentro de um território tão longínquo como a
O processo de conquista da região amazônica em
Amazônia e desta forma nos permite refletir sobre
relação ao de outras partes do território brasileiro
as diversas relações estabelecidas dentro deste
ocorreu de forma tardia, e isso aparece enfatizado
território.
pelo Frei Vicente de Salvador, em sua conhecida frase: “os portugueses arranhavam a Costa como caranguejos”. De toda forma, esse processo foi efetivado
pelos
portugueses
e
legitimado,
primeiramente pelo Tratado de Madri (1750) e, depois, pelo Tratado de Santo Ildefonso (1777).
Maria Luiza Rocha Barbalho é graduanda em licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Bolsista de Iniciação Cientifica pela PROPESQ/ CNPq. Contato: malurochabarbalho @gmail.com
G N A R U S | 37
Referências ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500-1800): os caminhos antigos e povoamentos do Brasil (1907). Brasília: Universidade de Brasília, 1982. ALMEIDA, André Ferrand de. A viagem de José Gonçalves da Fonseca e a cartografia do rio Madeira (1749‑1752). Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.17. n.2. p. 215-235. jul.- dez. 2009. CARDIM, Pedro. D. João V (1706-1750): O ouro, a Corte e a diplomacia. IN: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal: O Antigo regime (16201807). Portugal: Estampa, 1998. HOLANDA, Sérgio Buarque. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das letras, 1994. ____________. História geral da civilização brasileira: Do descobrimento à expansão territorial. São Paulo: Difel, 1985. LENOBLE, Robert. Historia da ideia de Natureza. Lisboa: Ed. 70, 2002. PEIXOTO, Renato Amado. Cartografias imaginárias. Natal/Campina grande: Edufrn, 2011. PORTO, Maria Emília Monteiro. Visões da fronteira tropical: o Reformismo Ibérico em perspectiva comparada: o processo de construção da fronteira amazônica, 1750 – 1830. Tese (Pósdoutorado) - Universidade de Salamanca, Salamanca, 2006.
PRATT, M. L. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.
G N A R U S | 38
Artigo
UMA VIAGEM AO NILO: A RELIGIÃO NO ANTIGO EGITO DO REINO NOVO (c. 1550-1070 a.C) Por Danielle Guedes dos Santos
Resumo: O presente artigo nasceu do Trabalho de Conclusão de Curso, ainda com a necessidade constante de promover o estudo da Civilização Egípcia Antiga. O mesmo destina-se a compreender as questões que envolvem as crenças religiosas do povo egípcio, a sua rica mitologia, sua concepção de mundo, sua cultura que perpetuava a vida no além túmulo, a expressividade de sua arte e suas construções, como forma de herança do legado de caráter religioso e a representatividade do poder do Faraó, bem como entender as mudanças no aspecto religioso estabelecida no cenário do Reino Novo (c. 1550 – 1070 a.C) como forma de analisar o cotidiano cultural e social desenvolvido no reinado do Faraó Akhenaton (c. 1353 a 1335 a.C). Palavras-Chave: Egito Antigo – Religião – Reino Novo – Akhenaton.
Introdução O presente artigo busca abordar o conhecimento do passado como fonte de cultura, evidenciando a importância da religião para a civilização da Alta Antiguidade. Tentaremos ao longo dessa análise apresentar os principais aspectos que integram o sistema de culto, as práticas e as crenças presentes na sociedade egípcia antiga, enfatizando as mudanças ocorridas no ciclo religioso, tendo como plano de fundo o Egito no período do Reino Novo (c. 1550 – 1070 a.C), bem como os desdobramentos do projeto de ruptura religiosa promovido na
dinastia do Faraó Akhenaton (XVIII dinastia, século XIV a.C), acarretando reflexos desse processo na vida cotidiana do povo egípcio deste período. “A religião impregnava todos os atos da vida cotidiana dos egípcios. Na família, na sociedade, na política, na guerra, nos trabalhos, as crenças estavam presentes e inspiravam as normas de agir. Heródoto já observará com exatidão que os egípcios eram os mais escrupulosamente religiosos de todos os homens. Compreende-se, por isso, que, através de sua longa história, o povo
G N A R U S | 39 egípcio tenha deixado inúmeros e bem vivos vestígios dessa religiosidade. “ 1
A
forte
presença
e do seu espírito fazia-se necessário para entender a jornada que nunca teria fim.
da
A criação do mundo pode
religião cultuava em seu
ser analisada de diferentes
panteão uma multiplicidade
formas. Um ponto comum nas
de deuses, que ora tomava forma animais esses gerando
humana,
ora
ou
combinavam
dois
elementos, o
organização do mundo. Os contos serviam para construir a ideia de isolar o caos e
que
historicamente conhecemos como
narrativas dos mitos é a
de
antropomorfização
Estátua colossal de Akhenaten de seu Templo Aten em Karnak .
(CARDOSO, 2012, p.98). Uma religião ligada à visão cíclica, nascida no contato com a natureza, onde o Rio Deus – o Rio Nilo – estimava forte adoração. Simbolismo. Uma rica mitologia expressa na maneira como os egípcios percebiam o mundo à sua volta. O culto ao Sol – ao Deus Rá – simbolizava as etapas agrícolas da morte e o renascimento das colheitas. Um ciclo corrente que prolongava a vida no “além”. São concepções que buscam estabelecer um equilíbrio cósmico, uma ordem no plano terreno e mítico que é refletido nos campos da vida cotidiana, muito presente em sua arte para reforçar o culto e contar sua história a partir de seus próprios olhos, nos possibilitando compreender suas crenças, seus ritos e seus costumes.
manter estruturada a luz que conduz a ordem no universo, cabendo ao monarca ser o
mediador que afasta o caos, confere prosperidade aos homens e harmoniza o panteão dos deuses. Dentre alguns mitos famosos, o mito de Heliópolis (GRALHA, 2002, p.44) dá conta de perceber como o pensamento egípcio era elaborado. Rá, o Deus nascido do nada e soberano do mundo antigo, o condutor de tudo que vive esse que se tornou o seu próprio criador, emergiu do Deus primordial Atum. Shu que é o ar e Tefnut personificando o úmido, geraram Geb, a terra e Nut, o céu. Nasceram os casais Osíris e Ísis, Seth e Néftis. O mito representa a natureza, o mundo pré-estabelecido que encontra em Rá, o sol que se levanta e as cheias que fertilizam a terra, uma resposta para sanar as aflições dos egípcios e superar seus problemas. A manutenção do culto concentrava-se sob os
Os Aspectos Religiosos dos Antigos Egípcios
olhos do Faraó, que em um primeiro momento se
Para os egípcios a vida não tinha uma divisão.
intitulou o “Hórus vivo” (CARDOSO, 2012, p.58), o
Tudo era interligado para construir a certeza de um
“senhor das duas Terras”, filho do Deus Sol, que
caminho contínuo. A vida terrenal era conectada à
administraria o Egito e se colocaria sobre as demais
vida após a morte. A preparação da sua consciência
divindades. Aos sacerdotes 2, ficaram encarregados
1
participando dos ritos, atingindo grande percentual de sacerdotisas no Reino Novo no culto ao Deus Amon. O poder do culto era do monarca, mas com a liberdade de aconselhamento ao Faraó, o corpo sacerdotal acabava por influenciar nas decisões políticas que conduziam o Antigo
GIORDANI, 2012, p.128. A profissão de sacerdote foi crescente no Egito. A direção religiosa, cada vez mais, era monopolizada, passando de forma hereditária. Os templos e as terras em seu entorno, foram paulatinamente ficando nas mãos do Clero egípcio. As mulheres garantiram seu lugar na hierarquia religiosa, 2
G N A R U S | 40 de prestar os cuidados aos deuses, promover os
A mumificação era uma exclusividade do Faraó e
ritos de toda manhã – elevação ao sol, lavar as
de seus entes mais próximos. O embalsamamento
imagens, purificar, retirar dos templos, entregar as
consistia em envolver o corpo com faixas de linho,
oferendas, entoar os hinos de adoração. Deveriam
acompanhadas de resina. As vísceras eram retiradas
zelar pelo bem estar dos deuses, orientar o Faraó
e acomodas em vasos Canópicos5 . O uso do natrão6
para com suas obrigações no culto, perpetuando o
no corpo do morto aumentou a preservação
fortalecimento do Egito aos pés do “filho do Deus”.
enquanto, mais uma vez, a resina dava conta de
A participação do egípcio comum era controlada,
harmonizar a aparência do falecido, possibilitando
limitando-se apenas em grandes festividades.
pintar e decorar as feições do morto (SANTOS,
Segundo
os
2012, UFF). A concepção egípcia é de ressurreição
vestígios do culto dos féis em produções escritas,
(renascimento no mesmo corpo). A mumificação é
como as estelas. A entrada do povo nos templos era
o que eterniza, conservando o corpo físico para que
quase impossível. A grande massa de fiéis devia
na próxima vida, o falecido possa renascer e
contentar-se mesmo com as procissões, as capelas,
ascender na morada dos deuses – após passar pelo
as necrópoles e as estátuas divinas existentes nos
julgamento de Osíris. A memória justificada na
lares”.3
religião é deixada para a posteridade, para que o
Giordani,
“podemos
encontrar
Muitos eram os rituais e “fórmulas mágicas” (CARDOSO, 2003, p.90) que envolviam os mistérios da religião no Egito Faraônico. A perpetuidade da alma, a guarda da memória do morto, as fórmulas e orientações presentes no Livro dos Mortos, a mumificação, foram o alto grau mítico dos egípcios. Os rituais funerários buscavam o desenvolvimento mais apropriado de técnicas para preservar o corpo que renasceria em uma nova vida. O processo artificial foi o que acondicionou o corpo para a longa viagem. Segundo Moacir Elias Santos, foi no
indivíduo seja lembrado como era ou como gostaria de ser. No Reino Novo (c. 1550 – 1070 a.C) a mumificação atingiu seu auge, as dinastias que por esse período se estabeleceram não pouparam gastos, tampouco, esforços para o luxo. É no desenrolar dessa época que as práticas de mumificação se aprimoram com a introdução do método de retirada do cérebro pelas narinas. É também o momento marcado pela ampliação do culto funerário para todos que podiam pagar pelo mesmo.
momento em que os egípcios passaram a utilizar os
Notamos nos ritos a forte presença do uso dos
ataudes – caixões ou sarcófagos – para o
“servos fúnebres” como as pequenas estátuas
sepultamento que o processo natural se perdeu,
denominadas Shabti ou Ushabti – aquele que
pois os corpos eram retirados do seu meio natural
responde quando solicitado, ordenado – para
favorável
da
mumificação.4
Perdendo
essa
realizar as tarefas que o morto eventualmente fosse
propriedade, fez-se necessário aplicar métodos
convocado a fazer. Segundo Ciro Flamarion, os
para a conservação.
textos dos Sarcófagos e das Pirâmides contêm encantamentos,7 onde sua função era proteger e
Egito. Retirado do livro: “História da Antiguidade Oriental”, de Mario Curtis Giordani, Rio:Vozes, 2012. 3 GIORDANI, 2012, p. 138. 4 SANTOS, Moacir Elias. Caminho para a Eternidade. UFF, 2012. 5 Idem.
6
Mistura natural que contem Carboneto, Bicarboneto, Sulfato e Cloreto de sódio. SANTOS, Moacir Elias. Caminho para a Eternidade. UFF, 2012. 7 Os Shabtis eram produzidos em pedra, madeira e bronze, ou Faiança azul ou verde. Os pequenos trabalhadores eram
G N A R U S | 41 guiar o defunto quando acordasse para uma vida
substituição quase absoluta dos mitos, rituais da
nova no além túmulo (CARDOSO,2003, p.90). As
tradicional religião do Egito Antigo.
estatuetas tinham constantemente ferramentas nas mãos, designadas a servir o Deus Osíris nos campos ou canais. Eram itens relacionados para auxiliar na preparação da vida no outro mundo. Nas tumbas do Reino Novo, dependendo do nível de importância
Akhenaton não demonstrou a mesma paciência dos faraós que vieram antes dele. O anseio radical, expresso na forma como inseriu uma nova Religião, acarretou
nos
planos
políticos,
administrativos, sociais e culturais.
social atribuído ao morto, chegaram a ser
“Pode-se afirmar, sem cometer exageros que essas lendas transformaram os deuses egípcios em seres vivos com traços bem pessoais. Foram elas também, que fizeram com que se tivesse simpatia por um deus e aversão por outro. “11
colocados cerca de 700 miniaturas, enfatizando o Trabalho Compulsório no “além”.8
A Reforma Religiosa de Akhenaton
mudanças
Uma fase conturbada pela elevação a um Deus dinástico e a permanência – mesmo que discreta
O Egito do Reino Novo presenciou mudanças
por alguns – do culto a deuses locais. Os conflitos
antes jamais vistas em outras dinastias. A teocracia
militares traçados no Reino Novo eram justificados
faraônica9, como forma de governo em que a
na crença mítica, lançando o poder ao monarca –
autoridade emanada dos deuses ou do Deus, é
através do deus dinástico – em seu caráter divino,
exercida por seu representante na terra, na
sendo o escolhido para ser um instrumento do Deus
promoção do Estado, atingindo seu ápice ao elevar
na vitória terrena para os feitos divinos,
um único Deus como criador e soberano de tudo.
fomentando as disputas no controle das políticas do
Segundo Julio Gralha, alguns monarcas como o
Egito. A “reorganização” religiosa de Akhenaton,
Faraó Akhenaton, estabeleceram o culto a si em
com proporções ousadas, precisava se firmar aos
vida, destacando sua natureza dual (divina e
olhos de sua vontade e adoração para que as
humana) e estabelecendo uma relação mais
demais camadas sociais percebam a intensidade, a
estreita com o seu pai, o Deus dinástico
importância do estabelecimento do seu culto. A
(GRALHA,2002,p.19,20). O Reino Novo é marcado
religião do faraó era vaga, “uma forma religiosa que
por uma “disputa” no pilar divino. Duas divindades
não podia ser traduzida por mitos de qualquer tipo”
se destacaram nesse episódio, dominando o
(GRALHA,2002, p.53). O culto popular ao Deus
cenário religioso a partir da vontade de seus
Aton deveria passar pela aprovação e para o Faraó,
regentes. Amon-Rá, ao “solariza-se” tem seu culto
já que o mesmo era a representação viva do Deus
nacionalizado; Aton10 reinou no panteão divino do
na terra, devendo ser a única forma e ponte de
período Amarniano na reforma religiosa promovida
conexão com a divindade.
no desejo do Faraó Akhenaton com eliminação e
colocados nas tumbas, com um exemplar do Livro dos Mortos (um manual de orientações para o morto), para que o individuo pudesse invocar seus trabalhos. O encantamento que permitia essa execução de serviços está presente no Capítulo VI do Livro dos Mortos. CARDOSO, Ciro Flamarion. Trabalho Compulsório na Antiguidade. São Paulo: Graal, 2003. 8 CARDOSO, Ciro Flamarion. Trabalho Compulsório na Antiguidade. São Paulo: Graal, 3° ed. 2003. 9 GRALHA, 2002, p.19.
10
O Deus representado pelo “Disco Solar”, foi o único soberano em Amarna, com seu culto implantado na dinastia de Amenhotep IV/Akhenaton (c. 1353-1335 a.C), que promoveu uma reforma religiosa, trocou a capital para Akhet-Aton, marcando para sempre a história do Reino Novo. GRALHA, Julio, 2002, p.19. 11 ERMAN, Adolphe. La religion dês égyptiens. Paris: Payot, 1952. Citação retirada de GIORDANI, 2012, p.138.
G N A R U S | 42 A
reforma
religiosa
estabelecida
pareceu
distanciar o povo do culto ao Deus dinástico. O
consequentes mudanças ocorridas no Egito do Reino Novo como veremos a seguir.
movimento iniciado pelo monarca vai perdendo força pela individualidade do culto, pelos poucos – ou quase nenhum – mitos e adoradores. A vontade imposta pelo representante em ser a própria força divina no plano humano, ocasionou a instabilidade e aproximava o caos. Apesar de ser um dos períodos mais bem iluminados por fontes, houve problemas nas documentações. Acreditamos na tentativa de “apagar” a passagem do Faraó Akhenaton por solo egípcio. Amarna – hoje conhecida como Tell-elAmarna – seria deixada de lado nas próximas dinastias. O herege Akhenaton teria seus feitos
contexto,
nos
deparamos
com
a
importância de abordar as fontes primárias analisadas
para
este
artigo,
visando
Segundo o historiador Julio Gralha, a reforma feita por Akhenaton foi estabelecida “passo a passo”. O plano político-religioso foi pensado para desenvolver novas formas de representação, excluindo conceitos do tradicional pensar “míticoreligioso” (GRALHA,2002, p.158). 1.Monoteísmo: O monoteísmo é a crença em um único Deus. Um Deus supremo, capaz de promover
paulatinamente forçados a um esquecimento. Nesse
A reforma religiosa promovida pelo Faraó Akhenaton, no período do Reino Novo, pode ser entendida como um desenvolvimento Monoteísta ou Monolátrico?
uma
compreensão mais ampla da religião existente no Egito do Reino Novo. Elas vão nos permitir elucidar
a vida de tudo que existe no mundo. No plano terreno, seus adoradores são seus filhos, os administradores da sua crença são responsáveis por propagar seu culto e ensinamentos. Não se intitulam como “figura viva” do Deus.
a manifestação do pensar e do agir, no sentido
2.Monolatria: É a ação de adoração ou culto a um
religioso, enriquecendo o estudo das práticas de
Deus divino paralelo a seu representante humano.
culto. Entre as vastas opções de fontes, foram
Configura uma relação dupla de poder, onde o
selecionadas e utilizadas essas abaixo relacionadas.
culto é desenvolvido para fortalecer o caráter
Fontes Primárias retiradas da obra de Julio Gralha: (Apud GRALHA, 2002): 1.Grande Hino a Aton. 2.Estela Votiva: Prece de Neb-Ra a Amon-Ra . 3.Estela de Akhenaton e Nefertiti . 4.Iconografia da Tumba de Ahmose, retratando Akhenaton e Nefertiti como deuses em Amarna. Nesta perspectiva, as fontes primárias utilizadas para esse estudo, tornaram possíveis construir indagações sobre as transformações ocorridas com o reinado do monarca Akhenaton, em uma análise que buscava promover problematização sobre a estrutura do sistema religioso existente e as
representativo da figura humana, que se intitula como o Deus vivo em terra e difunde o culto a si mesmo em vida. Reforçando a legitimidade do Deus primordial em sua face para manter o equilibro de tudo. A partir desses dois entendimentos anteriormente apresentados, debruçados nas análises presentes principalmente nas obras dos historiadores Julio Gralha e Ciro Flamarion, podemos nortear a compreensão, seguindo a corrente historiográfica que busca evidenciar a ótica da religião – o plano político-religioso - “nascida” na dinastia de Akhenaton, se caracterizando como uma forma Monolátrica. A exclusão dos mitos e de quase todo
G N A R U S | 43 panteão divino, o rompimento com a tradicional
A reforma de Akhenaton parece não ter agradado
perspectiva religiosa, bem como a existência de
a todos, lançando luz para indagar que “o que está
duas divindades supremas, auxiliam no debate
em jogo na memória é também o sentido da
acerca
o
identidade individual e do grupo” (POLLAK,1989,
estabelecimento de uma monolatria, convertendo
vol.2, n.3), onde a individualidade do culto feita
no estabelecimento de dois deuses “um celestial e
pelo
outro terrestre. Aton, o único deus do céu,
tradicionalismo da religião egípcia, enfatiza um
manifestação visível da natureza invisível do deus
sentido de “perda de identidade” do grupo – o
Ra-Harakhty, e Akhenaton, a manifestação visível
egípcio comum e em alguns momentos, mesmo que
de Aton na terra que guia os vivos” (GRALHA, 2002,
não tão diretamente visível, o inconformismo do
p.158).
corpo sacerdotal.
do
entendimento
para
afirmar
monarca,
que
rompe
com
todo
o
Essa tentativa de apagar a memória do faraó é
A heresia feita pelo faraó Akhenaton culminou na tentativa de apagar sua memória e sua passagem pelo Egito Antigo? “A memória é assim guardada e solidificada nas pedras: as pirâmides, os vestígios arqueológicos (...)”. 12
Nesse sentido, podemos afirmar pelo viés histórico-arqueológico
que
para os
encontrada
em
algumas
fontes
primárias
(especialmente as abordadas no livro de Julio Gralha). Através dos monumentos pintados, encontramos a demonstração de intimidade da família real (GRALHA,2002,p.150), permitindo revelar o sentimento humano presente no regente
antigos
que se proclamou como Deus no plano terreno.
egípcios era fundamental registrar através da
Segundo Gralha, não se pode afirmar que tanto a
escrita, da pintura ou das construções suas
iconografia quanto a religião do Deus Aton, era
descrições sobre suas vontades a serem realizadas,
estimada, considerada por todos, pois “esta
de suas memórias, seus feitos.
dificuldade reside no fato de que a memória do
Segundo o historiador Julio Gralha, os vestígios do
reinado de Akhenaton foi apagada nos momentos
faraó Akhenaton gravados nos Templos de Karnak
seguintes, provavelmente por uma imposição da
foram destruídos – apagados – algum tempo depois
administração egípcia” (GRALHA,2002,p.150).
do fim de seu reinado, possivelmente, pelas dinastias que o sucederam. Um fato curioso que tende a reforçar a hipótese (em uma pesquisa mais
Considerações Finais
neste
O presente trabalho baseia-se em estudar e
trabalho. Os nomes dos faraós Akhenaton e
compreender os aspectos religiosos e suas
Hatshepsut não foram encontrados na listagem dos
estruturas sobre o período do Reino Novo (c. 1550
reis egípcios (GRALHA,2002, p.130) presentes no
– 1070 a.C) no Antigo Egito. Buscamos ao longo
templo mortuário do faraó Séthi I , nos permitindo
desse objeto de pesquisa, ressaltar a importância de
refletir sobre a exclusão e a ausência do nome de
compreender a História Antiga Egípcia. A escolha
Akhenaton dos registros de outros monarcas.
do período do Reino Novo se debruça em ser o
aprofundada
futuramente)
levantada
período mais bem iluminado por fontes históricas,
12
POLLAK, 1989.
G N A R U S | 44 além de nos proporcionar uma análise mais ampla das transformações ocorridas na religião, onde percebemos uma “interrupção”, uma tentativa de ruptura nos padrões tradicionais religiosos do Egito. São as mudanças ocorridas na religião que causam reflexos na cultura do Egito Faraônico. Nela
Fontes Primárias (Apud GRALHA, 2002): Estela de Akhenaton e Nefertiti. Estela Votiva: Prece de Neb-Ra à Amon-Ra. Grande Hino a Aton Iconografia da Tumba de Ahmose, retratando Akhenaton e Nefertiti como deuses em Amarna.
notamos a imponência das grandes construções, as relações de interesse no jogo de poder, do “afastamento” da sociedade no culto ao Deus Dinástico – permanecendo discreto o culto às divindades mais populares. As guerras travadas no campo “celeste” e terreno, justificadas pelo pilar divino. A crença que se configurou como uma ofensa aos Deuses, sendo remetida no desejo de apagar a passagem do monarca Akhenaton, sobre a história do Reino Novo, fomentando o debate que implica na ação humana de excluir seus feitos, seus registros. Os questionamentos das correntes historiográficas que dividem suas opiniões sobre a forma religiosa que no Reino Novo se estabeleceu, propagando os legados culturais pelo tempo, destacando uma ampla importância no meio acadêmico – principalmente o histórico e o arqueológico – em compreender como a esfera religiosa deste período foi capaz de penetrar as diferentes camadas da pirâmide social e conduzir os caminhos daquela civilização.
Danielle Guedes dos Santos é Pós-Graduanda em História Antiga e Medieval pela UERJ e Graduada em História pelas Faculdades Integradas Simonsen.
Fontes Secundárias: BAKOS, Margaret M. Deir El Medina: Deuses e
Escritas de Si na Epigrafia (As Estelas Votivas).
Phoînix, v. 17, nº. 1, Rio de Janeiro, Mauad X, 2011. BURKE, Peter. O que é História Cultural?. Tradução de Sérgio Goes de Paula. - 2ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro, Zahar, 2008. CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito Antigo. São Paulo, Brasiliense, 2ª ed., 2012. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. São Paulo. Ática, 1986. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Trabalho Compulsório na Antiguidade. São Paulo, Graal, 3ª ed., 2003. CYRIL, Aldred. Os Egípcios. Tradução de J.O. Garcia Domingues. 2ª edição, Londres, Editorial Verbo, 1972. ERMAN, Adolphe. La religion des égyptiens. Paris: Payot, 1952. GIORDANI, Mário Curtis. História da Antiguidade Oriental. 15ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. GRALHA, Julio César Mendonça. Deuses, Faraós e o
Poder: Legitimidade e Imagem do Deus Dinástico e do Monarca no Antigo Egito. Rio de
Janeiro, Barroso Produções Editoriais, 2002. LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo. Editora Unicamp, 2013. POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro, vol.2, nº.3, 1989. SANTOS, Moacir Elias. Caminho para a Eternidade:
as concepções de vida post-mortem real e privada nas tumbas tebanas do Reino Novo (1550-1070 a.C). Rio de Janeiro, UFF, 2012.
G N A R U S | 45
Artigo
ENCONTRO DE BOIS DE OLINDA – UMA TRADIÇÃO INVENTADA? Por Lucio Enrico Vieira Attia
Resumo: Este artigo é fruto de pesquisa realizada no Programa de Pós Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense. A dissertação teve como eixo central o conceito de “Culturas Viajantes” proposto por James Clifford. Refletiu sobre como as culturas se deslocam e se desdobram em outras práticas diferentes das anteriores ao descrever o “Encontro de Bois” que acontece toda noite de Quarta Feira de Cinzas em frente à casa de Dona Dá, na Rua da Boa Hora, no bairro do Varadouro, Sítio Histórico de Olinda, Pernambuco. Aqui neste texto apresento um dos aspectos da investigação que questionava se esta prática cultural seria uma tradição inventada, tendo como referencial o conceito cunhado por Eric Hobsbawn e Terence Ranger.
O
presente
artigo
a
preocupação de omitir “tropeções”, “confusões”,
construção da reflexão que buscou
“perdas” ou “surpresas de viagem”. Em “tom”
responder
o
dialógico, esta “obra aberta” intenciona abrir uma
“Encontro de Bois de Olinda” uma tradição
conversa. Caso você sinta vontade, entre em
inventada? O texto ressalta o caráter processual do
contato pelo e-mail lucioenrico@hotmail.com para
questionamento; e certo de que não somos pastas,
que possamos continuar nossa comunicação.
ao
visa
problema:
relatar seria
arquivos físicos ou digitais separados, onde tentamos classificar as coisas e o tempo1, trarei nele meu relato vivido na aprendizagem cotidiana articulando experiências e fontes bibliográficas, na tentativa de dar concretude e sentido às questões apresentadas.
Ciente
da
complexidade
das
categorias com as quais tenho que lidar nesse campo 1
desenvolverei
o
trabalho
sem
a
Esta imagem faz referência à descrição utilizada por Stela Guedes Caputo ao concluir sua pesquisa de doutorado relatada
Tenho alguns motivos pelos quais resolvi escrever este texto. Um deles se deve à sensação de que, por inúmeras vezes, parece-me que diversos autores [de diferentes campos do saber] têm utilizado o conceito de invenção das tradições sem o devido zelo. Em minha opinião, embora ele tenha sentido
no livro “Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com as crianças de Candomblé”. Editora Pallas. 2012.
G N A R U S | 46 amplo, Hobsbawn e Ranger o criam com contornos
que talvez não se tratasse disso. A “pá de cal” foi
bem definidos; contudo, vejo há anos textos que
lançada quando, já “balançado” sobre a utilização
utilizam esta concepção sem caracterizá-la em sua
do conceito, passei a entrevistar os interlocutores
plenitude, “diminuindo” o pensamento e a
da pesquisa. Afinal, nada melhor que o “campo”
“ajustando” de tal forma elástica, que ela passa a
para “derrubar” qualquer elucubração abstrata. Em
dar conta de qualquer acontecimento no âmbito
todo caso, por via das dúvidas, levei à questão à
cultural. Como se, a partir do momento em que o
banca de qualificação - da qual duas historiadoras
livro foi publicado, para falar de tradição, fosse
participaram - e decidimos; juntos, não utilizar este
necessário “pagar pedágio”. Nesta lógica basta
pensamento.
dizer a senha: “toda tradição é inventada” e assim toda elaboração intelectual acerca da categoria tradição se dá por “sacramentada”. Só que não. No contexto do autor ela define um olhar específico dentro de um contexto que discutirei mais à diante. Mas este é apenas um dos porquês. Outro motivo é que eu mesmo, durante a elaboração do então projeto de pesquisa, passei por esse “lugar” e apresentei a invenção das
tradições como questão chave para entender o
Imagine minha surpresa quando na banca de defesa outro historiador estranhou o fato de eu não ter utilizado a invenção das tradições! Ah, a academia... Este artigo surge desse cisma. Por todas as idas e vindas que o conceito passou na pesquisa, resolvi retornar ao livro e verificar se realmente não deixei escapar um ponto importante de análise. E assim, aqui estamos nós, neste artigo, “Encontro de Bois de Olinda – uma tradição inventada?” (CUIDADO:
“Encontro de Bois”. Naquele momento eu já
SPOILER A SEGUIR - SE NÃO DESEJA SABER O FIM
participava do “Encontro” por dez anos, em sete
DA
deles brinquei em um dos “bois”, nos três seguintes
TRAMA
PASSE
PARA
O
PRÓXIMO
PARÁGRAFO2). Uma flexão que poderia também
decidi mudar de posição e observar a festa como
chamar-se: “Porque não considero invenção das
um todo. Talvez pela influência das leituras que
tradições um conceito aplicável ao ‘Encontro de
outros autores e autoras fazem a respeito do conceito de Hobsbawn e Ranger às quais eu tinha acesso, talvez pela minha experiência em um dos grupos; o fato é que meu olhar se dirigia para buscar compreender a noite de Quarta de Cinzas na Rua da Boa Hora a partir desta questão. Quando iniciei de fato a pesquisa no Programa, passei a aprofundar minha leitura no livro e percebi A palavra spoiler é utilizada no campo das artes para avisar que no trecho seguinte haverá revelação de informação importante sobre o desfecho da obra podendo prejudicar sua apreciação pela primeira vez. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Spoiler_(m%C3%ADdia). Acesso em: 22 de junho de 2016. 3 Devido às restrições de espaço para escrever este artigo, optei por incluir nesta parte do texto uma brevíssima descrição do “Encontro”. Para uma narrativa mais detalhada, conferir na 2
Bois de Olinda’”. Sigamos com uma pequena descrição do “Encontro” 3: Ano após ano, em um crescimento contínuo, no estado
de
Pernambuco,
uma
prática
de
sociabilidade4 tem se firmado em uma data bastante esperada.
dissertação disponível em: https://www.academia.edu/19653870/ENCONTRO_DE_BOIS _DE_OLINDA_A_FESTA_DA_QUARTA_DE_CINZAS_%C3%89_ NA_CASA_DA_DONA_D%C3%81_Ponto_de_converg%C3%A Ancia_para_m%C3%BAltiplas_culturas_viajantes_ 4 Prática de sociabilidade aqui entendida como associação de indivíduos onde ocorrem trocas simbólicas. Segundo RESENDE (2001, p. 1), na teoria social, a noção de sociabilidade se refere geralmente a situações lúdicas em que há congraçamento e
G N A R U S | 47 Com o término oficial do Carnaval, toda Quarta-
Hora para visitar a moradora. Alguns levam
feira de Cinzas, por iniciativa própria, ao cair da
presentes a ela, que permanece em pé, os
noite, as ladeiras de Olinda recebem uma série de
recepcionando do começo ao fim da festa - que tem
brincantes5 e turistas provenientes de diferentes
durado cerca de 6 horas, em média. Interessante
manifestações populares e lugares (do país e do
ressaltar que antes da realização do “Encontro” a
mundo) para realizar o “Encontro de Bois6”, em
moradora não tinha relação específica com a
frente à casa de Dona Dá7.
brincadeira do “boi”.
Uma característica peculiar dos “bois” que vão até
Ao chegar à residência de Dona Dá, após o grupo
a casa da moradora é que, em geral, os
anterior finalizar sua brincadeira, o grupo seguinte
componentes dos grupos possuem outras funções
se instala em frente à moradora e tece seus versos
durante a Folia de Momo: são artistas que ocupam
dedicados à dona da casa, a fatos cotidianos e/ou
a cena nos palcos com grandes shows, que brincam
ao tempo que o grupo percorre sua via festiva.
nos terreiros – forma como são chamados os
Quando terminam, as lideranças dos “bois”
espaços onde ocorrem as
brincadeiras8;
ruas, por
recebem de Dona Dá, família, amigos e amigas
exemplo, ou ainda criadores que transitam pelos
ofertas de frutas diversas, vinho, cachaça, água, e o
dois campos. Na Quarta de Cinzas, todos se
troféu que sela o compromisso - e que a cada ano
encontram.
tem um formato e é confeccionado por um artista
O que todos os “bois” e “blocos” têm em comum,
diferente.
mesmo aqueles que não têm trajeto predefinido, é
Praticamente todo ano surge “boi” novo na
a convergência à Rua da Boa Hora e mais
brincadeira. Alguns se inspiram em tradições
especificamente à casa de Dona Dá. Neste sentido
presentes em outros ciclos comemorativos9, como
poderíamos dizer que os “bois” vão à Rua da Boa
o Ciclo Natalino ou o Junino, outros são compostos
confraternização entre as pessoas. A autora cita Aries (1981) para afirmar que este conceito refere-se a visitas, encontros e festas que envolvem trocas afetivas e comunicações sociais em que música e dança são elementos comuns, e a comensalidade aparece quase como uma obrigatoriedade. 5 Pessoa que participa de folias, folguedos e festas. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00000190.htm Acesso em 28 de setembro de 2013. 6 As brincadeiras de “boi” podem ser encontradas em diversas regiões brasileiras e abrigam nesta categoria uma ampla gama de variantes. Segundo CAVALCANTI (2009, p.93) os folguedos do “boi” exigem intensa atividade corporal como o uso de fantasias, música e dança. Neles os grupos brincantes – cujas dimensões, indumentárias e formação característica diferem muito – reúnem-se para brincar em torno de um boi-artefato bailante. Vale dizer ainda que por “boi” entende-se tanto genericamente o festejo, quanto a representação plástica do animal [podendo ser feito com diferentes materiais] e o grupo de pessoas que se organiza em torno dela. (CARVALHO, L., 2009, p.115) [acréscimo nosso]. 7 Jodecilda Airola de Lima, popularmente conhecida como Dona Dá, atualmente com 78 anos, foi homenageada do Carnaval de Olinda em 2004. Primeira mulher a receber esta deferência. A escolha se deu mediante voto popular. Dona Dá atingiu a marca de 3.643 votos com o slogan “Carnaval sem Dona Dá não dá”. Mais informações em http://www.old.pernambuco.com/diario/2004/02/04/urbana 5_0.html. Em 2011 foi homenageada pelo boneco gigante mais
famoso do Carnaval de Olinda, o Homem da Meia Noite. Informações em http://unacomo.blogspot.com.br/2011/01/homem-da-meianoite-escolhe-hmenageados.html Ambos os acessos em 10 de maio de 2014. 8 Brincadeira é uma categoria muito comum nas expressões populares para expressar atividades que mesclam múltiplas interfaces do cotidiano. Conforme CARVALHO as motivações místicas e religiosas, por exemplo, não se chocam com as dimensões de lazer, jogo, diversão, teatro e festa, com a fartura de comidas e bebidas, e com os excessos de gozos corporais que reforçam o caráter lúdico das encenações populares. [...] [contudo] trata-se, pois de uma brincadeira levada a sério. [...] Os participantes se autodenominam brincantes. (CARVALHO, L., 2009, p.116) [inserção minha]. Tenderini reforça: “As brincadeiras são algo muito sério. Mas são também divertimento” (TENDERINI, 2003, p. 20). 9 O tempo cíclico. Aquele que, ao contrário do tempo cronológico - pautado pela sequência de anos que ocorrem sucessivamente e não retornam - vai e volta. É aquele que nos lembra de que “é época de...”. Tempo do eterno retorno. Aquele que marca nossos períodos festivos e orienta nossas práticas sociais cotidianas. De acordo com Barbero: O tempo cíclico é um tempo cujo eixo está na festa. As festas com sua repetição, ou melhor, com seu retorno balizam a temporalidade social [...] Cada estação, cada ano possui a organização de um ciclo em torno do tempo denso das festas, denso enquanto carregado pelo máximo de participação, de
G N A R U S | 48 por características de manifestações populares
refere-se, sobretudo, à apropriação e criação por
presentes no Ciclo Carnavalesco pernambucano, e
parte das elites/do Estado que busca, em meio às
há ainda grupos que nem “bois” são. Na noite da
mudanças de seu cotidiano, criar condições através
Quarta de Cinzas, a parte de cima da Rua da Boa
de práticas e rituais para alcançar uma estabilidade;
Hora é completamente tomada pelos brinquedos.
construindo ideologias legitimadoras de seus status por meio da difusão de práticas e rituais. O
Seria o “Encontro de Bois de Olinda” uma tradição
inventada?
Em seu livro, “A invenção das tradições”, Eric John Ernest Hobsbawn e Terence Osborn Ranger (2012), mostram como no contexto do Estado-Nação,
a
noção
de
tradição foi um importante elemento de estabilidade em sociedades que atravessaram um rápido e profundo processo de
Hobsbawn, na introdução do livro, afirma que “muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são antigas,
são
bastante recentes, quando não são inventadas” (idem, ibidem, p.11).
O
diferentes tradições, consideradas muito antigas, foram criadas e são mantidas por estes atores sociais. Os textos apresentados nos capítulos seguintes ilustram esta teoria abordando a utilização das saias escocesas e da gaita de fole; os costumes pitorescos do País de Gales, os rituais de realeza da Monarquia britânica, a representação da autoridade na Índia Vitoriana, a
mudança.
consideradas
argumento principal do livro é demonstrar como
argumento
que
perpassa todo o livro é de que desde a Revolução Industrial, muitas vezes, foram criadas e desenvolvidas tradições por parte das elites nacionais a fim de justificar a existência e importância de suas nações. Neste sentido, as
tradições inventadas têm objetivos ideológicos e legitimadores de status nas sociedades de classes com a finalidade política de manter a ordem social. A primeira questão que ficou mais clara ao me reaproximar do texto, lendo finalmente todo o livro, e que desejo ressaltar aqui, foi que o conceito
vida coletiva. A festa não se constitui, contudo, por oposição à cotidianidade; é, antes, aquilo que renova seu sentido, como se a cotidianidade o desgastasse e periodicamente a festa viesse
invenção da tradição na África colonial e ainda a produção em massa de tradições. O termo “tradição inventada” inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme rapidez. [...] Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. [...] Em poucas palavras, elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória. É o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos alguns recarregá-lo novamente no sentido de pertencimento à comunidade. (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 136).
G N A R U S | 49 aspectos da vida social que torna a “invenção da tradição” um assunto tão interessante para os estudiosos da história contemporânea (idem, ibidem, p. 11-12).
“participa” do “Encontro”, não seu “ator” central, conforme olhar ao qual minha percepção se dirigira anteriormente. A Prefeitura de Olinda divulga o evento e, de vez em quando, oferece algum apoio à
Confabulando com os trechos acima temos os
festa. Sem nenhuma influência ou intervenção
primeiros motivos pelos quais não considero o
específica permanente. Posso afirmar que a noite
“Encontro de Bois” uma tradição inventada.
de Quarta de Cinzas, na Rua da Boa Hora continua
Trata-se de uma prática cultural criada e mantida pelos interlocutores da pesquisa. Neste sentido não se refere a uma criação por parte das elites/do Estado com a finalidade de legitimar seu status por meio da difusão de práticas e rituais. O “Encontro de Bois de Olinda” inclusive, nunca foi pensado,
sem estar formalmente institucionalizada no sentido de vinculada ou dependente do poder público para acontecer. Muito pelo contrário, essa forma de autogestão é considerada por grande parte dos interlocutores um dos pontos fortes de sua realização.
deliberado, planejado. Ele aconteceu. É fruto do
Outro ponto de discordância é que embora
entrecruzamento entre o desejo de moradores da
existam muitas histórias para a origem do que hoje
Rua da Boa Hora de homenagear blocos e troças
conhecemos como “Encontro de Bois de Olinda”, é
que passassem pela rua tocando no Carnaval, na
possível localizá-la no tempo. Sua data de origem, a
década de 1980, posteriormente acrescido do
depender de qual versão que será abordada, pode
desejo de artistas de manipular, recriar as práticas
ser situada em 1992, 1993, 1995, 1996, 1999 ou
culturais com as quais se identificavam, nos anos 90.
2000.
Conforme desenvolvi na dissertação, no caso do
Segundo Hobsbawn, um dos elementos de apoio
“Encontro de Bois” o que me parece ter acontecido
para a sustentação das tradições inventadas é a
foi a criação de um espaço de sociabilidade de livre
criação de rituais com a finalidade de reforçar sua
trânsito simbólico que é realizado por meio de um
existência. Como vimos, considero o ritual de
ritual lúdico-festivo que acontece anualmente na
visitação à casa de Dona Dá como momento ápice
noite de Quarta de Cinzas. Desta forma, outro
do “Encontro”; porém não acredito que este
motivo por que considero que a festa não se
aspecto seja suficiente para considerar o “Encontro
enquadra como tradição inventada é por não
de Bois” uma tradição inventada. Especificamente
acreditar haver sujeição, submissão de classe; pelo
no que diz respeito a esta questão [ainda que
contrário, penso haver a dissolução do status de
desejasse forçar para que a noite de Quarta de
nossa sociedade classista. Desde a primeira vez que
Cinzas na Rua da Boa Hora coubesse nesse
vi o “Encontro”, em 2003, percebo, de uma maneira
conceito], não percebo neste ritual a força de
geral nos brinquedos tanto cortadores de cana
prática imposta, aflitiva, que estão contidas nas
quanto universitários e artistas, crianças, jovens e
sentenças “visam inculcar certos valores e normas
idosos, brancos e negros, pessoas de ambos os sexos
de comportamento através da repetição, o que
e dos mais variados gêneros brincando reunidos.
implica, automaticamente; uma continuidade em
No âmbito da participação do Estado, conforme fui
relação ao passado” (idem, ibidem, p.11) ou ainda
realizando a pesquisa, percebi que ele é somente
“a invenção de tradições é essencialmente um
mais um dos atores dentre os interlocutores que
G N A R U S | 50 processo
ritualização,
Dona Dá e os moradores da Boa Hora estivessem
caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que
buscando resgatar uma prática perdida visando
apenas pela imposição da repetição” (idem, ibidem,
continuidade em relação ao passado? Quem sabe
p. 15). No “Encontro de Bois” ocorre ritual, sim; por
estariam se utilizando desta memória para
adesão, acordo, consentimento, ligação. De acordo
legitimar este ritual? A vida não é tão simples.
com as entrevistas realizadas, ninguém participa
Quando fui buscar informações, a moradora não
desta noite obrigado ou visando algum retorno que
tinha mais elementos, só soube de “ouvir falar” e
não seja a alegria do reencontro e o prazer de
mesmo assim anos depois que o “Encontro” já era
brincar com seus amigos no fechamento do
realizado, por volta de 2011-2012, quando um novo
Carnaval. O que me parece acontecer é que
vizinho, que participara daquele “boi” - que
anualmente, na noite de Quarta de Cinzas, tanto a
posteriormente descobri ser da década de 70 -
moradora-símbolo do Carnaval de Olinda reafirma-
mudou-se para a rua. Esta história, inclusive é
se como madrinha dos “bois”, quanto estes
motivo de brincadeira entre os moradores.
brinquedos
de
formalização
comprometem-se,
e
a
partir
da
Apresento agora meu principal motivo do por que
apropriação de múltiplos elementos culturais, a
não considero o “Encontro de Bois” uma tradição
serem reconhecidos [e se reconhecerem entre si
inventada. Abro um diálogo entre tradição, no
neste local], mantendo a vitalidade do “Encontro de Bois”. Outro aspecto importante que Hobsbawn cita, inclusive, como mais interessante no caso de
invenção das tradições é “a utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições para fins bastante originais” (idem, ibidem, p. 17). Quando entrevistei Dona Dá pela primeira vez ela iniciou sua fala dizendo: “passou um ‘boi’ por aqui...”. Fiquei intrigado com esse “boi” que circulava por sua porta em algum momento do passado. Chamou-me atenção o fato de que ao mesmo tempo em que ela menciona esse momento anterior, Dona Dá estabelece em sua narrativa o início do “Encontro de Bois” no ano 2000. Fiquei
sentido que Hobsbawn a utiliza, e a forma pela qual tenho utilizado ao longo da vida. Para Hobsbawn: A “tradição” [...] deve ser nitidamente diferenciada do “costume”, vigente nas sociedades ditas “tradicionais”. O objetivo e a característica das “tradições”, inclusive das inventadas, é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O “costume”, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme o expresso na história [...] O “costume” não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo nas sociedades tradicionais (idem, ibidem, p. 13).[grifos meus].
pensando se não haveria ligação entre estes “bois” de agora e mesmo ainda o troféu oferecido [que
Como
se
pode
perceber,
tradição,
para
também teve formato de “boi” no primeiro ano],
Hobsbawn, no âmbito da invenção das tradições,
com o “boi” anterior. Será que seria o caso do que
remete-nos
Hobsbawn afirma serem “reações a situações novas
fixação; ao passo que sua leitura de costume
que assumem a forma de referência a situações
relaciona-se com princípio estimulador. Sendo
anteriores [...] através da repetição quase que
assim, estabelece-se mais uma diferença entre as
obrigatória”? (idem, ibidem, p. 12) Quem sabe
propostas; pois na ótica com a qual tenho
à
cristalização,
invariabilidades,
G N A R U S | 51
trabalhado o conceito tradição, segundo diferentes
reiterada, transformada e atualizada. Tradição
autores IPHAN (2006), SODRÉ (1988), COUTINHO
relaciona-se a princípio não no sentido de origem,
(2002), TENDERINI (2013),10 a tradição é quem tem
início dos tempos, começo histórico, mas ao
a função de motor e volante. Desta forma, o que
impulso inaugural da força de continuidade do
para o autor é costume, em nossa leitura [minha e
grupo. Neste sentido, a tradição é vista como força
dos autores supracitados] é, na verdade, nossa
propulsora e não como um fardo; é manifestação
leitura da tradição. Explico melhor: na forma como
portadora de elementos dinamizadores da vida
tenho utilizado o conceito tradição quer dizer
cultural. É ação criadora do sujeito sobre as formas
“através do tempo”, esta, é constantemente
do passado. Processo pelo qual o homem, por meio
10
tanto origem como destino. (SODRÉ, 1988 apud CAPUTO, 2012, p. 117-118). Eduardo Coutinho distingue tradição de duas maneiras. Estas possuem implicações políticas distintas, correspondendo a diferentes práticas de reelaboração do passado e de interpretação da história. A visão metafísica da tradição, um conhecimento geral e abstrato, visa prolongar um passado no presente, conservando as relações sociais existentes, refletindo o conservadorismo dominante ao pensar a cultura como objeto, peça de coleção ou mercadoria; aproximando-se assim do tradicionalismo [e para mim, mais próxima da definição de invenção das tradições de Hobsbawn]. Já a visão dialética apresenta-se na prática e nos discursos libertários. É inspirada na teoria hegeliana que afirma que no universo tudo é movimento e transformação, e que as transformações das ideias determinam as transformações da matéria. Sob esta perspectiva, a tradição é vista como ação criadora do sujeito sobre as formas do passado. Um operador político capaz de refazer a história como patrimônio das camadas populares ao considerar o processo pelo qual o homem, por meio de sua práxis criadora, transforma ativamente a realidade cultural. (COUTINHO, 2005).
Segundo o IPHAN, tradição, tomada em seu sentido etimológico de “dizer através do tempo”, abarca as práticas produtivas, rituais e simbólicas que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas, mantendo, para o grupo, um vínculo do presente com o seu passado. Fonte: Resolução 001, de 03 de agosto de 2006. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=690. Acesso em 31 de agosto de 2013. Muniz Sodré relaciona tradição a princípio; pois Arkhé, em grego, tem esse significado - não no sentido de origem, início dos tempos, começo histórico, mas “eterno impulso inaugural da força de continuidade do grupo”. Arkhé é também traduzido por tradição, transmissão da matriz simbólica do grupo. Neste sentido, a tradição não implica necessariamente a ideia de um passado imobilizado, passagem de conteúdos inalterados de uma geração para outra, implica antes, em uma ação plena, aberta para o estranho, o mistério, para todas as temporalidades e locais possíveis, sem obstruir transformações. Segundo o autor, toda mudança transformadora, toda revolução, ocorre no interior de uma tradição com o objetivo de retomar o livre fluxo das forças necessárias à continuidade do grupo. Sendo assim, Arkhé está no passado e no futuro, é
G N A R U S | 52 de sua prática criadora, transforma ativamente a
diversos aspectos - apesar das históricas condições
realidade cultural. Nesta leitura, o passado está
precárias de vida na qual sobrevivem os
vivo, acessível, e tem seu lugar. Podemos ir até ele
criadores/mantenedores destas tradições - elas
buscar o que nos serve hoje. Assim, o passado nem
seguem
mesmo é passado. Esse passado, do qual estou
especificamente um elo direto entre a criação do
falando, ao invés de nos “puxar pra trás”, nos“
“Encontro de Bois” e uma possível debilitação ou
empurra para frente” alimentando a tradição que é
destruição dos padrões sociais das anteriores. Ao
acionada positivamente e vista como um legado,
contrário, os atores sociais parecem circular entre
um testamento, um patrimônio; e o indivíduo, na
os dois universos. No “Boi Marinho11” - para citar
função de mediador, representa o elo ativo e
somente um dos muitos exemplos possíveis entre os
participante de uma cadeia de outros seres que o
grupos que participam do “Encontro”, o grupo
sucederam
o
brinca em Condado, na considerada “terra do
ultrapassarão no tempo e no espaço. A tradição
Cavalo Marinho” - segundo slogan da Prefeitura -
enfim, está aqui por que permanece viva, e continua
ao mesmo tempo em que componentes dos
viva por ainda fazer sentido no aqui e agora.
“Cavalos Marinhos” - que aprenderam a brincar
e
que
consequentemente
Outro aspecto que considero fazer com que o “Encontro de Bois” não se alinhe às proposições de Hobsbawn diz respeito ao motivo que o autor cita para a criação de novas tradições: Provavelmente, não há lugar nem tempo investigados pelos historiadores onde não haja ocorrido a “invenção” de tradições [...]. Contudo, espera-se que ela ocorra com mais frequência: quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói os padrões sociais para os quais as “velhas” tradições foram feitas, produzindo novos padrões com os quais essas tradições são incompatíveis. Quando as velhas tradições, juntamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou quando são eliminadas de outras formas. Em suma, inventam-se novas tradições quando ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta. (idem, ibidem, p. 16) [grifos meus]
fortalecidas
não
parecendo
haver
junto às suas famílias – participam no “Boi Marinho” em Olinda. Parece que a brincadeira [no sentido do “Boi Marinho”] e a tradição [no sentido do Cavalo Marinho] dialogam entre si e tem claro que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, como se diz popularmente. Concordo com Hobsbawn ao acreditar que o aspecto mais interessante em sua teoria “é a utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante originais” (idem, ibidem, p. 17), neste sentido o “Encontro de Bois”, na figura dos vários “bois” participantes, claramente, conforme vimos, dialoga com as tradições precedentes. “Sempre se pode encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo repertório destes elementos; e sempre há uma linguagem elaborada, composta de práticas e
Em minha opinião, as “tradições-base” que
comunicações simbólicas” (idem, ibidem, p. 18).
“alimentam” os diversos “bois” que participam do
Caminho junto ao autor quando ele afirma que “por
“Encontro” vão “muito bem, obrigado”. Sobre
outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições
11
integra representação, música, dança e poesia. Mais informações em: http://www.recife.pe.gov.br/especiais/brincantes/8c.html. Acesso em 07 de setembro de 2013.
De Hélder Vasconcelos, “boi” que brinca no Carnaval com elementos do “Cavalo Marinho”, autopopular da Zona da Mata Norte de Pernambuco, de ocorrência predominantemente no Ciclo Natalino. A brincadeira costuma durar cerca de 8 horas e
G N A R U S | 53 genuínas não devem ser confundidas com a
acabei chegando às Culturas Viajantes, de James
‘invenção de tradições’. Não é necessário recuperar
Clifford e prossegui com ele até o fim.
nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam” (idem, ibidem, p. 20). Foi exatamente este aspecto que tentei “ilustrar” no parágrafo anterior.
E após a pergunta do historiador que participou de minha banca de defesa e que questionou o porquê d’eu não ter trabalhado o conceito, acabei colocando uma nota no texto final afirmando que
Para finalizar esta reflexão sobre se o “Encontro
optei por utilizar o termo “criação de uma tradição”
de Bois” se enquadraria; se caberia ser analisado no
e não “invenção de uma tradição” - embora aquele
âmbito do conceito12 de invenção das tradições,
não fosse o problema final da pesquisa - para
espero ter deixado claro que percebi mais
demarcar que não considero o “Encontro de Bois de
diferenças do que semelhanças entre o que os
Olinda” uma “tradição inventada” no sentido
autores propõem e a prática cultural que participo
desenvolvido por Hobsbawn e Ranger.
e me dediquei a estudar. De acordo com minha “leitura”, o “Encontro de Bois” não se encaixa nem no que poderíamos considerar, de acordo com a gramática Hobsbawniana, nem no campo das “tradições genuínas”; nem na sua definição de “tradição inventada”. Em síntese, no final das contas, em busca de um conceito que se adequasse à questão da dissertação
12
Sobre o conceito, admito que tenho mesmo até dificuldade de encontrar no Brasil uma situação que exemplifique uma tradição inventada em nosso país. Talvez o Desfile Militar de 7 de Setembro para confirmar o Estado Democrático de Direito, com as forças armadas subordinadas à Presidência da República; ou, para ficar no campo das “culturas Populares” a contribuição de Mário de Andrade à narrativa sobre nosso Estado-Nação a partir das manifestações populares tradicionais. Sobre este caso, a categoria folclore ocupou lugar estratégico na proposta nacional-cultural de Mário de Andrade ao tentar aliar a busca do Modernismo às raízes culturais brasileiras. Mais informações em: http://www.centrocultural.sp.gov.br/Colecoes_Missao_de_Pes quisa_Folclorica.html . Acesso em 29 de agosto de 2013. Livros bastante conhecidos do autor são: “O turista aprendiz” e “As danças dramáticas do Brasil”. Segundo ARAGÃO (2011) os ideais de Mário de Andrade inspiraram o Movimento Folclórico, que ganharia peso por volta da década de 40 ganhando força ao criar, conforme recomendações da UNESCO, suas Comissões Estaduais. (VILHENA, apud ARAGÃO, 2010 p.2) Disponível em: http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/12 78679105_ARQUIVO_ArtigoAnpuhRio.pdf Acesso em 03 de setembro de 2013. Cf. VILHENA, “Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964)”. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/interna.php?ID_Secao=100. Acesso em 03 de setembro de 2013. Sua interlocução com o Estado, por exemplo, produziu uma gama de práticas materiais e espaciais que criaram e reverberam até hoje em conhecimentos, histórias, tradições de pesquisa,
Acredito que se quiséssemos insistir na questão da tradição como categoria central para compreender o “Encontro de Bois” poderíamos pensar nele como um espaço de “criação de uma tradição”; afinal toda tradição começa de algum lugar. Estaríamos nós, ao contemplar o “Encontro de Bois de Olinda”, vivenciando o processo de criação de uma nova tradição? Já temos outra pesquisa...
comportamentos etc. Você já ouviu alguma vez uma história sobre o “auto do boi”: Catirina, grávida, com desejo de comer a língua do “boi” preferido de seu amo, faz com que Mateus [ou Pai Francisco, a depender da região] corte a língua do animal que padece até ser ressuscitado pelo Pajé ou outro personagem? Pois é, CAVALCANTI no seu texto “Tempo e narrativa nos folguedos do boi” (2009, p. 82) ao mencionar o trabalho de Luciana Carvalho, afirma que o “auto do boi” na verdade trata-se mais de uma “ilusão do auto”, por que, através de constatação etnográfica, este auto, em sua suposta integridade dramática parece nunca ter existido. A autora afirma que a relação do folguedo com as encenações dramáticas que eventualmente elabora não é a de obediência a um roteiro de um enredo pré-estabelecido tal qual nos faz pensar a farta bibliografia, entre elas, a de Mário de Andrade, contendo a insidiosa ideia de fundo: de que esses folguedos corresponderiam à encenação de um “auto do boi” apresentando a trama baseada na lenda da morte e ressurreição de um precioso boi a partir do desejo de uma negra grávida. Poderia citar também o olhar incisivo sobre o eminente desaparecimento das tradições populares, chamado por José Reginaldo Gonçalves de “retórica da perda”; afinal as tradições estão “morrendo” desde que a universidade começou a estudá-las. Cf.: A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. José Reginaldo Santos Gonçalves. Rio de Janeiro. ED. UFRJ/IPHAN. 1996. 156p.
G N A R U S | 54 Lucio Enrico Vieira Attia é Mestre em Cultura e Territorialidades pela Universidade Federal Fluminense. lucioenrico@hotmail.com
Referências bibliográficas: CARVALHO, Luciana. A matança do santo: riso ritual e performance no bumba meu boi. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro e: As festas e os dias: ritos e sociabilidades festivas. Rio de Janeiro: Contracapa. 2009, 115-142, p.116 CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros e
como a escola se relaciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012. 296p.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro e. Tempo e narrativa nos folguedos de boi. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro e (org): As festas e os dias: ritos e sociabilidades festivas. Rio de Janeiro: Contracapa. 2009, 28p. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/inde x.php/rpcsoc/article/view/810. Acesso em 28 ago 2013. CENTRO NACIONAL DE FOLCLORE E CULTURA POPULAR. Tesauro_Brincante. Disponível em: http://www.cnfcp.gov.br/tesauro/00000190.ht m Acesso em 28 set 2013. COUTINHO, Eduardo Granja. Os sentidos da tradição in: PAIVA e BARBALHO, Raquel e Alexandre (orgs.). Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005. Disponível em: http://www.pos.eco.ufrj.br/docentes/publicaco
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Bois é uma das pedidas da Quarta de Cinzas.
Disponível em: http://carnaval.olinda.pe.gov.br/noticias/enco ntro-de-bois-e-uma-das-pedidas-da-quartade-cinzas Acesso em: 30 de janeiro de 2013. RESENDE, Cláudia Barcellos. Os limites da sociabilidade: “cariocas” e “nordestinos” na feira de São Cristóvão. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/re h/article/viewFile/2145/1284. Acesso em 25 set 2013. TENDERINI, Helena Maria. Na Pisada do Galope:
Cavalo Marinho na fronteira traçada entre Brincadeira e Realidade. 98 f Dissertação (Pós-
Graduação em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Pernambuco. 2003. Disponível em: http://www.liber.ufpe.br/teses/arquivo/20031 222103007.pdf Acesso em 14 jun 2016.
G N A R U S | 55
Ensaio
INDIVIDUALISMO NORTE AMERICANO: REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA E A CULTURA DOS ESTADOS UNIDOS. Por: Lucas Schuab Vieira
Resumo: Tendo em vista que a sociedade americana se apresenta como uma sociedade capitalista desde seu início, e sendo, individualista baseada na ideologia do esforço individual, no trabalho, na ética, no mérito, na competitividade e em toda uma visão de mundo protestante. Este ensaio tem por objetivo iniciar uma reflexão sobre a questão do individualismo Norte Americano. Pretende-se mostrar como que o individualismo se configura como um importante elemento de influência na cultura e no modo de vida Estadunidense e seus desdobramentos na história da nação em seus mais diferentes aspectos e momentos. Palavras-Chave: História, Estados Unidos, Individualismo. Abstract: Given that American society is presented as a capitalist society since its inception, and being individualistic based on the ideology of individual effort, work, ethic, merit, competitiveness and a whole vision of the Protestant world. This paper aims to launch a reflection on the issue of North American individualism. It is intended to show how that individualism is configured as an important element of influence in the culture and way of life US and its development in the nation's history in its different aspects and moments. Keywords: History, United States, Individualism.
O
s termos individualismo e coletivismo
indivíduo, tendo esse que se subordinar a uma
começaram a ser utilizados por filósofos
autoridade superior, neste caso, o rei. (CIOCHINA;
políticos ingleses dos séculos XVIII e
FARIA, 2008).
XIX. Na visão ideológica daquele tempo o individualismo era sinônimo de liberalismo, propagando ideais como a liberdade máxima do indivíduo, a possibilidade de pertencer a vários grupos e de deixá-los quando quisesse e a participação igual de indivíduos nas atividades de grupos;
no
polo
oposto,
encontrava-se
o
autoritarismo, que anulava a liberdade do
Mas ainda, as teses individualistas veiculadas pela Revolução Americana, isto é, o fato dos homens serem iguais e de terem todos, o direito de procurarem alcançar a felicidade, a par dos ideais em que se fundamentou a Revolução Francesa, nomeadamente a liberdade e a igualdade, acarretaram ao surgimento de reações e de ideais
G N A R U S | 56
coletivistas, que se opunham a influência nociva dos
identidade pessoal tem como ponto de partida os
direitos individuais no bem-estar da comunidade e
méritos, os atributos e as realizações pessoais.
da sua estrutura social. (CIOCHINA; FARIA, 2008).
(HOFSTEDE, 1980, apud, CIOCHINA; FARIA, 2008)
Segundo Ferreira (2009), John Lock influenciou para além de seu tempo o ideário das revoluções americana e francesa, sobre determinou a própria constituição da teoria da democracia liberal –
Podemos perceber, portanto, que nas sociedades individualistas
os
objetivos
pessoais
são
privilegiados em detrimento dos do grupo ao qual o indivíduo pertença.
estabelecendo os princípios de congruência entre
Um primeiro ponto relevante para se pensar o
governo e sociedade civil e estipulando os limites
individualismo se encontra no trabalho de
da ação do Estado – bem como determinou o
Frederick Jackson Turner, sob o título O significado
espaço da comunidade política nacional como o
da fronteira na história americana, nesse texto o
espaço por excelência da razão democrática, tal
autor argumenta que a fronteira é geradora de
como firmaram os antigos clássicos da Hélade.
individualismo e que um dos seus efeitos mais
Como contratualista e liberal democrático, sua
importante foi fomentar a democracia tanto nos
obra teve grande influência sobre as ideias
EUA como na Europa. (TURNER, 1893).
posteriores.
Claude Fohlen (1981, p. 285) na esteira de Turner
Na definição de Hofstede, a característica central
chama a atenção para o fato de que na fronteira o
do individualismo é constituída pelo fato dos
homem vive isolado e tem que enfrentar situações
indivíduos serem independentes uns dos outros.
muito diferentes, exigindo habilidades muito
Hofstede enfatiza a prevalência dos direitos sobre
desenvolvidas e reações originais em relação à vida
as obrigações, a preocupação com a própria pessoa
civilizada do leste. A tendência é antissocial, hostil
e a família imediata, a autonomia pessoal e a auto
a qualquer controle, especialmente controle direto.
realização. Neste sentido, a construção da
G N A R U S | 57 E o coletor de impostos era considerado um representante da opressão. Segundo Fohlen, esse individualismo encarnou nos capitães da indústria dos fins do século XIX, continuadores da tradição da fronteira. E ainda que o individualismo tenha sobrevivido enquanto ideal, os indivíduos em luta uns contra os outros, às voltas com espaços e problemas cada vez mais vastos, reconheceram a necessidade de colaborar sob a égide dos mais fortes. É, portanto, isso que explica a ascensão desses capitães da indústria, cujo talento soube concentrar o capital para dominar os recursos fundamentais da nação. (FOHLEN, 1981, p. 285). A tradição, em todo o caso, perpetuou-se e teve sempre consequências políticas, como a revolução americana. Segundo Turner (1893) “a liberdade individual se confundia por vezes com a ausência de qualquer governo efetivo”. Esse individualismo explica
igualmente
as
dificuldades
no
estabelecimento de um governo forte no início da Guerra de Independência e a adoção da constituição. (FOHLEN, 1981, p. 285). Conforme
foi
mostrado
acima,
derivam da ausência de um espirito cívico altamente desenvolvido. Esse individualismo dominante, funcionando para o bem e para o mau, é, segundo Turner, uma das
podemos
características da fronteira, ou características que
perceber a validação da argumentação de Turner
afloram em qualquer lugar por causa da existência
de que o individualismo de fronteira promoveu,
da fronteira, e se constitui em uma das
desde o começo, a democracia. Frederick Jackson
características notáveis que o intelecto americano
Turner (1893) alerta nos ainda que essa
deve à fronteira.
democracia, nascida da terra livre, forte no egoísmo e individualismo, intolerante em relação à experiência administrativa e a educação, e levando a liberdade individual além de seus limites apropriados, tem também seus perigos tanto quanto seus benefícios. Segundo Turner, o individualismo
na
América
complacência
em
relação
permitiu aos
uma
assuntos
governamentais, tornando possível o sistema de espoliação e todos os males manifestos que
O individualismo também pode ser percebido como diretamente relacionado à democracia nos EUA. Em A Democracia na América Tocqueville atribuirá às leis e aos hábitos dos norte americanos, portanto à história e ao caráter e espirito dos colonizadores, o fator decisivo da democracia e da liberdade nos Estados Unidos. O individualismo puritano foi capaz de preservar e desenvolver formas de sociabilidade e instituições políticas e
G N A R U S | 58 democráticas e, verdadeiramente, republicanas.
Conforme indicam Adorno, Sartre e outros, o
Tendo como ponto chave a descentralização.
intolerante, preconceituoso ou racista, inventa o
Segundo Florenzano, Tocqueville também soube
objeto de sua intolerância, ódio, agressão, podendo
captar, com genialidade, as sequelas e perigos da
ser
democracia: o individualismo, a massificação e a
surpreendente. Sem perder que aquele que
alienação (embora segundo Florenzano, ele não
marginalizado ou estigmatizado desenvolve uma
usasse esta última palavra). (FLORENZANO, 1999).
consciência social singularmente sensível, fina,
O cerne da filosofia de governo americana e da filosofia de governo inglesa é o indivíduo. O indivíduo é a fonte de governo. Tem seus direitos e
negro,
árabe,
judeu;
por
diferente,
arguta, incomoda; traduzindo se geralmente em mais lucidez, maior discernimento, o que é também diferente e surpreendente. (IANNI, 2004, p. 24).
liberdades na sociedade: o direito de cultuar sua fé,
O individualismo como ideologia se vê ameaçado
de falar e escrever, de tocar seu próprio negócio, de
nas primeiras décadas do século XX com o ganho de
escolher seu próprio ofício, de casar-se com quem
força no cenário internacional de ideologias
quiser, de prover sua família como desejar, sem ser
oposta. Os autores Nevins e Commager (1986, p.
perturbado pelo Estado. O objetivo subsequente de
467) chamam a atenção para o surgimento no
seu governo, de sua sociedade e de sua economia
período entre guerras de uma ameaça não
permanece sendo a criação e proteção de homens
simplesmente militar aos EUA. Os Estados Unidos
livres. (NEVINS; COMMAGER, 1986, p. 468).
haviam
Outro ponto em que se percebe a influência do individualismo é na determinação da forma em que se estabelecem as relações sociais e até mesmo raciais. Segundo Octavio Ianni, a personalidade, a sensibilidade
e
a
subjetividade
do
racista
enfrentado
ameaças
militares
anteriormente e saíram vencedores. Não haviam conhecido ainda a derrota ou a desmoralização. Não podiam acreditar que surgira uma nova filosofia que repudiava e combatia seu modo de vida e seus valores herdados.
desempenha um papel importante na trama das
Os americanos tornaram-se apreensivos quando a
relações e das formas de sociabilidade. Na fábrica
natureza do totalitarismo tornou-se clara. A
da
a
filosofia totalitarista subordinava o indivíduo ao
individualização e o individualismo, a competição e
Estado ou à raça. Nos sistemas fascista e nazista o
o êxito pessoal, o status socioeconômico e a
indivíduo tinha uma importância relativamente
classificação social, formam-se personalidades
pequena, sendo imperceptíveis suas liberdades,
democráticas e autoritárias, tanto quanto estóicas e
seus direitos, suas propriedades, suas ambições e
apáticas, egoístas e altruístas, neuróticas e
esperanças, suas relações sociais e familiares.
psicóticas. Sendo que esses traços, ou estruturas de
Portanto, contra a filosofia totalitarista, como a da
personalidade, às vezes exercem uma função
Itália, a da Alemanha e a do Japão, opôs-se outra
decisiva no modo pelo qual o indivíduo em causa se
diretamente diferente. (NEVINS; COMMAGER,
relaciona com o “outro” ou os “outros”, tomados
1986).
como
sociedade
burguesa,
estranhos,
abrangendo
exóticos,
diferentes,
irreconhecíveis, ameaças. (IANNI, 2004, p. 24, grifos do autor).
O individualismo também pode ser percebido como um aspecto importante que está relacionado com o fracasso em se constituir um partido
G N A R U S | 59 socialista forte nos Estados Unidos. Lipset (2004) ao
internacionais sobre as crenças acerca das relações
estudar
norte-americano
de classe, igualdade e desigualdade, o papel do
constata o fracasso na tentativa de se criar um
Estado, o individualismo, o comunitarismo, etc.
partido socialista importante nos EUA. E atribui isso
(LIPSET, 2004).
o
excepcionalismo
a uma ideologia compartilhada pelos americanos, um espécime de americanismo, e dentre essas ideologias se encontra, por exemplo, a crença na liberdade, igualitarismo, participação popular do povo nos assuntos públicos, o laissez-faire com um mínimo
de
intervenção
do
Estado
e
o
individualismo.
individualismo como um elemento importante e afirma a sua insistência juntamente com um ante estatismo como sistema de valores, derivado do passado sectário protestante do país e de seus revolucionários,
que
implicam
uma
oposição a todo Estado coletivista ou benfeitor forte. (LIPSET, 2004, p. 113)
possui um papel importante no sentido de que tem sendo
sectária
e
fomentando
o
individualismo e o ante estatismo. A tradição política norte americana tem sido reforçada pelo compromisso religioso da maioria com as seitas “não conformistas”, e organizadas em grande parte como congregações, as quais sublinham uma relação pessoal e individualista com Deus, sem intervenção de igrejas arranjadas hierarquicamente e apoiadas pelo Estado. (LIPSET, 2004, p. 126).
igualitária,
tem contribuído com a criação de uma cultura individualista. (MOBERG, 1992, apud LIPSET, 2004 p. 146).
valores estadunidenses fomentam o livre mercado e o individualismo competitivo, e esta orientação não é congruente com a consciência de classes, o apoio aos partidos socialista ou social democrata, ou com um poderoso movimento sindicalista. (LIPSET, 2004, p. 150). Caminhando agora no sentido de algumas
antielitista,
individualista
sociedade americana é individualista. A própria constituição americana possui uma parte que reflete os direitos políticos e outra parte que reflete os direitos individuais. Tem se uma filosofia bastante liberal e individualista na constituição. Existe nos EUA uma visão individualista e ante a extensão do poder de intervenção do Estado. O direito de portar arma é um exemplo de aspecto que atinge os direitos civis, e mostra, portanto, a prioridade nos direitos individuais em contraponto aos direitos coletivos. A prioridade recai sobre a
O feito de que a tradição nacional estadunidense seja
com as tradições e a estrutura social dos EUA, que
considerações finais, vale destacar que; A lógica da
Segundo Lipset, a religião nos Estados Unidos seguido
tanto das empresas como das forças de trabalho
Lipset assinala ainda, que a estrutura social e os
Com relação aos fatores sociais o autor aponta o
valores
David Moberg relaciona os excepcionalismos
e
classicamente liberal tem frustrado os esforços por mobilizar os trabalhadores e outros, incluindo os sindicatos, em nomes de objetivos socialistas e coletivistas. Tais valores americanos são conjuntos profundos de sentimentos, muito mais estáveis que as atitudes, o que reflete nas diferenças
força do individualismo em relação ao estatismo. O individualismo nos EUA é à base da sociedade. É disseminado o apego à conquista da ascensão social por meio do sucesso pessoal e do esforço próprio. Essa sociedade individualista e competitiva prega o sucesso individual e deposita muito valor aos bens materiais. Nesse sentido há uma
G N A R U S | 60 defasagem entre a realidade e a expectativa do indivíduo. O que em algumas ocasiões faz com que o sujeito busque ascensão social sem se importar com os meios para se chegar a isso. Eles se veem como igualitários, tendo como mais importante à disposição do indivíduo. Portanto, o individualismo, como foi mostrado ao longo do texto, se configura como um dos aspectos cruciais para se entender a sociedade capitalista americana, sua cultura e, sobretudo, as suas formas e mecanismos de atuação ao longo da história. Lucas Schuab Vieira é graduado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP/Assis), mestrando em História e Sociedade pelo programa de pós-graduação em História da mesma universidade e desenvolve pesquisa sob o título “Diálogos transoceânicos: Portugal e Brasil na revista A Illustração Luso-brazileira (1856, 1858, 1859)”, sob orientação do professor Dr. José Carlos Barreiro. Bolsista FAPESP. Email: lucasschuab21@hotmail.com.
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G N A R U S | 61
Artigo
MÚSICA: HISTÓRIA E CULTURA Por Marília Luana Pinheiro de Paiva
Resumo: Este artigo busca discutir o objeto música enquanto uma produção artística e cultural. Compreende a sua historicidade e seus aspectos técnicos, mas, sobretudo trata a música como um elemento social e histórico. A música é técnica é linguagem, cenário performance. A música permeia os espaços da sociedade e subjetividade, marca a vida das pessoas. Ela está presente nos momentos pessoais, nas festas religiosas e profanas. Nesse sentido o presente artigo procura pontuar essas questões subjetivas e históricas compreendendo a música no tempo e espaço no Brasil. A música é uma filha do seu tempo, traz consigo marcas culturais e também integra o cenário histórico. Palavras-chave: Música, História e subjetividade. Abstract: This paper discusses the object music as an artistic and cultural production. It comprises its historicity and its technical aspects, but above all treats the music as a social and historical element. Music is art is language, setting performance. Music permeates the spaces of society and subjectivity, marks the lives of people. It is present in personal moments, religious and secular parties. In this sense the present article tries to score these subjective and historical issues including the music in time and space in Brazil. Music is a child of its time, it brings cultural brands and also integrates the historical setting. Keywords: Music, History and subjectivity
A
música é formada por um conjunto de
Schafer chama a atenção para a textura de uma
materiais que se diferencia de ruídos,
composição
musical
que
é
definida
pelos
como os sons incidentes, como a buzina
instrumentos que estão sendo tocados em certo
de um carro, por exemplo. “Schopenhauer disse
momento,
que a sensibilidade do homem para a música varia
importância de observar os sons do nosso dia-a-dia
inversamente de acordo com a quantidade de ruído
(quase tudo tem um som). É importante que
com a qual é capaz de conviver”. O ruído seria
sejamos capazes de identificar aquilo que o autor
aquilo que não tem a intenção de ser música,
define como ruído, sendo qualquer som que
barulhos que interferem naquilo que queremos
interfira naquilo que queremos ouvir em nossa
ouvir. (SCHAFER, 1992, p. 52).
volta. O autor comenta: “Para o homem sensível aos
assim
como
também
levanta a
sons, o mundo está repleto de ruídos” (Schafer,
G N A R U S | 62 1992, p. 69). Schaufer discorre que silêncio é a
configuração única, na qual há mensagens e letras
ausência de sons e que tem um papel importante na
tão expressivas como vagas. Estas despertam em
música, seguido por espaços de tempo em suas
cada momento percepções e reações diferentes,
composições, assim como em dias atuais o silêncio
bem como interpretações distintas. Excitam
é tão apreciado devido a grande poluição sonora
diversas
emergente. O timbre é peculiar do objeto, é a sua
correspondem a aspectos muitas vezes políticos,
qualidade, que o identifica, e a partir do timbre
sociais e históricos.
conseguimos distinguir um instrumento de outro. A melodia é o fluxo do som, tendo diferentes frequências, podendo haver qualquer combinação, é visível e representada por gráficos e desenhos, ou seja, uma linguagem. A amplitude, segundo o autor, se refere ao som e a sua proporção. Essa variante pode ser usada em música como um recurso expressivo. A textura produzida pela conversação de melodias é designada como contraponto. As melodias contrários,
possuem já
o
movimentos
oblíquos
contraponto
pode
e ser
manifestações
e
imaginação,
que
“Então por que se arraigou a ideia de que há algo de peculiarmente inexprimível na música? A explicação pode não estar na música, mas em nós mesmos. A partir de meados do século XIX, as plateias se acostumaram a adotar a música como uma espécie de religião secular ou política espiritual, investindo-a com mensagens tão urgentes quantas vagas. As sinfonias de Beethoven prometem liberdade política e pessoal; as óperas de Wagner inflamam a imaginação de poetas e demagogos; os balés de Stravinsky liberam energias primais; os Beatles incitam uma revolta contra antigos costumes sociais. Em qualquer momento da história, existem alguns compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época.” (ROSS, 2011, p. 12)
compreendido como elementos opostos, mas que se articulam e não retiram a pureza do discurso. Já
A música, além se seus acordes, melodias, ritmos,
o ritmo é dividido em regulares e irregulares, que se
harmonia, também é formada em sua maioria por
perduram durante o decorrer do tempo. O autor
letras, palavras cantadas formando um discurso
exemplifica como o movimento dos dedos que
articulado. As letras das canções expressam ideias,
aproxima tensões rítmicas; o estalar os dedos e a
comportamentos e representações, documentando
associação a movimentos corporais. (SCHAUFER,
a seu modo as questões vividas de seu tempo
1992 p. 74)
histórico. Ross (2010, p. 19) ressalta:
Solano Ribeiro (2003, p. 18) ressalta que a música é uma obra de arte, dotada de códigos e símbolos, com a intenção de comunicar, podendo alterar o comportamento e até a visão de mundo daquele de seus receptores. Enquanto Bennett (1986, p.12),
“A música pode ser grande e séria, mas grandeza e seriedade não são suas características definidoras. Ela também pode ser estúpida, vulgar e insana. Os compositores são artistas, não colunistas de etiqueta; eles têm o direito de expressar qualquer emoção, qualquer estado mental.”
outro crítico da música, define que a música é formada por melodia, harmonia, ritmo, timbre, tessitura e letra.
As músicas possuem um cunho subjetivo, e que está ligado com aquilo que o compositor cria, obras
Ross tem um posicionamento diferente dos
com varias tradições de execução. “[...] Ela abrange
demais críticos abordados, pois aponta que há
o alto, o baixo, o imperial, o clandestino, a dança, a
muito de subjetivo nas músicas. Cada música
oração, o silêncio, o ruído.” (ROSS, 2010, p. 21). A
assume um papel e explica-se com uma
G N A R U S | 63 música é uma arte de elementos e gestos e imensas
temporalidade característica da música é que faz configurar o sentir. O sentir é tempo e não espaço. “Uma pintura não se realiza senão no movimento, na temporalidade que a anima; um poema é tempo em sua emotividade (ou na sua estrutura). A música é apenas tempo: por isso, o mais alto nível de uma emotividade que se faz razão tanto na medida em que é absorvida, memorizada, ou radicalizada, como no estágio em que sugere um phatos que pode ser determinada historicamente.” (WISNIK, 2004, p.16)
Wisnik define música, segundo a passagem, como a forma mais elevada de expressão de um sentimento passional e racional. Outro elemento que se entra na música é o ethos. O pathos musical pode conduzir o ethos, logo o pathos também é o
ethos. Nesse sentido cultural, Geertz conceitua o dimensões.
que venha a ser o ethos: o tom, caráter e qualidade
Wisnik (2004, p.15) e Ross (2011, p. 12) levantam
de sua vida, modo de ser, disposições morais e
a subjetividade como traço presente nas músicas,
estéticas, que está ligado as concepções que temos
assim como a sensibilidade que suscita em cada
da vida, ligado à subjetividade de cada indivíduo e
uma delas. O “sentir” é fortemente marcado nas
à cultura de cada sociedade. (GEERTZ, 2008, p. 66)
músicas, como em nenhuma outra arte, afirma
Para Richard Wagner, ou para os nacionalistas
Wisnik, sendo ela envolvente. Esse autor também
brasileiros isso foi fundamental. Confirma a
compartilha da ideia de que a música está atrelada
possibilidade de uma espacialização da música,
a concepções de cada época da histórica, o que
tornando-a co-participoante, da vida, do real na
Ross (2010, p. 19) também salienta em seu conceito
sua espacialidade, na sua temporalidade histórica e
de música, pois destaca que compositores e
sobrepunha a todo o resto a questão do “ethos”.
músicos transmitem os elementos e características
Wisnik aponta que a música nacionalista é mais
de cada época, com seus traços e segmentos.
“encarnada” considerando alguns nomes principais
Wisnik ainda aponta a racionalidade existente no Wolfgang Amadeus Mozart
desse cenário nacionalista como: Carlos Gomes,
rococó, na música de Mozart. Bethoven afirmou
musicalidade que transmite um ethos próprio, no
certa vez que a música dizia mais que a filosofia,
caso um ethos nacional específico devido à
pois é certo que o pathos1 de uma época está
localização em um tempo e espaço de um país.
presente mais na música do que em quaisquer
(WISNIK, 2004, p. 16)
Nepomuceno e Villa-Lobos fazem parte de uma
outras manifestações artísticas e intelectuais. A
Pathos para Aristóteles significa paixão, aquilo que move e impulsiona o homem para a ação (práxis). Nas dimensões das paixões estão presente sensações acompanhadas de dor ou de 1
prazer. Pode ser considerada como mecanismo que guia o agir humano, estando relacionado com a moral e a virtude. (ALMEIDA, 2007, p. 32).
G N A R U S | 64 A música está associada à cultura, ou pelos valores que transmite, ou por ser passada de gerações a gerações, pelo seu próprio texto, sua origem, e dentre tantos outros elementos que está presente em cada canção. A cultura, como aponta Geertz, é vasta e se refere a uma série de significados transmitidos historicamente, repassados através de símbolos, sendo um padrão de concepções construídas no tempo, que vão sendo incorporadas, herdadas e expressadas de forma simbólica na comunicação. O significado, o símbolo e a comunicação são elementos pensados de forma indissociáveis no campo cultural. (GEERTZ, 2008, p. 66).
investigando as expressões indentitárias sobre a geração dos anos 80 e seus temas correlatos. Vinci de Moraes qualifica a música como um objeto cultural produzido e partilhado por diversos grupos e culturas; ela é um elemento presente no contexto social, repleta de suas contradições e tensões, mediante a qual os agentes sociais, em suas relações coletivas e individuais, reconstroem através dos sons segmentos da sua realidade social e cultural. (MORAES, 1997, p. 212) A música, segundo Napolitano, não é apenas boa para se ouvir, mas boa para se pensar. Por exemplo, o que nós chamamos de música popular, e que particularmente chamamos de canção, é um
Vinci de Moraes (1997, p. 211) aponta: “[...] Porque a música, além do seu estado de imateridade, atinge os sentidos do receptor, estando, portanto, fundamentalmente no universo da sensibilidade. Por se tratar de um material marcado por objetivos essencialmente estéticos e artísticos, destinado à fruição pessoal e/coletiva, a canção também assume inevitavelmente a singularidade e características especiais próprias do autor e do seu universo cultural.”
Os compositores, assim como todos os artistas, são filhos do seu próprio tempo e espaço; as músicas (letra e música) são assim frutos da história e dos próprios hábitos e ideologias que permeiam a sociedade e a cultura em um determinado período histórico. De um ponto de vista político, a música pode ter uma característica tanto engajada como alienada e sem nenhum sentido, como pode ser problematizadora
e
politizada,
transmitindo
anseios e insatisfações de determinados grupos, classes ou segmentos sociais. Da mesma forma há diferentes estilos de músicas como, por exemplo, que vai deste o samba ao rock. É neste último estilo que pretendo me ater a uma série de músicas de rock brasileiro com letras de cunho político e social,
produto histórico do século XX. (NAPOLITANO, 2002, p.8) Já Tiago de Oliveira Pinto (2001, p. 223) define que “Música é manifestação de crenças, de identidades, é universal quanto à sua existência e importância em qualquer que seja a sociedade. Ao mesmo tempo é singular e de difícil tradução quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural.”
A música tem a função de comunicar, através da sua linguagem, suas letras e seus códigos. O que faz dela grande propagadora de culturas, crenças e um conjunto de ideias presente no seu tempo, afirmando-se como produto identitário de um grupo ou segmento social, de uma classe, de um povo, expressando valores e fragmentos históricos da realidade vivida por produtores e receptores. Em suma, a música pode ser considerada uma forma de comunicação, dotada de símbolos e signos atrelados à cultura, ao tempo e ao espaço, à história de uma coletividade. Em outros termos, as músicas são fontes de representações culturais do seu tempo, como também um meio de interação social e de comunicação entre indivíduos e grupos. Conforme Oliveira Pinto (2001, p. 223),
G N A R U S | 65 “Na realidade música raras vezes apenas é uma organização sonora no decorrer de limitado espaço de tempo. É som e movimento num sentido lato (seja este ligado à produção musical ou então à dança) e está quase sempre com estreita conexão com outras formas de cultura expressiva.”
considerada como uma forma de comportamento, que não se restringe apenas a eventos musicais, teatrais, mas que perduram em muitos domínios da vida social. Paul
A música permeia os espaços da sociedade e marca a vida das pessoas, de forma subjetiva; ela está presente nos momentos pessoais, nas festas religiosas e profanas. Também possui valor comercial, um produto popularmente acessível através das mídias. Essas características fazem dela um objeto pertinente de investigação e estudo.
Zumthor
(2007)
argumenta
que
a
performance está ligada a valores. Exemplifica com a sua própria experiência na infância ao relatar da época de 1930: nas ruas de Paris, era comum estar sempre cercado por grandes cantores de rua. Zumthor era espectador e ouvinte das canções de rua; mas a pergunta que o inquietava era: o que percebíamos dessas canções? Além da melodia, havia um texto, o espetáculo e o homem este que
Há um campo de saber interdisciplinar que se
vendia as canções ao final passando o seu chapéu.
debruça sobre o estudo do som e da sonoridade que
Também havia o grupo: a plateia que comprava,
The
assim como também havia o cenário em volta, o dia
Anthropology of Music de 1964, o antropólogo
e as nuvens, tudo isso fazia parte da canção. Era a
Alan P. Merrian formulou uma “teoria da
canção. (ZUMTHOR, 2007, p. 27)
se
chama
etnomusicologia.
No
livro
etnomusicologia”, na qual ele define música como um instrumento de interação social feita por especialistas, os produtores, e destinada a outras pessoas,
os
receptores.
A
música
é
um
comportamento compreendido em que sons são organizados, permitindo uma maneira simbólica de comunicação entre o individual e o coletivo. (Apud OLIVEIRA PINTO, 2001, 224) Portanto, a música está inserida em uma cultura, expressando a cultura de grupos sociais, suas peculiaridades e valores transmitidos entre as gerações. Já o estudo da performance musical compreende a música como um processo e não como um produto. Um processo que permeia as estruturas para além dos aspectos
O que constituí a canção, além de todos os seus aspectos em torno, é também o cenário e a forma, não sendo fixos e nem estáveis. Para estes pesquisadores da perfomance, o objeto de estudo é uma manifestação cultural lúdica, seja a canção, o conto, a dança, o rito. Para estes pesquisadores a performance é o alvo central no estudo da comunicação oral. Performance implica em uma presença e uma conduta, é uma ordem de valores presentes em um corpo vivo. Zumthor (2007, p. 37) A performance refere se a realização de um material tradicional conhecido como tal, traduzo performance é reconhecimento. A performance realiza, concretiza, faz passar algo que conheço, da virtualidade a atualidade.
sonoros e que possui um significado social; referese a ações musicais, conjunção e função dentro de uma comunidade, com sentido processual de um acontecimento cultural. Segundo Oliveira Pinto (2001, p. 228), citando Schechner, a performance envolve aspectos étnicos e interculturais, históricas e históricas, estéticas e rituais, políticas e sociais. É
É na performance que também encontramos a ritualização do sagrado; a análise dos rituais contribui para a construção de uma etnografia da performance, estruturada no tempo e espaço da cultura. (PINTO, 2001, p. 230)
G N A R U S | 66 Tendo em vista que a música é um produto
ser lembrada na civilização homérica como
cultural expressivo de uma identidade, dotado
memória e poesia cantada, com a construção de um
muitas vezes de um discurso de cunho ideológico,
saber
ela se caracteriza como símbolo e representação
possíveis em várias culturas de tradições orais.
presentes na sociedade. É o caso das culturas
(ASSIS et. al., 2009, p. 8)
nacionais. Segundo o crítico cultural Stuart Hall, “As culturas nacionais são compostas não apenas por instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso, um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos.“ (HALL, 2011, p. 50).
mito-poético.
Encontram-se
analogias
Na Europa, as estruturas das relações com a sociedade medieval e suas formas históricas de estrutura do feudalismo e as formas de se relacionar, com a passagem entrando em um novo quadro de vida urbana sobre o regime de relações da produção pré-capitalista, que eliminava o interesse do coletivo em prol de um interesse
No século XIX se constituiu a musicologia como
particular, assim se manifestaria também no campo
disciplina acadêmica. O estudo da música
cultural. Os cantos e danças do mundo rural se
atualmente compreende várias ciências, algumas
configuram a constituir as manifestações coletivas,
ligadas ao fazer artístico musical e outras ao modo
enquanto que a musica urbana se constituía em
específico de se relacionar com o objeto musical. A
expressar a canção solo, apenas o individual,
música “não é matéria dócil, isto é, não se deixa
inserido em um mundo burguês (TINHORÃO, 2005,
manejar facilmente para se encaixar em objetivos e
p.18)
intenções pré-determinadas”. A música não é totalmente transparente. Ainda autores afirmam:
A música é uma manifestação onipresente na cultura brasileira. José Ramos Tinhorão trata da
“A música se transformou, não é exatamente um deserto à espera de conquistadores que já trazem consigo suas próprias verdades; pelo contrário, é o terreno onde vicejam certos mistérios da condição humana, exigindo daquele que chega o cuidado e a gravidade de quem deve colocar a si mesmo em questão.” (ASSIS, et al. 2009, p.8)
música popular brasileira inserida como uma luta
Ao visualizar a história e a música no mesmo
também a cultura, e a substituição do campo pela
patamar, entendemos que a história está atrelada a
cidade, assim até os mesmos instrumentos como no
uma dinâmica temporal, relacionada com o homem
campo a viola, na cidade seria substituída por novos
e as suas ações no tempo. A música é vista como um
instrumentos que configurava uma nova fase da
fenômeno universal, como a linguagem, estando
música popular. (TINHORÃO, 2005, p.27)
de classes e que a música popular urbana se constitui em um estado de dominação, o que está ligado ao desenvolvimento no Brasil. A urbanização crescia e da mesma medida se tornou individual
presente em todas as culturas e em todas as épocas.
O advento do rádio, veículo de difusão e
Elas estão compartilhadas com a mesma afinidade
transmissão sonora das músicas, nos trouxe a
em relação ao tempo. E poderíamos dizer que
percepção e ampliação da sensibilidade e da
música é história no sentido da reprodução da
imaginação. Diferentemente da apresentação
relação com o homem; ela é temporal na mesma
apenas da imagem, a música, por si só, nos permite
medida em que é um fenômeno criado pelo
uma interação com a possibilidade de imaginação e
homem. A relação da história com a música pode
interpretação, assim como o livro que provoca uma
G N A R U S | 67 interpretação e uma divagação a cada leitor. Até
Brasil,
quando a história de um livro é transformada em um
contextualizada no final do século XIX e começo do
filme, é corriqueiro ouvir relatos que o livro é
XX, relacionada ao crescimento da urbanização e
melhor, pois o livro permite que o leitor vá além do
das classes médias e populares. A emergência de
que lhe é dado e seja criativo em sua percepção
uma nova estrutura capitalista ocasionou o
(RIBEIRO, 2002, p. 22) E assim também a música.
interesse por certo tipo de música, ligada a este
Os povos africanos contribuíram na música com o gesto, aspecto básico da sua música e dança; é através da expressão corporal que constituem a sua cultura. Foi no campo do trabalho escravo que a música e o ritmo se fortaleceram, à medida que era marcado pela busca pela “amenização” do sofrimento com o trabalho escravo. Musicalmente, a contribuição do negro vem com o gesto, que muitas vezes se funde com o ritmo. (WISNIK, 2004, p. 45)
a
origem
da música
popular
está
meio cultural urbano. A música popular se fortaleceu por meio de uma peça instrumental ou cantada, a partir de partitura e do fonograma. Uma função social significativa que a música sempre desempenhou é a dança, reuniões coletivas desde as danças de salões, aos famosos arrasta-pés, passando pelas tradições familiares e casas noturnas, a música popular foi alimentada pelas danças de salão. Napolitano acredita que para se pensar a música
Nas cartas em que alguns estrangeiros se referem às danças dos escravos do século passado a tônica é sempre a mesma “a incidência do gesto”, ou antes, a estranheza do gesto insólito advindo do próprio sistema de produção do escravo. A música “civilizada” tinha naturalmente de se chocar com uma manifestação que de um certo modo era denunciadora: representava na forma maneirada da música do branco a realidade do trabalho escravo.(WISNISK, 2004, p. 45)
Na música assim como na dança dos escravos, o gesto conotava de forma mais transparente a sexualidade em torno de cada ritmo, o que diferenciava e chocava os brancos a priori; suas manifestações
eram
mais
expressivas
corporalmente, enquanto na dança dos brancos era marcada pela sublimação. No século XIX, com o fim da escravidão e com a libertação dos escravos, ampliaram-se as possibilidades de manifestações e abriram-se os salões para a música de origem negra.
popular, devido as suas ramificações, é preciso pensá-la como um todo, não de maneira isolada, separando o erudito e o popular. É preciso não cair na
hierarquização
e
nem
na
dicotomia,
compreendendo que a música popular possui suas especificidades e suas tensões, e precisa ser analisada dentro do seu âmbito musical como um ramo da música ativa, viva e não derivada, conforme a sua realidade histórica e social. (NAPOLITANO, 2002, p. 9) O mesmo autor ainda salienta que a produção musical brasileira do século XX difundiu várias novas sociabilidades, vindas da urbanização,
da
modernização,
expressando
valores nacionalistas no Brasil, assim como conflitos sociais. Portanto, produzindo e disseminando sentido ideológico e estético em suas canções. As expressões são visíveis através de suas letras significativas, as quais muitas trazem uma série de valores,
discursos
e
representações.
Sendo
A música popular urbana reúne uma vasta gama
produtos de uma situação histórica, ela assume um
de elementos musicais, poéticos e performáticos da
papel não apenas para ouvir, mas também para
música erudita e folclórica (dança camponesa,
refletir. Conforme aponta Napolitano (2002, p. 5).
narrativas orais, música religiosa, entre outras). No
A música é boa para pensar.
G N A R U S | 68 “[...] a música tem sido, ao menos em boa parte do século XX, a tradutora dos nossos dilemas nacionais e veículo de nossas utopias sociais. Para completar, ela conseguiu ao menos nos últimos quarenta anos, atingir um grau de reconhecimento cultural que encontra poucos paralelos no mundo ocidental. Portanto, arrisco dizer que o Brasil, sem dúvida uma das grandes usinas sonoras do planeta, é um lugar privilegiado não apenas para ouvir música, mas também para pensar a música.” (NAPOLITANO, 2002, p. 5)
no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Assim como a Casa Edison, houve outras empresas fonográficas como a Casa Faulhaber, a Brazil-Grand Record, a Savério Leonetti, a Popular, a Phoenix e as americanas Victor e Columbia. Porém, nenhuma delas conseguiu se fortalecer no mercado: a Casa Edison já tinha conquistado o espaço. Entre 1902, data da criação da empresa fonográfica, até 1927
A introdução do disco no Brasil se inicia no começo do século XX, mais precisamente no ano de 1902; Os jornais da época vincularam a notícia que foi considerada a maior novidade da época. Os jornais Gazeta de Notícias, o Jornal do Brasil e o
foram lançados cerca de 7 mil discos, grande parte com os selos Odeon. Acervo este que se mantém e se caracteriza como um valoroso documento para se estudar a produção musical da época. (SEVERIANO, 2013, p.59)
Correio da Manhã anunciavam a chegada na Casa
O artigo sonoro industrial comercial, ou seja, a
Edison, de chapas para gramofones e zonophones.
música popular brasileira, passou a acompanhar o
Essas chapas somavam 228 e era o primeiro
Brasil desde o começo do século XX, juntamente
catálogo de discos brasileiros, gravados na própria
com o lançamento de produtos musicais nacionais
Casa Edison e prensados em Berlim pela
em concorrência com os produtos internacionais e
Internacional Zonophone Co. Os discos registravam
até o final do século XIX a única forma que se
as modinhas, lundus, tangos, valsas, em grande
comercializava a música popular era através da
parte interpretadas na voz dos cantores chamados
venda de partituras para piano, no qual
Bahiano e Cadete. Entre as músicas estavam
compreendia uma serie de interesses limitados aos
grandes sucessos da época como “As laranjas da
do autor, aos editores e a fabricantes de
Sabina”, “Perdão, Emília”, “O gondoleiro do amor”
instrumentos musicais. Porém, com o aparecimento
e o lundu “ Isto é bom”. (SEVERIANO, 2013, p. 58)
das gravações primeiramente em cilindros, depois
Assim se criava a base da nossa indústria
em forma de discos, a produção e o acesso à música
fonográfica, na cidade do Rio de Janeiro, seis anos
popular se ampliaram, tanto no meio artístico
após a entrada dos discos no Brasil. Frederico
quanto
Figner, proprietário da Casa Edison, foi o primeiro a
profissionalização
investir nesse meio, das vendas das gravações da
participação de instrumentos como orquestras,
música brasileira. (SEVERIANO, 2013, p.59)
bandas e conjuntos, houve o aparecimento das
Esse investimento foi um pulo certeiro, pois a sua empresa dominou durante 30 anos o mercado
no
industrial. dos
Assim,
cantores,
com
a
uma maior
fábricas sonoras. Com a reprodução mecânica da música,
fonográfico no Brasil. Mais tarde Figner substituiu
aumentaram
as marcas de seus discos de Zon-O-Phone pela
expandiram-se as condições de reprodução
marca Odeon em 1904 (ano em que foi criada na
material da arte; o cinema mudo ganhou o som, a
Alemanha). A Casa Edison fortaleceu a sua
rádio possibilitou ouvir as musicas dos discos à
hegemonia a partir de 1913. Sua fábrica se situava
distância, a televisão juntou o som e a imagem, e
as
pesquisas
tecnológicas,
G N A R U S | 69 gravação em fitas e em videotapes. A expansão da
tango argentino e do bolero mexicano que são de
indústria
origem europeias.
comercial
e
novas
condições de
possibilidades de expansão da expressão musical contribuiu com a música como forma de produto, pois o campo artístico da música acabou-se por reger-se a padrões estéticos ditados pelo mercado, ou seja, a música popular passou em sua produção a reger-se pelas leis do mercado (TINHORÃO, 2013, p. 260).
O campo musical popular desenvolvido nas Américas apontou para peculiaridades nacionais e regionais; constituiu formas musicais fundamentais para a expressão cultural das nacionalidades, em um processo de afirmação e construção de uma identidade e de suas bases étnicas. O século XX foi um momento histórico que estava em busca de uma
Fred Figner, produtor musical de grande renome
afirmação cultural e politica e da articulação da
do século XX recrutou uma serie de artistas para
sociedade de massa. Como já afirmado, a
gravações de discos, vários deles já vinham fazendo
concretização da música popular expressou novas
gravações em cilindros. Com a indústria comercial
sociabilidades e ganhou espaço devido aos
fonográfica criava-se uma nova classe: os cantores
processos de urbanização e industrialização.
de discos. Ou seja, nesse sentido a produção
Valores nacionalistas se foram reafirmados;
musical constituía a partir dos padrões das
surgiram novos espaços demográficos, assim como
indústrias e se vigorava um novo segmento da
novos conflitos sociais. A música popular foi alvo de
sociedade, o disco. (SEVERIANO, 2013, p. 60)
discussões, apropriações e apreciações, e atraía
Apesar da crítica negativa por parte de um grupo de críticos eruditos contra a música popular, cantada ou instrumental, esta ganhou o gosto das novas camadas urbanas, nas classes médias, nas classes
trabalhadoras
que
cresciam
significativamente com a expansão industrial do século. Porém, nas Américas incorporou-se estilos e formas musicais dos europeus, o ritmo, a sonoridade consonâncias
homofônica
das
harmônicas
cordas,
as
compuseram
os
compassos da experiência da musica popular. Mas
músicos bons e talentosos que se consolidou nas décadas 20 e 30 a “musica popular”. Tinhorão (2013) converge com Napolitano (2002) quanto às novas sociabilidades, urbanização
e fatores
tecnológicos e comerciais que possibilitaram a disseminação, repercussão e fortalecimento da música popular. Ambos apontam a importância da indústria fonográfica, a expansão da radiofonia comercial (no Brasil, 1931-1933), assim como fazem referência ao cinema sonoro (1928-1933). (NAPOLITANO, 2002, p.13)
nas classes populares não se firmava apenas um
Os primeiros cantores a gravar pela gravadora
padrão étnico de origem europeia; foram
Edison foram Manoel Pedro dos Santos, o Bahiano,
desenvolvidas e constituídas novas formas musicais
Manoel Evêncio da Costa Moreira e ainda Eduardo
de origem indígenas e negra, formadas a partir de
das Neves, o artista negro de maior sucesso do
tradições não europeias. O jazz norte americano, o
início do século XX. Foi este último que se destacou
son e a rumba cubana, o samba brasileiro, a cuenca
por
chilena
personagens da vida brasileira.
são
produtos
afro-americanos
que
absorveram técnicas europeias, diferentemente do
incorporar
em
suas
canções
fatos
e
Nesse contexto histórico do século XX, um grande evento modificou a estrutura cultural no Brasil, a
G N A R U S | 70 Semana da Arte Moderna, em 1922. A semana da
platônica, a proposta de Villa-Lobos era a difusão
arte moderna foi compreendida como uma
dos ideais nacionalistas por meio pela educação
manifestação coletiva pública, que pregava um
musical, que contribuía para a formação dos
espírito novo e moderno em oposição à cultura
sujeitos em sua composição cívica e moral.
conservadora e elitista. Foi realizado no Teatro
(AMATO, 2007, p.213)
Municipal de São Paulo, com a participação de vários artistas de diferentes áreas. Este evento foi
Em relação à produção cultural, o nacionalismo brasileiro buscou a sua articulação espelhando-se nos
países
desenvolvidos;
então
podemos
compreender que foi mais um processo de adaptação e equiparação no cenário cultural. Villa-Lobos e Magdalena Tagliaferro foram grandes
ícones
da
música
brasileira
que
contribuíram para a disseminação da cultura nacional no cenário internacional, ou seja, a internacionalização da música brasileira. Por meio de apresentações e organizações na Europa, onde tiveram
contato
com
grandes
músicos,
apresentaram seus trabalhos e assim ganharam experiências
que
contribuíram
para
o
enriquecimento da cultura do Brasil. No contexto pós 1930, Getúlio Vargas estava no um resultado de discussões já vindas desde 1910, e
poder. O fortalecimento do nacionalismo e do
que defendiam novas articulações da arte em torno
desenvolvimento econômico se consolidava cada
de novas abordagens e olhares.
vez mais, em razão de uma industrialização e do
O contexto dos anos XX foi marcado por uma onda nacionalista; destacou-se a músicas de Heitor Villa-Lobos, as Bachianas Brasileiras. A efetivação do movimento nacionalista se deu por volta de 1928, quando Mario de Andrade propôs um projeto nacional-erudito-popular considerando aspectos principais como o nacionalismo e contrastes folclóricos, sendo esses elementos indispensáveis
desenvolvimento econômico e cultural. A época de Vargas foi marcada por caraterísticas nacionalistas. O
presidente
efetivou
em
seu
mandato
principalmente frente aos sindicatos e direitos trabalhistas. Na cultura, o movimento nacionalismo caminhava do mesmo modo, com a valorização das expressões culturais internas. (FAUSTO, 1995, p. 333)
para o ingresso do artista na república musical
Uma história da música brasileira se tornou
nesse contexto. Essa onda nacionalista tinha a
recente no meio acadêmico a partir do século XX
intenção de fazer a composição erudita beber nas
devido a memorialistas, cronistas, jornalistas e
fontes populares, porém essa passagem do erudito
colecionadores que compuseram o quadro dos
ao popular teve suas barreiras. Sob uma ótica
primeiros
historiadores
da
música
popular
brasileira. José Geraldo Vinci de Moraes refere-se
G N A R U S | 71 aos pioneiros, em especial Mariza Lira e Almirante
A música perpassa gerações, e está presente
que colaboraram juntamente com lembranças e
destes tempos remotos, vem acompanhada de
registros para construir o acervo sobre a música
valores sociais, assim como demonstra um episódio
popular brasileira. (MORAES, 2010, p. 217)
que aconteceu com Themístocles em uma festa
Almirante, figura significativa no contexto dos anos de 1930 e 1960 no Brasil, tinha vários
grega ao se recusar a tocar harpa foi considerado um homem sem educação.
urbana, caracterizando uma espécie de memória da
A música foi de toda a arte que mais atingiu o seu apogeu, não obstante ter sido desde os tempos mais remotos a companheira inseparável do homem, na paz, na guerra, no lar, na dança, no trabalho, no teatro, etc. Houve um tempo em que, quando um homem não sabia cantar e tanger uma lyra ou uma harpa, era considerado sem educação e indigno da sociedade.(MELLO, 1908,p. 12)
música. O radialista Almirante ajudou na vinculação
Considerada a arte mais sociológica e a
programas de rádio, o que ajudava a disseminar a música popular, dentre eles o mais popular era
Curiosidades Músicais, programa transmitido pela rádio Nacional em 1938, que contribuiu para se firmar o conhecimento sobre a música popular
de
linguagem mais leal do sentimento humano e nesse
comunicação da época a partir de 1938. Assim
sentido que Schopenhauer argumenta sobre a
também valorizou os grandes artistas da música e
música: que através da música que nos deparamos
agregou valores ao campo cultural e social,
com o oculto do sentimento expresso pelas palavras
construindo e representando uma chamada “época
ou pela ação representada, revela a natureza e
de ouro”. (MORAES, 2010, p. 261) A música popular
verdadeira, a alma dos acontecimentos e dos fatos.
brasileira, consagrada a partir dos anos 30 e 40 com
Em diferentes partes do mundo a música é
Mário de Andrade e Gilberto Freyre, caminhava
distinta, não marcando uma homogeneização.
para uma arte mais nacional. (ABREU, 1997, p. 1)
Assim com a vinda dos jesuítas para o Brasil novos
Entre o século XIX e o século XX se trabalhou na
aspectos musicais também se estruturaram e uma
construção de uma identidade nacional musical,
miscigenação maior, a fusão do indígena,
definindo-a como um produto de mestiçagem de
português o africano e o espanhol. (ABREU, 1997,
índios, portugueses e negros, mas também se
p. 10)
das
músicas,
nos
importantes
meios
evidencia os traços e a impossibilidade de homogeneização da música popular.
As entonações musicais nacionalistas ecoaram principalmente na música de Villa-Lobos (1887-
Os povos indígenas, assim como os africanos e
1959), o qual teve o folclore como inspiração. As
europeus, contribuíram para a miscigenação da
Bachianas Brasileiras, a fusão do estilo de Bach e da
música popular. Os povos indígenas tinham não só
música folclórica. A efetivação do movimento
músicas de dança, mas também música de guerra,
nacionalista brasileiro foi em por volta de 1928 por
assim como músicas religiosas cantadas geralmente
Mario de Andrade quando propôs um projeto
em rituais e festas, assim descreviam os primeiros
nacional-erudito- popular para o país, colocando o
missionários que vieram para o Brasil. Os índios
alvo nacionalista sendo então condição essencial
tupinambás se destacavam na música com grande
para a entrada e a permanência do artistana
atuação em cantos.
república da música.
G N A R U S | 72 Foi a partir dos anos 60 que a música popular se fortaleceu não só como arte, mas como estudos acadêmicos. Ela nasce por volta no século XX com marcas e criticas, pois críticos acreditam que a musica popular não tinha uma identidade pois ela é influenciada pela música internacional, assim também permitia que qualquer compositor fizesse sucesso, era o que os críticos da música redutiva apontava, qualquer um poderia compor uma música, e também deteriorava o próprio ouvinte que ouvia essas músicas, que caracterizavam com formulas comerciais, nas quais restringia o compositor da liberdade de criação, assim era a principal critica feita pelos especialistas e adeptos da música erudita, assim apontavam ela rudimentar e repetitiva. Folcloristas e eruditos partilhavam da concepção que a música popular era decadente e não mantinha as heranças da música ocidental e suas formas que eram tanto apreciadas pela camada elitista da sociedade como as óperas, sinfonias, concertos. Também colocava em cheque a sua originalidade uma vez que se enquadrava em moldes comerciais, e da mesma maneira era composta
por
uma
mescla
de
tradições.
(NAPOLITANO, 2002, p. 10) Sobretudo compreendemos a música como é um elemento social que se manifesta através da
Referências ALMEIDA, Santana Juliana. O Estatuto das paixões segundo Aristóteles. Polymatheia- Revista de Filosofia, Fortaleza, Vol. III, N º 3, 2007, p.31-42 AMATO, Rita de Cássia Fucci, Vila-Lobos, Nacionalismo e Canto Orfeônio: Projetos Musicais e Educativos no Governo Vargas Revista HISTEDBR, Campinas n. 27, p 210-220, set 2007- ISSN: 1676-2584. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo; Editora da Universidade de São Paulo, 1995. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio Janeiro: LTC, 2008 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. Música no Brasil. Desde os tempos coloniais ate o primeiro detemio da República: Typhographia de S. Joaquim, Bahia, 1908. MORAES, Jose Geraldo Vinci de; SALIBA, Elias Thomé (orgs. História e Música no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010. MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfoniahistória, cultura e música popular em São Paulo nos anos 30. Tese apresentada com exigência parcial para a obtenção de Doutor em História. Universidade Estadual de São Paulo, 1997. NAPOLITANO, Marcos. História & Música. História cultural da música popular. Autêntica: Belo Horizonte, 2002. PINTO Tiago de Oliveira. Som e Música. Questões de uma Antropologia Sonora. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2001, V. 44 nº 1. SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira. Das origens a modernidade. São Paulo: Editora 34, 2013. RIBEIRO, Solano. Prepare seu Coração. A história dos grandes festivais. São Paulo: Geração Editorial, 2003.
linguagem, melodia e ritmo mas que sobretudo é
ROSS, Alex. Escuta só: do clássico ao pop. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
histórico e revê-la nas grandes contribuições
SCHAFER, Murray. R. O ouvido pensante. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1992.
históricas como sociais. A música é instrumento de socialização e instrumento de fonte do historiador para investigar os ditos e os não ditos no processo de subjetivação no tempo. Marília Luana Pinheiro de Paiva é Graduada em História, especialista em Metodologia no Ensino de Sociologia e Filosofia. Aplicadas UEPG e Mestre em Ciências Sociais.
TINHORÃO, José Ramos. História da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 2010. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007 WINISK, José Miguel; SQUEFF, Enio. O Nacional e o popular. Na cultura brasileira. São Paulo; Editora Brasiliense, 2004.
G N A R U S | 73
Artigo
SOCIAL-DEMOCRACIA: O PARADIGMA DO “SOCIALISMO PARLAMENTAR” Por Leonardo Mello Silva
Resumo: As condições político-econômicas da Europa, após a derrota da Comuna de Paris, minaram as perspectivas sediciosas de grupos revolucionários que se alinharam na luta parlamentar pautada pela democracia burguesa. Após divergências internas, o pensamento político-partidário social-democrata, inicialmente de cunho socialista, voltou-se, irrestritamente, às disputas por votos; perdendo, portanto, sua identidade com o socialismo e com a classe trabalhadora legitimando e sustentando o progresso capitalista. Palavras-chave: Social-democracia, socialismo, reformismo.
Apresentação
A
subsiste até os dias atuais. O partido nasce com propostas institucionais e de classe apontando
social-democracia apresentara-se em
pautas de cunho socialista na luta política.
meados do último quarto do século XIX,
Poderíamos, inclusive, dizer que os partidos social-
tomando forma definitiva de partido
democratas oitocentistas representaram a entrada
político em seu principal expoente: o Partido
do socialismo na vida parlamentar Europeia. Não
Social-Democrata (SPD) alemão, que tivera grande
obstante, passados mais de cento e quarenta anos,
relevância e influência no cenário político-
as configurações de segmentos políticos que se
partidário europeu.
autodenominam social-democratas (e daqueles
Na Alemanha, após a unificação dos partidos
que seguem plataformas políticas compatíveis à
operários: Associação Geral dos Trabalhadores
social-democracia)
Alemães (ADAV) e o Partido Social-Democrata dos
tomam formas distintas que devem ser estudadas
Trabalhadores (SDAP); configurou-se o que se
junto aos processos históricos políticos e sociais.
tornaria o Partido Social-Democrata alemão, que
transformaram-se
e
hoje
G N A R U S | 74 A
luta
socialista
—
para a emancipação do proletariado. Para o russo, a
representada por variadas vertentes e sistemas de
única saída se constituía na destruição do Estado e
ideias — mostrara-se como movimento político
isso não seria possível por meio da legalidade
reunindo
dos
burguesa. Uma revolução social só se tornaria
Trabalhadores (AIT), as principais lideranças
possível ao passar por “terríveis e sangrentas lutas”.2
socialistas europeias. As temáticas relativas à
Outro russo, já no século XX, expressara suas
na
dos
Associação
trabalhadores
Internacional
política partidária e ao Estado foram de primordial
críticas
importância nos debates teóricos entre vertentes
chauvinistas”3. Para Lenin, medidas reformistas de
que ali laboravam por perspectivas de emancipação
ordem governamental não alcançariam todo seu
da classe operária. Sem pregar a abstenção da luta
potencial
política por vias legalistas e pela influência da
expropriadores”. Em seu livro: O estado e a
teoria marxiana, a AIT acabou por expulsar as
revolução, o revolucionário discorre severas críticas
vertentes anarquistas. A saída compulsória dos
aos partidários e teóricos da social-democracia,
bakunianos representara, nesse momento, a cisão
principalmente ao que concerne às perspectivas
ideológica
repudiavam
sobre o Estado. Apropriando-se dos escritos de
“participar de eleições e realizar alianças eleitorais
Marx e Engels, O comunista esclarece – de certo
com partidos radicais burgueses” 1
modo concordando com os anarquistas – que “o
com
aqueles
que
As questões referentes à luta política e ao Estado, no SPD, ultrapassaram as barreiras temporais do
aos
que
sem
chamavam
a
de
“expropriação
“social-
dos
Estado é o produto e a manifestação do antagonismo de inconciliável de casses” 4.
século XIX adentrando o século posterior. Destarte, A social-democracia foi desenvolvendo-se e agregando opositores socialistas das mais variadas vertentes político-ideológicas, como por exemplo: Mikhail Bakunin, Karl Marx e Vladmir Ilitch Lenin. Desconstruir as proposições social-democratas tornou-se prioridade, expressando, portanto, sua importância no cenário político e na luta pelo socialismo. Em relação ao Estado, Bakunin criticava a concepção da conquista de direitos políticos pelos trabalhadores como primeira condição para a “libertação econômica dos trabalhadores”. O anarquista não acreditava que direitos como: sufrágio universal, liberdade de imprensa e de
Marx e Engels
associação (entre outros), dessem reais condições
ANDRADE, Joana El-Jaik. As origens da social-democracia alemã e seu processo de unificação. Plural, Revista de Ciências Sociais. São Paulo: USP, v. 14, p.77–102, 2007. Disponível em http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/75462/79006. Acesso em: 30/04/2016, p.14. 1
BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Ícone, 2013, p. 73- 233. 3 LENIN. Vladimir Ilitch. O estado e a Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p.41. 4 Ibidem. P. 27. 2
G N A R U S | 75 O que vem a ser a grande divergência entre o marxismo-leninismo e o anarquismo de Bakunin, ante a questão do Estado, é menos a emancipação da classe proletária que a questão do destino Estado. Em 1917, Lenin escreve: “só resta, nos partidos socialistas de hoje, como verdadeira aquisição do pensamento socialista, a fórmula de Marx, segundo a qual o Estado “morre”, contrariamente à doutrina anarquista de abolição do Estado”. 6 Desse modo, o Estado – instrumento da classe dominante –, deveria, necessariamente, se tornar um “Estado proletário” até que se tornasse desnecessário, tomando para si a posse dos meios de produção representando toda a sociedade. O então “Estado proletário” geriria coisas e não pessoas, até seu definhamento, sua “morte”. A negação das proposições social-democratas por segmentos socialistas revolucionários pauta as históricas divergências teóricas e táticas do socialismo e do trabalhismo desde as ultimas Partindo dos princípios teóricos marxistas sobre o Estado, Lenin corroborou para uma sólida crítica aos partidos e partidários da social-democracia. A passagem do sistema capitalista para o socialismo, a partir da legalidade burguesa perpassando por uma transformação lenta e gradual se abstendo de fazer uma revolução por atos revolucionários; parecia, para Lenin, mais que um equívoco teórico, era uma forma de deformar a teoria marxiana em prol da burguesia. Essa é uma das questões centrais de suas críticas à social-democracia: o afastamento das perspectivas revolucionárias que demandariam certo gral de violência. Para Lenin: “A substituição do Estado burguês pelo Estado proletário não é possível sem uma revolução violenta” 5. 5
Ibidem. P. 40. Ibidem. P. 36. 7 Manuscrito, enviado (em 1875) aos “homens de Marx” na Alemanha, que criticava o programa político do partido que surgira da união do SDAP (partido dos homens ligados a Marx) 6
décadas do século XIX. Karl Marx, em sua “crítica ao programa de Gotha”,7 também condenou a teoria do partido que surgia. Para nós, o Programa de Gotha, que fora um primeiro esboço de posteriores sólidos programas políticos, e que recebera as devidas críticas de Marx, não vem apenas cercado de censuras marxianas, mas também, de uma proposição de grande relevância no pensamento marxista: “Cada passo do movimento real é mais importante que uma dúzia de programas”.8 Acompanhemos
agora
os
processos
que
consolidaram a social-democracia como um dos pensamentos político-partidários mais relevantes no século XX e, de certo modo, no início de século XXI.
com o ADAV (de influência lassariana). Sua primeira publicação foi em 1980/1981. CF. MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012 8 MARX, Karl. Carta de Karl Marx a Wilhelm Bracke. In: Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 20.
G N A R U S | 76
Surgimento e desenvolvimento
salariais.10 As agitações políticas domésticas nos
Na França, Após as investidas revolucionárias, de
países europeus, a partir da década de 1850, foram
seguimentos do proletariado urbano, a revolução
responsabilidade de “uma classe média liberal e
de 1948 — que destituíra do trono o último rei da
alguns democratas radicais, e eventualmente
França, Luís Felipe, da casa de Orléans — fomentou
mesmo por alguma força recém-emergente do
a ofensiva contrarrevolucionária da burguesia
movimento operário”.11
institucionalizada na segunda república francesa. O
Na Alemanha, o conservador Bismarck se tornara
sobrinho de Napoleão Bonaparte foi eleito
primeiro ministro da Prússia tendo como programa
presidente.
a manutenção da
Luís
Bonaparte,
monarquia e da
posteriormente,
aristocracia
em
tornara-se
detrimento
do
imperador por um
liberalismo e da
nada democrático
democracia.
golpe de Estado.
país
foi,
O enfim,
De acordo com
unificado (sob a
historiador
preponderância
o
marxista
da
Eric
1871)
Hobsbawm, todas as
vitória
pela
características e
a dos
germânicos
França de 1948 tiveram
após
em
esmagadora
revoluções
inspiradas
Prússia
Reunião da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores em 28 de Setembro de 1864.
desfechos similares: “[...] todas foram vitoriosas e
guerra Prussiana
na
Francoque
derrotara Napoleão III.
derrotadas rapidamente [...]”.9 As revoluções e
Com a frustração das perspectivas radicais, nos
contrarrevoluções de 1848 deixaram de herança à
países industrialmente desenvolvidos da Europa, a
Europa a estabilidade política, o liberalismo
revolução saíra do foco dos partidos da classe
econômico,
o
operária, que nesse momento focavam suas lutas
nacionalismo. Houve um exponencial crescimento
políticas nas organizações partidárias afligindo,
econômico e, parafraseando Hobsbawm: “a era de
assim, as propostas revolucionárias em curto prazo.
ouro do crescimento capitalista” frustrou as
Para a construção das fileiras partidárias, que
expectativas revolucionárias, pois não foram
formariam o SPD alemão, a união de lassallianos e
apenas as classes burguesas que lucraram, o
socialistas fora efetivada no congresso de Gotha em
descontentamento popular foi sedado por altas
1875. A Associação Geral dos Trabalhadores
taxas de emprego e por temporários aumentos
Alemães, partido fundado por Ferdinand Lassalle
a
democracia
burguesa
e
10
HOBSBAM, Eric J. A era do capital. São Paulo: Paz e terra, 2012, p.37. 9
11
Ibidem, p. 62-64. Ibiden, p.119.
G N A R U S | 77 (morto em 1864), tinha em seu programa
Entretanto, a compreensão do surgimento do
reivindicações democratas radicais, pregando a
ideário social-democrata e de todo contexto
união dos trabalhadores em um partido político,
histórico que o cerca é de fundamental importância
visando, principalmente, o sufrágio universal para
para a captação de sua identidade que —
os cargos legislativos. Sobre as propostas estatistas
configurada nas ultimas décadas do século XIX e
de Lassalle, a socióloga Joana El-Jaick Andrade
reconfigurada pelos debates internos, foi ajustada
esclarece que, para ele:
pelas demandas eleitorais da longa trajetória
“[...] a missão histórica da classe operária constituía justamente na eliminação de todos os privilégios e na realização do “Estado moral”, através de sufrágio universal e igualitário. Ao conceber o Estado como uma “unidade dos indivíduos reunindo em um todo moral”, que tem por finalidade “educar o gênero humano para a liberdade” [...] Lassalle, recaíra em um culto ao Estado, que deitava raízes em sua forte admiração pela filosofia hegeliana.”12
desses partidos — supera concepções básicas de
O Partido Social-Democrata dos Trabalhadores
pode causar distorções em exposições teóricas e
Alemães, criado em 1869, por homens ligados a
corroborar para falsos rótulos e estereótipos. Para a
Marx e Engels, expressava-se criticamente sobre a
apreensão dos significativos aspectos de partidos
participação eleitoral dos trabalhadores. E, de forte
políticos
influência
viés
necessário a retomada de suas lutas históricas até o
revolucionário. Em 1875 uniram-se ao partido
recrudescimento do pensamento conservador
lassalliano recebendo, como já foi mencionado,
pautado no neoliberalismo.
marxista,
apontava
um
estrutura político-partidária avançando como um sistema de ideias que se molda a objetividades de determinadas realidades sociais, políticas e econômicas. É conceito chave na compreensão do cenário político dos séculos XXI, XX e fins do XIX. A abrangência do conceito social-democracia
de
corte
social-democrata,
faz-se
críticas de Marx; iniciando, nesse marco, a
Ainda no século XIX, após a Comuna de Paris
reorientação da prática política e dos sistemas de
(1871) a questão da direção revolucionária, frente
ideias da social-democracia13. As ponderações de
ao
Marx ao partido que surgia foram dirigidas às
expectativas sobre o posicionamento do socialismo
inconsistências teóricas e às propostas para prática
na questão do Estado. Em 1872, Marx e Engels
política. Querendo desvincular-se do novo partido,
editaram um novo prefácio para o Manifesto do
Engels, prefaciando uma edição dos manuscritos da
Partido Comunista (o manifesto foi publicado
critica de Marx, quinze anos depois, esclarece que
originalmente em 1848); e tendo como base a
eles estavam mais envolvidos com o movimento
experiência da Comuna, esclareceram: “a classe
operário alemão do que com qualquer outro, mas
operária não pode se contentar em apoderar-se da
que não tinham responsabilidade no conteúdo
máquina do estado tal qual existe e fazê-la
reformista do programa14.
funcionar em benefício próprio”. 15
domínio
do
poder político,
reacendeu
Não queremos, por meio da reconstrução de sua
Dentro das fileiras do SPD alemão, o marxismo foi
historicidade, dispor de sua origem como
rejeitado pelo social-democrata Eduard Bernstein.
explicação para o objeto: social-democracia.
Seu revisionismo, que era crítico à filosofia
12
ANDRADE. op. cit., p. 82. Ibidem, p. 77- 99 14 MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 18. 13
15
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Escala, 2007, p.18.
G N A R U S | 78 marxiana, propondo uma política conciliatória de
Reafirmando sua influência dentro da ala
classes, foi identificado, por seus opositores, como
reformista do partido, Eduard Bernstein teve
um instrumento na incorporação de elementos
importante participação nas reformas elencadas
burgueses ao movimento socialista. Andrade,
pelo programa escrito em 1891 que pautava
autora de diversos estudos sobre o SPD, atenta para
direitos políticos e sociais. Foi expulso do SPD em
a ambiguidade no projeto social-democrata e para
1916 por sua oposição à Primeira Guerra Mundial e
o grande cisma no partido expondo as críticas de
à política imperialista alemã, voltando ao partido
Rosa Luxemburgo ao reformismo de Bernstein. Para
em 1919.18
a revolucionária, polaco-germana, o SPD não
A fragmentação do partido, que pode ser
deveria se render à ordem capitalista em nome da
percebida desde sua origem, foi acentuada no
democracia
perspectiva
século XX, principalmente no período da Primeira
revolucionária de Rosa Luxemburgo colocava-a em
Guerra Mundial, onde a incompatibilidade entre
conflito não somente com o grupo revisionista, mas
reformistas e revolucionários os levaram às ultimas
também com a direção do partido, adepta de uma
consequências.
burguesa:
tática exclusivamente
“A
parlamentar”.16
A “Rosa
Após o partido, por motivos eleitoreiros, se
Vermelha” escreveu em 1900 seus posicionamentos
alinhar ao imperialismo alemão na empreitada da
no livro Reforma ou Revolução; e, refutando o
Primeira Guerra Mundial, fragmentou-se. Bernstein
reformismo de Bernstein (a quem acusava de ser
e Kaustsk (este, social-democrata fundador e
“um progressista democrata pequeno-burguês”17),
redator da revista Die Neue Zeit, órgão teórico da
colaborou para a crítica da incorporação de
social-democracia) filiaram-se ao Partido Social-
elementos do capitalismo na luta política da social-
Democrata
democracia.
voltando mais tarde ao SPD; enquanto Rosa
Alemão
Independente
(USPD),
Ainda tratando-se da Alemanha, em 1878, a lei
Luxemburgo e Karl Liebknecht (importantes social-
antissocialista proposta por Bismark, e apoiada pela
democratas de tendência revolucionária) formaram
burguesia,
a Liga Spartacus que, de corte comunista, deflagrou
foi
promulgada
(mas
suprimida
posteriormente) pondo o SPD à margem da via
confrontos
legislativa durante doze anos. Após tempos na
revolucionárias em Berlin, no início da república de
clandestinidade
se
Weimar (estabelecida com o apoio do SPD). Rosa
revigorou na sua volta à legalidade pelas eleições
Luxemburgo morreu em 1919 na repressão à causa
de 1890 (obtendo 20% dos votos para o
comunista
parlamento) e em seu Congresso de Erfurt, em
constituída que teve como seu primeiro-ministro
1891.
um membro do SPD19.
16
ANDRADE, Joana El-Jaik. Rosa Luxemburgo e a crítica ao revisionismo da direita no interior da social-democracia.
18
Pelotas: UFPel, v.2, p. 11-37, janeiro/2008. Disponível em: http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/pensamentopl ural/article/viewFile/3749/3037. Acesso em 30/04/2016, p.22. (grifo nosso) 17LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução. Disponível em:
v. 13, 2006, p.5-34. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/75159/79021. Acesso em: 30/04/2016, p. 5-30. 19 Após a derrubada do Kaiser alemão e do fim do Império, os confrontos entre Spartacistas e Socialistas “parlamentares” tomaram forma de guerra civil. GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.27.
a
luta
social-democrata
http://www.consultapopular.org.br/sites/default/files/ Reforma%20ou%20Revolu%C3%A7%C3%A3o_0.pdf. Acesso em: 30/04/2016, p. 34.
armados,
pela
greves
república
e
agitações
parlamentarista
ANDRADE, Joana El-Jaick. Eduard Bernstein e a socialdemocracia. Plural, Revista de Ciências Sociais. São Paulo: USP,
G N A R U S | 79 O SPD alemão serviu de paradigma para partidos
com
força
no
cenário
mundial
com
o
do mesmo segmento, que foram tomando espaço
conservadorismo de Margareth Thatcher na
no cenário político europeu, inclusive, nos anos
Inglaterra e Ronald Reagan nos EUA) apresentando
circundantes às turbulências das duas guerras
suas distintivas características: fundamentalismo de
mundiais. Estes socialistas – que reivindicavam a
mercado,
democracia burguesa como instrumento político
econômico, aceitação da desigualdade, entre
de um “socialismo reformista” – tiveram como
outros.22
governo
mínimo,
individualismo
principal característica de governo, após a Segunda
Após o colapso do comunista em 1989/1991
Guerra Mundial, programas de walfare state. Para
houve uma aproximação de grande parte dos
Anthony Giddens:
partidos social-democratas com algumas posições
“O socialismo no ocidente começou dominado pela social-democracia – socialismo moderado, legislativo – fundamentado na consolidação do walfare state. Na maioria dos países, inclusive na Grã-Bretanha, o walfare state foi uma criação tanto da direita quanto da esquerda, mas no período do pós-guerra os socialistas passaram a reivindica-lo como seu.”20
defendidas pelos neoliberais. Com fim do comunismo no leste europeu, a “nova ordem mundial”, surgida com o término da noção de “mundo bipolar”, demandara novas posturas políticas para os partidos de centro-esquerda, tanto os da “velha esquerda” social-democrata, quanto
Sociólogo
de
importante
influência
no
aos novos programas políticos oriundos da velha
trabalhismo inglês, Antony Giddens também
ordem
diagnosticara a amplitude e ambiguidade do termo
praticamente todos os partidos ocidentais, a
social-democracia, complementando:
votação não mais se encaixa em linhas de classe e
“Eu o utilizo para designar partidos e outros grupos de esquerda reformista, inclusive o Partido Trabalhista britânico. No início do período pós-guerra, social-democratas de muitos países diferentes partilhavam de uma perspectiva basicamente similar é a isso que vou me referir como social-democracia do velho estilo ou clássica.”21
comunista.
Giddens
salienta:
“Em
se passou de uma polarização esquerda/direita para um quadro mais complexo”. Ou seja, considera que os conceitos de esquerda e direita não respondem mais às possibilidades de interpretação da realidade política, e assim, esclarece: “os partidos social-democratas não tem mais um “bloco
Como características próprias desse segmento,
de classe” coerente em quem confiar”.23 Podemos
Giddens destacou o envolvimento do Estado na
concluir que a social-democracia abandona seu viés
vida social e econômica, o internacionalismo, pleno
socialista e as contradições de classe, como campo
emprego, welfare state abrangente, entre outros.
de atuação política, para adotar uma postura de
Os fecundos sistemas de bem-estar social
regulação das relações entre capital-trabalho e
estabelecidos no pós-guerra, por partidos social-
conciliação de classes com propostas politico-
democratas,
ideológicas de “centro-esquerda” que legitimam a
tiveram
amplo
apoio
eleitoral
ancorados no modelo de economia mista Keynesiana.
O
sociólogo
diferencia
reprodução da dominação burguesa.
tais
perspectivas da doutrina neoliberal (que aparece
GIDDENS, Antony. A terceira via. Rio de Janeiro: Record,1999, p. 14. 21 Ibidem, p.16. 20
22 23
Ibidem, p.18. Ibidem, p.33.
G N A R U S | 80
Considerações finais Trouxemos para o campo de análise, não só um aglomerado de partidos políticos socialistas, ou um sistema de ideias pronto e acabado; mas todo um desenvolvimento histórico que encontrou, na democracia burguesa, espaço para a luta política com todas as limitações que a economia capitalista impõe. A social-democracia optou por redirecionar a luta revolucionária
armada
para
a
legalidade,
inicialmente, pensando em atingir o socialismo pela via parlamentar. E, tendo como seu maior expoente partidário o SPD alemão – que, no passado, já tivera em suas fileiras nomes como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht – deu uma guinada à direita. As vias legalistas
percorridas pela social-democracia
acabaram por levar a coaptação de elementos característicos do capitalismo. Portanto, sem nega-
pensamentoplural/article/viewFile/3749/3037. Acesso em 30/04/2015. __________. Eduard Bernstein e a social-democracia. Plural, Revista de Ciências Sociais. São Paulo: USP, v. 13, 2006, p.5-34. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/ 75159/79021. Acesso em: 30/04/2016, p. 5-30. BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Ícone, 2013. GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. GIDDENS, Antony. A terceira via. Rio de Janeiro: Record,1999. HOBSBAM, Eric J. A era do capital. São Paulo: Paz e terra, 2012. MARX, Karl. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Escala, 2007. LENIN. Vladimir Ilitch. O estado e a Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2010. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução. Disponível em:
http://www.consultapopular.org.br/sites/defau lt/files/Reforma%20ou%20Revolu%C3%A7%C 3%A3o_0.pdf. Acesso em: 30/04/2016.
lo, assumiu as defectividades da luta socialista. Seu reformismo, – ou, para alguns, seu oportunismo – prostrou-se
nas
prerrogativas
legalistas
e
parlamentares de conquista de popularidade e votos, apostando na agenda político-partidária da vitória eleitoral. Leonardo Mello Silva é Licenciado em História (UCAM) e especialista em Docência e Gestão no Ensino Superior (Estácio). leonarquia@hotmail.com
Referências ANDRADE, Joana El-Jaik. As origens da socialdemocracia alemã e seu processo de unificação. Plural, Revista de Ciências Sociais. São Paulo: USP, v. 14, p.77–102, 2007. Disponível em http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/ 75462/79006. Acesso em: 30/04/2016. __________. Rosa Luxemburgo e a crítica ao
revisionismo da direita no interior da socialdemocracia. Pelotas: UFPel, v.2, p. 11-37, janeiro/2008. Disponível em: http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/
Rosa Luxemburgo
G N A R U S | 81
Artigo
A HISTORIOGRAFIA E SUAS DESCONTINUIDADES: CRIANDO PONTES ENTRE PETER BURKE E MICHEL FOUCAULT Por Odenício Junior Marques de Melo
Introdução
ciência. Rüsen entende a Teoria da História como
A
“sendo aquela reflexão mediante à qual o
s reflexões em torno dos conceitos de História, Historiografia e Teoria da História são partes importantes na
construção de uma perspectiva sobre as maneiras de olhar para o passado. Pois o passado se constitui de um conjunto de fatos, todavia, a forma como o compreendemos mostra se produzimos História (em termos da ciência História) ou não. Jenkins diz que o conceito de História “constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo.” (2007, p.23). Ao pensar no termo História, surgem inúmeras possibilidades semânticas. Óbvio, trata-se de um termo que carrega consigo a força de algo que faz parte da condição existencial do ser humano: o passado. É necessário arriscar uma delimitação sobre os conceitos de História, Historiografia e Teoria da História, e assim tentar estabelecer uma base metodológica sobre essa área do conhecimento. E, dessa forma, pensar no saber histórico como
pensamento
histórico
se
constitui
como
especialidade científica.” (2001, p. 26). Segundo Barros a Teoria da História é “o encontro entre historiografia e ciência.” (2001, p.85, v.1). Essa discussão é bem ampla, porque a reflexão sobre História é mais que um reconhecimento da mesma como uma ciência que estuda o passado. Há uma pergunta gritante de Marc Bloch, que ultrapassa a linha do tempo e continua a reverberar em nossos dias: “Como, sem uma decantação prévia, poderíamos fazer, de fenômenos que não tem outra característica comum a não ser não terem sido contemporâneos, matéria de um conhecimento racional?” (2001, p. 52). Com esse questionamento, Bloch
nos
mostra
um
personagem
muito
importante na construção do saber historiográfico, deixado de lado por outras correntes teóricas da história: o historiador, com seus questionamentos e intuições. Não é uma produção neutra, o
G N A R U S | 82 “a obtenção do conhecimento histórico empírico a partir das fontes, pela aplicação de métodos, orientase, por princípio a tornar-se historiografia. [...] Originada nas carências de orientação e enraizada em interesses cognitivos da vida prática, a ciência da História assume funções de orientação existencial.” (2001, p. 34).
historiador é protagonista na construção desse saber. A tentativa de se estabelecer uma compreensão sobre o que é História, Teoria da História e Historiografia em lugar de nos dar respostas fixas, nos impulsiona a horizontes mais amplos tão ricos
Nessa imensidão de possibilidades que a Teoria
de perspectivas, que somos levados a fazer novas
ou Teorias da História trazem, pode-se pensar com
perguntas. Burkhardt mostra uma espécie de
Heller que
assombro que é esse encontro com a História, “que
“Há diversos tipos de teorias: umas mais particulares e outras mais genéricas. Os historiadores podem fornecer uma teoria que diga respeito a determinado evento, a uma série de eventos, a um período, ao desenvolvimento de instituições segundo um entrecruzamento cultural e assim por diante.” (1993, p. 176).
desespero nos causa nosso primeiro contato com os estudos históricos!” (1962, p. 24). Ao lidar com essa área do saber o pesquisador se encontra diante de um campo extremamente vasto, marcado por algumas metodologias. Outrossim, a despeito de tal diversidade de conteúdos e abordagens, existem possibilidades de se
reconhecer
certos
caminhos
para
o
desenvolvimento de pesquisas nessa área. A Teoria da História e a Historiografia, então, podem auxiliar a lançar olhares específicos diante do todo que representa a História. Rüsen (2001) reconhece que os pontos de partida para a reflexão sobre os fatos da História ocorrem na dimensão dos interesses e aproximações que fazem parte da subjetividade do pesquisador. Esses interesses irão gerar os pontos norteadores para o direcionamento da pesquisa, na medida em que um assunto provoca outras descobertas e assim sucessivamente.
Portanto, há uma pluralidade de perspectivas quando se trata de História, Historiografia e Teoria da História. Um dos motivos que fazem da História uma ciência tão fascinante é essa relação dialógica entre múltiplos métodos, e a possibilidade de abertura a outros olhares. De acordo com cada tempo, a Historiografia faz movimentos de desconstrução de alguns métodos e experimenta renovadas percepções. Há uma proximidade com o que o ser humano se torna em cada tempo, as mentalidades direcionam as formas de produzir o saber histórico. Fazer História nesse sentido é a capacidade de dar significados, criar rumos. Muito mais que repetir ou descrever, em nosso tempo tem mais
O olhar historiográfico sempre parte de algum
importância
hermenêuticos,
ou
utilizar seja,
a
instrumentais capacidade
de
local, orientado por uma série de pressupostos e
interpretar e relacionar fenômenos e fatos
inquietações, que carecem de linguagens que
históricos,
fundamentem sua busca. Surge daí a necessidade
Historiografia é uma produção cultural que produz
de uma Teoria da História, ou Teorias da História,
relações de sentido, está para além de uma ciência
que serão esse conjunto de referenciais que
descritiva. E isso não invalida seu caráter científico,
nortearão
agir
pois existem fronteiras nas ciências em níveis de
historiograficamente, é atribuir significados aos
possibilidades de interpretação de fatos, não
fatos, como nos relata Rüsen
explicações partindo dos fatos em si.
a
pesquisa.
Pensar
e
produzindo
assim,
sentido.
A
G N A R U S | 83 No desenvolvimento do pensar a História e a Historiografia surgiram ao longo do século XIX duas formas de se pensar a cientificidade da História, que são: o Historicismo e o Positivismo. “A oposição fundamental entre Positivismo e Historicismo dá-se em torno de três aspectos fundamentais: a dicotomia Objetividade/Subjetividade no que se refere à possibilidade ou não de a História chegar a Leis Gerais válidas para todas as sociedades humanas; o padrão metodológico mais adequado à História; e a posição do historiador face ao conhecimento que produz.” (BARROS: 2014, p. 65).
Ao tentar esboçar então, uma tentativa de mapeamento das Teorias da História e da Historiografia chega-se a conclusão de que se está diante de um campo muito vasto e abrangente, com inúmeras possibilidades de abordagens. O objetivo do presente texto é abrir então, um diálogo entre dois importantes autores que deram uma enorme contribuição para a Historiografia Contemporânea, e que com suas obras ajudaram a redimensionar o
O Positivismo pode ser brevemente caracterizado como um método que tenta pensar a História a
olhar para a História: Peter Burke e Michel
Foucault.
partir dos pressupostos teóricos científicos naturais, e em sua perspectiva antropológica o ser humano tem uma dimensão de imutabilidade, que pode ser descrito a partir de um padrão, tal qual as ciências naturais o faziam nesse tempo. A História era extensão de certa forma, dos métodos descritivos naturalistas. Há um distanciamento entre o historiador e o objeto de pesquisa. Já o Historicismo não se propõe a estabelecer leis
Peter Burke e a história da cultura Peter Burke nascido em 1937, na cidade de Stanmore, Inglaterra. É um dos mais influentes historiadores em ação. Autor de uma vasta obra, começa sua carreira acadêmica na Universidade de Sussex. Essa Universidade na década de 1960 era um lugar marcado por um forte desejo de renovação,
era
um
ambiente
de
muitas
de caráter geral para definir o ser humano, já se
inquietações intelectuais, sem medo de questionar
percebe a instabilidade do ser. O fato histórico não
os parâmetros estabelecidos (BARROS in MORATA
como algo a seguir leis invariáveis, como nas
2014, p. 225).
ciências naturais. E não se nega a proximidade entre o historiador e o objeto de pesquisa Uma clássica frase proferida aproximadamente em 1830 expressa o que representa a Historiografia daquele período: “a tarefa do historiador era apenas mostrar como realmente se passou.” (RANK
apud CARR: 1996, p. 44). Ainda seguindo o que mostra Carr ao apontar as características percebese que “os fatos estão disponíveis para os historiadores nos documentos, nas inscrições, e assim por diante, como os peixes nas tabus do peixeiro. O historiador deve reuni-los, depois leva-los para casa, cozinha-los, e então servi-los da maneira que o atrair mais.” (1996, p. 44).
Peter Burke
G N A R U S | 84 Desde 1979, Burke é professor na Universidade
Em primeiro lugar, a História Cultural não é uma
de Cambridge, onde tem atuado em pesquisas na
perspectiva isolada no todo da Historiografia e
área de História da Cultura e desenvolve estudos
Teoria da História.
sobre Historiografia. Entre os anos de 1994-1995
acredito – que a História Cultural seja a melhor
trabalhou como professor visitante na Universidade
forma de História. É simplesmente uma parte
de São Paulo.
necessária do empreendimento histórico coletivo.”
A obra de Peter Burke se direciona por inúmeras temáticas, no entanto, ele gosta de se identificar
“Não defendi aqui – não
(BURKE, 2005, p. 163). Esse diálogo cria pontes para novos olhares, o acaba enriquecendo o fazer
como historiador da cultura. Um artigo da History
História. Em outras Historiografias deixa-se de lado
Today aponta para algumas características de Peter
questões populares, que eram fatos, com toda uma
Burke em sua obra como historiador, "seu infatigável deleite em procurar ligações. Sua paixão é construir pontes - entre línguas, culturas,
estrutura de significados, inclusive para a compreensão de acontecimentos maiores, havia então, essa deficiência.
períodos, lugares, metodologias, disciplinas - e
Outro aspecto importante é a possibilidade de
então atravessá-las, com vistas largas, para ver o
levar em consideração os símbolos e as construções
que existe do outro lado". (PALLARES-BURKE, 2000,
humanas, diante dos fatos analisados. A História
p. 109).
ultrapassa a simples reconstrução do passado de
A partir da análise de algumas obras de Peter Burke vamos tentar esboçar um breve mapa conceitual sobre a História Cultural. A forma como Burke entende a função dos historiadores é um indício do que pode ser encontrado em suas obras, “[...] existem para interpretar o passado para o presente. São um tipo de intérpretes, de tradutores, de tradutores culturais.” (PALLARES BURKE, 2000, p. 118). Segundo Burke “não há concordância sobre o que constitui História Cultural.” (BURKE, 2000, p. 13). Na construção do termo, existe uma confluência de duas áreas extremamente amplas. Já falamos acima sobre os conceitos de História, Historiografia e Teoria da História, e percebemos que essas conceituações são bem complexas; e ao conectar História a Cultura faz com que os horizontes entrem em estágio de plena expansão. Alguns aspectos precisam ser levados em consideração na construção de uma breve compreensão sobre a História Cultural.
maneira descritiva. O conceito de representação é central na História da Cultura. Ele permite o pesquisador ter a percepção de que alguns textos e/ou imagens, estão como possíveis reflexos ou imitação da realidade social. (BURKE, 2005, p. 99). Os símbolos, seus significados e utilizações são importantes na construção dessa História. Os avanços a partir desse conceito geraram significativas transformações na forma de fazer História. Ao pesquisar relatos de locais diferentes, como por exemplo, refletir sobre a História a partir da classe operária no livro de Thompson, por exemplo, as historiografias de gênero feministas, entre outros. Assim com a História Cultural e a questão das representações e símbolos “os historiadores
tornaram-se
cada
vez
mais
conscientes de que pessoas diferentes podem ver o ‘mesmo’ evento ou estrutura a partir de perspectivas muito diversas.” (BURKE, 2005, p. 101).
G N A R U S | 85 O conceito de hibridismo aparece nas obras de Burke,
como
fazendo
nova
seriam as grandes narrativas que teriam condições
configuração da História. Que é uma espécie de
de responder por algo tão complexo e vasto como
conexão
“Os
o passado, pelo fato de serem visões marcadas por
historiadores também, inclusive eu mesmo, estão
uma história oficial que desconsiderava outros
dedicando cada vez mais atenção aos processos de
deslocamentos de visão sobre os acontecimentos.
encontro, contato, interação troca e hibridização
“O que era considerado imutável é agora encerrado
cultural.” (BURKE, 2003, p. 16). É imprescindível
como uma ‘construção cultural, sujeita a variações,
aprofundar e ampliar a compreensão sobre o
tanto no tempo como no espaço.” (Burke, 1992).
entre
parte
identidades
dessa
e/ou culturalmente constituída.” E também, não
culturais.
conceito de cultura. Ao citar Michael Kamenn, Peter Burke, a partir de uma linguagem da antropologia, o conceito de cultura possibilitaria a ‘reintegração’ de diferentes abordagens à História. (1992, p.37).
os
complexidades. Não é feito de forma direta. Febvre (1989),
um
paradigmas
da
Historiografia,
sobretudo do século XIX, enquadravam o construção do saber histórico a partir de uma perspectiva tradicionalista, agora, a partir da percepção que se (re)significa e (re)orienta os caminhos da Historiografia, a Nova História se desestrutura as metanarrativas. Essa Nova História, “é um universo que se expande e se fragmenta.” (BURKE, 1992, p. 9). Anteriormente os cânones históricos versavam, sobretudo, sobre política e economia. O modelo historicista (análise de documentos ‘oficiais’ sem ouvir outras versões
dos
precursores
dessa
Nova
Historiografia acreditava que uma das maiores contribuições
Fazer História Cultural é transpor fronteiras. Enquanto
O acesso ao passado é envolto de inúmeras
que
os
Annales
deram
ao
pensamento historiográfico, era “a crítica dos fatos enquanto realidades substanciais.” A História Cultural reconhece que não é possível delegar a História o reconstruir o passado tal como acontecera, com precisão e exatidão venais através de uma descrição documental vista de cima. O que os críticos da nova escola começaram a denominar a Historicismo Historizante. (BARROS, 2012, v.5, p. 77 s. s.). O historiador deveria pensar em seu objeto de pesquisa, a partir de perguntas, referenciais teóricos a partir do presente. Ele está inserido dentro de um contexto, e o problema que o impulsiona a pesquisa está conectado à essa
sobre o mesmo fato; ou seja, imparcialidade
situação,existe um termo alemão que elucida: Sitiz
ilusória). Essa perspectiva tinha como referencial
im Leben1.
Leopold Von Rank, que no século XIX levantava discussões políticas; narrativas de acontecimentos; a visão ‘de cima’; suas fontes eram documentais; os questionamentos padronizados e eram estudos supostamente objetivos. Em contrapartida, a História Nova tinha como base filosófica “a ideia de que a realidade é social
1
Tradução: contexto vivencial.
Há uma espécie de revolução epistemológica ocorrendo no mundo da Historiografia nos inícios do século XX, onde o historiador iria conduzir a produção de conhecimentos históricos, e não simplesmente fazer relatórios descritivos a partir de algumas fontes documentais.
G N A R U S | 86 A História Cultural tão evidente na obra de Peter
serviram um pouco para Foucault ultrapassar as
Burke traz um caráter de interdisciplinaridade em
fronteiras entre o real e a loucura. Existem alguns
suas argumentações, que talvez seja a palavra que
relatos desse tempo na (ENS) onde ele sumia por
sintetize toda essa movimentação teórica, e porque
alguns dias, para locais nada convencionais e
não dizer existencial. Sua obra está em constantes
aparecia depois com olheiras e marcas de quem
diálogos com outras áreas: ciências sociais,
havia consumido bastante bebidas e alucinógenos.
antropologia, ciência política, geografia, artes,
A intensidade de Foucault com a vida logo faria
arqueologia, tecnologias, entre outras. O trabalho
com que ele se destacasse pela construção de
do historiador nessa ótica é enriquecido a partir
brilhantes ideias expostas em aulas e na convivência
desse fluxo de saberes.
acadêmica, o que fazia com renomados professores
A seguir surge falaremos sobre outro autor que traz significativas contribuições para a História e suas rupturas e descontinuidades: Michel Foucault.
o admirassem. (STRATHERN, 2003). Infelizmente no dia 25 de junho de 1984 Foucault vem a óbito, deixando uma ampla obra que ainda atraem a atenção de pesquisadores em todas as áreas das ciências humanas por suas dimensões profundas e
Michel Foucault e as descontinuidades da história
abrangentes.
Michel Foucault nasceu no dia 15 de outubro de
O foco do presente texto é pensar nas possíveis
1926, na cidade de Poitier na França. Seu pai era
relações entre as contribuições de Michel Foucault,
médico, e sempre viveu em boas condições de vida.
e
Inicia sua trajetória acadêmica na École Normale
Contemporânea, área, aliás que Foucault traz
Supérieure (ENS). Esse tempo de estudos em Paris
questionamentos, que até hoje ressoam gerando
Michel Foucault
as
perspectivas
da
Historiografia
G N A R U S | 87 inquietações nos amantes e profissionais da área.
maneira incipiente, uma ligação de influências e
Todavia, antes de expor algumas das contribuições
aproximações.
de Foucault. É de imprescindível mencionar alguns pensadores que de certa forma causam algum impacto nas discussões das ciências humanas, sobretudo na virada do século XIX para o XX, tem de forte efervescência cultural.
Há também uma forte influência de Heidegger nas abordagens feitas por Foucault. O próprio pensador francês diz: “todo meu desenvolvimento filosófico foi determinado por minhas leituras de Heidegger.” Heidegger pensava que o estar no
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900), com
mundo do ser humano (dasein ou ser-aí) era algo
sua intensidade filosófica, chega a níveis de
que transcendia os limites da própria lógica e razão.
reflexão que geram significativo desconforto nos
(STRATHERN, 2003, p. 15). Hannah Arend tem uma
chamados paradigmas historiográficos da época,
passagem que refletia esse abalo existencial que
chamados de Historicismo e Positivismo.
ocorria ao ter contatos mais profundos com a obra
Suas principais críticas se direcionavam pode ser
de Heidegger “O pensar tornou a vida; os tesouros do passado, que se acreditavam mortos, estão sendo colocados para falar. Nesse percurso, propõe coisas inteiramente diferentes das velhas trivialidades familiares que se presumia que se fossem dizer.” (ARENDT apud STRATHERN, 2003, p. 15).
chamado como “os excessos de história.” Em síntese, pode-se perceber que os historiadores do século XIX, pensavam em suas produções como alternativas de reconstrução de qualquer recorte do passado em sua íntegra dimensão. Eles percebiam
relações
de
continuidade
entre
acontecimentos e fatos históricos, e acreditavam na
Com efeito, com seus intensos questionamentos,
função da História como a de compor esses gaps e
Foucault desconstrói as estruturas epistemológicas
tentar construir um passado estruturado a partir das
que pareciam ser tão seguras, por conta do rigor
fontes de dos documentos.
científico, e que denuncia serem formas de
“Nietzsche propõe uma historiografia que rompa com a falsa continuidade histórica produzida pela tradicional noção de um tempo linear e contínuo impulsionado pelo progresso, e através do qual as épocas históricas se encadeiam umas as outras por meio dos grandes acontecimentos perseguidos pelos positivistas e historicistas tradicionais. Ao contrário Nietzsche propõe ignorar essa falsa continuidade histórica e fazer uma ligação entre aquilo que importa nos vários momentos do passado e no presente.” (BARROS, 2011, v. 3, p. 166,167).
narrativas e discursos, expressões de relações de poder, domínio e padrões de normatividade. Foucault é um dos responsáveis pela reorientação da epistemologia no tempo denominado pósestruturalismo. A
palavra
desconstrução mostra possíveis
caminhos para as abordagens pós-estruturalistas. “Em Foucault perde o sentido habitual a noção de verdade.” (BARROS, 2011, v. 3, p. 273). Em sua obra
Essa postura de Nietzsche é como uma explosão
Microfísica do Poder, Foucault expressa que os
dos dogmas historiográficos, e introduz uma nova
universos científicos, apesar de seu inegável rigor,
percepção do fazer e refletir sobre a História e suas
fazem parte de uma realidade maior que o que
teorias. É óbvio que não se pode justificar as formas
representam em si mesmos
de pensar e pesquisar de Foucault a partir do filósofo alemão. Pode-se fazer, ainda que de
[...] não se trata de saber qual é o poder que age do exterior sobre a ciência, mas que efeitos de
G N A R U S | 88 poder circulam entre os enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos momentos ele se modifica de forma global. (FOUCAULT, 1979, p. 5).
deslocamentos antes inimagináveis, e essas novas percepções – que ainda hoje – estão se construindo e se (re)inventando trazem para a humanidade novas formas de fazer História. Onde se estudam
A questão da linguagem assume uma importância
por exemplo, o jogo de poder a partir da construção
visceral nas obras de Foucault. No pensamento pós-
dos códigos legislativos; tenta se perceber o que se
estruturalista a linguagem expressa nas fontes não
estava em jogo em certas guerras, e se denuncia a
se
que
fronteira frágil das instituições; o domínio exercido
reconstroem um tempo passado. Mas há uma
sobre o corpo, seja no trabalho, na educação, nos
possibilidade de análise do discurso, ou dos
domínios de gênero. Pensa-se dessa forma a partir
discursos que tentam visualizar, por exemplo, os
do abjeto, da margem. Os documentos nesse
lugares de onde esses discursos estão sendo
contexto não são analisados por um viés dito oficial,
proferidos. Essa linguagem é a responsável pela
mas nas possibilidades históricas que não tem voz.
trata
simplesmente
representação
de
daquele
evidências
mundo,
são
as
Em uma tentativa de resumir o conceito de
possibilidades da linguagem, todavia, de quem
arqueologia, no livro Arqueologia do Saber,
interpreta aquele material que farão a tentativa de
Foucault enumera algumas características de sua
comunicação ou não com o passado. É preciso levar
proposta
em consideração de forma muito séria: a
subjetividade. Duas
possibilidades
conhecimento
de
na
produção
histórico, aparecem
de
em dois
conceitos que Foucault desenvolve, mas que tem suas origens em Nietzsche: Arqueologia e
Genealogia. Em suas reflexões pode ser percebida uma profunda ligação entre todas as áreas e suas possibilidades históricas. Em todas as dimensões humanas estão conectadas por um devir histórico. Por exemplo, qualquer desenvolvimento dos conhecimentos psiquiátricos, os padrões do que se considera e como se trata com a loucura; as múltiplas
formas
de
sexualidade
e
suas
modificações ao longo do tempo e suas diferenças culturais a partir da geografia; as várias expressões religiosas e suas confluências e divergências. A partir das buscas em sua Arqueologia e
“A arqueologia busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que obedecem a regras; a arqueologia não procura encontrar a transição contínua e insensível que liga, em declive suave, os discursos ao que os precede, envolve ou segue. Não espreita o momento em que, a partir do que ainda não eram, tornaram-se o que são; nem tampouco o momento em que, desfazendo a solidez de sua figura, vão perder, pouco a pouco, sua identidade. O problema dela é, pelo contrário, definir os discursos em sua especificidade; mostrar em que sentido o jogo das regras que utilizam é irredutível a qualquer outro; segui-los ao longo de suas arestas exteriores para melhor salientá-los; a arqueologia não é ordenada pela figura soberana da obra, ela define tipos e regras de práticas discursivas que atravessam obras individuais, às vezes as comandam inteiramente e as dominam sem que nada lhes escape; e, finalmente, a arqueologia não procura reconstituir o que pôde ser pensado, desejado, visado, experimentado, almejado pelos homens no próprio instante em que proferiam o discurso, antes, ela é descrição sistemática de um discurso-objeto.” (FOUCAULT, 2008, p. 157-158).
Genealogia não existem agora, grandes pesquisas historiográficas com temas específicos, existem
A forma de percepção sobre a história sofre uma
variados deslocamentos de análises a partir de
série de significativas transformações após essas
G N A R U S | 89 colocações de Foucault. Se pensa agora, a partir
história assim como a vida é um campo de
instabilidade de um saber que se pretende
instabilidades e incertezas.
totalmente objetivo. Há uma polissemia nas construções dos discursos sobre o saber histórico, com essa proposta há uma tentativa de se fragmentar os padrões discursivos que contam uma história verdadeira, não existe mais uma história, uma origem. Existem possibilidades de história e o caos. A grandeza e o assombro expressos na dimensão do pretérito fazem com que o ser humano perceba sua dimensão de finitude, e não tente dar uma resposta definitiva no sentido de reconstruir positivamente sua história, sua origem. Por seu turno, o conceito de genealogia tem um significado de caráter mais prático, embora guarde algumas semelhanças com o anterior. Enquanto a arqueologia versa sobre as análises dos discursos e
A obra de Foucault não tem nenhum limite específico, não é possível enquadra-lo dentro de qualquer temática específica, é possível, assim como na obra de Peter Burke, perceber o quanto há um caráter de interdisciplinaridade. Onde várias áreas do saber se encontram, com suas especificidades, mas que, dialogam e criam pontes na construção de um conhecimento mais complexo, que é o reflexo do ser humano contemporâneo. É a era das tecnologias, das mídias e redes sociais, várias maneiras de se guardar os arquivos e as memórias, não há espaço para isolar as áreas, o que seria um retrocesso, o movimento é estabelecer
relações
profícuas,
ambientes
marcados por conexões e proximidades.
suas relações de complexidade, na genealogia há uma tentativa de “alcançar com seu poder de afirmação, e eu entendo por isso não um poder que se oporia ao poder de negar, mas o de constituir domínios de objetos, a propósito dos quais poderemos afirmar ou negar as proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos de positividades estes domínios de objetos, e digamos, para brincar uma segunda vez com as palavras que se o estilo crítico é aquele que da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz.” (FOUCAULT apud in DREYFUS, RABINOW, 1995, p. 117).
Considerações finais e possíveis aberturas O cruzamento entre esses dois autores, um marcado pela escola inglesa com todo seu rigor e erudição, outro da escola francesa, livre perspicaz contestadora.
Ambos
contribuições
para
trazem o
olhar
significativas da
História,
Historiografia e Teoria da História, suas percepções ampliam os horizontes de percepção sobre o ser humano e sua dimensão de historicidade. Esse olhar
A genealogia busca então olhar as formas como a
para o passado inevitavelmente está ligado à
linguagem, e suas origens, todavia não no sentido
condição presente, e assim como o tempo tem sua
de querer descobrir as raízes da nossa identidade,
movimentação dinâmica em si mesmo, o ser
mas para dissipa-las. A genealogia busca, portanto,
humano inserido dentro deste tempo, tem formas
desvelar as máscaras de qualquer historiografia que
diferentes de olhar para o mesmo.
busca formatar origens comuns a partir de suas descobertas, o que ela faz na verdade é denunciar as descontinuidades e o caos que advém da grandeza da História. Em síntese, o caos do passado é tão forte quanto o caos do presente e do futuro, a
No encontro entre Burke e Foucault, pode-se colocar o ser humano como sujeito na produção historiográfica, leva-se em consideração que as ciências humanas são constituídas por sujeitos. Claro que sem perder o rigor, e a tentativa se buscar
G N A R U S | 90 precisão na pesquisa. Esse pode ser considerado um avanço presente no trabalho dos dois autores. Outra questão relevante nesse diálogo, é a questão do deslocamento das temáticas nas pesquisas. Ambos os autores contribuem na desconstrução de temas considerados “clássicos”, e nessas perspectivas passam a existir outros campos, outras temáticas em dimensões mais micro, nem por isso menos importantes. Ao concluir o presente trabalho, gostaria de citar um texto de Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Bernardo Soares, que, com a sensibilidade poética e os deslocamentos de seus vários “Eu”, resume esse contato com as noções, percepções e as possíveis relações ser humano-tempo/tempo-ser humano. Viajei. Julgo inútil explicar-vos que não levei nem meses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer medida de tempo a viajar. Viajei no tempo, é certo, mas não do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas, dias e meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tempo se não conta por medida. Decorre, mas sem que seja possível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo que vemos viver-nos. Perguntais-me, a vós, decerto, que sentido têm estas frases; nunca erreis assim. Despedi-vos do erro infantil de perguntar o sentido às coisas e às palavras. Nada tem um sentido.2 Odenicio Junior Marques de Melo é aluno do Programa em Educação Arte e História da Cultura (EAHC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP. e-mail: odeniciojunior@hotmail.com
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2
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G N A R U S | 91
Artigo
REFLEXÕES SOBRE CARNAVAL E SAMBA NA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA Por Augusto Neves da Silva
Resumo: Este trabalho se propõe a realizar uma análise da produção historiográfica em torno do carnaval e da associação deste com o samba. Como esses temas foram tratados e abordados no âmbito das ciências sociais. Só recentemente, os historiadores têm percebido que no seio da folia de momo existem muitos conflitos e tensões, e procurando investigar essas questões o carnaval adentra o campo da história. Entre as festas de caráter popular no Brasil o carnaval apresenta-se como uma das de maiores destaques, é entendido como algo indissociável do conceito de identidade nacional. Entretanto, a produção historiográfica contemporânea tem demonstrado que a construção da identidade nacional associada ao samba e ao carnaval não é algo tão simples e mostra que este fenômeno é muito complexo. Palavras-chave: Historiografia - Carnaval – Samba. Abstract: This paper aims to conduct an analysis of historical production around the carnival and the association of the samba. As these issues were addressed and discussed within the social sciences. Only recently, historians have realized that within the folia of Momo there are many conflicts and tensions, and investigate these issues for the carnival enters the field of history. Among the festivities character popular in Brazil the carnival is presented as one of the biggest highlights, is perceived as being inseparable from the concept of national identity. However, the contemporary historiographical production has shown that the construction of national identity associated with samba and carnival is not as simple and shows that this phenomenon is very complex. KeyWords: Historiografia - Carnival - Samba.
O carnaval no Brasil
D
avanços propostos pela história cultural que se caracteriza pela amplitude de possibilidades de
urante muito tempo o carnaval foi
tratamento em relação aos objetos, e que se abre
considerado,
dos
aos estudos mais variados indo da “cultura
historiadores, como um tema renegado
popular”, a “cultura letrada”, as “representações”,
aos interessados em curiosidades. As primeiras
as práticas discursivas partilhadas por diversos
análises feitas no Brasil foram realizadas por
grupos sociais, ou seja, os mais diversos campos
antropólogos e sociólogos.1 Entretanto, a partir dos
temáticos atravessados pela polissêmica noção de
1Entre
brasileiro, o vivido e o mito. São Paulo, Brasiliense, 1992; e
por
parte
os trabalhos temos as análises feitas por: MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis - Para uma Sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro. Rocco, 1987; PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O carnaval
ORTIZ, Renato. Reflexões sobre o carnaval II. CERU, nº.11, 1ª. série, 1980.
G N A R U S | 92
“cultura”, as festas e entre elas, o carnaval
por excelência, como algo que une e iguala a todos.
adentraram
produções
Talvez por isso se justifique a íntima relação do
historiográficas.2 Os historiadores passaram a
carnaval com as práticas políticas e às relações de
perceber que a folia de momo, antes compreendida
poder no interior da sociedade. Assim, as elites
como algo de sentido unívoco e que estava na alma
procuraram conceber o carnaval como símbolo da
do “ser brasileiro”, era marcada por conflitos e
identidade nacional paralelamente ao processo
tensões.3
que construíram a ideia de nação.
o
campo
das
Jorge Amado, um dos maiores escritores
Não nos propomos a remontar as origens do
nacionais, definiu o Brasil como o “país do
carnaval, temos a consciência que os ritos
carnaval”. Os motivos que levaram o renomado
carnavalescos
escritor a defender essa opinião parecem bem
manifestações dos cultos agrários das sociedades
claros, inserir o carnaval dentro do processo de
primitivas, entretanto, buscar uma origem ou mitos
construção da identidade nacional. Durante os
fundadores nos parece incoerente, e concordamos
primeiros anos da república as elites nacionais
com Michel Foucault quando, ao analisar a questão
procuraram criar a imagem do país associado ao
da origem em Nietzsche – opondo a pesquisa
carnaval, muitos literatos, no início do século,
genealógica à pesquisa de origem – é incisivo:
se
assemelham
a
algumas
percebiam a festa como uma manifestação que tivesse nascido e crescido em simbiose com a nação, entendiam os festejos de momo como algo homogêneo (CUNHA; 2001; 13). O carnaval era concebido como algo que era vivenciado por todos os sujeitos, em lugares diferentes, da mesma forma. “Fruto de um processo que tem seus primórdios ainda na segunda metade do século XIX, essa imagem homogênea do carnaval se sobrepôs a uma serie de outras representações e experiências vivenciadas por aqueles que pulavam nas estreitas ruas do Rio de Janeiro. A heterogeneidade dos foliões que saudavam o deus Momo, marcava a própria presença de folias diversas: se todos brincavam a mesma festa, certamente construíam para ela significados radicalmente diferentes” (PEREIRA; 2004; 28-29).
Paralelamente ao processo de construção da nacionalidade
procurou-se
criar
símbolos
nacionais, algo que pudesse definir os brasileiros, e o carnaval foi denominado como a festa nacional
BARROS, José D'Assunção. O Campo da História: especialidades e abordagens. 5. ed. Petrópolis, Vozes. 2008. 2 3
Entre as abordagens historiográficas do carnaval merecem destaque os trabalhos de: CUNHA, Maria Clementina Pereira.
Ecos da Folia - Uma História social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Cia. das Letras, 2001; PEREIRA,
Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro XIX. 2. ed. rev. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2004; e SOIHET, Rachel. A Subversão pelo Riso.
Estudos sobre o carnaval carioca da Belle Èpoque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro, Ed. Fundação Getúlio Vargas, 1998.
G N A R U S | 93
“Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar uma identidade primeira” (FOUCAULT; 1979; 17)
curto - quatro dias, oficialmente - os limites entre o lícito e o ilícito tornam-se mais tênues, tem-se uma sensação de liberdade, que permite, por exemplo, que as pessoas se vistam de uma maneira mais livre ou exótica. Para muitos é o tempo da libertinagem, da luxúria, onde os prazeres da “carne”, do corpo
Dessa forma, o que interessa ao historiador
tornam-se preeminentes.
E com as fronteiras
perceber é como os sujeitos sociais viverem e
sociais mais fluídas, os mecanismos sociais de
significaram
vigilância tornam-se mais rígidos: registra-se o
a
manifestação
do
carnaval.
Entendemos que as práticas culturais são vividas e
aumento
significadas pelos indivíduos de forma diversa em
preservativos, anti-drogas, diminuição do uso de
diferentes períodos históricos. Assim concordamos
álcool e em prol de uma alimentação balanceada,
com Fredrik Barth ao afirmar que: “precisamos
com frutas e bastante água. O plantão de médicos
jogar a cultura em sua totalidade no caldeirão das
nos hospitais é intensificado, o policiamento nas
“controvérsias”
ser
ruas torna-se mais visível - estes são mecanismos de
representada como um corpus unificado de
manter a ordem sobre a desordem, ou seja, essa
símbolos e significados interpretados de maneira
liberdade é vigiada.
porque
ela
não
pode
das
campanhas
para
o
uso
de
definitiva” (BARTH; 2000; 110). O entendimento
Michel Foucault reconhece que os mecanismos de
que temos da história aponta para uma
controle e disciplina social tendem a estar
representação do real que se refaz, se reformula, a
presentes para além das instituições-totais.5
partir das perguntas feitas pelo historiador ou da
Utilizando as palavras do próprio pensador: “as
descoberta de outros documentos ou fontes. A
disciplinas maciças e compactas se decompõem em
história trabalha com o que está dito para e pela
processos flexíveis de controle, que se pode
sociedade, em algum momento, em algum lugar, e
transferir e adaptar...” (FOUCAULT; 1998; 174). O
dessa forma a sua trama, a sua narrativa, o seu
espetáculo do carnaval faz com que as pessoas se
mosaico é construído.
libertem
O carnaval tem o seu grande momento uma vez por
comportamentos diferentes, descomprometidos
ano. Aliás, um tempo muito bem delimitado: o
com a problemática e a realidade social do dia-a-
Estado estipula o feriado, a Igreja declara o início
dia, os ricos apropriam-se de máscaras dos pobres –
da Quaresma e, com isto tem-se uma “desordem
palhaços, índios – os pobres fantasiam-se de ricos –
legítima”. Segundo Roberto da Matta é o “tempo
reis, rainhas, princesas – é a festa da inversão por
do carnaval”
Durante o reinado de momo grande
excelência. Entretanto, não é uma inversão em seu
parte da população se volta para vivenciar esse
sentido mais evidente, mas “se trata de um rito
fenômeno, o “povo” se transforma, as ruas se
individualizador e democratizante no seio de uma
.4
de
si
mesmas,
dando
lugar
a
tornam um grande palco, onde todos dançam, brincam, divertem-se, ou seja, por um período 4MATTA, Roberto da. Carnavais, Malandros e Heróis - Para uma
Sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro. Rocco, 1987. Pp. 163.
5
Entende-se por instituição-total hospitais, hospícios, escolas, e demais instituições marcadas pela disciplina e controle dos corpos.
G N A R U S | 94
sociedade
em
muitos
aspectos
fortemente
hierárquica”.6
regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo e do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a
O período carnavalesco é caracterizado como um
toda a perpetuação, a todo aperfeiçoamento e
momento específico da vivência social, uma vez
regulamentação, apontando para um futuro ainda
que possibilita a redefinição das relações dos
incompleto7. Bakhtin afirma ainda que o princípio
sujeitos submetidos às práticas que lhe são próprias.
da festa popular no carnaval é algo indestrutível:
Concebido como uma situação social específica, o carnaval
propicia
um
abrandamento
“O carnaval ignora toda a distinção entre atores e espectadores... Os espectadores não assistem ao carnaval eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. Enquanto dura o carnaval, não se conhece outra vida senão a do carnaval. Impossível escapar a ele, pois o carnaval não tem nenhuma fronteira espacial. Durante a festa só se pode viver de acordo com as suas leis, isto é as leis da liberdade. O carnaval possui um caráter universal, é um estado peculiar de mundo: o seu renascimento e a sua renovação, dos quais participa cada indivíduo. Essa é a própria essência do carnaval, e os que participam dos festejos sentem-no intensamente” (BAKHTIN; 1999; 6) .Grifo do autor.
das
formalidades que envolvem o relacionamento social cotidiano. Daí a identificação do ambiente carnavalesco como um contexto essencialmente comunitário em que se enfatiza o aspecto de igualdade entre os agentes sociais. O carnaval é comumente definido por alguns intelectuais, entre eles Bakhtin como a festa da confraternização universal, da democracia social e racial. Nele todos são iguais, penetrando o povo temporariamente
no
reino
utópico
da
universalidade, liberdade e abundância. O referido autor entende o carnaval como sinônimo de libertação e abolição de hierarquias, privilégios,
6 CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Os Sentidos do
Espetáculo. In: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2002, V. 45 nº. 1. PP. 47.
BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo, 7
Hucitec, 1999. Pp. 8/9.
G N A R U S | 95
O carnaval brasileiro recebeu muito da herança
apresenta com seus maracatus, para uma grande
do Entrudo português8 e dos carnavais de Veneza e
multidão. As escolas de samba de Recife se
Nice. O Entrudo9 durante o século XIX sofreu
apresentam na segunda-feira de carnaval. A folia
intensa perseguição por parte da imprensa e de
de Momo em Pernambuco procura se diferenciar
parte das autoridades, uma vez que era considerada
em relação a outros pólos no Brasil divulgando a
uma prática de caráter bárbaro e incivilizado. À
imagem de uma grande “riqueza” e “diversidade”
medida que se condenava a realização desse
cultural como algo característico ao Estado.
movimento, as elites passavam a buscar inspiração
Já o Rio de Janeiro é considerado um dos grandes
nos carnavais civilizados da Europa. De costumes
centros disseminadores do carnaval brasileiro. No
europeus o carnaval brasileiro herdou os bailes de
começo do século XX, o cenário carnavalesco era
máscaras e o costume de comemorar a festa em
nitidamente estratificado, ou seja, cada camada social
quatro dias.
possuía a sua forma de festejar o reinado de Momo
No Brasil impera a concepção de carnavais rivais
(PEREIRA DE QUEIROZ; 1992). De acordo com a
e caracterizados, ou seja, foi construída a imagem
socióloga Maria Izaura Pereira de Queiroz as “grandes
de
demarcados
sociedades”, eram organizadas pelos mais ricos, que
geograficamente a partir de determinadas práticas
desfilavam com enredos de crítica social e política, ao
culturais. Em Pernambuco o carnaval é marcado por
som de óperas, com luxuosas fantasias. Os “ranchos”
vários ritmos musicais e formas de danças,
que caracterizava a pequena burguesia urbana, criados
principalmente os maracatus, os caboclinhos, e,
em fins do século XIX, desfilavam também com enredo,
sobretudo os clubes de frevo. Durante o período
fantasias e carros alegóricos, ao som de sua marcha
dos festejos de momo grande parte da população,
característica.
principalmente, nas cidades de Recife e Olinda,
estruturados, abrigavam as camadas mais pobres,
toma conta das ruas, becos e avenidas, enchendo-
moradoras dos morros e subúrbios cariocas, entre as
os de cores, alegria, musicalidade, suor e emoções
quais estavam negros e mulatos herdeiros das tradições
que fervilham da cabeça à ponta dos pés dos
culturais afro-brasileiras. Os blocos serão o núcleo
pernambucanos, e dessa forma procuram traduzir a
formador das escolas de samba cariocas (PEREIRA DE
liberdade oferecida por momo aos seus súditos.
QUEIROZ; 1992).
pólos
segregados
e
E
os
“blocos”,
formam
menos
O carnaval de Recife tem como um dos seus
Hoje o carnaval carioca é marcado pelo desfile
grandes destaque o clube de máscaras Galo da
das escolas de samba, sobretudo, as grandes escolas
Madrugada 10 que sai pelas ruas da cidade atraindo
que desfilam na noite de domingo e segunda feira
uma imensa multidão. Outro momento especial da
de carnaval. Os começos das escolas de samba
folia de momo recifense é a noite dos tambores silenciosos quando a comunidade negra se 8
O Entrudo, do latim introitus, ou seja, entrada, começo. Festa portuguesa que segundo estudiosos, era marcada pela brutalidade e pela sujeira, que chega ao Brasil com os primeiros colonizadores. 9 Sobre a manifestação do Entrudo em Pernambuco ver: ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Festas: Máscaras do Tempo_ entrudo, mascarada e frevo no carnaval do Recife. Recife, Fundação de Cultura da cidade do Recife, 1996.
10 Foi fundado em 1978, no bairro de São José, por Enéas Freire.
Em seu primeiro desfile contou com a participação de 75 pessoas, atualmente arrasta mais de 1,5 milhões de foliões, número que o levou ao livro dos Recordes, Guinness Book, em 1994 como o maior bloco carnavalesco do mundo. O Galo da Madrugada desfila pelos bairros de São José e Santo Antônio sempre na manhã de Zé Pereira. De início saia de madrugada pelas ruas de Recife.
G N A R U S | 96
remetem a década de 192011, passaram a ser
diferente e única, e se propõe a não só conhecer os
identificadas como algo de caráter positivo e
eventos dentro de sua evolução temporal, mas
domesticado que foi celebrado por intelectuais do
interessando-se por uma visão mais complexa. Para
período e pelo regime de Vargas que enfim, as teria
o antropólogo citado o carnaval brasileiro seria: “a
absorvido e abençoado como sinal de novos tempos
marca da individualidade, estando junto daquelas
(SOIHET; 1998). As escolas de samba teriam surgido
instituições perpétuas que nos permitem sentir
como fruto de um diálogo entre diferentes grupos,
nossa própria continuidade enquanto grupo”
não só os populares e sua cultura popular, como
(MATTA; 1987; 8-9). Roberto da Matta salienta o
também membros da elite e sua cultura letrada,
papel desempenhado pelo carnaval junto aos
numa clara relação de circularidade cultural como
populares, o classifica como um ritual de inversão
nos fala Ginzburg.12
da ordem cotidiana, um fenômeno que promove a agremiações
ruptura do continuum da vida social diária.
carnavalescas que assumiram gradativamente um
Acrescenta que o carnaval é uma prática que
papel de destaque no contexto sócio-cultural
representa o mundo, contudo ressalta que essa
brasileiro. Foram consideradas como algo típico da
reprodução não é nem direta nem automática.
alma nacional, como que incorporado a uma
Entretanto, de acordo com a Historiadora Rachel
herança genética que define e diferencia os
Soihet:
As
escolas
de
samba
são
brasileiros. São entendidas como a maturidade original e cadenciadas que celebram e exprimem a imagem que nos reconcilia, acima da diversidade e das profundas desigualdades existentes no Brasil.
O carnaval no âmbito das ciências sociais.
“Roberto da Matta não consegue ver os populares carnavalescos do Rio de Janeiro como personagens históricos atados a um espaço e a um tempo dados, não escapando da cilada de sua visão essencialista, marcada pelo estruturalismo, que lhe impede de uma compreensão histórica da festa” (SOIHET; 1998;128).
Peter Burke ao analisar o carnaval da Europa afirma que nenhum deles é idêntico ao outro, eles
Roberto da Matta foi um dos primeiros
possuem características regionais. Salienta que ele
intelectuais do país a se debruçar sobre a análise de
atua como uma válvula de escape, como um ritual
temas como o carnaval e a malandragem. O
que, sob a aparência de protestar contra a ordem
referido antropólogo se propôs a entender o que
social estabelecida, termina por reafirmá-la e
ele denomina de dilema brasileiro através da sua
fortalecê-la. Burke considera o carnaval como um
importante obra da década de 1970, Carnavais,
fenômeno
malandros e heróis – Para uma Sociologia do dilema
diferentes para diferentes pessoas, e ambivalente
polissêmico,
significando
coisas
brasileiro. Por meio dela, Matta procura discutir as peculiaridades que tornam a sociedade brasileira isso ver os trabalhos de: CABRAL, Sergio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. 2. ed. Editora Lumiar, 1996, Rio de 11 Sobre
Janeiro. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Carnaval Carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro. FUNARTE; UFRJ, 1994. PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O carnaval brasileiro, o vivido e o mito. São Paulo, Brasiliense, 1992. SOIHET, Rachel. A Subversão pelo Riso. Estudos sobre o carnaval carioca da Belle Èpoque ao tempo de Vargas. Rio de
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G N A R U S | 97
da resposta esteja em que a força do símbolo perdure
quase
indiscutível
por
aqui,
nos
acostumando a julgar que a folia, que está no "sangue”, dispensa o esforço de reflexão” (CUNHA; 2001; 308). A maior parte das análises sobre a história do carnaval no Brasil é proveniente de áreas como a antropologia ou a sociologia mais preocupada com aspectos atuais do fenômeno. Esses estudos procuraram construir uma imagem cristalizada e hierarquizada do carnaval. São pouco atentas as diferenças e tensões do próprio movimento de constituição da festa. Boa parte desses estudos não escapa do vício de pensá-lo como uma festa dotada de essência única, além de cair nas armadilhas de uma história linear, caracterizada por um desenrolar continuo de etapas. “Enfileiradas na trilha ascendente do progresso, as formas do carnaval perderam muito de sua historicidade, cristalizando uma memória calcada na suposição de que tal história se desenvolveu em etapas sucessivas, em que o Entrudo teria sido substituído pelas Grandes Sociedades, que depois deram seu lugar aos bárbaros Cordões e aos populares Ranchos, dos quais se originaram na década de 1930, as definitivas Escolas de Samba, expressões da alma ou da identidade brasileira lentamente sedimentadas nas décadas que se seguiram a Abolição e a República” (CUNHA; 2001; 309-310).
significando para a mesma pessoa coisas diversas (BURKE; 1995; 213-215). Renato Ortiz é outro estudioso que se dedicou a analisar o carnaval, não o considera como algo homogêneo, ruptura da ordem cotidiana, nem tampouco como espaço da desordem. Para ele, o carnaval oscila momentos de efervescência e calma, o que chama de zonas quentes e frias; espaços onde prevalece à ordem cotidiana e outros
Graças aos avanços da História Cultural os
a desordem. Ortiz defende a idéia que o carnaval
historiadores têm se dedicado ao estudo do
existe dentro da ordem social capitalista, sendo o
carnaval. Os trabalhos realizados por historiadores
Estado e as autoridades públicas que regulam e
apontaram para a diversidade existente no seio da
determinam o tempo e o espaço da festa, bem
folia, ajudando, assim a desmontar os sentidos
como os limites considerados toleráveis para a
unívocos construídos por muitos literatos para a
desordem. Afirma que são as forças da ordem que
festa.
dão à justa medida do extraordinário (ORTIZ;
Subversão pelo Riso. Estudos sobre o carnaval
1980).
carioca da Belle Èpoque ao tempo de Vargas”
A historiadora Rachel Soihet, em “A
No Brasil durante muito tempo os historiadores
(1998), discute as manifestações culturais da
consideraram o carnaval um tema menor relegado
população pobre no Rio de Janeiro (1890-1930)
aos interessados em curiosidades. E “Talvez parte
como forma de resistência à discriminação e a
G N A R U S | 98
opressão sofrida no cotidiano, através de músicas
traços de solidariedade e de parentesco, negros
jocosas e a desobediência às leis. Analisa que a
que passariam a ocupar as mesmas áreas
partir dos anos 1930, de música desqualificada, o
residenciais, articulando, entre si, um intenso
samba se transforma em um dos símbolos nacionais,
convívio social, no qual se destacavam as figuras das
ao mesmo tempo em que as concessões entre as
baianas, que, além de se projetarem, enquanto
escolas de samba e a ideologia do Estado Varguista
ícones da liderança comunitária realizavam festas
transformaram as primeiras em atração turística.
comemorativas constantes, a fim de manterem
Outra historiadora a se dedicar ao tema foi Maria
vivas as tradições, mais arraigadas. Dentre elas,
Clementina Pereira Cunha, com o livro “Ecos da
destacaremos tia Ciata, ou Hilária Batista da
Folia” (2001), percebe que a construção da
Almeida13.
identidade nacional associada ao carnaval não é
No início do século XX o Rio de Janeiro passa por
algo tão simples assim, mostra que este fenômeno
inúmeras mudanças perpetradas pelo novo grupo
é muito complexo. Há uma série de identidades que
hegemônico nacional. O espaço público da cidade
procuram se afirmar ao mesmo tempo e de
passa por uma espécie de metamorfose, iniciada a
manifestações
significados
partir da construção da Avenida Central, da
diferentes. Clementina critica a concepção do
transformação de ruelas em avenidas e ruas largas,
carnaval como uma festa construída em etapas que
da destruição de velhos palacetes, transformados
teriam evoluído do entrudo ao carnaval europeu
em cortiços e da realocação da população humilde
até chegar às escolas de samba. A autora identifica
residentes no centro para regiões periféricas.
que
carregam
o carnaval como um espaço coletivo que acentua as diferenças sociais e os conflitos. Revela as tensões e os diálogos com diferentes tradições no seio do carnaval. Critica a ideia da festa de momo como algo relacionado à alma nacional. E mostra que ao se estudar o carnaval perceber-se o estandarte dos excluídos e o enredo das próprias contradições nacionais.
Os começos do Samba.
“Nascia, assim, um novo conceito de Rio de Janeiro, pautado em quatro prerrogativas: condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse macular a imagem civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos populares da área central da cidade que será praticamente isolada para o desfrute exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense” (SEVECENKO; 2003; 30).
No entanto, a reorganização e remodelação do novo conceito de Rio não implicam, somente, em
Na segunda metade do século XIX, intensificou-
seu espaço social, mas, também, nos hábitos e
se o fluxo migratório do Nordeste para o sudeste,
costumes dos homens e mulheres do alvorecer do
principalmente, de negros livres. Tal movimento
século. A nova proposta, destarte, ia de encontro a
tinha sido ocorrido, entre outros fatores, em virtude
toda e qualquer manifestação de base popular.
da transformação da cidade do Rio de Janeiro em
Assim, começaram a ser perseguidos os boêmios e
capital nacional. Amontoavam-se, ali unidos por
seus violões, os praticantes de religiões afros, a
13
baianas - figuras tidas como angulares para a fixação do samba no Rio de Janeiro.
Hilária Batista de Almeida, popularmente, Tia Ciata, ou, Tia Asseata foi uma das mais conhecidas e importantes das tias
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própria manifestação carnavalesca passou a ter de
Os anos que se seguiram a 1920 foram
ser padronizada pelos valores europeus e aqueles
considerados “anos loucos”, “anos que mudaram
que
tudo” (RODRIGUES; 1997) vistos a intensa
não
cumprissem
as
determinações
estabelecidas ficariam sob jugo policial.
modificação ocorrida no panorama político e
Até 1888, as manifestações dos negros eram
econômico de âmbito local e mundial. Os
reprimidas ou exercidas na clandestinidade. Com a
movimentos de discussão da formação de uma
lei Áurea a situação não ficou muito diversa, mas a
identidade peculiar, cuja força fora agregada, a
liberdade dos negros de poderem ir morar, onde
partir da primeira guerra e da Semana de Arte
bem entendiam gerou certas modificações no
Moderna, numa tentativa de firmar o Brasil,
cenário urbanístico carioca. Aos, já viventes no Rio
enquanto nação, fez com que alguns intelectuais
seriam agregados os negros baianos, que, como
brasileiros se apropriassem das manifestações
recompensa, pela luta contra o exército de
populares. Nesse sentido, emergem figuras, cuja
conselheiro, em Canudos, teria ganhado o direito
atuação é inconteste, sobretudo, em se tratando da
de virem para o Rio de Janeiro, onde se agrupariam
transformação do mestiço, do status que de fator
nos morros cariocas, os quais chamariam de
causal de degenerescência, ao status de ícone da
“favela”, em menção a Canudos. Assim:
representatividade de uma cultura nascente. Foi
“Com a estruturação na cidade do Rio de Janeiro da comunidade baiana na região historicamente conhecida como pequena África – espaço cultural que se estendia da Pedra do Val, no morro da Conceição, nas cercanias da atual Praça Mauá, até a cidade Nova, na vizinhança do sambódromo, hoje – o samba começa a ganhar a feição urbana” (ALBIN; 2003; 125).
um verdadeiro movimento de glorificação do negro, encabeçado por Gilberto Freyre, com CasaGrande e senzala, Caio Prado e, é claro, Sérgio Buarque
de
Holanda,
os
quais
discutiram
incessantemente o sentido de ser brasileiro. O samba, antes considerado “coisa de negro”,
E é, em meio a batucadas, aos festejos
assumiria o status de símbolo maior da brasilidade,
carnavalescos desordenados, ensejados por aquela
foi o elemento principal de articulação da
comunidade,
carnaval
identidade nacional. É no governo de Getúlio
padronizado, pelos europeus, que veremos o nascer
Vargas que esse processo assume maiores
do samba, expressão publicada, pela primeira vez,
proporções, por meio da difusão das rádios e
na revista o “Carapuceiro”, que circulou no século
gravadoras por todo o país tentou-se a todo custo
XIX, na década de 30, por Frei Miguel do
perpetrar o sentido de uma nacionalidade forjada
Sacramento Lopes Gama, para designar mais um
sob os auspícios de uma cultura antes marginal. De
tipo de dança ou manifestação tipicamente de
acordo com Nelson Werneck Sodré só é nacional o
negros:
que é popular. Dessa forma, o Estado procurou
diferentemente
“Aqui pelo nosso mato Qu’ estava então mui tatamba Não se sabia outra coisa Senão a dança do samba14”.
do
consolidar a identidade nacional atrelada ao conceito de popular, popular no sentido de “povo”, maioria. Assim, se justifica também a conversão se símbolos denominados como pertencentes a cultura negra a categoria de símbolos nacionais
14
O Carapuceiro, 3 de fevereiro de 1838.
G N A R U S | 100
dentro do âmbito da cultura brasileira. Dessa
louvação. Foi na verdade um processo do
forma, os símbolos tidos como pertencentes a uma
coroamento de uma tradição secular de contatos
classe iletrada e popular passam a serem
entre vários grupos na tentativa de inventar a
apropriados pela classe dominante e letrada.
identidade e a cultura popular brasileira. Para
“A incorporação da cultura popular feita pelo Estado Novo getulista, não foi simplesmente uma expropriação cultural e sim a formulação ideológica de uma tendência histórica ancorada na experiência de vários segmentos sociais: o Estado Novo teria se aproveitado de uma prática cultural propícia à diluição de fronteiras e conflitos, utilizando o samba como laboratório cultural na construção de uma cultura nacional” (NAPOLITANO, e WASSERMAN; 2000; 185).
Na galeria dos símbolos nacionais, a invenção social do Brasil como “Terra do samba”, representa uma imagem que perdura até os dias de hoje, atravessando os tempos apesar de todas as mudanças no âmbito da música popular brasileira. Denominador comum da construção do conceito
Hermano Vianna o samba não nasceu autêntico, mas passou por um processo de autenticidade. Em seu livro “O Mistério do Samba” a tese central do autor é da “invenção da tradição” do samba como expressão social de raiz. Esse processo foi um dos parâmetros fundamentais da mediação cultural que o samba passou de “música marginal” a símbolo da brasilidade (VIANNA; 1998). E afirma: “Não é a minha intenção negar a existência da repressão a determinados aspectos dessa cultura popular (ou dessas culturas populares), mas apenas mostrar como a repressão convivia com outros tipos de interação social, alguns deles até mesmo contrários à repressão” (VIANNA; 1998; 34).
de identidade cultural brasileira no segmento da
Assim, Vianna conclui que a transformação do
música, o samba enfrentou um longo e acidentado
samba em música nacional não pode ser entendida
percurso ascendendo de um artefato cultural
como a descoberta das verdadeiras raízes
marginal, passando a objeto merecedor de honras,
nacionais, mas como o processo de invenção e
até a sua consagração crucial em algo nacional por
valorização da autenticidade sambista (VIANNA;
excelência. Essa história está relacionada à
1998; 35). Entre os principais fatores que
conversão de símbolos étnicos em símbolos
contribuíram para o processo de valorização do
nacionais, inclusive, no caso do samba, uma vez que
samba, deslocando a música negra de uma situação
isso não só oculta uma dominação racial, mas torna
de desprestígio social para a posição de símbolo da
muito mais difícil a tarefa de denunciá-la. O
música brasileira está: a consagração do novo ritmo
processo de construção da identidade nacional, de
na música ocidental, dando lugar à valorização das
acordo com a historiadora Martha Campos Abreu,
melodias populares; outra questão está ligada às
estava:
transformações estruturais da própria sociedade
“[...] envolvida em muitas disputas intelectuais, essa história acompanhou de perto, entre o final do século XIX e o início do XX, os polêmicos debates sobre o caráter nacional brasileiro e os esforços intelectuais em construir originalidades culturais que pudessem integrar o Brasil no concerto internacional dos países ditos modernos e civilizados [...]” (ABREU; 2007; 125).
brasileira, em que a década de 20 representaria o instante histórico da transição mais acentuada entre o Brasil rural e o Brasil urbano. E a música não permaneceu alheia a essas mudanças, cabendo às composições
de
origem
negra,
até
então
desprestigiadas, papel expressivo na veiculação de A transformação do samba em música nacional não foi algo repentino, passando de repressão à
um novo estilo de vida; e por fim o complexo painel de exaltação nacionalista que após a I Guerra
G N A R U S | 101
Mundial, dominou acentuadamente todas as
vezes como locais estratégicos para se elaborar a
expressões de vida nacional, a partir de seus
sobrevivência. Exemplo disso eram os encontros de
fundamentos econômicos (SOIHET; 1998; 150). Na
sambistas, nas décadas de 10 e 20 do século XX, na
busca da construção da identidade nacional, a
casa da Tia Ciata, uma velha baiana, moradora do
autenticidade
encontrada
Rio de Janeiro e mãe-de-santo. A casa da Tia Ciata
principalmente nas contribuições negras à cultura
constituiu-se como espaço de sobrevivência do
nacional. Dessa forma, as manifestações populares
samba: a estratégia era enquanto os sambistas
não só persistiram como também se difundiram e se
divertiam-se compondo e cantando no quintal, um
entrelaçaram com a cultura dominante, dando
outro gênero musical, que fosse autorizado, era
lugar à circularidade cultural.
tocado na sala - tentativa de ludibriar quem
da
música,
foi
Se compararmos a imagem que o samba tinha em
passasse pela rua, de burlar a vigilância. Aqui as
inícios do século XX, entendido como “coisas de
considerações de Certeau se tornam válidas, pois,
negros” ou “reminiscências” africanas, a tornar-se
“o cotidiano se inventa de mil formas de caça não
símbolo de identidade nacional, não podemos
autorizadas” (CERTEAU; 1994; 38), ou seja, a ordem
deixar de considerar o papel desempenhado pelos
política e econômica impõe uma disciplina, mas os
mediadores culturais dentro desse processo. O
dominados não a aceitam passivamente, eles a
tema da mediação cultural extravasou o campo da
manipulam
antropologia e adentrou os
procedimentos. Assim, o desvio torna-se o recurso
territórios
do
historiador. A discussão sobre o conceito de
através
de
suas
táticas
e
dos mais fracos.
mediação cultural ganhou difusão com o trabalho
Para alguns estudiosos foi na casa de Tia Ciata, em
de Hermano Vianna, o Mistério do Samba. É bom
uma das suas festas, que o primeiro samba teria sido
ressaltar
que
os
composto. Tratava-se de
movimentos de mediação
“Pelo
cultural
registrado
não
conflitos,
eliminam
nem
Telefone”, como
de
tensões
autoria de Donga, em
sociais como perceberam
1917, mas cujos direitos
em
autorais
seus
estudos
E.
historiadores
Thompson Clementina
os
P.
e
Maria Pereira
Cunha15.
foram reiteradamente
questionados,
sob
alegação de tratar-se, pois, de uma canção coletiva.
De quem é o samba?
desse
Em
função caráter
espontâneo mesmo, no O samba e o carnaval configuram-se
muitas
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; CUNHA, Maria Clementina 15
qual
se
davam
as
composições musicais,
Pereira. Ecos da Folia - Uma História social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
G N A R U S | 102
ficava difícil precisar um autor. Assim o samba seria
desempenhado, na verdade, são construções
de quem o patenteasse primeiro, mesmo que este
ideológicas.
nada tivesse contribuído para constituição da
Não podermos afirmar que os anos de 1920 são
música. Daí, Sinhô, célebre compositor de sambas,
marcados, tão somente, pelas práticas repressivas
cujas autorias foram muito questionáveis por seus
às culturas manifestadas pelas camadas populares.
convivas, dizer que “samba é quem nem passarinho,
A verdade é que mesmo essas práticas repressivas
é de quem pegar”.
sendo feitas salientes, não se deixavam de ter
De todo modo, é bom lembrar que as festas na
interações culturais entre as classes letradas e
casa da Tia Ciata diferiam-se, deveras, das demais
iletradas, o que tirava o caráter homogêneo das
festas, do mesmo tipo, oferecidas, por outras tias
festas das baianas e suas representações. Da mesma
baianas da redondeza. A começar pelo fato de que
forma, não podemos nos dar ao luxo de generalizar
Hilária era casada com um policial, o mesmo, que,
que, a partir, de 1930, quando o samba é elevado à
em nome do estado, repreendia práticas culturais
condição de ícone representativo de uma pretensa
do mesmo tipo, recebia em casa os progenitores do
identidade nacional, a situação do negro teria
samba urbano carioca. Outro aspecto importante a
melhorado dentro daquela estrutura social. Não,
destacar sobre os bailes, ou sambas, visto pela ótica
nos isentamos, assim, de anuir com Hermano Viana,
de Carlos Sandroni16, como sinônimos, é que os
quando este nos diz, em o “Mistério do samba”, que
mesmos não eram só frequentados por pessoas
o samba seria resultado de um diálogo entre grupos
oriundas de classes populares, até porque Tia Ciata
heterogêneos, nem tão somente nacionais, mas
era muito prestigiada entre a elite brasileira, tendo,
nem, por isso, menos brasileiro, de modo que vemos
inclusive, relações com o, então presidente da
contrariadas as premissas de Mário de Andrade, ao
República, Wenceslau Brás, de quem teria curado a
considerar o samba uma fatalidade racial.
perna, através da força dos orixás, de modo que as
Retomando um pouco o contexto do samba em
festas ensejadas acabavam atuando no sentido de
1920, é bom destacar, antes de tudo, que a
estabelecer uma circularidade cultural de que já
composição registrada por Donga foi importante,
nos falava Bakhtin.
pelo fato de ter sido aquela música a responsável
Muito foi discutido sobre a “origem” do samba como
patrimônio
cultural
negro
que
pela difusão do estilo musical que o samba viria a
foi
constituir. Segundo consta havia duas versões da
expropriado pelos brancos e transformado em
música, “Pelo telefone”, decorrendo a variação de
artigo de consumo. Entretanto, Hermano Vianna
uma imposição para que a música fosse registrada,
rejeita essa tese e afirma que uma parcela
apesar de muitos pesquisadores alegarem a
significativa da elite intelectual era atenta aos sons
dificuldade em precisar qual das duas versões
das ruas, como a modinha e o choro. E para o
teriam sido feita primeiro. Diz a letra:
referido autor questões como a autenticidade do samba de raiz e a resistência cultural que havia
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de Janeiro. 1917 – 1933. Rio de Janeiro: Jorge 16
Zahar Editores, Ed. da UFRJ, 2001.
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Versão gravada:
ordem vigente, passou, a partir do registro da primeira canção de samba feita por Donga, quando o estilo deixa de ser uma construção coletiva,
“O chefe da folia Pelo telefone Mandou me avisar Que com alegria não se questione Para se brincar”
sendo, agora, individual, sobretudo mediante a instalação das primeiras rádios e gravadoras no Brasil, a funcionar como meio de ascensão social, ora pelo dinheiro, ora pela fama advinda das
Versão tida como original:
composições.
“O chefe da polícia Pelo telefone Mandou me avisar Que na Carioca Tem uma roleta Para se jogar Ai, ai, ai, Deixa as mágoas para trás, ô rapaz Ai, ai, ai Fica triste se és capaz e verás “17
Augusto Neves da Silva é Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da UFPE.
Bibliografia.
Há quem diga, ainda, que o samba, até a década de 20, não teria sofrido grandes alterações, tendo, a partir dali, surgido uma nova categoria de samba associada ao Bairro de Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, em cuja dianteira estavam Ismael Silva, Nilton Bastos, Bidê e etc. De acordo com Donga, integrante
da
“vanguarda
do
samba”,
as
composições de Ismael seriam marcha, enquanto Ismael referia-se às músicas da época de Donga como sendo maxixe. De toda forma, não há registros escritos das diferenças entre os dois estilos, o que se faz perceptível, através da audição apurada. No entanto, esse samba do pessoal da Estácio é muito criticado pelo seu caráter comercial, sobretudo, desdobrado na década de 1930, sob responsabilidade de Francisco Alves, o qual Vagalume, autor da época, crítica com veemência. Assim, o samba que era, à princípio, considerado uma música de protesto, tanto que suas letras estariam sempre a questionar o estabelecimento da
17
Pelo Telefone – versão original – Donga – 1917
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G N A R U S | 105
Artigo
UM BREVE ESTUDO DAS LEGENDAS EM TORNO DO RITUAL DE SAGRAÇÃO DE HENRIQUE V – INGLATERRA, SÉCULO XV. Por Caio de Barros Martins Costa.
Resumo: Estudo acerca das representações em torno da sagração de Henrique V de Lancaster, numa ampla construção de memória produzida no século XV em crônicas após a morte do rei. Para tanto busca-se analisar as lendas e mitos que cercaram o ritual de coroação régia, num contexto de afirmação da dinastia Lancaster pós-Guerra dos Cem Anos e início da Guerra das Duas Rosas, assim como afirmação de um projeto de Reino no final da Idade Média. Palavras Chave: Sagração régia; Medievo inglês; Poder régio.
E
m 1413 inicia na Inglaterra um novo
na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro1 e
governo, de um rei conhecido na memória
que
social como “exemplar”. Este rei é Henrique
representações da sagração de Henrique V e as
V, famoso por em 1415 vencer os franceses na
virtudes que este rei teria seguido nas crônicas
Batalha de Agincourt na Guerra dos Cem Anos. A
feitas após a morte do mesmo, em um contexto
partir de então uma grande produção cronística se
pós-Guerra dos Cem Anos e em meio a Guerra das
formou, afirmando por vezes o caráter sagrado,
Duas Rosas. Este é um momento de afirmação do
exemplar e virtuoso de Henrique. O auge chega em
poder régio e do Reino ou ainda um projeto de
fins do século XVI, momento em que William
Estado como afirmam alguns historiadores2. Que
Shakespeare escreve a peça “Henrique V”, cuja
por vezes consagra a imagem de grandes homens
narrativa segue a produção de memória feita nas
ou heróis na memória social. Analisaremos
crônicas durante o século XV e XVI. O presente
brevemente o ritual de sagração de Henrique V,
artigo é fruto da pesquisa monográfica defendida
suas legendas e como isto se enquadra no projeto
1
LE GOFF, Jaques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2002. pp. 397409.
É importante salientar que a monografia foi coordenada pelo Professor Dr. Marcelo Santiago Berriel. 2 Para compreensão do que seria o desenvolvimento do Estado no final da Idade Média, C.f. GENET, Jean-Philippe. Estado. In:
buscou
observar a
relação
entre
as
G N A R U S | 106 de legitimação dos Lancaster e na construção de uma Identidade de Reino.
A Sagração de Henrique V Ao tratar da sagração de Henrique V um problema inicial nos é apresentado: a ausência de fontes. Boa parte dos trabalhos na historiografia sobre os rituais de consagração dos monarcas europeus,
tendo
destaque
os
historiadores
franceses, analisam o simbolismo do rito sob a perspectiva dos chamados ordo, espécies de regra para a maneira como o ritual deve ser seguido, ou ainda relatos considerados “oficiais” como o caso de Jacques Le Goff em São Luís. Na Inglaterra, a partir do século XV as informações em torno das cerimônias de coroação tornam-se cada vez mais escassas; tratando-se de Henrique V pequenas representações em torno de sua coroação se encontram espalhadas em crônicas e biografias,
Rei Henrique V, por artista desconhecido
de alguma forma na construção de uma imagem de Henrique V surgida a partir da sagração.
mas que se observados com atenção nos possibilitam uma análise das lendas e mitos que se configuram em torno da monarquia inglesa.
A análise da sagração nas crônicas e biografias permite averiguar o discurso feito, sobretudo após o reinado de Henrique V que o afirmava como um
O mais próximo que chegamos da sagração de Henrique V foi a biografia Vita et Gesta Henrici
Quinti produzida na década de 1430 (após a morte do rei) por um autor que a historiografia costuma chamar de Pseudo-Elmham em referência ao capelão Thomas Elmahm, a quem durante muito tempo se acreditava ser o autor da fonte. Em apenas um capítulo o compositor da obra apresenta uma construção de memória rica em torno da unção: desde a escolha da data, até mesmo os convidados presentes, assim como o curso de acontecimentos. Junto a isto, as crônicas de John Capgave (um frade agostiniano que viveu no século XV): Chronicles of
“rei modelar”, assim como na construção de uma identidade de reino – já que muitas características que aqui serão apresentadas são possíveis de serem analisadas em Shakespeare “Henrique V” – assim como na legitimação dos Lancaster no poder; tendo em consideração que este é um contexto de Guerra dos Cem Anos e a produção cronística data de épocas próximas ao início da Guerra das Duas Rosas. Dessa forma, as características simbólicas aparentes nas crônicas não significam o que realmente aconteceu, mas são nuances de uma rica produção de memória em torno de Henrique V.
England e Book of Illustrious Henries, permitem a
Para o historiador Nieto Soria, a observação dos
análise de certas representações que culminaram
ritos e cerimoniais auxilia o historiador na
G N A R U S | 107 sondagem das transformações políticas e nas
que por vezes eram acompanhados por outra unção
relações de poder existentes na realeza medieval,
ocorriam neste dia.
que possuem assim um caráter legitimador do poder régio.
A escolha da sagração dos soberanos ingleses no primeiro dia da semana não significa apenas uma
“En efecto, ritos y ceremonias políticas contribuyen a establecer, confirmar o, a veces, a transformar las relaciones de poder existentes entre aquéllos que protagonizan, aunque en niveles distintos, tales acontecimientos, en definitiva, entre los gobiernos y los gobernados, por lo que resulta posible desvelar, a través del estudio de los rituales y ceremoniales, implicaciones políticas y sociales que acaso habían sido inapreciables sin tener en cuenta este tipo de información, contribuyendo con ello a aumentar sustancialmente su relieve histórico.”3
escolha aleatória, mas sim, o fato desse ser um dia deveras especial nos costumes cristãos, um dia considerado sagrado. A sacralidade dominical tem sua legitimidade pela estreita relação com a paixão de Cristo. No livro de João, num domingo após a crucificação de Cristo, Maria Madalena se direciona até o sepulcro e lá vê ausente o corpo do Salvador, neste mesmo dia, o momento da
Investigando as representações formuladas em
ressurreição, Jesus aparece para Maria Madalena,
torno da sagração de Henrique V, nos deparamos
assim como para seus discípulos.5 Além da
com um fato por vezes deixado de lado por
representação da ressuscitação de Cristo, outras
historiadores sobre o poder régio inglês: a data de
passagens
coroação de Henrique, um domingo de Páscoa de
confirmam a importância que o domingo ganhará
1413. “Aftir the deth of king Harri the iiij**, regned
lentamente para os cristãos. Em Atos dos Apóstolos,
his sone king Harri the V, that was ybore at
Paulo se dirige a Trôade, lá prega e faz a fração do
Monemouth in Walis, and crouned at Westmynstre
pão, também em um domingo.6 O mesmo quando
on Passion Sunday”
Em torno desse dia dois
se dirige a Igreja de Corinto recomenda o
pontos merecem um destaque. O primeiro é o fato
recolhimento das ofertas no primeiro dia da
de o domingo ser uma espécie de tradição na
semana.7
4.
da
tradição
neotestamentária
realeza inglesa, boa parte das coroações régias ocorriam dominicalmente, ou talvez em datas
Atrelado ao fato da unção de Henrique V ter
especiais do calendário cristão. Guilherme I é
ocorrido num domingo, a segunda questão
coroado no Natal de 1066; Henrique IV tem sua
importante é que este não era um simples primeiro
coroação no dia 13 de outubro de 1399, dia de
dia da semana, mas talvez o segundo evento mais
Santo Eduardo, o Confessor enquanto muitos
importante no calendário litúrgico depois do Natal,
outros tiveram sua unção realizada aos domingos.
o domingo da Paixão. O Vita et Gesta é bem claro
Em certos casos, quando a sagração não fosse
ao apresentar a imagem feita desse dia para os
realizada em um domingo, os casamentos régios
cristãos da época, “sacrosanctam passionis”8, a santa Paixão de Cristo. Como apresentado antes, era comum na monarquia britânica a escolha de
SORIA, José Manuel Nieto. Ceremonias de la realeza. Propaganda y legitimación en la Castilla Trastámara. Editorial Nerea, 1993. p.16. 3
An English chronicle of the reigns of Richard II, Henry IV, Henry V and Henry VI. Written before the Year of 1471. p. 39 4
– fol. 169. “Após a morte do rei Henrique o IV, reinou seu filho Henrique o V, que nasceu em Monmouth em Gales, e coroado em Westminster no Domingo da Paixão”. (Tradução Livre).
Para melhor compreensão do leitor, optou-se aqui por traduzir apenas as fontes escritas em inglês médio. 5 Bíblia de Jerusalém, Jo. 20,1 e 20,19. 6 BJ, At. 20,7. 7 BJ, 1 Co. 16,2. 8 Vita et Gesta Henrici Quinti, p. 21 – fol. 7.a. “Santa paixão”. Vita et Gesta Henrici Quinti, (Tradução Livre).
G N A R U S | 108 datas especiais para a coroação dos soberanos,
faz parte da realidade social. Desta forma o símbolo
datas essas consideradas sagradas e que conferiam
se manifesta de formas diversas, seja na etimologia
a figura do rei uma sacralidade. A sagração era
das palavras, sinais, etc.
dotada de uma liturgia complexa que aglutinava
“O símbolo é sempre proteiforme, polivalente, ambíguo. Ele não se manifesta apenas através de palavras e textos, mas também por imagens, objetos, gestos, rituais, crenças, comportamentos. O símbolo está em todos os lugares e reveste tudo com aspectos variáveis e imperceptíveis.”11
representações importantes do cristianismo como é o caso do Domingo e a Paixão. A sagração de Henrique V possibilitou ainda a formação de uma imagem guerreira expressa pelos
Comumente desastres naturais como os narrados
sinais da época. Produzido por John Capgrave, o
Book of Illustrious Henries, escrito na época de Eduardo IV permite a indagação de um discurso que
por Capgrave eram vistos como punição divina, entretanto no caso da ascensão de Henrique, a tradição cronística afirmou que
transformava a imagem de Henrique
incêndios, nevascas e até mesmo
V num rei guerreiro que aglutinava
enchentes
elementos essenciais da tradição
significavam
transformação
cristã. Segundo o autor, no ano de
desse
rei
a num
guerreiro. Porém não podemos
1413 o inverno teria sido rigoroso
deixar de lado o momento de
com grandes enchentes e nevascas;
produção do Book of Iloustrious
na mesma época o verão teria sido
Henries que foi feito após a morte
marcado por muitos incêndios:
“from which signs some men
de Henrique V no reinado de
foretold that he would be a warlike
Eduardo IV12. Entre 1413-1414
king, and would experience many
Henrique lutou contra a heresia
dangers in war.”9
lollarda,
segundo
os
relatos
“defendendo a fé e a Santa Igreja”. Um ponto deve ser observado neste
discurso
da
crônica:
Além disso, em 1415 o soberano
a
vence a Batalha de Agincourt na
importância dos sinais ou símbolos
Guerra dos Cem Anos, permitindo
na Idade Média e nesse ponto o
em 1420 a assinatura do Tratado de Troyes em que
historiador Michel Pastoureau10 oferece uma
o rei de França Carlos VI após sua morte entregava
contribuição
das
o reino para os ingleses. Partindo desse ponto, o
representações simbólicas. Segundo o autor o
momento em que John Capgrave elabora sua
homem medieval raciocina de forma simbólica, os
crônica, o autor já vira os eventos vitoriosos de
eventos da natureza, objetos, animais, gestos, ritos
Henrique, associando acidentes da natureza com a
são símbolos de algo que por vezes se encontra num
imagem guerreira de Henrique V. O monarca se
plano sobrenatural. O imaginário tem uma
torna uma espécie de herói, cuja memória, desde
importância enorme para o homem medieval, ele
sua sagração já se vira sinais do caráter guerreiro
excelente
ao
estudo
CAPGRAVE, John. Book of Illustrious Henries, p. 125. “Cujos sinais, qualquer homem diria que ele seria um rei guerreiro e experimentaria muitos perigos em guerra.”. (Tradução Livre). 9
10
PASTOUREAU, Michel. Símbolo. In : LE GOFF, Jacques & SCHIMITT, Jean-Claude. Dicionário temático... Op. Cit. 11 PASTOUREAU, Ibidem, pp. 495-496. 12 Este já é um contexto de guerra das duas rosas.
G N A R U S | 109 desse rei, sinais estes frutos da vontade divina para
utilização pelos soberanos ingleses, se torna
que Henrique torna-se um homem vitorioso.
importante observarmos um aspecto contextual que de certa forma ditará as questões políticas do reino inglês durante o século XV.
O Mito da sagração: Thomas Becket e o óleo sagrado O rito da unção, apesar de não ser o único na sagração que garante uma sacralidade a figura régia, continua tendo um papel essencial na produção de uma autoridade divina aos soberanos ingleses, assim como na produção da imagem real. Os reis ungidos tinham relação com os soberanos do Antigo Testamento, tendo destaque Davi e Salomão, personagens considerados na tradição judaico-cristã sagrados por Deus.
Após a morte do rei Eduardo III em 1377 ascende ao trono seu neto Ricardo II cujo reinado foi marcado por diversas contestações ao poder do rei. Houve certa tentativa deste soberano em manter a ordem política do reino assim como manter paz com relação à França em meio a Guerra dos Cem Anos. Entretanto as conspirações no meio da nobreza cresciam, a Igreja se via ameaçada com a nova heresia surgida a partir do teólogo de Oxford John Wycliff e em outros casos o monarca agia com
Com relação à unção de Davi, o livro de 1 Samuel
tirania aumentando sua impopularidade. Fatos
oferece uma compreensão do simbolismo em torno
esses que juntos auxiliaram na instabilidade política
da sagração:
e social do reino levando em 1399 a usurpação de
“Iahweh disse a Samuel: “Até quando continuarás lamentando Saul, quando eu próprio o rejeitei, para que não reine mais sobre Israel? Enche de azeite o teu chifre e vai! Eu te envio à casa de Jessé, o belemita, por que vi entre os seus filhos o rei que eu quero.” 13
“Então Samuel disse a Jessé: “Manda procuralo, porque não nos sentaremos à mesa enquanto ele não estiver presente”. Jessé mandou chamálo: era ruivo, de belo semblante e admirável presença. E Iahweh disse: ‘Levanta-te e unge-o: é ele! ‘ Samuel apanhou o vaso de azeite e ungiu-o na presença dos seus irmãos. O espirito de Iahweh precipitou-se sobre Davi a partir desse dia e também depois.”14
Entre séculos XIV e XV, na monarquia inglesa, a ganha
um
sentido
maior
com
a
“redescoberta” do óleo sagrado de Thomas Becket, cuja lenda diz que foi entregue ao Santo Mártir pela Virgem. Para analisar o encontro do óleo e sua 13 14
BJ. 1Sm. 16:1 BJ. 1Sm. 16: 11-12.
historiografia tem interpretado o século XV como um contexto de crise política, no qual a legitimidade régia tornou-se o grande problema a ser resolvido pelos reis Lancaster. O historiador Edward Powell15 aponta que a ação de Henrique na
E ainda:
unção
Henrique IV, duque de Lancaster ao trono. A
usurpação foi um ato inteligente, o duque conseguiu aliados, além de neutralizar seus opositores e fiéis do rei Ricardo. Desta forma, a deposição de Ricardo II por Henrique IV tornou-se um evento político de proporções e impactos maiores que a deposição de Eduardo II em inícios do século XIV. É neste contexto de transformações políticas na Inglaterra dos séculos XIV e XV que surgirá o óleo sagrado de São Thomas Becket, auxiliando acima de tudo na legitimação dos Lancaster ao trono. Thomas Becket foi no século XII arcebispo da
15
C.f. POWELL, Edward. Lancastrian England. In : ALLMAND, Christopher (Org.) The New Cambridge Medieval History: Vol. VII c. 1415- c.1500. Cambridge University Press, 2008. p. 457.
G N A R U S | 110 Cantuária, região de extrema importância pois
ganhou proporções não apenas regionais, mas em
ainda hoje é considerada a “mãe da Igreja da
torno da Cristandade, pois muitos eram os casos em
Inglaterra”. Além de um destaque social e político,
que peregrinos de outras regiões, sobretudo da
os arcebispos desta região possuíam para com a
França, que iam até a Cantuária ao santuário do
realeza uma importância simbólica, pois eles eram
Mártir em busca de auxílios e milagres. A narrativa
os responsáveis por comandar, na maioria dos
hagiográfica do santo é bem clara ao afirmar as
casos, a cerimônia de Sagração dos soberanos
curas por ele feitas desde sua morte: sua túnica
ingleses. Thomas Becket inicialmente não foi
ensanguentada teria curado o mal de uma mulher e
preparado para ser Arcebispo, mas sim para seguir
o próprio óleo cuja narrativa surgirá no século XIV
funções administrativas junto ao rei Henrique II.
teria a capacidade de curar escrofulosos.
Porém Becket ganhou um alto prestígio não só no meio temporal, mas, sobretudo espiritual, após a morte do então arcebispo da Cantuária Teobaldo, Becket é nomeado pelo Papa o novo prior da região.
Apesar da importância de Becket no culto popular que se desenvolveu entre a Idade Média Central e a Baixa Idade Média; segundo Marc Bloch, um dos primeiros relatos sobre o frasco com o santo óleo não é contemporâneo à morte de Becket, mas sim
Após Thomas Becket tornar-se arcebispo, diversos
do início do século XIV pelo frei Nicholas of
conflitos foram estabelecidos entre ele e o rei,
Stratton.17 Em épocas do rei Eduardo II, antes de sua
sobretudo no que tange as prerrogativas de poder
sagração, ele envia para a França o frei supracitado,
real em interferir no religioso, além desse ser um
de forma que o mesmo pudesse encontrar um óleo
contexto de Reforma da Igreja na qual ela se
que teria sido deixado em terras francesas por
afirmava cada vez mais independente dos poderes
Becket quando do seu exílio, e que acima de tudo
laicos. Becket então entra em exílio durante seis
tinha poderes curativos. Thomas Becket exilado
anos na França, depois retorna a Inglaterra, onde
tem uma visão em que a Virgem anuncia sua morte
foi assassinado por ordens de Henrique II. A partir
e lhe entrega o santo óleo, o quinto rei após
de então se instalou um culto de extremas
Henrique II deveria ser ungido com o mesmo, o que
proporções ao “Santo Mártir” e após três anos de
auxiliaria o monarca a vencer as cruzadas e
sua morte Thomas Becket é canonizado.
recuperar a Terra Santa para a Cristandade. O
“O desenvolvimento do culto a Thomas Becket foi tamanho que levou à criação de outros santuários em sua homenagem, onde também podia ser venerado e milagres alcançados. Para isso, qualquer associação ao santo era válida: a posse de uma relíquia ou até mesmo o lugar por onde tivesse passado. As novas igrejas dedicadas a Becket também puderam obter indulgências, estimulando a visita dos devotos.”16
Uma rede enorme de peregrinações foi
quinto rei foi justamente no século XIV Eduardo II que após ter encontrado o óleo, seguindo as antigas tradições da unção por simples óleos consagrados não foi ungido pela relíquia de Becket. Marc Bloch ainda aponta que após isto, seu reinado foi atingido por diversas calamidades, tendo ele então renunciado em favor de seu filho Eduardo III em
estabelecida sob o culto de Thomas Becket, que JESUZ, Viviane Azevedo de. A cidade sobre o texto: um estudo acerca da sociedade urbano inglesa a partir da narrativa de Geoffrey Chaucer (segunda metade do século XIV). Dissertação de Mestrado. UFF, Niterói, 2012, p. 95. 16
BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos – o caráter sobrenatural do poder régio na França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 176 17
G N A R U S | 111 1327. O fato é que o óleo teria sido guardado no tesouro real e não houve mais notícias após isto. As hagiografias sobre Becket entre os séculos XII e XIII não apresentam qualquer referência a um óleo santo, em contrapartida a aparição da Virgem ao mártir torna-se estruturante em todas as narrativas. O fato é que após a “descoberta” do óleo na época de Eduardo II a narrativa sobre o frasco torna-se cada vez mais comum, tendo ressonâncias maiores no século XV quando o mesmo passa de fato a ser utilizado pelos soberanos ingleses.
É importante considerar que o surgimento da narrativa do óleo sagrado no século XIV tem ligações diretas com o culto mariano que terá a partir do século XII um destaque essencial na religiosidade cristã. A Virgem se torna um elemento essencial na tradição cristã, ela não só possui relações diretas com a figura de Cristo, mas também no próprio significado que a Igreja obterá a partir da Idade Média Central. Maria é “mãe de Deus” por consequência da encanação ao mesmo tempo em que ela é filha dele. Baschet20 aponta que o culto a Virgem tomará grandes proporções no
“This oyle was closed in a egel of gold, and that egil put in a crowet of ston; and the revelacion Herry, the first duke of Lancastir, fond it, and brout it hom Ynglond, and gave it to the Prince Edward, to this effect, that, aftir his faderes deces, he schuld be anoynted with the same.”18
século XII quando ela é coroada ao lado Cristo
Após Eduardo II não ter utilizado o óleo sagrado
Virgem-Igreja, fato possível de se observar em
em sua coroação e o mesmo ter sido guardado no tesouro régio, este teria sido achado no fim do século XIV no reinado de Ricardo II, todavia após sua unção já ter sido realizada, por tradição, a cerimônia de sagração não poderia ser repetida, o óleo é então guardado novamente no tesouro real e, após a usurpação de Henrique IV o mesmo foi utilizado para a unção pela primeira vez. A evidência desse discurso pode ainda ser percebida no século XV por John Capgrave ao fazer uma vasta produção de memória em torno da história inglesa.
“Thus was he crowned on Seynt Edward day, and anoynted with that holy oyle that was take to Seynt Thomas of Cauntirbury by oure Lady; and he left it in Frauns”.19
afirmando uma quase divinização de sua imagem. Maria então é mãe, filha e esposa de Deus, casamento esse afirmado pela relação Cristotorno das representações iconográficas da época. A Virgem torna-se então uma espécie de relicário do próprio Cristo devido a gestação ocasionada pela encarnação, aliás, ver-se no medievo a propagação das relíquias que entraram em contato com Cristo, pedaços da cruz, dente de leite, gotas do leite de Maria, assim como relíquias da Virgem, tendo destaques os véus por ela usados como o presente até hoje na Catedral de Chartres na França21. Mais uma vez não importa se esses objetos são realmente de Cristo e Maria, mas sim que existia uma crença propagada no medievo que afirmava suas funções sobrenaturais e a ligação com esses dois personagens importantes do cristianismo. O óleo de Thomas Becket é aqui entendido como uma relíquia do santo atestada pela virtus do objeto
CAPGRAVE, John. Chronicle of England. p. 273. “O óleo foi deixado em uma águia revestida de ouro e esta foi colocada sobre uma pedra; e a revelação de Henrique, primeiro duque de Lancaster, o achou, e trouxe para a Inglaterra e deu ao Príncipe Eduardo, por esse efeito ele deveria ser ungido com o mesmo. ” (Tradução Livre). 19 CAPGRAVE, John. Chronicle of England. p. 273. Então ele (Henrique IV) foi coroado no dia de São Eduardo, e ungido com 18
o santo óleo que foi entregue a Thomas da Cantuária pela Nossa Senhora, e deixado na França.”(Tradução Livre). 20 Cf. BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano 1000 a colonização da América. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006. pp. 473-474. 21 C.f. SCHIMITT, Jean- Claude. O corpo das imagens: Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. São Paulo: EDUSC, 2007, p. 282.
G N A R U S | 112 sagrado já que o mesmo tinha a capacidade
que possui uma relação direta com o fenômeno da
curativa, além do auxílio aos reis nas suas
Santidade.
prerrogativas de poder com relação às Cruzadas e suas posses na França. Para além de relíquia de Becket o óleo sagrado é aqui entendido como um objeto da própria Virgem, já que ela o entregou ao próprio Mártir. Um rei ungido com tal relíquia não só entra em contato com uma dimensão sacramental, assim como tem contatos diretos com Thomas Becket que assume uma importância para a realeza, da mesma forma que a Virgem se manifesta em auxílio aos reis, junto a isso o monarca terá relações diretas com a representação de Cristo, tornando-se assim um soberano “cristianíssimo”.
A utilização do óleo na sagração tornou-se uma tradição, no qual os soberanos até o século XVI foram sagrados pela relíquia de Becket até essa herança ser abolida com a chegada dos Stuart ao trono no século XVII, sendo estes seguidores do Calvinismo.
A Transformação de Henrique V “In the yere of the world 6611, and of oure lord Jesu 1413, was Herry the V corowned at Westminster of Passion Sunday. And aftir his coronacion he was evene turned onto anothir man and alle his mociones inclined to vertu.”22
Corroborando com esta questão, a posse de um
Assim se inicia a narrativa do reinado de Henrique
objeto de importância simbólica como o óleo santo
V no Chronicle of England, o rei coroado na Abadia
de Becket por parte dos soberanos ingleses tem
de Westminster num domingo da Paixão se
ligações diretas com uma construção de identidade
transforma num outro homem, virtuoso, casto,
de reino num contexto que a historiografia costuma
devoto, guerreiro, justiceiro, piedoso. Suas ações
chamar de “gênese do Estado Moderno”. Thomas
de devoção apresentam esse rei como uma dupla
Becket era um santo de extrema importância para
imagem, metade clérigo e metade homem. As
os ingleses medievais, um santo do reino, a devoção
prerrogativas desse soberano como rei são
exposta pela realeza a este “mártir” é um exemplo
desenvolvidas a partir das narrativas sobre as
das rivalidades sociais e políticas surgidas com a
virtudes que esse monarca teria seguido após a
França em meio a Guerra dos Cem Anos, junto com
unção. Diversas imagens foram formadas sobre a
a necessidade da realeza de se apossar de objetos
figura do rei e afirmadas numa longa produção de
considerados sagrados de forma que pudessem
memória que serão confirmadas por escritores
afirmar a sacralidade da monarquia. A partir da
renomados como Shakespeare. Nas fontes aqui
utilização do óleo santo de Thomas Becket a
utilizadas não encontramos qualquer referência às
sagração obterá elementos de uma tradição cristã
atitudes de Henrique V quando ainda era príncipe,
da unção, mas também regionais evidenciados pela
apenas representações breves de suas ações em
importância do mártir antes citado. Junto a isto as
Batalha na defesa do reino de seu pai Henrique IV
concepções de martírio se tornam um elemento
na região do País de Gales.
estruturante para afirmação política da realeza,
A afirmação dessa ideia irá aparecer justamente no século XVI em um auge da produção de memória sobre a figura de Henrique V, na peça a
22 CAPGRAVE, John. Chronicle of England – p. 303. “No ano do
mundo 6611, e de nosso senhor Jesus 1413, foi Henrique o V coroado em Westminster no Domingo da Paixão. E após sua
coroação ele foi transformado em outro homem e todas as suas ações inclinadas às virtudes.” (Tradução Livre).
G N A R U S | 113 ele dedicada feita por William Shakespeare, em
A imagem do rei transformado após a unção
uma conversa do Arcebispo da Cantuária com o
parece associa-lo a figura de outro monarca do
Bispo de Ely.
Antigo Testamento que ganhou destaque nas
CANTUÁRIA: O rei é bem intencionado e cheio de boas qualidades. ELY: E sincero admirador da nossa santa Igreja. CANTURÁRIA: Não prometiam isso as estroinices de sua mocidade. Só parece que ao exalar seu pai o último alento, sua selvageria também nele viesse a morrer. Sim, nesse mesmo instante veiolhe a reflexão, tal como um anjo que Adão, o pecador, dele expulsasse, transformando-lhe o corpo em paraíso reservado aos espíritos celestes. Nunca um sábio se fez tão improviso, nunca a reforma veio numa enchente assim tão forte, para, em seu decurso, varrer tantos defeitos; nunca fora vencida a teima de cabeças de Hidra com tanta felicidade, como vimos com esse rei.23
A narrativa da transformação da alma do rei após a unção se manteve viva numa perspectiva de longa duração, desde a crônica de Capgrave nos anos 1460, assim como na vasta produção de memória que culminou na obra teatral de Shakespeare no século XVI. Esta narrativa tem íntimas ligações com uma identidade de reino que se produziu ao longo da Baixa Idade Média, assim como nos chamados “tempos modernos”, apresentando Henrique como um monarca exemplar, cuja representação de sua imagem, ou melhor, a memória em torno de sua figura se manteve viva na longa duração. É importante ter em mente que Shakespeare era um grande formador de memória. Muito do que se
narrativas de Samuel: Saul. Embora não haja na fonte de Capgrave uma referência direta a transformação de Saul após a unção, o texto cronístico parece manter íntimas relações com a tradição bíblica. “Então o espírito de Iahweh virá sobre ti, e entrarás em transe com eles e te transformarás em outro homem.” “Assim que voltou as costas para deixar Samuel, Deus lhe mudou o coração, e todos esses sinais se verificaram naquele mesmo dia.”24
Sinais, elementos importantes após a unção de Saul, independente dos erros que esse rei tenha feito e que geraram o rompimento dele com Deus como é apresentado na tradição bíblica, enquanto esse foi fiel ao Senhor, ele junto ao rei sempre esteve e tais sinais foram percebidos, sobretudo em batalhas contra os
sinais, isto é, o simbólico teve sua manifestação em todos os momentos no que tange sua sagração e vistos após a transformação do rei. A mudança da alma de Henrique fomentou na produção cronista e biográfica um conjunto de imagens, tendo destaque a extrema devoção de Henrique e suas atitudes guerreiras que se complementam com a primeira. ***
herói dos ingleses que lutou contra o povo inimigo teatral do autor. A base de Shakespeare teria sido provavelmente a herança cronística que se manteve dos séculos XV-XVI ou até mesmo a tradição oral de um “rei herói e modelar”.
SHAKESPEARE, Willian. Henrique V. p. 218. Disponível em: shakespearebrasileiro.org. 23
a
representação de Henrique V no século XV os
pensa de Henrique V até hoje – sua figura como e os infiéis heréticos – estão presentes na narrativa
filisteus. Retornando
A transformação da alma de Henrique V possibilitou apagar as selvagerias carnais por ele cometidas antes da sagração. Neste sentido a unção ganha um caráter de extremo simbolismo, o óleo de Thomas Becket ou ainda o óleo da Virgem com cunho sacramental transformou a alma de um 24
BJ.1 Sm10: 6 e 9.
G N A R U S | 114 homem inescrupuloso, seu espirito mudado foi maior que seu corpo e por ele se observou a
Pseudo-Elmham. Vita et Gesta Henrici Quinti. Editado por Thomas Hearne. 1727.
transformação do rei em outro homem. A narrativa da transformação permite observar como a
Referências
coroação vai de formas diversas garantir uma
BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano 1000 a colonização da América. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2006. BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos – o caráter sobrenatural do poder régio na França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. JESUZ, Viviane Azevedo de. A cidade sobre o texto: um estudo acerca da sociedade urbano inglesa a partir da narrativa de Geoffrey Chaucer (segunda metade do século XIV). Dissertação de Mestrado. UFF, Niterói, 2012. LE GOFF, Jaques & SCHMITT, Jean-Claude.
sacralidade a figura de Henrique V, seu corpo agora não é espaço da selvageria, mas sim um local de manifestação do sagrado através dos gestos, a devoção, virtudes de justiça, castidade, etc. A sagração de Henrique V tornou-se um espaço de múltiplas representações que culminaram na formação da imagem deste como rei cristianíssimo, assim como sua associação a virtudes com origens divinas. A escolha da data de sua coroação num domingo de páscoa não somente representa uma tradição da monarquia como também a inserção do rei numa complexa liturgia que associa sua imagem a uma sacralidade. Além disso, os indivíduos convidados para o ritual tendo destaque o grande número de clérigos produz no cerimonial um caráter magico, sobrenatural.
Caio de Barros Martins Costa é mestrando em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da UFF, orientado pela Professora Dra. Vânia Leite Fróes e Bolsista CNPq de Mestrado. Email: caiodebarros27@gmail.com
Documentação: An English chronicle of the reigns of Richard II, Henry IV, Henry V and Henry VI. Written before the Year of 1471. Bíblia de Jerusalém. Tradução das introduções e notas de La Bible de Jérusalem, edição de 1998, publicada sob a direção da “École biblique de Jérusalem”. São Paulo: Paulus, 8º impressão de 2012. CAPGRAVE, John. Chronicle of England. Editado por Rev. Francis Charles Hingeston, 1858 CAPGRAVE, John. The Book of Illustrious Henries. Editado e traduzido do latim por Rev. Francis Charles Hingeston, 1858.
Dicionário temático do Ocidente Medieval.
Bauru: Edusc, 2002. POWELL, Edward. Lancastrian England. In : ALLMAND, Christopher (Org.) The New Cambridge Medieval History: Vol. VII c. 1415c.1500. Cambridge University Press, 2008. SHAKESPEARE, Willian. Henrique V. p. 218. Disponível em: shakespearebrasileiro.org. SORIA, José Manuel Nieto. Ceremonias de la realeza. Propaganda y legitimación en la Castilla Trastámara. Editorial Nerea, 1993.
G N A R U S | 115
Artigo
TÚNDALO E ROLANDO: VISÃO E CANÇÃO DO PARAÍSO (SÉC. XII) Por Fernando Augusto Alves Batista
Resumo: O “Além” cristão, enraizaram-se de tal forma nas mentalidades da Idade Média, que homens e mulheres moldavam suas vidas e seu cotidiano, almejando alcançar a salvação e desfrutar dos deleites proporcionados no Paraíso. Vários escritos foram feitos com o objetivo de exemplificar esses lugares. Um estudo sobre tais escritos nos permite analisar a influência do Paraíso na vida cotidiana do homem medieval Europeu do século XII. Para fazer essa análise, usaremos a Visão de Túndalo e a Canção de Rolando, fazendo uma comparação entre os dois manuscritos, compreendendo a influência do Paraíso para o homem medieval. Palavras-chave: Paraíso Cristão. Mentalidade. Cotidiano. Abstract: The " In " Christian , have embedded themselves so mentalities of the Middle Ages , men and women who shaped their lives and their daily lives, aiming to achieve salvation and enjoy the delights offered in Paradise . Several writings were made in order to exemplify those places. A study of such writings allows us to analyze the influence of Paradise in the everyday life of European medieval man of the twelfth century . To do this analysis , we will use the Vision Túndalo and the Song of Roland , making a comparison between the two manuscripts , including the influence of Heaven for the medieval man . Keywords: Paradise Christian . Mentality . Everyday .
Introdução
N
Para dogmatizar os fiéis e moldar suas atitudes os primeiros séculos da Idade Média, o cristianismo já havia se tornado a religião predominante em toda a
Europa Ocidental, mas os princípios da religião eram pouco seguidos pela população europeia. Os costumes pregados para as atitudes e os deveres de um cristão eram em muito ignorados. Graças a este fato, o imaginário cristão passou a ser usado como forma de controle social, para que estes dogmas passassem a ser melhor seguidos. O Paraíso Cristão é parte fundamental deste imaginário, pois era objeto de fascínio dos homens da Idade Média.
segundo os princípios estipulados pela Igreja, vários escritos foram feitos com o objetivo de exemplificar a imagem de um cristão perfeito, utilizando-se do medo ou do fascínio como forma de levar as pessoas a uma doutrina religiosa. Um estudo sobre tais escritos nos permite analisar a influência do Paraíso na vida quotidiana do homem medieval Europeu do século XII. Utilizaremos para fazer essa análise a Visão de Túndalo e a Canção de Rolando, fazendo uma comparação entre os dois manuscritos, para poder analisar a influência do Paraíso para o homem medieval, e também discutir
G N A R U S | 116 como esses manuscritos foram usados pela Igreja
dos não fiéis é afirmado pelo autor B. B. Prince em
para dogmatizar os fiéis e os levar a cumprir com
sua obra Introdução ao Pensamento Medieval: “O
seus deveres, ou a realizar favores para a Igreja.
Cristianismo foi, desde o início, um movimento
Assim o paraíso cristão será analisado como
evangélico, preocupado em expandir a doutrina
modificador e influenciador das atitudes e do
cristã”.
cotidiano na vida do homem medieval europeu,
existência, o Cristianismo já havia se espalhado por
graças a suas representações no imaginário social
boa parte do mundo conhecido.
da época.
2
Em pouco menos de meio século de
O imaginário cristão aprofundou-se de tal modo,
O presente trabalho busca analisar como as
que se tornou presente nas mentalidades da
representações do Paraíso cristão contidos na Visão
sociedade europeia, se inserido completamente
de Túndalo e na Canção de Rolando, influenciavam
nela, de tal forma que o imaginário e o real
nas atitudes e no cotidiano do homem medieval
praticamente não se diferenciavam mais. Como
europeu. E como a Igreja utilizava do Paraíso para
dito na citação inicial desta capitulo, feita por
dogmatizar e influenciar os fiéis.
Jérône Boschet, não podemos compreender o
A importância de estudar esse tema está em mostrar o efeito que o paraíso causava nas mentalidades do homem europeu e a influência
homem medieval e sua vida, sem buscar entender o outro lado da vida, a morte e a suas construções imagéticas na sociedade.
que o mesmo tinha nas atitudes e no cotidiano dessas pessoas.
Um desses conceitos enraizados na vida do homem europeu foi o do Além. Acreditado por quase todos na Idade Média, exceto pelos
1. A utopia do paraíso cristão “Não se pode compreender o homem medieval, sua vida em sociedade, suas crenças e seus atos sem se considerar o inverso do mundo dos vivos: o domínio dos mortos, onde cada um deve, finalmente, receber uma retribuição à sua altura, danação eterna ou beatitude paradisíaca.”1
mulçumanos, o Além era o que vinha após a morte, o além tumulo, além mundo. Segundo Georges Duby: “O homem da Idade média tem a convicção de não desaparecer completamente, esperando a ressurreição. Pois nada se detém e tudo continua na eternidade.” 3 Para os cristãos do século XII o Além era composto pela dualidade entre o Paraíso, lugar
1.1 a expansão da mentalidade cristã O Cristianismo desde o seu surgimento, como todos os movimentos religiosos até então, preocupou-se em expandir seus ideais de salvação por meio da catequização dos não fiéis, buscando espalhar sua doutrina a todos os que não a tinham
de descanso e graças dos “bons” cristãos, e o Inferno, lugar de suplicio e lamentação dos “maus” cristãos. Lugares esses também compostos por seus respectivos habitantes místicos: Deus, a Virgem Maria, os anjos, santos e mártires no Paraíso, e o Diabo, juntamente com seus demônios no Inferno.
como verdade. Esse movimento de catequização
1
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. P. 374. 2 PRICE, B. B. Introdução ao Pensamento Medieval. Lisboa: Edições Asa, 1996. p. 30.
3
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: Na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999. p. 25.
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1.2 Fundamentos bíblicos do paraíso Para o Cristianismo, o Paraíso representa a última
natural, e sim, o que há acima dele, a morada eterna de Deus.
estância da vida de um bom cristão. Um lugar onde
Várias citações referentes ao Paraíso Celeste são
todos os sonhos, anseios e atitudes de uma vida
feitas em toda a Bíblia. Porém a palavra Paraíso,
inteira serão recompensados. Essa forma de pensar
com o significado de Reino dos Céus, como já foi
esteve presente no consciente dos homens cristãos
descrita, foi usada apenas três vezes, as quais
durante toda a Idade Média. Para Hilário Franco
mencionarei abaixo. Uma delas afirmando sua
Junior, em seu livro As Utopias Medievais, “O
existência, na Paixão segundo Lucas, na conversa
primeiro mito da humanidade possivelmente tenha
que Jesus teve na cruz com o bom ladrão antes de
sido sobre a condição perfeita perdida, o Paraíso”. 4
sua morte, ele lhe respondeu: “Em verdade te digo:
A principal forma de disseminação e de legitimação do Paraíso foi a Bíblia, utilizada como fonte de embasamento para as teorias empregadas a esse assunto. “No Ocidente medieval cristão esse sonho coletivo e comum a inúmeras civilizações estava naturalmente alicerçado na Bíblia, que se abre e se fecha com o Paraíso.”5 Como dito por Hilário Franco Jr., mas deve-se lembrar que a Bíblia faz referência a dois Paraísos, o Paraíso terrestre, o Jardim do Éden e o Paraíso Celeste, o Reino dos Céus. A diferença dos dois está no fato de um ter sido berço da criação do homem, enquanto o outro está relacionado a sua morada final, aguardada no
Hoje estarás comigo no Paraíso.” (Lc 23: 43) e também no Apocalipse de João “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. Ao vencedor darei como prêmio comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus.” (Ap 2: 7) Outra atesta de forma direta, a veracidade da existência do paraíso como lugar do Além localizado no reino dos Céus, no exemplo da visão de Paulo: “Conheço um homem, em Cristo, que, há quatorze anos, foi arrebatado até ao terceiro céu – se com o corpo ou sem o corpo, não sei, Deus sabe. Sei que esse homem – se com o corpo ou sem o corpo, não sei, Deus sabe – foi arrebatado ao paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que homem nenhum é capaz de falar. “(II Cor 12: 2-4)
Além. Essa diferença é explicada por Jacques Le Goff: “o Paraíso do fim dos tempos, evocado pelo
As citações do Paraíso na bíblia, não foram
judaísmo e Cristianismo, não é o Jardim da Criação,
somente as três acima, pois as referências ao
mas a Sião dos últimos tempos, a futura
paraíso também eram feitas em diversas formas
Jerusalém.”6 Mas teremos como fonte de estudo o
como dito por Heinrich Krauss:
Paraíso Celeste, ou o Reino dos Céus, analisando como ele influenciava na vida do homem cristão da Europa medieval, mostrando como os indivíduos moldavam suas vidas na esperança de alcançar tal lugar. O lugar do Paraíso Celeste está sempre ligado ao Céu, objeto de fascínio do homem medieval. Mas o Reino Celestial, não é o céu
4
FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 113. 5 FRANCO JÚNIOR, Hilário, loc. cit. 6 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP Editora
“Essa quantidade diminuta não deve iludir, pois há pelos textos afora uma série de formulações e modos de expressar que, com outras palavras, aponta para a existência paradisíaca no céu, sem a utilização da palavra de maneira expressa. Isso ocorre, igualmente, quando se fala do “seio de Abraão”, das “moradas” no céu ou para os dizeres de Jesus sobre o “reino dos céus” e, sobretudo pelas profecias da revelação de João acerca do “novo céu e nova terra”. 7
da UNICAMP, 1990. p. 264.. 7 KRAUSS, Heinrich. O Paraíso: De adão e Eva às utopias contemporâneas. São Paulo: Globo, 2006. p. 155.
G N A R U S | 118 Seguindo essa linha de raciocínio o Paraíso
detentor das terras, regia a forma de trabalho, que
também é apresentado de formas indiretas, como
levava a grande maioria dos homens a prestar
nas parábolas. Tiramos como exemplo a Parábola
serviços de labor nos campos ou nos castelos para
das Dez Virgens: “O Reino dos Céus pode ser
manter o feudo, torna a afirmação de Isaías
comparado a dez moças que, levando suas
marcantes nas mentes de tais homens, cujo desejo
lamparinas, saíram para formarem o séquito do
tornava-se realidade em sua fé de um futuro melhor
noivo.” (Mt 25: 1). Essa parábola anuncia que todos
na vida Paradisíaca, no Além cristão.
devem estar preparados, para quando o Reino dos Céus chegar (representado pelo dia de núpcias). E o noivo seria Jesus que retornou para que haja o
As principais graças apresentadas pela Bíblia em relação ao Paraíso foram a das soluções dos problemas terrenos da humanidade.
juízo final.
“Por isso estão diante do trono de deus e lhe prestam culto, dia e noite, no seu santuário. E aquele que está sentado no trono os abrigará na sua tenda. Nunca mais terão fome, nem sede. Nem os molestará o sol, nem algum calor ardente. Porque o Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água vivificante. E Deus enxugará toda lágrima de seus olhos.” (Ap 7: 15-17)
Para a sociedade da Idade Média europeia, as características do Paraíso apresentadas nos livros da Bíblia foram de fundamental importância para o seu enraizamento no Imaginário social da época. Essas características apresentavam os benefícios e deleites, que os bons cristãos ganhariam, ao alcançar tal lugar. Como apresentado pelo profeta Isaías:
A Europa no século XII sofria com epidemias, escassez de alimentos, sede, e com a seca
“Quem fizer casa, nelas vai morar, quem plantar vinhedos, dos seus frutos vai colher. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer. A vida do meu povo será longa como a das árvores, meus escolhidos vão gozar do fruto do seu trabalho. Ninguém trabalhará sem proveito, ninguém vai gerar filhos para morrerem antes do tempo, porque está é a geração dos abençoados do Senhor, ela e seus descendentes.” (Is 65: 21-23)
ocasionada pelo sol, que prejudicava as plantações. Esses fatores combinados a outros elementos nocivos da natureza, contribuíam para o aumento da taxa de mortalidade. Mais tarde, outro fator somava-se
a
esses
agravantes,
como
o
amontoamento das cidades, ocasionado pelo êxodo rural, dito por Georges Duby: “A verdadeira
Em sua descrição, Isaías refere ao Paraíso como a última morada do cristão, um lugar onde os eleitos morariam por toda a eternidade. Mas em especial ele descreve a inexistência do trabalho, como forma de prestação de serviço e de lavor físico. Em uma sociedade de regime feudal, como era a Europa Medieval neste contexto, onde o poder vindo da hierarquia era predominante, e a ligação de vassalagem ou de servidão para um senhor 8
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: Na pista de nossos medos. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999. p. 25.
miséria aparece mais tarde, no século XII, bruscamente, nos arredores das cidades onde se amontoam os marginalizados”. 8 Essa migração para os meios urbanos contribuía para a marginalização dos homens na Idade Média, difundindo as doenças e outros males que cooperavam para o aumento das mortes neste contexto. Assim, a descrição do Paraíso no livro do Apocalipse é feita como um lugar
onde
esses
males
seriam
sanados,
G N A R U S | 119 fortalecendo a aceitação dos seus conceitos pelos
feudos, ou cruzadas. Todos esses fatos eram
leigos, que sonhavam com a solução de tais
invertidos e transfigurados na utopia paradisíaca.
problemas, soluções essas que eram apresentadas
Os textos bíblicos e outros manuscritos criados para
pelos disseminadores do Paraíso.
descrever o Paraíso, exemplificavam esses ganhos,
O fortalecimento do mito foi alcançado graças ao ato consciente do homem medieval de buscar a solução de seus problemas. Esse ato é descrito por Alípio de Sousa Filho como a inversão da realidade: “Inverter a realidade. Com efeito, o que caracteriza essencialmente o ser da ideologia é promover a inversão da realidade social, através de representações que afastam inteiramente sua gênese histórica e seu caráter de produto humano, pondo em seu lugar uma representação da realidade social que a torna uma verdadeira segunda natureza. Assim, o que é próprio da ideologia é converter os objetos de natureza social em objetos de natureza natural. O mundo humano-social como objeto social, cultural e historicamente construído é transfigurado em objeto dado, natural, eterno, sagrado.” 9
Alípio de Sousa usa do conceito de Marx e Engels, em A Ideologia Alemã. Esse conceito consiste em descrever que a inversão da realidade, visa à construção de uma segunda realidade, usada como fuga dos males sociais de uma determinada época, em que o povo de determinada cultura está inserido. Ele tinha a “função de compensação”
que podem ser sintetizados segundo a fala de Hilário Franco Jr. em cinco características principais: “Natureza pródiga, saúde, harmonia, imortalidade e unidade.”11 Sendo a unidade, a característica por excelência ao homem medieval. A unidade com Deus.
1.3 O paraíso e o cotidiano na idade média Mas chegar ao Paraíso não era uma tarefa fácil, somente os que foram bons durante a vida chegariam a tal lugar de deleite. A doutrina cristã do século XII estipulava como bom cristão aquele que em sua vida não cometia os “Sete pecados capitais”: Gula, avareza, preguiça, luxuria, inveja, ira e a soberba. Manter-se fiel aos ideais cristãos não era uma tarefa simples de ser realizada, mas não os seguir colocaria em risco a salvação, como descrito no trecho do Dicionário do Ocidente Medieval: “O destino da humanidade ressuscitada não depende apenas da vontade de Deus todopoderoso, pois este respeita as regras que fixou, fazendo a situação dos homens e mulheres no Além depender de como se comportaram durante sua vida terrena.” 12
termo empregado no livro de Jacques Le Goff, que afirmava que “O maravilhoso é um contrapeso à banalidade e à regularidade do quotidiano”.10 Para o cristão medieval, a inversão da realidade é tomada na figura do Paraíso. O labor dos trabalhos no campo, nos castelos; a fome e sede gerada pela estiagem e pela forte ação do sol, que influenciavam nas más colheitas; as epidemias causadas pelo expansionismo nas florestas e pela má higiene e as inúmeras guerras travadas entre os
9
SOUSA FILHO, Alípio de. A Cultura, ideologia e representações. 1 ed. Mossoró: Fundação Guimarães Duque/Fundação Vingt-un Rosado, 2003, v. 1376, p. 77. 10 LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Rio de Janeiro: Edições 70, 1983. p. 24.
Graças a essa série de fatores o Paraíso cristão torna-se a principal utopia da Idade Média. Sendo perceptível, nas diversas representações artísticas e culturais, que tem como enfoque a representação da figura do Reino dos Céus. Esculturas, pinturas, 11
FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 121. 12 LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 26.
G N A R U S | 120 afrescos, vitrais, além de canções e histórias, que
divulgação do imaginário cristão, inúmeras obras
representaram o Paraíso, em locais onde existia
como manuscritos, imagens e canções foram feitas
uma grande circulação de indivíduos. Mas em que
para ajudar a expandir tais conceitos, dentre esses
foram inspiradas essas representações artísticas do
a Visão de Túndalo e a Canção de Rolando. As duas
Paraíso? Sendo que ele só poderia ser visto após a
representações de formas diferentes ajudaram a
morte, no Além tumulo! “Contudo, nem as utopias
difundir os conceitos e as características do Paraíso
são tão profundas, nem o Paraíso tão inacessível
cristão no século XII. Mas para entender como
cotidianamente – ao menos para o imaginário
aconteceu esse processo, é preciso analisar tais
medieval.” 13 Como afirma Luc Racine.
obras, buscando compreender como elas, em seu
“Como seria possível, para os mortais, conhecer durante a vida o Inferno e o Paraíso, ao menos nas suas principais características? Salvo as magras notícias dadas pela Bíblia, sobretudo pelos Evangelhos, os vivos poderiam ser informados pelos relatos de viagens ao Além.” 14
meio de atuação e em seu contexto social, e também, graças as suas especificidades, foram influentes na mentalidade social do homem medieval europeu.
A explicação dessa indagação está nos relatos de
A Visão de Túndalo e a Canção de Rolando,
viagens ao Além, que traziam consigo as
mesmo sendo obras contemporâneas, eram
representações e as características físicas do
ambíguas entre si. Ambas possuíam características
paraíso, como dito por Le Goff e Jean Claude
diferentes e narravam ou descreviam fatos
Schmitt.
históricos ou imaginários. Para analisar tais obras, homens
antes se torna necessário um estudo sobre as
escreveram relatos de viagens ao Além. Mas não
especificidades das mesmas, em suas semelhanças
foram somente as viagens, também existiam as
e diferenças, para que assim possamos comparar
visões, os milagres e as maravilhas que ajudavam a
especificidades e analisarmos como elas poderiam
atestar a real existência de tal lugar no imaginário.
influenciar na divulgação e no enraizamento das
Esses relatos se tronaram populares em toda a
características do Paraíso e da busca pelo mesmo.
Durante
a
Idade
Média,
vários
sociedade, e eram usadas em discursos, pregações ou nos atos de catequização.
A visão de Túndalo foi escrita no século XII (no ano de 1149), pelo monge irlandês Marcos, para a Abadessa Gertrudes de quem ele era confessor,
2. A visão de Túndalo e a canção de Rolando: difusores do paraíso
escrito em latim ou gaélico, em forma de narrativa cisterciense. A Visão de Túndalo foi traduzida para o português por volta do século XV, por monges do
2.1 Características históricas da visão de Túndalo e da canção de Rolando
mosteiro de Alcobaça. A tradução que será
Durante toda a Idade Média, vários relatos de
Frei Zacarias de Payopelle. Essa tradução foi
viagens, visões e milagres exemplificaram a
publicada pela Revista Lusitana em 1895, por F. M.
presença do maravilhoso cristão no cotidiano do
Esteves Pereira. A narrativa de Marcos visa
homem medieval. Dentre essas formas de
descrever as características do Além, através de
13
14
RACINE, Luc. In: FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 116.
utilizada aqui será a do códice 244, traduzido pelo
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 26.
G N A R U S | 121 uma viagem feita após a morte, pelo cavaleiro Túndalo, como descrito no trecho inicial da visão: “Começase a Estoria dhuun Cavaleiyro a que chamavan Tungulo. ao qual foron mostradas uisibilmente e non per ontra reuelaçon. todas as penas do inferno e do purgatorio. E outrosi todos os beens e glorias. que ha no sancto parayso.” (Visão de Túndalo (VT), 1895: 101).
A Canção é uma descrição dos fatos ocorridos que engendraram a batalha de Roncesvales, na Espanha. Onde Carlos Magno e o conde Rolando, junto aos demais doze pares de frança, lutam contra um exército espanhol, graças a traição de um dos pares, o nobre Ganelão. Os doze pares tiveram um confronto contra o exército do rei pagão Marsilio e
Túndalo é um cavaleiro de boa linhagem, que viveu na cidade de Ybernia. Depois de sua morte vários demônios e um anjo apareceram para ele, mas ele jogou-se aos pés do anjo pedindo por misericórdia, e o anjo logo depois o levou para conhecer os reinos do Além: o Paraíso e o Inferno. Túndalo vê as penas que os maus padecem no inferno, sofrendo também com algumas delas, as quais ele era pecador, e em seguida é levado a presenciar as graças que os bons receberiam no Paraíso. O Paraíso de Túndalo é dividido em muros de pedras preciosas, muros esses que separam o nível de prazer e de folganças que os bons que lá residem recebem. Depois de sua viagem aos reinos do Além, Túndalo retorna a vida, ressuscitado após três dias para pregar o que viu nos reinos do Além a todos aqueles que não viram. O manuscrito mais antigo da Canção de Rolando foi encontrado na biblioteca de Oxford. Escrito entre o final do século XI e meados do século XII, mas o afastamento da obra em relação aos fatos por ela descritos são de
seus também doze nobres. A canção de Rolando de autor anônimo, mesmo remetendo a fatos que ocorreram a quatro séculos anteriores em relação ao período em que ela foi escrita, pode ser usada como referência, graças à forte presença de anacronismo em seu discurso, mantendo vários elementos do período em que foi escrita, durante a descrição dos acontecimentos de Roncesvales. Torna-se assim possível fazer uma comparação entre as duas fontes, pois em vários momentos da Canção de Rolando é mostrada a figura do Paraíso cristão em suas falas, nos apelos e nas preces de seus personagens, ou mesmo no imaginário religioso presente em seu cotidiano. Esses conceitos descritos do Paraíso são representações do século XII, período em que a obra foi escrita. Com isso, mostra-se o quão a figura do Paraíso está enraizada nas mentalidades do homem medieval, através das interferências do trovador, ao cantar a história, utilizando dos seus princípios diários, na descrição durante a canção.
mais de quatro séculos, já que a canção remete ao
Tanto a Visão de Túndalo quanto a Canção de
círculo do Rei ou ciclo de Carlos Magno (768-814).
Rolando foram feitas para serem apresentadas de
A Canção de Rolando é um épico escrito em forma
forma oral. Segundo Baschet: “Mesmo se as obras
de canção de gesta15 em dialeto Anglo –
literárias são conservadas por escrito, continuam
Normando.
essencialmente feitas para serem contadas ou cantadas”.16 A escrita ganha espaço na vida social
15 A canção de Gesta. Entende-se por canção de gesta um longo
poema épico, em versos de oito, 10 ou 12 sílabas, reunidos em estrofes ou laisses de extensão desigual, cada uma delas terminando por assonância numa vogal, em vez de rima. Destinava-se a ser cantada diante de um auditório, segundo melodia simples acompanhada de um instrumento de cordas,
semelhante à viola ou ao realejo. A Canção de Rolando. Tradução Ligia Vassalo. Coleção obras primas através dos séculos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. 16 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p. 182.
G N A R U S | 122
2.2 Visão e canção: descrições do paraíso
da Idade Média a partir do século XI. Mas a oralidade ainda é o meio de transmissão em massa, de informação, mais utilizado até então, fato esse também descrito por Baschet: “Apesar da crescente utilização da escrita, a oralidade e os gestos rituais continuam a dominar a vida social”.17 A Visão de Túndalo foi feita para ser utilizada em discursos sacros, como as homilias nas Santas Missas ou em outros tipos de pregações as massas, e a Canção de rolando para ser cantada pelos arautos e bardos nas tabernas e demais locais de reunião das massas, com o objetivo de perpetuar os acontecidos
A visão de Túndalo e a Canção de Rolando foram um exemplo do que foi descrito por Hilário Franco Jr., na citação inicial deste capitulo. A Canção de Rolando descreve imaginariamente a utopia paradisíaca, já a Visão de Túndalo foi um relato de uma viagem concreta de Túndalo aos reinos do Além cristão. Esses relatos ajudaram a propagar os conceitos de salvação da alma. E principalmente demonstraram o que os bons cristãos receberiam como pagamento por suas boas ações e por toda a sua devoção durante a vida.
históricos de Roncesvales através da divulgação proveniente das canções.
Será analisado como o Paraíso tornou-se objeto de desejo pelo que ele oferecia, através da
É importante fazer uma reflexão de como era a
descrição de tal lugar nas duas fontes, utilizando a
recepção dessas imagens pelos cristãos de tal
Canção de Rolando para demonstrar a presença do
contexto, como descrito abaixo:
Paraíso no cotidiano do individuo e da sociedade,
“É interessante pensar no impacto que tais imagens teriam no público medieval que ouvia tais histórias. Certamente as pessoas de então refletiam muito sobe as suas ações e sentiam medo das possíveis aflições futuras.” 18
mostrando o quanto esse conceito estava presente nas mentalidades da sociedade medieval. Já a Visão de Túndalo, será utilizada para demonstrar quais eram as características apresentadas do Paraíso, que foram enraizadas nas mentalidades.
Será utilizado o conceito da Dr. Adriana Zierer, para perceber o quanto a presença do Paraíso em tais visões influenciava na vida e no cotidiano do homem na Idade Média. Farse-á uma descrição de como o Paraíso era apresentado em tais relatos, e como essas representações eram interpretadas pelos
seus
ouvintes,
também
fazendo
um
levantamento de como tais fontes foram usadas pela Igreja e posteriormente como eles moldavam suas vidas e atitudes graças a tais relatos, para que pudessem alcançar o Paraíso.
“Vem alma bem auentuyrada. que ata agora uiste as penas que os maaos padecem. E daqui em dcante ueeras os beens que os boons recebem” (VT 1895: 111). Em suma, quando sé é questionado sobre o porquê de querer ir para o Paraíso, a resposta será em maioria, o medo de ir para o Inferno, deixando assim de lado a busca do Paraíso pelo Paraíso. Mas na Idade Média, ele era objeto de desejo pelo que tinha a oferecer, por suas qualidades e vantagens, como as que já foram apresentadas no capítulo anterior, como a inexistência do trabalho de labor físico, a solução da fome, da dor e das doenças.
17
Ibidem. p. 182.
18
ZIERER, Adriana Maria de Souza. Aspectos Educacionais da Salvação Cristã na Visão de Túndalo. São Luís: Ed. UEMA, 2007, p. 293-308.
G N A R U S | 123 Mas a utopia paradisíaca ainda tinha muito a
uma das principais características do Paraíso.
oferecer, como descrito por Le Goff e Jean –
Prazeres que foram tirados ou abdicados na vida
Claude:
terrena são restituídos no Reino dos Céus. Prazeres
“O Paraíso é um lugar de paz e alegria, desfrutada pelos eleitos através de seus principais sentidos: flores e luz para os olhos, cânticos para os ouvidos, adores suaves para o nariz, gosto de frutos deliciosos para a boca, panos aveludados para os dedos [...] Algumas vezes, o Paraíso é circundado de altos muros de pedras preciosas compreende espaços concêntricos protegidos, eles também, por muros, cada espaço mais luminoso, mais perfumado, mais saboroso, mais harmônico, aproximando-se do centro em que reside Deus e que mantém reservada a visão bearifica.”19
esses remetendo aos sentidos: o tato, paladar, visão, olfato e audição. Logo na entrada do Paraíso, dois desses sentidos já são atiçados: a visão e o olfato. Graças às flores que estão presentes na entrada do Reino dos Céus. A entrada é descrita com um lugar florido, sendo um deleite para a visão e o olfato. “e assy como entraron. uiron huum campo muy verde e muy formoso e plantado de muitas e muy fomosas rosas. e de outras hervas de muy boon odor.” (VT 1895: 112). Na canção de
Mas, para descrever quais eram as principais
rolando as flores do paraíso também estão sempre
características do Paraíso, será utilizada a fala de
presentes, sendo perceptível na fala de Rolando,
Hilário Franco Jr., que já foi apresentada no
quando vê seus companheiros mortos, ao percorrer
capítulo anterior, onde ele apresentou quais eram
os montes e as colinas de Roncesvales: “Senhores
os cinco principais benefícios que o homem gozava
barões, que Deus tenha misericórdia de vós! Que
no Paraíso, sendo eles: “Imortalidade, Saúde,
conceda o Paraíso à alma de todos vós! Que Ele as
Natureza pródiga, harmonia e
unidade.”20
Uma das
deite entre as santas flores” (A Canção de Rolando
principais graças alcançadas no Paraíso é a
(CR), 1988: Estrofe 140). Dentro do primeiro muro,
imortalidade. Túndalo descreve que a imortalidade
do Paraíso de Túndalo, o muro de prata, o olfato,
é obtida bebendo da água que brota da fonte da
paladar e a audição também são alvo de deleite.
vida: “e ali He a fonte de agua uiua. (...) Esta fonte
“E as uozes deles soauan de mytas e desuayradas maneyras. que non parecian outra cousa. se non cantares de orgoons E a todos era ygual claridade e alegria. e deleytamento. e ledice. fermosoura e honestidade. saúde e germaydade durauil. de boon sabor. e de boon odor. que sobrepoiaua mais e valia mais. que todos os boons odores que son neu que fossem speciaaes de aromata que son onguentos muy preçados.” (VT 1895: 114)
que aqui uees. he chamada uida. E todo aquel que dela beuer. Uiuera pera senpre. e nunca iamais auera sede.” (VT 1895: 112.) Logo, também com a imortalidade vem a saúde. A Idade Média sofreu em vários períodos com grandes epidemias e outras doenças que causaram a morte de inúmeras pessoas sendo assim, a imortalidade também é tratada como saúde eterna, sendo observada no trecho acima referente a “jamais terá sede”.
Essas graças são dadas aos que se manterão fiéis aos votos do casamento, não cometendo adultério,
A natureza pródiga faz referência ao Paraíso
e aos que partilharam seus bens com os pobres e
como um local que tenha beleza e fartura,
com a igreja. O sentido do tato é agraciado com as
remetendo à apreciação dos sentidos. O sensitivo é
vestimentas adquirida pelos que lá chegaram, como
19
20
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 28.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Utopias Medievais. São Paulo. Editora Brasiliense, 1992. p. 121.
G N A R U S | 124 descreve a Visão: “e as uestiduras que ia dixe. eram tan claras e tan fermosas. e assi aluas como a neue.” (VT. 1895: 114). E para o paladar: “uiu huma aruor muy esperssa. carregada de todas aquelas fructas
louuor seja a ti deus padre. louuor a ti deus filho. louuor a ti spiritu sancto (...) Eran senpre legres e ledos e aguçosos. e uiçosos e saborosos. Persenuerando sempre no louuor da sancta tristade. dia e noyte. (VT. 1895: 114).
que no mundo podem seer.” (VT 1895: 117). A harmonia paradisíaca trata da relação do homem com a natureza, como na fertilidade da terra, que gerava boas plantações para alimentar a toda a sociedade, quanto nos fenômenos naturais, o clima. A natureza atuava independente da vontade do homem, levando ele a sofrer com a falta de chuva, frio e seca, o que criava um sentimento de insegurança, pois a qualquer momento uma mudança no clima poderia causar grande fome ou algum terrível desastre. Mas uma das características naturais que mais assombrava o imaginário do homem medieval era o medo da noite, que trazia consigo as trevas. Segundo Jean Claude Schimitt: “A noite terrestre, propícia às aparições mais inquietantes, é negra como o pecado; é negra também como as trevas do além que elas prolongam na terra, as trevas povoadas pelas almas privadas da iluminação da visão de Deus.”
21
em
contra posição o Paraíso por estar em presença constante de Deus, é iluminado com dia eterno proveniente Dele. “em aquel logar non era noite. e o sol nunca hy falece” (VT 1895: 112). Por fim, porém, a mais apreciada qualidade oferecida pelo Paraíso cristão é a unidade com Deus. Com a expulsão de Adão e Eva do Paraíso Terrestre, o homem distanciou-se da presença de Deus, que antes andava ao lado deles nos Jardins do Éden, e o Paraíso Celeste, vem para reinstituir essa perda.
cristão se fixar no imaginário, nas mentalidades e no cotidiano do homem da Idade média. Analisando as falas presentes na Canção de Rolando, onde o Paraíso é citado, podemos nos assegurar de tal afirmação. Como na narrativa da morte de Olivier, companheiro de Rolando: “Para os céus levantou as duas mão juntas e pede a Deus que lhe dê o Paraíso.” (CR 1988: Estrofe 150, p: 69) ou no pedido do arcebispo Turpino para que leve a alma dos seus companheiros ao Paraíso: “Piedade por vós, senhores! Que Deus por sua glória receba todas as vossas almas: que as coloque no Paraíso no meio das santas flores!” (CR 1988: Estrofe 162, p: 73). Mais em toda a Canção, a narrativa mais marcante sobre o imaginário da Idade Média em relação ao Paraíso é na morte do herói Rolando, quando ele é levado aos Céus por Deus, com intermédio dos arcanjos: “Pai verdadeiro, que nunca mentiste, que ressuscitaste São Lázaro dentre os mortos, que preservaste Daniel dos leões, preserva minha alma de todos os perigos, pelos pecados que cometi em vida!” Ofereceu a luva direita a Deus; São Gabriel pegou-as nas mãos. Sobre o braço mantinha a cabeça inclinada; Com as mãos juntas chegou a seu fim. Deus Enviou seu anjo Querubim é São Miguel do Perigo; ao mesmo tempo em que os outros veio São Gabriel; levam a alma do conde ao Paraíso.” (CR 1988: Estrofe 179, p: 78).
Através do que foi descrito por ambas as fontes, podemos analisar a presença do Paraíso cristão nas mentalidades da Idade Média, por meio de suas descrições presentes em relatos escritos, que foram
E assi como se ela uio dentro. parou mentes ao redor de sy. e uiu huma gran canpanha de sancto. que se alegrauam muyto com deus. e dizian. 21
Tais características e deleites fizeram o Paraíso
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo. Ed: Companhia das Letras. 1999. p. 203.
usados em apresentações ao público como forma de catequização, como o exemplo da Visão de
G N A R U S | 125 Túndalo do frei Marcos, bem como graças a sua
a plebe que constituía o povo. Os cavaleiros eram
presença em falas como nas canções, como o
inicialmente camponeses, exceto aqueles que
exemplo da Canção de Rolando, e nas demais
herdavam este título, mas ambos, graças aos laços
representações artísticas da Idade Média.
de vassalagem ou servidão, empreendiam seus serviços aos senhores das terras, que deram um
2.3 As representações aceitas por verdade
pedaço dela a eles, em troca de que protegessem o feudo em caso de batalhas ou que lutariam pelos
É certo afirmar que os relatos da Visão de Túndalo
ideais do senhor quando necessário, unindo-se
e da Canção de Rolando, foram de fundamental
assim a classe da nobreza, graças a essa relação de
importância para a difusão do Paraíso Cristão. Mas
senhor e vassalo. Mais a união deles ia mais além, e
por que esses relatos foram tão facilmente aceitos
chegava até mesmo ao âmbito das mentalidades,
como verdadeiros, e suas falas difusoras do Paraíso
como apresentado por Le Goff:
tão facilmente impregnadas a vida das pessoas na
“Rodeando a aristocracia a que servem de armas na mão, os cavaleiros tendem a dissolver-se nela pela combinação de costumes e mentalidades comuns, assim como pela elevação de suas condições socioeconômicas, acelerada por alianças matrimoniais vantajosas.” 24
Idade Média? O principal motivo foi a identificação dos homens pelos relatos. Mesmo nas mais diversas camadas da sociedade, tais relatos eram de certa forma próximos ao seu cotidiano, graças, em parte, à figura do cavaleiro, que era personagem principal destas histórias. “O maravilho está profundamente ligado a esta procura da identidade individual e colectiva do cavaleiro idealizado”.22 A identificação dos ouvintes com a figura do cavaleiro ajudava a criar um laço de identificação entre as histórias apresentadas e aqueles que as recebem. Por intermédio da literatura, esses cavaleiros eram transformados em mitos, como afirmado por Jacques Le Goff: “Ao longo da Idade Média, e desde o seu surgimento, as literaturas em língua vulgar celebravam a cavalaria e transformavam-na em mitologia.” 23
Na luta para proteger os feudos, eles também batalhavam por seus interesses, lutando por seus familiares que eram, na maioria das vezes, moradores do mesmo feudo. Com isto, eles também mantinham seus interesses ligados as classes mais baixas, graças a suas origens. Os cavaleiros também eram ligados à Igreja, pois para as
ordens
militares
eles
prestavam
voluntariamente, ou graças à penitencias, seus serviços em nome dos ideais da Igreja. Os cavaleiros são usados pela Igreja, para proteger a cristandade e seus ideais, ou para recuperar bens saqueados por infiéis, como no caso das primeiras Cruzadas.
Túndalo e Rolando, eram cavaleiros, e a figura do
“Devido à sua posição de importância dentro da sociedade e pela ligação com a nobreza, acredito que Túndalo, um cavaleiro, tenha sido o escolhido pela Igreja para exemplificar aos demais fiéis como seriam as penas do Inferno e a
cavaleiro ajuda a identificar o porquê destas fontes terem sido tão presentes no cotidiano medieval. Os cavaleiros estavam inseridos nos principais setores da sociedade medieval: a nobreza, o clero e
22
LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval. Rio de Janeiro. Edições 70: 1983. p. 24.
23
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 196. 24 Idem. p. 190.
G N A R U S | 126 possibilidade do arrependimento para atingir a salvação a ascender o Paraíso.” 25
Na Visão de Túndalo, frei Marcos, atesta a Não só Túndalo, mas também Rolando, podem ser encaixados no estudo da Dr. Adriana Zierer, mostrando assim a importância do papel do cavaleiro
como
característica
principal
dos
personagens para a aceitação do Paraíso cristão por parte do povo, já que a figura do cavaleiro e sua
veracidade do que ele escreveu logo no final da Visão, quando ele diz: “Eu Frey marcos. que esto screuy. son testemunha desto todo. Ca eu ui com meus olhos o homen a que esto aconteceo e que me contou todo assi como ia ouuiste. e assim como o el contou a my. assi trabalhey eu de o screuer e de o cntar o melhor que eu pudy.” (VT, 1895: 120)
mentalidade estavam ligadas de forma direta aos três principais setores da sociedade medieval.
A palavra empenhada foi de fundamental
Outro fator de fundamental importância para a
importância para a aceitação e apropriação dos
aceitação dos relatos vem da tradição oral da Idade
conceitos pregados por tais narrativas, mas
Média. Ambas a fontes foram feitas, para serem
principalmente a figura do transmissor era
apresentadas ao povo por meio da oralidade, em
essencial. Escutar a narrativa da Visão de Túndalo
discursos religiosos, como nas homilias, no caso da
de um padre ou de um frei criava nas mentalidades
Visão de Túndalo, ou em locais propícios, com
dos homens o conceito de veracidade e de
grandes públicos, como nas praças e feiras, por
importância em relação ao que estava sendo dito,
meio dos serviços dos arautos e bardos, como no
criando assim o poder da palavra, onde a fala torna-
caso da Canção de Rolando. Nos manuscritos, um
se real graças à figura daquele que a pronunciou,
fator era de grande importância para que eles
gerando assim um Ato de Fala Representativo,27
fossem aceitos como verdade pelo público, era À
segundo John Rogers Searle, professor americano
Palavra Empenhada. A palavra empenhada, o
da Universidade de Berkeley na Califórnia.
juramento, era um atestado de veracidade daquilo
Afinal quem duvidaria do que foi dito por um
que foi narrado ou escrito pelo autor. E esse
padre? Alguém que não mentiria, pois jurou não
juramento, possuía maior recepção se estivesse
pecar?
ligada a fé. Esse fato é descrito por Jérôme Boschet: “Validação indispensável a todo compromisso importante, a começar pela fidelidade vassálica, o juramento, geralmente prestado sobre a Bíblia ou o Evangelho (a menos que se recorram às relíquias), tira sua força do elo formado entre a sacralidade do Livro e o peso das palavras pronunciadas.”26
25
ZIERER , Adriana Maria de Souza. Literatura e história medieval através da visão de Túndalo. Disponível em: <http://historianovest.blogspot.com/2010/10/literatura-ehistoria-medieval-atraves.html>. Acesso em: 23 set. 2011. 26 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p. 183. 27 A Teoria dos Atos de Fala tem por base doze conferências proferidas por Austin na Universidade de Harvard, EUA, em 1955, e publicadas postumamente, em 1962, no livro How to do Things with words. O título da obra resume claramente a
3. O paraíso e a igreja “A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. E por meio do imaginário que se pode atingir não só a cabeça mas, de modo especial, o
ideia principal defendida por Austin: dizer é transmitir informações, mas é também (e sobretudo) uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante. Os Atos de Fala Representativos, segundo o professor americano da Universidade de Berkeley na Califórnia John Rogers Searle (mostram a crença do locutor quanto à verdade de uma proposição: afirmar, asseverar, dizer). SILVA. Gustavo Adolfo de. Teoria dos Atos de fala. Disponível em: < http://www.filologia.org.br/viiifelin/41.htm>. Acesso em: 05 Nov. 2011.
G N A R U S | 127 coração, isto é, as aspirações, os medos as esperanças de um povo.”28
Como já foi dito anteriormente, a expansão dos ideais do Cristianismo foi de fundamental importância para a aceitação do Imaginário Cristão. Mas esse imaginário não era somente proveniente da fantasia e da necessidade de se maravilhar dos
de alcançar o Reino dos Céus, os pecados da carne, como descrito pela bíblia: “São bem conhecidas as obras da carne: imoralidade sexual, impureza, devassidão, idolatria, feitiçaria, inimizade contenda, ciúmes, iras, intrigas, discórdias, facções, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes. Eu vos previno, como aliás já o fiz: os que praticam essas coisas não herdarão o reino de Deus .” (Gl 5: 19-21)
homens da Idade Média; ele estava ligado a um contexto de legitimação de um regime religioso, e
Mas não cometer tais pecados e seguir fiel as
sua expansão nada mais era que a expansão deste
virtudes de um bom cristão não era uma tarefa fácil
regime. Como dito por José Murilo de Carvalho, na
no contexto social em que se inseria a Idade Média.
citação inicial deste capitulo, elaborar um
Além disso, segundo Santo Agostinho, o homem ao
imaginário é parte fundamental para que um
nascer já carregaria consigo a descendência do
regime político, que nesse caso não se separa do
pecado original de Adão e Eva. Mas como
religioso, consiga se legitimar perante a sociedade.
apresentado por Jérôme Boschet:
O Paraíso foi um elemento fundamental usado pela igreja, para que ela pudesse legitimar-se perante a sociedade. Apresentar o Paraíso como um lugar de solução dos problemas terrenos, e também descrever as graças que gozariam aqueles que lá
A sombria teoria de Agostinho demonstra, assim, que o homem não pode ser salvar sozinho e quem tem necessidade, por tanto, do socorro insubstituível das instituições e, em primeiro lugar, da Igreja; apenas a mediação desta pode atrair sobre ele a graça dívida e lhe permitir evitar as emboscadas que semeiam o caminho da salvação. 30
chegassem, era um modo da Igreja adquirir a atenção dos homens da Idade Média para si. Afinal, depois de maravilhar-se com o quão belo era tal lugar, era natural que os homens criassem um sentimento de busca pela utopia paradisíaca, segundo Adriana Zierer: “A Igreja conseguiu com sucesso mobilizar a sociedade em torno da salvação.”29 Mas como chegar lá? Como era possível alcançar tal lugar depois da morte?
A Igreja
Católica neste momento aparecia com a solução desta indagação. Aquele cristão fiel, que policiasse suas atitudes, conseguiria certamente alcançar o Paraíso; mas para isso ele não poderia cometer pecados que maculassem a sua alma e o impedisse
28
CARVALHO, José Murilo de. A formação das Almas: O imaginário da República do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 29 ZIERER, Adriana. Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII).
Então a Igreja, além de ser a única que poderia realizar o batismo, que nos purifica do pecado original, criava um conjunto de princípios que regia moral de um bom cristão, os dogmas. E somente sendo fiel a esses princípios, poder-se-ia alcançar os céus. Vários homens da Idade Média, seguindo os dogmas criados pela igreja, aderiram a esse princípio de devoção, mas ainda assim, o confronto com a sociedade medieval era algo que os tiravam do caminho em busca da salvação de suas almas. Neste contexto já existiam na sociedade os monges, homens que se isolaram da sociedade, em
Disponível em: <http://www.revistamirabilia.com/> Acesso em: 08 Out.2011:. 30 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p. 376.
G N A R U S | 128 a porta do Paraíso lhe seja aberta!” (CR. 1988: Estrofe 167, p: 75)
seus mosteiros, feitos de forma a suprir todas as suas necessidades, tanto físicas em relação ao espaço, quanto espirituais, para que pudessem buscar a salvação devotando-se a Igreja e a Deus sem a
Segundo Rolando, Turpino foi um nobre
interferência do contexto social em que estavam
cavaleiro, que serviu com devoção a Igreja, e que a
inseridos. Logo também não sofriam com os
sua fidelidade aos dogmas só seria superada pela
tormentos presentes no dia a dia e no cotidiano em
dos próprios apóstolos de quem ela se embasou
que estavam inseridos.
para criação destes princípios. E Turpino, por seguir
“Portanto, ninguém melhor que os eleitos na sociedade terrestre, os monges, aqueles que eram os mais próximos do Paraíso, de acordo com a crença da época, para confecciona relatos sobre como os cristãos deveriam se comportar.”
de forma tão devota, ganharia sem passar por sofrimento nenhum a glória do Paraíso.
31
3.1 A utilização do paraíso pela Igreja Em diversos momentos da Idade Média, a Igreja
A Visão de Túndalo foi um exemplo do que foi
utilizou-se
da
presença
do
Paraíso
nas
descrito pela Dr. Adriana Zierer. Criado pelo
mentalidades do homem medieval e de como eles
monge irlandês Marcos, a Visão tem como papel
buscavam tal lugar para instaurar um status de
principal, ser um manual de conduta do bom
dominação e de controle social. Jérôme Boschet a
cristão, tendo o aspécto pedagógico de mostrar
respeito desse fato, diz:
quais eram os caminhos que o cristão deveria seguir para que assim pudesse converter-se e alcançar o “O medo do inferno e a esperança do paraíso devem guiar o comportamento de cada um; e a própria organização da sociedade é fundada sobre a importância do outro mundo, pois a posição dominante dos clérigos se justifica, em última instância, pela missão que lhes incumbe de conduzir os fiéis até a salvação.” 32
Paraíso. Perceptível também é a representação da Igreja através da figura do Anjo, pois o anjo que sempre está ao lado de Túndalo, o ensina como agir para que pudesse alcançar o Paraíso, esse é o mesmo papel que a Igreja busca desempenhar com os seus fiéis, ensinando-os a direção da salvação. Seguir as leis da Igreja com devoção, para que o Paraíso fosse alcançado era algo que esteva bastante presente nas mentalidades do homem medieval, como podemos observar na oração fúnebre de Rolando Para Turpino: “Oh! Gentil senhor, cavaleiro de nobre estirpe, hoje eu te recomendo ao Deus da glória. Jamais haverá servidor mais devotado. Desde os apóstolos, não apareceu semelhante profeta para observar a lei e atrair os homens. Que vossa alma não tenha que suportar nenhum sofrimento! Que 31
ZIERER, Adriana. Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII). Disponível em: <http://www.revistamirabilia.com/> Acessado em: Acessado em: 08 de Outubro de 2011: 23:14:00.
Então, a Igreja era a única que poderia conduzir o cristão a salvação e ao caminho do Paraíso. Mas também, era a única detentora dos sacramentos, como o batismo, que reinstituía as almas do pecado original e o sacramento da confissão, que através da penitência restituía a alma do pecado que havia cometido. Ela era também a única que poderia legalmente realizar o casamento, que possuía importante papel perante as normas da sociedade,
32
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo. 2006. p, 374.
G N A R U S | 129 principalmente entre a nobreza e outros setores
Vemos que a Igreja utilizava-se do medo para
sociais mais elevados. Ter uma relação conjugal e
ajudar a instaurar o seu império. O medo de perder
realizar o ato do sexo sem ser casado, era pecar
a graça, a graça da recompensa paradisíaca, que
contra a castidade; claro que esse fator neste
podia ser perdida por uma possível punição ou algo
período não era algo que se seguisse tão a risca,
mais grave, como a excomunhão.
mais oficialmente tal relação era tida como luxuria.
Utilizando-se deste conceito, a Igreja utilizou-se
Ir contra a palavra da Igreja, ou pecar de forma
do Paraíso para influenciar pessoas, ou em uma
grave, contra ela, quebrando seriamente um
escala mais ampla, influenciar a sociedade a agir e
dogma, poderia custar a salvação. Para um homem
pensar segundo sua vontade. Afinal, para fixar-se
neste contexto, a possibilidade de perder o Paraíso
em na sociedade, a Igreja precisará do apoio de
era algo que gerava um sentimento de grande
nobres, reis e claro, dos que constituíam as camadas
aflição. Afinal, depois de tanto esforço para
sociais mais baixas, pois era a maior quantidade dos
manter-se fiel aos dogmas, para que no futuro a sua
homens, e números fazem sim a diferença, como
entrada no céu lhe seja dada, perdê-la seria jogar
podemos
fora uma vida de trabalho árduo, e as esperanças de
revoluções. O exemplo mais nítido deste fato são as
uma vida futura. Mas em que a Igreja estava
cruzadas.
embasada, para que pudesse negar a salvação a um fiel? Este poder da igreja está também embasado na bíblia, quando Jesus prega para os discípulos, dizendo: “tudo que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu" (Mt 18: 18). Então, buscar a Deus, através da salvação, também necessariamente era seguir os princípios e Igreja, que interpretava as escrituras e ajudava o homem em seu caminho, como foi descrito por Adriana Zierer: “A instituição controlava o moral dos fiéis e seus atos para que estes conseguissem, após a morte, atingir o Céu.” 33 Assim, a palavra da Igreja é seguida fielmente por seus devotos, que em muito por respeito e pelo costume de obediência já transmitido de geração em geração, tinham em suas mentes a obediência a ela, pois ela era a única que lhes poderia ajudar no caminho que levaria a salvação e ao Paraíso. Neste contexto, podemos analisar quais eram os ganhos políticos do medo para a Igreja Católica.
33
ZIERER, Adriana. Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII).
analisar
na história
das grandes
Em meados do primeiro milênio, os árabes começaram uma peregrinação por toda a Europa, conquistando e tomando posse de vastas regiões, sendo várias delas parte dos locais sagrados para o Cristianismo, as Terras Santas. Entre essas terras se encontrava também Jerusalém, que no início do século XI havia sido tomada dos árabes pelos turcos. Ver a cidade sagrada de Jerusalém sobre posse de infiéis, fez com que a Igreja Católica se sentisse incomodada. Com os avanços seljúcidas sobre o Império Bizantino e o pedido de ajuda do imperador Aleixo Comeno à Igreja, o papa Urbano II, em um concílio em Cleimont, em 1095, convoca os católicos e todos aqueles sem causa própria para lutarem pela Igreja e retomarem a posse de Jerusalém e dos demais locais sagrados. Vários homens aderiram à causa, não só católicos, mas homens sem fé, em busca de aventura, outros em busca de riquezas e ganhos materiais, mas certamente vários deles foram recrutados pela Disponível em:< http://www.revistamirabilia.com/>. Acesso em: 08 Out. 2011.
G N A R U S | 130 salvação oferecida por Urbano II e os demais papas
pecado fosse perdoado e sua dívida com Deus e
que ocuparam a cadeira de São Pedro, depois dele.
com a Igreja, quitadas?
Para encorajar as Cruzadas, Urbano e os outros papas, os que vieram depois dele, enfatizaram os "benefícios" espirituais da guerra contra os muçulmanos. Arrancando uma pagina do Alcorão, Urbano assegurou que os guerreiros que experimentassem essa penitência entrariam no céu diretamente — ou, pelo menos, teriam uma redução no tempo que passariam no purgatório. 34
Considerações finais O Paraíso celeste, Reinos dos Céus, representando tudo aquilo que o Inferno não é, certamente foi de fundamental importância para o cotidiano da Idade Média. Vários escritos e outras manifestações
Urbano II em seu discurso as massas, chamou não só aqueles que eram católicos, mas todos os que pudessem ajudar a retomar a posse das terras santas para a Igreja. Para conseguir um maior número de
artísticas foram feitas, com o objetivo de construir para o fiel a imagem de como era a utopia perfeita cristã, o lugar onde todos os seus suplícios e martírios seriam finalmente recompensados.
adeptos a causa, ele convoca os pecadores, o que
Embasados principalmente na bíblia e nas várias
claro, constituía um grande número dos homens da
tradições orais passadas por gerações, personagens
sociedade. Ele afirma que ladrões, assassinos, e os
religiosos como padres, freis, teólogos da Igreja
demais que pecaram contra Deus e a Igreja, se
construíram as características, e exemplificaram os
aderissem à cruzada, teriam seu local no Paraíso
deleites gozados por quem em sua vida terrena,
garantido, ou pelo menos, sua estadia no
tornaram-se merecedores das graças do Além.
purgatório diminuída. Observa-se esse fato no
“O Além foi um dos grandes domínios do imaginário medieval. Inspirou uma importante literatura de ficção e uma rica iconográfica, testemunhando a fecundiade da atividade criativa dos artistas medievais.”36
trecho da fala de Urbano II: “A Todos aqueles que Partirem para as Cruzadas e perecerem pelo caminho, seja por terra, seja por mar, ou que perderem a vida combatendo os pagãos, será concedida a remissão de seus pecados.” 35 Como já
Como dito no trecho do Dicionário Temático do
descrito, o Paraíso era alvo de grande busca pelos
ocidente Medieval, o Além foi parte presente do
homens da Idade Média, mas muitos deles já o
imaginário medieval. Alguns destes escritos,
tinham perdido tal lugar, graças à vida que levaram
criados neste contexto, foram verdadeiros manuais
em terra. Então uma chance de recuperar a graça e
de conduta, que serviam para ajudar o cristão a
de ir para o Paraíso, certamente seria algo que a se
chegar ao Além Paradisíaco. Vários destes relatos
levar em consideração. O Paraíso, neste contexto,
enraizaram-se nas mentalidades dos homens na
tornou-se objeto de negociação. Quantos anos
Idade Média, como a Canção de Rolando e a Visão
seriam necessários lutando pela Igreja, para que seu
de Túndalo, e seus personagens eternizaram-se, sendo descritos por gerações. Mas, qual reflexo que
34
CURTIS, A. Kenneth. LANG, J. Stephen e PETERSEN, Randy. Os 100 acontecimentos mais importantes da historia do cristianismo: do incêndio de Roma ao crescimento da igreja na China. São Paulo: Editora Vida, 2003. p. 70.
35
GOBRY, Ivan. Um Oriente Dividido Frente à União dos Invasores. As Cruzadas – Fanatismo sem Limites. História Viva. Editorial Duetto: São Paulo, Ano II. Nº 15. p. 33. Jan. 2005. 36 LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean – Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. Pagina 24
G N A R U S | 131
homens e mulheres da Idade Média continuassem a
“Com a descrição da Jerusalém celestial encerra-se um grande círculo de narrativas. Começando no Geneses, o primeiro livro do Velho Testamento, e chega até o Apocalipisce de João, o ultimo livro do Novo Testamento. No lugar do jardim, onde, outrora, somente o pirimeiro casal homano vivia, entra em cena uma magnifica cidade que oferece espaço sufiente para um grande quantidade inumerável de eleitos.” 38
lutar contra tudo aquilo que os afligia. Tal utopia
O Além na Idade média, constituiu uma parte de
era uma fuga dos males terrenos, uma construção
fundamental importância para a história do
imagética coletiva, que se tornava real, graças à fé,
homem,
e era transfigurada para o dia a dia das pessoas,
mentalidades, criando um imaginário de tal
tornando-se paralela com o real, criando assim uma
magnitude, que permitia que seus principios
nova realidade. Mas essa nova realidade era
perpetuarem por gerações.
esta imagem construída do Paraíso causou na sociedade medieval européia do século XII? Em uma sociedade embasada no medo, como era a Europa medieval, o Paraíso veio para dar esperança, dar um motivo concreto para que os
enraizando-se
de
tal
modo
nas
alcançada somente após a morte, no Além tumulo. E
somente
uma
vida
de
fidelidade
aos
mandamentos, e aos dogmas da Igreja poderiam levar o cristão a tal merecimento. Por isso, muitos
Fernando Augusto Alves Batista É especialista em História da África e do Negro no Brasil, pelo Instituto Educacional Centro Oeste – IECO e Licenciado em História pela Faculdade Projeção, Taguatinga – DF.
homens e mulheres da Idade Média, moldaram totalmente suas vidas, alicerçando suas atitudes, seu modo de agir, falar e interagir com o mundo, e em
vários
casos,
chegando
a
assumir
o
enclausuramento dos mosteiros, ou os martírios das penitencias, maculando seu corpo, e para muitos, a busca do Paraíso determinou o jeito de viver e de morrer. Tudo isso feito para que no futuro, as graças de um lugar melhor no Além lhe seja garantido. A busca do Paraíso tornava suas vidas uma verdadeira provação diária, o que nos remete a fala de Jacques Le Goff e Jean Claude – Schmitt na epígrafe deste trabalho: “A presença do Além deve ser sempre consciente e viva para o cristão, pois ele arrisca a salvação a cada instante de sua existência. ” 37 Para o Cristianismo e a Igreja, as descrições do Paraíso era o marco que dava fim ao grande círculo de narrativas da Bíblia, como dito por Heinrich Krauss, em seu livro O Paraíso:
37
LE GOFF, Jacques. SCHMITT, Jean – Claude. Dicionário Temático Do Ocidente Medieval I. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. p. 22.
38
KRAUSS, Heinrich. O Paraíso: De adão e Eva às utopias contemporâneas. São Paulo: Globo, 2006.
G N A R U S | 132
Artigo
VIVA A PENHA! Por Luís Tadeu de Farias Góes
O
presente artigo tem como intenção
No que se refere à historiografia da festa da
traçar um breve esboço do que foi uma
Penha, a grande referência é a historiadora Rachel
das principais festas do Rio de Janeiro
Soihet, principalmente através do seu livro A
do final do século XIX e início do século XX: as
subversão pelo riso, mas também, através de
festas dedicadas a Nossa Senhora da Penha durante
capítulos de livros e de artigos publicados, em que
os anos de 1890 a 1920.
também trabalhou com as festas da Penha.1 Há
Revista “O Malho”, nº 473 de 1911 (pág. 9)
1
Ver: SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: Estudos sobre o carnaval carioca, da Belle Époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: EDUFU, 2008; SOIHET, Rachel. Um Ensaio sobre
resistência e circularidade cultural: A festa da Penha (18901920). Cadernos do ICHF, Niterói, n. 31, 1990; SOIHET, Rachel. Festa da Penha: Resistência e interpenetração cultural (1890-
G N A R U S | 133 muito este tema não é revisitado, e julgo de grande
Virgem da Penha, outros, juntavam-se às diversas
significância, lançar novos olhares e novas
barraquinhas de comidas e bebidas, cantavam,
perspectivas sobre um determinado tema, neste
dançavam, jogavam. Ouvia-se a todo momento
caso, as festas da Penha. Assim, enriquecemos o
“vivas” à Penha. A todo o momento chegava gente
debate historiográfico sobre a questão das festas
de diversos cantos do Rio de Janeiro para assistir à
populares do Rio de Janeiro do século XIX e início
festa, trazer promessas e se divertir.2
do XX, de um modo geral. Esboçaremos as relações que as tradições negras tiveram com a festa – que vai desembocar no samba e no carnaval com seus ranchos e cordões -, as questões sobre raça, cidadania e progresso, tão caras ao período e a Penha como lugar de sociabilidade e manutenção de tradições e de resistência cultural.
Interessante é que Morais Filho e os que, posteriores a ele, descrevem a festa da Penha, inclusive a imprensa, referem-se a ela como romaria. Chamo a atenção para este fato, pois, o termo romaria, segundo José Ramos Tinhorão, por si só já tem um caráter profano, o que nos leva a crer que, as romarias à Penha, ao que tudo indica,
No que se refere à historiografia da festa da
sempre foram permeadas pelo aspecto festeiro.
Penha, o memorialista Melo Morais Filho – atento à
Tinhorão nos elucida que diferentemente de uma
questão das festas e manifestações populares no
procissão - que é uma cerimônia organizada pela
Brasil de meados do século XIX -, foi um dos
Igreja com caráter de ritual religioso -, as romarias,
primeiros a escrever sobre a Penha, em seu livro
bem como os círios, são manifestações de devoção
Festas e tradições populares do Brasil. Segundo ele,
de uma comunidade, o culto votivo acontece em
nas primeiras romarias, ainda no período colonial,
clima de festa. Ele completa dizendo que “as
eram os portugueses, em sua maioria incultos e
romarias resultam da iniciativa de grupos
trabalhadores rudes, que concorriam para louvar e
particulares,
festejar a Virgem da Penha, ao modo dos festejos
acontecimentos maravilhosos ou obrigados ao
da antiga metrópole. O memorialista frisa: “Nas
cumprimento de voto pela obtenção de alguma
romarias da Penha o elemento predominante foi
graça coletiva”.3
sempre o português”. Refere-se, é claro, ao período observado por ele, ou seja, segunda metade do século XIX. Morais Filho, já apontava a romaria da Penha
movidos
pela
notícia
de
Podemos observar que a romaria à Penha resulta - da forma como Tinhorão colocou -, de um acontecimento
maravilhoso,
um
milagre,
ratificando assim sua tese de que as romarias têm
como estrepitosa e alegre. O sagrado se misturava
caráter
festeiro
e
que
elas
resultam
de
ao profano. Enquanto os romeiros subiam as
acontecimentos maravilhosos e graças alcançadas.
escadarias esculpidas na pedra, a pé, de modo a
Melo Morais Filho relata suscintamente o milagre,
pagar suas promessas e externar suas gratidões à
o “acontecimento maravilhoso”:
1920). In: CUNHA, Maria Clementina Pereira (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas, SP: Editora Unicamp, Cecult, 2002; SOIHET, Rachel. Um debate sobre manifestações culturais populares no Brasil dos primeiros anos daRepública aos anos 1930. Trajetos, v. 1, n. 1, 2001, p. 1-24.; ; SOIHET, Rachel. A sensualidade em festa: representações do corpo feminino nas festas populares no Rio de Janeiro da virada dos séculos XIX a
XX. In: MATOS,Maria Izilda S. e SOIHET, Rachel (orgs). O Corpo feminino em debate. São Paulo. Editora UNESP, 2003, p. 177197. 2 MORAIS FILHO, op. cit., p. 137. 3 TINHORÃO, José Ramos. Festa de negro em procissão de branco: Do carnaval na procissão ao teatro no círio. São Paulo: Ed. Unesp, 2012, p. 29.
G N A R U S | 134 circularidade cultural. Nela, esteve presente
“Em tempos que lá vão distantes, ousado caçador que batia aquelas matas, em busca de caça, foi surpreendido por uma cobra gigantesca, que, roncando feroz e desenrolando-se no espaço, amaçava devorá-lo; tomado de espanto, lívido de terror, arrepiam-se-lhe os cabelos, suor viscoso poreja-lhe a fronte, a arma lhe cai e ele, sobrando o joelho na terra, erguendo as mão súplices ao céu, exclama num brado saído d’alma: - Valha-me Nossa Senhora da Penha!... No mesmo instante um lagarto indolente, que aquecia ao sol a cabeça chata, salta de uma pedra, e açoutando com a cauda de ferro o réptil medonho, o afugenta, deixando livre do perigo o infeliz para quem a morte seria inevitável.
aspectos da cultura dominante, bem como da cultural popular, houve a “influência recíproca entre os diferentes seguimentos”. Nesse sentido, Soihet ressalta que “o solene e o cômico, o humor e o rito religioso, o sagrado e o profano fazem parte de uma mesma dimensão”.6 À medida que foi se aproximando o final do século XIX, enquanto algumas das principais festas do Rio de Janeiro, como as do Divino, perdiam força, a festa da Penha seguia na contramão, aumentando consideravelmente sua popularidade. Para Martha Abreu e Larissa Viana em Festas religiosas, cultura
popular e política no império do Brasil, a festa da
Desperto como de um pesadelo, reconhecendo que fora salvo por estupendo milagre, o caçador erigiu na crista do rochedo a ermida votiva a Nossa Senhora da Penha, vindo todos os anos em contrita romaria oferecer à sagrada imagem o tributo de suas dádivas e o eco de seus louvores.”4
Penha, juntamente com o “carnaval moderno”,
Vê-se, a partir de então que, desde o milagre, a
começou a atrair grande contingente da população
Penha recebe sua romaria, e, pelo que nos indicam
negra, recém liberta, juntamente com sua rica
as fontes e a bibliografia, essas romarias sempre
cultura: sambas, batuques, capoeiras e demais
foram permeadas de caráter festeiro.
identidades.7
substituíram o espaço cultural deixado pela festa do Divino Espírito Santo, “a derrota do Divino correspondeu à vitória de outras festas”, neste caso, a festa da Penha. Nesta virada de século, a Penha
Segundo Rachel Soihet - que analisou a romaria à
O Rio de Janeiro, então capital federal, era parte
Penha quando a festa atingiu seu auge - em tais
de um projeto do qual seria um passaporte do
festividades, não se pode estabelecer uma
ingresso brasileiro na civilização, através de ideais
distinção entre o sagrado e o profano. O arraial da
como o progresso, a razão e a ciência.8 Nas palavras
Penha concretizaria a festa popular, através de
de Armelle Enders, “tratava-se de uma capital
princípios como o banquete e a alegria, “onde os
destinada a uma elite, europeia por suas origens,
elementos material e corporal são positivados,
seu modo de vida e suas aspirações”.9 Na visão da
conferindo ao corpo um caráter cósmico e
elite da época, era preciso romper com o passado
universal.”
5
A festa da Penha se constituiu num
cenário
privilegiado
de
observação
da
MORAIS FILHO, op. cit., p. 132. SOIHET, Rachel. “Festa da Penha: Resistência e interpenetração cultural (1890-1920)”. In: Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras F(r)estras. Ensaios de História Social da Cultua.Campinas: Unicamp, 2002, p. 345. 6 SOIHET, Rachel. Op. cit., p. 30-31. 7 ABREU, Martha & VIANA, Larissa. “Festas religiosas, cultura popular e política no império do Brasil”. In: GRINBERG, Keila & 4 5
SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil imperial. Volume III: 18701889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 257. 8LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2000, p. 191. 9 ENDERS, Armelle. História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Gryphus, 2004, p. 215.
G N A R U S | 135 colonial,
Tais
modernizar
ideias
e
positivistas
civilizar a cidade
também
de modo a torna-la
permeavam a vida
a “Paris tropical”.
dos
brasileiros
O Rio do século
época.
XIX era conhecido como
a
intelectuais As
literatura produzida
livro Cidade Febril,
Europa.
indica que, na visão
na Esse
modelo europeu de
da época, um dos
conhecimento
requisitos para que
e
civilidade, além da
nação
política, habitava,
atingisse grandeza
também,
prosperidade
os
institutos, os jornais
seria solucionando
e
os problemas de
romances.
O
Brasil no final do
higiene pública, e problemas
eram
grandes leitoras da
Chalhoub em seu
e
elites
brasileiras
cidade
pestilenta.10
uma
da
século XIX início do
desse
século
tipo não faltava na Revista “O Malho”, nº 369 de 1920 (pág. 35)
capital da recente
pretendia se auto representar como
república. “Civilização”, “ordem”, “progresso” e “beleza” eram as palavras que estavam em voga, de
XX
uma sociedade científica e moderna.12 Martha Abreu, em seu clássico O império do
modo a, cada vez mais, criar uma distância e uma colonial,
Divino denuncia que a partir de meados do século
associado à “desordem” e à “imundície”.11 Com isso,
XIX as elites políticas e os intelectuais assumiram
empreendeu-se
da
uma posição contra as festividades religiosas,
república, uma série de intervenções de ordem
condenando as festas, suas barracas e diversões,
urbanística e, também, moral, na cidade do Rio de
passando assim a considerar tais festividades como
Janeiro, modernizando-a e tornando-a modelo de
“bárbaras, perigosas, vulgares e ameaçadoras da
cidade civilizada.
‘família higiênica’, levando o próprio clero a olhar
separação
do
“atrasado” nas
passado
primeiras
décadas
com desconfiança para esse catolicismo barroco.”13
LESSA, op. cit., p. 194. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. In Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Editora Companhia das letras, 1996, p. 35. 10 11
12
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 41. 13 ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830–1900. Rio de Janeiro e São Paulo: Nova Fronteira e Fapesp, 1999, p. 37.
G N A R U S | 136 Calcados nessa onda de progresso e civilidade, de
foram pontos de encontro, identidade e resistência
razão e ciência, à moda francesa, europeia, as
cultural através da música, da dança e da culinária.
práticas populares e suas festas – no presente caso
Nesse ambiente surgiram os sambas, batuques e os
as festas da Penha -, eram tidas como
famosos capoeiras. 17
manifestações de atraso e ignorância. Tais festejos deveriam ser eliminados, pois, não representavam a modernidade, pelo contrário, segundo esses intelectuais,
representavam
um
mundo
em
extinção. Denominaram a romaria à Penha de escandalosa
e
selvagem.14
Dentre
esses
intelectuais, destaca-se Olavo Bilac, jornalista, cronista e poeta. Bilac fez duras críticas à festa da Penha chamando-a, em algumas de suas crônicas de bárbara e selvagem.15
Raul Pompéia em uma crônica sobre a festa da Penha, em 1888, alguns meses após a abolição, denuncia a presença de negros na festa e seus respectivos modos de festejar. Descreve a viola que chocalha no compasso, o pandeiro que acompanha, a sanfona que geme, o negro que esfrega a faca no prato e a mulata que requebra no meio da roda. Segundo ele, era possível encontrar tais rodas por toda a parte do arraial. No meio dessas rodas de batucadas, Pompéia também descreve a presença
Soihet, porém, elucida que a univocidade não era
de grupos carnavalescos, e destaca, “enroupados à
a tônica, os ideais de progresso, ciência e razão não
fantasia”18. Tais descrições nos levam a ver a Penha
eram os únicos a serem seguidos. Para isso, ela cita
como a avant-première19 do carnaval carioca e nos
Lima Barreto e Afonso Arinos de Mello e Franco
leva a crer que o carnaval começava nas festas da
como exemplo de intelectuais que criticaram essa
Penha.
onda europeizante e que valorizavam as expressões populares. Assim, ela contrabalanceia a história e mostra os diversos olhares que foram lançados sobre a festa.16
A partir desse momento, já nas primeiras décadas do século XX, a festa da Penha torna-se a festa mais popular da cidade do Rio de Janeiro, depois do carnaval, sendo palco, inclusive, de lançamento de
Por volta do final do século XIX e das primeiras
sambas e marchas para o carnaval que se
décadas do século XX os negros passariam a
aproximava. Antes do surgimento das rádios, era na
predominar, em detrimento do português, as festas
Penha que eram lançados dos sambas que fariam
da Penha. Soihet, a principal historiadora no que se
sucesso no carnaval, segundo Donga, Sinhô, Heitor
refere à festa da Penha , defende que, dentre os
dos Prazeres e outros.20
negros que passaram a frequentar a Penha, a comunidade de negros baianos foram de grande importância para a festa. As tias com suas barracas
SOIHET, Rachel. op. cit., p. 344. Kosmos, Outubro de 1906. 16 SOIHET, Rachel. Um ensaio sobre resistência e circularidade cultural: a festa da Penha (1890-1920). Cadernos do ICHF, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Rio de Janeiro, n. 31, agosto 1990. p. 2 e 3. 17 SOIHET, Rachel. op. cit., p. 347. 18 POMPÉIA, Raul, Crônicas do Rio. Rio de Janeiro: MECFENAME/OLAC/Civilização Brasileira, 1982. 14 15
O jornal Gazeta de notícias, exaltando a importância da festa para a sociedade da época, afirmou que não havia jornal que não publicasse em
19
Termo utilizado por Racheil Soihet ao se referir à festa da Penha como palco de lançamento de músicas que seriam sucessos populares no carnaval que se aproximava. Ver: SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Uberlândia: Editora de Universidade Federal de Uberlândia, 2008. 20 MOURA, Roberto. No princípio era a roda: um estudo sobre samba, partido-alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 125.
G N A R U S | 137 outubro as crônicas dos domingos na Penha.21 O
muita sorte, pois esta era de sua crença.”24 Anúncios
jornal O século também, em diversas publicações,
em diversos jornais, confirmam este costume de
exaltou a importância da festa da Penha. Em uma
usarem roupas novas, feitas especialmente para as
publicação de outubro de 1908 publicou: “A festa
festas da Penha. Dentre os inúmeros anúncios,
da Penha está no coração de toda a cidade, é uma
exemplifico a fala de Efegê no que se refere ao
festa do povo22”. Não eram poucas as publicações
figurino da festa, com um anúncio publicado no
que noticiavam a Penha como a grande e
Correio da manhã em Outubro de 1908. A loja Barra
tradicional festa popular do Rio de Janeiro.
do Rio, situada à rua Sete de setembro, publicou
As notícias eram diversas, desde anúncios de roupas para ir à festa, às típicas crônicas sobre os domingos na Penha, que tantos jornais publicaram. Anúncios como o de barracas que iriam compor a festa eram constantes nos jornais. À medida que ia
com o título Festa da Penha: “Prevenimos aos nossos fregueses que além do enorme sortimentos de roupas próprias para os romeiros, temos também os
competentes
chapéus.”
[Grifo
meu]
Observamos, com isso, que a festa era tão
se aproximando o mês de outubro, o título A festa
importante para a sociedade da época que
da Penha tomava conta da imprensa carioca. Os
movimentava até boutiques de roupas, a ponto
comerciantes que tinham um maior poder aquisitivo investiam na divulgação de suas barracas
destas fazerem anúncios em jornais, anunciando roupas especialmente para a festividade.
nos jornais de grande circulação. A Gazeta de
A cobertura da festa, desde os seus preparativos,
notícias, por exemplo, publicava em Outubro de
era completa: A festa, a romaria, os romeiros, os
1909 um anúncio divulgando a barraca do Moita,
transportes, vestuários, músicas, barracas e crimes
onde o próprio dono da barraca, Ismael Moita,
no arraial, tudo era minuciosamente relatado pelos
oferece cerveja e vinhos a excelentes preços e
jornais no mês de Outubro.
finaliza dizendo que a barraca encontra-se no melhor ponto do arraial.23 Não raro encontramos anúncios como estes, de barracas.
Os periódicos também nos dão grande amparo com relação aos negros e suas formas de celebrar e os seus sambas, nas festas da Penha. A partir dos
Jota Efegê, em Meninos, eu vi, fala sobre a
primeiros anos do século XX as notícias de sambas
preocupação que malandros, sambistas e capoeiras
e festejos tipicamente carnavalescos, nas festas da
tinham com a aparência ao irem à festa da Penha.
Penha, se tornaram constantes. A Gazeta de
Segundo Efegê, eles “tinham a preocupação de
notícias, em Outubro de 1907, noticiava que no
aparecer no arraial ostentando uma ‘beca’, um
arraial, um grupo acompanhado de “gemido de
‘pano’
branco,
violões, da chinfrinada das violas”, cantava
caprichosamente engomado e bem lustroso.” Para
modinhas e no lugar “formigavam-se os sambas
esses malandros e sambistas, “a roupa em primeira
com os reboleios das mulatas e as figuras
exibição ‘pintava’ no arraial ‘de acordo com o
requebradas dos dançadores”. Segundo o jornal,
figurino’ e a Nossa Senhora da Penha ia lhe dar
esse grupo sambava incansavelmente até a hora de
Gazeta de notícias, 16/11/1911. O século, 03/10/1908. 23 Gazeta de notícias, 14/10/1909.
24
21 22
novo.
De
preferência
Jota Efegê, “Para ir à Festa da Penha fazia-se uma ‘beca’ nova”, Meninos, Eu Vi, Rio de Janeiro, FUNARTE-INL, 1985, p. 75.
G N A R U S | 138 pegarem o trem de volta, e finaliza a notícia
São constantes as notícias de sambas e ranchos
dizendo que “o samba continuava, bem batucado e
carnavalescos na Penha, e à medida que vamos
palmeado, bem gritado e cantado, até a estação de
caminhando pela primeira década do século XX,
São Francisco Xavier”25
rumo à segunda, esses relatos vão aumentando.
Outro jornal, o Correio da manhã, em Outubro de 1905, relata que na festa da Penha, “os pandeiros do samba, os choros de dois ou três instrumentos
Segundo o periódico A época, um grupo, ao som de pandeiros, flautas e cavaquinhos, acompanhava um cordão, e todos cantavam em coro os versos:
surgem de todos os lados”26. Parece-me uma
Yayá, yoyô
verdadeira festa pré-carnavalesca. Novamente a
Faça Favô
Gazeta de notícias descreve a presença de negros,
Entre na dança
dessa vez, afirmando serem as negras baianas as
Mostre valô28
responsáveis belas batucadas da Penha. Segue a notícia: “Em diversos pontos do arraial, bando de
A Gazeta de notícias, em Outubro de 1909,
baianas requebravam-se ao toque de pratos,
descreve que encontrou no arraial um rancho
violões e outros instrumentos. Podia-se dizer que a
carnavalesco chamado Não lhe bulas, “tendo cerca
festa do arraial foi das baianas”.27
de vinte moças fantasiadas que cantavam ao som de pandeiros”:
Onde vais, pastora Tão bela assim? Ver o “Não lhe bulas” Lá no seu jardim29
A partir das notícias da imprensa, citadas acima, podemos ter a leve impressão do quão carnavalesco se tornou a festa da Penha a partir da virada do século XIX para o XX. A presença de romeiros fantasiados,
sambas,
ranchos
e
cordões
carnavalescos nos dão pistas para chegarmos a essa conclusão. Durante as duas primeiras décadas do século XX, no auge da festa, temos a Penha como a
avant-première do carnaval carioca, de onde se podia ouvir os primeiros acordes da folia de Momo.
Revista “O Malho”, nº 995 de 1920 (pág. 30)
Gazeta de notícias, 28/10/1907. Correio da manhã, 28/10/1905. 27 Gazeta de notícias, 27/10/1902.
Luis Tadeu de Farias Goes é formado em História pela Universidade Estácio de Sá e pós graduado em História Antiga e Medieval pela Faculdade de São Bento do RJ.
25
28
26
29
A Época, 21/10/1912. Gazeta de notícias, 11/10/1909.
G N A R U S | 139
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Coluna:
A MONTAGEM CINEMATOGRÁFICA NA BUSCA DE UMA “REALIDADE POSSÍVEL” Por Rafael Eiras
A
montagem cinematográfica poderia ser
pela sociedade e não acaba sendo caçado como um
pensada, de uma forma simplificada,
ser estranho, diferente. Pelo contrario, com as
como uma técnica inerente ao processo
técnicas da montagem o que seria um universo
da produção de uma obra fílmica. No entanto esta
impossível, imaginado e fabricado, se torna natural
seria somente um visão superficial, pois mais do que
ao espectador.
uma técnica ela é um elemento essência de construção
de
sentidos
e
conceitos
que
transbordam a simples cadeia da narrativa.
O cinema é um complexo ritual (BERNARDET, 2000) que envolve diversos elementos diferentes. Para o espectador o Cinema é somente a historia
É nesse processo que o autor da obra pode
que vimos na tela, que gostamos ou não, cuja brigas
remendar traços de uma possível verdade e criar
ou lances amorosos nos emocionam ou não. Pois em
seu “monstro”. Como um Frankenstein que é aceito
geral não pensamos nessa complexa maquina
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cinematográfica como uma construção e sim como
Regras criadas como artifícios que mascaram o
um produto acabado, uma unidade coesa e
ponto de vista de quem o produz. (BERNARDET,
inquestionável.
2000) Dizer que o cinema é natural, que coloca a
Na primeira exibição do que anos mais tarde se
realidade na tela, elimina a pessoa que fala, ou
chamaria de cinema (A Chegada do Trem na
produz cinema. Como se o que se vê na tela não
Estação de Ciotat, 1895), feita pelos irmãos
possa ser questionado pois a realidade parece
Lumière, o que se viu foi a imagem parada de um
acontecer naturalmente.
trem chegando em uma estação. O trem não era
Característica que transforma o cinema numa
uma máquina desconhecida, o filme não tinha som
potencial arma ideológica, onde sua produção
nem ruído, a imagem era em preto e branco, porém
estaria vinculado a uma ideologia dominante. Todo
ela acabou por causar espanto e susto em quem
o processo que o filme tem que passar para que a
assistia. Isso se deu pela novidade trazer em si o
obra seja financiada acaba a ligando a um
poder da ilusão, que permitia ver o trem na tela
patrocinador que tem um determinado objetivo,
como verdadeiro.
tanto diretamente de propaganda politica, como
Essa “magia do cinema” se daria por uma suposta
na união soviética, como de propaganda disfarçada
característica da imagem fotográfica de ser
de narrativas simples, como em Hollywood. No
objetiva, dando a impressão que a cena retratada é
entanto, o filme não é uma ferramenta tão precisa
o real e não uma representação deste. E também
como se espera, ele também é fruto de
devido as regras narrativa que a montagem cria.
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interpretações, de culturas, de momentos, e de
que seria desejável de se mostrar, uma contra-
ideais diferentes.
analise da sociedade. (FERRO, 1992).
Muitos dos filmes do cineasta russo Sergei Eisenstein
tentaram
simples
percebe o cinema como uma importante fonte de
propaganda politica se transformando em um
pesquisa historiográfica para se analisar a
discurso
que
sociedade que o produz. Segundo Ferro faltaria
transcendem a simples leitura ideológica, gerando
agora inserir o filme associando ele ao mundo que
outros sentidos a obra. Como também se pode
o produz. “O filme, imagem ou não da realidade,
perceber nos filmes americanos de fervorosa
documento ou ficção, intriga autentica ou pura
propaganda capitalista, momentos de estrema
invenção, é Historia. (FERRO, 1992, p.86).
elaborado
escapar pela
da
Marc Ferro foi o primeiro de uma nova geração a
montagem
critica ao sistema.
Para o autor todo imaginário produzido pelo homem, sua arte, crenças, invenções, são também
As
imagens
cinematográficas,
na
verdade,
Historia. O filme então deve ser analisado não
revelariam o que não se vê, nem se diz na própria
como uma obra de arte, mas sim como um produto
obra. Revelando nas entrelinhas um reflexo do que a
da sociedade em que ele se insere, uma “imagem-
sociedade propõem. Através desta analise, do não
objeto, cujas significados não são somente
visível nas imagens, se pode perceber a ideologia
cinematográficos”.
mascarada pela obra cinematográfica e suas
Direcionando, assim, a historia para um método em
técnicas. A câmera mostraria mais sobre cada um do
que as relações entre os componentes do filme
(FERRO,
1992,
p.87)
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(roteiro, cenário, fotografia, som) como o que não
e Montagem. No entanto a montagem esta
é filme (autor, diretor, publico que assiste a obra,
presente em todos. Na pré-produção ocorre um
critica, regime de governo, forma como foi
estudo do que ira se filmar, do que acontece no
financiado), podendo assim chegar a uma
roteiro, de forma a já se pensa como ele seria
compreensão da realidade em que ela é produzida.
montado. Na hora da filmagem o diretor está
Desta forma, para além de uma ideia de arma
sempre pensando como a cena se encaixa na
ideológica, há na montagem uma forma de
montagem. E na montagem em si, acontece uma
compreender a sociedade que o produziu, e
seleção do que foi filmado e a definição precisa do
entender como ela funciona é também começar a
que será a obra.
ler e interpretar essa sociedade. Principalmente se há
a
possibilidade
de
através
da
É importante perceber que na verdade não há um
obra
controle cem por cento de todo o processo, o que
cinematográfica se buscar entender a realidade
se pensa na pré-produção pode ser inviável na
como um documento historiográfico. Historiadores
filmagem, ou o que se filmou quando chega na
que já se enquadram num modelo de historia pós-
etapa da montagem não funciona como se
moderna tentam entender o cinema como
esperaria. Ou seja, há sempre espaço para
documento através da sua própria estética e forma,
improvisos. Por isso a ideia de montagem tem que
diferente da literatura académica.
ser forte durante todo o processo, pois se tendo
Para um dirtetor que busca trabalhar com uma
uma conceito fechado, uma forma de narrada
ideia de realidade, usando os artifícios de um filme
elaborada, a ideia base do filme se manterá coesa
dramático, ele necessita criar uma montagem que
mesmo com essas adaptações
tente dialogar com sua pretensões, indo além da
Jacques Aumont no seu livro “A estética do filme”
interpretação dos fatos a partir de evidências, e sim
tem um conceito de montagem que tenta abranger
trabalhar com a possibilidade de inventar alguns
toda essa complexidade do processo: “A montagem
desses fatos. “Esse processo de invenção não é,
é o principio que rege a organiza os elementos
como algumas pessoas podem pensar, o ponto
fílmicos visuais e sonoros, ou de agrupamento de
fraco do filme histórico, mas uma importante parte
tais elementos, justapondo-os, encadeando-os, e
de sua força.” (ROSESTONE, 2010, p. 64).
ou, organizando sua duração” (AUMONT, 1995,
E é entendendo a montagem que se pode
p.62)
começar a perceber como o filme pode estar
Desta forma se percebe que há uma limitação ao
criando suas próprias formas de lidar com a
só se pensar no ponto de vista tecnológico, pois a
realidade. Na pratica, ela surge como “uma
verdadeira força do processo esta no conceito que
atividade técnica, organizada como profissão e que
este apresenta, da elaboração da ideia do roteiro
no decorrer de suas décadas de existência
até a exibição do filme. Deve-se então trocar o foco
determinou as coordenadas e estabeleceu aos
que normalmente recai sobre a técnica do processo
poucos certos procedimentos e certos tipos de
para se pensar numa estética da montagem, ou seja,
atividades. (AUMONT, 1995, p.54)
nas formas e conceitos que são elaborados para
Numa produção cinematográfica tradicional suas etapas são divididas em: pré-produção, Filmagem,
narrar uma historia, na tentativa de se criar uma verosimilhança com o mundo real.
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que na montagem são ordenados de uma maneira que possam passar o sentido especifico que o dono da obra pretende.” (AUMONT, 1995, p.39)
Uma ideia muito mais complexa que somente a montagem de um quebra cabeça de imagens. Há, por exemplo, tipos de montagem que não necessariamente necessitam da junção de imagens diferentes. Por exemplo:
A montagem é, por natureza, uma técnica de produção de sentido e emoção. Sua Origem foi um
Um plano famoso de Cidadão Kane (1940), onde, após nos terem mostrado Susan Alexander no palco da opera, a câmera sobe, num longo treveling verdical, até as abóbadas, terminando nos dois maquinistas. Durante esse movimento ascendente, a imagem transforma-se sem cessar, tanto do ponto de vista da perspectiva quanto do ponto de vista da composição do quadro (que se torna cada vez mais abstrato). Embora filmado de uma só vez, esse plano é imediatamente legível como soma de efeitos de montagem sucessivos.” (AUMONT, 1995, p.59)
longo processo de experimentações. No principio o cinema era uma atracão de feira e
até 1915,
os filmes eram bem mais curtos e no fim do século nem contavam historias. Na época eram chamados de “vistas” ou , no Brasil, filmes “naturais” Já em 1896, Lumière formou varias dezenas de fotógrafos cinematográficos. Estes colocavam suas câmeras fixas num determinado lugar e revistavam o que estava a sua
Neste exemplo o diretor filmou de forma a juntar
frente. Também quando tem inicio a ficção, a
diversos planos com a ajuda de um movimento de
câmera fixa vira o registro da cena. Uma cena
câmera para construir uma ideia que ajude a narrar
seguida de outra numa sucessão de quadros
a historia. E para que isso ocorra, o que foi filmado
entrecortados por letreiros que representam
foi pensado antes, de forma a não só criar um
diálogos e davam outras informações que a tosca
sentido importante para a narrativa, como para
linguagem do cinema não consegue fornecer. A
gerar sentidos outros que não só sirvam para narrar,
relação entre a tela e o espectador era a mesma da
mas para demonstrar outras ideias mais expressivas
do teatro. E a montagem era uma processo simples,
como emoções e sensações diversas, até outras que
quase mecânico, de colocar uma imagem depois da
escapariam do controle dos realizadores.
outra,
O que se denomina plano no estagio da filmagem
A
linguagem
cinematográfica
foi
sendo
seria o “quadro” , ou o “campo” que se vê na
desenvolvida principalmente por americanos até
imagem, “designa por tanto, ao mesmo tempo, um
mais ou menos 1915 como herdeira do folhetim do
certo
evento
século XIX. O ponto principais dessa criação são as
(enquadramento) e uma certa duração.”(AUMONT,
estruturas narrativas e a relação com o espaço.
1995, p.39) Na fase da montagem, “torna-se então
Inicialmente o cinema só conseguia dizer: acontece
a verdadeira unidade de montagem, o pedaço de
isto (primeiro quadro), e depois: acontece aquilo
película mínima que, juntando a outra, produz o
(segundo quadro), e assim por diante. Um salto
filme.” (AUMONT, 1995, p.39)
qualitativo é dado quando o cinema deixa de
ponto
de
vista
sobre
o
“Geralmente, é esse o segundo sentido que governa de fato o primeiro. Na maioria das vezes o plano se define entre um pedaço de filme compreendido entre duas mudanças, na linguagem técnica, entre dois cortes na imagem. Há então uma diversidades de tipos e durações de planos, movimentos de camera, tipos de enquadramento, que geram sentidos diversos e
relatar cenas que se sucedem no tempo e consegue dizer “enquanto isso”. Outro fato básico para a evolução da linguagem é o deslocamento da câmera que abandona sua imobilidade e passa a explorar o espaço. A câmera
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não só se desloca no espaço como ela o recorta. Ela filma fragmentos de espaço que podem ser amplos (uma paisagem) ou registro (uma mão). Filmar então pode ser visto como um ato de recortar o espaço, de determinado ângulo, em imagens, com uma finalidade expressiva. Que depois vão ser colocadas uma após as outras, nascendo desta forma o que chamamos atualmente de montagem. Há uma controvérsia, principalmente entre historiadores, da primeira vez em que a montagem mais complexa, a que junta planos diferentes, de tempos diferentes, e durações diferentes, foi realmente utilizada. Os primeiros filmes do cineasta Georges Méliès (1896) já são compostos de muitos planos, porem sempre mantendo a mesma escala, a do ponto de vista do espectador de teatro, como se a montagem fosse somente a colagem linear de diversos quadros sem buscar nela uma produção de sentido. No entanto ele pode ser considerado o inventor do “filme narrativo”. Entre os precursores e inventores de uma
realidade, mantendo uma montagem que desse a
linguagem cinematográfica regida pela montagem
ideia de que ela não existia, que fosse natural. Esta
é o americano E.S. Porter um dos mais citados. Com
montagem é chamada de “Montagem Invisível”, e é
sua
e
espinha dorsal da forma clássica de se narrar no
principalmente, “The Great Train robbey”(1903).
cinema, afinal ela trata de manter a continuidade
Em ambos os filmes há a utilização de diversos
com o real através de certas técnicas de montagem.
planos criando tensões e suspense.
Onde o espectador não se dá conta da
“Vida
de
um
bombeiro”
(1902)
Mas é com o cineasta americano D.W.Griffith,
descontinuidade que é o cinema.
com filmes como “Nascimento de uma nação” (1915) e “Intolerância” (1916) que acontece o fim do cinema primitivo e inicio da maturidade linguística. As formas linguísticas que Grifth e outros vinham intuitivamente pesquisando se organizaram num sistema. Foi instituída uma gramáticas cinematográficas, parecidas com as que se fazem para as línguas. Essas
operações
linguísticas foram usadas de forma a se contar uma historia sem ferir o principio de impressão de
“Concretamente, essa “impressão de continuidade e de homogeneidade” é obtida por um trabalho formal, que caracteriza o período da historia do cinema que muitas vezes chamamos de “cinema clássico” – e cuja figura mais representativa é a noção de racord. O raccord, cuja a existência concreta decorre da experiencia de décadas dos montadores do “cinema clássico”. Seria definido como qualquer mudança de plano apagada em quanto tal, isso é, como qualquer figura de mudança de plano em que há esforço de preservar, de ambos os lados da colagem, elementos de continuidade” (AUMONT, 1995, p.77)
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Estabeleceu-se varias regras para o raccord, como
efeitos. Serie esta uma montagem expressiva
por exemplo: Não cortar de um plano muito aberto
utilizada junto da montagem narrativa ou de forma
para um outro muito fechado. Não cortar de um
radical, quebrando com a ideia de invisibilidade e
plano parado para um em movimento. O plano em
continuidade do corte.
movimento se deve ter a ideia de que o próximo plano dá prosseguimento ao plano anterior. Apresentar o ambiente novo através de planos de reconhecimento para não confundir o espectador. Evitar que a camera ocupe lugares que na vida seria pouco usual.
“A montagem narrativa mais transparente, assim como a montagem expressiva mais abstrata, visa ambas a produzir, a partir do confronto, o choque entre elementos diferentes, este ou aquele tipo de efeito; qualquer que seja a importância, as vezes considerável em certos filmes, do que está em jogo no momento da montagem.” (AUMONT, 1995, p.66)
Fazendo assim o espectador achar que está assistindo a uma organização dos planos naturais e
Nem todos os movimentos cinematográficos
não uma colcha de retalhos de diversas imagens
optaram pela linguagem transparente. A escola
sem conexão a principio. Cabe a montagem criar
soviética,
essa junção e fazer o drama progredir. Disfarçando
fundamentou seu trabalho cinematográfico na
a intervenção do cineasta, da presença do narrador
extrema valorização da montagem. A diferença é
ditando o que se vê.
que a montagem para eles não é a reconstrução do
principalmente
nos
anos
20,
real imediato, mas construção de uma nova “Qualquer que seja o filme, seu objetivo é doar-nos a ilusão de assistir a eventos reais que se desenvolvem diante de nos como na realidade cotidiana. Essa ilusão esconde, porem, uma fraude essencial, pois a realidade existe em um espaço continuo, e a tela apresenta-nos de fato uma sucessão de pequenos fragmentos chamados “planos”, cuja escolha, cuja a ordem e cuja a duração constituem precisamente o que se chama “decupagem” de um filme. Se tentarmos, por um esforço de atenção voluntaria, perceber a ruptura imposta pela camera ao desenrolar continuo do acontecimento representado e compreender bem por que eles nos são naturalmente insensíveis, vemos que os toleramos porque deixam substituir em nos, de alguma modo, a impressão de uma realidade continua e hemogênea” (BAZIN,1972, p.66-67)
Desta forma a principal função da montagem é a narrativa. Seria ela, como já visto, que garantiria o encadeamento das ações dramáticas para que o drama possa ser melhor percebido. Mas há outras funções da montagem que podem desconstruir essa ideia de drama clássico, onde a montagem se apresenta
como
um
elemento
perceptível
produzindo no filme um certo numero de outro
realidade, advinda da recente revolução russa, onde a junção dos planos estavam mais em função da formação de um discurso metafórico do que de uma narrativa. Vsevolod l. Pudovkin desenvolveu uma teoria da montagem que permitisse ao cinema ultrapassar a clássica
montagem
intuitiva
de
Griffith
encontrando um processo que pudesse transmitir ideias através de narrativa. “A teoria baseava-se na percepção griffithiana de que a fragmentação da cena em planos criaria uma força que ultrapassa a característica da cena filmada. (...) Dessa forma, pudovkin defende que o plano é como o “tijolo” da construção fílmica e que o material, ao ser ordenado, pode gerar qualquer resultado desejado. Da mesma forma que um poeta usa as palavras para criar uma percepção da realidade, o diretor de cinema usa os planos como seu material bruto.” (DANCYGER, 2003, p. 15)
Serguei Eisenstein foi o segundo grande nome entre os cineastas russos. Como diretor ele foi talvez o maior. Como escritor teorizou sobre suas
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Dziga Vertov deu outro significado a montagem de Eisenstein. Segundo ele a câmera deveria colocar-se diretamante em contato com o real, voltando-se assim para o documentário, usou material já filmado de arquivo, de forma que seu trabalho era basicamente criado na montagem. Para ele a filmagem deveria ser reprodução do real, a captação do real sem intervenção, mas o resultado final, o filme, não reproduzia realidade imediata
alguma,
cinematográfica
era
que
uma
deveria
construção
reconstruir
o
dinamismo do povo revolucionário de um modo mais profundo que o real imediato poderia oferecer. Fora da URSS, existiam outros movimentos que não se voltavam para a tentativa de reproduzir um cinema
de
verosimilhança.
É
o
caso
do
Expressionismo que vigora na Alemanha nos anos ideias cinematográficas reunindo as lições de
20 e 30. Fortemente influenciado pela literatura e
Griffith com a dialética de Karl Marx. Eisenstein
pelas artes plásticas, este cinema contava histórias,
pensou sobre a montagem como um choque de
mas fantásticas, e as imagens que mostrava tinha
imagens e ideias. O cinema não precisa se limitar a
pouco a ver com a realidade cotidiana que nos
contar histórias, ele pode produzir ideias. Já que a
cerca: os espaços, a arquitetura, os objetos
estrutura da montagem seria a do pensamento. O
lembram sem duvida, ruas, casas, florestas, mas
que vai guiar a imagem não será a historia mas o
totalmente deformados. O que se procurava era
desenvolvimento de um raciocínio.
expressar uma realidade interior: não existe outra
Em um de seus principais filmes, Outubro (1912),
senão aquela que vivemos subjetivamente.
que retrata o inicio do socialismo soviético usando
O expressionismo influenciou o cinema norte
de condensação, simbologia e metáforas, para
americano, pois muitos dos realizadores alemães
encaixar as coisas no seu quadro temporal. Se pode
migraram para os EUA. Mas os traços expressionista
perceber que a estética de montagem do diretor
foram absorvidos pela narrativa americana. Onde as
está voltada muito mais para a construção de um
cenários, e os enquadramentos tortos e etc, foram
discurso, que refletiria a verdade, do que ser o filme
justificados pelo estado do psicológico do
a verdade. A Obra é uma ficção, uma que não pode
personagem. Como o reflexo do espelho de Orson
ser lida literalmente. Seu tema principal nunca é
Welles em “Cidadão Kane” (1940). Ele mostra a
articulado diretamente, mas é colocado em cada
vaidade e o egocentrismo do personagem. Os
imagem, em cada movimento, em cada ângulo de
expressionistas não precisavam justificar ele só
câmera e em cada corte.
diziam : o mundo é assim.
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A Avant-garde francesa dos anos 20 tentou escapar da narrativa. Esse era o aspecto literário
coesão com a realidade ao envolver o espectador nesse universo possível dos filmes.
que o cinema deveria se libertar para se tornar puro. Os filmes deveriam expressar sentimentos e estados de espíritos e não uma historia. O Surrealismo cinematográfico de Luís Buñuel, em Um cão andaluz(1928) e a Idade de Ouro (1930) estava longe da preocupação com um enredo. Suas imagens expressavam pulsões, desejos ainda não racionalizados, e um imenso ódio pela ordem
“A filiação é direta entre a montagem eisenstainiana e a montagem contemporânea que perseque ao mesmo tempo o discurso e a escrita – um discurso escrito. Welles, Bresson, Antonioni, Bergman, Godard, Resnais, se todos foram mesmo, num certo tempo, os herdeiro de Griffith, hoje só pretendem ser, juntamente com os autores disso que se convencionou chamar de “cinema jovem”, e que encontra espalhado um pouco por todo o mundo, os filhos de Eisenstein.” (AMENGUAL, 1973, p.134)
burguesa. É uma realidade que só existe no cinema, a forma do artista expressar, a maneira que ele tem
Violência” do diretor Quentin Tarantino propõe a
de emergir o real dentro de cada um. Também se opõe a esse cinema clássico a escola documentarista britânica, liderada nos anos 30 por pessoas como John Grierson e Alberto de Cavalcanti, mas num sentido completamente diferente dos vanguardistas dos anos 20. O documentário é a nova educação e só terá sentido se for colocado a serviço do povo. Para John Grierson o filme teria a função de integrar o trabalhador ao contesto social que ele fiça a parte. Foram feitos filmes mostrando o trabalho dos pescadores, sobre a riqueza e a pobreza e etc. Desta forma, ao mesmo tempo que nasce os fundamentos de uma narrativa clássica, a desconstrução
dela
também
Um filme como “pulp Fiction – Tempo de
ocorria
paralelamente. Onde a montagem sempre era um elemento forte de manipulação, ora criando uma tentativa de continuidade com o real realidade, ora criando uma extrema expressividade que faz com que o espectador perceba estar sendo manipulado pela própria montagem, criando assim um discurso mais forte que a narrativa. Atualmente com a ideia de um cinema pósmoderno não mais regido pela linealidade de um narrativa clássica, a montagem é quem mantêm a
quebra das rígidas regras de tempo da narração clássica, “elevando a montagem a protagonizar comentários e criticas. A desconstrução narrativa característica da pós-modernidade, revela o lado fascinante da edição, a qual muitas vezes passa imperceptível.” (OLIVEIRA. ?, p.1) “Desconstruir é quebrar com as regras de sequência linear do tempo, é alterar a ordem do tratado metódico das construções. A desconstrução de uma narrativa, como no caso do filme, se dá pelas sequências embaralhadas e da ordem invertida dos quadros. A montagem é a técnica utilizada para contar uma história dentro de um período rígido de tempo que é o filme. Brincar com esta ordem repercute na originalidade do processo de edição, e desconstrói as regras rígidas do cinema.” (OLIVEIRA,2008, p.5)
No entanto o espectador ao ver o filme ainda é levado a entrar neste mundo possível, mesmo que pós-moderno, caracterizado pela velocidade da informação, onde a narrativa se mostrar repleta de conhecimentos vazios e desconexos, relações fragmentadas, e pensamentos embaralhados. Na verdade esse cinema reflete o que a sociedade vivência, onde essa desconstrução não deixa de ser um elemento que optimize a relação do filme com o espctador.
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A obra cinematográfica vai além da constituição dos fatos, ela recria fatos. Filmes históricos, por exemplo, são parte de um campo diferente de discurso histórico, cujo o objetivo não é fornecer verdade literais sobre o passado mas “verdades metafóricas que funcionam, em grande medida como uma espécie de comentário e desafio do discurso histórico tradicional. (ROSESTONE, 2010, p. 23). Neste caso o filme Outubro (1912), do diretor russo Serguei Eisenstein, não deixa de ser uma obra histórica ao inventar fatos, pois através de sua montagem elaborada criar um discurso que dialoga com os acontecimentos de seu tempo. Neste panorama a montagem continua sendo usada para inserir o espectador numa ficção, ou quebrar com essa realidade de forma a se apresentar como tal, da mesma forma como acontecia na inicio de sua formulação. O que mudou foi como a sociedade percebe os filmes e como esses reinterpretam a realidade, que parece cada vez mais estar vinculada com o conceito da relatividade. Afinal mostrar o ponto de vista, que a montagem clássica tentava esconder, não deixa de ser, na atual pós-modernidade, uma forma de representar uma “realidade possível.” Rafael Eiras é formado em Cinema pela Universidade Estácio de Sá e Licenciado em História pela Universidade Cândido Mendes.
Bibliografia AMENGUAL, Barthélemy. Chaves do Cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1973 AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papiros editora. 2005 __________. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus.1995 BAZIN, André, Orson Welle. Paris: les Editions du cerf, 1972, pp. 66-67 BERNARDET, Jean-Claude, O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2000 DANCYGER, Ken. Técnicas de Edição para Cinema e Vídeo. Rio de Janeiro: Campus. 2003
FERRO, M. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. __________. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989. METZ, Cheistian. A Significação no Cinema. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva. n.54. 1972 MORIN, Edgar. A alma do cinema in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal. 1983 pg 143 OLIVEIRA , Fabíola Corrêa da Costa; SAMPAIO, Valzeli. Desconstrução narrativa: a montagem do filme "Pulp Fiction Tempo de Violência” em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2008 /resumos/R3-0856-1.pdf Acesso: 01/16/2016 PALLOHINI, Renata. Introdução à dramaturgia. São Paulo: Brasiliense. 1983 ROSENFELD, Antatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva. 1985 ROSENSTONE, Robert A. A Historia nos filmes/ Os filmes na Historia. Rio de Janeiro; Paz e terra, 2010
Referências Cinematográficas CÃO ANDALUZ, UM. Direção: Luis Buñuel. Produção: França , 1928, 16 minutos. Formato: 35 mm. CHEGADA DO TREM A ESTAÇÃO DE LA CIOTAT, A. Direção: Louis Lumière, Auguste Lumière. Produção: França, 1895, 50 segundos. Formato: 35mm. CIDADÃO KANE. Direção: Orson welles. Produção: USA, 1941, 1h59min. Formato: 35 mm. IDADE DE OURO. Direção: Luis Buñuel. Produção: França , 1930, 1h0min. Formato: 35 mm. OUTUBRO. Direção: : Serguei Eisenstein e Grigory Alexandrov Produção: URSS , 1928, 1h43min. Formato: 35 mm. PULP FICTION – Tempos de ViolênciaI. Direção: Quenti Tarantino. Produção: USA, 1995, 2h29min. Formato: 35 mm. THE GREAT TRAIN ROBBEY. Direção: Edwin S. Porter. Produção: USA, 1903, 10 minutos. Formato: 35 mm. VIDA DE UM BOMBEIRO. Direção: Edwin S. Porter, George S. Produção: USA, 1903, 6 minutos. Formato: 35 mm.
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Coluna:
Fotografias da História
IMAGEM, INSTANTE E MORTE NA FOTOGRAFIA DE ROBERT CAPA Por Fernando Gralha
Morte de um miliciano legalista (Federico Borrell Garcia), 5 de setembro de 1936 (prata/gelatina, 28 x 38cm) - Robert Capa – International Center Photography Museum. Nova York, EUA.
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R
obert Capa (1913-1954) era o pseudônimo
E Capa já era um aventureiro antes da fundação
do húngaro que se tornou cidadão
da Magnum, em 1931 fotografou Leon Trótski, em
estadunidense Endre Ernõ Friedmann. Sua
1936 junto com a namorada também fotógrafa
carreira tem início em 1931, mas suas aventuras que
Gerda Taro3 cobriu a Guerra Civil Espanhola, em
o transformam em um homem do mundo iniciam
1938 o conflito sino-japonês, em 1940 volta à
um ano antes, algumas complicações envolvendo
Espanha e após a tomada da França pelos nazistas
sua atração pelos meios culturais marxistas o
segue para os E.U.A. para trabalhar na Life,
obrigam a se exilar em Berlim, onde um ano depois
perambula por Inglaterra e depois Argélia e em
o nazismo e seu judaísmo o obrigam a abandonar
1944 cobre o desembarque da Normandia,
seu trabalho no “Dephot”, maior agência de
fotografa o dia “D” e produziu um dos mais ricos
imprensa da Alemanha no período e migrar para
discursos visuais da história. Dentre estas façanhas,
Viena e depois Paris, daí cria o personagem “Robert
talvez a mais marcante e com certeza a mais famosa
Capa”, fotógrafo estadunidense que cobre os
foi a fotografia que fez na cobertura da Guerra Civil
maiores eventos da época.
Espanhola, “Morte de um miliciano” ou “Soldado
Em 1947 juntamente com George Rodger, Chim Seymor e Henry Cartier-Bresson fundou a agência Magnum, que tinha por prática servir de intermediária entre fotógrafos e imprensa e por
caído”. A fotografia foi feita em 5 de setembro de 1936 em Cerro Muriano, sendo veiculada em 23 de setembro na revista francesa VU, e um ano após na revista estadunidense Time.
objetivo produções mais independentes e criativas.
A foto parece captar o instante preciso da morte
O grupo apresentou novos ideais no campo da
de um combatente em um cenário deserto,
fotografia de imprensa como a luta pela notícia de
desolado, aberto. A princípio a efígie realizada pelo
forma crítica e pela pauta fotográfica como
fotógrafo se estabelece indubitavelmente como
possibilidade de complementar à informação
um documento histórico através de sua própria
escrita. Passaram a exigir a posse dos negativos, o
natureza e intento como suporte visual do registro
crédito autoral do fotógrafo, a não alteração e/ou
de uma informação que apresenta à primeira vista
corte das imagens e que as legendas deveriam ser
uma historicidade sem grandes empecilhos à sua
produzidas pelos próprios fotógrafos. Cartier-
análise e identificação. O título e as informações
Bresson definiu bem a política do grupo:
com que a foto circulou tanto na já citada revista
“Formamos uma cooperativa em que podíamos
VU (“La Guerre Civile em Espagne. Comment ils
escolher os temas, recusando aqueles que nos
sont tombés, comment ils ont fui”), como em
propunham e não nos interessavam. Nesse sentido,
reprodução posterior na revista Life de 12 de junho
não éramos mercenários”.1 “Eu espero que o
de 1937 (“Robert Capa’s camera catches a Spanish
aspecto aventureiro da agência Magnum exista
soldier the instant he is dropped by a bullet through
sempre; é preciso ser aventureiro em uma
his head in front of Cordoba”) além de outras como
atividade”. 2
a Paris-soir (28-06-1937) e Regards (14-07-1937)
1
fotos que hoje marcam a memória daqueles eventos. Morreu acidentalmente atropelada por um tanque no fronte de batalha durante um ataque das tropas franquistas.
CARTIER-BRESSON, 1986, p. 122 Idem, 2004 3 Gerda Taro ou Gerta Pohorylle (1910 - 1937) foi fotógrafa, jornalista e anarquista. Registrou a Guerra Civil Espanhola em 2
G N A R U S | 152
Robert Capa, durante a cobertura da Guerra Civil Espanhola, em 1937; foto de Gerda Taro
que reproduzem a informação imprimem à foto a
dessa que foi sua primeira incursão como fotógrafo
condição de um legítimo documento histórico.
na guerra, e que essa interpretação teria sido
Porém algumas dúvidas foram postas em relação à
realizada pelos editores em Paris, acarretando tal
imagem, o primeiro a questionar foi Philip
dúvida.
Knightley no livro “A Primeira Baixa” (1970), o
Universidade
historiador Mario Brotons colocou o anarquista
Susperregui no livro "As Sombras da Fotografia",
Federico Borrel Garcia4 como o soldado atingido,
argumenta que a foto teria sido montada a cerca de
porém pairam dúvidas sobre a identidade do
60 km de Cerro Muriano, em Espejo. O autor
combatente. Miguel Pascual, historiador espanhol,
assegura que, de acordo com suas investigações, e
acredita que a foto é uma montagem, pois os
assistência de historiadores da região, o local não
negativos nunca foram encontrados. Cyntia Young
poderia ser Cerro Muriano, pois esta era uma área
(Centro Internacional de Fotografia) cita que
de floresta centenária, enquanto que Espejo se
Robert "legendou muito poucas de suas imagens"
identifica de forma semelhante com a paisagem
4
(FIJL). Com o início da Guerra Civil Espanhola juntou-se a Coluna Alcoiana para defender a República Espanhola contra as forças nacionalistas fascistas de Francisco Franco.
Federico Borrel Garcia foi um anarquista espanhol combatente republicano da Guerra Civil Espanhola. Trabalhou num moinho em Alcoi e fundou junto com um grupo de anarquistas locais a Federação Ibérica da Juventude Libertária
O
professor do
País
de
Comunicação
Basco,
José
da
Manuel
G N A R U S | 153 reportada, além do que, Historiadores afirmam que
– Robert Capa e o miliciano abatido na Espanha:
não ocorreram combates no princípio daquele mês
sugestões para um estudo histórico”,6 que aliás nos
em Espejo. Ainda segundo Susperregui, a hipótese
serviu muito aqui.
de que o tiro foi disparado por um franco-atirador, igualmente é falsa, porque a distância entre os lados da guerra era muito grande para que possível o tiro, assim como não há constatação de francoatiradores na região; além do mais, Robert Capa em algumas entrevistas afirmou ter sido uma rajada de metralhadora que atingiu o soldado.5 Um outro grupo ainda defende que a foto tenha sido feita por sua companheira, a alemã Gerda Taro.
A célebre fotografia de Robert Capa mostra o instante em que um soldado espanhol é abatido por um tiro. Se ao mesmo tempo é uma efígie chocante porque prolonga ante ao nosso olhar o doloroso momento da morte, também nos informa sua ação, a de um soldado que cruza um espaço tenso, e que logo em seguida tombará sobre o terreno. É um instantâneo que nos livra da carga simbólica da pose e das disposições cenográficas, abandonando
Desta forma, para além do seu caráter
a envergadura discursiva da imagem pela
documental a foto de Capa se insere na discussão
espontaneidade do congelamento do tempo. O
da crítica ao documento, do problema da
instante se desenvolve em uma linguagem própria,
autenticidade, problema extenso neste caso da
no qual sobrevém a inserção de um novo
fotografia de Capa portanto, como não é aqui nosso
componente
objetivo além das limitações de espaço para tal
observar em minúcias a disposição, a anatomia e a
discussão, nos limitaremos a uma breve análise da
relação do sujeito com o espaço sem apagar o
foto como instantâneo, mas para uma análise mais
sentido do movimento, sendo um instante modelar,
aprofundada recomendamos o artigo de Ulpiano
significativo, uma representação do tempo num
codificador
que
nos
consente
Bezerra de Meneses “A fotografia como documento
5
Schwartz, Christian. (tradução) (1 de setembro de 2009). «A sombra de uma dúvida». The New York Times. Nova Iorque: Gazeta do Povo. Consultado em 28 de agosto de 2013.
6
Para referência completa ver “Referências” no fim deste artigo
G N A R U S | 154 instante-síntese do movimento que não poderá ocultar totalmente, ainda que não o
contenha.7
A foto em análise apresenta muitas características que evidenciam sua condição de instantâneo, não
enquanto seu corpo desaba, a imagem mostra o momento da morte, e sua proximidade ameaçadora nos espanta e choca por ilustrar o quão violenta e súbita a morte e a guerra podem ser.
está centralizada, suas margens inferior e esquerda
Robert Capa morreu em 25 de maio de 1954. Sua
cortam respectivamente os pés e parte da arma do
morte foi um funesto resultado de seu lema, a mais
soldado, não se pode dizer também que a nitidez
célebre de suas frases: “Se suas fotos não estão boas
seja uma característica, a cabeça está meio que
o suficiente, você não está perto o suficiente”.
mais escurecida, com exceção da orelha que está
Morreu ao pisar uma mina terrestre cobrindo a
extremamente iluminada, além do que o gorro que
Guerra da Indochina para revista Life. Seu corpo foi
o soldado portava aparece mais como um coque de
encontrado com as pernas destroçadas. A câmera
cabelo, portanto os atributos da mesma não deixam
continuava entre suas mãos.
dúvida de que o fotógrafo surpreendeu o fotografado em seu momento derradeiro, no instante fatal. As câmeras na época não eram
Fernando Gralha é Mestre em História pela UFJF, Doutorando em História pela UNIRIO, professor das Faculdades Integradas Simonsen e editor coordenador da Gnarus Revista de História.
automáticas, o foco meio embaçado aumenta a tensão e o impacto da imagem. A foto marca o momento em que Capa se transforma em fotógrafo de guerra, ele opta por fazer a foto a despeito das circunstâncias trágicas. Mas a foto fala mais, podemos nos interrogar sobre o quadro da ação, e este nos diz muito, o espaço é aberto, vasto, foi este um dos elementos que levaram às dúvidas sobre sua autenticidade. Peritos examinaram as montanhas ao fundo para esclarecer o local exato; o declive triangular da base na foto apresenta uma relva rasteira e seca, com algumas hastes que evidenciam uma colheita recente. A longa sombra atrás do soldado indica que a fotografia foi feita no fim da tarde, o soldado, desequilibrado pelo projétil, braços e peitos abertos cai em direção à própria sombra, que macabramente em sua forma alongada e escura alude a um túmulo aberto que receberá o soldado morto. Na margem esquerda, o rifle cai da sua mão
7
ENTLER, 2007.
Referências: AVANCINI, Atílio. A imagem fotográfica do cotidiano: significado e informação no jornalismo. In Brazilian Journalism Research, vol. 7, nº1, p. 50-66, 2011. Disponível em http://bjr.sbpjor.org.br/bjr/article/view/285/267 (acessado em agosto de 2016). BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1981. CARTIER-BRESSON, Henri . L´Instant Décisif. Revue Les Cahiers de La Photographie, Paris, numéro spécial à Henri Cartier-Bresson, p. 9-20, 1986. CARTIER-BRESSON. Henri, GUERRIN, Michel: La
Photographie, une suite de coïncidences merveilleuses. Le Monde, Paris, 6 ago. 2004. DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios . Campinas:Papirus, 1994. ENTLER, Ronaldo. A fotografia e as representações do tempo. revista Galáxia, São Paulo, n. 14, p. 29-46, dez. 2007. HACKING, Juliet. Tudo sobre fotografia. Rio de Janeiro: Editora Sextante, 2012. MENESES, Ulpiano Bezerra de. A fotografia como
documento – Robert Capa e o miliciano abatido na Espanha: sugestões para um estudo histórico . Tempo, Rio de Janeiro, n. 14, p.138-149, jan. 2003. PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976. SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. Companhia das Letras, 2004.
São
Paulo:
G N A R U S | 155
Coluna:
PERRAMUS - DENTE POR DENTE Por: Renato Lopes Carlos Gardel canta cada dia melhor” Lenda popular (principalmente na Argentina e no Uruguai).
C
arlos Gardel (1890 – 1935), consolidou-se
Escayola e de Maria Lelia Oliva (reza a lenda, tinha
como um dos maiores nomes da música
apenas 13 anos quando deu à luz a Gardel); outra
mundial, um ícone latino americano e um
versão sobre sua origem no leva para o outro lado
mito argentino. Não são poucos os predicados que
do atlântico, no Velho Mundo, em Toulouse, na
alçaram Gardel a esse olimpo.
França, e o colocam como Charles Romuald Gardès,
Não é errado dizer que a mística em torno da figura de Gardel era alimentada ainda em vida, começando pela sua própria origem. Como todo bom mito, Gardel tem sua origem perpassada por diversas histórias e casos:
desde seu provável
nascimento na província de Tucuarembó, no Uruguai, seria filho do líder político local Carlos
filho de pai ignorado e de Berthe Gardès. Sempre muito esquivo a esse assunto, Gardel, numa dessas muitas ironias do destino que a História tenta explicar, parecia prever seu futuro e, ao invés de tentar dar um sentido lógico a toda essa questão (se é que ele sabia realmente sua verdadeira origem), preferiu trilhar a senda mítica, deixando de procurar um sentido para sua vida (a partir de sua
G N A R U S | 156 origem) e fez aquilo que reza a
7
cartilha dos candidatos a mito,
tentativa
bem
sucedida,
optou pela experiência de
criam
uma
história
estar vivo, sem mais detalhes,
entrecortada
sem mais sentidos originários.
personagens históricos reais
E com sua voz e sua música
e situações verossímeis, mas
embalou e inspirou muitos a
que, segundo o autor nos
fazerem
coisa,
alerta “é ou pretende ser
américa latina e mundo afora.
real”. Juntam tudo isso em
a
mesma
Numa
por
reconstituir o sorriso do povo
artística que Gardel teve um
argentino.”
fim prematuro, durante sua
E
assim
chegamos a história em
turnê por Medellín, o avião
quadrinhos
caiu durante a decolagem, companheiro musical de longa
anos.
uma “empresa simbólica para
Foi no auge de sua carreira
além de Gardel, morreu seu
terríveis
“Perramus
–
Dente por Dente”. Autores: Juan Sasturaín e Alberto Breccia.
Antes um esclarecimento –
data Alfredo Le Pera. O desastre só acentuou a aura
Perramus é a marca da capa de chuva usada pelo
do mito. Os velórios de Gardel por si só são uma
personagem principal, cujo nome também não
epopeia, seu corpo passou por Nova York,
sabemos em momento algum da trama. Perramus já
Montevidéu e Buenos Aires. Este último realizado
havia protagonizado outras três histórias El piloto
no Luna Park, com a presença de milhares de
del olvido, El alma de la ciudad, La isla del guano.
pessoas. Somente quase vinte anos depois a
Em “Perramus – Dente por Dente” a última história
Argentina veria um funeral tão disputado: o de Evita
protagonizada pelo personagem, e a única lançada
Perón.
no Brasil, vemos Perramus e seus companheiros,
Gardel encantou por sua voz, eternizou diversos Tangos e Milongas, imprimiu um estilo de vida e tem como marca registrada um famoso sorriso: sereno, feliz, sedutor, convidativo, pleno. Gardel tinha talento tanto para sorrir quanto para cantar. E quem diria que um sorriso seria o motor de uma empresa simbólica ao redor do mundo. O escritor argentino Juan Sasturaín e o desenhista uruguaio Albero Breccia (famosos nomes dos quadrinhos latino americanos), pareciam querer elevar a aura gardeliana a um outro patamar, ao mesmo tempo em que refletiam sobre uma Argentina que saia de uma sanguinária ditadura de
convocados por um Jorge Luís Borges que venceu o Nobel de Literatura, para uma missão: restituir a plenitude do sorrido do povo argentino. E que sorriso melhor que o de Gardel para trazer de volta a plenitude desse povo. A história, embora conte com uma miríade de personagens reais, como já dito anteriormente, não se pretende ser 100% real e por isso mesmo faz uso de algumas liberdades. A trama se passa em algum ponto entre 1985 e 1988, período no qual já ocorrera a redemocratização no país. Borges, não só venceu o Nobel de Literatura como ainda está vivo na história (Borges faleceu em 1986). Ao lado de Borges na organização da empresa simbólica
G N A R U S | 157 temos um ascendente Gabriel Garcia Marquez que
e de referências, que vão das letras dos tangos de
colhe os louros do lançamento de seu maior clássico
Gardel, passando por páginas de “Cem Anos de
“Cem Anos de Solidão”. Ainda temos a presença de
Solidão”,
Frank Sinatra, Fidel Castro, Maria Kodama
emprestando seus gestos e suas palavras, “Perramus
(companheira de Borges), o maestro argentino
– Dente por Dente” imprimi um ritmo aventureiro,
Osvaldo Pugliese.
mas sem nunca perder o foco do que realmente
O Sorriso Perdido Vamos a empresa simbólica. Gardel teve seu túmulo violado, seus dentes foram roubados e negociados no mercado negro. Esses dentes estão espalhados entre a América do Sul, Central, Europa e Ásia. O escritor Gabriel Garcia Marquez conseguiu reunir provas e pistas de como conseguir chegar a esses dentes. Só precisava de alguém para colocar a mão na massa. O papel de Borges é recrutar Perramus e seus amigos, Negro Canelones e Inimigo. Através de um inteligente jogo de pistas
com
personagens
históricos
reais
importa: a jornada. Seguindo a trajetória de históricas clássicas do cânone ocidental, mais precisamente a “Odisséia” de Homero e a “Itaca” de Kavafis (constantes referências a longo da trama), “Perramus...” não está preocupado com a conclusão da jornada, ou em seu desfecho evidentemente positivo, mas sim com o próprio desenrolar da história. O que se pode dar aos náufragos, seja da História, do pensamento, da memória, se não a jornada. Vamos a algum lugar? Gostamos de pensar que sim. Mas quando
G N A R U S | 158
aceitamos que o lugar é o caminho, entendemos
A história de Perramus forja uma adesão de
que enquanto estivermos na senda, teremos
Borges que na realidade nunca escondeu seu
sempre a algo a aprender. O fim da senda é o fim do
desprezo por Gardel. Adesão essa em nome do
aprendizado. No final nunca estamos certos para
reconhecimento da plenitude contrastante de seu
onde ir, mas se há o caminho, porque não percorrer.
sorriso, que contrastava com a melancolia, paixão e
Falando enquanto historiador, vivemos o eterno
frustração de seus tangos e milongas.
dilema dos rumos da História. Se ela não está num
E assim voltamos ao nosso paralelo inicial: aquele
plano cartesiano, se ela não é, seja por uma questão
que resolve viver a experiência de estar vivo, como
metodológica ou de conteúdo, escatológica, onde
o fez Gardel, é o Odisseu que sabe buscar no
está o seu sentido? Creio que nos damos essa
caminho, e não no final, o sentido de sua jornada.
resposta sempre que nos permitimos ao exercício
Gardel foi o mito e o Odisseu por excelência.
da perspectiva histórica, vamos e voltamos com ela, lemos suas representações e o afim sempre aceitamos “por hora é isso”. Às vezes é um exercício de sobrevivência, não nos deixarmos naufragar. Mas tal como o Odisseu, também não temos domínio sobre os caminhos (e descaminhos) que o estudo da História pode nos conduzir. Só queremos ter certeza que, quando a nossa história cessar, tenhamos sido menos que um naufrago e mais que um “Nemo”.
Renato Lopes graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestrando em História pela Unirio, pesquisa Cinema na América Latina e colunista especialista em quadrinhos da Gnarus Revista de História.
G N A R U S | 159
Resenha
UM CONVITE A LEITURA DE “O Nome da Rosa”. Por Cyndie Esquivel
ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1983.
U nascido
mberto Eco é
medievo,
um
sazonal e muito mais)
escritor italiano,
em
1932
período
para compor sua obra e e
enriquecê-la de sutilezas
falecido em 2016. Sua
ímpares. Eco, depois do
vasta
formação
inaugural “O nome da
(semiólogo,
linguista,
Rosa”, escreveu outros
acadêmico e filósofo) é
conhecidos
refletida na maestria das
como “O pêndulo de
suas obras, ricas em tantos
Foucault” e “Cemitério
detalhes que nos permite
em Praga”, além de
se transportados para elas.
vários
“O nome da Rosa” começa
diversas
a ser escrito em 1978 e só
conferindo ao autor a sua
é publicado em 1980,
notoriedade assim como
nesse intervalo, o autor
sua multiplicidade.
busca múltiplas
referências (nomes
de
clérigos, arquitetura do
romances
ensaios
sobre
temáticas,
A obra se passa na primeira século
metade
do XIV,
G N A R U S | 160 especificamente em Novembro de 1327, na Itália.
pós-escrito, o autor diz que sua motivação partiu de
Começa com Guilherme e seu pupilo, Adso,
sua “vontade de envenenar um monge” (p. 15).
chegando à Abadia para aguardar uma conferência
Podemos pensar o quão icônico isso se torna
entre monges franciscanos e beneditinos. Ao
quando sabemos da sua intenção frustrada de
chegar, Guilherme, conhecido pela sua sagacidade
acesso à documentação em posse da Igreja. O
crítica, é recebido pelo Abade, que lhe conta sobre
tempo corrido (natural) também foi pensado de
uma morte atribuída a fatores místicos, mas que
forma coesa, dando veracidade aos detalhes que
eram mais terrenos que o suposto. Seguidas mortes
culminaram em uma real possibilidade de a
acontecem, e o pavor interno cresce (juntamente
narrativa ser passada em novembro, já que era um
com a crença na ação diabólica) enquanto
mês mais frio e, por conta disso, o mês escolhido
Guilherme tenta desvendar o que realmente
para abate de porcos (um dos monges é encontrado
acontecera. Em suas investigações, percebe que os
mergulhado em sangue de um suíno abatido). Dado
mortos culminam para um fator em comum: os
o exemplo (dentre tantos outros), evidencia a
livros. Com essa descoberta, Guilherme tenta
cautela com detalhes que montam uma história
adentrar na biblioteca. Ao ser confrontado com a
possível de ter acontecido na realidade da época
resistência à sua entrada, percebe que a motivação
que foi escolhida.
dos crimes está lá. Nesse interim, a Inquisição chega para condenar o (falso) culpado por chamar o Diabo para a Abadia. O inquisidor, Bernardo Gui, e Guilherme possuem um passado desfavorável ao franciscano, mesmo assim, Guilherme não se limita (desta vez) a concordar com a Inquisição. Ao manter as investigações, descobre que um livro perigoso estava despertando a curiosidade dos monges e, por isso, foi envenenado, visando que os monges que haviam lido suas páginas, não pudessem compartilhar o seu conteúdo. Ao final, Guilherme confronta Jorge sobre o teor do livro, e este foge. Jorge põe fogo no livro e, acidentalmente, em toda biblioteca. Guilherme prova então que não foi o Diabo e sim receios religiosos que instigaram as mortes.
Outra questão externada na obra é o embate entre conhecimento e fé. O livro nos mostra os limites de ambos e a maneira que devem ser geridas, visando ao bem maior (a permanência da crença). O conhecimento, na obra, aparece como algo a ser conquistado, contudo não estimulado. Nos capítulos finais, é dito que o conhecimento deve ser repassado, repetido e não perscrutado, isso porque a fé deveria fazer o papel de estimular a busca por Deus, não o saber. Até mesmo a escolha dos personagens (e suas características) remete ao que era pensado sobre tais conceitos, aqueles que escolheram o viés do “cognoscere” eram o monge franciscano (pobre e com passado manchado por heresia, segundo a Inquisição) e os monges que morrem, logo pessoas que foram “marcadas” por
O autor foi muito perspicaz em inúmeros aspectos
conhecer. Enquanto os personagens de maior fé se
desenvolvidos com maestria. Primeiramente, a
mostram como tementes, senis (até certo ponto) e
própria escolha do tempo em que se passava o
incrédulos frente ao motivo secular das mortes.
romance: a era medieval. Tratar sobre obscuridade
Acreditamos que o autor foi muito sensível ao
de conhecimento e sobre receio às práticas
manter o diálogo fé vs. razão nos detalhes, assim
mundanas não poderia ser em outra época. Em seu
como nas evidências. É muito significativo que o
G N A R U S | 161 protetor da biblioteca e maior defensor da fé seja
questiona. Os monges que morrem, são aqueles que
cego, enquanto o personagem mais racional e
leem o livro proibido de Aristóteles.
terreno seja franciscano.
De forma sutil, o autor traz o destino daqueles
A escolha psicológica dos personagens causa
que queriam conhecer outra fonte além daquelas
muita reflexão também. A narração é feita por Adso
que estavam à mostra, ou seja, não satisfazia mais a
beirando os oitenta anos, em reminiscência dos
restrição imposta do que conhecer. Encaramos a
seus dezoito anos. Acredito que dois personagens
própria
se revelam: o Adso jovem, que vivenciou com pouca
“animado”, ela é a motivação de conquista de
experiência de vida e que reagiu de forma
Guilherme tanto quanto uma mocinha virginal seria
emocional devido a esse amadorismo, e existe
para um galã. A biblioteca representa muito mais
também o Adso idoso, mais sábio e capaz de
que o local onde os livros estão, ela é a “mocinha”
entender o que se desenvolveu como Adso jovem.
proibida que não pode ser violada. A escolha de
Encaramos como dois personagens distintos que
suas características evidencia o caráter múltiplo
compartilham o nome e a memória, mas que
que o autor escolheu em lhe atribuir, é erguida em
vivenciaram a história de formas diferentes, por isso
forma de labirinto, ora, só nesse sentido já há muito
se tornam duas pessoas com duas histórias, a vivida
a se dizer. O labirinto, por essência, é um local onde
e a refletida (que foi contada). Há também a figura
mais de um caminho leva ao escopo, exatamente o
de Guilherme, o retrato do temor clérigo na
oposto do proposto pela fé, onde Deus é o único
persona de um integrante clerical. A sua
caminho. A biblioteca ser fechada também nos
perspicácia peculiar e aristotélica traziam, em
mostra o caráter oculto que esses livros deveriam
essência, a racionalidade temida pelos devotos
ter, eles estão lá tão somente para não estarem em
cegos da fé. Guilherme trazia consigo mais livros
circulação.
que emoções e fica muito claro que essa combinação vestida de batina era algo a ser temida, afinal a parceria da fé é a leitura emocionada (e temida) de um livro (a Bíblia) era o almejado e não sua leitura crítica. Já Jorge, o mais icônico em nossa opinião, é o monge cego que protege a biblioteca e que se revela o assassino dos outros monges. Mais que elucidar a sua fé na cristandade, a sua personagem emerge a característica motriz da fé: o temor. Jorge condena os curiosos pela leitura de um livro de Aristóteles que exalta o riso. Ao dizer que a fé só se sustenta com o medo, ele mesmo mostra seu temor ao mundano, ao corruptível. O cego personagem (também o personagem cego, não por acaso) nos remete a pensar sobre onde é o lugar de quem critica, de quem é curioso, de quem
biblioteca
como
um
personagem
Uma outra questão levantada é a figura da mulher, comparada ao demônio várias vezes, seja com passagens bíblicas ou na fala dos personagens (Ubertino e Bernardo Gui, por exemplo), o que nos permite ressaltar, mais uma vez, a preocupação do autor em mostrar o posicionamento eclesiástico com relação ao mundano e também a possiblidade de traçar um paralelo com a frase de Guilherme a Adso, ao dizer que não acreditava que Deus fosse capaz de criar uma criatura tão vil. Mais uma vez, racionalizava palavras bíblicas e emitia um discurso próprio. O riso é o vilão, segundo Jorge, já que entrega a quem ri um desligamento dos temores e, para ele, a fé não se mantém se o fiel não tiver o que temer.
G N A R U S | 162 São exemplos de como Umberto Eco nos mostra um
A obra de Eco, para nós, é completa e possibilita
pavoroso medo da Igreja como corriqueiro. A fé
inúmeros questionamentos históricos, sociais,
não podia caminhar ao lado daqueles que não
filosóficos e tantos mais. “O nome da Rosa” é um
temem, daqueles que se entregam ao prazer, pois
livro cheio de referências e é capaz de conduzir o
assim não teriam medo do Diabo e, por isso, não de
interesse do leigo e do letrado, já que abarca tanto
devotariam a Deus.
a escrita voltada para o mistério das mortes, quanto
Por fim, Umberto Eco foi capaz de descrever com primazia as discussões entre franciscanos e
ricas minúcias cheias de significados que deleitam aqueles com um olhar mais detalhado.
beneditinos, que caracterizava o período tanto quanto a Inquisição. Franciscanos acreditavam que a pobreza de Cristo não era representada pelo
Cyndie Esquivel é graduada em História e graduanda em literatura pelas Faculdades Simonsen e pesquisadora da Gnarus Revista de História.
esbanjamento da Igreja. Dentro desta questão, o autor nos traz a consciência do enorme degrau entre o pobre cristão e o rico que espalhava a fé.
Mapa do mosteiro imaginado por Eco.
G N A R U S | 163
Monografia
MÁSCARAS SOBRE MÁSCARAS EM BUSCA DE UMA PERSPECTIVA: FOUCAULT (1960- 1975) Por: Daniel Diego A. da Silva de Souza
A
lguém aí gosta de café? Pois bem. Dizem que os melhores são aqueles feitos na chaleira lançada diretamente nas chamas para por fim serem coados. Inaceitáveis são os de cafeteiras! Geralmente aqueles que apreciam água cafeinada também gostam de faze-
la. Perdem-se no aroma final que atravessa a cozinha; passa pela sala e ocupa, em gesto convidativo, as casas vizinhas. Salve o café que desce por uma goela anônima qualquer! O fazer histórico assemelha- se muito com o fazer café. Mas como? Em si tal prática, de modo análogo, encobre dois modos de pensar a produção histórica que se mutilam reciprocamente. A mais antiga é a que é mais latente: assim como os conceitos estabelecidos por ela percebemos de imediato o coador, a chaleira e a chama como peças principais da trama. Na breve descrição feita – que seria basicamente a mesma de qualquer sujeito perquirido acerca do procedimento de conceber a bebida (levar a água a uma chaleira, por ao fogo e coar) desconsideram- se as forças que envolvem os materiais componentes do processo. A constituição da chaleira é ignorada; se de alumínio, cobre ou ferro, não importa. E ainda fatores externos não são levados em consideração tais quais: a pressão atmosférica que incide diretamente no tempo que a água entrará em ebulição. Paremos no tempo. A água é posta na chaleira a quantidade influirá no tempo do preparo do café e antes a própria quantidade de pessoas que se proporam a bebê-lo terá influído nesta. O corpo constitutivo da chaleira facilitará ou não a propagação do calor para a substância líquida que contem. A qualidade e a quantidade do pó de café terão consequências no sabor da bebida. Poderíamos apontar a questão de ser fogão à lenha ou industrial, mas deixemos de lado essas prerrogativas. Pretendemos fazer uma análise historiográfica e não nos tornarmos baristas. Em suma, as mais diversas correntes historiográficas simplesmente ignoram as práticas de produção e emergência dos conceitos, e também do saber, e as relações vetoriais que os concebem, como também as funções de objetivação nas quais está envolto o processo. São movidas ora disfarçadamente ora não por universalismos e a priori históricos infundados. Não dizemos que Marx (1818- 1883) não era marxista -- o que acaba por ser expressão corrente no meio acadêmico-- mas que o marxismo morreu com a publicação da Sagrada
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família, em 1845, ou ainda que nasceu com O capital, em 1873. Antes de tudo, entretanto, pontuamos que o apontamento às concepções de Marx é ilustrativo e pretende demonstrar a partir de obras limiares publicadas durante sua vida1 o que são as práticas simultâneas que possibilitam o devir e que ele existe nas suas mais diversas possibilidades. Agora sim. Lembremosnos do novo prólogo dado por Engels (1820- 1895) e Marx à segunda edição do Manifesto
comunista, em 1872, um ano após a insurgência comunal parisiense no qual fazem novas ponderações acerca da questão da autoridade; e também em Guerra civil na França, do mesmo ano, um pouco antes do novo prólogo, quando a questão da autoridade também fora “concebida com grande simpatia para com as teses da ‘abolição do Estado’, que nunca antes tinha cativado Marx” 2. Neste sentido perquiri Foucault: “(...) a tomada do aparelho de Estado (...) deve ser considerada como uma simples ocupação com modificações eventuais ou deve ser a ocasião de sua destruição?” 3. Na filosofia moderna e contemporânea como na produção historiográfica “a noção de
princípio tende a perder importância. Com efeito, inclui a noção de um ponto de partida privilegiado, não de modo relativo (em relação a certos objetivos), mas absoluto, em si”
4
(Discutiremos esta noção mais a frente do trabalho). Voltemos ao café, por uma última vez. Por mais que não se perceba há conflitos diversos no momento já da água posta ao fogo: o conteúdo contra o continente; a temperatura da água contra a do alumínio quente e este contra o fogo. É aqui que chegamos à perspectiva mais tardia do processo histórico que pretende analisar as práticas formulantes dos sujeitos e dos objetos. Estaríamos sendo caridosos se denominássemos- na como escola. Ficaremos, então, com a sentença pensar diferente. A referida sentença é pré- nome de Michel Foucault (1926- 1984) em muito dos textos referidos a sua pessoa. Contudo, não entraremos agora na perspectiva tardia posto que por meio do arauto, autor de A arqueologia do saber (1969), tentaremos ao longo de nosso trabalho elucida-la. Contudo, como aperitivo, vejamos como Foucault percebe a emergência das ciências humanas e do homem como objeto:
1
COSTA NETO, Pedro Leão da. Notas introdutórias sobre a publicação de Marx e Engels. Revista Crítica Marxista. n.30. abr. 2010 . p. 50. 2 GONZÁLEZ, Horácio. A Comuna de Paris: os assaltantes do céu. São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 100. 3
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p. 85. 4 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 792.
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O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão: nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que fosse, nenhuma observação do corpo, nenhuma análise da sensação, da imaginação, ou das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como o homem; pois o homem não existia (...); as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema cientifico nãoresolvido, de algum interesse prático, decidiu –se fazer passar o homem (...) para o campo dos objetos científicos (...); elas apareceram no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental (...)5.
Localizada no centro- oeste da França, a cidade de Poitiers é mais conhecida pela batalha sangrenta entre mouros e cristãos da qual foi cenário no período medieval, mais precisamente no século VIII. Uma importante batalha que impediu o avanço mouro sobre o mundo ocidental, quando Martel (688- 741), defendendo o projeto de civilização cristã impediu que os mouros, que já haviam se apossado das terras ibéricas, se instalassem de forma definitiva na Europa. Mas foi também berço de uns dos maiores pensadores do século XX: Paul- Michel Foucault. Nascido em 15 de outubro de 1926; morto devido a AIDS em 25 de junho de 19846. Antes de ser de Poitiers Foucault era da França; antes de ser francês era do mundo. Como bem atestam suas jornadas pelas mais diversas regiões do globo: de Uppsala, na Suécia, à Gávea, no Rio de Janeiro. O filho de Paul Foucault e Anna Malapert, enveredou- se pelos caminhos tortuosos da filosofia, história e psicologia. Leu atentamente autores como Freud (1856- 1939), Kant (1724- 1804) e Lacan (1901- 1981). Em 1949, Licencia- se, pela École Normale Superiéure, curso tradicional da elite intelectual francesa. Com uma tese sobre Hegel (1770- 1831) recebe diploma em Estudos Superiores de Filosofia. Talvez influenciado por Jean Hyppolite (1907- 1968) que além de lecionar para ele, no curso preparatório para o ingresso na instituição, meandros do
5
FOUCAULT, Foucault. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.476. SILVEIRA, Emerson José da. Circuitos criativos. Conhecimento prático: filosofia, São Paulo, n. 37, p. 34- 41, s. d. p. 34. 6
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pensamento de Hegel7, foi um dos principais tradutores do difícil filósofo alemão para o francês8. Na École Normale Superiéure concentra seus interesses em filosofia e psicologia assistindo a cursos de ilustres pensadores dentre os quais Merleau- Ponty (1908- 1961). Já em 1951 ministra aulas na insigne instituição tendo como alunos Jacques Derrida (1930- 2004) e Paul Veyne (1930). Em 1952 é diplomado em psicologia experimental pelo Instituto de
Psychologie. Na primeira metade da década de 1970 torna-se catedrático no Collége de France. Dentre suas principais obras, deste período, cabe destacar: História da loucura (1961), O
nascimento da clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969). Nosso trabalho é antes uma reflexão sobre a prática histórica via um importante teórico da segunda metade do século XX do que uma apologia. É bem certo que algumas expressões mais parciais soarão (ou já soaram) de modo diverso. Não obstante, quais letras? Quais sílabas? Quais expressões impressas em virgens folhas não são já parciais? Ás vezes mascaradas com tapinhas no ouvido enrolados com algodão ou colírios para os olhos. Na primeira parte de nosso trabalho visamos empreender passo a passo a origem da pergunta que nosso texto tenta responder e também do método que ele usa para fazê-lo. O uso da primeira pessoa do plural é deliberado pretendendo trazer o leitor junto à busca e as complicações pressupostas dela. Gradualmente mesclam- se, como não poderia ser diferente, ambas as buscas. No capítulo intitulado A incitação: um prelúdio para a inquietude a partir da comparação de dois depoimentos de caráter diverso, entretanto com a mesma temática, procuramos mostrar o esqueleto estrutural de onde surgiu o objeto. O primeiro texto é de Alexandre Dumas (1802- 1870) intitulado Isabel da Baviera e o segundo é uma entrevista dada por Ankersmit (1945) a Revista Topoi. Em seguida faremos uma contextualização do mundo após a Segunda Guerra Mundial para depois nos lançarmos na descrição institucional das ciências humanas na França. Nos capítulos que se seguem os principais conceitos ligados à prática histórica foucaultiana serão delineados e descritos.
7
CASTELO BRANCO, Guilherme. O mundo de Foucault. In: CASTELO BRANCO, Guilherme et. al. Mente, cérebro e filosofia v. 4: Foucault. 2. ed. São Paulo: Duetto Editorial, 2011. p. 6- 7. 8 VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa . Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p.104.
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A busca
Podemos perceber duas maneiras diversas acerca da relação manifesta entre história e poder: a mais “tradicional”, por assim dizer, vinculada a detectar e analisar a presença do poder ao longo do processo histórico. E a que lança um olhar introspectivo sobre a própria produção historiográfica, procurando detectar as artimanhas das incitações forçadas por forças vetorias que surgerem como pressupostos dados e verdadeiros9 os fatos e os conceitos históricos. Nossa pesquisa está vinculada diretamente as concepções do filósofo- historiador Foucault. Entretanto somente depois do levantamento dos dados – estes exclusivamente bibliográficos levemente temperados com material audiovisual – pudemos reparar algumas interferências oriundas da característica de nosso objeto. O autor de Vigiar e punir (1975) transborda em muito a área delimitada por suas titulações acadêmicas tendo importância suma nos mais diversos espaços do saber; tais quais: psicologia, filosofia política, história e alguns mais etc. Foucault é um sujeito no plural ficamos então com uma das suas diversas singularidades. Definamos, por hora, ele por ele mesmo: “eu não sei nada de mim eu não sei mesma a data de minha morte”.10 Pelo menos no que se refere a sua morte estamos à frente do autor. De resto... Como íamos divagando: somente depois do levantamento dos dados, dos ditos e também dos escritos. Depois de nos colocarmos à deriva em meio ao oceano das evidências – é bem certo, contudo, que umas mais evidentes do que as outras – pudemos começar a navegar por águas mais claras, não obstante turbulentas, para somente então formular a problemática na qual estará envolto todo nosso trabalho de término de curso. Posto que toda indagação envolve já uma intuição do indagando, para fazer uso das palavras de Heidegger. Quando vedamos toda nossa modesta canoa que estava por naufragar no Oceano Foucault nos alegramos. Entretanto algo faltava para encontrarmos terra firme. Mesmo que uma ilha: o método. 9
FALCON, Francisco. Histótia e poder. In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 97. 10 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p.10.
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Pusemos a prova o tema, a problemática e os dados. Do método indutivo ao estruturalista. Escolhemos o dialético. Contudo mesmo ele possuía diversas sub-modalidades metodológicas. Restringimos ainda mais.
Optamos pela “ação
recíproca”
na
qual os fenômenos se
relacionam11. Toda pesquisa incorre em uma incitação que amadurecida se avizinhará a inquietude. Mesmo quando do trabalho já pronto e esta mesma não seja percebida como tal. Tendo em vista isto faremos um capítulo à parte dedicado somente a ela. A princípio a menção a incitação parecerá desprovida de propósito, entretanto não o é. Tenhamos em vista que fora ela que fez surgir o objeto. O seu vislumbre acarretará uma maior compreensão dele.
A incitação: um prelúdio para a inquietude
Dois textos podem ser sublinhados como os pontos marcantes da incitação. O primeiro corresponde ao texto de Alexandre Dumas mais especificamente o prefácio do livro Isabel da
Baviera que é uma apologia ao ofício do historiador. E o segundo é a entrevista de Ankersmit a revista Topoi. Este é um historiador e filósofo holandês nascido em 1945; aquele, um famoso romancista francês do século XIX, autor do clássico universal Os três mosqueteiros (1844). O prefácio de Isabel da Baviera fora escrito na primeira metade do século XIX e a entrevista de F. R. Ankersmit fora concedida em 2001, ou seja, em princípios do século XXI. Quase duas centenas de anos separam os dois autores. Que incitação poderia advir da leitura de textos tão distantes um do outro? Não fosse o assunto comum poderia ser nenhuma. Um dos mais magníficos privilégios do historiador, esse rei do passado, é bastar- lhe quando percorre o seu império, tocar com a pena as ruínas e os cadáveres para reconstruir os palácios e ressuscitar os homens; à sua voz como a de Deus, as ossadas dispersas reúnem- se, as carnes vivas recobrem- nas, as vestimentas suntuosas revestem-nas (...) basta- lhe escolher os eleitos pelo seu capricho e invocá- los pelo nome para que no mesmo instante os chamados ergam com afronte as pedras das campas, afastem com a mão as pregas dos sudários e respondam como Lázaro a Cristo: 11
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos da metodologia científica . 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 65- 94.
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‘Aqui estou, Senhor; que me quereis?’ É, todavia necessário um passo firme para descer às profundezas da história uma voz imperiosa para interrogar os fantasmas, mas que não trema para escrever as palavras que eles ditam. Os mortos têm por vezes segredos terríveis que o coveiro selou com eles em seus túmulos12.
Em Dumas é evidente um otimismo em relação ao fazer histórico. O romancista se encontra consoante às expectativas que as ciências do século XIX pressupunham aos seus contemporâneos. O historiador seria o rei dos tempos pretéritos. O passado estaria tal qual Lázaro inerte esperando a pena para dizer o que fora. Em Ankersmit, entretanto o sentido muda: Lázaro já não mais fala é interpretado. O historiador tomando o Leviathan de Hobbes (1588- 1679) como seu arauto do passado coloca o debate histórico ao nível de discussões sobre interpretações de Lázaro. Este é soterrado novamente em meio às dezenas de textos ao seu respeito. Lázaro se perde em meios às palavras. Não tem mais autoridade alguma. “Porque” em um verdadeiro “alcoolismo intelectual (...) o livro ou artigo mais recente sobre o tema também pretender ser o mais novo drink intelectual”
13
.
Para o filósofo- historiador holandês se antes o enunciado informativo era encoberto pelo que descrevia, relegado a pano de fundo ele se torna a realidade em si. O que importa não é o que aconteceu, mas o que foi dito do ocorrido. Em postura extremamente inversa, Ankersmit submete a verdade de Lázaro às interpretações dela. Chegando a se perguntar até mesmo o porquê da incitação do moribundo de Betânia. Tal postura reflete seu pessimismo, disfarçado pelo uso da terceira pessoa, para com o fazer científico: A ciência era o alfa e o ômega dos modernistas e dos estruturalistas; estes a viam não somente como o mais importante produto, mas concomitantemente como o máximo produto da modernidade. (...) Para os pós- modernistas, tanto a filosofia da ciência quanto a própria ciência formam o produto, o ponto de partida para suas reflexões14.
Dos dados não ficam certezas. Seria por deverás fácil se por em acordo com o mais recente renegando a discussão a aforismos tais quais: “era um homem de seu tempo” esse tal
12
DUMAS, Alexandre. Isabel da Baviera. São Paulo: Otto Pierre, [s.d.]. p. 5- 6. ANKERSMIT, Frank R. Historiografia e pós- modernismo. In: Topoi, Revista de História do PPGHIS/ UFRJ. Rio de janeiro: 7 Letras, 2001. p. 114. 14 Idem. p.117- 118. 13
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Dumas. Mas estreito é o caminho da verdade. Ficamos com a segunda opção: O que aconteceu? Seria de grande pretensão; não dizemos nem responder, mas tão somente procurar responder a tal questão. Daqui chegamos a Foucault mais especificamente a seu período arqueológico embora nossa pesquisa não se limite a ele indo, porém, até a genealogia procurando rastros no pensamento foucaultiano de vestígios acerca do escrever história. Colocamos- nos a seguinte pergunta: qual era a perspectiva histórica de Michel Foucault? Tendo em vista que depois de mais algumas pesquisas percebemos uma regularidade do seu nome nos textos que pesquisávamos que aumentava cada vez que íamos- nos introduzindo na temática.
O contexto O mundo
As décadas seguintes ao pós Segunda Guerra Mundial são marcadas por profundas transformações na vida social, econômica e cultural do mundo ocidental. A descolonização de países do continente africano e asiático assim como a bipolaridade político- econômica protagonizada pela URSS e pelos Estados Unidos marcavam que a Europa efetivamente não era mais o centro majoritário do processo histórico. A sua ampulheta fora usurpada por forças do Oriente e do Ocidente. Aqueles que por muito permaneceram mudos repentinamente começam a juntar as sílabas da palavra liberdade. A mulher, parafraseando Beauvoir, torna- se cava vez mais mulher. O negro vai a Washington D. C. reclamar seus direitos civis. O Movimento Hippie questiona os valores impostos pela sociedade. Inversões morais, éticas e sexuais se sucedem simultânea e paralelamente umas às outra. Tempos de dubiedade e de novos atores. O período é marcado pela incerteza do amanhã. A sombra de bombas nucleares vela o sono da humanidade. A Guerra Fria, coberto quente para o medo acerca de um futuro incerto. “O quadro da destruição iminente, laboriosamente desenhado por escritores e jornalistas (...) penetrou no vocabulário do discurso cotidiano. Nunca a antiga previsão popular do fim do mundo pareceu tão apropriada” 15.
15
CARR, E. H. Que é História? 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 9.
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Carr (1892- 1982), não obstante, se distância destes pressupostos pessimistas marcando o lugar da onde é incitado o discurso; o historiador inglês rastreia os rastros discursivos. Para ele “a diagnose de desesperança em relação ao futuro, embora pretenda estar baseada em fatos irrefutáveis é uma construção teórica abstrata”
16
. As pessoas continuam
vivendo; vão ao cinema; fazem amor, ou sexo casual. Uns ouvem os Beatles outros os Stones. nvestem na poupança. Para o autor de Que é História? é principalmente da Europa Ocidental que surge a penumbra pessimista do discurso. Ela que outra fora dona de extensões imensuráveis vê- se agora limitada ao Mediterrâneo e as costas banhadas pelo Atlântico. O mundo é no mínimo três: o do bloco capitalista de um lado; o socialista de outro e, correndo por fora, as antigas colônias, agora em desenvolvimento. No que Carr aponta: Há cinco séculos estes países têm sido os incontestáveis senhores do mundo. Eles poderiam pretender, com alguma plausibilidade, representar a luz da civilização em meio a um mundo externo de bárbara escuridão. Uma época que crescentemente desafia e rejeita esta pretensão certamente deve construir a catástrofe. Também não é surpreendente que o epicentro da inquietação, a sede do pessimismo intelectual mais profundo, se encontre na Inglaterra, pois em nenhum outro lugar o contraste entre a glória do século XIX e a monotonia do século XX, entre a supremacia do século XIX e a inferioridade do século XX, é tão marcante e tão dolorosa. Esse estado de espírito se propagou pela Europa ocidental e - talvez em menor grau - América do Norte17.
As décadas que precedem a segunda metade do século XX correspondem a embates ideológicos marcados em última instância ao protagonizado entre os EUA e a URSS: de um lado a proposta capitalista de outro a socialista. Os anos sessenta presenciaram mudanças muito importantes no mundo. Foram anos em que as novas gerações, ao ver que não se cumpriram as esperanças suscitadas pela vitória sobre o fascismo na Segunda Guerra Mundial e as ilusões do desenvolvimento econômico, associadas às expectativas que a utilização da energia atômica criara – que não havia nem mais liberdade nem mais igualdade no mundo novo cuja defesa custara tantos milhões de mortos –, fizeram sentir suas vozes numa tentativa para mudar a sociedade que se estendeu da Califórnia até Praga18.
16
CARR, E. H. Que é História? 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 10. Idem. 18 FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 381. 17
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Além do Canal da Mancha
Atravessemos o Canal da Mancha! No âmbito acadêmico o país de Foucault apresenta diversas perspectivas conflitantes em uma verdadeira bacanal ideológico- metodológica em que os sufixos “ismo”, “ista” e “logia” são figuras sempre presentes. Havia até mesmo humanismo stalinista19. Entretanto, a áurea da incerteza, mesmo que simulada por discursos veementes, era a piscina na qual se afogavam todas as propostas emergentes. A barbárie desencadeada durante esse segundo conflito mundial ultrapassou tudo o que se poderia imaginar. Ao reunir no bulldozer os cadáveres deixados pela Alemanha nazista, descobre- se o horror de suas atrocidades, a grandeza dos crimes contra a humanidade e o extermínio de seis milhões de judeus. Esta barbárie perpetrada por uma sociedade tão avançada como a Alemanha abala as certezas sobre o sentido da história e sobre o avanço da humanidade em direção a um estado de civilização sempre em progresso. A capacidade duplicada, revelada pelos bombardeios de Hiroshima e de Nagasaki, reforça ainda mais a inquietude diante do futuro. (...) Tudo é incerto após esses desastres20.
O pós- guerra demanda uma reorientação discursiva. Um vácuo epistemológico está aberto nas entranhas academicistas da França21. Os Annales mudam o nome da revista que desde 1929 era Annales d’historie économique et sociale para Annales: économies- societés-
civilisations, em 194622. A mudança ocorre, de acordo com Dosse (1950), devido ao “anseio de avançar no projeto de reaproximação com as outras ciências sociais”
23
. Contudo não é o que
nos mostra, mais tarde, o embate metodológico entre Braudel (1902- 1985) e Levi- Strauss (1908- 2009) quando aquele submete (ou tenta) o método estruturalista à longa duração em O Mediterrâneo (1949)
24
. Este episódio desnuda antes a verdadeira face imperialista
da corrente historiográfica francesa, naquele período, mascarada pelo o enunciado da interdisciplinaridade. Mesmo no interior dos Annales são relegados ao
19
VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 76. DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: EDUSC, 2003. p. 150. 21 Idem. 22 TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru: EDUSC, 2000. p. 108. 23 DOSSE, Francois. Loc. cit. p. 151. 24 Idem. p. 160- 182. 20
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ostracismo autores como Philippe Ariès (1914- 1984) cuja obra não estava consoante aos aspectos econômicos em voga, contudo antes vinculada ao mental25. Entre a segunda metade da década de 1940 e fins da década de 1960 “a história é (...) mistura de demografia, de curvas econômicas e de análise das relações sociais” 26. O período é marcado também por uma verdadeira explosão institucional das ciências sociais. O INESS (Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos) é criado em 1946, como também o CES (Centro de Estudos Sociológicos) presidido por Georges Gurvitch (1894- 1965), e, um ano antes, o INED (Instituto Nacional de Estudos Demográficos). O CES surge devido a busca da sociologia em penetrar na universidade e livrar- se das amarras acadêmicas da filosofia, posto que aquela fosse uma mera especialização na grade curricular desta. Em 1947, a psicologia irrompe no espaço universitário francês. A UNESCO foi o órgão que impulsionou a efervescência das ciências sociais, tendo em vista que ao lançar pesquisas gerasse cada vez maior demanda de pesquisadores 27. Entre a segunda metade da década de 1960 e início do decênio de 70, a economia, a sociologia e a etnologia progrediam em todos os aspectos principalmente no que se refere a financiamento28. A UNESCO multiplica as publicações e as iniciativas. Ela funda, em 1949, as Associações Internacionais de Sociologia e de Direto Comparado, assim como a Associação Francesa de Ciência Política. Os responsáveis acentuam o atraso da França na área das ciências sociais. (...) Esse progresso das ciências sociais (...) continua e até se acelera nos anos 196029.
Paulatinamente a sociologia e a psicologia foram institucionalizadas. No final do decênio de 1950 são eleitos, para a Sorbonne, professores das duas referidas áreas, como também de psicologia social. Em 1958, as faculdades de letras são integradas às ciências humanas. O curso de direito é integrado às ciências econômicas, em 195930. François Dosse pontua que a pressão que as ciências emergentes exerceram sobre a história mais acentuadamente sobre os próprios annales irá influir nos discursos da corrente historiográfica. Isto fica latente quando, no final da década de 1960, Braudel fora posto à 25
DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: EDUSC, 2003 . p. 152. Idem. p. 153. 27 Idem. p. 154- 155. 28 LE GOFF, Jacques. Foucault e a “nova história”. Plural: sociologia. USP. São Paulo. n.10. jul/dez. 2003. p. 26
199. 29 DOSSE, François. Op. cit. p. 155- 156. 30 Idem. p. 156- 157. .
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margem da revista pelos novos atores da nova geração dos annales sendo limitado a reuniões eruditas sem expoência para o grande público; e aqueles, liderados por Emmanuel Le RoyLadurie (1929), Jacques Le Goff (1954- 2014) e François Furet (1927- 1997), acabam por propor outras concepções metodológicas nas quais a história econômica e social acabaram por cair no ostracismo31. “Em seus excessos, a escola nova não vale muito mais do que o positivismo”32 de Ranke (1790- 1880), Seignobos (1854- 1942) ou Langlois (1914- 1977). A pressão transborda os muros da academia. “(...) as ciências sociais abarcam as grandes tiragens e monopolizam os grandes eventos intelectuais”
33
. Os exemplares do Curso de
linguística (1928) de Saussure (1857- 1913) que não haviam ultrapassado, em trinta anos, 15.000 chegam a 10.000 anuais, na década de 1960. Introdução à psicanálise de Freud quando em três decênios de anos atingira o limite de 30.000 exemplares entre 1962 e 1967, ou seja, em cinco anos, ultrapassa 165.000. O antropólogo Claude Levi- Strauss é outro que toma o proscênio com sua obra Tristes trópicos (1955) e a proposta estruturalista importada da linguística34. Outro polo impulsionador das ciências sociais se encontra além do Atlântico. Os Estados Unidos brilham na Europa com todos os fogos da modernidade. Nessa Europa do pós- guerra, não são somente os dólares do Plano Marshall que afluem, mas os métodos e técnicas de investigação das ciências sociais americanas35.
Também em quadro proposto por Roger Chartier (1945) que analisa a taxa de crescimento de docentes das áreas diversas apontadas fica evidente a pressão exercida simultaneamente entre elas. A taxa de crescimento dos professores de Letras, por exemplo, aumenta 200% e de Psicologia 325%, entre 1963 e 196736. Essas ciências (...) em expansão suportam cada vez menos a dominação das disciplinas legítimas; a sociologia espera libera- se da tutela filosófica; a história vê- se de novo contestada como ciência maior do social (...). Assistimos ao nascimento de uma escola que se tornará dominante nas ciências humanas, incluindo as letras: o estruturalismo37.
31
FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 384- 385. TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru:EDUSC, 2000. p.113. 33 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. Bauru: EDUSC, 2003 . p. 157. 32
34 35 36 37
Idem. Idem. CHARTIER Apud DOSSE. Op. cit. p. 158- 159. Idem. . p.159.
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A prática
O pensamento de Michel Foucault irrompe nesta áurea de conflitos “quando uma nova geração decide não continuar aceitando o modernismo triunfante que, depois de ter atuado como vanguarda e provocação, foi incorporado pelo sistema e se converteu, por isso mesmo acadêmico”
38
. Os dados academicistas, assim bem como os históricos, irão repercutir de
modo profundo em sua proposta a partir da teorização das ciências humanas e mais precisamente da história39. Seu modo de pensar surge consoante às prerrogativas da análise do discurso francesa que emerge na década de 1960 tendo como principal expoente Michel Pêcheux (19381983). Segundo Dominique Maingueneau (1950), a especificidade da escola francesa de análise discursiva dar- se devido ela voltar sua análise, como Foucault o fez, justamente para o campo institucional em busca de explicações e construções objetivas fazendo uso da linguística e da história, diversamente, da escola anglo- saxã vinculada a conversações cotidianas baseada na descrição e na imanência do objeto 40. Embora o filósofo- historiador pontue que fora o riso proposto pelo consagrado ensaísta argentino Jorge Luis Borges (1899- 1986) que o houvera incitado. Riso, zombaria que se tornaria estranhamento (no sentido filosófico do termo). Oriunda aquela como este da definição apontada pelo portenho Borges de animal, encontrada em uma enciclopédia chinesa. Por isto Foucault assim- nos fala em suas primeiras letras no livro
As palavras e as coisas (1966): Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba todas as familiaridades do pensamento-- do nosso: daquele que tem nossa identidade e nossa geografia--, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que tornam sensata para nós a profusão dos seres, fazendo vacilar e inquietando, por muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. Esse texto cita ‘uma certa enciclopédia chinesa’ onde será escrito que ‘os animais se dividem em a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas’. No deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos,
38
FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 381. Idem. p. 386. 40 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1997. p. 1516. 39
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o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso 41.
O riso pode expressar alegria, gozação, chacota... Mas também angústia, inquietude que de tão profundas não encontram outra forma de tradução se não a expressão dos músculos faciais que a priori atesta felicidade. Talvez por medo de apontamentos que demonstram galhofa não ocorra o choro. A perplexidade é filha órfã nos tempos pós- modernos.
A arqueologia
A proposta de Foucault, expressa em seus livros da década de 1960, é definida como
arqueológica. A palavra vista (ou lida) de forma menos atenta e apressada conotará inércia e distanciamento temporal: estudos dos vestígios imóveis das práticas de sociedade milenares tais quais os etruscos (1.200- 700 a. C) de Toscana, na península itálica, ou os hititas (2.000 a. C.) da antiga Anatólia (atual Turquia). Botas, poeira e escavações formaram a tertúlia. A ociosidade, a inércia, e o grau antiquado (ou se preferirem obsoleto) desta perspectiva ociosa que poderíamos batizar, grosso modo, de “estudo do antigo” não entram em acordo com a proposta do filósofo francês. Abbaganano em seu Dicionário de filosofia, ao definir arché --que é prefixo grego que apenso ao sufixo logos formará a palavra arqueologia-- remete-a ao verbete princípio. Este conceito fora introduzido na filosofia pelo pré- socrático Anaximandro (610- 547 a. C.) -- sendo também moeda corrente na obra de Platão (428- 347 a. C.)-- com a denotação de ponto de partida, fundamento. Aristóteles (384- 322 a. C.) enumera em seis seus possíveis modos de denotação: caminho de um movimento; o que propicia melhor compreensão acerca de algo; alicerce de alguma produção; causa externa de um movimento; o que determina por meio de decisão mudança e ainda de onde parte determinado processo. Percebemos, por tanto, o conceito como ponto de partida de um processo de formação de um ser, de um conhecer e do próprio devir42. Em Considerações inatuais (1873) mais precisamente na segunda delas intitulada
Sobre a utilidade e o inconveniente dos estudos históricos para a vida: 41 42
FOUCAULT, Foucault. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 9. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 792.
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Nietzsche distingue três espécies de história: ‘A história pertence a quem vive segundo três relações: Pertence- lhe porque ele é ativo e porque aspira; porque conserva e venera; porque tem necessidade de libertação. A essa trindade de relações correspondentes em três espécies de história, sendo possível distinguir o estudo da história do ponto de vista monumental, do ponto de vista arqueológico e do ponto de vista crítico’. A história monumental é a que considera os grandes eventos e as grandes manifestações do passado e os projeta como possibilidades para o futuro. A história arqueológica considera, ao contrário, o que no passado foi a vida de cada dia e nela enraíza a mediocridade do presente. A história crítica serve, porém, para romper com o passado e para renovar- se43.
A proposta arqueológica de Michel Foucault nada tem a ver com a inércia de materiais dragados pelo solo. O conceito no autor de História da sexualidade (1976) se aproxima das percepções de Aristóteles do conceito de principio e das de Nietzsche (1844- 1900) acerca da
história arqueológica. A história como prática e relações cotidianas do saber. O que se tenta revelar, na história arqueológica, são as práticas discursivas na medida em que dão lugar a um saber, e em que esse saber assume o status e o papel de ciência. Empreender nesse nível uma história das ciências não é descrever formações discursivas sem considerar estruturas epistemológicas; é mostrar como a instauração de uma ciência, e eventualmente sua passagem à formalização, pode ter encontrado sua possibilidade e sua incidência em uma formação discursiva e nas modificações de sua positividade. Trata- se, pois, para tal análise, de traçar o perfil da história das ciências a partir de uma descrição das práticas discursivas; de definir como, segundo que regularidade e graças a que modificações ela pôde dar lugar aos processos de epistemologização, atingir as normas da cientificidade e, talvez, chegar ao limiar da formalização 44.
A perspectiva arqueológica em obras como As palavras e as coisas é voltada para as ciências humanas e sua emergência assim bem como do próprio homem como objeto. Nesta obra Foucault desenvolve a noção de episteme que, grosso modo, podemos vincular a busca pela verdade científica e suas práticas em determinado período45. Aprofundemos-nos, entretanto, mais na noção: (...) algo como uma visão do mundo, uma fatia de história comum a todos os conhecimentos e que imporia a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, uma certa estrutura de pensamento a que não saberiam 43
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 80. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 213. 45 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
44
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escapar os homens de uma época (...). Por episteme entende- se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização46.
O autor leva às últimas estâncias a concepção formulada pelo filósofo, anterior a Sócrates, Heráclito (535- 475 a. C.) alcunhada devir herdada por ele via Nietzsche, Heidegger (18891976) e Hegel47 se a única certeza, parafraseando o pensador pré- socrático, que podemos ter é na mudança então por que crer em uma verdade absoluta e atemporal constituindo- se paulatinamente como queriam os pensadores do século XIX e toda a filosofia metafísica? A postura historiográfica assumida por Michel Foucault na década de 1960 pretende desconstruir o real enquanto prática e discurso e as objetivações oriundas delas como também as subjetivações que elas propõem. A partir da perspectiva arqueológica o autor francês pretende apreender o enunciado que é “uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço”
48
. Com isso a prática
arqueológica, tendo em vista que ela não estabelece hierarquia de valor, e não faz, por tanto, uma diferenciação radical, procura estabelecer a regularidade que os enunciados encobrem49. Isto fica claro em As palavras e as coisas quando o autor a partir da análise das formações enunciativas, na Europa dos séculos XVI- XVII, da gramática geral, da história natural e da economia clássica percebe nos diversos ethos a regularidade da unidade mínima interpretativa da semelhança50. Naquela época, a teoria do símbolo e das técnicas de interpretação, repousavam pois numa definição perfeitamente clara de todos os tipos possíveis de semelhança e fundamentavam dois tipos de conhecimento perfeitamente distintos: a cognitio, que era o passo, num certo sentido lateral, de uma semelhança a outra; e o divinatio que constituía o conhecimento em profundidade, que ia de uma semelhança superficial a outra mais profunda. Todas estas semelhanças manifestavam consensus do mundo 46
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 214. VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 48 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 98. 49 Idem. p. 87- 99. 50 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 47
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que as fundamentava; opunha- se ao simulacrum, à falsa semelhança, que se baseava na dimensão de Deus e do Diabo51.
Desde História da loucura o arquivista como é chamado por Deleuze52 vem fazendo uso da prática arqueológica ajustando- a aqui ou ali. E acaba sendo normal a inquietude que as obras do autor propõem até o lançamento de A Arqueologia do saber. “Pois o arquivista, de propósito, não dá exemplos. Considera que já os deu em grande número há tempos (...)” 53. É apenas no final do decênio de 1960 depois das críticas feitas ao livro As palavras e as
coisas que como já dito lança o olhar arqueológico sobre as ciências humanas, não obstante o livro tenha sido um sucesso de vendas54, é que o arqueólogo do saber desenvolve uma obra voltada para a descrição esmiuçada da prática arqueológica. Nestes termos, o pensamento histórico- filosófico de Foucault é uma crítica bastante contundente a filosofia metafísica escondida nos processos de escrita da história. De um lado a perspectiva arqueológica busca desvendar as formações do saberes e mais precisamente as suas respectivas objetivações; de outro a genealogia (já falaremos disto) que pretende apreender a subjetivação dos sujeitos por meio do dizível e do visível de determinada ruptura histórica. A primeira marcada pela episteme e a segunda pela emergência e a proveniência.
51
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p. 16. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p.13- 33. 53 Idem. p.14. 54 FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 386- 397. 52
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A genealogia
A passagem do método arqueológico para o genealógico fora antes uma necessidade criada pelas circunstâncias empíricas do que uma ruptura paradigmática. A abordagem filosófica de Foucault é viva e inacabada55. O primeiro tenta evidenciar as disparidades temporais da
episteme enquanto que o segundo pretende explicar como isso ocorre. Não é, portanto uma mudança de conteúdo (refutação de erros antigos, nascimento de novas verdades), nem tampouco uma alteração da forma teórica (renovação do paradigma, modificação dos conjuntos sistemáticos). O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. Em suma, problema de regime, de política do enunciado científico. Neste nível não se trata de saber qual é o poder que age do exterior sobre a ciência, mas que efeitos de poder circulam entre os enunciados científicos; qual é seu regime interior de poder; como e por que em certos momentos ele se modifica de forma global56.
Para o autor de história da sexualidade a genealogia é um método que pretende dá
“(...) conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história” 57. Marx, Nietzsche e Freud, para o agora genealogista, revolucionaram, na virada do século XIX para o XX, a concepção hermenêutica outrora baseada na semelhança. É bem certo, pontua Foucault, que já as críticas de Francis Bacon (1561- 1626) como as de Rene Descartes (15961650) haviam abalado a hermenêutica da semelhança do período clássico. Entretanto as perspectivas dos três autores-- primeiramente citados-- laçaram a última pá de terra do sepulcro. “Interrogo- me se não se poderia afirmar que” eles “ao envolverem- nos numa interpretação que se vira sempre para si própria, não tenham constituído para nós e para os que nos rodeiam, espelhos que nos reflitam imagens cujas feridas inextinguíveis formam o
55
VEIGA-NETO, Alfredo. Teoria e método em Michel Foucault (im) possibilidades. Cadernos de educação. Pelotas, V. 34, p. 83- 94, set./ dez. 2009. 56 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p.7. 57 Idem. p. 8.
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nosso narcisismo de hoje”
58
. Marx, Nietzsche e Freud revolveram a forma anteriormente
usada de compreender, de interpretar o símbolo. No século XVI as categorias simbólicas estavam envoltas em espaços homogêneos que refletiam uns aos outros. “Os símbolos da terra refletiam o céu”
59
. Com eles, entretanto, estes ganharam exterioridade. Os três pensadores propõem
desvendar as supostas interioridades por meio das rugas e contrações da superfície: Nietzsche com o voo da águia de seu Zaratustra e a ascensão da montanha deste ermitão; Marx com a banalização dos estudos ditos profundos que se faz acerca da burguesia, por parte da economia clássica voltados para a moeda, para a troca...; e Freud com a descoberta do enfermo, por meio do diálogo, ante olhar— ou antes, a audição— do psicanalista. A profundidade hermenêutica proposta pelos autores refuta a concepção metafísica de interioridade; antes voltam o olhar (Freud os ouvidos) para a profundidade do nível da exterioridade
60
. “O conteúdo não se confunde mais com um significado, nem a expressão,
com um significante” 61. (...) quanto mais se avança na interpretação, quanto mais há uma aproximação de uma região perigosa em absoluto, onde não só a interpretação vai encontrar o início do seu retrocesso, mas que vai ainda desaparecer como interpretação e pode chegar a significar inclusive a desaparição do próprio intérprete. A existência sempre aproximada do ponto absoluto
de
interpretação significa ao mesmo tempo a existência de um ponto de ruptura62.
É a partir da proposta de Nietzsche, desenvolvida em obras como A genealogia da moral (1887) e Humano, demasiadamente humano (1878), que Michel Foucault desenvolve a perspectiva genealógica. Esta visa a partir das constituições do campo visível-dizível, do saber-
poder, esquadrinhar as práticas de formação do saber e do sujeito, do si. Posto que “assim como o direito penal enquanto forma de expressão define um campo de dizibilidade (os enunciados de delinquência), a prisão como forma do conteúdo define um local de visibilidade” 63. Isto ocorre também no nível da loucura onde “(...) na idade clássica, o asilo surgia como um lugar de” sua “visibilidade (...) ao mesmo tempo que a medicina formulava enunciados fundamentais sobre a ‘desrazão’” 58
64
. Com a genealogia o arquivista pretende
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. São Paulo: Princípio, 1997. p. 17. Idem. p. 18. 60 Idem. p. 18- 20. 61 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 57. 62 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 21. 63 DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 57. 64 Idem. 59
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desvendar as práticas de subjetivação por meio do vislumbre institucional do ver e do dizer, além de questionar o pressuposto de origem. Nestes termos às compreensões interpretativas de Marx, Nietzsche e Freud foram sumárias para a elaboração da prática teórica de Foucault. Se interpretar era colocar lentamente em foco uma significação oculta na origem, apenas a metafísica poderia interpretar o devir da humanidade. Mas se interpretar é se apoderar por violência ou sub−repção, de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção, dobrá−lo a uma nova vontade, fazê−lo entrar em um outro jogo e submetê−lo a novas regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações65.
A genealogia proposta por Foucault via Nietzsche não é uma busca linear e ordenada. Na é a busca pela democracia na ágora ateniense. Da igualdade entre os homens nos aforismos da Revolução Francesa ou ainda no iluminismo europeu. Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua direção, as ideias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias66.
Como na arqueologia o arquivista, na prática genealógica, faz uso do método indutivo para, por meio “de pergaminhos riscados”... “reescritos”, por em evidência as contradições dialéticas. A genealogia se opõe, portanto a noção de origem 67; posto que tudo sendo prática, a única certeza que se pode ter é na mudança68. O geneaologista, segundo Foucault, não deve crer na metafísica, porém antes escutar a história. O único segredo, ou enigma, tal qual a esfinge de Édipo, ou antes, a esfinge sem segredo de Oscar Wilde (1854- 1900), é que “as coisas não tem essência” e o que se encontra no “começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem − é a discórdia entre as coisas, é o disparate” 69. Nos textos de Nietzsche, no original em alemão, segundo Foucault, encontramos três palavras que, de modo diverso, se remetem a noção de origem e são mesmo vulgarizadas a
65
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p. 17. 66 Idem.p. 12. 67 68 69
Idem. KONDER, Leandro. O que é dialética. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 7- 10. FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 13.
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este termo nas traduções dos textos do filósofo alemão70 para línguas de origem latina ocorrendo o fenômeno lost in translation, posto que o sentido da palavra perde- se na tradução. Isto é extremamente grave para a compreensão de um dado conceito, já nos alertava Schopenhauer (1788- 1860) 71, “pois as expressões características, marcantes e significativas de uma língua não podem ser transpostas para outra” 72 de modo pleno; para Foucault, as palavras oriundas do alemão na obra de Nietzsche que acabaram por ser traduzidas vulgarmente, nas línguas
latinas
como
origem,
foram
três
majoritariamente:
Ursprung, Herkunft e
Entestehung. A Ursprung fora usada de modo depreciativo pelo filósofo alemão para caracterizar os fundamentos da busca originária metafísica pautada na essência pura e primeira das coisas. O mal estaria em essência em Lúcifer? Ou ainda, seria preciso atribuir a Deus sua origem?73 A
Herkunft é usada, em obras como Humano, demasiadamente humano para buscar a origem da moralidade, do castigo e da justiça em uma perspectiva de dissociação dos conceitos, consistindo, portanto na petição inicial do processo de divórcios entre os termos posto em matrimônio pelo lost in translation. A Entestehung, não obstante, é vinculada a lei e o principio singular de um aparecimento74. Michel Foucault vai traduzir Herkunft e Entestehung respectivamente como proveniência e emergência. A Herkunft – agora proveniência– estaria ligada ao pertencimento consanguíneo, a raça. Contudo não trataria- se de encontrar um individuo enquanto ente puro como, por exemplo, na busca hitleriana pela raça ariana no povo alemã ou de Enéias de Tróia por Virgilio que pretendia fazer dele o fundador de Roma; “de dizer: isto é grego ou isto é inglês; mas de descobrir todas as marcas sutis, singulares, subindividuais que podem se entrecruzar nele e formar uma rede difícil de desembaraçar”
75
. Onde a alma pretende se unificar a
perspectiva genealogista busca o começo em uma verdadeira dissociação do eu. Nestes termos sua tarefa não seria marcar o passado que estaria ali; impresso na pele, na consciência, ou no corpo, dos respectivos sujeitos. “A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel (...); ela mostra a heterogeneidade do
70 71
Idem. p. 12- 13.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 145- 168. SÜSSEKIND, Pedro. Sobre a literatura em seus vários aspectos In. : SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2011. p.7. 73 NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. 3. ed. São Paulo: Escala, 2009. p. 17. 74 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014. p. 12- 16. 75 Idem. p. 14. 72
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que se imaginava em conformidade consigo mesmo” 76. A única chaga que o corpo teria seria a chaga da ruína que a história — e, em última instância, o tempo— proporia. A emergência (Entestehung) seria o ponto de surgimento, de um aparecimento. O termo final pronto e acabado teria pouca coisa ou nada a dizer para ela. Esses fins, aparentemente últimos, não são nada mais do que o atual episódio de uma série de submissões: o olho foi primeiramente submetido à caça e à guerra; o castigo foi alternadamente submetido à necessidade de se vingar, de excluir o agressor, de se libertar da vítima, de aterrorizar os outros. Colocando o presente na origem, a metafísica leva a acreditar no trabalho obscuro de uma destinação que procuraria vir à luz desde o primeiro momento. A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações77.
A emergência produzir-se-ia nos jogos das relações e dos estados das forças quando elas lançam- se no proscênio do anfiteatro. “Enquanto que a proveniência designa a qualidade de um instinto, seu grau ou seu desfalecimento, e a marca que ele deixa em um corpo a emergência designa um lugar de afrontamento” 78. Em suma a genealogia seria a história e historização dos conceitos e estes seriam o verdadeiro acontecimento a ser apreendido. Entre o castigo exemplar, espetáculo em praças públicas, e a vigilância das sociedades disciplinares por meio, não só, mas também, dos aparelhos carcerários modernos assim como entre os prazeres greco- romanos-- ou a carne do medievo-- e a sexualidade dos séculos XIX e XX, na haveria correspondência progressista conceitual. A vigilância prisional não seria oriunda de nenhum humanismo que viria se estabelecendo desde a Revolução Francesa. Trataria- se antes de uma ruptura epistêmica. “Foucault parece virar a teoria da modernização do avesso, escrevendo sobre a ascensão da disciplina em vez da ascensão da liberdade”
79
.
Para ele, portanto, os historiadores “elaboravam um discurso falso”, “inventavam evolução e continuidade sobre a base das descontinuidades da realidade (...) como se fosse um relato verdadeiro do que aconteceu no passado uma narrativa construída de acordo com seu contexto
76
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014 p. 15. 77 Idem. p. 16. 78 Idem. 79 BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002. p. 209.
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cultural e com seus interesses”
80
. Neste sentido, parafraseando Benedetto Croce (1866-
1952), toda história seria uma história contemporânea.
O poder
Pelo modo vulgar como é utilizado, o termo poder parecer de fácil denotação, entretanto é extremamente problemático, mas ainda assim algumas nuanças comuns podem se percebidas nas suas diversas definições. “Em Java, por exemplo, (...) o poder é considerado uma forma de energia criativa que os adversários podem tirar um dos outros”
81
. Mesmo nessa nova
contextualização dos confins do Oceano Indico podemos perceber a noção de pertencimento – o poder como coisa que se tem– que ela pressupõe tal qual a compreensão vulgar do termo na parte ocidental do globo. É fácil pressupor que uma pessoa, grupo ou instituição em determinada sociedade tenha esse poder – o governante, por exemplo, a ‘classe dominante’ ou a ‘elite’ política–, enquanto todos os outros não o detenham. (...) ‘ Aqueles que conseguem o máximo são elite; o restante é massa’. Os historiadores frequentemente partem dessa premissa82.
O poder seria como uma propriedade que se pode ter. Estaria concentrado na maior instituição política das sociedades ocidentais: o Estado. Seria, ainda, uma essência que qualificaria os que o possuíssem e os que não o possuíssem, respectivamente, de dominantes e dominados. “Agiria por violência ou por ideologia, ora reprimindo, ora enganando ou iludindo; ora como polícia, ora como propaganda”
83
. Por meio da lei o Estado exprimiria seu poder. Este encarnado
naquele estaria subordinado a um modo de produção. Peter Burke (1937), em sua História e teoria social, que é um texto que discorre de maneira extremamente didática acerca dos diversos métodos e conceitos trabalhados simultaneamente pelas ciências sociais e a história, dedica no verbete poder algo mais de seis linhas para às concepções de Foucault. O historiador nada diz sobre o conceito no autor de
80
FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004. p. 386. BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002. p.109. 82 Idem. 83 DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 38. 81
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Vigiar e punir limitando- se a pontuar que as concepções, sobre o termo, do filósofohistoriador estavam em vias de se torna ortodoxa84. De acordo com Gilles Deleuze (1925- 1995) o arquivista em sua obra acerca do nascimento da prisão, Vigiar e punir, abre um grande diálogo em torno do conceito de poder. Um novo questionamento emerge da escuridão do cárcere. Contra tanto das concepções burguesas quanto das marxistas. “Em termos de prática, um certo tipo de lutas locais (...) cujas relações e necessária unidade não poderiam mais vir de um processo de totalização e de centralização (...)” 85. Para Foucault, não se possui o poder ele apenas seria exercido. “(...) Não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas” 86. Acerca do postulado da localização, no qual o poder concentrar-se-ia no Estado, o pensador responde que já o Estado surge como resultante de engrenagens múltiplas “num nível bem diferente e que constituem por sua conta uma ‘microfísica do poder’ 87. “(...) O poder é local porque nunca é global, mas ele não é local nem localizável porque é difuso” 88: ‘Se a polícia como instituição foi realmente organizada sob a forma de um aparelho de Estado, e se foi mesmo diretamente ligada ao centro da soberania política, o tipo de poder que exerce, os mecanismos que põe em funcionamento e os elementos aos quais ela os aplica são específicos’, encarregando- se de fazer penetrar a disciplina no detalhe efêmero de um campo social, demonstrando assim ampla independência em relação ao aparelho judiciário e mesmo político 89.
Até Michel Foucault o poder era algo que localizado institucionalizado. A historiografia ia (ou, ainda vai) consoante a estas prerrogativas remetendo-se ao político como equivalente de poder90. À teoria da subordinação na qual está envolto a noção de poder Foucault responde que não há “economia” de exterioridade no poder antes são “focos de poder” e de “técnicas disciplinares” que “formam um número equivalente de segmentos que se articulam uns sobre
84
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: UNESP, 2002. p.113. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 34. 86 FOUCAULT Apud DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 34- 35. 87 DELEUZE, Gilles. Op. cit. p. 35. 88 Idem. p. 36. 89 Idem. 90 FALCON, Francisco. Histótia e poder. In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da história. 5. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997.. p. 98. 85
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os outros e através dos quais os indivíduos de uma massa passam ou permanecem (...)” 91. Verdade é poder diria Foucault92. A escola é a única verdade educacional institucional que temos; a fábrica o principal meio de produção industrial; a prisão nosso majoritário instrumento de reabilitação social. Os únicos meios de nos fazermos, os meios “legítimos” de formação do sujeito. Nosso abecedário da subjetivação. (...) em cada momento da história a dominação se fixa em um ritual; ela impõe obrigações e direitos; ela constitui cuidadosos procedimentos. Ela estabelece marcas, grava lembranças nas coisas e até nos corpos; ela se torna responsável pelas dívidas. Universo de regras que não é destinado a adoçar, mas ao contrário a satisfazer a violência. Seria um erro acreditar, segundo o esquema tradicional, que a guerra geral, se esgotando em suas próprias contradições, acaba por renunciar à violência e aceita sua própria supressão nas leis da paz civil. A regra é o prazer calculado da obstinação, é o sangue prometido. Ela permite reativar sem cessar o jogo da dominação; ela põe em cena uma violência meticulosamente repetida. O desejo da paz, a doçura do compromisso, a aceitação tácita da lei, longe de serem a grande conversão moral, ou o útil calculado que deram nascimento à regra, são apenas seu resultado e propriamente falando sua perversão: ‘Falta, consciência, dever têm sua emergência no direito de obrigação; e em seus começos, como tudo o que é grande sobre a terra, foi banhado de sangue’. A humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação 93.
O poder em Foucault seria uma relação entre forças não tendo forma e sempre estando no plural se relacionando não com corpos, mas sim com outras forças que seriam seu único objeto. Não existiria, portanto, o sujeito da força. A validação ou/e “aceitação” de uma episteme como também a da emergência e da
proveniência é marcada pelos jogos de poder que a partir dos mais diversos ethos (neste caso principalmente o institucional) vão se autolegitimando.
A loucura não seria tão perigosa
quanto à denominação doença mental fundamentada por um grande aparato discursivo clínico além da própria autoridade de saber que o jaleco branco propõe. Não bastaria somente apontar os lugares, mas também a “voz” que emite e transmite o discurso. A ponderação do “orador”, sua suposta fala franca e verdadeira e sua aparência agradável o autorizam enquanto 91
DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005. p.37. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Disponível em: < http://www .nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfísica_do_Poder_-_Michel_Foucault.pdf >. Acessado em 17 abr. 2014 p. 11. 93 Idem. p. 17. 92
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detentor de poder- saber. “A eficácia (...) se origina no fato de que eles atravessam, carregam o conjunto da enunciação sem jamais explicitarem sua função”
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. O mesmo ocorre nos ritos
academicistas. As autorizações discursivas deliberadas por meio dos títulos e do tom de voz confiante acompanhado – é claro– de garrafas e mais garrafas de água mineral; como também nas apresentações extraordinárias tais quais na semana acadêmica e apresentações de término de curso na qual os formandos são avaliados pelo seu poder de se autoautorizar por meio de sua vestimenta, de sua fala que espera- se clara e serena e, não só, mas também por meio dos autores já autorizados de sua referência bibliográfica. Os jogos de referências teóricas ao longo do trabalho escrito nada mais são do que um jogo de autorização. As bolsas de mérito, pautadas no rendimento dos respectivos discente, dão- lhe status de saber e de poder o autorizam a falar e também a ser ouvido. Pobre Zaratustra de Nietzsche na qual as palavras de seus lábios não convinham aos ouvidos alheios95. É, também, nestes termos que pensa Foucault o poder.
94 95
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1997. p. 45. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. 2. ed. São Paulo: Escala, s.d. p. 23.
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Considerações finais
Ao longo de nossas pesquisas e conseguintes leituras. Leituras estas não somente de textos impressos, mas de materiais audiovisuais que acabaram não cabendo no corpo do trabalho, e também, de nossos pensamentos avulsos e desordenados. Precisamos, como o serralheiro, cortar e linchar a madeira. Conter as águas de um oceano em continente, hereticamente, como Deus ao fazer as bordas de areia. Ordenar e classificar os livros da biblioteca tal qualo bibliotecário. Fizemos cortes; impomos violentamente como o romancista ou o diretor de cinema uma áurea. Deliberadamente nossas letras deram alma e mais corpo a conflitos: Ankersmit e Dumas; mudos e falantes; EUA e URSS; Annales e ciências sociais e métodos que vinham estabelecendo- se; Foucault “contra” a história, em última instância contra a milenar filosofia metafísica e o “positivismo dos conceitos” posto em evidência pelos diversos discursos institucionais. Tal qual a água que ferve para o preparo do café nosso texto borbulhou. Não citamos, posto que não houvesse tempo para a leitura, autores como Roberto Machado e Didier Eribon. O primeiro, um dos principais estudiosos e tradutores de Foucault do Brasil, e o segundo o seu principal biógrafo – é dele textos como Michel Foucault (1991) e
Foucault e seus contemporâneos (1994). Esperamos que a ínfima referência a um artigo de Guilherme Castelo Branco compense a falta de Machado. Assim bem como as não tão ínfimas menções a Gilles Deleuze e Paul Veyne e suas respectivas “biografias teóricas” compensem a ausência de Eribon. É bem certo, contudo, que mesmo com Veyne estejamos em falta haja vista que suprimimos seu importante texto, escrito em 1978, Foucault revoluciona a história contido em Como se escreve
a história. Os historiadores profissionais-- e mesmos os apenas licenciados-- devem ler mais Foucault, mesmo embora suas propostas metodológicas sejam difíceis de por em prática e seus textos sejam por deverás abstratos. Não limitando- se a estudar os novos lugares que foram propostos pelo filósofo- historiador. Lugares estes caracterizados pela marginalidade social como os presídios e os manicômios. O ostracismo ateniense pode muito bem, embora Foucault possa discordar, ser refletido nestas práticas de alienação social e do próprio sujeito. A prática histórica de Michel Foucault não é fundada em camadas densas de acontecimentos envoltos em uma lógica conceitual pautada no a priori metafísico. As
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palavras não se remeteriam propriamente as coisas. Sua busca não seria a dos começos mudos e sim dos gritos que buscam prevalência. Nada é acumulo em Foucault. O castigo... a sexualidade seriam conceitos em sacos furados. Ele busca as diversas epistemes, as diversas racionalidades. Não supostos refinamentos. Antes outra coisa. As hipotéticas redes de influência ou de tradição não lhe seriam pertinentes, mas sim as compatibilidades axiomáticas. Dentro de sua prática os termos limite, ruptura, corte, transformação serão moedas correntes. O sujeito não seria mais atemporal, anônimo e impessoal posto que mesmo no que se referiria a seus desejos algo pensaria nele e por ele— o inconsciente que seja!--, mesmo as propostas mais longínquas de Marx ou Nietzsche já propunham isto. O primeiro com a luta de classe e as relações de produção e o segundo por meio do desmembramento genealógico da salvaguarda do conceito de moral tanto por parte da camada aristocrática de uma sociedade quanto da clerical. O sujeito seria histórico e não se pertenceria nem a si próprio, mas às teias invisíveis de
poder- saber que o atravessariam como ele a elas. Tudo lhe escaparia e lhe seria inerente. Os conceitos como os próprios sujeitos devieram e continuariam a fazê- lo. Tudo é e não. A escrita da história em Foucault não seria a busca da visão de mundo de um determinado período proposto pelos annales, dos tipos ideais de Max Weber (1864- 1920) ou dos espíritos das épocas de Hegel. O arquivista põe, antes, em xeque as totalizações perquirindo- se acerca das questões do ser desmembradas em consciência, origem e sujeito. O historiador, em Foucault, deveria ser aquele que desvenda os jogos, as regras e perversões destes, demarcando as emergências. A procura não de uma moral ou de ideal singulares, mas plurais. O homem não teria uma verdade e/ ou alma eternas. Os absolutos da história seriam tomados de assalto tal qual a Bastilha na Revolução Francesa. A história, como pensada pela filosofia da história, não seria o norte de nós mesmos. Antes a própria vida pautada na luta do dia-a-dia. Para usar de forma parafraseada um dos depoimentos de Foucault: É na vida cotidiana martelada pelos mais diversos interesses discursivos. Pelos mais ecléticos campos de dizibilidade e de vizibilidade que a verdade dos homens se faz. A vida não é feita nas matrizes retangulares das folhas de papel; no não lugar das folhas em branco impressas por manchas negras, mas nos lugares concretos: prostíbulos, tribunais, cárceres... universidades, asilos e etc...
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