Aos 58

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AOS 58

Entre maio de 2014 e maio de 2015, fragmentos de meu ser se manifestaram em prosa e poesia. Tentando manter uma ideia que surgiu em 2013, aos 56, reproduzo nesse livro digital textos que me marcaram, publicados inicialmente em dois blogs: www.leiturasemcinema.blogspot.com www.umhaikaiaodia.blogspota.com Curitiba, 24 de maio de 2015. Fernando Gimenez


O TEATRO NO CINEMA: REFLEXÕES TARDIAS Em agosto de 2013, como parte de minha Especialização em Cinema na Universidade Tuiuti do Paraná, participei de uma disciplina ministrada pela professora Lílian Fleury Dória sobre “O Teatro no Cinema”. Foram quinze horas de conversa e debate, intercaladas pela exibição de três filmes, que nos ajudaram a refletir sobre uma indagação que a professora Lilian apresentou quando fazia sua introdução à disciplina: _ Quando um cineasta usa deliberadamente o teatro, como podemos avaliar esta situação? Para complementar esta questão, logo depois, surgiu mais um questionamento inspirador para o módulo conduzido pela professora Lilian: _ Por que um cineasta escolhe a linguagem do teatro? O uso do teatro pode ser feito de várias maneiras no cinema, indo de uma simples adaptação de um texto teatral para um texto fílmico, até uma completa transcriação de um texto teatral, que serve como mote para uma nova forma de transmitir a mensagem do textofonte. Entre os diversos aspectos mencionados ao longo das quinze horas da disciplina, houve duas que me chamaram a atenção de forma particular. O primeiro diz respeito à centralidade do ator no teatro e sua relação com a plateia. O cinema, diferentemente do teatro, não conta com a presença física de atores e atrizes em um palco, numa relação físico-emocional que afeta tanto plateia quanto aqueles que estão no palco. A relação do espectador com o filme é mediada por um aparato tecnológico que não se faz presente no teatro. Embora, às vezes, o teatro faça uso de mídias visuais, estas raramente são centrais na relação do espectador com o texto.


O segundo aspecto diz respeito à adaptação ou transcriação do texto teatral para o fílmico. Segundo a professora Lilian, salvo engano meu de interpretação do que ouvi, o processo de transcriação tem a ver com a substância (essência) do texto da outra arte. Ora, o uso do teatro no cinema não precisa ser uma adaptação literal da história contada para o teatro, mas precisa de alguma forma manter uma fidelidade com o que pode ser considerado o essencial da mensagem teatral original. O debate dessas e outras questões foi intermediado pela exibição integral de Dogville de Lars von Trier lançado em 2003, César deve morrer de Paolo e Vittorio Taviani lançado em 2012 e Anna Karenina, também de 2012, dirigido por Joe Wright. Cada um desses filmes usou o teatro de forma diferente. Em Dogville, Lars von Trier narra uma história violenta, sem mostrar a violência de forma explicita, e se utiliza de um palco dividido por marcas no chão que dividem os espaços cênicos onde ocorre a história narrada. Os irmãos Taviani, baseiam-se em texto teatral de Shakespeare (Júlio Cesar), para montar um documentário que mostra vida de detentos que cometeram crimes violentos em uma penitenciária italiana, ao mesmo tempo em que relatam os ensaios desses detentos para a montagem do texto de Shakespeare. Por fim, o filme de Joe Wright baseia-se no romance de Liev Tolstói de mesmo nome. Nesse filme, o uso do espaço cênico teatral faz parte da forma como o cineasta resolveu contar a história trágica de Anna Karenina, com uma mistura eclética de elementos do cinema, teatro, dança e música. A possibilidade de assistir e refletir sobre esses três filmes mostrou que a relação do teatro com o cinema não se dá apenas pela adaptação de um texto teatral. Aliás, dos três filmes, somente o dos irmãos Tavianni tem um


texto teatral de referência. A história de Dogville foi escrita pelo seu diretor, enquanto que Joe Wright baseou-se em um romance. Decorridos muitos meses desse meu primeiro encontro com o estudo da relação do cinema com o teatro, tive a oportunidade de assistir na Cinemateca de Curitiba a Romance, filme dirigido por Guel Arraes, com roteiro dele em parceria com Jorge Furtado, cujo lançamento se deu em 2008. Na sessão tive a alegria de reencontrar a Francielly, colega do curso de especialização em cinema da Universidade Tuiuti, que estava com seu namorado. Saí do cinema com vontade de retomar minhas reflexões iniciais sobre a relação cinema-teatro. O filme de Guel Arraes baseia-se na história de Tristão e Isolda, texto clássico cuja origem está ligada a uma antiga lenda celta do século IX (http://www.infoescola.com/literatura/tristao-e-isolda/). O filme começa em um teatro e apresenta um diretor fazendo um teste com uma atriz para a encenação de uma peça sobre Tristão e Isolda. A partir daí, a história vai se desenrolando com ensaios, estréia, romance entre o diretor e a atriz, temporada da peça, convite para a atriz ir atuar em novela, crise e tensão entre os dois por causa desse convite, separação, sucesso da atriz na novela, chegando, três anos depois, à filmagem de um especial de TV, baseado em Tristão e Isolda, no qual a atriz representará novamente Isolda, e o diretor/ator de teatro, seu ex-namorado, será o diretor. Resolvi apoiar minha reflexão em algum texto que pudesse, eventualmente, ter tratado da relação teatro e cinema. Uma busca no Google Acadêmico me revelou o texto Teatro e Cinema de Gabriela Lírio Gurgel Monteiro. Gabriela Monteiro analisou, utilizando uma perspectiva histórica, a relação entre cinema e teatro. Iniciando com


um histórico da evolução do teatro, a autora aponta como este se tornou cada vez mais diverso tanto em termos de espaços cênicos (palco italiano, anfiteatro grego, tablado da comédia dell’arte, espaço medieval e palco cinético), quanto em termos de formas de interação do ator com a plateia, incluindo o uso de mídias visuais e sonoras. Depois, a autora comenta sobre o surgimento do cinema, influenciado pelo teatro, que no seu começo usa muito de planos estáticos e deslocamentos laterais dos atores. Além disso, o cinema se utiliza de ferramentas teatrais, tais como, partes de cenários, roldanas, etc. A autora aponta, também, que o cinema mudo foi marcado por exageros interpretativos dos atores, talvez para compensar a falta da fala. Por fim, Gabriela Monteiro, após uma discussão sobre a adaptação de textos teatrais para o cinema, apontando suas limitações e possibilidades, inclusive lembrando a experiência do teatro filmado, sugere que contemporaneamente os limites de coexistência entre as artes não se configuram como fronteiras demarcáveis (p. 33). Seu argumento é de que o cinema e teatro se interligam quando peças começam a usar imagens, trechos de filmes, borrões, letterings, vídeos, documentários, projetados em telas ou sobre corpos dos atores. Nesse sentido, a autora afirma ser a teatralidade um conceito relevante a esta discussão, na medida em que representa um elo de ligação entre as duas. Ela é uma no palco e outra na tela, mas, sendo inerente a ambas as artes, é possível que a partir dela, possamos visualizar as influências do teatro e do cinema e de que modo o cinema transforma o material cênico em material fílmico e viceversa (p. 34).


A partir do texto de Gabriela Monteiro retorno ao filme de Guel Arraes. Percebo que o uso que esse faz do teatro em seu filme parte de uma referência explicita ao espaço cênico teatral que é mostrado como local de ensaio primeiramente, mas depois na estréia da peça como espaço onde se relacionam atores, palco e plateia na apresentação de uma narrativa. No entanto, embora a peça teatral mostrada por fragmentos no filme preserve a fidelidade com a história de Tristão e Isolda, Arraes ao contar a vida “real” do romance entre Pedro e Ana, vividos por Wagner Moura e Letícia Sabatella, utiliza-se de trama semelhante ao drama vivido por Tristão e Isolda, mas cuja trajetória terá um final diverso do textofonte. Mas, fica uma pergunta: teriam Guel Arraes e Jorge Furtado preservado a essência de Tristão e Isolda na história de Pedro e Ana? Nesse ponto, preciso expor minha interpretação sobre qual seria a essência ou substância da lenda celta transformada em obra da literatura clássica. Para mim, o drama vivido por Tristão e Isolda trata da possibilidade de apaixonados viverem intensamente seu amor. Nesse sentido, enquanto foi vivido, o amor entre Tristão e Isolda, ocorreu de forma intensa, embora com fim trágico. Por outro lado, Pedro e Ana, assim como Tristão e Isolda sofreram intensamente seu amor, mas com um final mais feliz. Nesse ponto, não posso deixar de lembra Vinicius, o poeta, quando disse “que não seja infinito posto que é chama, mas que seja eterno enquanto dure”. A substância da paixão de Tristão e Isolda e de Pedro e Ana se revela nesses versos do poeta. P.S.: Você, leitor ou leitora, deve estar se indagando por que no título deste post, incluí o subtítulo Reflexões tardias. Pois é, a resposta é simples. A professora Lilian


havia solicitado que cada aluno fizesse uma reflexão sobre a relação entre teatro e cinema a partir de um ou dos três filmes que assistimos em sua disciplina. Essa reflexão, em forma de texto, serviria como avaliação da disciplina. Durante esses doze meses, ensaiei a escrita desse texto algumas vezes, mas não me sentia pronto para fazê-lo. Hoje, o texto se cristalizou em minha mente. Será que ainda dá tempo da Professora Lilian aceitá-lo como avaliação da disciplina? A resposta não importa, mas foi muito bom poder fazer essas reflexões tardias! MONTEIRO, G. L. G Teatro e Cinema: uma perspectiva histórica. ArtCultura, v. 13, n. 23, p. 23-34, 2011.


O SONHO DE PEDRO Admirador dos filmes de Buñuel, desde meados de 2013, tenho procurado por seus filmes para rever ou conhecer pela primeira vez. Em um final de semana, consegui assistir a dois filmes do chamado período mexicano da produção Buñueliana: A Filha do Engano (1951) e Os Esquecidos (1950). Segundo Eduardo Peñuela Cañizal (1993), esse período da obra de Buñuel compreende dezoito filmes realizados entre 1946 e 1965. No livro Um Jato na Contramão: Buñuel no Mèxico, fruto de um curso de extensão ministrado por Cañizal no primeiro semestre de 1992 na Escola de Comunicações e Artes da USP, encontram-se dez ensaios que discutem a obra de Buñuel nesse período. Pouco conhecia sobre os filmes de Buñuel no México. A leitura dos ensaios presentes nesse livro despertaram em mim o desejo de ampliar o pouco que havia visto até recentemente: Ensaio de um Crime (1955) e Simão do Deserto (1965). Aliás, à época em que assisti a esses filmes, não sabia da existência de uma obra tão grande no período em que Buñuel viveu no México. Deliciara-me com os aspectos surreais de ambos os filmes, assim como de outros filmes de Buñuel que já vira. Nesse texto desejo falar um pouco sobre uma cena do segundo que mostra o sonho de um dos meninos que fazem parte da trama imaginada por Buñuel, a partir da realidade mexicana que vivenciava nos anos 50 do século passado. Ana Maria Balogh em um dos ensaios que compõem o livro organizado por Cañizal assim descreveu a cena: Nesse sonho, uma galinha cacarejante despenca do teto. Pedro segue a direção de


sua queda e depara com Julián, sorridente e ensanguentado debaixo da cama. Sobre eles caem penas de galinha. Pedro volta para a cama e vê sua mãe com uma longa camisola branca, esvoaçante, avançando em direção a ele em câmera lenta, andando no alto sobre as camas, como se fosse uma virgem de Murillo (sobre Murillo ver http://www.sabercultural.com/template/ pintores/Murilo1.html, sobre o que se refere Balogh) sobre as nuvens, seu semblante é calmo e afetuoso, ele chega até a cama de Pedro e conversa com ele, o filho lhe pergunta por que não o ama, ela estende a mão para a câmera, como o quadro das mãos que imploram de Siqueiros (ver http://www.citi.pt/cultura/artes_plastica s/desenho/alvaro_cunhal/siqueiros.html) só que invertidas, para cima, e mostra como estão castigadas do trabalho, depois o abraça ternamente à borda da cama, para, a seguir, afastar-se de costas, esvoaçante, em direção à sua cama, sempre em câmera lenta. Pedro pergunta à mãe, então, porque ela lhe negou comida. A mãe dá meia volta, e ainda andando esvoaçante em câmera lenta, porém agora mais terrena, no chão, com uma expressão forte e ambígua, traz um grande pedaço de carne crua para Pedro. Sons de trovões, vento e tempestade permeiam essa parte do sonho. Quando Pedro se prepara para agarrar a carne, a mão de Jaibo (ao que parece) surge do chão (do além?) para arrancá-lo dele que protesta com veemência. O


vulto da mãe se afasta, de novo, em câmera lenta, em direção à sua cama, ao fundo do quarto (Balogh, 1993, p. 184 e 185). Esta cena se inicia com a chegada de Pedro a sua casa tarde da noite. Ele se deita sem que a mãe e seus irmãos o notem, já que estão dormindo. Buñuel sinaliza o sonho com a imagem de Pedro se levantando, sobreposta à dele dormindo na cama. O sonho é o espaço do surreal e nessa cena Buñuel nos indica o desejo de Pedro de escapar do destino que lhe espera enquanto miserável fadado à marginalidade nos subúrbios da cidade do México. Jaibo foi o assassino de Julián em cena testemunhada por Pedro. Infelizmente, Pedro não conseguirá escapar de seu destino. Apesar de sua vontade, o acaso frustrará suas tentativas de mudar de vida. Como se pode verificar em http://www.brasilescola.com/historiag/surrealismo. htm: o surrealismo foi um movimento artístico que surgiu na Europa, cujo marco inicial foi o Manifesto Surrealista de André Breton, publicado em 1924. O surrealismo criticou a racionalidade burguesa em favor do maravilhoso, do fantástico e dos sonhos, abarcando uma grande quantidade de artistas, entre eles, podemos citar: na literatura, André Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault e outros; nas artes plásticas, Joán Miró, Max Ernst, Salvador Dalí e outros; na fotografia, Man Ray, Dora Maar e Brasaï; e, no cinema, Luís Buñuel. O filme Os Esquecidos não é em sua totalidade uma obra tipicamente surrealista. No entanto, a cena do sonho de


Pedro nos remete de forma dolorida para um desejo de superação de um vir-a-ser que parece, em um primeiro momento, escapável, mas que, infelizmente, não será evitado. Pedro não consegue escapar da estrutura que o restringe, assim como, depois de sessenta e quatro anos ainda há muitos Pedros que não conseguem fugir de seus destinos miseráveis em nossa América Latina. Para eles, restam os poderes dos sonhos, como expostos de forma emocionante no texto de Anna Maria Bologh: Os elementos aparentemente inverossímeis do sonho condensam, com bem nos apontou Freud (1990), as principais incógnitas do nosso psiquismo. E, Los Olvidados sintetizam o mundo interior de Pedro: o seu desejo de sobrevivência, os seus medos, e, sobretudo, o seu desejo de conquistar o afeto e a aprovação da mãe. Eis aí um dos mais belos poderes dos sonhos, o de serem, como aponta Freud, "abençoados realizadores de desejos". Só no sonho é que Pedro se aproxima de sua mãe. Conversa com ela e é ouvido. Alimento do espírito. Apoia a cabeça em seu peito, e sente os braços dela que o envolvem. Alimento do corpo. O que o tecido do texto revelou como impossibilidade, a urdidura do sonho resgata para Pedro: o obscuro objeto do desejo, o amor de sua mãe. (p. 185). Deve ser algo dessa natureza que me atrai no surrealismo. São os seus poderes que tornam possíveis desejos que a realidade social teima em mostrar utópicos. BALOGH, ANNA MARIA Los Olvidados: "...Infame Turba de Nocturnas Aves". in: CAÑIZAL, E. P. (org.) Um Jato na


Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993, p. 171-185. CAÑIZAL, EDUARDO PEÑUELA (org.) Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.


O QUE É O BOM CINEMA? A experiência de assistir um filme pode ser mais que entretenimento. Responder à pergunta que dá título a esse texto pode parecer uma tarefa fácil, mas não é. Do posto de vista técnico há uma resposta precisa para essa questão. Mas não quero, ou melhor, não tenho competência para falar nessa dimensão. Prefiro falar sobre isso do ponto de vista pessoal. Em termos subjetivos, para cada um, o bom cinema é aquele que dá à pessoa uma sensação de prazer. Mas, o prazer tem várias faces. Pode ser um prazer estético, que vem da fruição de coisas belas. Pode ser um prazer relaxante, ao permitir que o espectador se afaste da pressão do cotidiano durante algum tempo de sua vida. Pode ser educativo, ao informar algo que desconhecíamos. Pode ser um prazer sensual ao despertar emoções ligadas ao desejo. As fontes de prazer cinematográfico são inúmeras, não consigo exaurir essa questão. Mas, a experiência cinematográfica é única para cada um e, dentro de um mínimo de qualidade técnica, o no que consiste um bom cinema é uma resposta múltipla. Ao assistir Barbara, filme alemão dirigido por Christian Petzold, tive uma experiência fílmica que me iluminou a respeito do que é o bom cinema para mim. A sinopse do filme não revela muito: No verão de 1980, Barbara, uma médica da Alemanha Oriental, tenta tirar um visto para poder sair do país. Como punição, ela é transferida de Berlim para um pequeno hospital no interior do país. Jörg, seu amante do lado ocidental, planeja sua fuga. Barbara espera. O apartamento novo, os vizinhos, o


clima de verão e do interior – nada disso significa nada para ela. Trabalhando como cirurgiã pediátrica, ela é atenciosa com os pacientes, mas bastante distante em relação aos colegas. Com o dia de sua fuga se aproximando rapidamente, Barbara começa a perder o controle sobre si mesma, seus planos, sobre o amor. (http://www.cineplayers.com/filme.php?id=1 5130) O filme chegou a ser cogitado como favorito da crítica para levar o Urso de Ouro do Festival de Berlin em 2012 (http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/02/filmealemao-e-forte-candidato-no-festival-de-berlim-1.html). Não levou, mas Petzold ganhou o Urso de Prata como melhor diretor. Barbara conhece André, seu chefe nesse hospital. É no desenvolvimento dessa relação que surgiu, nesse filme, uma compreensão para mim, de como eu respondo à ideia do que é o bom cinema. André é o chefe de Barbara, um dia este mostra a Barbara o laboratório que conseguiu montar no pequeno hospital do interior. Em uma das paredes, como peça de decoração, há uma reprodução da tela Aula de Anatomia do Dr Tulp, um dos quadros mais famosos desse pintor holandês (http://www.auladearte.com.br/historia_da_arte/rembra ndt.htm). A reprodução chama a atenção de Barbara. Nessa cena, André mostra a Barbara um erro na tela e ao comentar sobre isso afirma: _ Rembrandt quer nos mostrar algo que não podemos ver. Ao ouvir (ler) essa frase (não sei alemão!), me veio imediatamente à mente o que significa o bom cinema para mim. Mais do que entretenimento, mais do que


informação, mais do que sensualidade, para mim o bom cinema é aquele que tenta me mostrar o que não consigo ver. É o caso de Barbara! Assim como Rembrandt, na tela, parece querer mostrarnos algo que os personagens do quadro estavam vendo, os bons filmes são experiências em que tenho a sensação de ter visto algo novo, algo cujo significado vai além do entretenimento. Que me faz pensar sobre a condição humana. Essa mesma cena, por outro lado, me fez refletir sobre a questão da intertextualidade. No filme, o personagem de André, ao mostrar o que percebeu na tela de Rembrandt, é um momento em que Plotzel usa da intertextualidade. Uma imagem de outra arte ajuda na construção do significado do filme. Assim, como André quer que Barbara veja algo que não consegue ver na relação entre eles, a narrativa do filme quer nos mostrar algo que ainda não conseguimos ver. Mas, esse é um tema que ainda não domino. Por enquanto, apenas uma intuição!


CRACA DE LEITE Tem coisas que grudam na gente. São que nem craca de leite que vai se pegando na vasilha onde é fervido. Lavase, lava-se, lava-se... Quando você pensa que conseguiu tirar tudo, enxágua a vasilha e pronto! Que nada! Ainda tem vestígio dela. Mais umas esfregadas. Pode ser que agora tenha saído, mas se a vista falha, alguma marquinha ficou. Nossa vida é longa. Graças aos avanços da medicina, cada vez mais longa. Nascemos enrugados, mas, aparentemente, sem marcas definitivas. Logo depois do parto, após o primeiro banho, estamos limpinhos. Prontos para enfrentar os anos que vêm pela frente. De pele e mente preparadas para aquilo que o destino vai tentar grudar em nós. No meu caso, me cheguei aos 58 anos. Parece muito, mas ainda não me dei por satisfeito. Apesar de tantas cracas que tive que ir limpando, areando da vida, quero mais. Preciso de mais! Algum tempo atrás, recebi pelo Facebook um link que me levou aos meus vinte anos. Uma viagem no tempo com a ajuda da memória coletiva. Quem me conhece, sabe que desde a adolescência, ir ao cinema faz parte de meu modo de entender o mundo. Ainda criança troquei as idas dominicais à igreja pelas matinês do Cine Augustus da Londrina do final dos anos 60 e começo dos 70 do século passado. Hoje, depois de tantos anos, me dou conta que troquei uma fantasia por outra. A religião não me motivava, mas as idas ao cinema mexiam comigo. Me faziam pensar. Muitas marcas surgiram nas salas escuras dos cinemas de minha vida. O primeiro exercício de autonomia, ainda criança ir sozinho ao cinema; a primeira namorada, que depois se tornou minha esposa - Telma, mãe de Paloma e


Fernanda. Hoje somos bons amigos. Ver 1900, de Bertolucci, e depois refletir sobre o filme para escrever um trabalho da disciplina de sociologia. Terezinha Giovenazzi, irmã do ator Edney Giovenazzi, foi a professora que causou esta marca! Me dou conta hoje que deveria ter agradecido a ela a tarefa tão inspiradora! Uma boa craca que ajudou a tornar o cinema parte de meu modo de compreender o mundo e a vida. O primeiro filme pornô, depois que acabou a censura no Brasil. O desejo por Dina Sfat (Macunaíma), Lilian Lemertz (Lição de Amor) e Helena Ramos (Mulher Objeto) que brilhavam nos filmes brasileiros de minha juventude! Teve também a Vera Fischer (Amor, Estranho Amor), mas dessa a Sara não gosta muito que eu fale. Não sei por quê? As emoções dos filmes de Chaplin, as lágrimas inevitáveis em alguns dramalhões. A raiva com algumas porcarias. Se você ainda não adivinhou, o link que recebi tem a ver com o cinema. É claro! É a digitalização das edições da Revista Cinema em CloseUp, publicada entre 1975 e 1979 (http://portalbrasileirodecinema.com.br/cinemaemclose …/indice). Documento histórico de valor inestimável que me fez lembrar muitas idas ao cinema. Esse é um tipo de craca que não quis nunca limpar! Muitos dos filmes que estão retratados nas edições da Cinema em Closeup fazem parte de minha trajetória pelo mundo das imagens e significados. Algum amigo mais sacana, vai dizer que chegaram a deixar calos nas mãos! Mas, não é só por isso... Comecei esse texto, com um tom sombrio! Parecia que ia falar de coisas negativas, pois afinal, craca tem um som meio ruim, agressivo, não? Mas, as cracas que machucam, que doem, acabaram ficando de lado neste texto. Elas existem, mas estão em algum cantinho onde


passam despercebidas. Me ajudaram a compreender o mundo, mas deixa elas pra lá! O melhor é poder lembrarse de cracas que, apesar dos esfregões da vida, conseguiram deixar sua boa marca na minha história. Vida longa a todos!


CINEMA POESIA: A SEQÜÊNCIA INICIAL DO EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS DE PASOLINI Em 1965, Pasolini proferiu uma palestra em Pesaro, Itália, durante o Festival do Novo Cinema que foi transcrita e publicada no Cahiérs du Cinéma, n. 171, de outubro de 1965. Para Pasolini, até os anos 60 vigorava uma máxima no fazer fílmico que dizia “nunca sentir a presença da câmara”, enquanto que os movimentos que ele enxergava em meados da década de 60 indicavam seu oposto, ou seja, “fazer sentir a câmara” (Pasolini, 1982, p. 46). Mais à frente, Pasolini em sua locução evidenciou que o surgimento desse novo código técnico, manifestado pelo uso de objetivas diferentes em um mesmo rosto, do zoom, de travellings, câmara à mão, entre outros, nasceu de uma intolerância às regras, duma necessidade de liberdade insólita e provocadora, duma necessidade de divertimento autêntico, dum saudável gosto pela anarquia. Mas imediatamente se transformou em lei, patrimônio linguístico e prosódico que diz respeito, ao mesmo tempo, a todos os cinemas do mundo (p.49). Essa noção do cinema-poesia já havia sido formulada por Buñuel. Sete anos antes de Pasolini, o cineasta espanhol manifestou seu desconforto com o formato tradicional do fazer cinematográfico. Coincidentemente, também em uma palestra, dada na Universidade do México em 1958, o cineasta do surreal fez críticas à forma como o cinema imitava o romance e o teatro, enfatizando sua limitação como meio menos rico que os dois anteriores na expressão de psicologias. Com esse embasamento, a partir da ideia que o cinema é o melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções, do instinto (BUÑUEL, 1983, p. 336), o


cineasta espanhol defende um cinema que possa ajudar a expressar a vida subconsciente, tão presente na poesia, um cinema que abrirá o mundo maravilhoso do desconhecido, de tudo que não encontro nem no jornal, nem na rua (p. 337). Sendo o cinema poesia uma forma de fazer cinema onde a câmara se revela ao espectador segundo a concepção de Pasolini, neste texto tento fazer uma análise fílmica da sequência inicial de seu filme O Evangelho segundo São Mateus. A escolha dessa sequência se dá por esta apresentar diferentes usos de enquadramentos, movimentos de câmara, planos e contra planos, que constantemente lembram ao espectador que o que se vê tem a intermediação de um artista e de artefatos produzidos pelo homem. Pasolini nasceu em Bolonha em 1922 e foi brutalmente assassinado em 1975 nos subúrbios de Roma. Em 53 anos de vida, Pasolini exerceu múltiplos papéis se caracterizando como um intelectual. Albanese (1981) relata a obra de Pasolini em diferentes campos da Arte. Formado em Letras pela Universidade Bolonha, transferese para Roma em 1949 para viver ao lado da mãe. Foi professor, poeta, romancista, ensaísta, teatrólogo e tradutor (ALBANESE, 1981). A jornada cinematográfica de Pasolini, segundo Albanese (1981, p. 21), começa como cinegrafista em 1954. Ele escreve e dirige seu primeiro filme em 1959 (A noite brava). Accattone (O vagabundo), tido como seu primeiro grande filme, surge dois anos depois. Depois se seguem Mamma Roma (1962), La Ricotta (1963) e O Evangelho segundo São Mateus em 1964. Entre 1965 e 1975, sua última década de vida, Pasolini realizou filmes marcantes, entre os quais, se destacam: Gaviões e passarinhos, 1966; Édipo rei, 1967; Teorema,


1968; Pocilga, 1969; Medéia, a feiticeira do amor, 1969; Decameron, 1971; Os contos de Canterbury, 1972; As mil e uma noites, 1974; e Saló ou 120 dias de Sodoma, 1975 (ALBANESE, 1981; PEREIRA, 2004). Na visão de Pereira (2004, p. 15), Pasolini soube construir um modelo de cinema que sempre apontou para a inovação. Pereira (2004, p. 17-18) afirma que para Pasolini o cinema apresentava uma pulsação dinâmica, caracterizando um cinema existencial que traz para o centro do debate, a participação do espectador, muito antes de serem explicitadas as chamadas “estéticas da recepção”, isto é, o receptor é entendido por ele como um criador de sentido, um ativo partícipe do processo cinematográfico em sua concretização cotidiana. Em seu texto, Pereira (2004) argumenta que Pasolini conseguiu estabelecer as diferenças entre o cinema de prosa e o cinema de poesia, recorrendo a uma lógica analógica, no sentido de que as duas formas de cinema se distinguem pela extensão, alcance, abrangência e formas de constituição do sujeito receptor ou produtor. Quando tenta construir um modelo do cinema de poesia, Pasolini se utiliza de alguns sinais de identidade que apenas pretendem facilitar o entendimento do seu discurso, da sua fala, mas não conseguem dar conta da complexidade conceitual da sua própria formulação (PEREIRA, 2004, p. 18) É nessa complexidade conceitual que nesse texto me aproximo da descrição de parte do texto fílmico d’O Evangelho segundo São Mateus de Pasolini, especificamente sua sequência inicial em que Maria e José encaram a notícia da gravidez de Maria. O filme é todo em preto e branco e os figurinos são típicos da época retratada. O Evangelho segundo São Mateus foi apresentado e premiado na XXV Mostra de Veneza.


Ganhou também o prêmio Office Catholique Internazionale du Cinema. Esta premiação causou muita polêmica à época. A sequência analisada dura três minutos e trinta segundos. O primeiro plano dessa sequência é um close de um rosto feminino com os cabelos cobertos por um véu preto e com expressão um pouco triste. Atrás do rosto feminino, há uma estrutura de pedras irregulares, sem possibilidade de identificar o que seja, apresentando um arco, também em pedras, só que mais regulares, que contorna a cabeça feminina, de um lado ao outro, se assemelhando a um halo. Há ruídos que se parecem com passos, mas não se identifica a fonte. O segundo plano, também em close, apresenta um rosto masculino, calvo na parte superior frontal da cabeça, com uma expressão neutra, tendo às suas costas parte de uma estrutura de pedras. No terceiro plano, ainda em close, volta o mesmo rosto feminino, no mesmo local, e a mulher cerra os olhos e abaixa a cabeça. O quarto plano volta para o rosto masculino, no mesmo local, com uma pequena movimentação lateral como se fosse expressar alguma palavra. Todas as transições de planos são em corte seco e em todos os planos, também, há ruídos que se parecem com passos, mas não se identifica a fonte. As expressões faciais dos personagens se mantêm como nos outros planos. No quinto plano há uma mudança de enquadramento para um plano geral, onde se vê ao centro a figura da mulher grávida, com um vestido comprido em tom claro e o véu escuro chegando até seus pés, imóvel. A estrutura de pedra continua atrás da personagem, tendo alguns adereços de cenário: um balaio do lado direito da personagem e escadas e cabos de vassouras ao lado esquerdo, todos encostados na lateral da estrutura de


pedra que parece uma parede. Há também, entre as escadas e a mulher, um ancinho encostado na parede frontal. Ouvem-se ruídos de passos. O sexto plano é também geral com o homem ao centro vendo-se ao fundo uma parede de pedra que toma todo o fundo do plano, tendo em sua metade um banco de pedra e à esquerda do personagem um forno de pedras coberto por um teto. O homem se vira para a direita e caminha em direção a uma porta que leva para o exterior. Há dois utensílios domésticos, jarras em cerâmica, encostados no pilar que sustenta o teto próximo ao homem. Ruídos de passos do homem e canto vindo do exterior. Movimento de câmara acompanhando o homem caminhando até a porta. Corte seco para o próximo plano. No sétimo plano há um retorno para o espaço onde se encontrava a mulher com enquadramento geral e câmara fixa. Esta se encontra mais distante, à frente de um espaço aberto que lembra uma porta, revelando que a estrutura de pedras é parte de uma casa. Nesse enquadramento o arco e peças de cenário do quinto plano estão à direita da personagem. Ouve-se música assobiada enquanto a mulher caminha em direção à câmara, se dirigindo a uma mureta de pedras à sua frente. Ouve-se canto de voz masculina. Ao fundo, na porta, surgem duas mulheres, a da direita com uma criança no colo. As mulheres estão trajando vestidos longos e véus escuros e a criança está envolta em panos claros. Toda a cena se mantém em foco. O oitavo plano mostra o homem caminhando em uma estrada com muros de pedras em cada lado, sem calçamento, irregular, em plano geral, Ao lado direito da tela, há arvores secas, com céu um pouco nublado, misturando-se no horizonte com a paisagem terrestre. Corte seco para o próximo plano


No nono plano o enquadramento volta ser de close da mulher, posicionada à esquerda, com expressão triste, aparecendo em segundo plano, desfocadas, as outras duas mulheres e crianças no mesmo espaço do sétimo plano. A mulher imóvel abaixa um pouco a cabeça, fecha os olhos e reabre os olhos. Corte seco para o próximo plano. Câmara subjetiva mostrando homem caminhando na mesma estrada, ouvem-se ruídos de aves e dos passos do homem. Corte seco encerra o décimo plano. Décimo primeiro plano enquadra o rosto da mulher em big close. Movimentos leves dos olhos que ficam semicerrados enquanto ouvem-se passos. Expressão triste. Corte seco. Big close mostra a cabeça do homem por trás tendo à sua frente uma vila de casas claras em uma colina. Homem se move para a frente e o décimo segundo plano encerra em corte seco. O décimo terceiro plano começa com uma panorâmica, da esquerda para a direita, mostrando uma vila de casas claras na colina. Ouvem-se ruídos de vozes e metais. Cavalos parados e pessoas caminhando em várias direções. Sons de martelo em bigorna. Panorâmica, em plano sequência, volta para a direita e apresenta grupo de oito meninos brincando e um menino maior, vestido em roupas claras, compridas observando os demais, em plano geral. Vozes das crianças. Corte seco para próximo plano. O décimo quarto plano começa com enquadramento de close do homem mostrando parte superior do tronco e cabeça, tendo ao fundo uma casa da vila. Câmara acompanha seu movimento para a direita, mantendo enquadramento de close, enquanto este se apoia em pedra e se abaixa recostando a cabeça em pano um pouco escuro sobre a pedra. Vozes das crianças. Homem


adormece. Vozes das crianças. Corte seco para décimo quinto plano: crianças brincando em plano geral, falam e gesticulam. Corte seco para décimo sexto plano: homem adormecido com cabeça recostado e sons de martelo em bigorna. Corte seco para décimo sétimo plano: crianças brincando. Corte seco para décimo oitavo plano: close de braço e cabeça de homem recostado na pedra. Ruído das crianças, martelada, silêncio. Homem acorda e abre olhos com expressão de susto. Corte seco. No décimo nono plano, em plano geral surge uma personagem em roupa clara, cabelos cacheados e compridos, que se dirige ao homem dizendo: José. Corte seco para vigésimo plano: close do rosto da personagem de cabelos cacheados que fala: filho de Davi, não tenha receio de receber Maria tua esposa. Ao fundo veem-se casas na colina. Corte seco. O vigésimo primeiro plano enquadra José em close de ombros e cabeça. Em off, ouve-se a outra personagem: porque o que concebeu é obra do espírito santo, dará luz a um menino que dará o nome de Jesus, porque salvará de seus pecados a seu povo. Leve sorriso no rosto de José. Corte seco. Zoom-in no vigésimo segundo plano mostra a casa de Maria ao som de música sacra. Corte seco para vigésimo terceiro plano: José caminhando em direção à casa de Maria, plano geral e voz em off: uma virgem grávida. Corte para vigésimo terceiro plano: câmara na mão segue, em close das costas e cabeça, José caminhando em direção à casa de Maria. Voz em off: dará a luz a um filho, dar-lhe-ão o nome Emanuel que significa Deus com os outros. Corte seco. O vigésimo quarto plano enquadra Maria em plano geral à porta de sua casa. Mesmos objetos de cena dos planos iniciais. Música cantada. Corte seco. Close de Maria de frente no vigésimo quinto plano. Música continua. Corte


seco. Plano geral de José entrando no quintal da casa pelas escadas no vigésimo sexto plano. Som de passos. José para e olha para Maria. Corte seco. Os próximos três planos alternam com cortes secos, closes de Maria e José com leve sorriso nos rostos. Sons de pássaros. Corte seco para próxima sequência. A sequência analisada, visualmente muito bela, sempre utilizando luz natural, demonstra o uso que Pasolini faz de planos em close e planos gerais, articulados com sons e músicas que acentuam a expressividade dos atores. A sequência é um exemplo do que pode ser o cinema-poesia conforme as ideias de Buñuel e Pasolini. Complexo de definir enquanto conceito, mas facilmente reconhecível quando visto! ALBANESE, C. A obra de Pasolini. Letras, n. 30, p. 17-38, 1981. BUÑUEL, L. Cinema: instrumento de poesia. In: XAVIER, I. (org.) A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: EMBRAFILME, 1983, p. 333-337. PASOLINI, P. P. O cinema de poesia. In: Pasolini, P. P. Empirismo Herege. Lisboa: Assirio e Alvin, 1982. PEREIRA, M. Um olhar sobre o cinema de Pasolini. ALCEU, v.5, n.9, p. 14-26, 2004.


Sem poesia, AlÊm de muito fria, É vida vazia.


DOMINGO EM PAUTA

Vontade falta Preguiça em alta Nada em pauta Nesta vida incauta Fome assalta Ceia lauta Vi um astronauta Na lua tocar flauta Enquanto salta Tão peralta Parece um pernalta Me sobressalta Final. Saio da ribalta.


DESEJO

A esmo, Em ti mesmo, Me arrasto como lesmo Brilhante, Em ti bacante, Meu rastro marcante Pegajoso, Em ti meu gozo, Enfim pouso.


INFANTIL

No aeroporto Passa borboleta Em vôo solitário Leva consigo meu imaginário: Será que em seu destino Torre de controle Evita desatino? No aeroporto Fico absorto!


OUTONICES

Tempo sombrio Me desfolho Mas n達o perco o brio. Tempo soturno Me desfolho Com vento noturno. Tempo apressado Me desfolho Estou cansado. Tempo de outono Me desfolho Antes de vir sono. Vai outono vai, Deixa o inverno chegar Pra depois primaverar.


RAPIDINHA

Aos cinquenta e oito, Pensa no coito Pega outro biscoito!


NA ONDA DO MAR (VERSINHOS INGÊNUOS) Pensando em Sara!

Lua tão cheia Na onda do mar Desmancha na areia. Você tão nua Na onda do mar Qual branca lua. Lua crescente Na onda do mar Amor tão premente. Você, de repente, Na onda do mar Se faz meu presente. Lua minguante Na onda do mar Desejo gigante. Você suspirante Na onda do mar Me faz aspirante. Lua, onde? cadê? Na onda do mar Só quero você!


T達o branca, t達o nua, Na onda do mar, Em qualquer lua, Sempre na sua.


INSENSATEZ

Evanescente Efêmera lucidez Na sombra se desfez. Restou da razão Uma tênue tez Da simples nudez Crescente insensatez.


PASSEIO PÚBLICO

Vamos amor? Mariposa matinal Vende sexo banal. Agora não, flor! Responde velho Galanteador. Já é outono! Folhas amarelas Nas passarelas. No banco frio À sombra da figueira Da cena rio. Sorrio, sou rio. Aquele que passa Por quem também passa.


MEDICAÇÃO

Nostalgia Às vezes parece Nevralgia. Sem nostalgésico O jeito é apelar Para analgésico.


CRONICIDADE

Criancice, Como demora essa Meninice! Adolescente, Me creia, você é mais Que aborrecente. Inquietude, Na juventude Quer completude! Na adultice, Séria idade, mas com Muita cretinice. Serenidade, Na terceira idade Sem novidade! Enfim, senilidade! Adversa idade, do tempo Uma maldade!


SE SOUBÉSSEMOS...

Como dói a palavra, Teríamos dito O que foi mal dito? Como fere a razão, Teríamos perdido Aquela paixão? Como corta o grito, Teríamos sussurrado E não berrado? Como sangra o sarcasmo, Teríamos amado Mesmo em meio ao marasmo? Como queima a ironia, Teríamos terminado Nossa sinfonia? De tudo antes, Seria ainda como dantes No quartel d’Abrantes?


TRÊS HAIKAIS

Chuva persiste. No fio elétrico Pardal resiste. Será que se banha? Ou da imaginação É outra artimanha? Um pombo cisca Minha alma arisca Não é boa bisca.


AUTORETRATO

Não trovejo, Tampouco relampejo Apenas vejo. Não chuvisco Nem faço rabisco Pra não correr risco. Sei que medito Às vezes, tenho dito Me prefiro escrito.


EXERCÍCIO EM OS (Depois de ler Contos Breves de Apollinaire)

Óculos escuros Ócios escusos Ósculos impuros Ódios confusos Oráculos obscuros Ópios difusos Obstáculos em muros Ímpios sonâmbulos Apenas preâmbulos Em busca de fâmulos.


DESATINAÇÃO

Desatinação, minha intenção. Desafinação, destinação, Desatenção, desativação, Do corretor, tanta sugestão! Desafinado, (pré)destinado, Desatentado, em teimosação, obstinado Desativei, do corretor, impertinação. Enfim, escrita sem intervenção.


DOCE ESTRANHAMENTO (Inspirado em versos de Rodrigo Garcia Lopes)

Estranhamento De repente se torna Um contentamento. Ressentimento, Sabor amargo se esvai No esquecimento. Docemente Doce adoça Boca, coração e mente.


NOSTALGIA DO FUTURO OU DESATINADO EM UMA ESTAÇÃO TUBO CURITIBANA

Ontem foi amanhã anteontem. Hoje será ontem amanhã. Amanhã será hoje amanhã E ontem depois de amanhã. Eu? Continuo no hoje, Entre amanhã e ontem, Nostálgico do futuro Que logo será passado.


SURFE ABSTRATO

Alguns no mar surfam, Outros s贸 no concreto. Nas ondas do pensamento, Abstrato surfo eu.


DOMINGUICES (Após ler as Pequenices de Domingos Pellegrini, livro editado pela Gazeta do Povo, me ocorreram essas Dominguices - inspiradas no Domingo pelo Domingos) Um gato persa De tanto se espreguiçar Faz vice-versa. Na mesma hora, Minha atenção em fuga vai embora. Pensamento voa, Mente de vaga em vaga Divaga à toa. Nas Pequenices, De um tal Domingos, Fujo das mesmices. Das nuvens cinzas, Que o sol escondem, partem Trovões ranzinzas. Ouvi um barulho: Do gato, o ronco ou de pombo arrulho? Do vinho branco Junto com o aroma Um verso arranco.


POR QUÊS

Leio porque está escrito Ouço porque é sonoro Tateio porque é concreto Vejo porque é reflexo Penso porque é preciso Escrevo porque há palavras Mas, vivo por que mesmo?


INQUIETAÇÃO NA CAFETERIA

Na cafeteria, Será um machiatto Cura pra agonia? Precisa mente Demente, somente, Lugar clemente? Senso devasso Da vida extravia Régua e compasso? Sofrimento vão Em imensa confusão. Cadê você razão? Quem me dera Ser capaz de entender Vida quimera.


DETERMINISMO?

Quis tanto ser outros que imaginaram. Mas, s贸 posso eu ser.

VOLUNTARISMO?

Me quiseram ser t茫o diversos outros. Mas, insisto eu ser.


AMOR... DÁ UM BEIJO?

Sendo sincero, Nossa relação está abaixo de zero. Sendo ligeira, De você não aguento mais Ouvir asneira. Sendo mais franco, Nosso amor não pega Mais nem no tranco. Sendo honesta, Minha vida sem você Vai virar festa. Sendo direto, De você não sentirei Falta de afeto. Sendo cínica, Sem você não sentirei Falta de pica. Sendo bondoso, Com você na cama, não Se fica fogoso.


Sendo mais fina, Por que você não toma Estricnina? Sendo moleque, Não aguento quando você Puxa meu breque. Sendo travessa, Por sua causa, de homem Fiquei avessa. Amor... Dá um beijo... Ora... Por que você não... Calma... É só um beijo... Sendo humanos, Por que não tentamos Mais alguns anos?


MEDITABUNDO

Medita mundo Me dita mundo Medi, tรก mundo!


BESTA FERA

Urra e berra Em tanta guerra Vida se ferra!

NOSTALGIA

Seja de dia Ou pela noite, Nรฃo hรก analgesia.


CAFETERIA

Em um machiatto Encontrei consolo Pra falta de tato. No segundo machiatto, Inspiração surge Pro primeiro ato.


CONSELHO AOS JOVENS

Nossas escolhas, Às vezes brilham tanto, Não passam de bolhas. Umas eternas, Muitas efêmeras Simples esferas. Não se esqueça: De bolha que não brilha Você se despeça! Tempo sofrido Na vida se esquece Quando se cresce. Se perdeu brilho, Faça outra escolha, Vá proutro trilho.


AOS 50

Serenidade: Escolha ou destino Nessa idade? Entardecendo,

No tear do destino Vivo tecendo. Na escuridão, Repentina clareza De inflamação.



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