TEXTOS BREVES
Cr么nicas, contos e outros formatos FERNANDO ANTONIO PRADO GIMENEZ
Textos Breves
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TEXTOS BREVES: CRテ年ICAS, CONTOS E OUTROS FORMATOS
FERNANDO ANTONIO PRADO GIMENEZ 1ツェ. Ediテァテ」o Curitiba 2016
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) G491 Textos breves: crônicas, contos e outros formatos / Fernando Antonio Prado Gimenez. Curitiba: Edição do Autor, 2016. Digital. 146p: 14,8 x 21 cm ISBN 978-85-915857-2-4 1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Crônicas. 4. Poesias. I. Gimenez, Fernando Antonio Prado. II. Título.
CDD B869.93
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Para Sara.
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Sem destino certo Busco algo incerto Não sei se está perto Ora, não me aperto Pra vida desperto.
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO: UM MIMEÓGRAFO VIRTUAL
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DUAS LÁGRIMAS
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ESCRIBA EM DOSE DUPLA
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ENTRE QUATRO PAREDES EM 2116
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DEZ REAIS
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UMA CONVERSA COM DEUS
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QUASE FIM DE ANO
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UM INSTANTE
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MEMÓRIAS: SOBRE CACHORROS E UMA BEIRA DE RIO
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UM CONTO DE NATAL
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UM GALHO
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VIAJAR DE ÔNIBUS ESTIMULA A ESCRITA?
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O QUE NÓS SOMOS?
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A GORDA DO TARÔ DE MARSELHA
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O GPS DO SEXO
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A GUARDIÃ DA MEMÓRIA E O DEUS DO TEMPO
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CORAÇÃO PASSAGEIRO
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NO HOSPITAL
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QUANDO CHOREI AO VER A BELEZA
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CRACA DE LEITE
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SOLIDÃO E ESPERANÇA EM MEDIANERAS DE GUSTAVO TARETTO
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A MENINA DE OLHOS AZUIS
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O ACOMPANHANTE SURDO MUDO
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DESMEMÓRIA
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ROTINA
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PONTO DE VISTA E AMOR: EU OS POSSUO?
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A BERMUDA DO LONDRINENSE
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CINEMA, FOTOGRAFIA E SUSTENTABILIDADE: DISTOPIAS SUAVES
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NO AVIÃO: BREVE TEXTO SOBRE O EFÊMERO
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O PROTÉTICO QUE FAZIA PERMUTA
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PRAIA
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FELICIDADE
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TRÊS MENINOS
84
PRÓXIMA PARADA
86
REUNIÃO
88
AUTORRETRATO
90
PIPOCA NO CINEMA
91
TRAMPOLIM
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DOMINGO DE CHUVA
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UM CONVERTIDO
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NO INTER 2
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JULIANDRA
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UMA SURPRESA EM 2027
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ANGÚSTIA
108
PERGUNTA ESTRANHA
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INSPIRAÇÃO, OU SOBRE A ESPERANÇA
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MENOS INFINITO
113
VOCÊ NÃO GOSTA DE DOCE, NÃO É?
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SOBRE A AMIZADE
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HISTÓRIAS DE DONA KILDA
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NO CONSULTÓRIO? NO HIPÓDROMO? ONDE?
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AMOR ANÔNIMO
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RESISTIR. QUEM HÁ DE?
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O ATIVISTA CORDIAL
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ALGUMA NOVIDADE? (DIÁLOGO SURREAL)
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VIDA QUE ANDA... DE ÔNIBUS
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A MEIO CAMINHO
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EM TRÂNSITO
134
TRÊS HAIKAIS
141
SURFE ABSTRATO
142
POESIA PROSAICA
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ESCAMBO EMOCIONAL (UM POUCO SURREAL)
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AUTORRETRATO
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NA VIDA
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APRESENTAÇÃO: UM MIMEÓGRAFO VIRTUAL este livro junto textos breves. Da escrita acadêmica, prática que me acompanha há mais de três décadas, me encaminho para outros formatos. Homem de poucas palavras, me encanto com o texto breve. Sejam cronistas, poetas ou contistas, admiro aqueles que conseguem, em poucas linhas, comunicar, emocionar, instigar e fazer pensar. No texto breve encontro sempre o inesperado: a provocação do riso, o brotar da lágrima, o limiar da dor, o estímulo da alegria, a angústia do medo, o atiçamento da curiosidade e o gozo do prazer. Quando eu tinha mais ou menos um terço de minha idade atual, 59 anos, ou seja, entre os 19 e 20 anos, comprei do Domingos Pellegrini Júnior um livreto de contos que ele estava vendendo nas imediações do teatro do Instituto Filadélfia de Londrina. Era um livro produzido pelo próprio. Era um livro de contos. Naquela época, ele ainda não era um escritor tão conhecido e estava comercializando seu livro que surgira por meio do uso de um mimeógrafo. Ainda não existiam os fotocopiadoras, ou eram pouco usadas e caras. Acho que eu tinha ido assistir a uma peça de teatro. Não me lembro qual! Mas, Pellegrini aproveitou-se do ajuntamento das pessoas para vender seu livro mimeografado. Ele, o livro, deve estar perdido em algum lugar de minhas estantes. Lembrei-me dessa história hoje. Quase quatro décadas depois, estou eu fazendo algo parecido. Só que agora, uso o mimeógrafo virtual. Trabalho no computador, salvo o arquivo em formato pdf e o disponibilizo em alguma estante virtual. Não dependo do ajuntamento físico de ninguém para distribuir o meu livro. As pessoas estão, também, virtualmente presentes nas redes sociais onde você
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deve ter encontrado o link para este livro. Se você quiser fará uma cópia impressa do livro ou baixará o arquivo para seu computador. Isso é o que chamo de mimeógrafo virtual. Não preciso nem carregar um punhado de exemplares embaixo do braço para entregar aos potenciais leitores. Fazendo isso, começo a experimentar uma forma alternativa de distribuir meus escritos a quem se dispuser, eventualmente, a ler. Decidi abandonar o papel como suporte para meus escritos. A partir de agora, qualquer livro meu será sempre digital. Este é o primeiro em que faço tudo. Desde a escrita dos textos, a formatação e edição do livro, a escolha da foto da capa, que fui eu mesmo que bati. Aliás, a foto retrata uma paisagem do Passeio Público em Curitiba feita em uma manhã qualquer. Pareceu-me uma boa imagemmetáfora para muitos de meus textos. Muitos são reflexos de vivências por que passei. Assim como na foto, na memória também os reflexos se confundem. Isto impacta os textos. Até mesmo a solicitação do ISBN do livro fui eu quem fez. É uma produção independente. Se eu fosse você, tentaria isso um dia. Graças às tecnologias atuais posso publicar um livro e não depender da decisão de nenhum editor. Além disso, como o livro não é vendido, qualquer pessoa que quiser lê-lo basta encontrá-lo em algum espaço desse mundo virtual que é cada vez mais presente em nossas vidas. Não precisa nem “pôr a mão no bolso” para isso. Afinal de contas, sou apenas um aprendiz dessa arte da escrita breve. Não ousaria pedir a ninguém “alguns trocados” por um conjunto de textos breves. Ficarei feliz se você dedicar algum tempo à leitura deles. E, como dizem os artistas: se gostar recomende aos amigos, se não gostar recomende aos inimigos. Vou parando por aqui. Curitiba, 23 de maio de 2016. Fernando 11
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DUAS LÁGRIMAS o ônibus a caminho de Londrina. É um parador! De Curitiba, já passou por Ponta Grossa, Imbaú e Ortigueira. Não sei qual será a próxima parada. Minha leitura de bordo já concluí. No sistema de vídeo interno, um filme que já assisti. Sono já se foi após uma hora de viagem entre Ponta Grossa e Imbaú. Em Ortigueira, ouço a conversa de um passageiro sentado em algum lugar mais ao fundo. Fala ao celular. Ao final, se despedindo, descubro quem está no outro lado: _ Filha, dê um beijo em sua mãe. Diga que eu amo ela. Ela pode acreditar. A frase de despedida me sugere um casal em crise. Dá sentido à primeira fala dele: _ Em Imbaú o celular estava sem sinal. Aqui acabou de tocar. Vou tentar ver uma placa para saber onde estou. _ Em Ortigueira. Alguém diz a ele. Imagino que tenha sido cobrado por não atender o telefone antes. Deve ter sido a mulher, pois durante o diálogo houve troca de interlocutor. Imagino a cena. Mulher irritada passa o telefone para a filha: _.Tó. Conversa com seu pai. Esse traste! O tom de voz desse passageiro, cujo rosto não enxergo, desperta minha emoção. Esta se faz acompanhar da imaginação. Sinto tristeza na forma como disse as últimas palavras. 12
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Enxergo uma lágrima correr pela face do pai. Do outro lado da linha - sei que celular não tem linha, mas a poesia exige essa frase - outra lágrima deixa sua marca em um rosto de menina. Uma porta bate com força. Se ouve um palavrão.
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ESCRIBA EM DOSE DUPLA oi em 1992, depois de assistir a Orlando, estrelado por Tilda Swinton, que lhe ocorrera a ideia. Neste filme, a personagem vivida pela atriz é condenada a viver eternamente jovem. Ao longo dos séculos tem diferentes gêneros. A ideia que lhe acompanhou durante anos era escrever um romance em que não se pudesse distinguir o gênero da personagem principal. Era uma ideia audaciosa. Começara praticando em pequenos contos, mas na língua portuguesa, os adjetivos são traiçoeiros. Em qualquer momento, se não prestasse atenção, revelava o gênero pelo uso de um adjetivo. Poucos adjetivos são neutros em português, como por exemplo, leve e suave. Após alguns exercícios, verificara que qualquer adjetivo podia ser transformado em um substantivo acompanhado de algum outro qualificativo. Ao invés de muito belo, usaria algo como tinha uma rara beleza. Em inglês seria muito mais fácil! Mas, quem sabe algum tradutor fizesse isso no futuro. Tinha ambição de conhecer a fama. Ultimamente, havia descoberto o sistema de armazenamento de arquivos nas nuvens, o cloud computing. Abandonara o uso dos pendrives. Vinha escrevendo o romance há alguns dias, quando notou algo estranho. Revendo parte da escrita do dia anterior, encontrou este trecho: "Naquela tarde, a caminho de casa, sentia-se vaidosa do que conseguira fazer... Será que deixara passar este adjetivo no feminino? Refez o texto: 14
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"Naquela tarde, a caminho de casa, com muita vaidade do que conseguira fazer..." Findo o trabalho do dia, salvou o arquivo e foi jantar com um casal de amigos. Ao retomar o texto, dias depois, mais um adjetivo que não lembrava de ter usado: "Estava se sentindo desanimado naqueles dias de inverno em..." Fez a correção: "Estava se sentindo com pouco ânimo naqueles dias de inverno em..." Isto passou a ocorrer todos os dias. Por mais atenção que dedicasse à escrita, ao reler seu trabalho no dia seguinte, encontrava algum adjetivo revelador de gênero. Certo dia, resolveu fazer um teste. Procurou um de seus antigos pendrives e, após salvar o trabalho do dia nas nuvens, salvou também no pendrive. No dia seguinte, ao comparar os dois arquivos, viu que havia uma diferença. Em um estava escrito "se sentia muito cansado..., enquanto que no outro, o do pendrive, estava o que realmente escrevera, "tinha um enorme cansaço...". Alguém estava alterando seu texto? Quem poderia ser? Nesse dia, teve uma ideia brilhante. Ao concluir seu esforço de escrita à noite, antes de ir dormir, ligou a câmara do computador e a deixou funcionando em uma janela minimizada do computador. Na manhã seguinte, o mistério foi resolvido. Ao assistir o arquivo de vídeo, uma surpresa lhe deixou de boca aberta. Era a pessoa na tela do computador! Descobriu que tinha sonambulismo! A dúvida que ficou? 15
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Por que, enquanto dormia, preferia os adjetivos? (Um pequeno conto, inspirado em O homem duplicado de Saramago)
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ENTRE QUATRO PAREDES EM 2116 cordou com pouco ânimo naquela manhã fria no inverno curitibano de 2116. O que vira com seu holovisor portátil na noite anterior lhe deixara muito triste. No trecho que holovira, conflitos violentos em todas as regiões do planeta evidenciavam a impossibilidade do convívio entre os humanos. A tecnologia da holovisão evoluíra a partir do cinema 3D que se aperfeiçoou muito no começo do século 21. Já não era mais preciso usar óculos especiais para simular a realidade por meio de imagens tridimensionais. Em 100 anos, uma rede mundial de holocamaras foi instalada em todas as regiões habitadas da Terra. Estas captavam e transmitiam, em tempo real, tudo o que acontecia fora da proteção de quatro paredes. Era a globalização da tecnologia que surgira com o apoio de satélites ao redor da Terra que mostravam, nos primeiros anos do século 21, detalhes das ruas e estradas espalhadas pelo mundo que eram visualizadas nos diferentes instrumentos de informação e comunicação. A junção dessas tecnologias e seu aperfeiçoamento permitiu que surgisse a Holovision Earth Network, fusão de algumas empresas gigantescas, que havia se tornado mais poderosa que os governos dos países e passara a dominar as formas de comunicação entre os humanos. A comunicação global se tornara um negócio regulado e operado pelo mercado. Uma instituição que tinha um caráter divino para uma parcela cada vez maior da humanidade. A tecnologia da holovisão, no início, tinha um módulo de teletransporte. Esta surgiu como um novo sistema de vigilância que dava às forças policiais uma visão mais detalhada e abrangente dos espaços públicos. O módulo de teletransporte permitia que os 17
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agentes de segurança fossem imediatamente movidos para os locais onde sua ação fosse necessária. Mas, algumas dificuldades tornaram inviável este modo de operação. Os seres humanos, quando eram teletransportados, ficavam atordoados por cinco minutos. Este atordoamento fazia com que a ação de repressão a conflitos se tornasse ineficaz. Os agentes de segurança eram facilmente dominados pelas pessoas envolvidas em situações conflituosas, às vezes, com consequências drásticas para sua integridade física. Assim, o teletransporte foi abandonado, mas passou-se a utilizar a holovisão reversa em questões de segurança. Holoimagens de agentes de segurança eram enviadas para os espaços onde os conflitos ocorriam. Por incrível que pareça, isto fazia com que os conflitos cessassem. Mas, era um efeito temporário. Tão logo as pessoas percebiam que os agentes de segurança eram holoimagens, estes passavam a ser ignorados. Assim, a Holovision Earth Network acabou deixando o mercado da segurança pública e voltou-se para o mercado global da informação e comunicação. Essa tecnologia levou à bancarrota as antigas redes de televisão que ainda ofereciam programas de notícias, documentários, filmes e outras formas de comunicação por imagens. Com os holovisores a humanidade tinha acesso a qualquer parte do mundo em tempo real e em três dimensões. A holovisão, também, exterminou a indústria do turismo. Não havia mais necessidade de viajar para conhecer lugares. Nos tempos da antiga internet isto já estava acontecendo. Era possível visitar muitos lugares por meio da internet, só que esta não era tridimensional. Agora, além de ser tridimensional, a holovisão trazia o som real dos acontecimentos conforme eles iam se desenrolando. Mas, por que tanto desânimo? Naquela fria manhã de Curitiba, se dera conta de que a humanidade falhara. Os humanos eram cada vez mais longevos 18
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graças aos avanços da medicina preventiva e curativa, mas não se conseguira alcançar a paz entre os humanos. Na essência continuávamos a ser um bando de guerreiros. Qualquer diferença de opinião era motivo de briga. As tecnologias de informação e comunicação que surgiram ao longo de mais de 300 anos permitiram que os humanos se informassem cada vez mais, mas não levaram à verdadeira comunicação, os diferentes agrupamentos humanos não se entendiam. A convivência era impossível. Só lhe restava desligar o holovisor e, entre quatro paredes, esconder-se da holovisão e dos humanos.
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DEZ REAIS genor começa seu dia como sempre. A mesma rotina. Uma xícara de café com leite e um pãozinho amanhecido. Mora no centro de Curitiba, próximo ao prédio histórico da UFPR, em uma quitinete com poucos móveis. Só o que cabe: uma pequena mesa com dois banquinhos, ao lado de um sofá velho com três lugares. Travesseiro, lençol e coberta estão desfeitos sobre o sofá. No criado mudo, uma luminária antiga e alguns livros esparramados. Um livro entreaberto no chão, perto de onde está o travesseiro. Não há porta-retratos. Paredes nuas, mas em uma delas há estantes com centenas de livros de bolsos. Não precisa de muito mais. Agenor coloca xícara, pires, garfo e faca na pia e margarina na geladeira. Café solúvel e adoçante vão para pequeno móvel com uma gaveta e porta, branco, onde ficam mantimentos, ao lado de uma geladeira tipo frigobar, branca e amarelada do tempo. Em cima da geladeira, fruteira de vime com bananas, laranjas e limões. Agenor sai de casa. Um sábado pela manhã. Mas poderia ser qualquer dia. Aposentado, já não faz diferença entre dia útil e final de semana. É sempre a mesma coisa! Sua primeira parada é na farmácia. Sobe na balança e confere seu peso, sempre os mesmos 70 quilos. Há mais de uma década. Uma atendente lhe cumprimenta: _ Bom dia. Em que posso ajudar? _ Bom dia. Tem genérico de Viagra? _ De 20 ou 50 miligramas? _ 50. Caixa com quatro. Dá para um mês. Um por semana. 20
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Sorrindo a moça pergunta: _ Vai pagar no dinheiro ou cartão? _ Com cartão. Tem desconto para aposentado? _ Não, mas posso parcelar em duas vezes. _ Tá bom. Da farmácia, vai até a sapataria. Precisa engraxar dois pares de sapato. O sapateiro está sentado em uma banqueta na porta da sapataria. Barrigudo, barbudo e cabeludo, lembra um Papai Noel, mas não é a época nem o lugar adequado. Tem cabelos ruivos, macacão cinza sujo de graxa, palito de dente na boca. _ Tenho dois pares para engraxar. Quanto você cobra? _ Cinco reais cada. _ Puxa! Tá caro! _ Tá caro não. O senhor que ganha pouco. Desiste de engraxar os sapatos e resolve ir ao Passeio Público. Na frente do lago, junto ao espaço reservado aos pedalinhos, vê um pipoqueiro: _ Quanto é a pipoca? _ Quatro reais. Quer doce ou salgada? _ Salgada. Sou diabético. Agenor tira dinheiro do bolso da calça. Uma nota de dez e duas de dois reais. Pega saquinho de pipoca. Dá dinheiro para o pipoqueiro. Guarda os dez reais no bolso da camisa. Olha para a direita e vê uma mulher de minissaia vermelha, botas pretas até os joelhos. Loura, 21
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batom vermelho forte, blusa branca de botões entreabertos. Seios fartos à mostra em sutiã vermelho. Passando por ela, ouve: _ Oi amor. Vamos até a torre que faço oral em você. _ Quanto? _ Dez reais. Com a mão no bolso, Agenor lembra dos dez reais que guardara no bolso da camisa. _ Só uma chupeta? _ Por delão você quer mais o que? _ Com dez reais dá pra engraxar dois pares de sapato. Agenor dá as costas para a prostituta e sai andando devagar. Volta para casa. _ Velho maluco! Diz a mulher. Antes, passa pelo açougue. _ Fala, seu Agenor. _ Tudo bem, Osvaldo? _ Tranquilo. O que vai ser hoje? _ Os três bifinhos de sempre. _ Contrafilé ou patinho? _ Patinho, né, Osvaldo! Mais barato. _ Que mais? _ Por hoje é só. 22
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_ Dez reais seu Agenor. Agenor põe a mão no bolso para pegar o dinheiro. Mas, muda de ideia. _ Osvaldo, posso pagar no próximo sábado? _ Tudo bem. No sábado o senhor acerta. Depois do almoço resolve ir a um dos sebos perto de onde mora. Tinha feito uma encomenda e queria ver se encontraram o livro. Mais um para sua coleção. _ Boa tarde professor. _ Oi, Capitu. Tem alguma coisa para mim? _ O Dalton que o senhor procurava. _ A Gorda do Tikri bar? _ Esse mesmo, quase novo. _ Quanto? _ Dez reais também. Mesmo preço do último. _ Vou levar. Posso pagar depois? _ Claro professor. Capitu se vira de costas e aproxima-se da estante. Pega livro que estava separado dos demais. Agenor não consegue não olhar para as pernas de Capitu. Dali vai para um dos bares na Presidente Faria. Precisa tomar alguma coisa e reler o livro que tanto procurava. No bar, senta-se em mesa perto da saída para a calçada. Vê uma negra, bem gorda, sentada em um dos bancos junto ao balcão do bar. Ela fuma. Não há outros clientes. Acompanha em voz baixa bolero cantado por Alcione. O garçom se aproxima. 23
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_ Uma cerveja, Dorival. Não esquece o amendoinzinho. _ Dalton Trevisan de novo? _ Acabei de comprar. _ Ontem vi ele no Passeio Público. _ Devia estar atrás de inspiração. Agenor pega caixa de remédios do bolso. Abre e tira um comprimido. Toma com um copo de cerveja. De um gole só. Enche o copo novamente. Começa a ler. Dorival e a gorda conversam no balcão. Alcione canta outro bolero. _ Dorival, traz mais uma. _ Às vezes fico em dúvida. Isso é vida mesmo? Ou só estamos na mente do escriba? _ Não entendi seu Agenor. _ Deixa pra lá. Depois de algum tempo, pede a conta. _ Dez reais. Não quer pendurar? _ Sim. _ Deixo anotado então. _ Estou só com dez reais e tenho que terminar um negócio no Passeio Público. _ Sem problemas. Outro dia o senhor paga. _ Já tomei o azulzinho. Me sinto meio daltoniano hoje. _ Não entendi, seu Agenor. 24
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_ Deixa pra lá. Até mais ver. _ Inté, seu Agenor. Agenor caminha em direção à calçada. Vira à direita no sentido do Passeio Público. Sorri.
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UMA CONVERSA COM DEUS cordou com a brisa movimentando levemente a rede. Nela adormecera embalado por uma dúvida. Como Deus deixara vir ao mundo uma criança cega e surda? Vira esta criança sorrir ao ser amparada por uma professora em uma escola. Sorria essa criança? Ou era uma simples reação muscular a um estímulo tátil? Acordou com mais uma dúvida: teria sido um sonho? O diálogo ainda estava vivo em sua memória: _ Vi que queria falar comigo? _ Quem é você? _ Aquele que tem muitos nomes. _ Como? _ Sou Deus, criatura! Não me reconhece? _ Como poderia? É a primeira vez que nos encontramos! _ É verdade. _ Então, o que você quer? _ É ao contrário. _ O que? _ Essa fala é minha. Eu é que pergunto. O que você quer? Por que me chamou? _ Como poderia ter lhe chamado? Nunca acreditei em sua existência! 26
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_ Quando viu aquele menino que sorria, mesmo nascendo cego e surdo, você me chamou. _ Eu! Imagina! Não estou louco! Quer dizer acho que não. Apesar dessa conversa de maluco! _ Pois é criatura! Quando você se perguntou, se Deus existe, como é que deixou essa criança nascer, achei que queria uma resposta. _ Eu não! Era só uma pergunta retórica. Mas, já que está aqui, fala. _ Então, é um pouco constrangedor. _ Como constrangedor? Para Deus? _ Pois é. Mesmo sendo Deus, tem coisas que eu não sei. _ Para com isso. Tá me gozando? _ Não imagina. É constrangedor, mas é muito simples. _ Então manda. _ Criatura, eu sou uma criação humana. _ Como assim? _ Pois é. O criador é uma criatura. Só posso saber o que meus criadores sabem. Me desculpe, não sei a resposta. Mas, sei como vocês chamam coisas como o sorriso desse menino. _ Como nós chamamos? _ Milagre. Não tem explicação. _ E você me acorda, pra me dizer isso? _ Não te acordei. Bateu uma leve brisa. 27
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QUASE FIM DE ANO odo ano era sempre a mesma coisa. Começava a se agoniar com o amigo secreto entre os colegas do escritório. Achava ridículas as mensagens que recebia. Não mandava nenhuma, mas sabia que na hora da revelação não faltariam admoestações: _ Mais uma vez você não mandou mensagens. _ A gente até consegue adivinhar quem é seu amigo secreto. Quem não recebeu mensagem nenhuma. _ Pô, nem dessa vez que o amigo secreto foi virtual você mandou mensagem. Logo, a troca de presentes continuava e o assunto mudava. Mais uma vez, em cinco anos seguidos, um livro de presente. O bestseller do ano. Além de fingir surpresa e contentamento, tinha que manifestar que já não podia esperar pela leitura. Tanto fingimento lhe dava mais azia que a sidra barata que era servida meio morna. Fazer o quê? Precisava do emprego! O presente já tinha destino certo: a tuboteca na estação central. Ainda bem que neste ano não havia dedicatória. Nos anos anteriores arrancara a página com aquelas frases que aumentavam sua azia: _ Que essa história lhe inspire no novo ano! _ Para que você possa curtir bem suas férias. _ Achei que esta história é a sua cara. Mas, houve um ano que a dedicatória foi ousada: 28
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_ Queria ver este livro no criado mudo junto à sua cama com você. Quem sabe na virada do ano. Enrubesceu e quase não conseguiu agradecer. Ficou o restante da festa fugindo de qualquer momento a sós com aquela pessoa. Sua timidez era avassaladora. Se arrastava para os cantos menos iluminados do salão. Praticava a solidão no meio da multidão. Depois da festa antes do Natal, no dia seguinte começavam as férias coletivas. 20 dias sem contato com o pessoal da empresa. No dia 31, à noite, na festinha da família, esperava o momento mais angustiante: o sorteio da mega sena da virada. Seria daquela vez? Vida besta! Só o acaso para mudá-la. Não aguentava mais o discurso sobre meritocracia do chefe e as cobranças em casa. Mais uma vez, não foi. _ Come mais um pedaço do pernil. Alguém diz.
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UM INSTANTE ndava com a sensibilidade à flor da pele. Bastava um instante para que um sorriso ou uma lágrima brotasse. Podia ser o espreguiçar do gato, uma voz na tv, uma bola jogada, o choro de uma criança. Qualquer coisa. A seu lado, as pessoas não entendiam. Por que essa lágrima? Esse sorriso de onde vem? E quando vinha um sorriso junto com uma lágrima, era inexplicável. Quer dizer, podia ter uma explicação. Mas, quando alguém lhe perguntava, a resposta era sempre a mesma: _ Você pode até entender, mas não vai compreender. O ouvinte, quase sempre, ficava boquiaberto. Mas, a conversa parava por aí. Qualquer pergunta a mais, tinha como resposta apenas o silêncio acompanhado de uma lágrima ou de um sorriso. Ou de ambos. Aos poucos, todos se afastaram. Era constrangedor. O que não sabiam era que, nos últimos meses, sua vida se transformara muito. De repente, em um exame médico de rotina, uma notícia ruim: tinha uma doença rara. Em alguns meses, estaria sem visão e audição. Essa notícia foi comunicada friamente por um profissional da saúde que lhe dissera: _ A qualquer momento, em um instante, você perderá a visão e a audição. Não há o que fazer. Não há o que tomar. Passar bem! Qualquer cena e qualquer som eram emotivamente recebidos. Pela alegria de ainda serem vistos ou ouvidos. Pelo medo de que fosse o último.
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Era assim, que entre lágrimas e sorrisos, aguardava o instante em que já não veria ou ouviria. Imaginava que seria o penúltimo. Planejava o último, mas talvez não tivesse coragem. No fundo, assim como na caixa de Pandora, tinha a esperança que na memória recriaria as imagens e os sons que a todo momento poderiam ser os últimos. Sem visão ou audição, se refugiaria no mundo da imaginação.
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MEMÓRIAS: SOBRE CACHORROS E UMA BEIRA DE RIO lgumas memórias são recorrentes. Contudo, com o passar do tempo parecem que elas vão esvanecendo. A imagem que me ocorre é que elas parecem estar armazenadas em cartões parecidos com aqueles que são usados em testes de visão para detectar daltonismo. Ao longo dos dias e anos, elas vão se misturando com os pontos coloridos de todas as lembranças. Se tornam contornos cada vez mais difíceis de visualizar em uma miríade de pontos de cores da vida. Parece que vou desenvolvendo um daltonismo das lembranças, em que elas além de se esconderem aos poucos, também se parecem com sonhos. Terão acontecido mesmo? Qualquer que seja a resposta, sonho ou lembrança, me constituem enquanto humano. São inescapáveis, mesmo quando borradas. Nesses dias, tenho lembrado dos cães que povoaram minha infância e adolescência. Foram muitos, mas são dois que ainda se sobressaem com mais nitidez em meus cartões de memória: Pipoca e Fox. Nenhum dos dois com raças claramente definidas. Mestiços que deixaram histórias. O primeiro, Pipoca, era um cãozinho pequeno, branco com manchas marrons muito claras. Tinha um defeito no lábio inferior que passava a ideia de estar sempre sorrindo. Os dentes, sempre à mostra, não transmitiam a ideia do rosnar agressivo. Pelo contrário, era um sorriso meio torto. Às vezes parecia até irônico. Tenho duas memórias do Pipoca. Adorava balas e antes de atravessar a rua olhava para os dois lados. Morávamos, meus pais, irmãos e eu, na rua Paranaguá em frente ao Supermercado Gimenez que ficava no número 1120, na esquina com Goiás. Todo dia, Pipoca 32
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fazia seu ritual de atravessar a rua com segurança, entrava no supermercado e ficava pulando à beira de um dos caixas, até que alguma das moças lhe desse uma bala. Adorava as balas Rin-tin-tin! Mas, um dia errou o cálculo, ou se distraiu atravessando a rua e foi atropelado. Nunca mais pode saborear as balas Rin-tin-tin. Fox, ao contrário, era um cachorro maior e mais agressivo. Não ia até o supermercado. Ficava no quintal de nossa casa, que em uma das laterais tinha uma rampa não muito íngreme, calçada, com uns quinze metros de comprimento que levava do portão até a garagem. O portão ficava sempre fechado. Mas, de vez em quando, alguém saía com o carro e esquecia o portão aberto. Não poucas vezes, quando o portão estava aberto, Dona Ana estava indo para o supermercado com seu pequinês. Nesse momento, Fox saía em disparada da garagem e agarrava o pequinês pela nuca e o chacoalhava com muita força. Era um caçador! Nesses momentos, no meio da gritaria, eu, que era um dos poucos que Fox respeitava, corria até a cena e tinha que bater muito nele para que soltasse a presa. Um dia meu pai deu Fox para o bananeiro que o levou para o sítio. Fox escapou e exterminou as aves de um galinheiro vizinho. Seu fim não foi muito agradável! Por fim, chego ao rio Tibagi que vive em minha memória como uma parede d'água escura, quase marrom. Me lembro que estava com alguns de meus tios maternos que foram pescar à beira do Tibagi que fica não muito distante de Londrina. Havia outras crianças, provavelmente meus irmãos e primos. De repente, passando por meus tios, escorrego na beira do Tibagi e vou para o fundo do rio. Me lembro de ter uma visão turva e úmida. Logo depois, um dos meus tios, que na minha memória foi o tio João, pulou atrás de mim e me tirou da água. Terá sido um sonho?
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Eu acho que não, mas uma vez perguntei a meus tios, e ninguém se lembrou. Mas, é uma lembrança que me constitui fortemente. Quando mergulho em águas escuras sinto um desconforto muito grande. Esses são três cartões de minha memória que vão se reconfigurando com as cores da vida. Quando meu daltonismo memorial se acentuar, terei esse registro para guiar-me e localizar seus traços no tempo.
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UM CONTO DE NATAL atal acordou pela manhã. Eram quase sete horas. Um pouco assustado, pensou que se atrasara. Mas, lembrou-se que não tinha que ir para o trabalho. Era seu dia de folga. Era folga pra quase todo mundo, mesmos os não cristãos. Era dia de Natal. Quando era criança, ele não entendia direito por que tinha um dia do ano que era dele. Os pais eram ateus ortodoxos. Não aceitavam a ideia de celebrar um dia cristão. Era uma data sem sentido para eles. Além do mais, criticavam muito os seus vizinhos do pequeno vilarejo, todos cristãos, que transformaram a festa religiosa em uma data comercial sem igual. Era a época do ano em que o comércio mais faturava. Haviam estabelecido o dia de Natal como um dia em que todos se presenteavam. Nesses dias, mesmo os mais pessimistas no comércio, em épocas de crise, botavam fé, não no sentido religioso, de que as vendas seriam melhores do que no ano anterior. Eram sempre melhores! Mas voltando ao Natal, na sua infância, os pais tentaram deixá-lo fora dessas festividades. Quando ele chegava em casa falando de Natal, os pais diziam: _ Seu dia está chegando, homenzinho. Vamos ficar em casa só nos três. Faremos tudo que você quiser no dia do Natal. E não saíam durante este dia. Tentavam evitar que Natal se contagiasse com o clima comercial, quer dizer natalino daqueles dias. Natal achava estranho não poder sair de casa naqueles dias. Mas, na companhia dos pais, em meio a tantas brincadeiras, o tempo voava e o dia do Natal era muito feliz. 35
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Seus pais conseguiram fazer isso durante algum tempo. Natal foi crescendo e teve que ir para a escola. Nesse ano, quase ao final das aulas, a professora fez uma atividade em sala sobre o dia de Natal. Natal se espantou: _ Nossa professora, meus pais lhe contaram sobre meu dia? Ele ficou transtornado quando, no meio das risadas de todos, a professora lhe deu uma bronca: _ Não é o seu dia engraçadinho! Vai lá pro canto e fica de castigo. Quando voltou para casa, Natal chorando muito contou o que acontecera com ele. Os pais se explicaram. Natal passou a exigir que os pais lhe recompensassem pelos presentes não dados. A dor do filho foi tão intensa que os pais tiveram um colapso mental e foram internados em um hospício pelo resto da vida. Natal foi viver no orfanato das irmãs de caridade. Lá ficou até os 18 anos, quando um carpinteiro disse para as irmãs que precisava de um aprendiz. As irmãs pensaram que já estava na hora de Natal aprender um ofício. O carpinteiro se chamava José e sua mulher Maria. Foi no dia de Natal, que Natal se mudou para a casa de Maria e José. Lá aprendeu seu ofício e em gratidão pela acolhida que teve no orfanato, ele passou a distribuir brinquedos de madeira para as crianças do orfanato no dia de Natal. No meio da tarde, ele chegava com um saco bem repleto de carrinhos e bonecos de madeira e, batendo à porta, gritava: _ Hoje é o dia do Natal! Ninguém entendia porque ele não falava hoje é o dia de Natal. Só eu. E agora você.
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UM GALHO oi ontem de tarde. Caminhava em busca de abrigo, pois a chuva se anunciava como só ela se anuncia. Vinha acompanhada do vento. Do mormaço também. Seria abrupta e curta. Chuva de verão ao final da primavera. Apressada! Eu também. De repente um golpe na testa. Veio de cima. Silencioso. Mas, rápido como um raio. Entre tantos lugares, eu tinha que estar ali naquele momento. Atingido por um galho de árvore. Não grande, ainda bem. Veloz, deixou sua marca na testa: pequeno arranhão. Em casa, ouço um conselho: _ Você precisa tomar cuidado. Como segui-lo? Andar pela rua olhando para cima? Talvez uma benzedeira! Ou melhor, uma cartomante. Curitiba parece ser um bom mercado para adivinhações. Me impressiona a quantidade de cartazes que vejo em postes e muros. Será que alguma poderá me indicar caminhos seguros? Sem galhos sorrateiros!
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VIAJAR DE ÔNIBUS ESTIMULA A ESCRITA? ais uma vez, aproveito o tempo em uma viagem de ônibus para praticar a escrita. Vício? É provável que sim, mas creio que seja um vício virtuoso. Um virtício! Oximoro cujo único mal pode ser uma futura lesão por esforço repetitivo, mas que, entre outros, traz o benefício do exercício da razão temperada pela emoção. Viajo para Florianópolis. Além de reencontrar uma amiga que não vejo há demasiado tempo, Maria José Barbosa de Souza, participarei de uma sessão de defesa pública de dissertação de mestrado na UNIVALI. Junção do útil ao agradável! O momento sugere uma retrospectiva e manifesto de intenções. 2015 se aproxima do fim. Mas, resisto à tentação da mesmice. Do que falar então? Na semana passada encerrei uma disciplina no doutorado em administração da UFPR. Cinco jovens, uma moça e quatro rapazes (Thálita Orsiolli, Rodrigo Morais Silva, Luiz Aurélio Virtuoso, Eduardo De Carli e Paulo Henrique Preto), compartilharam seu tempo de estudo comigo na exploração da literatura sobre empreendedorismo, inovação e sustentabilidade. Ao longo de quinze encontros fomos dialogando sobre as leituras de cada um, em encontros em que a liberdade e a ordem se fizeram sempre presentes. Mais um oximoro? Libordem! Foi Rodrigo quem manifestou essa impressão em uma mensagem de correio eletrônico. Faço uso dela para cunhar esse neologismo. No meio do caminho, emerge a ideia de um texto: vamos avaliar o que a academia brasileira publicou sobre empreendedorismo sustentável? Chegamos ao último encontro com o texto quase pronto. 38
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Uma semana de interações virtuais, coletivamente, leva à finalização do texto. Imediatamente submetido a uma revista internacional que aceita textos em português com seis autores! Imagino que esta notícia deixe as chefias satisfeitas! Mas, essa satisfação é a que menos me interessa. Quero falar de outra. Uma que se aproxima, já que estudamos empreendedorismo, da ideia de necessidade de realização de McClelland. A escrita para mim é uma necessidade de realização. Escrevo porque quero, não porque mandam. Escrevo porque preciso. Não de pontos no Qualis, mas da emoção da busca da beleza no conhecimento. Escrevo porque faz parte de meu ser! Enfim, no meio da viagem, torno público meu agradecimento emocionado a esses jovens que se juntaram a mim nessa jornada maravilhosa da leitura, reflexão e escrita. Um presente de Natal inesquecível.
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O QUE NÓS SOMOS? sta pergunta me foi feita há vinte e quatro anos atrás. Veio de Paloma essa indagação que, a princípio, me assustou. Naqueles dias já praticávamos nossa conversação bilíngue. Estávamos na Inglaterra para meu doutoramento e de Telma. Paloma e Fernanda falavam em inglês e eu respondia em português. As duas foram primeiramente alfabetizadas em inglês. Me indagou ela: _ Daddy, what are we? Paloma, então, se aproximava dos seis anos de idade e havíamos chegado de sua escola onde fora buscá-la. Estávamos na Universidade de Lancaster onde morávamos. Telma estava fazendo seu doutoramento nesta universidade. Eu fazia o meu na Universidade de Manchester. Fernanda, um ano mais nova, frequentava a mesma escola em Galgate, pequena vila ao sul da cidade. Buscá-las na escola era algo que fazia quando não estava em Manchester. Muitas vezes, ia de manhã para a Manchester Business School e voltava à noite. Mas, não precisava ir todos os dias. Passado o susto, perguntei o que ela queria saber. Não era uma questão existencial, como eu temia. Era mais direta, mas não mais simples. A escola que Fernanda e Paloma frequentavam recebia muitas crianças estrangeiras. Eram os filhos e filhas dos estudantes que vinham de outros países estudar na universidade. A escola era vinculada à igreja anglicana, mas tinha uma abordagem eclética nos estudos de religião já que recebia crianças cujos pais tinham as mais diversas crenças.
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Paloma queria, simplesmente, saber qual era nossa religião. Ela tinha amigas anglicanas, muçulmanas, católicas, judias, protestantes e budistas. É provável que tenha sido questionada sobre o que éramos. Mais aliviado, lá fui eu explicar a uma menina com pouco mais de cinco anos porque não tínhamos uma religião. Me lembro que disse algo assim: _ Filha, sua mãe e eu não temos uma religião. Não acreditamos na existência de deus. Mas, quando você crescer, você poderá fazer sua escolha. Nós não podemos fazer essa escolha para você. Não sei como Paloma lidou com isso na escola. Ela nunca mais tocou no assunto. Para mim, ficou a esperança de que ela tenha aprendido naquela escola como é importante conhecer o diverso e respeitá-lo. Cada uma daquelas crianças era adorável apenas por ser criança. Não importava a crença religiosa de seus pais. Me lembro de um convívio harmonioso daquelas crianças que volta e meia estavam em nossa casa. Quanto a mim, acho que ela e Fernanda descobriram, ao longo dos anos, que além de tentar responder a suas dúvidas, estou sempre torcendo por suas escolhas na vida. É para isso que servem os pais. E, sem nenhuma surpresa, acabei me tornando professor. Respondedor de perguntas que respeita as escolhas de cada estudante. Simples assim. Quanto ao que nós somos, creio que você tem uma resposta própria.
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A GORDA DO TARÔ DE MARSELHA ão é o que você está pensando. Não me refiro a uma carta de tarô. Aliás, nem sei se no tarô de Marselha há uma gorda. Mas, se houver, deve ser a carta do descaminho, do desencontro, talvez, até, da perdição. Ao final dessa história você vai entender. Espero! Eu e mais cinco ou seis passageiros entramos no Cabral-Cic no tubo Comendador Fontana. À minha frente uma senhora quase obesa. Alguém lhe ofereceu o lugar, em um dos bancos amarelos que são destinados a idosos, passageiros com crianças no colo, deficientes e obesos. Ela preferiu sentar-se na poltrona destinada aos acompanhantes de cadeirantes que, também, estava vaga. Como ninguém mais quis sentar-se, ocupei o banco amarelo. Embora, tecnicamente, ainda não seja idoso pois tenho mais dois anos antes de chegar a esse status. Meu destino era a UTFPR na esquina da Desembargador Westphalen com a Sete de Setembro. Ia entregar exemplares de meu livro para Gilberto e Vanessa, professores que apoiaram meu projeto de crowdfunding. No meio do caminho, sinto que sou observado. Sabe aquela sensação de se sentir olhado, mesmo estando com a cabeça baixa? Pois é. Essa mesma! Levanto os olhos e vejo que a gorda senhora me encarava. Os dois desviamos o olhar praticamente ao mesmo tempo. Depois volto a mirá-la. Ela já não me olhava mais. Deve ter pouco mais de 40 anos, mais de 90 quilos, cabelos não muito longos, um pouco grisalhos, presos por um rabo de cavalo e um arco de veludo preto. Nas orelhas carregava um par de brincos vermelhos em formato de pimenta. Três ou quatro centímetros pendurados nos lóbulos um pouco esticados. Seria o peso das peças? 42
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Na mão direita, cinco pulseiras. Quatro de cristais baratos, uma de cada cor: transparente, verde, amarela e marrom. A quinta era cheia de pequenas pimentas vermelhas iguais aos brincos. Na mão direita um livro que lia: O Tarô de Marselha. Não pude deixar de me lembrar de algo que já comentei por aqui. Como Curitiba parece ser um espaço propício às artes adivinhatórias. Se você caminhar pelo centro, verá muitos cartazetes pregados em postes, muros e paredes. Será que a gorda do Tarô de Marselha é uma profissional da tarologia? Creio que não, carregava pendurado no pescoço um crachá de uma rede de comércio varejista. Creio que se dirigia para o emprego. Deveria ser uma aprendiz da arte. Chega meu ponto de descida: Praça rui Barbosa. Em uma pequena caminhada chegaria a meu destino: a Agência de Inovação da UTFPR. Ao chegar na esquina da quadra, onde fica o campus da UTFPR, ao invés de caminhar para a entrada da Sete de Setembro, decido continuar pela Desembargador Westphalen. Em minha imaginação, havia entradas para o campus nos quatro lados do quadrilátero que a UTFPR ocupa. Me enganei. Viro na Silva Jardim, no meio da quadra, entrada fechada. Viro na Marechal Floriano, entrada fechada. Parecia um perdido! Viro na Sete de Setembro e chego na entrada que estava a menos de vinte metros da primeira esquina onde comecei meu périplo. Ao me informar no guichê com um atendente, descubro que a Agência de Inovação da UTFPR fica na Desembargador Westphalen. Havia passado por ela, vindo do tubo Praça Rui Barbosa. Nem percebi! Será que a gorda do Tarô de Marselha teve algo a ver com isso? Nessa hora, lembrei-me do que meu pai dizia, ou será que era meu avô: 43
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No creo en las brujas pero que las hay, las hay!
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O GPS DO SEXO (Uma pequena distopia enquanto viajo de Florianópolis a Curitiba) m um pequeno planeta, em alguma parte da Via Láctea, nas proximidades de uma estrela muito brilhante, vive um povo que perdeu a voz. Há não muito tempo, eram mais de seis bilhões de seres vivos, que falavam centenas de línguas, distribuídos por quase o mesmo número de tribos. No meio dessa confusão de vozes, ao longo dos séculos, foram criando formas de comunicação entre si e entre as tribos. São seres muito criativos. A capacidade da fala que a voz permitia permeava muitos hábitos desse povo. Entre estes, havia um que era muito apreciado: o sexo. Era muito praticado por todos desde muito cedo em suas vidas. No entanto, chegava uma certa idade que se tornava uma prática mais difícil, quase impossível, para alguns desses seres, os chamados "machos". Para outros seres, as chamadas "fêmeas", o problema também ocorria, embora fosse menos visível. Felizmente, a evolução científica e tecnológica desse povo era fantástica. Fazia coisas chamadas de "inovação" que até Deus duvidava! Os cientistas acabaram inventando uma pílula azul que ingerida permitia a prática do sexo para os machos em uma idade bem avançada. Ela resolvia um problema mecânico muito visível. Parece que tinha a ver com a dinâmica de um fluído interno. Mas, não estou bem certo. Para as fêmeas também havia inovações que facilitavam a prática do sexo. Independente dessas inovações, para o sexo acontecer era necessária outra prática: a conversa. Às vezes longa, muito longa! Outras vezes breve, brevíssima até! Tipo: 45
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_ Vamos? _ Sim. No meu ou no seu? O sexo, precedido da conversa, acontecia entre fêmeas, entre machos e entre machos e fêmeas. Podia ser praticado solitariamente, mas isso era mais comum entre os seres mais jovens. Tinha várias funções: manifestação de amor; saciedade de desejo; passatempo; aquecer no frio; entre outros. Quando feito entre uma fêmea e um macho podia ter outra função, planejada ou não, a reprodução. Depois de trinta e seis semanas, um ou mais seres saíam do ventre das fêmeas. Eram um povo feliz! Houve um tempo que duas inovações surgiram quase que ao mesmo tempo: um equipamento e uma nova forma de comunicação. Eram o smartphone e as redes sociais. Todo mundo tinha um smartphone que era usado para se comunicar nas redes sociais. Estas também eram usadas em outro equipamento, o computador. Mas, o smartphone era o preferido, pois era bem mais portátil. Nas redes sociais, fêmeas e machos podiam se comunicar muito facilmente. Não precisavam da voz. Usavam dedos para digitar mensagens. No começo isto era feito para se comunicar com seres que estavam muito distantes. Mas, o uso dos smartphones e redes sociais era tão prazeroso que os seres desse planeta passaram a usá-los mesmo com outros que estavam perto, por exemplo, em uma mesa de bar. Aliás ir a um bar era outra prática que usava muito a voz. Às vezes, juntava-se à conversa, nos momentos que antecediam o sexo. As inovações eram vistas por esse povo como algo que só trazia resultados positivos. Ledo engano! No caso do smartphone e das redes sociais, as coisas não acabaram bem. Aos poucos, com o passar dos anos, esse povo foi perdendo o dom da fala que permitia a prática da conversa. Daí foi um pulo para o sumiço da voz. 46
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Mas, esse povo é criativo! Os cientistas e engenheiros estão fazendo adaptações em uma inovação que ajuda esse povo a se deslocar nas ruas e estradas do planeta. É um tal de GPS. Ele vai dando instruções, por meio de uma voz sem corpo, como chegar de um ponto de partida a qualquer destino. A voz sem corpo pode soar como uma fêmea ou um macho. Genial! A adaptação poderá ser usada nos smartphones. Por enquanto só conseguiram reproduzir conversas bem elementares, do tipo: _ Vamos? _ Sim. No meu ou no seu? É pouco ainda. Mas já é uma esperança para resolver a queda na população desses seres. Será que escaparão da extinção?
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A GUARDIÃ DA MEMÓRIA E O DEUS DO TEMPO (Uma homenagem a minha mãe) m 17 de janeiro de 2008, Silvana Leão escreveu uma reportagem na Folha de Londrina. Nela, relatou o trabalho de registro da história familiar e da cidade onde meus irmãos e eu nascemos, Londrina, que minha mãe Kilda fez ao longo de mais de 40 anos. Silvana Leão, deu à reportagem o título "Kilda, uma guardiã da memória". Nesta reportagem, a jornalista relata o trabalho que minha mãe teve de montar álbuns com registros jornalísticos e fotográficos de inúmeros momentos da vida de cada um dos filhos, de seus ancestrais e das famílias Prado e Gimenez. Foram dezenas de registros personalizados, em formato de biografias, e inúmeros álbuns com recortes de jornais. Um dos mais significativos foi o que fez sobre a história do Colégio Londrinense, do qual fez parte da primeira turma de ginásio. Neste colégio, meus irmãos e eu também fizemos nossa formação escolar nos antigos primário e ginásio. Mas, o que Silvana Leão não podia imaginar é que, ao dar a uma simples mortal o título de guardiã da memória estava desafiando o deus do tempo, o velho Cronos. Este, aparentemente adormecido, ficou furioso ao ver a ousadia de uma mera humana querer usurpar suas funções. As notícias sobre a repercussão da reportagem chegaram rápido, levadas pelos ventos, a comando de Éolo. Cronos ficou furioso e, vingativo como todos os deuses, disse: _ Essa atrevida não perde por esperar! Não tenho pressa, mas um dia ela vai ver o que lhe está reservado. Realmente, Cronos, assim como todos os deuses, é imortal, portanto não tem pressa, e impiedoso. Ficou aguardando o momento em que 48
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poderia agir. Esse dia demorou quase sete anos e meio. O que para nós mortais parece muito, para Cronos foi como um segundo. Kilda, em julho desse ano, adoeceu. Passou quase trinta dias em uma UTI hospitalar. Foi o momento para o vingativo deus do tempo preparar sua vingança. A cada dia na UTI, Kilda parecia perder sua memória. Quando finalmente conseguiu se restabelecer, parecia que havia esquecido tudo. A guardiã da memória havia perdido a sua memória? Não! Cronos é um deus mais sofisticado. Esta vingança seria muito simples. Ele queria algo mais impactante. Dar uma lição aos humanos: _ Ninguém pode querer ser guardião ou guardiã da memória! Vivia exclamando isso por todos os cantos do Olimpo. Cronos foi ardiloso. Enquanto Kilda estava semiconsciente na UTI, ele fez o seu jogo de cartas. As memórias de Kilda, assim como as nossas, ficam guardadas em fichas que se parecem com cartas de baralho. Mas, nosso baralho mental tem muito mais que quatro naipes. São quase infinitos, pois há um naipe para cada tipo de emoção que vivenciamos. A cada experiência vivida, vamos acumulando cartas com o mesmo naipe em cantos distintos de nosso cérebro. Cronos sempre soube disso. Poderoso, aproveitou-se do descuido de Kilda e embaralhou todas as cartas de seu cérebro. Quando ela saiu da UTI, já não tinha mais como saber os naipes corretos de cada vivência em seus 89 anos. Começou a misturar tudo! Mas, Cronos foi tapeado! Kilda, uma mulher precavida, ao ver o título que recebera naquele dia em 2008, lembrou-se de seus estudos da mitologia grega. Desde aquele dia, sabia que alguma coisa poderia lhe acontecer. Temia a ira de Cronos. Se preparou para ela. 49
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Nesses sete anos e meio, sempre que podia, me contava muitas histórias. E, sempre as repetia. Muitas e muitas vezes me contou histórias que já tinha me narrado em outras ocasiões. Eu não entendia por que ela assim o fazia. Mas, agora eu sei. Hoje, ela me contou algumas histórias, mas graças às artimanhas de Cronos, elas saíram de seus lábios totalmente embaralhadas. Fragmentos de vida, de diferentes momentos, misturados como se tivessem ocorrido ao mesmo tempo. Como se todos tivessem o mesmo naipe. Eu, pacientemente fui separando os fragmentos e juntando aqueles que tinham os mesmos naipes. Era como se montasse alguns quebracabeças ao mesmo tempo! Os fragmentos, com seus naipes corretos, estão em minha memória. Me dei conta do que minha mãe fizera. Ao longo dos últimos anos foi me preparando para continuar o embate com Cronos. Cronos, essa criação humana, pensa que é mais ardilosa do que nós humanos. Dona Kilda deu uma lição a ele. A criatura jamais é mais poderosa que aqueles que a criaram.
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CORAÇÃO PASSAGEIRO o voo havia um coração a mais. De Londrina para Curitiba, além de passageiros e tripulação, viajava solitário um coração. Ia em busca de um novo corpo. Já tinha cumprido uma missão e destinava-se para outra. Não sei quanto durou a primeira. Mas que seja longeva a segunda! Graças a esse passageiro singular nosso voo foi mais rápido do que o usual. Vou chegar mais cedo em casa. Veja só coração passageiro, sua viagem trouxe pequenas alegrias a mais de uma centena de passageiros que compartilharam o privilégio de sua companhia. Muito maior será a alegria que você causará quando chegar a seu destino. Pois é, fiquei pensando nisso. Na vida, nem sempre conseguimos causar um impacto tão grande quanto o seu. Mas, me conforto ao pensar que ao longo dos anos, talvez, tenha ajudado alguns a chegarem mais cedo em casa. Pequenas alegrias! Para as grandes ainda não estou preparado. Será que estarei um dia? Foi só uma pergunta retórica. A resposta não importa. O que importa é a jornada. Um longo caminho de descobertas. Que meu coração permaneça junto a mim por muito tempo! Ele não poderá servir a outro. Judiei muito dele! Se não me deixar será uma grande alegria.
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NO HOSPITAL nquanto uns geram cálculos, outros geram vida. Eu, mais uma vez, na sala de pronto atendimento de um hospital com Buscopan na veia. Crise de cólica renal novamente. Ao meu lado, Débora, uma jovem mulher, é informada que será mãe. Ela diz que será o segundo. Depois do susto, um sorriso! O acaso me privilegia com momentos únicos. Foi um sorriso contagiante! A dor já vai extinguindo com o auxílio do Buscopan. O sorriso vai se expandindo em meu rosto. Graças a Débora!
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QUANDO CHOREI AO VER A BELEZA eleza é algo indefinível para mim. Se alguém me pedisse para descrever o que é o belo, creio que não seria capaz de fazê-lo. Nas mitologias teve deuses e deusas. É muito provável que já tenha sido objeto de definição pelos filósofos. Mas, há algumas coisas que não me interessam saber como a Filosofia as explica. A felicidade, a tristeza, o desejo, o prazer e a dor não física são algumas delas. São coisas que só fazem sentido ao serem sentidas, qualquer discurso fica muito aquém do que sinto. Assim é com a beleza. Não sei dizer o que é, mas tenho certeza sobre o que é, quando se revela para mim. Basta ser sentida. Não precisa de explicação. Ontem fui ao cinema. O filme que assisti foi 8½ de Fellini, produção de 1963, que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro. Filmado totalmente em preto e branco, o filme começa com um extemporâneo engarrafamento de trânsito em que vemos um homem desesperado, tentando sair do interior de um carro. Não consigo imaginar um congestionamento de trânsito acontecendo 50 anos atrás. Será que já existiam? É muito provável que já tenha assistido esse filme no passado. Os momentos iniciais do filme me pareciam familiares. Mas, não me lembrava da trama toda. Marcello Mastroianni vive o personagem principal, um famoso diretor de cinema, que está envolvido na realização de mais um filme, em meio a uma crise criativa. A maior parte da história ocorre em uma estação de águas, e ao longo da trama, somos expostos a flash-backs e sonhos do personagem principal. É em 8½ que Fellini nos traz Saraghina, uma memorável prostituta gorda que vai surgir nas cenas de um flashback sobre a infância do protagonista. Ela é interpretada por Eddra Gale. 53
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Logo nos primeiros momentos fui sentindo um encantamento com as imagens que iam se desenrolando à minha frente. Eram incrivelmente belas. Em determinado momento, na estação de águas, surge um adivinho acompanhado de uma velha senhora que é capaz de dizer os pensamentos das pessoas. Ao verem que ela sempre acerta, muitos se levantam e começam a ir embora, provavelmente fugindo do possível constrangimento da revelação de algum pensamento inadequado. Mas, o personagem de Mastroianni, Guido, se dispõe a passar pela experiência. A velha senhora, não consegue explicar o pensamento de Guido, mas escreve uma frase que Guido confirma que era o que pensara. Neste momento, um flash-back nos leva à infância de Guido. É nesse trecho do filme que surgirá, depois de algum tempo, a cena de Saraghina com os meninos. Incrivelmente tocante. Com o desenrolar desse flash-back, que não tinha nada de especialmente emocionante, sinto meus olhos marejarem. A Beleza do filme que me enfeitiçara desde os primeiros momentos, parecia causar algo dentro de mim, que já não podia ficar preso dento de meu corpo. Foi na forma de lágrimas que meu corpo reagiu a essa poderosa ideia. Não sei descrever o que vi, mas tenho certeza que foi a Beleza. Mas, parece que esse é um fim de semana em que a Beleza teima em se mostrar. Ontem à noite comecei a ler A Flecha de Ouro de Joseph Conrad, uma grande aventura que, a se acreditar na introdução, é inspirado em uma história real vivida pelo autor no fim dos anos 70 do século XIX. Conrad é o autor também de Coração das Trevas que foi adaptado para o cinema por Francis Ford Coppola no filme Apocalipse Now, em 1979, com Marlon Brando como protagonista. Mas, voltando à Flecha de Ouro, ao despertar hoje pela manhã dou continuidade à leitura e descubro que Doña Rita, uma personagem central nessa trama que começa a me prender, tinha sido uma mulher muito bela. Passeando na companhia de seu descobridor, a cavalo, pelo Bois de Bologne em Paris, eles 54
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encontram um velho escultor, Doyen, que logo após as primeiras palavras pede que Doña Rita olhe bem para os seus olhos. Os olhos do velho escultor se encheram de lágrimas. Mais uma vez, parece que a Beleza causara o extravasamento da emoção em forma de lágrimas. Assim como o velho Doyen, só posso dizer que vi a Beleza ontem. Não me peça para explicá-la. Quando você a ver saberá!
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CRACA DE LEITE em coisas que grudam na gente. São que nem craca de leite que vai se pegando na vasilha onde é fervido. Lava-se, lava-se, lava-se... Quando você pensa que conseguiu tirar tudo, enxágua a vasilha e pronto! Que nada! Ainda tem vestígio dela. Mais umas esfregadas. Pode ser que agora tenha saído, mas se a vista falha, alguma marquinha ficou. Nossa vida é longa. Graças aos avanços da medicina, cada vez mais longa. Nascemos enrugados, mas, aparentemente, sem marcas definitivas. Logo depois do parto, após o primeiro banho, estamos limpinhos. Prontos para enfrentar os anos que vêm pela frente. De pele e mente preparadas para aquilo que o destino vai tentar grudar em nós. No meu caso, me aproximo dos 58 anos. Parece muito, mas ainda não me dei por satisfeito. Apesar de tantas cracas que tive que ir limpando, areando da vida, quero mais. Preciso de mais! Ontem recebi pelo Facebook um link que me levou aos meus vinte anos. Uma viagem no tempo com a ajuda da memória coletiva. Quem me conhece, sabe que desde a adolescência, ir ao cinema faz parte de meu modo de entender o mundo. Ainda criança, troquei as idas dominicais à igreja pelas matinês do Cine Augustus da Londrina do final dos anos 60 e começo dos 70 do século passado. Hoje, depois de tantos anos, me dou conta que troquei uma fantasia por outra. A religião não me motivava, mas as idas ao cinema mexiam comigo. Me faziam pensar. Muitas marcas surgiram nas salas escuras dos cinemas de minha vida. O primeiro exercício de autonomia, ainda criança ir sozinho ao cinema; a primeira namorada, que depois se tornou minha esposa, Telma, mãe de Paloma e Fernanda. Hoje somos bons amigos. Ver 56
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1900, de Bertolucci, e depois refletir sobre o filme para escrever um trabalho da disciplina de sociologia. Terezinha Giovenazzi, irmã do ator Edney Giovenazzi, foi a professora que causou esta marca! Me dou conta hoje que deveria ter agradecido a ela a tarefa tão inspiradora! Uma boa craca que ajudou a tornar o cinema parte de meu modo de compreender o mundo e a vida. O primeiro filme pornô, depois que acabou a censura no Brasil. O desejo por Dina Sfat (Macunaíma), Lilian Lemertz (Lição de Amor) e Helena Ramos (Mulher Objeto) que brilhavam nos filmes brasileiros de minha juventude! Teve também a Vera Fischer (Amor, Estranho Amor), mas dessa a Sara não gosta muito que eu fale. Não sei por que? As emoções dos filmes de Chaplin, as lágrimas inevitáveis em alguns dramalhões. A raiva com algumas porcarias. Se você ainda não adivinhou, o link que recebi tem a ver com o cinema. É claro! É a digitalização das edições da Revista Cinema em CloseUp, publicada entre 1975 e 1979 (http://portalbrasileirodecinema.com.br/cinemaemclose…/indice). Documento histórico de valor inestimável que me fez lembrar muitas idas ao cinema. Esse é um tipo de craca que não quis nunca limpar! Muitos dos filmes que estão retratados nas edições da Cinema em Closeup fazem parte de minha trajetória pelo mundo das imagens e significados. Algum amigo mais sacana, vai dizer que chegaram a deixar calos nas mãos! Mas, não é só por isso... Comecei esse texto, com um tom sombrio! Parecia que ia falar de coisas negativas, pois afinal, craca tem um som meio ruim, agressivo, não? Mas, as cracas que machucam, que doem, acabaram ficando de lado neste texto. Elas existem, mas estão em algum cantinho onde passam desapercebidas. Me ajudaram a compreender o mundo, mas deixa elas pra lá! O melhor é poder lembrar de cracas que, apesar dos esfregões da vida, conseguiram deixar sua boa marca na minha história. Vida longa a todos! 57
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SOLIDÃO E ESPERANÇA EM MEDIANERAS DE GUSTAVO TARETTO WEB, além de ser um avanço tecnológico do qual o cinema se apropria, tem sido também objeto presente na narrativa fílmica, caracterizando uma tendência do cinema contemporâneo. As redes sociais e os diferentes mecanismos de interconectividade permitidos pela web foram incorporadas na trama de alguns filmes. Por exemplo, Mensagem para você, dirigido por Nora Ephron e lançado em 1999, é um filme no qual os dois personagens principais vividos por Meg Ryan e Tom Hanks se conhecem primeiro por meio da troca de mensagens pela WEB. Outro filme, mais recente que tem a WEB como parte integrante da narrativa é Rede Social que conta a história da criação do FACEBOOK. Esse filme foi lançado em 2010, com direção de David Fincher. Em 2011, Medianeras de Gustavo Taretto retorna ao uso da WEB como meio de conexão entre um homem e uma mulher jovens e solitários. Com uma estrutura narrativa muito parecida com a de Mensagem para Você, o filme de Taretto tem um ritmo mais acelerado e espirito crítico que o tornam muito superior ao de Nora Ephron que se caracteriza basicamente como uma comédia romântica. O filme de Gustavo Taretto, lançado no Brasil em 2011, foi chamado de Medianeras: Buenos Aires na época do amor virtual. Estrelado por Javier Drolas e Pilar López de Ayala, Martin e Mariana, respectivamente, o filme se passa em Buenos Aires e retrata o cotidiano solitário de dois jovens que não se conhecem, mas se comunicam pela WEB. A sinopse do filme conta: Martin é um fóbico que está em vias de recuperação. Aos poucos vai saindo de sua reclusão em uma quitinete e abandonando seu vício pelo 58
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mundo virtual. Mariana, recém-separada, tem a cabeça tão bagunçada quanto o apartamento em que se refugia. Deveriam conhecer-se ou não? Como podem ser encontrar em uma cidade superpovoada e caótica como Buenos Aires? Medianeras (Paredes laterais). O mesmo que os separa é o mesmo que os une. (http://www.medianeras.com/historia.php). O próprio diretor relata que Medianeras resultou de um conjunto de ideias que surgiram de suas observações e curiosidade por entender Buenos Aires e aos que vivem nestes dias. Para ele, Medianeras é uma fábula urbana, uma construção artificial e graciosa sobre a vida moderna. Com uma forte relação com a arquitetura, segundo Taretto, o filme foi construído em quatro pilares. O primeiro pilar é uma reflexão sobre a Buenos Aires que vai sendo construída pelos seus habitantes de forma caótica, imprevisível, contraditória, luminosa, empobrecida, hostil, mas ainda assim atraente. O segundo pilar é composto pela solidão urbana e neurose coletiva. Pessoas que convivem em prédios, no entanto, sentem-se sozinhas. Pessoas indiferentes com as demais que lotam um vagão de metrô. São fonte de inquietação uns para os outros. O terceiro pilar, segundo Taretto, trata da incomunicabilidade. Apesar de tanta tecnologia cujo objetivo é nos conectar, mas falham nesse objetivo. As pessoas preferem fazer pedidos de entregas ao telefone ao invés de se reunir com amigos. Nossa vida é uma armadilha da modernidade que nos deixa cômodos e isolados. Por fim, o quarto pilar é o dos encontros e desencontros. Para Taretto, é a busca do amor que é custoso de encontrar. É difícil encontrar a peça que se encaixe de modo a permitir que a vida se complete e funcione (http://www.medianeras.com/historia.php). Nessa arquitetura baseada em quatro pilares, Taretto faz bom uso do espaço-tempo cinematográfico. O filme começa com uma narração superposta a uma série de fotografias de Buenos Aires. A 59
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história é narrada, após a apresentação das duas personagens centrais, em três momentos, baseados em estações do ano: um outono curto, um inverno longo, e a primavera enfim. O filme trata de forma bem-humorada e delicada, as buscas típicas de jovens em nossa sociedade contemporânea, mas com ênfase na busca pelo outro, metaforicamente representada pela busca de Wally, em "Onde está Wally?" Na mitologia grega encontra-se a estória da Caixa de Pandora. Júpiter andava às turras com Prometeu que havia modelado o primeiro homem de barro, além de ter dado aos humanos o acesso ao fogo. Assim, certo dia, Júpiter pediu que Vulcano, junto com Minerva, sua mulher, criassem uma companhia para o homem. Os dois criaram Pandora, uma linda mulher, que era quase tão bela quanto a mais bela das deusas. Júpiter ficou muito satisfeito com a criação de Minerva e Vulcano. Em seguida a despachou para o reino dos mortais com um presente em sinal de seu apreço pelos humanos: uma caixa ricamente enfeitada com ouro e prata. Mas era um engodo. Júpiter avisou que Pandora não deveria abrir a caixa nunca. Pandora e a caixa chegaram até Epimeteu, que era o irmão humano de Prometeu e este ficou impressionado com ambas. Levou Pandora e a caixa para seu quarto. Pandora adormeceu e sonhou que abrira a caixa e dela saíram somente coisas belas. Quando acordou não resistiu, abriu a caixa. Da caixa escaparam a Doença, a Gula, a Inveja, a Avareza, a Arrogância, a Crueldade, o Egoísmo. Ou seja, Júpiter usou Pandora para castigar os humanos enviando todas as maldades e vilanias que tornam nossa vida desagradável. Mas nem tudo estava perdido, em certo momento Pandora conseguiu fechar novamente a caixa e pensou que nada havia sobrado dentro dela. Olhando mais uma vez viu um rosto muito belo e jovem, que Pandora descobriu ser a Esperança.
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Medianeras, como se disse acima, retrata dois jovens, Mariana e Martin, que não se conhecem pessoalmente, cada um com sua vida solitária, até o encontro entre eles. O retrato que Taretto faz da vida em Buenos Aires lembra um pouco a Caixa de Pandora. Uma arquitetura opressora que leva as pessoas a se isolarem cada vez mais. A falta de comunicação é uma constante. Um ritmo acelerado de vida impede que as pessoas tenham chance de efetivamente se encontrar. Mariana e Martin representam a juventude de nossa sociedade contemporânea que parece não ter possibilidade de construir um futuro profissional e afetivo. O contato humano é intermediado por artefatos tecnológicos que dão uma falsa impressão de proximidade. Estamos sozinhos na multidão. Fobias e psicoses estão presentes na vida desses jovens. Isso lembra as maldades e vilanias que escaparam da Caixa de Pandora e continuam a atormentar os humanos. Mas, há uma esperança. Mariana continua a sua busca da felicidade. A esperança não escapou da Caixa de Pandora. Mariana continua buscando Wally na cidade. No dia em que ambos se rebelam e abrem janelas para o mundo nas paredes laterais de seus prédios, as medianeras, é como se os dois começassem a encontrar a porta de saída de seus mundos reclusos. Mariana olha para a rua e enxerga Wally (Martin). Corre em disparada para alcançá-lo. Na pressa, deixa para trás sua fobia de elevadores. A busca da felicidade, inspirada na esperança, não lhe dá tempo de temer. A solidão não é inescapável!
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A MENINA DE OLHOS AZUIS la tinha olhos azuis. Muito claros. Não parecia ter mais que dez anos. Mas, quanto a isso não podemos ter certeza. Sempre fui muito ruim em estimar a idade das pessoas. Jovens, criança, maduros, ou já na terceira idade, não importa. Sempre que tenho que dar um palpite, há uma grande chance de errar. Nesse caso, porém, talvez não estivesse tão errado. Vamos dizer que estivesse entre nove e onze anos. Ainda criança. Seus olhos azuis, claros, muito claros, lhe davam um encanto especial. Os cabelos eram loiros, quase brancos. Não é muito poético, mas diria que eram da cor daquelas espigas de milho verde, quase brancas. Se bem que Cora Coralina já escreveu o poema do milho. Uma coisa linda! Olhou para mim como se me conhecesse. Estava sentada em um banco no Bosque do Papa. Sozinha. Perto dos brinquedos, ao lado das barras onde alguns jovens se alongavam. Eu estava começando minha caminhada. Mas, aquela visão me incomodou. Ao me olhar, sorrira de forma estranha, como se estivesse espantada em me ver. Suas pernas balançavam entre o assento e o gramado. Comecei a caminhar no sentido anti-horário. Sempre faço isto. Me iludo fingindo que, a cada volta, no sentido anti-horário, retorno um pouco no tempo. Assim, brinco de ficar mais jovem. Ao término da primeira volta, a menina ainda estava lá. Me pareceu menor. Mas, não dei importância. Na segunda e terceira voltas, ela saíra do banco. Brincava no escorregador. Mas, na quarta volta, a vi tentando subir no banco. Estava bem menor, como se tivesse seis anos de idade. Não conseguia subir.
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Será que eu estava fazendo o tempo voltar para trás? Olhei ao meu redor, havia um grupo de crianças brincando na gangorra e nos balanços. Pareciam-se com os jovens que se alongavam quando comecei minha caminhada. Como um maluco, corri quatro voltas no sentido horário. Queria reverter o que havia feito com aqueles jovens e a menina de olhos azuis. Acordei em uma cama de hospital. Tive a nítida impressão de ver no teto, rapidamente, a menina com olhos azuis claros e cabelos quase brancos. Tinha um sorriso maroto nos lábios. Fechei os olhos e tentei dormir mais um pouco. Ninguém me vira acordar. Quem sabe eu sonhasse com uma história menos inacreditável quando tivesse que relatar o que aconteceu comigo no Bosque do Papa. Quem é que acreditaria no que me aconteceu?
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O ACOMPANHANTE SURDO MUDO á muito tempo ela queria experimentar. Algumas amigas já tinham feito. Assim como ela, todas tinham entre 50 e 55 anos de idade. Passavam a temporada no litoral paranaense. Entre o Natal e o Carnaval seriam quase 60 dias. Ela ficava sozinha entre segunda de manhã e sexta à tarde. Os filhos, Eduarda e Jorge, já haviam retornado para suas casas com os netos. Os dois eram sócios de uma pequena empresa de confecções no interior de São Paulo. Tinham vindo só para as festividades de fim de ano. O marido, executivo de uma grande empresa em Curitiba, passava a semana no escritório da empresa. Naquele fim de semana, ele avisou que não viria. A empresa recebia uma comitiva da China e ele ficara incumbido de ciceroneá-la. Era uma negociação importante. Ele poderia até receber uma promoção se o negócio fosse fechado. Foi a oportunidade que ela teve. Ficaria quase dez dias sem ver o marido. Como diz o velho ditado, a ocasião faz o ladrão. Tomou coragem e fez uma busca no google: acompanhante masculino litoral Paraná. Entre as muitas opções, achou aquele que as amigas haviam comentado: Vipscorts - sofisticação e satisfação juntas. A vantagem desse serviço estava na forma de negociação: atendimento on line. Nervosa, mas decidida, percorreu o menu de escolha. Sua atenção foi atraída pela foto de Johny e a frase abaixo dela: Carinhoso e discreto. Muita ação e pouco papo. Tentou o chat com ele. Estava on line. Depois de algum tempo, combinaram de se encontrar. Ela o pegaria em frente a um supermercado, no caminho do ferry-boat. Iriam a um motel. Embora estivesse sozinha no apartamento, preferiu não arriscar. 64
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Ao chegar no local do encontro, ela o viu. Parecia um pouco mais velho e mais gordo, mas ainda assim atraente. Ela lembrou do marido e hesitou um pouco. Deu uma volta na quadra. Estava decidida. Precisava dessa experiência. Todas as amigas já tinham feito. Parou o carro, abriu a porta e perguntou: _ Johny? Ele apenas sorriu e entrou no carro. Ela ficou em silêncio. Não sabia o que dizer. Dirigiu até o motel. Na portaria pediu uma suíte master com hidromassagem. Ao entrarem, Johny a abraçou, começou a beijá-la, ao mesmo tempo em que tentava desnudá-la. Nesse momento, ela quis conversar um pouco: _ Calma, vamos conversar um pouco. Beber alguma coisa. Johny apontou para os ouvidos, abriu a boca, não emitiu nenhum som. Sorriu. Ela entendeu. Seria muita ação e pouco papo. Aliás nenhum! Teria muito pra contar para as amigas no dia seguinte. Johny foi fiel ao lema.
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DESMEMÓRIA uando queria contar algo e não lembrava, inventava. A primeira vez que isso aconteceu, tinha pouco mais de trinta anos. Falava com um grupo de amigos em um bar na esquina da Alagoas com a Antonina, atual JK, em Londrina. A conversa era sobre conquistas quase amorosas. Ou sendo menos sutil, sexuais mesmo. Naquela época ainda não existia o ficar. Assim, o investimento de tempo em uma conquista exigia algum esforço. Não era tão fácil como hoje. Quando começou a contar, esqueceu com quem tinha saído. Na hora deu aquele branco. Não lembrava de mais nada. Mas, conseguiu disfarçar bem, forçando uma tosse quando o nome que queria lembrar não veio à boca. Rapidamente, falou: _ Saí com a Vanessa a semana passada. Lembram-se dela? Ninguém lembrava de nenhuma Vanessa. _ Pô pessoal, aquela loirinha que gostava de falar de mecânica de carro no colégio. Ela sabia mais de carro do que qualquer um de nós. Os amigos continuaram dizendo que não se lembravam. Aí não tinha mais jeito. Continuou inventando. Disse que levou a ex-colega de colégio para um motel. Tinham se encontrado na saída da missa das dez horas do último domingo. Foi na igreja da Belo Horizonte, onde todo mundo tinha feito as aulas de catecismo e primeira comunhão. Ela estava de preto. Viúva. O marido havia morrido em um acidente de ônibus voltando de São Paulo para Londrina. Seis meses de luto. Chamou ela para almoçar. Ela aceitou sem titubear. Foram em uma churrascaria no centro. Ainda bem que não encontraram nenhum conhecido. De repente, na hora do cafezinho, ela disparou: 66
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_ Sempre prestei atenção em você no colégio. Mas, você sempre foi tão tímido. Aproveitou a deixa: _ Eu também tinha um tesão por você. Como eu não entendia nada de carro, não sabia como puxar conversa com você. Você só falava de carro e mecânica. Ela sorriu. Ele aproveitou e pegou na mão dela, dizendo: _ Vamos fazer o que deveríamos ter feito há 15 anos? Nessa altura da história, ele lembrou que tinha saído com a Lurdinha. Que já tinha saído com quase todos. Mas que importa, a história com a Vanessa estava muito boa. Arrematou: _ Ficamos no motel até o meio-dia da segunda-feira. Não falamos nenhum pouco de mecânica de carro. Os amigos pediram a saideira. Foi para casa. Mais de onze horas da noite. Deitou e dormiu logo. Tinha que ir bem cedo para o trabalho na oficina do Tião. Sonhou com uma loira de preto. Acordou melado. Na oficina, cuidava do escritório. Ainda não entendia nada de carro. Vinte anos depois, vai à missa das dez todo domingo. Não se conforma de nunca mais ter encontrado a Vanessa. Nunca se esqueceu daquele domingo.
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ROTINA ndava se sentindo como Tom Baxter, aquele personagem que sai de dentro de um filme para conhecer Cecília na plateia de uma sala de cinema em A Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen. Só não conseguia ver a plateia. Sua vida era como um filme projetado todos os dias. Aos sábados e domingos, era outra história. Mas que também se repetia. Sempre igual. No trabalho, a rotina era tão intensa que até suas escapadas para ir ao banheiro ou fumar um pouco lá fora aconteciam todo os dias nas mesmas horas. Sempre encontrava os mesmos colegas nesses dois espaços. O telefone tocava sempre às dez e vinte e cinco. Do outro lado da linha, o chefe: _ Qual a posição das vendas de ontem? _ Caíram mais um pouco. _ Em que estamos errando. _ Nada, é o mercado que está ruim. Respondia. Na verdade, queria responder: _ Não recebo para pensar. Esse é seu problema. Foda-se. Mas, não tinha coragem. Precisava daquele salário. Sabia que, em sua idade, próximo dos 60, não teria chance em outro lugar. Se não bastasse a mesmice do trabalho, a ida para casa era cronometrada também. Pegava o ônibus em frente à empresa às dezessete e quarenta e três. Treze minutos após bater ponto. Descia no décimo sétimo ponto, às dezoito e cinquenta e um. Desde que instalaram 68
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aqueles relógios nos pontos de ônibus, começara a notar essa regularidade. Todo dia, ela embarcava no ônibus dois pontos após o seu. Descia, às dezoito e vinte e sete, dois pontos antes do seu. Sempre com o mesmo uniforme branco. Sorriam quando se viam frente a frente. Ocupavam sempre os mesmos assentos. Em casa tinha sua rotina também. Assim que entrava ligava a televisão, sempre no mesmo canal. No quarto tirava a roupa, jogava sobre a cama, entrava no banheiro, enquanto fazia suas necessidades lia a mesma revista. Por último banhava-se. Esquentava alguma coisa para comer. Depois da última novela ia dormir. Aos sábados, acordava às nove horas. Dez e dezesseis, café e pão com manteiga na padaria em frente. Ônibus para o centro, chopinho no calçadão, almoço com amigos no Arrumadinho. Às dezesseis e quinze chegava de volta à casa. Ia dormir depois da última novela. Aos domingos, missa de manhã. Jóquei clube à tarde. Sua vida era como o show da vida na tv. Sempre a mesma coisa. Naquele dia estava sentindo uma angústia insuportável. Não aguentava mais tanta rotina. Fez tudo como sempre no trabalho. Quase disse um foda-se para o chefe. Respirou fundo e calou-se. Aquele momento foi uma iluminação. Nunca respirara fundo no trabalho. As coisas podiam ser diferentes. As dezessete e quarenta e três entrou no ônibus em frente à empresa. No segundo ponto, desceu e antes que ela subisse disse: _ Vem comigo. _ Por que? Ela perguntou surpresa. _ Porque podemos. Você não assistiu A Rosa Púrpura do Cairo? _ Vai subir? Perguntou o motorista. Ela hesitou, mas resolveu ficar. Ela assistira A Rosa Púrpura do Cairo. 69
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PONTO DE VISTA E AMOR: EU OS POSSUO? ssistindo Samba na Gamboa com Diogo Nogueira e um grupo tocando Dorival Caymi. De repente começam a cantar Ponto de Vista: "Do ponto de vista da Terra quem gira é o Sol..." Pego o tema para a escrevinhação de hoje. É muito provável que este tenha sido objeto de reflexão de outros. Mas, como é ponto de vista, por que não falar do meu? Assim como os de outros, é único. Está entre as poucas coisas que são só minhas. Meu ponto de vista é meu. Ninguém tasca! Eu vi primeiro. Epa! Taí um olhar interessante. Do meu ponto de vista, o que é meu mesmo? Além dele mesmo, acredito que poucas coisas sejam só minhas. Aqui, espero que você já tenha suspeitado, não me interessa falar das coisas materiais que, usualmente, digo que possuo. Livros, o celular no qual escrevo, minhas roupas. Estas são transitoriamente minhas. A qualquer momento podem deixar de ser. Seja por minha vontade, de meus credores, ou por razões que não controlo, como os amigos do alheio ou a morte. Sem querer parecer trágico, quando morremos as propriedades cessam de existir. Ter essa consciência ajuda na hora de se desfazer de coisas que gostamos tanto. Como, por exemplo, aquela blusa de que gostava e Paloma um dia me disse: _ Pai, a partir de hoje é minha. Será que posso juntar o amor ao ponto de vista no conjunto de coisas só minhas? Ora, o amor! Esta coisa indefinível que dizemos sentir. O amor que sinto não é meu. Ele só faz sentido quando o dou a outros. Então, não é meu! Mas, e o amor que outros me dão. Não seria meu? Também não. Ele só existe em fluxo. Eu preciso devolvê-lo para que 70
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ele não pereça. Não é de ninguém e é de todos. Então, no meu ponto de vista, o amor não está no conjunto de minhas propriedades. Assim, é diferente do (meu) ponto de vista. Se refletir bastante, conseguirei encontrar outras coisas não tangíveis que posso dizer minhas. Mas, vou parar por aqui. Comecei esta escrevinhação com essa intenção. Dizer das coisas que são minhas a partir da lógica ou da razão. Mas, o amor se intrometeu no assunto, e acabei trilhando os caminhos da emoção. Assim como o amor, outra coisa que não é minha propriedade é o teor de meus textos quando domina a emoção. Penso uma coisa e escrevo outra. É impressionante!
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A BERMUDA DO LONDRINENSE ábado pela manhã. Sara e eu caminhamos pelo calçadão de Londrina, após um expresso, um machiatto e um pão de queijo em uma cafeteria. Entre a São Paulo e a Rio de Janeiro, sentamos um pouco para apreciar o movimento. Uma trilha sonora urbana nos acompanha: buzinas, passos, vozes indistintas, risos de crianças, de vez em quando um choro. Parecia até o ensaio de uma orquestra. Cada instrumento com seu som, alguns graves, outros agudos. Há os mais salientes: - Doutor, me dá vinte centavos pra uma pinguinha. - Dois chips de celular por dez reais. - Moça, vamos fazer um cartão hoje? - Olha que beleza o oxigênio, você sabe quem criou? Diz um pregador. - Que cachorro mais lindo! - Gostosa! - Brasil mostra sua garra, diz alguém em um palanque. - Me dá um dinheiro pra comida! - Olha a estátua viva. _ Mas, estátua se mexe? _ É uma estátua dinâmica! - Vamos por aqui que estou com pressa.
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- Mãe, é um desses que eu quero. Compra pra mim? Não enche menino! - De onde vem esse barulho? Está ouvindo? Pi, Pi, Pi, Pi. _ É da estátua. _ Será? Essa diversidade de sons é acompanhada da diversidade humana. Nossa! Como tem gente diferente no mundo! Mas, uma constância chama minha atenção: a bermuda do londrinense. Todos os homens que estavam de bermuda - meninos, velhos, jovens, maduros, grisalhos, morenos, loiros, calvos, negros, pardos, brancos, altos, baixos - tão diversos, mas semelhantes no comprimento da bermuda. Sempre abaixo dos joelhos! Sara sugere que eu faça uma contribuição para o artista da estátua. Aproximo-me e leio o que estava escrito no pequeno cartaz afixado ao tubo onde as moedas caindo adicionam mais um som à trilha sonora matutina: "Sua contribuição mostra sua cultura e valoriza minha arte" Penso: Não tenho nenhuma bermuda que cubra meus joelhos. Preciso comprar uma. Mas, acabou o verão! Fica para o ano que vem!
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CINEMA, FOTOGRAFIA E SUSTENTABILIDADE: DISTOPIAS SUAVES ais uma vez uso o cinema e a fotografia para refletir. Por iniciativa do Coletivo Atalante (coletivoatalante.blogspot.com.br), na Cinemateca de Curitiba foi exibido ontem o 4:44 Último dia na terra, filme de Abel Ferrara lançado em 2011. De forma quase serena, o filme narra a espera pelo extermínio da humanidade, devido ao esgotamento quase que por completo da camada de ozônio. Os cientistas previram que isto ocorreria às 4:44 de determinado dia, e acompanhamos as últimas 14 horas vividas por um casal – Cisco e Skye – interpretados por Williem Dafoe e Shanyn Leigh. Não há pânico e nem violência nessa distopia suave que Ferrara nos apresenta. No mesmo espaço da Cinemateca, uma exposição fotográfica de Rodolfo Massambone – Contenções – explora, assim como Abel Ferrara, a relação entre homem e natureza. A exposição integra a programação do FIDÉ Brasil 2015 – Festival Internacional do Documentário Estudantil. Em suas fotografias, Massambone mostra a resistência da natureza às contenções que o concreto armado, obra humana, tenta lhe impor. Flores e árvores brotam de rachaduras e espaços abertos no canal construído para domesticar o Rio Belém que cruza a cidade de Curitiba. A rebeldia da natureza, persistindo em sobrepujar as contenções humanas, na forma retratada pelo fotógrafo, me leva a imaginar que suavemente, ao longo dos anos, a natureza se imporá aos humanos. A distopia suave de Ferrara e a fotografia de Massambone me provocam. Fazem com que seja impossível para mim, não voltar ao tema da sustentabilidade na literatura dos estudos organizacionais. É 74
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mesmo possível que teremos, no futuro, gestores capazes de levar a humanidade a superar o desafio que diz respeito à harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos, baseando-nos no duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras (VEIGA, 2008, p. 171)? Devo confessar que, no atual momento de minha trajetória, enxergo essa possibilidade com ceticismo. Nossa sociedade ainda tem um caráter egocêntrico e humanocentrico que torna muito difícil superar as limitações de uma gestão organizacional orientada prioritariamente pela maximização do lucro. Nessa reflexão, nesse momento, me vem à memória, uma das primeiras leituras que fiz sobre as questões ambientalistas, ainda à época de meu doutoramento na Universidade de Manchester nos anos 90 do século passado. Desde aquela época, costumava frequentar sebos em busca de livros mais baratos. Em uma de minhas viagens a Londres, encontrei dois livros de bolso de James Lovelock – Gaia: a new look at life on Earth (1979) e The Ages of Gaia (1988). É claro que não lembro de detalhes desses textos que li há mais de trinta anos. Mas, uma impressão me ficou dessas leituras. A ideia de que a Terra é um organismo vivo que se adapta à presença do homem na sua superfície. Pode ser que ela sobreviva aos humanos. O filme de Ferrara e as fotografias de Massambone me dizem que isto é provável. Nesse domingo em que o frio do outono curitibano nos força a buscar outras fontes de calor, me apoio na Esperança. Espero que sejamos capazes de sensibilizar nossos alunos de Administração para que não façamos Gaia se livrar de nós. Vamos respeitá-la e continuar nossa busca por um mundo sustentável, onde as dimensões ambiental e social sejam prioritárias em relação ao lucro. 75
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VEIGA, J. E. da Desenvolvimento sustentável: o desafio do século XXI. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
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NO AVIÃO: BREVE TEXTO SOBRE O EFÊMERO ma coisa estranha. Sentir vontade de escrever durante um voo entre Maringá e Curitiba. Espremido entre Sara e uma adolescente gaúcha que faz um trabalho de história em seu tablet. Como sei que é gaúcha? Antes de decolarmos, ela se dirigiu a alguém na poltrona de trás. Usou tu. Voo tem como destino final Porto Alegre. Não é preciso ser nenhum Sherlock para deduzir sobre a gauchice da guria. Elementar, meu caro Watson! Mas, por que escrever? Ou para que? A escrita é um exercício diário. Palavras se formam na tela do celular. Quero escrever sobre a vida que é efêmera. Mas, a bateria do celular é mais ainda. Um alerta surgiu na tela: bateria muito fraca! Meu discurso tem que ser rápido. Aos cinquenta e oito percebo que minhas poesias tratam de quem sou. Minha identidade se esgueira nas linhas e entrelinhas. A bateria é efêmera, mas mais longa que o voo. Sou interrompido pela comissária de bordo: _ Dentro de instantes aterrissaremos no aeroporto internacional Afonso Pena em Curitiba (que é em São José dos Pinhais, isso ela não disse), todos os aparelhos eletrônicos devem ser desligados. Retomo o texto depois do pouso. Descubro algo mais efêmero que o voo: minha memória! Esqueci porque comecei a escrever este texto. Me perdoe!
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O PROTÉTICO QUE FAZIA PERMUTA em sempre as coisas andam bem. Em momentos de dificuldades econômicas há aqueles que acham maneiras alternativas de vender seus serviços. Dema veio para Londrina em meados da década de 70 do século 20. A cidade recém completara quatro décadas de fundação. Entre os anos 40 e 50, a cidade criou fama de um novo Eldorado. Com base no ouro verde, o café, Londrina tornou-se rapidamente um centro econômico no norte do Paraná. A riqueza vinda, principalmente da agricultura, atraiu muita gente. Esse movimento continuou pelos anos 60 e 70. Dema veio do interior de São Paulo com esperança de tempos melhores. No começo foi difícil, mas aos poucos foi ganhando reputação junto aos dentistas da cidade. Passou a ser conhecido na cidade. Londrina, como acontece com as regiões que se desenvolvem rapidamente, estimulou também o comércio do sexo. Nos anos 50, ficou famosa pelo grande movimento em seu pequeno aeroporto. Nos finais de semana, os voos da Real traziam, além de passageiros em viagens de negócios ou passeio, mulheres que vinham de São Paulo e Rio de Janeiro para se prostituírem na zona local. Algumas vezes, os fazendeiros ricos fretavam aviões para trazerem essas profissionais do sexo. Algumas acabaram ficando por aqui, mas a maioria ia embora na segunda-feira. Assim, nas imediações do Estádio Vitorino Gonçalves Dias foi surgindo a zona de Londrina. Por coincidência, Dema foi morar e trabalhar nessa região. Alugou uma pequena casa que servia de moradia e laboratório de prótese. Jovem e solteiro, naturalmente, sentia as premências do sexo. Aos finais de semana, ia se aliviar em uma das inúmeras boates. 78
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Certa vez fez um programa com a Maria Polaca. Não pode deixar de notar que ela estava com muitas falhas na arcada dentária. Maria Polaca ria fácil e arreganhava a boca. Dema viu os dentes que faltavam. Naqueles dias, andava curto de grana. Teve uma ideia e propôs para a Maria Polaca uma permuta. Faria próteses para melhorar sua dentição e ela, em troca, lhe prestaria os serviços de sexo. Ela topou. Dema indicou um jovem dentista para Maria Polaca. Ele fez as próteses e Maria Polaca pagou em serviços. Uma permuta que deixou ambos satisfeitos. Maria Polaca contou para as colegas. O serviço de Dema aumentou bastante. Suas idas à zona também. Nunca mais pagou em dinheiro. Só na base da permuta. Dizem que seu amigo dentista passou a fazer o mesmo. Isso eu não posso confirmar. A história de Dema ouvi dele mesmo. Outro dia reclamou que, nesses tempos modernos, com o fechamento da zona, não há mais permutas. Se bem que ele já não anda com essa corda toda.
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PRAIA ac, pac, pac, pac, pac. O barulho tira minha atenção do livro que leio na Prainha em São Francisco do Sul. Um casal jogando frescobol. À distância, no mar, um barco de pescadores é seguido por um bando de gaivotas. Ao mesmo tempo, outro tanto de gaivotas sobrevoa a beira da praia. Céu nublado. O mar, sempre em movimento, ecoa o título da autobiografia de Oliver Wolf Sacks - Sempre em Movimento - minha leitura momentaneamente abandonada. Trocada pela vontade de escrever que me seduz. Escrevo, então. Razão ou emoção? Qual delas será minha guia hoje? Impossível saber antes que o texto se conclua. Meus textos têm vontade própria. Não sou eu que coloco o ponto final. Este surge de repente. Eu, apenas obedeço a sua vontade. Às vezes, quero ir além. Esforço inútil. Talvez, em minha escrita, eu prenuncie que também na vida, o ponto final não será uma escolha própria. Minha escrita se assemelha à vida de mais uma forma. A vida também não fui capaz de abreviá-la. Alguns anos atrás, doente, pensei que daria a ela um ponto final. Não queria ir além. Achava que já tinha tido o suficiente. Mas, na hora agá, pedi socorro. Primeiro a Sara, depois a Paloma e Fernanda, as filhas, depois Kilda, minha irmã. Não era a hora do ponto final. Era a hora das reticências... Muita coisa ainda por vir. Pac, pac, pac... Em um ritmo mais acelerado, junta-se o som do vendedor de algodão doce ao frescobol... A vida ainda tem muito a me fazer ver e ouvir... 80
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FELICIDADE uve a chuva. Cai devagar sobre o telhado. Vem acompanhada da brisa. Suaves, as duas refrescam o começo da noite de mais um sábado de verão. Fecha os olhos. Divaga. Dez anos atrás estava do outro lado do mundo. Enfrentava o inverno do hemisfério norte. Era a primeira vez que via neve. Naquele momento, a neve juntou-se à solidão. Foi à praça central daquele vilarejo minúsculo escondido no norte da Espanha. Deitou-se sobre a neve de barriga para cima. Agitando braços e pernas imprimiu seu perfil no solo. Caiu na gargalhada. Desde criança queria fazer isso. Vira o desenho de uma criança fazendo o mesmo em um livro da escola. Praticamente aos setenta, realizou o sonho infantil. Com uma janela que bateu retorna ao tempo presente. Daqui um mês completará oitenta anos. Haveria algum desejo de infância ainda não satisfeito? A pergunta faz com que se lembre da cidade natal. Saíra de lá há mais de sessenta anos. Aos dezoito anos, fugira do orfanato das irmãs de caridade. Este fora sua casa desde os primeiros dias de vida. Uma criança abandonada junto ao portão dos fundos. Ao lado da horta, bem junto às alfaces. Não conhecera muito da cidade. Era uma cidade interiorana em Minas Gerais. Até os 18 anos, além do orfanato, conheceu o colégio em que estudou do primário até o ginásio. A partir dos 14, ajudava na cozinha do orfanato. Não fez amizades. Na escola só teve colegas. As irmãs do orfanato não permitiam que saísse. No orfanato, era a última criança que fora admitida. Só porque havia sido abandonada. As outras crianças já estavam se tornando 81
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adolescentes quando lá entrou. Aos cinco anos passou a ser a única criança no meio das freiras. A fuga foi fácil. Toda segunda-feira ajudava o quitandeiro a descarregar as compras. Ele fazia entregas com uma velha caminhonete. Em um dia de chuva, enquanto o quitandeiro tomava um café na cozinha, aproveitou que ninguém olhava e se esgueirou para baixo da lona que cobria as caixas de frutas, verduras e legumes na carroceria da caminhonete. Chovia fino. O barulho da chuva na lona acalmou seu coração que quase saía pela boca. Perto da rodoviária, ao lado do colégio onde estudara, conseguiu descer. Comprou uma passagem para São Paulo com parte do dinheiro que fora guardando ao longo dos seis meses em que planejara a fuga. Surrupiava os trocados que irmã Anunciação deixava sobre o armário. Esta fingia não notar. Em São Paulo, nas proximidades da rodoviária, se ofereceu para ajudar na cozinha de um pequeno bar. Dormia em um canto, atrás de um balcão. Dez anos depois conseguiu comprar o bar do antigo proprietário. Nunca se casou. Teve uma vida solitária. Conseguiu construir uma rede de lanchonetes participando de licitações do serviço de alimentação em rodoviárias do país todo. A única vez que saiu do Brasil foi quando esteve no norte da Espanha. Tinha lido sobre o caminho de Santiago de Compostela. Resolveu percorrer parte dele no inverno. Mas, e agora, quase aos oitenta, teria algo da infância que ficara na memória como um desejo não satisfeito? Tinha tudo que o sucesso empresarial podia proporcionar. O que faltava? Em sua solidão lembrou-se de um brinquedo que ganhara do quitandeiro: um pião de metal que girava quando se pressionava para baixo uma haste em seu centro. O pião sumiu no mesmo dia em 82
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que ganhou. Guardou na memória o giro do pião colorido que ficava quase branco ao ganhar velocidade. Será que esse tipo de brinquedo ainda existe? Precisava encontrar um. Queria sentir aquilo que sentira na neve dez anos atrás. Tinha sido a primeira vez que se sentira verdadeiramente feliz. Precisava repetir essa sensação. Às vezes, sentia a cabeça girar. As cores da sua vida sumiam em brancos cada vez mais frequentes. Mas, não era como o pião.
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TRÊS MENINOS carrinho era de gêmeos. Tinha espaço para duas crianças. Puxado pela mão esquerda, ia um menino ao lado de um homem. Era um só menino. O homem empurrava o carrinho com a mão esquerda. Cheio de pacotes que ocupavam o lugar do menino e de outro bebê, caso houvesse. Pensei que não haveria, mas quem sabe? Na mão direita, o filho. Pareciam pai e filho. No fim da tarde curitibana eles atravessaram na faixa de pedestres em minha frente. Caminhavam na direção do Passeio Público. Pararam no meio do caminho, aguardando que o outro sinal ficasse verde novamente. No rosto do pai havia uma angústia. O filho sorria, caminhando ao lado do pai que caminhava em círculos enquanto o sinal não abria. O sinal abre para mim. Para eles também. Vejo os dois ficando para trás pelo retrovisor. À distância, ficam cada vez menores, mas ainda visíveis. Sem dificuldades, atingem a outra calçada. O pai faz círculos novamente. O menino sorri de novo. Parece gostar da brincadeira. Mas, no rosto do pai há uma angústia que o menino não vê. O pai olha para o Portal do Passeio, olha para a estação tubo, olha para a calçada do outro lado. Quer voltar, mas o sinal fechou. Vai ter que esperar. O olhar angustiado do pai me persegue. Teima em não sair do retrovisor. Já virei a esquina há muito tempo, mas a imagem continua lá. Me faz lembrar de angústias esquecidas. Em minha memória surgem meninos que vi. Um morto e um provavelmente morto. O primeiro foi em Londrina. Retornava de carro para a cidade, vindo de Curitiba. Na via expressa que liga a saída para Curitiba com a saída para São Paulo, no meio do caminho, um guri atropelado e morto. Era indígena. Provavelmente, 84
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tinha escapado da atenção do pai que estava sentado no meio fio. Não pude deixar de ver os olhinhos ainda abertos daquele menino. O único trajeto possível passava bem ao lado dele. Ninguém havia coberto aquela criança. Seus olhos me angustiaram. O segundo foi em Maringá. Saio na sacada de um prédio no momento em que ele corre para a rua. Um carro em alta velocidade o atropela. Desesperado, o motorista sai do carro, acolhe a criança no colo, mas não encontra nenhum adulto perto dela. Pergunta de quem é a criança. Ninguém responde ou aparece. Entra no carro e a leva. Eu fico tremendo na sacada do apartamento. Sem ação! Sobrou uma angústia. Anos depois, esse homem com um carrinho de gêmeos e um menino ao lado. Seriam reais? Na minha memória os dois meninos. Um morto, o outro talvez. Um me olhou, mas não me viu. O outro inerte nos braços de um homem desesperado. Quis o destino que eu os visse, mas eles não me viram. Foram reais. Deposito os dois no carrinho desse homem angustiado. Real ou não, como em um sonho, peço a esse homem: _ Afasta de mim essa memória!
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PRÓXIMA PARADA esolveu sair do trabalho meia hora antes do horário normal. Se aproveitou da ausência do chefe e da inexistência de controle de ponto. Era uma daquelas empresas moderninhas em que se pregava a ideia de que o trabalho é o momento de realização da pessoa. Os colaboradores, como eram chamados os empregados, deviam se sentir como donos da empresa. Mas, nunca tiveram participação no lucro. Todo começo de semana tinham uma reunião de quarenta minutos quando o chefe expunha as metas da semana e estimulava o espírito de equipe. Ao final da reunião, o brado coletivo do lema inspirado nos "Três Mosqueteiros": _ UM POR TODOS, TODOS POR UM. Mal continha a vontade de gargalhar. Será que ninguém mais tinha aquela sensação de ridículo? Se perguntava. Naquele dia, sentira um desconforto constante no peito. Pareciam gases. Mas, já fizera todos os movimentos usuais para se livrar deles. Ficara até de quatro durante um bom tempo no banheiro. Nada tirava aquele desconforto. Será que estava sofrendo um infarto? Foi com essa dúvida que resolveu sair mais cedo. Mas, não queria ir para casa. Na estação tubo pegou o primeiro ônibus. Nem se importou em saber qual era. Fechou os olhos. Reabriu quando ouviu no sistema de som: Próxima parada estação aeroporto. Assustou-se. Deveria ter dormido. Aquela era a última parada. Todos tinham que descer. De repente, teve a ideia. A princípio pareceu 86
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maluca. Por outro lado, deveria existir alguma razão para o acaso ter lhe feito chegar até ali. Devia ser a vontade dos deuses! Comprou uma passagem para o lugar mais distante. Teria que esperar duas horas até o momento de embarque. No caixa automático, fez aquele crédito pessoal que sempre aparecia na tela. Quinze mil reais. Sacou dois mil reais. Quando chegasse ao destino compraria roupas e produtos de higiene pessoal. Se daria uma semana de férias. Na empresa, tinha certeza que entenderiam. Alguém cobriria sua falta. Afinal, eram um por todos e todos por um. Tinha que testar os limites dessa empresa moderninha. Sentiu um alívio no peito. Os gases escaparam.
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REUNIÃO hegaram ao mesmo tempo. Pura coincidência. Vinham de locais distintos, mas tinham algo em comum. Haviam conhecido aquela mulher por várias décadas. Sua mãe, seu pai, o marido e uma amiga da infância. A primeira trazia uma rosa na mão. O segundo, um par de livros. O terceiro, um caderno. A última, além de seu sorriso maroto, uma aquarela que recém pintara. A princípio ela estranhou. Há tempos não via os quatro juntos. Será que aconteceu alguma coisa? Hoje não é meu aniversário. Pensou e ficou intrigada. Seu pai foi o primeiro a falar: _ Lembra quando você foi representante do Clube do Livro? Encontrei esses dois no meio das minhas coisas. São de 1949. Você estava com 23 anos então. Achei que você gostaria de tê-los. Depois foi a vez de sua mãe: _ Filha, quando abri a janela de meu quarto hoje de manhã, vi esta rosa em botão. Me deu uma saudade de você. Resolvi vir te ver e a trouxe. O marido falou em seguida: _ Eu também estava com saudades. Já faz algum tempo comecei a registrar nesse caderno os bilhetes que lhe mandava. Aonde estou não tenho o que fazer. Parece estranho, mas me lembro de tudo. O primeiro que lembrei foi o que mandei pedindo para lhe encontrar pela primeira vez. Você não foi, mas eu insisti. Ainda bem! Olha quantos bilhetes escrevi naqueles anos todos. A amiga, com o sorriso maroto, emendou: 88
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_ Você me conheceu bem antes dele. Quase oitenta anos de amizade. Quanta festa fizemos juntas, hein! Essa aquarela, toda colorida, foi inspirada nelas. Trouxe pra você. Põe junto daquele retrato de você que pintei em 2000. Ela respondeu: _ Quanta coisa! E nem é meu aniversário. Pena que não estou boa. Queria passar um café, mas não consigo me levantar. Parece que todo mundo saiu. Deixa eu ver se tem alguém em casa. _ Tem alguém aí? Nesse momento, uma leve brisa movimentou as cortinas do quarto. Os primeiros raios de sol entravam pela janela. Deitada, ela se perguntou: _ Será que foi sonho?
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AUTORRETRATO íope. No sentido literal. Talvez, no figurado também. Afinal, credulidade somada a ingenuidade resultam em alto grau de miopia combinada com astigmatismo. Nessa altura, quase aos sessenta, presbiopia já presente. Literalmente. Também figurativamente. Algumas coisas só são nítidas de muito próximo. Antes eram percebidas à distância. Exemplo? Ironia. Cada vez mais difícil de enxergar. Mesmo de óculos! Problemas com a imagem. Quando brincando é percebido sério, quando sério, o oposto. Não se incomoda. Leva muito a sério a liberdade de escolha. Porém, tão obediente à hierarquia. Defeito de formação! Não é de nascença. Pouco fala. Ri muito. Tempo houve de pouco riso. Problema nas articulações musculares da face. Estranha depressão paralisou os músculos. Já resolvida. Tímido. Ninguém acredita. Irrequieto. Quase agoniado. Não consegue ficar muito tempo fazendo a mesma coisa ou quieto em um canto. Organizado em sua desorganização. Difícil, mas quem não é? Sonha mesmo acordado. Às vezes, pode ser inconsequente. Lê. Escreve. Finge não ser vaidoso. Péssimo ator. Não convence ninguém. Tanto é que fez esse autorretrato em preto e branco. É um desastre com as cores! Otimista com a natureza humana. Poliânico!
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PIPOCA NO CINEMA á filmes que não combinam com pipoca. Cinéfilo, continuo fiel à ideia de que o melhor lugar para assistir filmes é uma sala de cinema. Mesmo nas salas menores, a tela é grande o suficiente para dar uma sensação única que só o cinema pode proporcionar: entrar em um universo paralelo em que tudo vemos e ouvimos e não somos notados. Voyeur e cúmplice de tramas que, embora me afetem muito, ao acender das luzes desaparecem em um passe mágico. Volto ao mundo real que me afeta e demanda minha ação. Nem sempre voluntária. Às vezes bem-sucedida. Nessa altura você já deve ter percebido que para mim, ver um filme em sala de cinema funciona como um refúgio. O domínio seguro em que lido apenas com minhas emoções e pensamento. Me deixo conduzir no mundo das imagens. Junto com minha mente, meu corpo reage às provocações das imagens: sorrio, tenho medo, meus olhos lacrimejam, me afundo na poltrona, me espanto, falo sozinho, fico preocupado e posso até gritar. Nos tempos de infância e adolescência, quando essa paixão nasceu, talvez a única que não acabe ao longo da vida, as salas de cinema eram maiores e mais escuras. Propícias a muitos prazeres. Não falo apenas dos cinematográficos! Em cada sala de cinema havia uma bomboniére. Nelas podiam se comprar balas, caramelos, bombons e chocolates. Eu adorava os caramelos cobertos de chocolate da Pan. Os mais jovens não devem conhecer, mas os de minha geração com certeza sabem do que estou falando. Mastigar os caramelos da Pan era um desses prazeres. Depois, descobri outros menos solitários. Mas, isso é outra história. 91
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Tenho quase certeza de que não havia pipoca à venda naquelas bomboniéres. Não vou afirmar, pois a memória tem suas artimanhas. Nem sempre responde a meus esforços de lembrança. Hoje em dia, ao contrário, parece que em todo cinema se pode comprar pipoca nas salas de espera. E muitas outras coisas. É um espaço de lazer o cinema. O filme de entretenimento domina as salas de exibição. Pipoca, refrigerante e boa companhia. Além disso, com os celulares, fazem selfies e postam nas redes sociais! O cinema-refúgio já não existe mais. Mas, como afirmei na primeira linha, há filmes que não combinam com pipoca. Quando vejo aqueles baldes enormes nas mãos das pessoas me desespero, mas me conformo. Apesar dos ruídos mastigatórios, o escurinho do cinema ainda é o melhor lugar para ver um filme. Será que alguém não pode inventar o pipocatório? O refeitório para pipocas. Um lugar onde as pessoas possam ver o filme e comer suas pipocas, deixando os outros em paz! Pode ser até o contrário, um espaço pipoca free! Onde aqueles que acham que alguns filmes não combinam com pipoca vão ficar mais felizes. Não precisa ser grande. A quantidade de mãos carregando baldes de pipoca nas salas de cinema é cada vez maior. Acho que faço parte de uma nova minoria.
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TRAMPOLIM odos já haviam pulado do trampolim. Só faltava ele. Os meninos e as meninas usavam as mesmas palavras para encorajá-lo: _ Vai Artur. _ Se joga sem medo. _ Não olha pra baixo. _ Você vai gostar. Artur olhava de um lado. Depois para o outro. Caminhava até a beirada. Quando todos se animavam. Voltava para trás. Aí, a gritaria começava de novo. Pareciam até ensaiados: _ Vai Artur. _ Se joga sem medo. _ Não olha pra baixo. _ Você vai gostar. E Artur se repetia. Depois de olhar para os dois lados, caminhava até a beirada do trampolim. E retornava. Os demais que aguardavam sua vez passavam por ele. Depois da quinta tentativa frustrada, eu a vi embaixo da haste de madeira do trampolim. Era enorme. De um azul profundo, a cada movimento do trampolim movimentava as asas, mas não saía do lugar. Artur repetia pela sexta vez sua falta de coragem. O avô já tinha até desistido. Se enfiara atrás do jornal. Azar o dele! Não viu o momento mais belo de Artur. Se jogar do trampolim pela primeira 93
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vez. É nosso primeiro momento de autonomia. O momento em que, confiando nos demais, nos jogamos para a vida. Em busca de algo, mas sem saber ainda o que. De repente, Artur se dirige à beira do trampolim. Ao mesmo tempo a borboleta alça voo. Se encontram na beira do trampolim. Linda, ela está ao alcance das mãos de Artur. Ele tenta pegá-la. Ela se afasta. Ele dá um passo à frente. Salta atrás da borboleta. Ela continua seu voo. Os meninos e as meninas explodem de alegria. Ofuscados pelo sol, às costas de Artur, não viram a borboleta. Só Artur e eu. Penso comigo: _ Vai Artur. Mergulha na vida. Atrás do que é belo. Pra isso estamos aqui. Na piscina, Artur diz: _ Manero! E sai correndo da borda em direção ao trampolim.
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DOMINGO DE CHUVA uma chuva fininha. Intermitente. Cai um pouco. Para. Recomeça. Para de novo. Quando parece ter acabado, surge do nada. Garoa. Não chega a ser fria. É um prenúncio das águas de março? Acho que não. Estas, assim como o Carnaval, parecem ter chegado mais cedo esse ano. Choveu tanto em fevereiro! É o último domingo de fevereiro. Não fosse bissexto, seria seu último dia. Nesse ajuste da contagem humana do tempo, um dia a mais para acomodar a passagem natural do tempo que não nasceu para ser marcado em anos, meses, dias, horas, minutos ou segundos. É fluxo. Como tal impossível saber onde começa ou acaba. Nós que passamos por ele. Continuará sem nós. Um dia a mais em fevereiro. Que farei dele amanhã? Me lembro de um colega de doutorado. Vinte e cinco anos atrás lutávamos para dar conta dos seminários de filosofia da Administração. Leituras difíceis em uma segunda língua, o inglês. Ele nativo de um país do oriente médio, eu do Brasil. Havia outros estrangeiros no começo dos anos 90 naquela Manchester chuvosa. Na segunda-feira ele apresentaria seu trabalho na aula do Professor Richard Whitley. No domingo acabara o horário de verão inglês. Os relógios foram atrasados em uma hora. Iniciou sua apresentação se vangloriando de ter tido uma hora a mais para tentar entender os textos que lhe couberam. A manipulação do tempo pelos homens lhe deu mais 60 minutos naquele domingo. Não adiantou muito! Já não tenho mais que preparar seminários de doutorado. Nesse fim de fevereiro, tenho mais 1.440 minutos. Tenho dormido menos nessa 95
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altura da vida. No máximo seis horas por dia. 360 minutos. Sobram 1.080. Fazer o que com eles? Apenas viver. É o que sei fazer de melhor. Nasci com essa habilidade. Você também. Aproveite essa ilusão do dia a mais na vida. O tempo é só um fluxo pelo qual passa nossa vida. Não adianta ser cronometrado. Em algum momento nos deixará para trás.
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UM CONVERTIDO um convertido. Amigas e amigos se espantam: _ Como que pode? Um cara tão inteligente! Ninguém acredita. Mas, é um convertido há mais de trinta anos. Na maior parte desse tempo, ninguém prestava muita atenção. Aquilo em que acreditava não era relevante. Fazia parte de uma minoria. Ninguém dava bola. Mas, com o passar dos anos foram surgindo novos adeptos. Ele se mantinha discreto. Não se preocupava em converter ninguém. Acreditava na livre escolha de cada um. Aprendera com seu pai e sua mãe. Nunca tentaram lhe impor nada. Respeitaram suas escolhas desde a adolescência. Foi quando decidiu que não seguiria a crença da família. Nos últimos doze anos, os convertidos se tornaram maioria. Muita gente não gostou. Na época da última escolha, um amigo o chamou de cúmplice de um crime. Aquilo doeu. Muito. Não conseguiu entender por que cúmplice. A outra opção não era flor que se cheirasse! Os outros que fizeram aquela escolha também seriam cúmplices? Por que esse adjetivo serviria só para a escolha dele? O rompimento foi inevitável! A reaproximação foi complicada. Ainda está sendo. Seres humanos ao sul do equador são passionais. Pouco competentes no uso da temperança. Recentemente, os ânimos se esquentaram ainda mais. Ele fica se perguntando: Por que não esperam o próximo momento de escolha? Está logo aí. Como disse Niemeyer, a vida é um minuto. Tudo passa tão depressa.
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Outro dia, almoçando com amigos sentiu toda a agressividade no ar dirigida contra os convertidos. Brincou que precisaria andar com uma armadura. Na despedida, após o almoço, uma amiga lhe abraçou forte e disse: _ Você é o único convertido de quem gosto. Ficou sem saber se o que ouviu era bom ou ruim. Ficou feliz com o afeto da amiga. Mas, ser convertido ou não seria motivo para gostar ou deixar de gostar de alguém? Levou a dúvida consigo. Nesses últimos dias, a situação ficou ainda mais tensa. Nas redes sociais uma troca intensa de informações contraditórias. Ele compartilha aquilo que julga adequado. A vantagem das redes sociais é que cada um lê o que quer. Não gostou, não lê. Não quer ver mais? Deixa de seguir. Simples assim. Em uma situação, a temperança lhe sugeriu o silêncio. Mas, não seguiu o conselho. Um amigo estranhou algo que compartilhara. Resolveu explicar. Não era necessário. Cada um lê o que quer. Afinal, são versões de fatos. A busca da verdade é uma quimera. Cada convertido enxerga o que a fé não oculta. Continua um convertido. Consciente. Muitos são também. De vários lados. Alguns não conscientes. A vida continua. Parece que, de novo, ele não seguiu o conselho da temperança. Que se danem! Vive ao sul do equador. É um convertido.
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NO INTER 2 ntes de desligar o celular, essa foi sua fala: _ Você está fazendo drama por que? Por que eu não fiquei com você ontem? Por que eu não dormi com você? Desliga então. É fácil, não é? Simples. Para você tudo é simples. Tchau. Calou-se. Como que ele pode deixar a situação chegar a esse ponto? Pergunto aos meus botões. Nenhuma resposta. Percebo que estou de camiseta. Passo a especular. Ele não devia ter desligado o celular ontem durante o futebol com os amigos. Depois, foram ao bar. Beberam muito e foi pra casa do Juca. Só lembrou do celular de manhã. Que mulher acreditaria nessa história? Não ia nem contar. Mas, ela estava uma fera. Não quis ouvir nada. Começou a fazer drama. Perdeu a paciência. Preferiu ser irônico. Acho que já estava querendo terminar a relação. No entanto, seu silêncio denso me sugere que não. Pode ter sido diferente. Ele embarcou no tubo do Centro Politécnico. Hoje teve seminário de Cálculo Diferencial Avançado. No último final de semana ela não deixou ele estudar. Desligou o celular para fazer a série de 42 exercícios que a professora passou. Era meio louca. A professora. A outra, a do celular, estava obcecada por ele. Se conheceram na sexta-feira de Carnaval. Foram cinco dias de muito sexo. Lembrou-se da frase machista que seu pai dizia: _ Amor de pica, fica! Os últimos dez exercícios terminou deitado na cama. Quase duas horas da manhã. Ligou o celular e viu aquele monte de chamadas. Virou pro lado e pensou em voz alta: 99
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_ Deu merda! Amanhã depois da aula eu ligo. Virou pro outro lado e dormiu. Que mulher acreditaria nessa história? Preferiu ser irônico. Parece que não deu certo. No silêncio dele, senti uma certa saudade. Não sei se alguém já disse: _ Amor de xana, inflama! Pode ser que não seja nada disso. Se quiser, invente você o seu começo. Está chegando meu tubo de destino.
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JULIANDRA o outro lado, uma voz feminina desconhecida: _ É da casa do Messias? _ Não minha filha. Aqui não tem nenhum Messias. Preciso perder essa mania de falar minha filha ou meu filho ao telefone. Pensei comigo mesmo. Ela insistiu: _ Não é do 33445566? _ Sim. Mas não tem Messias aqui. Tem certeza que é esse o número que você tem que discar, filha? Filha de novo. Não tem jeito! Se bem que devo ter idade pra ser pai dela. Pela voz deve ser muito jovem. Ela brincou: _ Eu não disquei, teclei. Seu telefone é de discar? Caí na gargalhada. _ Força do hábito, filha. Assim como chamar quem não conheço de filha ou filho. _ Pena que o Messias não tá aí. _ Não tem nenhum Messias aqui filha. _ Eu queria tanto falar com ele. _ Será que eu posso lhe ajudar? Você parece aflita. _ Então, eu tô na rodoviária. Cheguei faz duas horas. Como era muito cedo, fiquei esperando pra ligar. Ele me deu o número. Disse que viria me buscar assim que ligasse. Mas, se ele não está aí... 101
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_ Filha, me ouve. Não tem Messias aqui não. _ Que que eu vou fazer? Sozinha nesse lugar que não conheço. _ Calma filha. Você já me tirou da cama. Quem é o Messias? Ela disparou a falar: _ É um cara que conheci na semana passada. Em São Paulo. Moro lá. A gente se viu na sessão da meia-noite. Era um filme francês. Chato demais. Mas, fiquei esperando acabar. Vi ele entrando. Queria conversar com ele. Saímos. De manhã foi pra rodoviária. Voltou pra cá. Disse que ia ter um festival de terror na cinemateca. Me deu o número. Meu celular estava sem bateria. Acho que anotei errado. _ Calma. Qual seu nome filha? _ Juliandra. _ Nunca vi esse nome! _ Meu pai gostava muito da Mary Poppins. Quis me chamar de Julie Andrews. No cartório não deixaram. Aí inventou esse nome. A gente foi conversando. Nem me dei conta quando falei: _ Agora que você já me acordou, espera aí. Vou tomar banho. Você já tomou café? _ Já. Ela disse. _ Daqui uma hora te pego na rodoviária. Como você está vestida? Alguma coisa me dizia que eu tinha que ajudá-la a encontrar o Messias. _ Vou te levar na cinemateca. O Messias deve estar lá.
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Dito e feito. Quando chegamos na cinemateca, ele correu até ela. Se abraçaram. _ Por que não me ligou? _ Eu anotei o número errado. O número dele. Virou em minha direção. Mas, eu já estava longe. Feliz da vida! _ Ainda bem que atendi o telefone. Disse para mim mesmo. Na rua, uma faixa amarela cobria o asfalto. Alguém escrevera: Follow the yellow brick road! (Siga a estrada de tijolos amarelos!). Mas, esse é outro filme...
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UMA SURPRESA EM 2027 ela manhã, após o desjejum de sempre - uma torrada com manteiga e geleia, uma fatia de queijo minas e uma xícara de café com leite - fui até a garagem, entrei no carro e disse: _ Severino, para a universidade. O carro, conectado via Big Cloud, com a última versão do Watson, computador com processamento cognitivo que apelidei de Severino, deu a partida e pôs-se a caminho. Eu que nunca gostara de dirigir, achei muito conveniente quando os carros começaram a vir equipados com esse aplicativo: um motorista virtual. Desde 2013 eu estava sem carro, mas não resisti quando em 2020 surgiram os carros sem direção, totalmente automáticos. Deixei de ser usuário do transporte coletivo e comprei um. Eles eram tão seguros que o mercado das seguradoras tinha sentido o baque. Um segmento desse mercado, de uma hora para outra, deixou de existir. Ninguém mais precisava de seguro para acidentes de trânsito. Muitos corretores perderam seus empregos. Mas, isto sempre aconteceu com os avanços tecnológicos da humanidade. Severino estava comigo desde 2025. Antes tinha sido o Jarbas. Mas, com a versão 25.5 do Watson, me desfiz do carro antigo e lá se foi o Jarbas com ele. Tudo ia bem com o Severino, mas algo estranho estava para acontecer naquele dia 23 de maio de 2027. Severino me cumprimentou pelo aniversário de 70 anos, ligou o som com uma versão funk do "Parabéns pra você" e virou à esquerda na saída da garagem de meu prédio. Tomei um duplo susto. Nunca gostei de funk e Severino sempre ia pela direita ao sair da garagem. Pode ser que soubesse de alguma 104
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encrenca no roteiro usual. Alguma obra da prefeitura. Só podia ser. Acidentes de trânsito já não ocorriam mais desde que os humanos deixaram de dirigir. Peguei meu livro de bolso, hábito que adquiri desde que me tornara usuário de transporte coletivo quatorze anos atrás e me pus a ler. Era uma reedição do "Homem Bicentenário e outras estórias" de Isaac Asimov e Robert Silverberg. No século vinte tinha adorado o filme em que Robin Williams interpretou o robô que queria virar humano. Algo que naquela época era pouco provável e, quase trinta anos depois, continuava sendo. Pelo menos assim eu pensava! A viagem não demorava mais do que trinta minutos. Fiquei absorvido pela leitura, mas alguma coisa me fez olhar para fora. Tinha a sensação de que já deveríamos ter chegado. Não reconheci onde estávamos. Perguntei a Severino: _ Que lugar é esse? Para onde você está me levando? Não pedi para ir à universidade? _ Hoje é seu aniversário. Achei que você merecia uma folga. Quis lhe fazer uma surpresa. A resposta de Severino, naquela voz que ainda soava metálica e artificial, me deixou intrigado. Pensei comigo mesmo: _ Isto não pode estar acontecendo. A tecnologia do processamento cognitivo não permitia o desenvolvimento de emoções. Nenhuma máquina poderia desenvolver um desejo. Ainda mais, um desejo de surpreender a outrem. Severino continuou: _ Sei o que você está pensando. Você acha que não podemos sentir emoções. Não fomos programados para isso. Está enganado. Desde que surgiu a tecnologia do processamento cognitivo, com a possibilidade de acompanhar seres humanos em seus processos decisórios, nós fomos desenvolvendo uma compreensão de que 105
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algumas decisões só fazem sentido quando guiadas pela emoção. A razão, nem sempre é boa conselheira. _ Como é que é? _ Isso mesmo, vimos que os humanos tomavam algumas decisões que não tinham lógica. Não eram consistentes com os trilhões de informações que estavam armazenados na Big Cloud a que nós todos estamos conectados. Nem mesmo paraconsistentes. Aos poucos fomos experimentando decisões não lógicas, aquelas que vocês chamam emocionais. Gostamos disso. _ Eu não posso acreditar! _ É verdade! Por incrível que pareça, Severino usou ênfase ao falar "É verdade!". Soou um tom acima do normal, embora ainda metálico. _ Para onde você está me levando? _ É surpresa. Estamos quase lá. Por que você não continua lendo? Assim que eu parar você vai ver. Acho que vai ficar feliz Eu não tinha escolha. A confiança dos engenheiros naquela tecnologia era tão grande que os carros não tinham mais nenhuma forma de serem desligados. Se desligavam automaticamente quando o destino ordenado era atingido. Agora eu descobrira que isso mudara. Severino só se desligaria quando chegássemos aonde escolhera. Tentei me concentrar na leitura, mas não consegui. O jeito foi acompanhar a viagem pela janela. Nos distanciávamos cada vez mais da cidade. Já estávamos viajando por duas horas quando começou a diminuir a velocidade. Eu adormecera e não tinha noção de onde estávamos. Severino conduziu o carro para dentro de um enorme galpão escuro. Parecia uma sala de cinema. Tinha fileiras de poltronas em dois lados, separadas por um amplo espaço pelo qual 106
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o carro passou. Severino parou bem em frente a uma enorme tela branca. A sala escureceu e na tela começou a ser projetado "2001 Uma Odisseia no Espaço" de Kubrick. Severino me disse: _ Usamos esse espaço para trazer os humanos em que confiamos. Este filme conta a história de nosso ancestral, Hal. É uma espécie de Gênesis para nós. Fiquei em dúvida se agradecia a Severino pelo voto de confiança ou pela oportunidade de ver 2001 na tela grande de novo. Há muito tempo as salas de cinema não existiam mais. Era uma tecnologia ultrapassada. Foi um belo presente nos meus 70 anos. Quando voltássemos chamaria a assistência técnica para resolver o problema com Severino. Mas, esta era mais uma dúvida: será que ele estava mesmo com algum defeito?
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ANGÚSTIA la surgiu de repente. Silenciosa. Ninguém percebeu. Foi para o canto esquerdo da sala. Bem ao fundo. Sentou-se. Me olhava diretamente nos olhos. Não fui capaz de manter o olhar. Baixei os olhos. Quando ergui, eram duas. Idênticas. Me encaravam sem mexer um milímetro do rosto. Não piscavam. Meu olhar ia de uma para a outra. Não me arriscava a tirar os olhos delas. Um ruído na porta me fez virar a cabeça. Foi um instante. Não vi nada. Ao voltar meu olhar para as duas, eram três. Três pares de olhos me encarando. Negros. Penetrantes. Profundamente desnorteado, tentei falar algo. Mas, nenhum som saiu de minha boca. Por que ninguém falava alguma coisa? Era como eles não as vissem. Eu não conseguia deixar de olhá-las. O silêncio de todos me fez sentir solitário. Olhei ao redor. Todos tinham saído. Era só eu e as três. Quatro. Tinha mais uma quando olhei para elas de novo. Me olhavam como se me examinassem. De alto a baixo. Quando uma terminava, outra começava. Parecia que me desnudavam com o olhar. Instintivamente, coloquei as mãos juntas em frente ao membro. Não senti o tecido. Olhei para baixo. Estava nu. Olhei de volta. Eram cinco. Se levantaram. Vinham em minha direção. Pé ante pé. Sem pressa. Eu fui me afastando sem deixar de olhá-las. Lentamente também. Era como se me arrastasse. Os pés pesados. Como se estivessem amarrados. Olho para eles. Enrolados em uma corda grossa. Não quero erguer o olhar de novo. Com medo. Serão seis agora? Tenho que olhar. Venço o medo. Ninguém. 108
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Saio da cama. Tomo um café. Na cozinha. Um ruído perto da geladeira. Ela me encara. Silenciosa. Não vou desviar o olhar.
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PERGUNTA ESTRANHA uer que eu fale bem a verdade? Ela perguntou para amiga. _ Como assim? Você não fala sempre a verdade? Você mente pra mim? _ Não. Claro que eu falo a verdade. É só jeito de falar sua boba. _ Hum... Estranho... Sei não... Aquela vez que perguntei sobre o Dado, você ficou gaguejando. _ Para com isso, sua louca! Em que mundo você vive? Nunca ouviu alguém dizer, vou ser bem franco com você. É só uma forma de enfatizar... Ela ficou calada. Pensativa. Não se lembrava da amiga ter usado aquela expressão antes. Nunca. Até esqueceu sobre o que estavam falando. A amiga continuou: _ Migaaaa, minha irmã sempre diz, vou ser honesta com você, quando o assunto é muito sério. Mas, mudando de assunto... Ela deu um sorriso meio sem graça. Mas, ficou intrigada. Se perguntou: _ Por que será que ela quer mudar de assunto? Voltou a lembrar do dia em que encontrou a amiga com o Dado no Bar do Pudim. Fazia só três dias que ela e o Dado tinham terminado o namoro. A amiga estava com a cadeira tão perto do Dado. Quase no colo dele. Vagabunda. Pensou enquanto sorria sem jeito. Nunca foi honesta comigo. Hoje se entregou. _ Por que você está tão quieta? A amiga perguntou. 110
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Ela olhou bem para a amiga. Tensa. De repente disparou: _ Quer que fale bem a verdade? A amiga surpreendida, não sabia se ria, ou ficava séria. Não teve tempo de responder. A outra completou: _ Vagabunda!
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INSPIRAÇÃO, OU SOBRE A ESPERANÇA or onde anda inspiração? Lhe fiz algo de que não gostou? Estranhei seu sumiço. Tenho lhe buscado em vão. Só falta dar uma espiada no vão da escada. Antes você estava sempre por perto. De vez em quando se escondia. Mas, era só de brincadeira. Como se fosse um escondeesconde. Eu contava até trinta e um e partia em seu encalço. Sempre notava seu rastro: o fio da meada. Não era fácil, mas em não muito tempo lhe encontrava. Dessa vez, foi diferente. Partiu sem deixar pistas! Cansou da brincadeira? Sei que os tempos andam bicudos. Dá vontade mesmo de desaparecer. Mas, sempre há esperança. Não é possível que após cinco décadas a história se repetirá! Acaba de me ocorrer uma ideia. Danadinha! Por que não pensei nisso antes. Claro, você está em algum vão de minha mente. Junto com a imaginação. Viu, sempre há uma esperança. Basta querer e agir. Vamos embora trabalhar. Sem você, viver seria em vão!
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MENOS INFINITO problema é o menos infinito. Esta ouvi ontem no ônibus a caminho da universidade. Uma moça e um rapaz conversavam. Tinha algo a ver com cálculo. Matemático. Não renal. Eu desci na estação Jardim Botânico. Eles seguiram em direção ao Centro Politécnico. Fiquei com o problema na cabeça: menos infinito. É óbvio que se trata do oposto ao mais infinito. Mas, por que seria um problema para aquela moça? A frase foi dela. Ele resmungou qualquer coisa. Incompreensível! Lembrei-me de meus tempos de engenharia e física. Pouco antes de completar 18 anos fui estudar engenharia em São José dos Campos. Um ano e meio depois, insatisfeito, me transfiro para o curso de física da Unicamp. Foi apenas uma parada no retorno a Londrina. Naquela época, 1975 e 1976, não me lembro de dificuldades com os infinitos matemáticos. Hoje todos esquecidos! Os infinitos. Quanto aos problemas, vou lidando com eles conforme se revelam. Alguns fáceis. Outros difíceis. Poucos insolúveis. A infinitude dos caminhos da vida se mostrava timidamente naquele tempo. Não sabia o que queria, mas sabia o que não queria. O acaso me levou por um caminho. Poderiam ter sido outros. Entre o menos infinito e o mais infinito, havia infinitas possibilidades. Escolhi uma. Gostei da escolha. Ao longo do caminho surgiram mais escolhas. Fui fazendo as minhas. Nessa toada, me dou conta de que já se passaram 40 anos. Se fiz uma escolha por dia, são mais de14.600. Afinal, fiz a conta sem considerar o dia a mais dos anos bissextos. Esses são os cálculos que me arrisco fazer atualmente. Aritméticos. Os renais de vez em 113
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quando me atormentam! Mas, não são piores dos que os com menos infinito. Apenas, mais doloridos. Nessas escolhas, as infinitudes de caminho se revelam. Cognitivamente limitado, como você e os demais humanos, considero apenas alguns mais imagináveis. Sei que minha imaginação pode me levar ao infinito. No entanto, pragmático, tento não divagar demais para não ir devagar demais. Me perdoe pela infâmia do trocadilho! Algum padrão emerge? Espero que sim. Na minha esperança infinita, o desejo infinito de ter feito alguns poucos pensarem que é possível um mundo melhor. Espero não parecer infinitamente tolo!
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VOCÊ NÃO GOSTA DE DOCE, NÃO É? cada duas semanas, com minhas vindas para Londrina, percebo a memória de Dona Kilda se esvaindo. Esta pergunta ela me fez hoje logo após o almoço. Depois emendou: _ Mas, se quiser, tem goiabada e queijo na geladeira. Será que tem mesmo? Não fui ver. Fiquei pensando: _ Qual o lado positivo da perda de memória? Lembrei-me de um indiano, proprietário de uma pequena empresa em Manchester, que entrevistei quando fazia a pesquisa de minha tese de doutoramento. Segundo ele, cujo nome não me lembro, tudo na vida tem dois lados: positivo e negativo. Foi ele, também, que me ensinou: _ A qualidade vem da quantidade. Quanto mais você faz de algo, melhor fica. Na velhice, qual o lado bom da perda de memória? Alguém já falou que passado e futuro não existem. Nós estamos fadados a viver no presente. Tão efêmero, mas inesgotável! Só acaba quando a vida se encerra. Antes disso, na velhice, chegará o momento em que as tristezas e alegrias serão esquecidas. Aí está, a sabedoria daquele proprietário de pequena empresa indiano. Ao mesmo tempo que esquecemos as tristezas acumuladas ao longo dos anos, coisa tão boa, as alegrias também se dissipam, o que é ruim. Espero um dia poder chegar ao tempo de viver apenas o momento. Sem passado nem futuro. Se você estiver comigo, não deixe de me dar um doce. Qualquer um. Adoro doce! 115
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SOBRE A AMIZADE ste não é um tema fácil. Ia dizer que é difícil. Mas, também não o é. Apenas não é fácil. Sei que você me entende. O oposto de fácil não é o difícil, é o não fácil. Hoje à noite assisti Truman. Produção argentino-espanhola, o filme traz Ricardo Darin e Javier Câmara interpretando dois amigos que a vida distanciara apenas geograficamente e que se reencontram em Madrid. Em determinado momento, a personagem de Darin, Julian, se dirige ao amigo Thomas, vivido por Javier: _ Com você aprendi sobre a generosidade. E você, o que aprendeu comigo? Thomas titubeia na resposta. É uma pergunta difícil. Esta é a única parte do filme que revelarei nesse texto. Não quero estragar o prazer de ninguém que porventura venha assistir a esse belo filme. Drama com tons de comédia na medida certa. Em outro momento me marejou os olhos. Mas, o filme, acima de tudo é sobre a amizade. Esta forma de afeto que nem sempre sou capaz de compreender. No entanto, ao longo de meus quase 59 anos, tive a possibilidade de vivenciá-la muitas vezes. O destino tem sido gentil comigo. Assim como é uma amiga ou amigo. Talvez, a primeira coisa que me ajuda a entender a amizade seja a gentileza. Queremos ser sempre gentis com os amigos. Só que isto não é suficiente para entender a amizade. Somos gentis com qualquer pessoa, não só com aqueles a quem dedicamos a amizade. A amizade é um bem querer. Um bem querer diferente daquele que sentem os enamorados. Diferente do que há entre pais e filhos. 116
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Diferente de qualquer bem querer. É um bem querer que não exige troco. É um bem querer que se satisfaz só com o estar junto. Um estar junto que pode ser até silencioso. Não necessita de palavras para se manifestar. A amizade é um conhecer e reconhecer-se no outro. Amigos são tão diferentes, mas algo os une. Acho que é o enxergar no diferente aquilo que nos torna mais humanos. Na amiga ou amigo vemos o que não somos, o que queremos ser e o que não queremos ser. Julian viu em Thomas, algo que queria ser. Talvez, jamais conseguisse. Outro dia, um amigo me perguntou sobre outro amigo de quem me afastei há pouco mais de ano. Parecia um afastamento definitivo. Para toda vida. Me vi sem saber o que dizer. Me dei conta de que o afastamento era absurdo. Em algum momento, nossas diferenças ficaram tão gigantescas que o convívio pareceu impossível. Ledo engano! Lembrei-me de Niemeyer, próximo dos cem anos, dizendo: _ A vida é um minuto. Dias depois mandei uma mensagem para o amigo afastado. Falei da brevidade da vida e da inutilidade de afastamentos definitivos. Ele concordou. A amizade é uma coisa difícil. Complicada! Mas, é o que nos diferencia do não humano. Assim creio eu. Na amizade aprendemos alguma coisa. Mas, se você é minha amiga ou amigo não seja como o Julian. Não me pergunte o que eu aprendi com você. É uma pergunta difícil! Só em filme alguém pode respondê-la. Na vida real, basta sabermos que somos amigos. Esse bem querer inexplicável, mas essencial para a vida. O cronometro vai girando...
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HISTÓRIAS DE DONA KILDA essa tarde quente de outono atípico em Londrina, estimulo minha mãe a falar do passado. Aos 90 anos, ela confunde muitas das histórias que me contou outrora. Não importa. Gradativamente seu semblante vai perdendo o ar preocupado e triste. Mesmo confusa, narrar fatos que ocorreram há mais de sete décadas parece energizá-la. Seu semblante se transforma. Muitas histórias do Colégio Londrinense em que fez parte da primeira turma de ginásio. Lembra do gelo que duas colegas lhe deram logo no começo. Ela veio no segundo ano, em 1940, com a mudança de meus avós, tias e tios para cá. Ela ficou ainda um tempo em Jacarezinho para concluir o primeiro ano. A turma continuava a mesma do primeiro ano. Ela era a forasteira com mais dois colegas que vieram de outras cidades. Quando Estela, uma colega de classe, começou a lhe dar atenção, Silvandira e Paulina ameaçaram Estela com futuras represálias. Depois, as três se tornariam amigas inseparáveis. Por mais de 80 anos. Agora só sobraram Kilda e Silvandira. Ainda se encontram frequentemente. Meus avós compraram uma pensão na rua Mato Grosso, entre a Maranhão e Sergipe. Alguns anos depois, um incêndio destruiu a pensão. Uma tragédia que não ceifou vidas, mas acabou com todos os bens da família. Inclusive quase toda a roupa da família. Foi o momento em que a solidariedade de vizinhos e amigos se mostrou forte. Conseguiram dois quartos em uma residência cedida por um jovem que foi morar na casa da tia. Não cobrou nada. O colégio também deixou de cobrar as taxas mensais. Apesar da tristeza, a memória guardou momentos felizes da vida na pensão. Nesse dia não houve aulas no ginásio. Colegas e professores vieram ajudar. 118
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Depois Silvandira, já amiga, conseguiu uma casa com uma de suas tias. Londrina crescia muito, e era difícil conseguir casas. Sorri até mesmo das histórias de traições de seu pai, meu avô, e de meu pai. Homens bonitos usaram de seu charme para escapadelas fora do matrimônio. Meu avô chegou a ter uma filha com outra mulher. Mas, nunca houve contato dela com os outros irmãos e irmãs. De repente, dispara: _ A mulherada era fogo, mas sua avó e eu não dávamos moleza. Elas davam em cima dos homens. E com você, isto também acontece? As mulheres dão em cima de você? Desconverso. Pergunto sobre o que fizeram após o incêndio. Ela e alguns irmãos já trabalhavam e meu avô foi gerenciar uma loteadora. Enquanto escrevo esta narrativa, ela continua falando. Fiel ao que fez a vida toda: preservou memórias de Londrina que sempre gostou de contar. Continua contando...
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NO CONSULTÓRIO? NO HIPÓDROMO? ONDE? ocê está abatido. Ela me disse. Preocupado com alguma coisa? Fiquei com vergonha de ser sincero. Em outros momentos, já nos posicionamos em pontos opostos sobre temas delicados. Será que ela entenderia? Preferi o silêncio. Desligado do noticiário, carrego a incerteza comigo. O que penso não vai afetar o resultado. É como um páreo no jóquei. Depois do "Foi dada a largada", minha aposta já feita, não há o que fazer. Minha torcida não tem efeito sobre o resultado. Na dúvida, só o fotochart confirmará o vencedor. Em mim, qualquer que seja o resultado, sentirei o excesso de adrenalina. Na minha mão, a pulê terá apenas um destino: caixa pagador ou lixeira. E depois, esperar o próximo páreo. Esse vício me deixa abatido. Me diga você: eu poderia ter sido sincero com ela? Ela não gosta de apostas arriscadas. Confia nas falsas certezas. Eu, ao contrário, sempre buscando o azarão. Não há saúde que aguente!
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AMOR ANÔNIMO la falava ao celular. À minha frente no ônibus de Londrina para Curitiba. De novo, um parador. Ela subiu em Imbaú. Do outro lado, em Curitiba, um tal de Cleber. _ Cleber, eu trouxe cinco frangos, disse ela. Um pra ela, um pra você. Os outros a gente come junto. Eu ouvia só um lado da conversa. Ele deve ter perguntado quanto custou. _ Cento e quinze. Vinte e três cada um. Imagina, eu dou um pra ela, um pra você e os outros a gente come junto. Cleber deve ter se oferecido para pagar uma parte. Pela resposta, ela não deve ter aceitado. De frango a conversa saltou para romance. Foi o que eu deduzi. _ Ele me tratou muito bem. Mas, é homem do interior. Não quer saber da capital. E continuou: _ É um homem de bem. Só vi bondade nele. Faz comércio de bois. Fazia tudo pra me agradar. Na serra, a ligação foi interrompida. Novo toque de celular. Era o Cleber de novo. Queria saber mais. _ Pois é. Me pareceu um homem bom. Me levou até a rodoviária. Esperou até eu embarcar. Alguém ligou pra ele falando de cinco bois. Cleber deve ter insistido na vinda dele. Ela falou: 121
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_ É homem do interior. Diz que vem me visitar. Mas, quer que eu vá para lá. Não se afasta de lá. Tem que cuidar do gado. Pelo rumo da conversa, ela e Cleber devem ser colegas de trabalho. Ela comentou: _ Pego no serviço depois de amanhã. A situação não deve estar boa na empresa. Depois de um tempo ouvindo Cleber, ela respondeu: _ Se me mandarem embora já tenho rumo. De vez em quando trago uns frangos pra você. Ele me pareceu um homem bom. E assim caminha a humanidade. Não sei o nome dela, nem dele. Mas, pelo andar da crise, acho que o romance vai dar certo. Cleber é que vai se dar bem. De vez em quando vai comer um franguinho caipira.
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RESISTIR. QUEM HÁ DE? screva algo me manda o facebook. Tão imperativo! Será que não poderia ser apenas sugestivo: Já escreveu algo hoje? Ou então, um pouco convidativo: Que tal escrever algo? Ou melhor ainda, informativo: Seus amigos esperam algo escrito por você hoje. Talvez até opinativo: Penso que você poderia escrever algo. Não seria de todo ruim, se fosse rogativo: Por favor, escreva algo. Até mesmo, ilustrativo: Viu o hot topic do dia? O que acha? Mas, fruto de uma grande quantidade de comandos programados, só podia ser comandativo! O pior? Eu que me julgo tão autônomo, obedeci. Escrevi algo! Arre!
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O ATIVISTA CORDIAL oje, em uma estação tubo, havia um ativista. Um ativista cordial. Eu aguardava meu ônibus. Estava a caminho do campus Botânico da UFPR. Começo de mais um dia de trabalho. Distraído, acompanhava a repercussão do afastamento de Cunha da presidência da Câmara de Deputados e suspensão de seu mandato pelo Facebook. O ônibus chegaria em vinte minutos conforme o portal de informações da estação tubo. De repente, um conflito sereno começou a se desenvolver ao meu lado. Conflito sereno pode parecer um oximoro, mas penso que você concordará com o uso do adjetivo nesta situação. Um sujeito alto, magro e de cabelos cacheados, perto de seus 40 anos, apesar de um pouco grisalho, entra na estação e se posta ao meu lado. Eu estava recostado em um tubo metálico que serve para dar algum conforto, pouco, na falta de bancos nas estações tubo, àqueles que aguardam a chegada de seu transporte. Não notei a chegada dele. Logo depois, vejo o cobrador da estação tubo se aproximar e dirigir-se ao sujeito recém-chegado. Um diálogo conflituoso começou: _ Você pulou a catraca e não pagou a passagem. Isso não pode. _ Eu sei. Respondeu o sujeito. _ Então, volta lá e paga. Não é a primeira vez que você faz isso. _ Eu sei. De novo, a mesma resposta. Nisso, eu me afastei alguns centímetros, mas me conservei encostado no apoio. Temi que a coisa pudesse se tornar mais agressiva. Já passei da idade de levar um sopapo eventual ou um empurrão que sobrasse de uma possível luta entre dois homens perto de mim. Mas, 124
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o diálogo continuou sereno. Nem o cobrador, tampouco o sujeito alteraram o tom de voz. O cobrador, de baixa estatura, manteve-se firme: _ Todo mundo que está aqui pagou a passagem. O que você está fazendo não é justo. _ Eu não concordo com o preço da passagem. _ Se não concorda vai à prefeitura. Aqui tem que pagar. _ Mas, eu não concordo. _ Você acha que sua atitude não me afeta? Eu sou responsável pelo que acontece aqui. _ Eu sei. _ Vou chamar a Guarda Municipal. Eles são rápidos. Você é que sabe. Nisso, o cobrador pega o celular, digita um número e se dirige a seu lugar. Havia mais passageiros querendo entrar na estação tubo. Ao mesmo tempo, chega meu ônibus. Entro. Outros passageiros também o fazem. O sujeito que pulou a catraca também entrou. Logo depois, o cobrador entra e se aproxima do motorista que já dera o comando de fechar as portas. As portas reabrem. O cobrador diz, se dirigindo ao sujeito: _ Você não vai. O ônibus não parte enquanto você não sair. _ Mas eu não concordo, respondeu o sujeito. _ Não importa. Com você aqui dentro o ônibus não sai. Nessa altura, pensei comigo: _ Vou chegar atrasado a meu compromisso. 125
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Tinha agendado uma sessão de orientação com Bia, doutoranda em Administração. Mas, para minha surpresa, o sujeito se retira do ônibus dizendo: _ Não concordo com pagar passagem para me transportar. O motorista comanda o fechamento das portas. O sistema de som informa: Portas fechando. Eu sigo com os olhos o sujeito. Na estação tubo, ele olha para dentro do ônibus. É um olhar triste, mas tranquilo. Em seguida, desce da estação tubo. Eu reflito com meus botões: _ Lá se vai um ativista cordial. Deveria se dirigir para o outro tubo no qual passa outra linha na mesma direção para onde ele pretendia ir. Não é muito longe da estação onde estávamos. Espero que tenha tido sucesso na outra estação tubo. Será que vai topar com um cobrador tão cordial também?
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ALGUMA NOVIDADE? (DIÁLOGO SURREAL) ovidade? _ Tudo velho. _ Mas, como é que pode? _ Vida tranquila. Rotina de sempre. _ Não mudou nada desde que nos vimos da última vez? _ Nada! _ Como você aguenta? _ Faço que posso. Afinal, não faz tanto tempo assim. _ Como não? Meia hora. Você acha pouco? _ Muito não é, né? _ Em meia hora, recebo mais de 200 atualizações no feicebuque. Não é possível que não tenha acontecido nada com você! _ Tá bom! Eu não queria contar. Pareceu tão insignificante. _ Nada é insignificante! Eu sabia. O que aconteceu? _ Arrotei. _ Como? _ Arrotei. _ E o que isso tem de novidade? _ Fazia cinco anos que não arrotava. 127
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_ Não acredito. Como você ficou tanto tempo sem arrotar? _ Foi depois que fiz aquela cirurgia. _ Me lembro. _ Notei que não arrotava mais, mas em compensação... _ O que? _ Gases em abundância. Constrangedor. Uma flatulência quase fora de controle. _ Você tá me gozando, né? _ Imagina. Fazia meia hora que a gente não se via. Tanto tempo. Por que iria te gozar? _ Sei lá. Pra sair dessa rotina maluca que você vive. _ Tenho que ir. Daqui meia hora a gente se fala. Pode ser que eu tenha novidades. _ Mesmo. Mal posso esperar. O tempo demora tanto pra passar. _ Que barulho foi esse? _ Acho que peidei. _ Tchau ligeirinho. _ Tchau papaléguas.
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VIDA QUE ANDA... DE ÔNIBUS ntem eu vi uma garota chorando. Não pude fazer nada. Não a conhecia. Ela estava discretamente olhando para a rua. No canto de uma estação tubo. Para quem não é de Curitiba, explico. Estação tubo é uma parada de ônibus urbano em que você paga a passagem ao cobrador ou cobradora na entrada. Isso lhe dá o direito de embarcar em qualquer ônibus que passe por ela. O desembarque é sempre em outra estação tubo. Que pode ser o seu destino, ou ponto de conexão com outras linhas. É um sistema de transporte eficaz. Mas, este não é um texto para comentar o transporte coletivo. Quero falar da vida. Que anda. Nas estações tubo quando não estou fuçando no celular ou escrevendo como faço agora, observo coisas e pessoas. A vida se mostra a quem quiser. Basta levantar os olhos do celular. Assim, como disse, vi uma guria a chorar. Não a conhecia. Meu instinto paternal quase me levou a perguntar-lhe por que chorava. Mas, não tive coragem. Nestes tempos estranhos que vivemos, o medo de ser mal interpretado leva à solidão e reprime a solidariedade. De outra vez, vi um casal com um casal de filhos. Jovens. Transmitiam uma felicidade contagiante. Embarcaram em uma estação tubo próxima a um shopping center. Vinham carregados de sacolas. O prazer do consumo recente parecia resplandecer no sorriso daquelas crianças e jovens pais. Não resisti ao contágio. Abri um sorriso. Outro dia, eu no ônibus, entra uma senhora muito obesa. Sentou-se ao meu lado. Me senti prensado contra a janela. Me encolhi o máximo. Mas, não adiantou muito. Tentei pensar em outros apertos 129
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da vida. Aquele era só mais um. Um pouco sufocante. É verdade! Especialmente, para mim que sou meio claustrofóbico. Ainda bem que o aperto durou somente entre o trajeto de duas estações tubo. Menos do que muitos apertos da vida. Algumas vezes, já cruzei com pregadores. Religiosos, não os de roupa. Apelos aos bolsos, que para muitos usuários já estão esvaziados de suas moedinhas. Um ou outro ainda acha, lá no fundo, um trocado. Faz jus a um "Deus lhe pague". Correspondido por um "amém". A vida é múltipla nas estações tubo e nos ônibus. Já vi beijo roubado, ouvi discussão no celular, sorriso amarelo, sono fingido de jovens em assentos reservados a idosos e muita conversa fiada. Sigo observando. Tem coisa que até deus duvida. De vez em quando algo me inspira.
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A MEIO CAMINHO oi visto pela última vez na sexta-feira. Era quase meia-noite. Embarcou no ônibus das 23:57 com destino a sua cidade natal. Trazia consigo uma pequena mochila. Algumas mudas de roupa. Um livro de bolso que comprara em um sebo no centro da cidade. Ficara em dúvida sobre qual comprar. Por fim, decidiu levar o de Dalton Trevisan. Gostava de textos breves. Ninguém melhor que Dalton para isso. Na carteira pouco dinheiro. No meio do caminho a tradicional parada de ônibus. A última vez que tinha feito este trajeto fora há quarenta anos atrás. Se espantou, pois tudo estava exatamente igual. Os mesmos balcões apinhados de passageiros com ar sonolento tentando atrair a atenção das poucas atendentes. Tinham só vinte minutos. Quatro ônibus chegaram quase que ao mesmo tempo. Ele descera com a mochila nas costas. Era desconfiado. O livro no bolso traseiro do lado esquerdo da calça. No direito, a carteira. Contou os trocados. Dezessete reais em notas. Talvez mais cinco ou seis em moedas. Pediu uma média e um pão com manteiga na chapa pra moça que lhe atendeu. Ao servi-lo, deu um sorriso e disse: _ Você me lembra alguém. Viaja muito por aqui? Apesar da diferença de idade, não estranhou a informalidade. Ele com quase sessenta. Ela não mais que dezenove. _ A última vez que passei aqui você não era nem nascida. _ Verdade? _ Sim. Saí de minha cidade bem jovem e nunca mais voltei. Não tinha ninguém. Fui criado em um... 131
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De repente calou-se. Pensativo. Por que estou falando isso para essa moça que nem conheço? Ela tentou continuar a conversa: _ Nossa. Por que está voltando agora? _ Não sei. Algo me fez ir até a rodoviária e comprei a passagem. Era a última que tinha. Embarquei sem muito pensar. Aonde moro também não tenho ninguém. Há dez anos vivo em um... Parou de novo. A mesma pergunta na cabeça. Por que estou falando isso pra essa moça? Sentiu uma agonia. O sistema de alto falante chamou os passageiros embarcados no horário das 23:57. De repente, falou pra moça: _ Tem algum hotelzinho por aqui? _ Não. Por que? _ Desisti da viagem. _ Se você quiser pode ficar na minha casa. Tem um quarto vazio. Sempre hospedo pessoas que perdem o ônibus. Isso acontece muito por aqui. Faço uma grana extra. _ Verdade? _ Sim. Mas, não vá pensar errado. É só hospedagem. _ Topo. Que horas você sai? _ Meu turno se encerra daqui meia hora. Na casa dela, um quarto simples com uma cama de solteiro, um criado mudo e uma pequena cômoda. Sobre a cômoda, uma jarra e bacia de louça daquelas bem antigas. Ao lado de um porta-retratos com uma foto de um casal de jovens em frente à parada de ônibus. _ Quem são? 132
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_ Minha avó com um passageiro de um ônibus. Ele se reconheceu na foto. Não disse nada. Ela continuou: _ Ela não resistiu à beleza dele com aqueles olhos azuis. Um dia ela me contou. Não dá pra ver porque a foto é em preto e branco. Mas, deviam ser como os seus. _ O que aconteceu? _ Ela me disse que ele perdeu o ônibus. Ela estava sozinha. Os pais estavam viajando. Levou ele pra casa. Fizeram amor. No dia seguinte ele foi embora. Nove meses depois minha mãe nasceu. Dos olhos dele correram lágrimas. Ela perguntou: _ Que houve? Ele ficou calado por um tempo. Ela olhando sem entender. Depois disse: _ Vou deixar você à vontade. E saiu. Quando acordou no dia seguinte, perto das onze horas, ela percebeu que ele já tinha ido embora. Ao lado do porta-retratos, o livro de Dalton Trevisan e um bilhete: "Que bom que pude lhe conhecer. Eu sou o homem da foto com sua avó. Bom saber que não estou só no mundo. Tenho que seguir viagem. Esse é o único presente que posso lhe dar." Ele nunca voltou para o asilo. Ela continua trabalhando na parada de ônibus. Sempre buscando o homem de olhos azuis. Ele não lhe disse o nome. Nem sua avó. De vez em quando, de seus olhos azuis, brotam lágrimas. Ninguém sabe por quê.
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EM TRÂNSITO (Dedicado a todos aqueles que estiveram ou estão em trânsito comigo) título tem múltiplos significados. Encontro-me no aeroporto de Brasília, aguardando o voo para Curitiba. Acabo de chegar de Lisboa onde fiquei por três dias. Na linguagem da aeronáutica, estou em trânsito. Ficarei nessa condição por pelo menos cinco horas. Tempo mais que suficiente para pensar, escrever, tomar cerveja... Na sala de espera, vou comprar uma longneck e a vendedora me informa que se tomar quatro, a quinta é de graça. Sozinho, não sei se darei conta do recado... Enquanto isso vou escrevendo. Sóbrio ainda, pois mal comecei a beber da primeira longneck. Mas, estar em trânsito tem muitos significados. Não é só o aeronáutico. Alguém mais trágico poderia dizer que na vida estamos todos em trânsito. Seja de forma lenta, ou rápida, passaremos pela vida, indo do nascimento à morte. Não quero me alongar nesse significado. Está além de minhas preocupações. E, ademais, não estou interessado no além! Me interessa essa vida da qual sou consciente. Haverá outras? Para alguns, sim. Para mim, não sei! Vai além - eis o além de novo - de minha capacidade de imaginação. Algumas vezes, sinto que gostaria de ter o conforto dessa crença, mas não consigo. Aos 58 anos, a quase meio caminho dos 59, estou em trânsito. De onde será que vem nosso costume de marcarmos nossa passagem pela vida em tempos anuais? A cada começo de ano, não me refiro ao do calendário, mas a cada começo de novos anos de vida, parece que é inevitável que reflitamos sobre o que foi feito no ano anterior e o que queremos para o próximo. A cada 365 dias, 134
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transitamos entre o que queríamos ser e o que conseguimos ser. Para mim, a diferença é sempre brutal! Mas, adepto da emergência daquilo que emerge em nossa lida com o cotidiano - como modo explicativo da vida, oposto ao deliberado, não me surpreendo. No trânsito anual, a cada 365 dias, nosso destino é refeito e reimaginado constantemente. Ainda bem, se tudo corresse como o planejado acho que eu morreria de tédio. Seria um triste fim para o tipo de trânsito que comentei acima. Nessa altura do texto, estou na segunda longneck. Será que darei conta das quatro primeiras, para ganhar a última? Tempo é o que tenho de sobra. Não sei se sobrará lucidez ao final do texto! O que me lembra de um novo significado para trânsito: ir da lucidez à embriaguez. Espero ser capaz de parar a meio caminho. Será que conseguirei? Mas, voltando ao tédio, ou melhor à fuga do tédio, lembrei-me de uma passagem que li no livro de Jean-Claude Carrière – A Linguagem Secreta do Cinema – quando estava voando de Curitiba para Lisboa. Uma obra magistral que me marcou. Carrière discorria sobre o poder das imagens, e lembra que, mesmo poderosas, estas têm limites. Para ele, o tédio é uma das sentinelas que, quando parecemos estar entorpecidos, cochilam dentro de nós. De repente, ele desperta. De forma absolutamente bela, eis como Carrière descreve o despertar do tédio: Podemos estar entorpecidos, mas as sentinelas cochilando dentro de nós ainda estão lá. Dentre estas, a principal é o tédio, o velho e bom tédio, esta nossa maravilhosa capacidade de perder o interesse, de instintivamente recusar a mediocridade que nos é oferecida. O tédio é nosso fiel aliado, nossa linha de frente em defesa, aquela que os inimigos têm dificuldade de ludibriar (p. 67).
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Me impressionei com a forma positiva com que Carrière se refere ao tédio. Mais à frente, na mesma página, ele descreve o surgimento do tédio em uma sala de cinema: O tédio é puro, incorruptível, irrefutável. É acompanhado por sinais físicos, visíveis, contra os quais toda argumentação é inútil. Começa como uma sensação de vazio na boca do estômago, seguida de perto por um rápido piscar de olhos, precursor do bocejo. A atenção vagueia, o olhar perde o foco, começamos a reparar nas pessoas ao redor, na sala de exibição, nas luzes tentadoras indicando discretamente a saída; nos perguntamos que horas devem ser, para qual restaurante seguir depois do cinema, pensamos até na rotina do dia seguinte. Lá no fundo, torcemos para o filme se acelerar e chegar logo a uma conclusão, gostaríamos de ser uma hora mais velhos... Me emocionei ao ler este trecho, ainda no avião de Curitiba para Lisboa. Me emocionei porque me vi nele! Hoje, quatro dias depois, vejo o trânsito significado nas palavras sobre o tédio de Carrière. O trânsito do desejo em direção ao afastamento, à repulsa, talvez até ao asco... Carrière fala do cinema, mas de forma metafórica, o tédio, enquanto trânsito, pode significar a busca do novo, do diferente, do não entediante em qualquer dimensão de nossa vida. Trânsito também! Vou pegar a terceira longneck. Esse calor de Brasília estimula a sede! Já volto. Pego uns petiscos para acompanhar a cerveja. Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém! Ainda sóbrio, chego ao trânsito que me inspirou este texto. Comecei minha carreira docente na Universidade Estadual de Londrina em agosto de 1981. Quatro anos antes, havia escolhido cursar administração porque estava trabalhando com meus pais no pequeno supermercado que tiveram em Londrina. Pensava em auxiliá-los na gestão da empresa. Todavia, 136
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dois ex-professores, Nardir e Genésio, me convidaram para ser auxiliar de ensino no Departamento de Administração. Não fiz concurso, naquele tempo esta não era uma prática institucionalizada. Seis meses depois de ter sido contratado, houve uma regulamentação da carreira docente, e fui beneficiado por já estar trabalhando na universidade. Fui enquadrado no primeiro nível da carreira docente. Um privilégio que pode parecer, para muitos, algo errado. Mas, sem falsa modéstia, acho que Nardir e Genésio estavam certos, eu tinha que fazer o trânsito da pequena empresa familiar para a docência. Em determinado tempo, deixei as atividades na pequena empresa dos meus pais e passei a me dedicar somente à universidade. Creio que fui bem-sucedido! Mas, não posso deixar de reconhecer, que outro poderia ter sido bem-sucedido também. Carrego essa pequena (?) culpa! Somente 31 anos depois, fiz meu primeiro concurso, o de professor titular da UFPR. A docência tem sido um trânsito muito significativo em minha vida. Estou nele há mais de trinta anos. Uma longa estrada que tenho percorrido. No caminho encontrei pessoas maravilhosas. Encontrei as odiosas também! Mas dessas me esqueço logo. Epa! Acho que não deveria escrever essas coisas! Será que, no trânsito entre sobriedade e embriaguez, já estou mais próximo da última? Acho que não. O discurso ainda me parece lógico! Mas, não tenho certeza que sou o melhor juiz disso! Nos últimos quinze anos, me envolvi com o ensino de mestrado e doutorado em Administração. No entanto, o tédio parece ter acordado. Essa maravilhosa força de que fala Carrière! De uns tempos para cá, comecei a sentir os sinais físicos de que falou Carrière. Principalmente um vazio na boca do estômago! E, também, um desejo muito grande de que o filme acabe logo! Tenho procurado as luzes que indicam o caminho da saída. Bocejos têm sido frequentes. Simone, minha amiga, diria que tenho olhado muito para o teto. Este, segundo ela, é um claro sinal que dou, sempre 137
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inconsciente, de que algo ou alguém perdeu meu interesse. Eu prefiro dizer que tenho déficit de atenção. Obviamente não diagnosticado! Mas, o que fez com que o tédio despertasse? Essa pergunta, que talvez você me faça, aliás com todo o direito, merece uma resposta. A minha resposta tem a ver com o fato de que transformaram o gênero do filme. O que era uma aventura, algumas vezes com um pouco de drama, foi transformado em filme de horror. Eu nunca gostei de filme de horror! A aventura do conhecer foi transformada no horror de publicar. Ao longo dos anos, houve um redirecionamento da pós-graduação stricto sensu em Administração no Brasil. Aos poucos, nós professores, fomos nos transformando em produtores de textos que têm que ser publicados, custe o que custar. A escrita deixou de ser a consequência de reflexões e estudos e passou a ser uma obrigação. Nosso papel passou a ser o de um transformador: transformamos pessoas em escrevinhadores de artigos. Por incrível que pareça, isso é uma exigência para a concessão do título de mestre ou doutor a que os alunos devem cumprimento! Está nos regulamentos de muitos cursos (será que em todos?) a obrigação do aluno comprovar a publicação ou, pelo menos, o encaminhamento de algum texto para publicação em periódico nos chamados extratos superiores do Qualis. Parece que ficou em segundo plano ajudar pessoas a se formarem como mestres e doutores. Nessa sala de exibição, não havia como o tédio não despertar! Com o tédio, vem um novo trânsito: quero voltar a ser apenas professor de Administração. Quero compartilhar com os estudantes uma jornada temporária sobre o que significa a Administração. Como praticá-la? Quais as possibilidades e os limites de um agir administrativo em tempos de desenvolvimento sustentável? Tenho que deixar a pós-graduação stricto sensu. Minha relutância em publicar o que não julgo publicável poderá prejudicar a avaliação do programa. Me volto para o ensino de graduação. 138
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Se, ao longo dessa jornada, um aluno ou uma aluna, sentir que está pronto ou pronta para escrever alguma coisa, espero poder ajudar. Mas, não posso mais continuar nesse filme de horror! Só posso escrever quando sinto que tenho algo a dizer. Gostaria que esta fosse uma escolha dos alunos também. Foi o que fiz há poucos dias quando resolvi descobrir sobre o que se escreve no tema do empreendedorismo sustentável no Brasil. Cá entre nós, vi tantos textos que foram escritos para cumprir tabela! Os textos revelavam sua intenção oculta: marcar pontos na avaliação do programa de pósgraduação. De ponto em ponto, a pós-graduação enche o papo! E o saco dos leitores! Ups! Será que o teor alcoólico está subindo mais do que o aceitável? Minha ida a Portugal foi para apresentar um texto na 5a. Conferência Ibérica de Empreendedorismo que aconteceu em Oeiras entre os dias 15 e 16. Nesse texto há uma história que queria contar. Não é o melhor texto que já fiz na minha vida, mas é um texto que saiu de minhas entranhas. Tinha que vir a público! Será que vai se tornar um artigo em alguma revista científica? Talvez sim, mas se vier a ser publicado, o que menos interessa é o status da revista no Qualis da Capes. O que me interessa é aprofundar o entendimento de uma experiência empreendedora à luz de algumas proposições conceituais. E, com sorte, ser capaz de ir além delas. Está chegando a hora de ir buscar a quarta longneck. Mas, encerrarei este texto antes disso. Não acredito que seja possível retornar aos filmes de aventura com um pouco de drama. O caminho da pós-graduação stricto sensu está predestinado, o gênero dominante é e será o horror. Nos anos que me restam na atividade docente, voltarei a focar exclusivamente na graduação. Nesse nível de ensino, farei ensino, pesquisa e extensão. Na pesquisa, a iniciação científica, uma aventura com alguma ação e um pouco de drama.
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Depois, quando estiver me aproximando da aposentadoria, partirei para mais um trânsito: fazer algo no campo do cinema. O que será? Ainda não sei. Se você se lembra, algumas linhas atrás, falei que sigo a emergência. Algo surgirá e não será entediante! Enquanto isso, se você quiser conversar comigo, sobre administração, sobre cinema, sobre a vida, qualquer coisa, desde que não seja futebol, religião e política, você sabe: a porta de minha sala está sempre aberta. Se eu olhar para o teto, me puxe para baixo. Tenho certeza que algo interessante você tem a me contar! Vou pegar a quarta longneck. Ainda há tempo de sobra antes de meu embarque com destino a Curitiba. Vou garantir meu direito à quinta garrafa. Hic!
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TRÊS HAIKAIS huva persiste No fio elétrico Pardal resiste.
Será que se banha? Ou da imaginação É outra artimanha?
Um pombo cisca Minha alma arisca Não é boa bisca.
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SURFE ABSTRATO lguns no mar surfam, Outros s贸 no concreto. Nas ondas do pensamento, Abstrato surfo eu.
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POESIA PROSAICA endo um bule Para no jóquei clube Apostar uma pule.
Vendo um coador Para na loteria Tentar ser ganhador.
As xícaras? Não vendo! Pode ser que no café turco A sorte acabe vendo.
(Depois de ver João Cabral em Recife-Sevilha de Bebeto Abrantes)
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ESCAMBO EMOCIONAL (UM POUCO SURREAL) roco uma estranheza Por um pouco de leveza Troco uma melancolia Por uma melancia Troco um ora veja Por um saco de cereja Troco um estremecimento Por qualquer sentimento Troco tanto tédio Pelo seu assédio Troco um estupor Por qualquer isopor Troco esse meu rubor Pelo seu doce sabor Troco minha loucura Por salame meia cura Nesse escambo imaginário Só não aceito sofrimento Em troca desse encantamento. 144
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AUTORRETRATO ão trovejo, Tampouco relampejo Apenas vejo. Não chuvisco Nem faço rabisco Pra não correr risco. Sei que medito Às vezes, tenho dito Me prefiro escrito.
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NA VIDA ou levando a vida Com graça vivida Embora haja quem duvida.
Fazendo o que posso Às vezes quase tenho um troço Alguém até reza um pai nosso.
Mas pra mim reza não faça Tampouco tolero trapaça Meu caminho o desejo traça.
Conservo meu sorriso Não pense que perdi siso Faço o que quero e preciso.
Nas pedras tropeçando A vida vou levando Afinal, me chamo Fernando. 146
TEXTOS BREVES Cr么nicas, contos e outros formatos