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Por Luísa Monteiro
Habitat/civilização e os sentidos da existência Viegas Guerreiro a propósito da ideia de “ raça” de Oliveira Martins
Luísa Monteiro
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RESUMO: Neste artigo explora-se o pensamento de Viegas Guerreiro a partir da Fenomenologia heideggereana no que concerne ao preconceito face à raça, expresso numa das obras do historiador Oliveira Martins. Guerreiro publica o ensaio “Habitat/Civilização” no ano da entrada de Portugal na CEE numa clara defesa de uma civilização que inclua o “Nós” no sentido do “habitar”, “cuidar“, no âmbito das estruturas ontológicas da Existência. PALAVRAS-CHAVE: Raça – Presunção – Fenomenologia – Espaço.
Viegas Guerreiro (1912-1997), com formação de base em Filologia Clássica1 , teve a grande ousadia de “varejar” em público, em 1986, o gigante da História portuguesa da “Geração de 70”, Oliveira Martins (1845-1854). Não as datas, não os factos, mas o seu pensamento, no que respeita a um “ puro ” e “estreito” “determinismo geográfico”, para explicar factos da “civilização”. Dirigir a palmatória a quem foi venerado por gerações de intelectuais, é quase o mesmo que dar um açoite a todo um país que se preparava na altura para o seu segundo fôlego de liberdade – depois da Revolução de Abril – e que seria a entrada na CEE –Comunidade Económica Europeia. O “açoite” surge em forma de ensaio, com publicação na série “Biblioteca breve”, volume 108, editada pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, do Ministério da Educação, com o título Temas de Antropologia em Oliveira Martins2. A epígrafe usada por Viegas Guerreiro, da autoria do rei D. Duarte I – autor de Leal Conselheiro, tratado de ética e moral que se crê ter sido escrito por volta de 1438 –, permite antever as intenções de Viegas Guerreiro, na medida em que escolhe este excerto:
1 Licenciou-se em 1936 em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras de Lisboa. 2 GUERREIRO, Manuel Viegas (1986) - Temas de Antropologia em Oliveira Martins. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa - Ministério da Educação. Série “Biblioteca breve”, vol.108.
MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
Aprazer-me-ia que os leitores deste tratado tivessem os modos da abelha que, passando por ramos e folhas, [é] nas flores [que] mais costumam de pousar, e dali pilham parte do seu mantimento. E [que] não sejam como aqueles bichos que, ignorando todas as coisas limpas, nas mais sujas pilham a sua governança.
O alvo é a presunção intelectual e o preconceito em relação à mulher, à família, à província e muito em especial ao que Oliveira Martins denomina de “dotes psicológicos das raças”, “responsáveis pelos fenómenos da civilização”. É sobre este preconceito que nos iremos deter.
1. Altura. Preconceito. Dasein. Apoiado nos “dotes psicológicos das raças”, o célebre historiador português traçou também os caracteres psicológicos dos portugueses: os minhotos como sendo “obtusos” e sem “elevação de espírito” por causa da “humidade“ que “torna flácidos os temperamentos e entorpece a vivacidade intelectual” (Guerreiro, 1986:71), os beirões como sendo “bandidos e anacrónicos” (Guerreiro, 1986:72), o alentejano “diz pouco e raro canta”, (Guerreiro, 1986:73) e o algarvio é sugerido como um preguiçoso que “põe no pensamento uma agitação meio tonta” (Guerreiro, 1986:74), só para citar alguns exemplos. É certo que em fenomenologia, o espaço é sempre afetado por uma coloração afetiva fundamental; a tonalidade climática especifica uma forma de presença, ou seja, um modo de comunicação determinado com as coisas num mundo que não está simplesmente diante de nós mas que atravessa o pathos inerente à situação. Mas não é este lado fenomenológico que está em causa, pois, diz-nos Guerreiro, o “fenómeno é complexo – e a tal ponto, que ainda nos casos mais simples de culturas tecnicamente atrasadas é difícil distinguir, com rigor, o que pertence ao homem e o que provém das condições naturais” (Guerreiro, 1986:68). É contra este modo de apequenar o povo português, que se insurge Viegas Guerreiro no capítulo que intitula de “Habitat/Civilização”; é aqui que nos surge como filósofo, numa abordagem antropológica da essência individual do ser humano – o que impõe uma leitura da mesma à luz do Dasein da fenomenologia do filósofo alemão, Martin Heidegger (1889-1976), bem como uma aproximação à sua conferência Construir, habitar, pensar, de 19514 . É logo no início do capítulo “Habitat/Civilização” que Viegas Guerreiro rejeita
4 No original: Bauen, Wohnen, Denken (1951); conferência pronunciada pelo filósofo Heidegger por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em HEIDEGGER, M (1954). “Bauen Wohnen Denken“.Vortäge und Aufsätze, Günther Neske: Pfullingen. Para este artigo usamos a tradução de Victor Hugo de Oliveira Maques (Universidade Católica Dom Bosco) in Multitemas. Revista da UCDB. Vol.23, n.º 53, jan./abr. 2018, pp. 275-294. Campo Grande.. DOI: http:// dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593.
HABITAT/CIVILIZAÇÃO
parcialmente a conceção do Homo Natura, edificado sobre o modelo das ciências naturais, que tomam o homem como um mero sistema de funções orgânicas. Diz-nos:
As relações do homem com a natureza constituem um dos problemas centrais das Ciências Humanas. E pensamos que o seu esclarecimento está em uma compreensão exata dos dois termos deste binómio. E aqui se confrontam duas atividades filosóficas: criou Deus o homem e pô-lo no mundo como uma entidade em outra entidade, e estamos com uma teoria perramente metafísica; ou é o homem um ser vivo como os outros seres vivos, uma parte da natureza, e estamos com uma teoria puramente naturalistas. […] E, deste modo, quer se queira, quer não, temos um poder dentro de outro poder, considerado tradicionalmente o segundo como antagónico do primeiro, conceção que a ontologia cristã favorece ao lançar a sua mais perfeita criatura num mundo de trabalhos, mundo hostil que ela tem de vencer para a superior especificidade de seus atributos. E desta dualidade nasce, consequentemente, a mitificação da natureza, sua antropomorfização, que a dota de vontade, e intencional resistência à satisfação das necessidades humanas. […] E aí fica a natureza, como que o princípio do mal, a resistir à modelação que o espírito superior do homem lhe quer impor, o que só imperfeitamente consegue […] (Guerreiro, 1986:67)
Contra o determinismo cultural e o determinismo geográfico, Guerreiro entende ser mais “sólido” considerar o homem como elemento da natureza, “mas existindo nela”, importando-lhe o ser-aí, a presença humana, o existente com um pensar que lhe permite “agir ora adaptando-se, umas vezes sem a modificar e outras produzindo nela profundas alterações”, estabelecendo-se “uma inter-relação dinâmica, dialética, sem preconceitos de domínio ou sujeição no vasto quadro do universo” (Guerreiro, 1986:67). Conclui que “o quadro natural” variavelmente condiciona a cultura e “não a determina necessariamente” (Guerreiro, 1986:68). Ou seja, é o humano um ser-com, um “ ser-no-mundo”, cujas estruturas, de resto, foram largamente elaboradas por Heidegger, que afirma: “O Dasein é um Mitsein” (ser-com). Heidegger procurou desvendar as estruturas ontológicas da existência – entenda-se por ontológico, o ser em geral, por oposição ao ôntico, os seres em particular. Por “existencial” entenda-se o termo como “constitutivo do existir humano”. Para o filósofo de Ser e Tempo (1927), as estruturas existenciais são primeiramente o tempo e o espaço, mas também o ser-no-mundo, em uma relação originária no mundo, o ser-com-outro, com os outros. O mundo é sempre um mundo comum. Mas há outras estruturas existenciais, como o humor, a disposição, a tonalidade afetiva, a Stimmung (entendida como experiência de mundo operada inicialmente na coloração afetiva), o compreender, a fala e a preocupação. Resumindo, o ser é primordialmente temporal, espacial, ser-no-mundo, um ser com
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o outro, afetado, compreendendo. Entenda-se este termo não exclusivamente na aceção do entendimento, mas na de empreender-com, apreender-em o que acontece mediante o entender comum, pelo meio primordial da linguagem e como parte de um afetivo.
2. Habitar - cuidar Acontece que este espaço não é o espaço matemático euclidiano, mas sim, o existente nos atos quotidianos que abre, que cria e recria esse espaço, no qual o ser se implica, se desenvolve e se projeta. A linha de pensamento assente nas Ciências da Natureza era defendida, por exemplo, por Freud, tendo por substrato o domínio das pulsões, apontando que o espirito provém do corpo, mas como já referimos a propósito do poeta popular de Querença, Silva Varejota5, Viegas Guerreiro explora a existência subjetiva do ser entendida na sua totalidade, um ser presente no mundo responsável pela sua existência, pelo que, no seu entender, o espírito vem do próprio espírito. O olhar filosófico e antropológico de Viegas Guerreiro recai sobre a presença do homem nas suas estruturas espaciais e temporais, mas é o habitat que mais lhe importa. Com preocupações próximas, na já referida conferência Construir, habitar, pensar6 , Heidegger refere:
A maneira como você é e eu sou, o modo segundo o qual nós homens somos sobre a terra, é o construir, o habitar. Ser homem quer dizer: ser mortal sobre a terra, quer dizer: habitar. A antiga palavra construir, que impõe ao homem que ele seja à medida que ele habita, significa apenas, mas ao mesmo tempo: lavrar e cultivar, como nos exemplos: construir o campo, construir a videira. Tal construir apenas guarda o crescimento dos seus frutos que amadurecem por si mesmos. No sentido de lavrar e cultivar, construir não é produzir. Por outro lado, a construção naval e a construção de um templo certamente fabricam o seu próprio produto. O construir é, nesse caso, ao contrário de cultivar, um edificar. Ambos os modos de construir – construir como cultivar, colere, em latim, cultura, e construir como edificar prédios, aedificare – estão retidos no construir original, o habitar. O construir
5 MONTEIRO, L. (2021). “Escavar a Fala. Viegas Guerreiro e Varejota à luz de Heidegger”. Revista da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. N.º 26. Abr-Jun. Querença, pp. 14-21. ttp://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593 6 O texto traduzido no original é: Bauen, Wohnen, Denken (1951) e corresponde a uma conferência pronunciada pelo filósofo Heidegger por ocasião da “Segunda Reunião de Darmastad”, publicada em HEIDEGGER, M (1954). “Bauen Wohnen Denken“.Vortäge und Aufsätze, Günther Neske: Pfullingen. Trad. de Victor Hugo de Oliveira Maques. Multitemas, Campo Grande, MS, v. 23, n. 53, p. 275-294, jan./abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593 ttp://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593
HABITAT/CIVILIZAÇÃO
como habitar, isto é, ser sobre a terra […] Na verdade, porém, algo decisivo se esconde lá dentro, a saber: a vivência do habitar não se dá como ser do homem; o habitar nunca se dá por completo quando se pensam as características fundamentais do ser do homem.(Heidegger, 2018: 279-280)
Outra dúvida é lançada por Heidegger: diz que nós “não moramos porque construímos, antes, nós construímos e temos construído desde que moramos, isto é, desde quando somos habitantes. Contudo de onde vem a essência do habitar?” (Heidegger, 2018: 281) e conclui que o habitar é da ordem do cuidar, pela via do apaziguamento:
Habitar, feito para a paz, quer dizer: manter-se apaziguado no Frye, [“proteger-se do dano e da ameaça”] cuidar de qualquer um na sua essência. A característica essencial do habitar é esse cuidar. Ele perpassa o habitar em toda a sua vastidão. Esta última mostra-se, a nós, logo que nisso pensamos, que no habitar os homens se assentam mais precisamente no sentido de permanência mortal sobre a terra. Ora “sobre a Terra“ já quer dizer “sob o céu”. Ambos querem dizer “morada dos deuses” e encerram “ o co-pertencer dos homens”. Por meio de uma unidade original, se pertencem os quatro: a Terra, o céu, as divindades e os mortais. A terra é o sustento servente, o fruto florescente, vastamente penduraria na rocha e nas águas, nascente para planta e bicharada. Dizemos terra, então, já pensamos nos outros três também, contudo não refletimos sobre a simplicidade dos quatro.” (Heidegger, 2018: 281-282)
Porém, esta “unidade original” composta pela “Quadrindade”7, implica que se pense sob um sentido, em direções, em coordenadas. Que sentido pode ter pensamento? Viegas Guerreiro, reitera não só no capítulo em questão, como um pouco por todo o ensaio, que Oliveira Martins “não cai continuamente“ num “estreito e tradicional determinismo geográfico e nisso bem aproveitou das lições do evolucionismo contemporâneo”, mas cai. E cai demasiadas vezes, à semelhança de muitos dos seus pares, segundo o pensador de Querença. O sentido de queda no pensamento português constitui uma das preocupações de Viegas Guerreiro. Há no seu pensamento um privilégio antropológico da altura: a direção do sentido do alto e do baixo. Mas para o homem, o que é cair? Será, na esteira do pensamento fenomenológico, a perda de apoio e da harmonia, uma
7 ‘Geviert’ no original; os ingleses traduzem geralmente o termo por ´´he fourfold’, no Brasil usam ‘quadradatura’ e em alguns países latinos, ‘cuaternidad’. Usamos ‘Quadrindade’, na linha proposta pela investigadora Irene Borges-Duarte.
MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA
rutura na corporeidade tranquila, o oposto da elevação. A imagem da queda traduz em si a essência da perda de esteio do Dasein, constituindo-se como desequilíbrio enquanto forma, enquanto sentido e enquanto sentimento. Antropologicamente falando, a altura corresponde ao desejo de triunfar, ascender, sobre o peso terrestre. Para o homem, a realização de si é o ponto mais alto que pode alcançar e esta aspiração depende das duas direções de sentido: verticalidade e horizontalidade, ou seja, entre a experiência do crescer e a do alargar da vida. Há milhões de anos, o homem pôs-se de pé e dispôs-se a caminhar. Altura e largura, expansão e limitação são do âmbito da natureza animal, mas o paradigma da realização de si, diz respeito à natureza humana. Porém, quando esta realização de si se separa do nós, do ser-com, o que surge é a presunção. O ser-presumidotransbordante-do-mundo é um exilado dessa harmonia do cuidar, um não-habitante desse “ co-pertencer dos homens” de que fala Heidegger e que Viegas Guerreiro faz notar a Oliveira Martins, concluindo no seu ensaio que o célebre historiador de Portugal “não assumiu” a “atitude equilibrada dos seus melhores mestres”. E não obstante as suas desmesuras de ficção literária, nunca Oliveira foi um artista, pois é pela arte que se pode encontrar a justa proporção antropológica, o paradigma da realização de si, tal como encontra em certos poetas, de que Silva Varejota é, para Viegas Guerreiro, um dos exemplos. E de tudo isto se faz uma civilização, cujo esteio maior é o da proteção do Nós –como parece ter querido Viegas Guerreiro dizer, numa altura em que a entrada de Portugal na C.E.E. levantava acérrimas discussões em torno da identidade do povo português, à semelhança do que acontecia também nos restantes onze países integrantes. “Quando refletimos sobre o experimentado modo de relação entre lugar e espaço, mas também a relação entre homem e espaço, recai uma luz sobre a essência das coisas, somos lugares e designamos construções”, disse Heidegger.
REFERÊNCIAS
GUERREIRO, Manuel Viegas (1986) - Temas de Antropologia em Oliveira Martins. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa - Ministério da Educação. Série “Biblioteca breve”, vol.108.
HEIDEGGER, Martin. [1951] “Bauen, Wohnen, Denken” . G. Neske, Pfullingen (1954)..Vortäge und Aufsätze, Trad. Victor Hugo de Oliveira Marques (2018). Multitemas. Campo Grande: MS, v. 23, n. 53, p. 275-294, jan./abr. DOI: http://dx.doi.org/10.20435/multi.v23i53.1593.
MONTEIRO, L. (2021). “Escavar a Fala. Viegas Guerreiro e Varejota à luz de Heidegger”. Revista da Fundação Manuel Viegas Guerreiro. N.º 26. Abr-Jun. Querença, pp. 14-21.
HABITAT/CIVILIZAÇÃO
EGÍDIA SOUTO é professora associada e investigadora do CREPAL Sorbonne Nouvelle, do Centro de Estudos Africanos, do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e do Instituto de Antropologia Cultural Frobenius, Universidade Goethe de Frankfurt.