Do campo ao copo

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CAFÉ


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o final do século XIX e início do XX, o café representava cerca de 70% da economia brasileira. A época de ouro da bebida é simbolizada pelas grandes fazendas dos barões do café, que revelavam em sua opulência a importância do grão para o país. Entretanto, um outro período pode ser destacado na história do café no Brasil: os dias de hoje. A cafeicultura não é mais o nosso motor principal - representa, hoje, 5% do PIB, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), contrastando com os 70% do início do século passado. A produtividade, contudo, vai de vento em popa: hoje, o Brasil produz mais em volume e em valores per capita, mantendo-se com folgas como maior produtor mundial e sendo responsável por um terço de todo o café consumido no mundo. Além do aumento da produção, o consumo interno também é recorde, chegando a 4,81 quilos por habitante em 2010, cerca de 81 litros, e superando a marca histórica de 4,71 quilos registrada em 1965 pela Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic). Hoje, os barões do café deram lugar a um mercado produtor mais dinâmico, diversificado e de alto padrão. Mais exigente, o consumidor não quer apenas o café: quer o melhor que um cafezal pode produzir. Selecionados por processos cada vez mais precisos, os cafés especiais representam hoje o maior ramo de expansão do comércio cafeeiro. Para mostrar a você como eles são obtidos, a Verdemar em revista viajou para uma fazenda e acompanhou todo o processo.

Em busca da perfeição A cidade de Santo Antônio do Amparo, 180 quilômetros a sudoeste de Belo Horizonte, tem como principal atividade a cafeicultura. Com 1.000 metros de altitude, temperatura média de 23ºC, invernos secos e frios, verões quentes e úmidos e solo de terra roxa, a região é um ponto fértil para o cultivo cafeeiro. O processo de obtenção de uma boa xícara de café começa antes do cultivo, com a análise do microclima da região e do tipo de solo. Entre setembro e outubro do ano anterior ao plantio, começa a correção e o preparo do terreno, com as mudas indo para o campo em dezembro. Só então a variedade do café - bourbon, mundo novo, caturra, entre outros - é plantada. A primeira produção, chamada catação, ocorre cerca de dois anos e meio após o plantio, porém é pequena. A colheita na região do sul de Minas ocorre geralmente de maio a setembro, sendo que o ideal é que termine até agosto, para não prejudicar a florada. Um inverno seco e frio é importante, pois calor e umidade fazem com que por Gabriel Carrara | fotos Nicolas Lovisolo

o café comece a fermentar no pé. Dependendo do tipo de produto que se deseja obter, a colheita pode ser antecipada, obtendo-se assim grãos mais precoces ou mais maduros. Após a colheita, começam os processos de distinção dentro de uma mesma colheita. O primeiro deles é o processamento úmido, em que se dá a separação entre cereja descascada - o café despolpado - e natural - processado com a casca e a polpa. Em seguida, os grãos passam para pátios de secagem e, em alguns casos, para fornos, até chegarem a 11-12% de umidade. Tanto o cereja descasca-


da quanto o natural são utilizados na composição final, e a proporção utilizada depende do produto almejado.

uma peneira de vibração, eliminar todo o tipo de sujeira, como galhos secos, pedrinhas e outros detritos.

“Em geral, o café seco com a casca, chamado natural, traz corpo, adstringência e complexidade de sabores. Já o cereja descascado, proporciona acidez e doçura. Uma bebida balanceada começa pela escolha da proporção utilizada - em geral, 60/40”, explica Henrique Cambraia, da Fazenda Sambaia e Cambraia Cafés.

Os grãos já limpos caem então em uma tubulação, que os leva ao segundo processo, que é a peneira de divisão de tamanho. O terceiro e o quarto processos são fundamentais para assegurar a qualidade do grão. Após terem sido separados por tamanho, os grãos são levados por um outro tubo para uma peneira levemente inclinada, onde um leve jato de ar deixa na parte superior os mais pesados - ou seja, os grãos maiores - e na inferior os mais leves - os menores e outras impurezas, como cascas e grãos ocos. O processo pode ser repetido mais vezes para assegurar a qualidade. Por último, uma sofisticada máquina de análise óptica vai eliminar os grãos de acordo com a coloração. Apenas os saudáveis passam: verdes, ardidos e queimados são descartados.

Os grãos secos são então ensacados separadamente, cereja descascada e natural, e partem para o beneficiamento. Embora a relação entre variedade e condições de clima e solo vá determinar boa parte da qualidade do café, uma mesma colheita pode produzir gradações que vão desde o café especial ao de baixa qualidade. Para ser um café especial, o grão deve ir para a torra sem impurezas, problemas extrínsecos como cascas e galhos, e defeitos, problemas intrínsecos como grãos ardidos, verdes e pretos. A análise é bem criteriosa, já que, para cafés especiais, são tolerados até cinco defeitos por uma porção de 300 gramas - veja o box com cada um dos defeitos encontrados. Quando recebe o caminhão com as sacas, Ronaldo Rufino, o Chiquinho, chama sua equipe e trata de organizá-las. E o trabalho é pesado: são pilhas e mais pilhas a serem divididas de acordo com produtor, lote, cereja descascada ou natural, beneficiadas ou não - sendo que cada saca são 60 quilos. Mas ele garante que o processo é seguro - mesmo quando é preciso tirar a última saca que está sob outras quinze! “O controle começa no galpão. A gente recebe tudo e testa logo na entrega. O beneficiamento é a parte principal para conseguir um café especial, por isso não pode passar nada”, explica Ronaldo. Quem olha uma saca cheia de grãos de café, dos mais variados tamanhos, com impurezas e defeitos, se pergunta como é possível chegar ao grau de pureza dos produtos especiais. Imagine, por exemplo, um lote de trinta sacas de café cereja descascada, da qual o produtor deseje separar uma parte de altíssima qualidade, outra mediana, e uma terceira de baixa qualidade. O primeiro passo é, em 26

verdemar em revista


À esquerda, o café após ser beneficiado; à direita, o café como chega ao beneficiamento, com grãos irregulares e impurezas.

Impurezas e Grãos imperfeitos Preto

Ardido

Casca

Pedra

Marinheiro

Quebrado

Com a casca

Pau

Verde

Ao fim do beneficiamento, o café é levado às sacas novamente, dividido de acordo com a solicitação do produtor. Assim, no exemplo imaginado acima, poderíamos ter oito sacas de cafés graúdos, quinze de cafés médios, seis de baixa qualidade e uma de resíduos. Todas elas são devidamente identificadas e devolvidas ao produtor - até os resíduos. “A mesma quantidade que chega aqui é a que tem de sair”, explica Ronaldo.

Preparando a bebida Um dos momentos principais para tornar evidente a qualidade da bebida é a torrefação. Afinal, o responsável que tem o grão em mãos sabe que a torra vai determinar o sucesso final de um ano inteiro de trabalho. Mas tamanha responsabilidade tem sua recompensa: quem já teve a sorte de estar presente durante a torrefação do café dificilmente se esquece do aroma inebriante que ele exala. O objetivo básico da torrefação é extrair os óleos e essências do café. Ao ser colocado no torrador, o café é aquecido e misturado o tempo todo, para evitar que queime. O café verde passa a uma cor mais amarelada, aumenta de tamanho e fica mais leve. Quando começa a escurecer é

que sua essência passa a ser liberada, garantindo, assim, o sabor e o aroma que tanto buscamos na bebida. Em geral, a torra leva de sete a quinze minutos, dependendo do resultado desejado. Segundo Hélio Ramos, supervisor de qualidade da Cambraia Cafés, no processo há diferença entre aqueles grãos que vão ser usados para espresso e os que irão para o filtro. “O espresso é feito em torra mais suave. Seu tempo de torra é menor e não leva água. Já o filtro requer uma torra mais apertada, leva mais tempo, é uma torra mais escura”. Depois de passar por tantas mãos, o café pode finalmente ser degustado. Mas, antes de chegar à sua casa ou à cafeteria, há ainda um personagem importante na cadeia produtiva: o avaliador. Com o auxílio de um formulário de degustação, é feita uma análise minuciosa das características do café. E elas são muitas, desde a cor da torra, passando pelo aroma do pó e da bebida até o comportamento da bebida na boca, como acidez, corpo e doçura. Na cooperativa em Santo Antônio do Amparo, a Santo Antônio Estate Coffee, os avaliadores vieram do outro lado do mundo. Kentaro Maruyama, Cikara Yokoi e Yoshi-


mi Ito têm cafeterias no Japão e vêm pessoalmente ao Brasil para escolher os melhores grãos e os que mais estão adequados ao paladar de lá. Finalmente, depois de cumprir diversas etapas rumo à qualidade máxima, o café pode chegar ao consumidor final. Para que ele saiba que essas etapas foram realmente

cumpridas, existem vários selos de certificação de qualidade, como o da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA), da UTZ Kapeh e da Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic). Depois de saber de todo o trajeto do café especial, que tal uma xícara agora?


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