ANO 1 EDIÇÃO 03
Pequiá Literatura Sesc
NELSON MACA
A África
é aqui
A revista Pequiá, realização do Sesc, braço social do Sistema Fecomécio-CE, em parceria com a PROCULT/UFCA, chega à sua terceira edição voltando-se para a temática da negritude, com a proposta de ampliar a voz daqueles que encontram na literatura uma forma de resistir e de ser resistência ao preconceito que ainda insiste em manter-se no chão desse país-nação. Nesse contexto, esta edição traz entrevista com o poeta Nelson Maca; resenha de Alex Baoli, que nos conta um pouco da resistência da escritora Maria Firmina dos Reis, e resenha de Cristina Carneiro, que apresenta a realidade da mulher nigeriana dos anos 30; conto do alagoano Nilton Resende; e poemas de Tiago Manguebixa e Nelson Maca. Literatura marcada pela memória individual e coletiva e pela identidade negra que, com vigor poético, aponta para a necessidade de transformação político-social. Que ecoe esse grito. Boa leitura a todas e todos!
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EXPEDIENTE Edição 3 | Novembro 2018 FECOMÉRCIO | SESC
DEPARTAMENTO REGIONAL DO SESC/ AR-CE
Presidente: Maurício Cavalcante Filizola Diretor Regional: Rodrigo Leite Rebouças Diretora de Programação Social: Patrícia Carnevalli Rinaldi de Paiva Diretora Administrativa: Débora Sombra Costa Lima Diretor Financeiro: Gilberto Barroso Frota Gerente do Programa Cultura: Chagas Sales Nogueira Lima Coord. Regional do Programa Cultura: Maria Bezerra UNIDADE CRATO DO SESC Gerente: Francisca Lúcia Bezerra Supervisor de Cultura: George Belisário Técnicos do Programa Cultura Sesc Crato: Suzana Carneiro (Técnica de Cultura), Gabriel Campos (Técnico de Cultura), Socorro Dantas (Bibliotecária), Talita Rocha (Auxiliar de Biblioteca) e Raflesia Custódio Dias Bezerra (Assistente de Biblioteca) UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA Reitor: Ricardo Luiz Lange Ness Vice-reitor: Juscelino Pereira Silva Pró-Reitor de Cultura: José Robson Maia de Almeida Coordenadoria de Política e Diversidade Cultural: Gustavo Ramos Ferreira REDAÇÃO Repórter: Alexia Mesquita Colaboradores: Alex Baoli, Cristina Carneiro, Nelson Maca, Nilton Resende e Tiago Manguebixa Curadoria: George Belisário, Gustavo Ramos, Márcia Leite e Thiago Rodrigues Projeto Gráfico: Estúdio Caravelas / Hanna Menezes Diagramação: Hanna Menezes Ilustrações: Hanna Menezes Revisão: Márcia Leite Professor Orientador: José Anderson Sandes Coordenação Editorial: George Belisário REVISTA PEQUIÁ (SESC CRATO) Rua André Cartaxo, 443 – Palmeiral Crato/CE CEP: 63100-555 Telefone: (88) 3586-9163 E-mail: gbelisario@sesc-ce.com.br Tiragem: 300 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
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O professor e poeta, Nelson Maca, autor de “Gramática da Ira”, fala em entrevista sobre a construção de seu processo criativo e da sua estética poética.
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Leia o conto ‘“A Ceia”, de Nilton Resende , premiado autor de “O Orvalho e os Dias” e “Diabolô”. Lançou recentemente o livro “A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de “Antes do Baile Verde”.
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Leia a resenha do livro “Úrsula”, da maranhense Maria Firmina do Reis, mulher negra e nordestina. A obra foi publicada em 1859, no Maranhão, no período da escravatura.
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Confira resenha do livro “As Alegrias da Maternidade”, de Buchi Emecheta, um retrato da mulher nigeriana nos anos 30. Uma história de racismo, xenofobia e machismo.
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Paiol Literário Iniciado em 2006, será a nona temporada do projeto, realizado pelo jornal Rascunho. O Paiol Literário já trouxe a Curitiba 68 grandes nomes da literatura brasileira. A conversa começa sempre com as seguintes perguntas: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”. Todos os encontros serão reproduzidos na edição do mês seguinte do Rascunho e no site www. rascunho.com.br. Plataforma Sweek Quando perceberam que os hábitos de leitura mudavam rapidamente, a russa Veronika Kartovenko e os holandeses Sabine van der Plas e Peter Paul van Bekkum lançaram, em outubro de 2016, o Sweek, uma plataforma que coloca na mesma página autores, leitores, histórias e interações. Nesses dois anos de vida, o aplicativo foi traduzido para 14 idiomas. Hoje são mais de 100 mil, sendo que 86% deles estão no Brasil e a plataforma já contabiliza mais de 21 mil histórias. A crise das editoras Em meio à crise econômica, o mercado editorial é um dos que mais têm sofrido. Depois do fechamento de 20 lojas pela Saraiva, o pedido de recuperação judicial da Livraria Cultura e o encerramento das operações da Fnac, a Companhia das Letras divulga que a família Schwarcz não é mais proprietária da casa. A Penguin Random House possui agora 70% da editora, fundada em 1986 por Luiz Schwarcz, após deixar a Brasiliense, e pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz. Com a nova dinâmica, a família Moreira Sales deixa a sociedade. Nov 2018 |
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Foto: Adeloyá Foto: arquivo pessoal
Nelson maca Manifesto da literatura divergente Texto | Alexia Mesquita O poeta Nelson Maca, 52 anos, autor de uma escrita militante e, principalmente, de defesa da negritude, é uma das vozes da nova poesia brasileira. Autor de “Gramática da Ira”, esse paranaense baiano defende uma ética e uma estética poética longe dos paradigmas da
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esquerda ou da direita que hoje se confrontam no Brasil. Crítico e ferino, Nelson Maca prefere a desestabilização e irritação do leitor no lugar do afago. “Penso que a capacidade de a literatura incomodar é tão louvável quanto confortar”. Nelson é professor de Literatura em Salvador e movimenta a cidade com saraus e performances poéticas. Crítico de consagrados escritores – como Jorge Amado –, ele mira uma literatura nova e descentralizada da indústria cultural e da universidade. Leia entrevista, realizada por e-mail, com esse poeta cujo principal meta é o tensionamento da linguagem. Você nasceu no Paraná, mas aos 22 anos se mudou para a Bahia e decidiu ficar por lá. Assim, você já afirmou que o grande desejo de conhecer Salvador veio por uma ideia de que a cidade era um “paraíso da negritude”. Fale mais sobre isso. Nelson Maca - É isso! No entanto, confesso que fui infeliz em usar a expressão “paraíso”. Na verdade, para nós, negros sulistas assumidos e orgulhosos de nossa negritude, a Bahia é uma espécie de África aqui. Objetiva. Pelo seu contingente humano e pela sua forte cultura. Conhecer o continente africano é um desejo comum, quase uma necessidade, no processo de nossa afirmação, mas é um tanto complexo chegar lá, principalmente para pessoas jovens e de baixa renda, como era meu caso. A Bahia, nesse sentido, é mais acessível e igualmente pulsante de identidade negra. E, naquele momento de minha vida, o estado exalava sua negritude de maneira nunca vista. Basta lembrar a forte presença do reggae e do movimento rastafariano e a explosão nacional e mundial dos blocos afros. Vivia-se o auge do
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processo de reafricanização do carnaval. Eu estava totalmente curioso e aberto para essa experiência. E não deixei escapar! Como foi a sua juventude e memórias na cidade de Telêmaco Borba, no Paraná? A melhor memória de Telêmaco Borba, pequena cidade do estado do Paraná, onde nasci, é, sem dúvidas, sobre a potência da infância e primeira juventude. Vivi tudo o que poderia de uma vida saudável. Tudo! Uma comunidade muito familiar. A liberdade das ruas. Inúmeros jogos e brincadeiras. Prática de esportes. Natureza abundante, com banhos de rio, colheitas de frutas no quintal de casa e também no mato, na casas dos vizinhos. E sem autorização era mais emocionante ainda. Realmente, lá, no presente, uma vida sensacional. Só com o passar do tempo é que fui me conscientizando que havia problemas, principalmente sociais e raciais. Imagine que eu era de uma família negra de doze filhos, com pai operário e mãe dona de casa. Trabalhei desde muito cedo, vendendo salgadinhos – coxinha, pastel, quibe – que minha mãe fazia. Literalmente, os filhos ajudavam no sustento da casa. Depois, crescido, estudado e engajado no debate racial, foi que percebi o quanto o racismo fez parte daquele momento. O quanto impediu ou dificultou nos processos de crescimento integral. Hoje, olhar para trás, se dá também como reconhecimento crítico das várias faces do racismo nacional.
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Foto: Petterson AndrĂŠ
Por isso, a questão racial na sua poesia? Eu optei pelo texto étnico e participativo. Engajado na questão racial. Por isso, escrever, para mim, significa uma dupla atuação: uma estética e outra ética. Linguagem literária em relação complementar com posicionamento político-racial é minha razão de escrever. Então meu duplo papel é buscar promover o prazer do texto e, ao mesmo tempo, denunciar e enfrentar o preconceito, a discriminação e o racismo. Esses elementos são transversais de minha literatura e praticamente a tudo o que faço. Sintome tão responsável em construir a beleza quanto provocar um posicionamento crítico e, se possível, um enfrentamento de fato. Escrever para mim passa muito longe da arte pela arte. Logo, a “província”
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de meu texto é o tensionamento. Amo quando as pessoas sentem-se afagadas pelas minhas palavras, mas amo igualmente quando provoco, desestabilizo, constranjo, irrito. Penso que a capacidade de a literatura incomodar é tão louvável quanto confortar. Esse tem sido não meu papel, mas minha ação de fato. Não é representação, é vida! Qual a sua concepção de literatura? Minha concepção de literatura é bastante ampla. Meu interesse pela “letra” surge do meu interesse pela música. Mais especificamente pelas letras de música. No começo era intuitivo, cultural, mas, com o tempo, fui tomando consciência e elaborando uma fala mais analítica sobre isso. Ao
Foto: Leo Ornelas
Nelson entra em contato com o público em performance na II Festa Literária Internacional do Pelourinho
lado de meus próprios textos, hoje levo para minhas performances letras de música que admirava na infância. Fora esse contato mais espontâneo com a poesia das letras, logicamente, tem as vivências na escola e, principalmente, a influência de uma irmã mais velha, que já era professora quando eu criança. Ela tinha uma estante de livros que me cativou ainda na adolescência. Foi no quartinhoescritório do apartamento dela que descobri Plínio Marcos e os Cadernos Negros, por exemplo. Desde muito jovem me interessei pela contracultura e pelo movimento negro. Com o tempo, o debate da negritude ficou bem mais forte em mim. Através da rica vida cultural de Curitiba e de minha real aproximação com o movimento social negro, fui estabelecendo minha biblioteca fundamental. Afora isso, estudei meu segundo grau no sensacional CEFET-PR, que era também um templo da cultura. Na época, eu já frequentava eventos alternativos de
literatura, como a inesquecível Feira do Poeta, onde podíamos estar perto de escritores como Paulo Leminski, Alice Ruiz e outros e outras. Na Feira, tive a experiência de imprimir meu primeiro poema, na hora, uma tipografia.
Foto: Fernando Gomes
Você se considera um poeta militante? A vivência que relato acima me levou ao denominado texto “engajado”. Mas eu penso que todos os textos são engajados. Uns para eternizar os cânones ocidentais, outros para construir
alternativas discursivas. Uns para manter valores “civilizatórios” canônicos, outros para descentralizálos. Uns brancos, embora sem o adjetivo expresso, outros pretos no conceito dito. Dentro dessa lógica, tenho buscado o texto negro, embora reconheça que há muitas formas de se desviar da literatura oficial brasileira. Debato isso no meu Manifesto da Literatura Divergente, que, inclusive, já norteou três encontros nacionais de autores e performers em São Paulo. Evento que executo juntamente com o escritor e editor Berimba de Jesus, do Coletivo Maloqueirista. Na linha mais específica da Literatura Negra, posso citar como influência José Carlos Limeira, Conceição Evaristo, Oliveira Silveira, Geni Guimarães, Èle Semog, Cuti Silva, entre tantos. Gosto da prosa norte-americana de Richard Wright e Ralph Ellinson. Amo os poetas do dub Linton Kwensi Johnsom e Mutabaruka. Gosto demais do incomparável slammer haitiano radicado nos EUA Saul Willians. Presto muita atenção nos funkeiros do Rio Mano Teko e Pingo do Rap. Sou admirador dos rappers Gog e Ba Kimbuta. Nunca perco apresentações poéticas da atriz gaúcha Vera Lopes. São muitas influências. Uma amiga mineira, grande estudiosa, Silvia Lorenso, me fala sempre que gosta da transversalidade de minha performance literária. Segundo ela, diaspórica. Ou seja, da convivência de influências várias e de vários lugares. Você é professor de literatura brasileira na Universidade Católica do Salvador. Como levar a escrita para além do meio acadêmico? Eu não levo, eu vivo a literatura fora do espaço acadêmico. Eu tento, sim, levar a literatura de fora para dentro do meio acadêmico. E os alunos e alunas, na sua maioria, gostam e se reconhecem
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Foto: Adeloyá
nessa produção pés no chão. Fora da universidade, tenho uma grande participação na arte da performance. Atuo hoje em três espetáculos diferentes: “Na Rota da Rima”, “Tamborismo” e “CandomBlackesia”. O primeiro é solo; no segundo, atuo com um mestre percussionista; no terceiro, sou acompanhado por um trio formado por dj, percussão e trompete. Chama-se Afro-Power-Trio. Participo intensamente do movimento de saraus contemporâneos. Organizo o Sarau Bem Black e frequento outros. Realizei por seis anos um sarau infantil em Salvador. O Sarau Bem Legal. E também organizo e oriento publicações, dou oficinas em todos os lugares possíveis, incluindo cadeias e afins. Divulgo, publico, analiso textos pelas redes sociais. Enfim, onde há literatura sem amarras, pode ter certeza que posso estar.
Performance poética em Salvador, em 2018
Eu tento, sim, levar a literatura de fora para dentro do meio acadêmico. E os alunos e alunas, na sua maioria, gostam e se reconhecem nessa produção pés no chão Você acha que a universidade sufoca o escritor com tantas teorias? As faculdades, e mais especificamente as de Letras, não são voltadas para escritores. Formam pesquisadores e professores. Logo, não sufocam os escritores. Os escritores vão muito bem. Acho super-válido os estudos teóricos. Historiografia e crítica literária são muito bem-vindas. No entanto, sempre achei, e continuo achando, que falta espaço para a vivência mais intimista. Para a expressão do gostei, não gostei e seus porquês. Esse contato direto entre leitor e texto deveria ser a base para os estudos teóricos, não o contrário. Muitas vezes, o estudo formal se resume à metacrítica. Pessoas especializadas em obras e autores que leram pouco ou, até mesmo, não leram. Aí, sim, acho que há algo que pode ser repensado, relativizado. Pegar mais leve nas leituras teóricas e ampliar o peso no contato dos estudantes com as fontes primárias da literatura: a poesia, a prosa, o drama. Concluindo, as universidades, muitas vezes, sufocam a literatura e atrofiam o leitor. De que forma o Sarau Bem Black, organizado por você há quase dez anos, torna-se significativo para a cena literária baiana atualmente? Nesse exato momento, mais como influência, pois
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só houve uma edição em 2018. Paramos este ano, para reorganizar sua estrutura e nossa mente. Mas voltamos em novembro, na Balada Literária da Bahia, evento anual que realizo em parceria com o escritor Marcelino Freire, já caminhando para sua quarta edição. Além de colocar a questão da negritude como elemento “gerador” do sarau, foi o Bem Black responsável pela conexão da Bahia no movimento nacional de saraus (atuais). Acho que a principal contribuição local foi servir de matriz para o nascimento de vários outros na cidade, articulados por seus componentes e excomponentes, alguns desses ventos já com anos de experiência. Mas essa influência extrapolou a Bahia. A partir de sua vivência em Salvador, e inspirados estética e politicamente por nós, até onde eu sei, algumas pessoas inauguraram saraus no Rio de Janeiro, Brasília, Aracaju, Porto Alegre e Belém. O Sarau Bem Black tem como principal atributo a prática da oralidade literária, com leituras e performances partilhadas. Mas também é um ponto de encontro de pessoas, onde muitas coisas podem acontecer. Conversas com autores e autoras, lançamentos e comercialização de livros, CDs e roupas artesanais, pocket shows, exibições de audiovisuais, etc. Tivemos, inclusive, uma defesa de TCC na UFBA, que pesquisou o Sarau Bem Black. Pessoas incríveis passam pelo sarau, incentivando a leitura e despertando a escrita. Já recebemos Conceição Evaristo, Marcelino Freire, Alejandro Reyes, Cuti Silva, Carlos Moore, Cristiane Sobral, Gog, Marechal, Vox Sambou, Lívia Natália, Allan da Rosa, Ellen Oléria. Enfim muita gente importante para a cultura literária, artística e política do país.
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A luta social é de extrema importância em sua vida. Nesse contexto, você cria o coletivo Blackitude - Vozes Negras da Bahia, que, desde 1998, aproxima Hip-Hop e militância. Como se organizam as ações do coletivo? O Blackitude surge justamente com a proposta de aproximar, mais efetivamente, a cultura hip-hop das demandas “negralizadas”. Utilizamos expressões como afro-hip-hop. Com isso, aproximamos nossos discursos, eventos, produções e parcerias da luta do povo negro. Vinte anos atrás, o hip-hop fazia parte inequívoca do movimento da negritude. Então, falar afro-hip-hop era redundante, porém necessário. Estrategicamente, na experiência de nosso coletivo, ampliamos os quatro elementos (DJ, break, mc e grafite) para pelo menos seis, pois incluímos, literalmente, a poesia e o audiovisual em nossas ações. Com isso, entramos mais profundamente na “militância”, pois contamos com parcerias bastante experientes, como os saudosos cineclubista Luiz Orlando da Silva e poeta José Carlos Limeira.
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Foto: Adeloyá
De que forma a poesia, a dança e o ativismo se comunicam entre si? Primeiramente, nos eventos de multilinguagem em cenas politizadas. Mas podem também conformar uma linguagem híbrida, promovendo um diálogo ética e esteticamente complementar em simultaneidade. Para pensar essa e outras aglutinações de diferentes expressões numa linguagem, como eu disse, híbrida, gosto e adoro o conceito
“performance”. Mas realmente penso que esse diálogo deve resultar numa estética específica, não uma linguagem ilustrando ou a reboque de outra. Falando de maneira mais crítica, tem que significar. Pensando nos elementos contidos nessa pergunta, gostaria de exemplificar com a utilização que faço do dub-poetry. Parente próximo do reggae, esse tipo de poema é de forte apelo oral e corporal. No palco, além da voz, os gestos podem ser utilizados de maneira essencial. Essa junção das palavras com os contratempos da “música” e a expressão corporal em si já tem forte apelo, o que pode ser potencialmente fortalecido com o teor das mensagens verbais e, logicamente, com sua ambientação. Gosto muito de dançar enquanto declamo meus poemas dub. “Estranho” a mim mesmo quando me percebo em ação com um forte
discurso político-racial, “reggeando” minhas rimas enquanto danço. Um estranhamento bom. Gosto de saber que minha poesia pode me tirar para dançar. Vejo isso como ativismo estético. O poema não como instrumento ou estratégia, mas como político em si! Em 2015, você lança seu livro de poesias, “Gramática da Ira”, de forma independente. Quais são as maiores dificuldades quando se é um escritor negro tentando lançar seu primeiro livro? Lançar livro independente acarreta uma porção de conflitos, que vão da escrita à distribuição. Mas ao mesmo tempo nos dá mais liberdade na linguagem e no processo de elaboração e expansão da obra.
Sinto-me tão responsável em construir a beleza quanto provocar um posicionamento crítico e, se possível, um enfrentamento de fato. Escrever para mim passa muito longe da arte pela arte
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Se você tem um espírito independente, essas dificuldades tornam-se desafios prazerosos. Não se mover na dependência de ser vendido, adotado, massificado ameniza as possíveis frustrações. Mas elas existem, é lógico. Quando escolhi que caminho trilhar com o “Gramática da Ira”, estava consciente disso tudo. Foi pago com dinheiro do bolso e a quantia foi reposta com vendagens diretas, ou seja, minha livraria possível era, e ainda é, minha mochila em minhas costas. O livro chega onde eu chego. O fato de eu me assumir e também ser definido como um escritor da Literatura Negra fecha muitas portas integracionistas e/ou comerciais. Por ser militante e colocar minha estética irmanada
com a ética, assino meu próprio B.O. Não espero o sucesso de público ou comercial. Pelo menos, isso não determinou a existência de minha Gramática. Gosto de dizer que, quando meus textos causam constrangimentos no leitor ou ouvintes, me satisfaço mais do que quando agrado e recebo críticas benevolentes, ou quando ganho aplausos. Eu posso dizer que a vendagem e a acolhida dos leitores foi um sucesso. Vendi os 1.100 exemplares publicados, recebi alguma crítica midiática e tenho várias reservas aguardando uma segunda edição. Mas, se tiver que escolher um problema nas publicações, escolho, simplesmente, o fato da dificuldade relacionada à grana. Em uma entrevista, você diz ter ficado feliz que as negociações para o livro ser publicado por uma editora de grande porte, a Global Editora, não deram certo. Você desejava a publicação independente desde o início? Sim, acho que foi bom eu não ter publicado. E também desejava desde sempre ser independente. Fiquei momentaneamente seduzido pela Global porque publicaria na coleção na qual autores que admiro publicaram, a exemplo da Dinha, do Sérgio Vaz e do Alessandro Buzo. Aliás, o livro “A Rima Denuncia”, com letras do rapper brasiliense Gog, que faz parte da coleção “Literatura Periférica”, fui eu que organizei. Mas me convenci a tempo que não queria sair pela editora. Além de não querer ficar com o título refém do selo, eu queria editar livros. E também eu não tava satisfeito com a pequeníssima porcentagem que receberia sobre o preço de capa. Quero publicar mais dessa maneira. Tenho um livro de contos já pronto (“Relatos da Guerra Preta:
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Foto: Fernando Gomes
Em São Paulo, na Balada Literária, 2011
ou Bahia Baixa Estação”) e um romance juvenil que deve ficar pronto ainda em 2018, “Ani”. Penso mesmo que nós, escritores e empreendedores negros, deveríamos ocupar mais lugares-chaves no ciclo editorial, independente ou comercial. Qual é a importância de ter um selo próprio, o Blackitude? Definir e conduzir o processo editorial. Dominar a cadeia do livro. Poder definir nossas demandas. Publicar textos urgentes para nossa comunidade. Evitar intermediários, mesmo os mecenas. Enfim, independência.
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De Castro Alves a Lima Barreto e Solano Trindade, como você enxerga as diferenças e semelhanças da literatura negra na linha do tempo? Eu não incluo Castro Alves na minha concepção de Literatura Negra. Entre outros elementos, pesam em meu conceito a origem racial do autor e a voz do texto. Lima Barreto e Solano Trindade, sim. Elencar as diferenças pedidas exigiria uma tese. Para ficar apenas nos autores citados e definir traços ilustrativos, o Lima Barreto traz marcas externas do racismo em “Clara dos Anjos” e uma sondagem do conflito racial a partir das reflexões de Isaías Caminha. Águas profundas rolaram deles e outras rolam de lá pra cá. Tento pensar esse percurso e aproveitar o que puder em minha literatura. Do pioneiro Luís Gama à presente Conceição Evaristo, temos uma tradição inequívoca de grandes autores e autoras negras. E com elas e eles, assuntos e marcas textuais. Hoje me preocupo bastante com a textualidade. Avancei mais na poesia. E esse avanço se deve, principalmente, aos Cadernos Negros, ao Movimento Hip-Hop e aos saraus literários comunitários. Essa tradição me lançou à performance! De que forma esses autores ainda tocam nos problemas raciais e sociais vividos atualmente? Os problemas raciais e sociais em si são representados e discutidos nos assuntos e temas. Refletir criticamente sobre essas questões tem sido a busca dos autores da Literatura Negra. Por outro lado, a superação dos conflitos e a afirmação sociorracial no campo literário devem, necessariamente, envolver igualmente a estética, as formas, os estilos. Ou seja, fundar o texto negro. Neste texto, defendo sempre, ética e estética
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não se dissociam. Todo século XX foi de debates sobre essa dicotomia que insiste em questionar a independência estética ou não das linguagens das artes negras. A Bahia está bastante presente em você e em seu trabalho. Como é ser baiano de coração? Ainda há espaço para o Paraná? Salvador e Recôncavo é minha África possível aqui. Ser baiano de coração é uma das alegrias da minha vida. Amo a Bahia de uma forma profunda. Gosto tanto que, embora enraizado aqui, paradoxalmente, ainda sinto o prazer das primeiras visitas. Ando por certas ruas como se fossem a primeira vez. Fico observando as pessoas, seus comportamentos, seu jeito de corpo. Adotei para mim um conceito que ouvi e gostei: “falso baiano”. Mas digo que sou o falso baiano mais verdadeiro. Tenho certeza de que não escreveria da forma que escrevo se eu continuasse no Paraná, fosse em Telêmaco Borba ou Curitiba. Aliás, a maior parte de minha família permanece no Paraná. Então vou com frequência a Curitiba. Mas o que me prende lá é a família e
Por outro lado, a superação dos conflitos e a afirmação sociorracial no campo literário devem, necessariamente, envolver igualmente a estética, as formas, os estilos. Ou seja, fundar o texto negro
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os pouquíssimos amigos que restaram. Não quero entrar em detalhes sobre o lado hostil de certo povo daquela cidade. Mas gosto de ir lá. Gosto de andar no centro da cidade nos dias e noites de frio. Só odeio essa história de República de Curitiba. A obra de Jorge Amado ainda é muito significativa politicamente nos dias de hoje? E esteticamente? Não sou nenhum apaixonado pela obra de Jorge Amado. Mas ele e seu imaginário literário marcam profundamente muita coisa na Bahia. Ainda. Mas, não sei, não. Tenho impressão que já foi bem mais forte. Sempre debati o peso político das obras de Jorge Amado, Castro Alves e Gregório de Matos. Todos símbolos de uma baianidade bastante questionada por nós, negros militantes. Muita estereotipia permeia os textos desses escritores. Sem dúvida nenhuma, grandes escritores. No entanto, bastante complexos quando pensados pela ótica do debate racial e das razões da Literatura Negra. Na verdade, numa entrevista como essa, acho mesmo que eu contribuiria mais ao debate crítico, sugerindo que os leitores focassem também os escritores e escritoras baianas Aline França, Jônatas Conceição, José Carlos Limeira, Fábio Mandingo, Lande Onawale, Lívia Natália, Rita Santana, etc. Fale sobre a decisão de se apropriar, em seus poemas, da definição do sentimento de ira e transformá-lo em identidade como algo bom? Minha intenção é poetizar sobre a capacidade do povo negro de se rebelar. Existe uma tendência a uma complacência geral perigosa. Comportamento que tende a nos colocar em estado de comodidade. Uma espécie de domesticação promovida ou
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influenciada por uma história mal contada. Abro o livro “Gramática da Ira” com um poemadedicatória a um dos artistas mais inconformados da música negra mundial, Fela Kuti. Ele nunca se dobrou às demandas opressoras. Sempre reagiu artisticamente de forma bélica. No segundo poema do livro, que, em verdade, é o primeiro, faço um inventário dos horrores promovidos pelas torturas praticadas contra o povo escravizado no Brasil Colônia e Império. De cara, mostro o quanto a violência física atinge o povo negro brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, são criados mitos e ideologias que nos fazem crer que vivemos num país que superou as mazelas do racismo. Então esse trato cruel se eterniza, porém camuflado com falácias como a democracia racial e a ideologia da mestiçagem. Não se racializa, por exemplo, a compreensão dos mecanismos que engendram e sustentam a violência da exclusão social, do preconceito e do racismo direto, que engendram a pobreza, a falta de educação formal, a brutalidade policial, a criminalidade, a mortalidade infantil... Todas essas ideias e ações foram se naturalizando entre nós devido a certa “domesticação” social, evitando rebeliões que coloquem nossa sociedade numa guerra racial. Meu tratamento poético do texto através do paradigma da Ira tem o desejo de rebelar o leitor. Tirá-lo da imobilidade e da falta de reação. Na verdade, quer ser um despertar para a luta da cidadania que, acredito, não vai ser conquistada por nós sem enfrentamento efetivo. Tal qual Fela Kuti define sua música, meu verso é minha arma!
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Os últimos anos marcaram uma divisão do Brasil entre esquerda e direita. Como você analisa o cenário brasileiro recente? E em que ponto a literatura se converge com essa reflexão? Pela ótica do homem negro consciente e militante que eu penso que sou, diria que o problema que nos atinge, a nós negros, de forma mais violenta, se eterniza tanto na direita como na esquerda. Falo do racismo. Percebo mesmo como realidade a máxima que diz que, entre a direita e a esquerda, continuamos negros. Mesmo assim, penso que, apesar de não superarmos o racismo, podemos avançar um pouco mais. Por isso, logicamente, me sinto mais à esquerda. Igualmente à maioria das
Foto: Adeloyá
pessoas progressistas, tô bastante perplexo com o fascismo que ronda nossos dias. Embora, como disse, não vejo os projetos políticos tradicionais avançar de fato no enfrentamento do racismo, sou uma pessoa afinada com o pensamento mais progressista. Logo, minha literatura, sem deslocar sua centralidade da questão racial, converge, na medida do possível, com o pensamento socialista.
Ceará Pacífico
Um estado de insegurança me toma (será ele o ceará pacífico?) O alvo ou a mira, pouco importa artigo e/ou gênero Definido está o verbo e é esse que conjugado, me atormenta Eu Tu Nós que voa, ou ao menos deveria O advérbio interrompe a oração e modificando o sentido da ação grita a intensidade do medo que o jovem negro tem de viver nesse país. A língua é pátria, mas a pátria não é mãe gentil. Pudera, morfologia prescrita da cabeça de um membro branco ereto. O numeral ordena gramaticalmente os corpos e diz com quantos neguim morto se constrói a paz A paz, adjetivamente branca Ativamente racista Ativa a mente pra desumanização e o predicativo do sujeito era/é: bandido Proposição proposital: guerra às drogas. Droga: pouco valor, insignificante. Insignificante: sinônimo de “gente negra” em país racista. Negra: substantivo feminino. Polissemia: aquela que vive em cativeiro. Cativeiro: antônimo de liberdade. Liberdade: apelo da juventude negra. Apelo em locuções adjetivas: misericórdia! Miséria e Cordas, substantivos para uso com sujeitos negros. Sujeito negro, marcado pelo caso reto de ser alvo da bala que “perdida” no escuro é orientada pela melanina. A língua do colonizador ainda está a ditar as normas das orações E é por isso que o neguinho reza pra que seu Deus lhe estenda escudos e poderosas armas.
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O monossilábico há de servir para alguma coisa, e é pela nossa razão que no período gramatical eu uso a fé. Tiago Manguebixa
Regência
Meu primeiro poema deste ano veio pelo cano quente chumbo grosso no lombo do escrivão supremacista Bala cravada na testa perfuração no crânio caroço no tímpano Um ferro berro enfiado no ouvido metido no meio da fuça do escritor racista Meu primeiro gesto poético deste ano veio metálico Folha em forma de alfanje fuligem fudendo as artérias correntada na cara pálida do compositor puro sangue Lâmina na língua navalha na carne guilhotina no pescoço do best seller da casa grande O texto que me chegou primeiro este ano veio feito ferro fundido vazado no molde temperado na liga na têmpora endurecido Forte foda fudido enrijecido no tempo moldado na prensa do verbo cortado no aço da serra mordido
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Minha primeira postagem da primeira segunda feira da primeira semana deste ano é querosene na chama bigorna de serralheiro marreta, camartelo, ponteira maçarico de serralheria Martelo na cabeça do prego forja da chapa quente rasgo de estamparia Minha primeira rima deste ano só podia ser assim mesmo espora sangrenta na bota escrita que se faz na rinha Este ano não se engane vai ser navalha na carne agulhada na vida fluído fervendo na veia Projétil de ouro no olho cravos nos impulsos gilete nos insultos punhal de prata no peito Alfinetada na grafia do autor segregacionista Minha regência este ano diz p’reu não parar seguir rimando Exu abrindo caminho Ogum estraçalhando Xangô me justiçando (Nelson Maca)
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Chamo Miles Clamo James Meu Deus é música preta eu sinto meu instinto ritmo essência minha consciência crença A batida me leva às alturas sagração do rito meu poema bate cabeça aos pés sagrados do atabaque Minha voz som grunhido aliás meus gritos e gestos de pastores do Harlem galopam nos cavalos de santo Minha reza seta em voo é batuque afiado tambor no peito de Assunção lança poética de Abelardo Quando peço graças chamo Miles quando busco q=a clamo James (Nelson Maca)
Eu também grito: Negra! Distante do alisante europa cada cacho dela encrespa uma África em cada elo um matriarcado inteiro pelo corpo pele pelos panos da costa Nos braços ossos entre ouro e prata luz suprema que não se apaga brilho intenso que não se esgota ela me denota Eu também grito: Negra! Guardiã de nossos ricos adornos senhora de nossas belas formas dona das nossas linhas exatas contornos de tantos traços nossos A nossa neta que não se dobra bisneta escrita em nossa história tataraneta viva nossa memória ela é minha glória Eu também grito: Negra! Curva do rabisco sinuoso o fino risco da linha estética no pulso pulsa a veia ética alta estirpe no percurso da rima Chave de ouro imagem belo verso enlace de pensamento crespo balanço do metro em movimento ela me faz atento Eu também grito: Negra! Ponta de diamante inteiro corte lapidar de minério fio de modelagem plástica lâmina de antigo Império Original da linguagem humana verbo de corrente soberana
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frase de redemoinho insurreto ela me faz correto Eu também grito: Negra! Com ela não existe rima pobre tessitura é sua beleza justa matéria poética breu intacto o ébano metrifica sua conduta Noite que dispensa lua estátua de granito denegrido pintura pigmento melanina ela me ensina Eu também grito: Negra! Petróleo translúcido de tão retinto sua negrura aguça meu instinto eu pressinto eu fito eu dito eu sinto ganho profundidade e amplitude Pérola negra gata negra negra negra minha mãe minha irmã minha filha nascedouro de minha atitude ela me traz saúde Eu também grito: Negra! Batalhas e festas sem artifício combate límpido ataque lírico água doce ruptura da encosta rio manso que arrasta rochas Enchente que recicla a terra fios líquidos que cavam crateras lago calmo imensidão profunda ela me deslumbra Eu também grito: Negra! (Nelson Maca)
C
urta o
A ceia
Por Nilton Resende Mordo o biscoito que levei vagaroso à boca, e ele quebrando-se é como ossos que se esmagam. Trituro-o e imagino desfazer-se a rede desenhada em sua superfície, lembrando-me o jogo que meu avô me ensinou e para o qual me convidou em tantas tardes. Biscoito, rede, ossos triturados. Mordo e sinto mastigar o velho, as migalhas saindo pelos cantos como se uns dedos tentassem escapar. Eu em cima da mesa me masturbava em frente à pintura da cigana. Ela, deitada num divã, tinha uma das mãos acariciando o bico de um dos seios, enquanto a outra se enfurnava sob o pano púrpura, eu imaginando-a mexendo nos pelos até se umedecer. Eu me extasiava. Gemia, quando ele chegou à sala e gritou comigo, mandando-me descer. Retesei-me. E enquanto com uma das mãos segurava o pequeno endurecido, com a outra fiz um gesto de dança no ar, baixando-a lento. Voltei-me para ele, numa continuação da dança, o olhar duro. Fiz um bico provocador, abotoando a boca. Lancei-lhe um beijo de deboche. E bruscamente puxei para trás a mão que segurava o pinto, exibindo-o duro e fremente. Ele me pegou pelo braço, fazendo-me descer da mesa. Apertou-me, empurrando-me para baixo, e disse que contaria a meus pais quando eles voltassem do cinema. Dizendo ainda que daquela
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vez eles iam saber a peste que tinham dentro de casa. Se você falar, vai se arrepender, eu disse entredentes e afastei-me de suas mãos, pegando o calção sobre a mesa. Levantei-me, indo rebolando ao banheiro, um sorriso estampado na cara e em todo o corpo que agora gargalhava do velho que tremia. Pude ver que ele estava muito nervoso, quando passei pelo espelho e parei, fixando nele o olhar. Estático, apenas olhava-me com uma expressão que ainda hoje não sei precisar se era de ódio ou dó. Fixei-o e, dando um grito zombeteiro, corri para o banheiro. Permaneci lá dentro, em silêncio e na semiescuridão. Demoraram-se alguns minutos, e eu me vestia, quando ele veio à porta e falou, baixo: Hoje eu conto tudo. Nesse momento, tive medo. Por instantes, fiquei confuso. Mas logo me acalmei, acabando de me vestir em meio à minha brilhante ideia: encostei a face na parede e, com força, esfreguei-a em um movimento vertical até me ferir. Quando a pele começou a arder, prensei os dentes e esfreguei o rosto com ainda mais força. Por fim, joguei a testa contra o vaso. Sorri, quando senti o pequeno caroço se pronunciar. Limpei a parede avermelhada de um pouco do sangue dos arranhões, saí do banheiro e passei cuidadoso pelo quarto do velho, para ver se ele dormia. Voltei à cozinha, apaguei a luz e fui para a minha cama. Não sem antes me olhar no espelho, orgulhoso. Orgulhava-me; e um sorriso imperscrutável esboçou-se. Idêntico ao de quando joguei o rato na cama do velho, eu me contendo para não rir quando — eu já havia voltado para meu quarto — ele gritou, pedindo socorro porque alguma coisa o tinha mordido. Meu pai e minha
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mãe correram para ver o que havia acontecido, e precisaram abraçar o velho, quando o viram sentado na cama, os olhos esbugalhados olhando descrentes para a massa vermelha esmagada nas mãos. Eu apareci na porta e falei, quase inocente: Vô... O que foi, vô? Mas ele não respondeu; sentado nu sobre a cama, meu pai tentando fazê-lo parar de tremer, minha mãe cobrindo-o com um lençol, as pernas dele magras e negras, quase branco apenas o tufo de pelos que pude vislumbrar, um acinzentado emoldurando o sexo murcho. No outro dia, à mesa do café, ele segurou minha mão — minha mãe e meu pai estavam na cozinha —, segurou minha mão, apertando, e perguntou incisivo: Foi você? Mãe!, eu gritei. Assim que ela apareceu, ele me soltou. Senti-me poderoso. O que foi?, ela perguntou, aproximando-se. Eu respondi, doce: Mãe, frita um ovo pra mim? Ela virou-se. Eu, olhando nos olhos dele, quis sorrir. Não sei o que se passou na cabeça dele nos outros dias, mas pareceu-me ter esquecido o rato. E também o escorregão que tinha levado uns dias antes porque eu havia passado cera na entrada do quarto, fazendo ele tombar e bater com a cabeça no chão. E o rapé. Que eu tinha misturado com um pouco de pimenta-do-reino moída. Ele estava mais calmo. Ficávamos brincando à tarde. Ele desenhava as listras no papel, e colocávamos os caroços de feijão nos pontos até vermos quem conseguia trancafiar o outro. Mas na noite em que eu subi à mesa, percebi: ele estava decidido a falar. Fui à cama. Deitei-me e esperei meus pais chegarem e irem dormir, mas não preguei o olho. Pela manhã, ouvi os cochichos na cozinha. Ele não presta, escutei meu avô dizer. Respeite o meu filho,
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disse meu pai. Respeite o meu filho, ou você vai pra fora desta casa. Mas eu sou seu pai, o velho falou, a voz enrouquecida. E ele respondeu: Mas ele é meu filho. E nesse instante minha mãe gritou que não era possível ser verdade aquilo, eu era apenas uma criança! Chamem ele!, meu avô disse. Chamem, disse novamente, baixando a voz. Perguntem na minha frente se o que eu disse é mentira. Perguntem! Não é possível que ele vá mentir. Foi quando chorei. Dei um primeiro gemido bastante alto e depois baixei o som, tremendo o corpo sobre a cama, eu inteiro enrodilhado na coberta. Enrodilhado e soluçando, uns acessos de tosse ainda mais fortes quando meu pai chegou ao quarto. Entrou e retirou ríspido o travesseiro de sobre minha cabeça. Até hoje não esqueço sua cara de terror ao olhar para mim. Colocou-me nos braços, eu ainda chorando num exagero que aumentou ainda mais quando passamos pelo espelho e pude ver o rosto inchado, a testa arroxeada e a face cheia de arranhões. Ele me bateu!, eu gritei. Ele me empurrou, pai, e esfregou a minha cara no chão. Gritei ainda mais alto quando vi meu avô estarrecido, precisando apoiar uma das mãos na cadeira que estava atrás dele. Ele me bateu, pai. Tá doendo, pai. Ai, ai, pai, dói, dói. No meio da confusão, minha mãe puxou meu pai pelo braço, e me levaram para fazer uns curativos. Saíamos para o hospital, e pude
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ver meu avô olhando para mim, numa expressão embrutecida, movendo a cabeça para os lados. Parece que vi uma lágrima descer pelo seu rosto encovado. Após aquela manhã, meus pais não falaram mais com meu avô, que quase não saía do quarto, a não ser para ir ao banheiro. Ou para cheirar seu rapé, sentado no quintal. Passou-se uma semana e ouvi meus pais conversando sobre ele. Nesse mesmo dia, uma quinta-feira, convidei meu avô para jogar. Minha tia, que agora ficava em casa enquanto meus pais iam trabalhar, disse a ele: Tá vendo, pai...? O menino quer jogar. Tá vendo? Ele mexeu a cabeça. Foi ao quarto, pegou um pedaço de papelão e levou-o à cozinha, com lápis e régua na outra mão. Sentou-se e fixou na mesa o rosto assombrado. Levantou-o, olhando-me enquanto eu me sentava, acompanhando meus gestos, acompanhando meu olhar sobre o pote de feijões que eu depositava sobre a mesa, ao lado do tabuleiro que eu já havia riscado. Olhei para ele, meneando a cabeça para que começasse a partida. Ele colocou no chão o papelão, o lápis e a régua. Tocou com as pontas dos dedos o tabuleiro que eu havia desenhado, forçando-as nas inscrições. Levou ao pote a mão em veias, retirou alguns feijões, colocou-os na outra mão e depositou um deles sobre a madeira entalhada do tabuleiro. Começamos o jogo de um tentar prender o outro. Percebi que ele não se empenhava em ganhar. Mas não dei valor a isso; com alguns lances, pude tê-lo entre meus feijões, meus grãos cercando-o. Coloquei o último deles com um gesto solene. E disse, baixinho: Ganhei.
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Quando vi seu olhar inexpressivo, meus olhos quiseram chorar. Eu quase chorei. No entanto, contive-me. E tocando o último feijão que havia colocado, disse mais uma vez, agora me aproximando de seu ouvido: Ganhei. Foi quando meus pais chegaram em casa e se aproximaram da cozinha com um representante do asilo para onde iam levar o velho — eu tinha ouvido a conversa pela manhã. E outra vez articulei a palavra para ele, agora sem som, apenas movendo os lábios, afastando-me dele ao mesmo tempo em que abria os olhos como se para fazê-lo compreender melhor o que eu lhe dizia: Ganhei. E à frente de todos, lento e agora deixando os olhos se encharcarem, à frente de todos eu enlacei meu avô pelo pescoço, aproximei meu rosto lentamente e, fechando os olhos para que uma lágrima resvalasse, com aparente profundo amor beijei-lhe a rendida face.
Nilton Resende tem livros premiados nos gêneros poesia (O Orvalho e os Dias) e conto (Diabolô). Lançou recentemente o livro “A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde”, fruto de sua tese de doutorado. É professor do Laboratório Sesc de Criação e Expressão Literária, em Maceió, onde reside.
Ilustração: André Valente via BBC Brasil
ÚRSULA: UMA INSULAR HISTÓRIA
Por Alex Baoli O romance Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos Reis, é uma narrativa ímpar. Essa característica não se deve apenas ao fato de ser um romance escrito por uma mulher, mas uma mulher negra, nordestina e numa época em que o Brasil vivia ainda sob o jugo da escravatura. Acrescente-se ainda o fato de tal obra ser publicada em São Luís MA, muito distante do eixo Rio – São Paulo. O livro Úrsula é um romance que se estrutura em 20 capítulos e é narrado em terceira pessoa. Publicado em 1859, em São Luís - MA, o livro trata das narrativas envolvendo o “escravo” Túlio, de
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senhoria da mãe de Úrsula. Aliás, a história se inicia com Túlio salvando o jovem branco Tancredo (O Cavaleiro), que é apresentado a Úrsula pelo “escravo”. Numa técnica de flashback, o narrador se volta para Tancredo e seu mundo, nos esclarecendo como o moço foi parar perto da casa dos donos de Túlio. Inicia-se então um enlace amoroso envolvendo Úrsula e Tancredo. Há ainda na obra a Preta Susana (Mãe Susana). Ela é a que veio da África (capturada) e que narra para Túlio a experiência de uma vida plena, em tempos de liberdade em África; além de denunciar que, no Brasil, mesmo um alforriado, não poderá gozar de plena liberdade, sem ser atingido pelo racismo. Há de notar uma “paridade” de personagens brancos e negros na narrativa. Isso resulta num equilíbrio de vozes, consolidando o projeto engendrado pela autora. Esse romance é importante por diversas razões, uma delas é o fato de ser uma narrativa escrita por uma mulher negra. Pioneiríssimo no que tange à discussão sobre a condição do escravizado de uma maneira humanizada, subjetivada, já que o romance foi publicado em 1859, sob o pseudônimo “uma maranhense”, ou seja, no período ainda escravocrata. Maria Firmina utiliza esse pseudônimo, provavelmente, por consciência de saber das limitações impostas às mulheres escritoras naquele período. O fato de a escritora ter posto no centro da discussão literária personagens negros humanizados, em toda a sua dimensão de subjetividade, vai de encontro à letra imperante da época, mormente no que tange ao período literário tão em voga – o Romantismo. Era ainda o período escravocrata, em que, alías, os escravizados eram tratados como objetos. Não cedendo às tendências vigentes à época, Maria Firmina se distancia de
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uma caricaturização dos escravizados, coisa que a sua contemporânea americana Herriet Beecher Stowe tinha feito em seu “A Cabana do Pai Tomás” (Estados Unidos, 1851-1852): perfilando os sujeitos escravizados como submissos, dóceis e fiéis a seus senhores. O Pai Tomás, que intitula a história, é o modelo de indivíduo escravizado idealizado pelo colonizador: fiel, dócil, passivo às “benesses” da civilização. É isso que faz o romance em análise ser “insular”, tanto no sentido de único na Literatura Brasileira da época quanto de ter ficado “desconhecido”, sem muitas repercussões, por mais de um século desde a sua publicação. Há nele um atravessamento, uma interseccionalidade: literatura negra, escrita por uma mulher, pondo em foco outro ponto de vista sobre o escravizado que não o vigente. Maria Firmina opta por ressaltar, com sutilezas e sagacidade, as características positivas dos escravizados. Tão diferente de narrativas como “As vítimas-algozes: quadros da escravidão”, de Joaquim Manuel de Macedo (1869), que se utiliza de relatos da “escrividão” numa posição dúbia sobre os escravizados: eles seriam vítimas de um sistema perverso que reifica pessoas, tornando corpos de extração” (Achille Mbembe); e algozes, porque esse mesmo sistema é o culpado por eles revidarem, orquestrarem maléficos planos contra seus “senhores”. A obra de Macedo encerra 3 narrativas: “I - Simeão, o crioulo”; “II - Pai-Raiol, o feiticeiro”; “III - Lucinda, a mucama”. A divisão dessa obra, por si só, já aponta para um olhar fixo, estanque sobre a desenvoltura das personagens. Elas são estereotipadas pelo aposto que acompanha cada nome dos personagens, reforçadas pela palavra “Quadros”,
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presente no subtítulo. São determinadas pela sua condição de escravizadas, que apenas executam as ações que lhe cabem. É se opondo a esse ponto de vista, e pelo especial tratamento do tema em nossa literatura, que louvo o pioneirismo da obra “Úrsula”. Quer na esfera internacional (“A Cabana do Pai Tomás”), quer na literatura brasileira, o romance da maranhense foi durante muito tempo uma “ponta de lança” na abordagem envolvendo os escravizados. Recomenda-se a leitura de Úrsula por diversas razões. Vou elencar algumas: trata-se do primeiro romance abolicionista na Literatura Brasileira, o primeiro também escrito por uma mulher; o ponto de vista, o olhar sobre os escravizados é uma perspectiva outra – eles não são vistos como coisas, e sim pessoas, vez ou outra o narrador reporta as ações e comportamentos desses personagens sendo admirados pelos personagens brancos; é apontado como o um dos marcos da literatura afro-brasileira no Brasil (segundo Eduardo de Assis Duarte); o equilíbrio de vozes – a autora traz uma “paridade” entre personagens brancos e negros, garantindo uma certa harmonia, colocando os escravizados sob outra perspectiva, distante da posta pelos autores brasileiros brancos de então.
Alex Baoli é graduado em Letras/Português pela Universidade Regional do Cariri (URCA) e professor de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino do Ceará.
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Foto: Val Wilmer
AS IRONIAS DA MATERNIDADE
Por Cristina Carneiro de Menezes Ler As Alegrias da Maternidade, da escritora nigeriana Buchi Emecheta (1944-2017), é como se estivéssemos ouvindo uma história de um mundo distante. Mas, logo depois das primeiras páginas, reflexões vão brotando e o leitor vai se dando conta que, embora a autora pareça usar tintas fortes para contar uma história nigeriana, as questões são ainda vivenciadas no cotidiano brasileiro de 2018. O livro é centrado na vida de Nnu Ego, uma mulher que seria valorizada, na sociedade nigeriana dos anos 1930, apenas se tivesse um filho homem. Desprezada pelo primeiro marido por não ter engravidado, Nnu Ego sai de sua terra natal para casar com um segundo homem, na capital Lagos, num país colonizado pelos britânicos. A partir daí, questões coloniais, de linhagem familiar, choque cultural entre costumes tradicionais da aldeia Ibuza e novos costumes da capital Lagos, xenofobia entre etnias africanas e, especialmente, o valor
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e a existência (social) das mulheres vão sendo colocados ao longo dos dezoito capítulos, numa linguagem fluida e reveladora. Em questionamentos até bem didáticos através das falas dos personagens igbos, iorubás e brancos, As Alegrias da Maternidade incomoda e entristece, mas educa e, eu diria, é capaz de desanuviar a visão de quem ainda não percebeu que o tipo de existência tido pelas mulheres de Buchi, aparentemente absurdo ou distópico – mas que ela narra sem rodeios –, ainda é vivido hoje, de maneira velada, em tantos outros lugares, bem perto da gente. As mulheres d’As Alegrias da Maternidade, inseridas numa sociedade ultramachista, na qual só se tem valor quando se tem um filho homem, são resilientes, fortes, tudo suportam, mas sofrem e estão em conflito. Um sofrimento que ainda vemos nas “alegrias” de muitas mães de hoje e um conflito que ainda é sentido, em certa medida, pelas mulheres de 2018. Buchi Emecheta teve uma vida marcada pelas questões abordadas no livro e encontrou na escrita um alento para suas angústias. Teve um noivado ainda na infância, viveu um casamento infeliz, conseguiu se divorciar e morreu em 2017, aos 72 anos, quase 40 anos depois de viver uma alegria de mãe experienciada por Nnu Ego. Também formada em Sociologia, Buchi escreveu romances, peças e artigos, especialmente durante os anos 1970 e 1980, mas, apenas em 2017, As Alegrias da Maternidade foi lançado no Brasil, numa parceria do clube de assinatura de livros TAG e da editora Dublinense. Este ano, a Dublinense lança, fora do clube de assinatura, nova edição da obra e um livro inédito, no Brasil, da autora, Cidadã de Segunda Classe. Cristina Carneiro de Menezes é jornalista na Universidade Federal do Cariri (UFCA). Nov 2018 |
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Livro: Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada Autora: Carolina Maria de Jesus Editora: Ática (2018) O livro Quarto de Despejo é o diário de Carolina, uma catadora de papéis semianalfabeta, negra, pobre e favelada. Ela é autora, personagem e narradora do livro. Na obra, representa a voz dos excluídos e marginalizados por questões sociais e étnicas, a partir de reflexões sensíveis e críticas. Todo o texto é como se fosse um espelho através do qual a autora olha a si mesma e, também, as pessoas que dividem com ela o seu espaço. É um diário diferente dos outros, que são confidenciais, pois a autora procura denunciar as condições miseráveis de vida em uma favela. Livro: A Cor Púrpura Autor: Alice Walker Editora: José Olympio (2006) O romance retrata a vida de Celie, mulher negra do sul dos EUA, na primeira metade do século XX. Pobre e praticamente analfabeta, Celie foi abusada, física e psicologicamente, desde a infância. Um universo delicado, no entanto, é construído a partir das cartas que Celie escreve e das experiências de amizade e amor vividas, sobretudo com Shug Avery. Apesar da dramaticidade de seu enredo, “A Cor Púrpura” se mostra atual e nos faz refletir sobre as relações de amor, ódio e poder, em uma sociedade ainda marcada pelas desigualdades entre gêneros, etnias e classes sociais.
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Revelar talentos e promover a literatura nacional são propósitos do Prêmio Sesc de Literatura. Lançado pelo Sesc em 2003, o concurso identifica escritores inéditos em Conto e Romance, cujas obras possuam qualidade literária para edição e circulação nacional. Além da divulgação das obras, o Prêmio Sesc também abre uma porta do mercado editorial aos estreantes: os livros vencedores são publicados pela editora Record e distribuídos para toda a rede de bibliotecas e salas de leitura do Sesc em todo o país. Mais do que oferecer uma oportunidade a novos escritores, o Prêmio Sesc de Literatura cumpre um importante papel na área cultural, proporcionando uma renovação no panorama literário brasileiro. Mais informações em: www.sesc.com.br/premiosesc
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