Revista Pequiá - 8a. ed.

Page 1

ANO 2 EDIÇÃO 08

Pequiá

Literatura Sesc

Nicolas Behr

Obsessão poética por Brasília


A revista de literatura Pequiá, uma realização do Sistema Fecomércio – CE, por meio do SESC e, em parceria com a Universidade Federal do Cariri, através da PROCULT, apresenta, em sua oitava edição, o mesmo compromisso de ser esse elemento de estímulo e difusão da literatura e leitura. A edição número 8, de 2020, traz entrevista com o poeta Nicolas Behr, nossa capa; matéria que faz um pequeno recorte do Sesc e seu papel nas Festas, Jornadas e Bienais, onde vimos como a instituição, através de seus projetos, compreende a literatura como um potente meio de construção de identidades e de formação de cidadãos conscientes de seu papel. A revista também traz poetas e prosadores da região NE, nomes como Bruno Paulino (CE), Luciana Dantas (PB), Kinaya Black (CE), na poesia; Rafael Rodrigues (BA) e Taylane Cruz (SE), na prosa, mostrando os muitos nordestes aqui contidos. Também damos início a uma nova sessão por aqui: Portifólio, com o trabalho da poetisa e artista visual Léa Cardoso (SE). Fechando nossa edição de 2020 o atemporal “Apanhador no campo de centeio”, de J.D. Salinger, tem resenha do jornalista Márcio Silvestre. Assim, o Sesc Ceará assume seu papel social e, por meio das ações da Programa Cultura, democratiza o acesso aos bens culturais. Nossa intenção ao publicar esta revista é proporcionar um lugar onde as pessoas encontrem bons instantes de fruição em torno da literatura, essa forma privilegiada de encarar o mundo.

Boa leitura.

02 | Pequiá


EXPEDIENTE Edição 8 | Junho/Julho 2020 FECOMÉRCIO | SESC

DEPARTAMENTO REGIONAL DO SESC/ AR-CE

Presidente: Maurício Cavalcante Filizola Diretor Regional: Rodrigo Leite Rebouças Diretora de Programação Social: Patrícia Carnevalli R. de Paiva Diretora Administrativa: Débora Sombra Costa Lima Diretor Financeiro: Gilberto Barroso Frota Consultor de Programação Social: Chagas Sales Nogueira Lima Analista de Programação Social: Maria Bezerra UNIDADE CRATO DO SESC Gerente: Heliane Aragão Pereira Supervisor de Cultura: George Belisário Programa Cultura Sesc Crato: Suzana Carneiro, Gabriel Campos, Socorro Dantas, Talita Rocha e Raflésia Custódio Dias Bezerra UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA Reitor: Ricardo Luiz Lange Ness Vice-Reitora: Laura Hévila Inocêncio Leite Pró-Reitor de Cultura: José Robson Maia de Almeida Coord. de Política e Diversidade Cultural: Gustavo Ramos Ferreira REDAÇÃO Repórter: Mychelle Santos Colaboradores: Bibiana Belisário, Bruno Paulino, Kinaya Black, Luciana Dantas, Márcio Silvestre, Rafael Rodrigues e Taylane Cruz Curadoria: George Belisário Projeto Gráfico: Estúdio Caravelas / Hanna Menezes Diagramação: Paulo Anaximandro Tavares Foto de capa: Alexandre Fortes Ilustrações: Benjamin Yousef, Fernanda Oliveira, Júlia Marques, Paulo Anaximandro Tavares e Yanne Vieira Revisão: Equipe SESC Crato Professor Orientador: José Anderson Sandes Coordenação Editorial: George Belisário REVISTA PEQUIÁ (SESC CRATO) Rua André Cartaxo, 443 – Palmeiral Crato/CE CEP: 63100-555 Telefone: (88) 3586-9163 E-mail: gbelisario@sesc-ce.com.br Tiragem: 1000 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Dez 2019 | 03


Confira a entrevista do poeta marginal Nicolas Behr. O matogrossense que vive em Brasília fala de suas vivências com a poesia e de sua visita ao Cariri durante o Festival Palavra, promovido pelo SESC Crato

06

O SESC e a literatura andam juntos e trilham caminhos por todo o Brasil. Em entrevista para a pequiá alguns dos curadores desses eventos falaram um pouco da organização, das atividades e dos benefícios que essas feiras têm para a comunidade

18

Nesta edição, a Pequiá traz uma novidade: a seção Portfólio. A seção mostra fotos e poemas da sergipana Vandérlea Cardoso. A poeta fala da sua relação do texto com a imagem

34 O jornalista Márcio Silvestre traz uma análise sobre a obra “O Apanhador no Campo de Centeio” do autor norte-americano J. D. Salinger (foto), O classico de Salinger ganhou nova edicao brasileira

68

04 | Pequiá


E-books e audiolivros Desde o início do período de confinamento, houve um aumento expressivo nos números de e-books e audiolivros distribuídos. Segundo Marcelo Gioia, CEO da maior distribuidora de conteúdos digitais do Brasil, a Bookwire, nos primeiros 50 dias de isolamento, a Bookwire distribuiu 9,5 milhões de unidades, isso representa 80% de tudo o que foi distribuído ao longo de 2019. “O digital foi o porto mais seguro e mais imediato de leitores que queriam se precaver e se abastecer para o período da quarentena”. Quer saber mais dá uma olhada no 11o. Episódio do ColabPublishNews, onde time da Bookwire no Brasil apresenta as boas práticas para editores na hora de vender livros digitais ou audiolivros. Você acha que o livro vai salvar o mundo? As respostas, claro, variam, passando pelas otimistas e pessimistas. André Argolo reuniu essas respostas e diversos pontos de vista sobre os direitos fundamentais da humanidade: a leitura, a escrita e a literatura. Nomes como Eduardo Lacerda (Patuá), Marilena Nakano (ex-presidente e voluntária da Rede Beija-flor / Bibliotecas Vivas), Cida Saldanha (Livraria da Vila), e outros do mercado editorial brasileiro participam do programa. Literatura nos tempos da quarentena Diante desse novo momento que todos estamos vivendo, por conta da COVID - 19, muitas editoras estão criando estratégias para manter seus leitores e cativa-los durante este período. Iniciativas como “Cores na Quarentena”, da Cia das Letras conjunto de 35 ilustrações, feitas por artistas brasileiros, que trazem a visão de cada um nesse novo cotidiano; O “[N.A.]”, da editora Todavia, convidou escritores e escritoras, designers gráficos, ilustradores, tradutoras e tradutores da casa para trazer o que gostariam de compartilhar com os leitores neste período. O resultado: playlist, trabalhos inéditos, receitas culinárias, etc.; também da Cia das Letras temos os “Diários do isolamento”, parte do projeto #LeiaEmCasa onde autores e autoras fazem um registro coletivo de uma experiência nova, inesperada, cheia de incertezas e que ainda não sabemos quanto tempo durará. Dez 2019 | 05


Foto: Bento Viana

Nicolas Behr

Poemas esparramados pelas asas do Plano Piloto

Entrevista | Bibiana Belisário e Mychelle Santos Texto final | Bibiana Belisário

De uma encomenda, nasce o poeta Nicolas Behr. Essa demanda de escrever partia dele mesmo, na tentativa da resolução do conflito adolescente com uma cidade massificada e racional - Brasília, que logo se tornou sua obsessão poética. Nascido na paisagem bucólica de Cuiabá (MT), sonhava em ser geólogo ao desbravar a cidade virgem de pavimento, até que, em 1974, aos 14 anos, se deparou com uma mudança à um solo horizontal

06 | Pequiá


que crescia em retas infinitas sob sua vista. Era Brasília limpa, sinuosa e querida por muitos que ali chegavam. Contudo, o menino Nick decidiu escancarar a cidade sem melindres. A poesia marginal pulsava no Brasil na década de 1970. “Tudo aqui em Brasília era mimeografado”, conta Behr. A geração mimeógrafo estava vendendo suas poesias nas portas de cinema, show, teatro, colégios, zerando a distância entre poetas e o público, descentralizando e popularizando o movimento literário. “Os autores criaram uma ligação orgânica com o livro. Escrevia, imprimia e vendia”. Assim, Nicolas Behr lançou seu primeiro impresso, Iogurte com Farinha em 1977. Quando minha veia poética estourou ela virou pra mim e disse ah, deixa sangrar “As pessoas esperavam ‘meus primeiros versos’, e eram né”. Para o autor, título tem que ser algo inusitado, que não significa ser antipoetico. A verdade é que ele tinha uma amiga do Ceará que a mãe dela gostava muito da sofisticação do iogurte francês com a farinha brasileira, logo, isso identificou Brasília. Erguida pela farinhada da população do Brasil e sofisticada como o bom iogurte da longevidade francesa. Outros escritos foram publicados em sequência como Grande circular, Caroço de goiaba e Chá com porrada e Bagaço, todos durante a ditadura militar. Nicolas acredita que a palavra tem um poder de transformação. “Alguns poetas vão para poesia se curar, mas isso não é uma pré-condição. Dá

Dez 2019 | 07


pra ter uma vida tranquila e ser poeta”. Ao fundo da ligação, risos abafados. O autor completa enfatizando a coragem que a poesia carrega em seu mais alto grau de expressão, desvairada, emocionada e imprevisível. “A palavra tem seu lugar, não adianta controlá-la, deixa cutucar, instigar, provocar”. Com 20 anos de idade, o menino de quarenta e cinco quilos foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). “Eles pensavam que lá em casa tinha uma central gráfica clandestina de produção de panfleto, foram lá e não encontraram. Não tinha, eu imprimia nas escolas pela noite, nos supletivos. Inventaram então de me prender por porte de material pornográfico”. Acontece que mesmo calando as mãos do poeta, seus escritos já eram lidos, relidos e falados em cada quadra de Brasília. Hoje, aos 62 anos, Nicolas Behr chegou onde poucos escritores conseguiram em vida, pois continua sendo compartilhado, espalhado, postado e viralizado. “O que se conquista, não se perde, muitas conquistas se solidificam”. Com muito humor, Behr oxigenou a poesia do ranço acadêmico e da seriedade enraizada no imaginário popular e inconsciente coletivo. A musa Brasília “Todo poeta tem uma obsessão. A morte, a mulher amada, a pátria e tal, a saudade”. Nicolas escolheu para perturbar seus pensamentos a jovem dos escândalos políticos. Por muito, tentou tirá-la fora desse lugar de poder, pois acredita que Brasília é solo carente e necessita ser amada. Desejos carnais animam a cidade, e o poeta lhe

08 | Pequiá


Foto: Acervo Pessoal Nicolas Behr nasceu em Cuiabรก e, aos 14 anos mudou para Brasilia, onde descobriu a poesia marginal


confere uma cadência erótica pelas super quadras residenciais do Plano Piloto. naquela noite suzana estava mais W3 do que nunca toda eixosa cheia de L2 suzana, vai ser superquadra assim lá na minha cama O cotidiano é o prato cheio do autor. Degusta pelos ouvidos e olhares atentos os movimentos do lugar. O impulso para sua escrita chegou-lhe pelo estranhamento, na tentativa de entender e sobreviver numa superquadra. Behr literalmente

A poesia marginal pulsava no Brasil na década de 1970: “Tudo aqui em Brasília era mimeografado”


saiu do mato e caiu dentro de uma maquete; se tornou o mestre no uso dos jogos de palavras para subverter taticamente as estratégias oficiais de Brasília. “É um amor difícil, irascível. No dia que eu fizer as pazes com Brasília minha poesia acaba. Ela me traumatiza para o bem”. subo aos céus pelas escadas rolantes da rodoviária de brasília o corpo de cristo aqui não é pão, é pastel de carne o sangue de cristo aqui não é vinho, é caldo de cana o padroeiro desta cidade é dom bosco ou padim ciço?

Foto: Divulgação

Behr ocupa siglas, nomes de rua e palavras específicas de Brasília, despindo-os de sua lógica técnica e os transformando em algo pessoal, cômico ou carnal. No poema “SQS OU SOS? Eis a questão”, presente em Iogurte com Farinha, ele reescreve o início do famoso solilóquio de Hamlet “Ser ou não ser, eis a questão”, com a sigla da


zona geográfica Superquadra Sul e o pedido de socorro internacional SOS. Assim como a famosa questão de Oswald de Andrade, “Tupi or not Tupi?”, transforma o verso de Shakespeare para ressaltar o lugar não como a sede do governo, mas como a

“Eu mexo com comércio de plantas. Compro, vendo, pago, recebo, cobro, é o mundo real”

capital literária, lúdica, confusa e flexível por onde ele cresce, até hoje. Não sendo o primeiro a escrever sobre Brasília, leu muito dos outros que a descreveram e assim aprendeu a penetrá-la de forma a descobrir sua ousadia utópica. Quando se dispõe a falar

12 | Pequiá


Foto: Divulgação

sobre suas influências, alega que na verdade são confluências e que estas vão desde Drummond até os seus contemporâneos, como o Chacal, Chico Alvim e a Ana Cristina Cesar. Fora do campo literário, a era dos gibis e dos videoclipes

também o trouxe contribuições, bem como a explosão de Brasília como capital do rock em 1980, que acendeu ainda mais seu inconformismo permanente. “Alguém escreveu: ‘Ou o poema é simples. Ou é impossível’. Não fui eu, mas é perfeito”. A

Dez 2019 | 13


Entre mudas e sentimentos Em 1982 Behr fundou junto de dois amigos a primeira ONG ambientalista da capital, Movimento Ecológico de Brasília (Move). Desde então, o menino escondido por trás dos sessentão, leva verde para sua musa Brasília. “Eu mexo com comércio. Compro, vendo, pago, recebo, cobro, é o mundo real”. Hoje, tem a ecologia como um modo

14 | Pequiá

Foto: Divulgação

informalidade da palavra é uma marca da geração rock’n’roll, essa intimidade possibilita tornar visível tudo aquilo que só pode ser observado pelas brechas. Behr não deseja ser parado na rua como uma celebridade, o escritor quer lançar livros sem pedestal, manter-se ligado pelo fio terra e nunca perder a percepção real da vida. “Não quero entrar para a Academia Brasileira de Letras, ou brasiliense, a gente tem uma visão muito crítica”. Fugir do rótulo de “poeta de Brasília” é como tirar o nome coca cola da garrafa, mas a grande camada fértil para germinar suas escritas está na infância. Para Behr “A infância é um sítio arqueológico, inesgotável... É só escavar”. Atualmente possui três livros sobre e está escrevendo mais um, versificando sua infância em Mato Grosso. O autor tem amparo nas palavras do Rainer Maria Rilke, quando diz que os poetas são exilados e que sua única pátria é o lugar que sua criança interior vive.


de vida, dedica-se a produção e a venda de mudas por meio da Pau-Brasília, a qual é proprietário. “Eu sou uma pessoa meio ansiosa, e as plantas não são ansiosas, elas tem o próprio tempo delas, elas me educam”. Sentir o tempo da coisas é primordial para o escritor e sua sensibilidade se debruça até o enxergar o lado da árvore, das condições ideais para cada uma delas, compreendendo-as como seres vivos de fato e não como máquinas de produzir sombras. Behr diz que vivemos o “mito da abundância”, onde acreditamos que tudo é infinito. Para ele a crise ecológica só vai tomar notoriedade quando faltar água nas torneiras das casas de todos, pois mesmo o movimento ecológico já tendo sido absorvido pela sociedade e ser um ato de militância a postura do correto ecologista, não se reverte de fato as ações cotidianas. Com toda consciência o poeta afirma que se hoje o desespero é ganhar dinheiro, no futuro vai ser armazenar água e plantar árvores. As mudanças climáticas vão impor isso. No livro Iniciação à

Foto: Celso Júnior

O poeta próximo à Catedral de Brasília: a cidade como musa inspiradora

Dez 2019 | 15


Dendolatria, Nicolas traz conceitos como o de dendrofóbico, dendrométrico, dendroclasta, dendrocida, dendrologista e o dendrólatra. A explicação do viveirista é que em grego “Dendro” quer dizer árvore, logo a dendrolatria é a adoração ou reverência pelas árvores, que não nos merecem. a árvore cresce sobre o chão da página a palavra se fixa na terra árvore e palavra: ambas enraizadas em mim Plantando mudas e poesias, Nicolas vai colhendo suas conquistas e crer que as plantas harmonizaram e humanizaram Brasília, dando vida ao concreto. No Cariri Como um poeta afim ao choque de Brasil, sair do habitat naturalizado é sempre ampliar os horizontes poéticos. “Brasília é um pouco de ilha da fantasia”, a cidade planejada e setorizada não adentra ao Brasil real e profundo. O Cariri cearense é conhecido por suas manifestações populares, estas provocam uma enorme fruição de vivências relacionando valores, costumes e interesses, arraigando uma realidade crua e pulsante. “Eu fiquei espantado com a força da cultura popular, do

16 | Pequiá


padre Cícero, tudo meio que novidade, nunca fui pra caatinga, quase.”. Behr gosta do encontro e também de ser encontrado, em todos os seus livros está lá o seu contato pronto para fazer uma conexão. Veio às terras caririenses participar da primeira edição do Festival Palavra - O Movimento das Letras que Gritam por Liberdade, realizado pela unidade do Sesc Crato. Autores como o Celso Borges, Nina Rizzi e Tom Farias debateram e refletiram sobre as relações do universo literário com a memória, território, feminismo e poesia popular. “A escrita é solidária, então vir aqui é correr para o abraço”. O festival que teve sua programação noturna em praça pública, para Behr foi como dessacralizar a imagem do poeta e da própria poesia, aproximou o público, que são verdadeiros “núcleos pensantes de agitadores”. “Pena que foram apenas dois dias, quero voltar”. Novas pessoas, plantas, costumes e hábitos. O poeta mergulhou nos ônibus, praças e museus de Crato e Juazeiro do Norte com a intensidade de uma transa adolescente. “É melhor assim do que ficar um mês e não acontecer nada... Me chamem de novo que eu vou”.

Dez 2019 | 17


Fotos: Divulgação/SESC


As unidades do SESC espalhadas por todo país promovem a democratização do acesso à cultura: cinema, música e literatura, entrelaçando entretenimento e educação. No campo literário, o SESC proporciona debates e reflexões. Durante o ano, eventos são promovidos pelo SESC ou em parcerias com outras instituições. Nesta edição, a Pequiá conversou com organizadores desses eventos como a FLIP, em Paraty, a Jornada Literária, em Alagoas e a Flipelô, em Salvador.


Os quitutes baianos numa festa internacional de literatura Da parceria entre a Casa de Jorge Amado e o Sesc Salvador surgiu a Festa Literária Internacional do Pelourinho – FLIPELÔ. O evento, que já contabiliza três edições, homenageia nomes da cultura baiana e abre espaços para novos escritores. Com acesso gratuito, a Festa Literária reúne debates, saraus, exposições e uma pitada de sabor da gastronomia local. A bibliotecária do Sesc e curadora da Festa Literária, Maria Conceição Silva, fala nesta entrevista sobre o evento, os homenageados e a ampliação do cenário literário baiano. Parceria

A Fundação Casa de Jorge Amado e Sesc são instituições que sempre trabalharam promovendo Literatura. Nessa caminhada, em 2014 a Fundação convidou o Sesc a produzir a Festa, contudo, naquela época não foi possível. Em 2017, as instituições voltaram a dialogar sobre o evento, o que possibilitou a promoção da 1ª edição da Festa Literária Internacional do Pelourinho – Flipelô,

20 | Pequiá


com a realização da Fundação e correalização do Sesc. A Flipelô possui diversos formatos debates, narração de histórias, saraus, exposições, intervenções literárias urbanas, apresentações literomusicais, bate-papos, intervenções culturais, ambiente para leitura: estande da Rede Sesc de Bibliotecas e bibliotecas móveis da cidade, a exemplo do BiblioSesc | Sesc Bahia, além de ambientação artística. Criação literária

Nós acreditamos que a promoção de ações literárias de forma sistemática e pontual, além da atuação de bibliotecas, a exemplo da Rede Sesc de Bibliotecas, disponibilizando gratuitamente o acesso a publicações são elementos que fomentam a leitura e a criação literária. Projetos e serviços movimentam este cenário. O evento tem se mostrado como um ponto alto dessa movimentação que pretende abrir cada vez mais espaço para escritores e artistas baianos, dado o crescimento da atuação destes atores sociais nas mais diversas regiões da cidade. Saraus, slams, rodas de conversas, lançamentos, debates são ações cada vez mais frequentadas e não somente por quem quer apreciar, mas por pessoas que querem produzir e em paralelo aos autores mais experientes. Homenageados

No ano de 2017, a primeira edição homenageou Jorge Amado, uma justa menção para quem sempre expressou, preferiu e mostrou a Bahia ao mundo. Já em 2018, na segunda edição, a curadoria trouxe

Dez 2019 | 21


à pauta um assunto predileto de Jorge Amado, a amizade. Segundo, ele “a amizade é o sal da vida”. Nesse caso, nada melhor que ter João Ubaldo Ribeiro, amigo de Jorge inspirando tantas outras conversações. Em 2019, a vida e a poesia de Castro Alves tomaram as instituições do Centro histórico que participaram da Flipelô, convidando leitores baianos que ingressaram na proposta, lotando aos espaços que ofereceram programação, a exemplo do Teatro Sesc-Senac Pelourinho. A seleção do autor homenageado não ficou limitada a autores baianos, embora todas as edições tenham sido marcadas por eles. As homenagens dão a devida honra, porém não aprisionam a programação a apresentar apenas questões do homenageado. Por exemplo, na terceira edição apesar de Castro Alves ter sido o autor selecionado, houve muita prosa. Essa linha de trabalho visa surpreender e atender o público, cujo perfil é bastante diverso no que tange aos interesses literários. É marcante na Flipelô a presença de alunos tanto conduzidos por escolas, quanto individualmente, leitores jovens, infantis, iniciantes, experientes, professores e pais. Sabores baianos

A comida baiana sempre teve lugar nas obras de Jorge Amado. Quem não se deparou com um dos personagens comendo um acarajé, saboreando o famoso vatapá, uma moqueca, um bolo de estudante ou aquele mingau de tapioca? Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois Maridos e Tieta do Agreste são obras nas quais os leitores podem conhecer bem esse contexto. Não é à toa que a gastronomia baiana também foi alvo de

22 | Pequiá


estudos de Paloma Jorge Amado, filha de Jorge, que mapeou A Fundação Casa de receitas típicas nas Jorge Amado e Sesc são instituições que obras do pai, o que sempre trabalharam resultou no livro de promovendo a literatura receitas típicas “A Comida Baiana De Jorge Amado ou O Livro de Cozinha de Pedro Archanjo com as Merendas de Dona Flor”. Como o evento ocorre no Centro Histórico, onde receitas típicas efervescem diariamente tanto para baianos quanto para turistas, foi oportuno incluílas. A cada ano a rota se amplia. Comerciantes do ramo alimentício se integram à programação e criam cardápios relacionados ao contexto literário, o que tanto enriquece a conversação em torno da literatura quanto retroalimenta a economia da região no período da Feira. Além disso, oficinas e ações diversas são inclusas na programação, a exemplo das aulas show de gastronomia gratuita e da rota Gastronômica Amados Sabores promovidas pelo Senac através do seu Restaurante Escola Pelourinho. Avaliação

A presença expressiva das pessoas tem sido um indicador importante para avaliarmos positivamente a Flipelô. Com um amplo histórico de promoção de atividades literárias há décadas, o Sesc Bahia já mapeava a avidez do público baiano por eventos dessa monta que congregasse escritores, leitores, artistas, professores, editores, bibliotecários,

Dez 2019 | 23


etc. Ao participar como co-realizador, o Sesc vem evidenciando, desde a primeira edição, que a Festa é bem recebida pelo público que lota os espaços, a exemplo do que aconteceu nas três edições no Teatro Sesc-Senac Pelourinho, onde os interessados por literatura comparecem nos três turnos, maciçamente, além de encherem ruas e praças. Essa resposta foi tanto agradável quanto desafiadora para os curadores, gerando alegria e ainda mais empenho para o planejamento e execução das edições seguintes. Programação

Tem sido uma preocupação dos curadores ofertar ações que gerem diálogos entre público e autores nacionais e internacionais. Igualmente ocorre quanto à pretensão de intensificar as discussões para que sejam ampliados ainda mais, espaços para autores baianos e de outras regiões do país nas próximas edições. No trabalho de curadoria há um cuidado para que a programação seja equilibrada em todos os sentidos, buscando trazer escritores de todas as regiões. Contudo, especificidades como essas são tratadas a cada edição, a depender do homenageado e de tudo que decorre de sua biobibliográfica. Literatura e turismo

A Flipelô vem movimentando o turismo, vez que o local de realização já é uma região que recepciona diariamente turistas de todo o Brasil. A Flipelô vem compondo a agenda nacional de festas literárias.

24 | Pequiá


Pluralidade temática na parceria com a Festa Literária de Paraty O Sesc tem uma parceria desde 2010 com a Festa Literária de Paraty, no Rio de Janeiro, um evento de dimensão internacional. O analista de literatura do Sesc de Paraty, Diogo Brunner, afirma que a parceria é das mais instigantes com uma curadoria coletiva envolvendo unidades de todo o País. O objetivo é garantir uma maior pluralidade temática e representatividade regional. “É natural que o Sesc reflita não apenas a literatura, mas as artes visuais, cênicas, audiovisual e música”. Paulista, Diogo Brunner mora em Paraty há cinco anos. Graduado em Ciências Sociais e mestre em Literatura e Vida Social, ambos pela Unesp, é autor do romance “Da praça da igreja acho que nem Deus ver o mar”, seu primeiro trabalho de ficção. Ele é corealizador do documentário “Narrativas Caiçaras”. Destaca nesta entrevista a importância da parceria Sesc-Paraty, um “momento onde todos os olhos, não apenas do mundo literário, mas do mundo da

Dez 2019 | 25


cultura, estão voltados para o território paratiense”. Confira trechos da entrevista. Sesc e Flip

O Sesc, durante a Flip, é uma das chamadas “casas parceiras” e que constituem a programação paralela àquela realizada pela Casa Azul que é a associação responsável pela programação oficial da Festa Literária de Paraty. Além disso, o Sesc é responsável por chancelar uma das mesas da programação oficial. Dentro disso, sempre privilegiamos mesas onde se tenha a presença da literatura brasileira contemporânea. Da parte do Sesc, a organização do evento se dá inicialmente com uma curadoria coletiva envolvendo analistas de diferentes regionais e pólos, e segue com uma produção intensa, mas que não se difere tanto de outros momentos de programação vigorosa do Centro Cultural Sesc Paraty. Curadoria

A programação do Sesc na Flip é montada a partir de uma curadoria feita com a presença de vários regionais e pólos do Sesc, a fim de garantir uma maior pluralidade temática, além de uma representatividade regional. Mas, de certa forma, é natural que essa programação reflita o que já é feito no Sesc no Brasil todo, ao longo do ano, não apenas na literatura, como nas artes visuais, artes cênicas, audiovisual e música. Especificamente na área da literatura, o Sesc busca dar seu enfoque na literatura brasileira contemporânea, o que também difere um pouco nossa programação se comparada


à programação oficial. A programação do Sesc na Flip é um momento de muita visibilidade, onde todos os visitantes da cidade podem ter acesso ao que é feito não apenas no Sesc Paraty, mas no Sesc de forma geral. Nesse sentido, o impacto gerado é bastante significativo. Nos últimos anos, o Sesc contou com quatro espaços durante a Flip: Unidade Santa Rita, Unidade Caborê, Edições Sesc e Areal do Pontal, além da programação que ocupa os espaços públicos da cidade, como a rodoviária e as ruas do centro histórico. Balanço e perspectiva

As perspectivas são as de manter a qualidade da programação, mas sobretudo manter a diversidade de temas e o caráter democrático de sua curadoria. Os formatos se alteraram muito ao longo dos anos, mas a primeira participação do Sesc na Flip aconteceu em 2010. Apesar de “casa parceira”, a programação Sesc na Flip tem total independência na sua construção e execução. Nesse sentido, o balanço da participação do Sesc durante a Flip é extremamente positivo, visto que é o momento onde todos os olhos, não apenas do mundo literário, mas


A programação do Sesc na Flip é montada a partir de uma curadoria feita com a presença de vários regionais e pólos do Sesc, a fim de garantir uma maior pluralidade temática

do mundo da cultura, estão voltados para o território paratiense, e toda potência dessa programação pode ser amplamente experimentada. Escritores e leitores

É extremamente necessário se voltar para os novos meios de fruir a literatura. Na minha perspectiva como leitor, considero de suma importância a valorização de qualquer plataforma que possibilite o aumento dos níveis qualitativos do panorama da leitura no Brasil. Os dados da última pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” podem ser interpretados a partir de inúmeras variáveis, mas deixam muito claro como a cultura da internet influencia o comportamento dos leitores. Ou seja, não ignorar essas plataformas é fundamental para se pensar novas estratégias de formação de leitores. Ainda falando da Flip, um dos nossos espaços é a casa da Edições Sesc, que tem entre suas realizações o trabalho muito cuidadoso com os livros digitais, os conhecidos e-books. Sobre o Brasil ser um país de leitores, imagino que essa questão possa ser iluminada sob diferentes perspectivas. Creio que é um país com imenso potencial para tal, mas o caminho ainda é bastante longo. O projeto nacional do Sesc de circulação de escritores, o Arte da Palavra, vem trabalhando arduamente no território brasileiro para cumprir essa função, bem como os diversos Clubes de Leitores, a formação de Mediadores de Leitura e outros projetos existentes na rede. 28 | Pequiá


Jornada do Sesc em Alagoas desperta a leitura com senso crítico A Jornada Literária do Sesc em Alagoas é um dos eventos literários mais importantes no Nordeste. Reúne várias atividades com o objetivo de aproximar o leitor do livro através de apresentações litero-musicais, performances literárias, rodas de leitura, narração de histórias, debates, oficinas e lançamento de livros. Segundo Guilherme de Miranda Ramos, analista de Literatura do Sesc, a Jornada experimenta a literatura como arte, “longe de rótulos do dia a dia com uma intensa troca de conhecimentos entre autores, artistas e públicos”. Guilherme é analista de literatura do Sesc há 21 anos, especialista em Gestão de Organizações Sociais, arquiteto e artista intermídia (ator, diretor teatral, dramaturgo, compositor e músico prático). Guilherme falou para Pequiá sobre a Jornada Literária Sesc de Alagoas. Finalidade

Nosso principal objetivo é desenvolver a estética e o senso crítico da comunidade, por meio de propostas direcionadas à relação “leitor-livro”; aproximar o

Dez 2019 | 29


público da literatura através de um ambiente lúdico e afetuoso; promover o intercâmbio entre escritores, ilustradores, narradores de histórias, mediadores de leitura, educadores e estudantes. Apesar de haver escritores de outros Estados durante todos os dias de programação, e eles serem importantes para que haja um intercâmbio com nossos autores, seria um desserviço não valorizar os alagoanos. Por isso convidamos nossos artistas literários para darem suas contribuições. Assim, movimentamos, atualizamos e incentivamos a classe artística do Estado. Da pré-jornada à jornada literária

O primeiro, da pré-jornada, dura duas semanas e realiza uma programação mais dinâmica em escolas da rede pública e ONGs de Maceió. Em seguida, a jornada propriamente dita, que dura uma semana, com ações de caráter mais reflexivo, no Sesc Centro – Unidade de Cultura. No turnos matutinos e vespertinos levamos o Bibliosesc e uma trupe de artistas alagoanos para escolas da Rede Pública Municipal de Ensino, para ONGs atendidas pelo Programa Mesa Brasil Sesc e para a Unidade de Educação Sesc Jaraguá – duas semanas antes da jornada propriamente dita – como forma de sensibilização de alunos e professores que, posteriormente, poderão participar da Jornada Sesc de Literatura no Sesc Centro – Unidade de Cultura. A Jornada Sesc de Literatura também se alia à Bienal Internacional do Livro de Alagoas. Ou seja, nos anos de Bienal nos mudamos para o local do projeto, montamos um “Espaço Sesc” e realizamos uma programação especial de nove dias com o que há de melhor na literatura:

30 | Pequiá


oficinas pela manhã; palestras, mesas redondas e debates à tarde e saraus, apresentações literomusicais, narrações de histórias e performances noturnas. Acredito que não deve haver concorrência na Cultura, mas parcerias. Todos saem ganhando, principalmente o público leitor/escritor. Venda de livros

A venda ocorre de duas formas: uma delas, em parceria com a Imprensa Oficial Graciliano Ramos, são vendidos (com desconto, num estande da editora) os livros de autores alagoanos que fazem parte de seu catálogo; outra, específica para os autores independentes, que publicam de forma alternativa. Cedemos, Ações culturais têm caráter gratuitamente, um questionador, geram espaço para que senso crítico e deslocam façam o lançamento, o cidadão de seu eixo, de sua zona de conforto relançamento e uma roda de conversa a respeito dos seus processos criativos. Achamos importante essa evidência, pois esses autores já gastaram muito com a publicação. O valor do que for vendido será destinado a eles. É um dos meios que o Sesc/ AL encontrou para impulsioná-los. Temas

O Sesc desenvolveu, no ano de 2008, a primeira edição da Jornada Sesc de Literatura. Naquele ano, o tema escolhido foi a obra “Vidas Secas”, do escritor alagoano Graciliano Ramos, com

Dez 2019 | 31


uma programação baseada em apresentações, discussões e atividades lúdicas nas unidades do Sesc em Alagoas. Em 2010, o tema da segunda edição foi “10 anos da Trupe Gogó da Ema de Contadores de Histórias”. Em 2012, terceira edição, foi a vez de “A Oralidade da Cultura Alagoana”. E, em 2014, “Criadores e Criações em Prosa e Poesia para a quarta edição. A partir de 2016, as jornadas deixaram de receber temas específicos e se focaram nos processos de criação e nas vozes dos escritores brasileiros, ampliando o intercâmbio entre o público leitor e os artistas alagoanos e de outros estados. Parcerias

Ninguém deveria andar sozinho, nesse escuro particular. Sem o subsídio financeiro do Departamento Nacional do Sesc, seria impossível para o Sesc/AL realizar a Jornada. Há, ainda, a parceria da Imprensa Oficial Graciliano Ramos – que realiza, anualmente, os mais disputados editais literários do Estado, permitindo-nos convidar seus autores-vencedores para compor a programação da Jornada Sesc de Literatura. Além disso, a Imprensa nos cede livros de seu acervo para serem doados às escolas e ONGs participantes da pré-Jornada. É uma via de mão dupla, pois eles não têm corpo técnico para ultrapassar a linha editorial e o Sesc Alagoas não edita livros. Sendo assim, cada um faz sua parte e, juntos, somos mais fortes. Reflexão

Ações culturais têm caráter questionador, geram senso crítico e deslocam o cidadão de seu eixo, de sua zona de conforto. A transformação, por

32 | Pequiá


menor que seja, é inevitável. E as pequenas transformações, acumulativas, persistentes, um dia terão seu resultado percebido. Pensando nisso, realizamos apresentações literomusicais, performances literárias, rodas de leitura, narrações de histórias, saraus, mesas redondas, palestras, debates, oficinas, lançamento de livros etc. Entre tantas opções, jovens, adultos e idosos puderam experimentar a literatura como arte, longe dos “rótulos” do dia-a-dia. Autores, artistas e público trocaram ideias, esclareceram dúvidas e vivenciaram momentos singulares. A literatura faz-se carne e caminha entre nós, durante os dias de Jornada. E o público faz-se literatura, partilhando sonhos e utopias como realidades possíveis.


Vandérlea Cardoso Poemas e imagens, a existência como horizonte

A poeta sergipana Vandérlea Cardoso inicia nesta edição da Pequiá a seção Portfólio. Formada em artes visuais pela Universidade Federal de Sergipe, ela nunca pensou em ser escritora nem poeta, apesar de exercitar sua pena durante a graduação. “Comecei a escrever porque queria parar de chorar efetivamente”, diz. Afirma ainda o flerte com a

34 | Pequiá


palavra é um “um bom lugar para se curar desse mundo corrido, no qual as paixões correm como as folhas no terreiro e o amor é um poço artesiano, difícil de cavar, mas extremamente precioso”. Atualmente, Vanderléa atua como curadora e arteeducadora em Aracaju. Qual a relação entre imagem e texto na sua escrita? Como as redes sociais influenciam no seu processo criativo?

Sou muito visual e sonora. É muito intensa a relação com a palavra e as coisas ao redor ou que representam as palavras, às vezes, é afago e outras é baque. Penso nas linguagens como afinidade para o processo criativo. Sempre gostei de fotografia, de canções e videoarte, só depois com o feedblack de amigos é que percebi a força da escrita e como ela reverbera no outro. Gosto desse esquema de tocar o outro, de permitir o flerte com a Literatura. Mas, escrever é uma necessidade para mim. É o ponto de equilíbrio mesmo quando não parece (risos). Minhas fotografias são autorais como as poesias, faço quase tudo no smartphone, normalmente, as imagens são coloridas e automaticamente coloco o filtro P&B. O olho já bate, é mais instintivo que a poesia. Digo que o Instagram veio pra somar meu ócio criativo, mas escrevo muito mais do que fotógrafo e nem sempre a imagem elucida a poesia, tento. Quais as suas influências literárias e visuais?

Faço parte do grupo dos poetas que começaram a escrever antes de serem leitores, a literatura veio de forma tardia, mas como uma consequência do

Dez 2019 | 35


processo evolutivo. Assim como, nas artes visuais, visitar exposições, conhecer novos artistas é ampliar o repertório, a literatura veio para se tornar o repertório que comecei a construir recentemente. Minha primeira influência é a obra de Paulo Bruscky. A Hilda Hislt só com o tempo que comecei a ler, por indicação mesmo! Tenho uma série de poema eróticos e isso convergiu para o encontro da leitura e adimiração. Mas, Hilda é espelêndida como o sol! Ainda estou longe (risos). Ah, e Manoel de Barros é incrível, consigo ver o mundo além da minha casa, das minhas coisas. É uma simplicidade profunda que me toca. Além das redes sociais, você tem alguma publicação indepente ou participação coletiva com outros escritores? Como você se sente ao participar desta edição da Pequiá?

Já participei de duas exposições com poemas, mas a Revista Pequiá é minha primeira publicação de poema em revista e estou muito feliz. A parte mais difícil é ser curadora da sua própria produção, não gosto de reler meus poemas. Estou criando um livrinho e já me deixa mexida em vários sentidos, está sendo desafiador. Agradeço muito a Pequiá que tem uma concepção estética bacana e percebese a seriedade com a palavra pela equipe editorial. Parabéns pelo trabalho de intercâmbio.

36 | Pequiá


Meu bem, beba água! Os dias passam Na ânsia do perdão Inteiro, frio e vizinho As coisas caem Dentro do esquecimento De como foi te amar Os dias passam E essa semana Derrubei 2x O resquício do teu cheiro

Dez 2019 | 37


Na borda dos lรกbios No meio das pernas A palavra estremece O gosto da saliva


Placar bom a gente lembra O vento das pálpebras da tristeza Reviraram as traves E os tanques de guerra Foi bom te amar Mas a partida acabou E a imagem violenta Dos destroços das partidas Sempre enferruja no sereno Só não enferruja a saudade Foi bom te amar E é bom lembrar disso Dos gols, dos gozos Da vida enfiada na camisa Que não nos serve mais Dos shorts que estouravam Balas quentes de paixão. Dez 2019 | 39


Quando a saudade inverna na metade do ano Queria te trazer aqui Quando estou embriagado Ou tomando café Em um dia chuvoso Mas, permaneço ilhado Próximo a praia de Atalaia Feito a lembrança Feito a trovoada Na busca de tocar Tuas palavras E deslizar no ínfimo Do fado desta vida Que sobrevive em ti Longe de mim Invernou e a saudade Permanece ilhada na própria Rotina das tuas entranhas Escreva-me Para ser meu guarda-chuva.


Estou atarefada de coisas Que descongelam a rotina Que cobram minha fidelidade Freneticamente doméstica

Mas parei pra ver teu entusiasmo Ouvir o brusco encontro Que a madrugada não superou A imagem do raio-x da minha fome Quebrando a vertigem em medo Abrindo fendas em todas As entranhas Agora, doentemente molhada Sinto o suor quente na beira Do estômago aflito, palpável Feito a trovoada da minha fome Com o mormaço da tua boca.

Dez 2019 | 41


Há dias em que as palavras Não comem E o calor do verão Vai derretendo As esperanças O silêncio da casa O silencia da rua E os cães ferozes Ecoam as altas temperaturas Há dias em que as palavras Suscitam nudez E o calor flutua a mente E todas as extremidades Dói saber ainda Que delirante é a brisa Quando encosta No meu suor de súplicas

42 | Pequiá


O registro dos dedos Na busca dos desejos Enche minha boca de água Como a chuva que escorre Nas ladeiras, no chuveiro E encontra teus pés Te faço ilha E no gesto mais bonito De coragem Tu andas dentro de mim Te mostro os sentidos Desnecessários de andar vestido De proteger os olhos do cisco E teus pés se desprendem Do medo de afogar as coisas Para mergulhar na minha nudez.


Praias impróprias para o banho Cheguei antes do sol Fritar a saudade E vi este homem Pescando na beira Da praia, dos nossos pés Lembrei das esculturas de Ron Mueck Dos filmes de Hirokazu Kore-eda Das boas conversas com Benjamin de Burca Das pouquíssimas fotos de meu pai na praia E dessa ficção da saudade em espaços Densamente cinematográficos Lembrei também das pessoas Que pescam na Rua da Frente

44 | Pequiá


O prazer de encontrar peixes Impróprios para o consumo Lembrei que estamos sufocados Pela lama dos impróprios Que densamente sufocam Águas, animais, insetos E nossos belos sentimentos Devastados como a Amazônia Sentada na areia de Cabo Branco Observei este homem E foi a primeira vez Que um senhor sereno Quase imóvel ao movimento Das ondas desatou o tempo.

Dez 2019 | 45


A gente vive por aquele forró T R A D I Ç Ã O SEM TRAIÇÃO Tradicionalmente Você é desejo A provocação que não termina Em meus lábios quentes Entre abertos como a porta de casa Tradicionalmente Você é cachaça Aquece meu sorriso Em teus braços Feito um furacarão em pausa Tradicionalmente Você é natureza-viva

46 | Pequiá


Quando o universo realinha Os reencontros físicos Tradicionalmente Você é canção alternativa Onde o moço feio Conquista o coração da donzela Sim, os heróis são inteiros E meu corpo banhado em soluções Entende os princípios da fidelidade Você é inteiro no amor E isso me desmancha em cada gole De cachaça das tuas garrafas Acho isso lindo! Incrível como o céu da boca Oscila entre gentil e sincero Tradicionalmente Você se desculpa por ser inteiro Diante da minha vastidão geológica Pois a terra também te estremeceu Tradicionalmente A gente é forró E isso basta Como o silêncio das plantas Que florescem a felicidade. Mas, eu quero gritar Te amo porra!!!

Dez 2019 | 47


KINAYA BLACK

#1 Te amo! (Mas não o suficiente pra casar com você) Me disseram Tantas vezes Mulher preta também quer casar Quer ter filhos Quer uma casa Quer viver um amor, Preto! Num restaurante burguês Servindo a branca Mesmo sendo freguês O abrir de pernas O entrar no mundo, Branco! Não me olhe assim Eu não me derreto Você é suspeito De um sofrimento Que não teve fim

uJ

alC

ir ec

nA

an


Vivemos num dilema nem pretos, nem brancos O balanço pra lá e pra cá O vai e vem dos corpos O deixa pra lá Nunca chega no deixa eu ficar. #4 Eu, primeira pessoa. Eu não estou aqui para preencher os teus vazios Isso não é amor Eu não estou aqui Para te completar Somos duas pessoas inteiras Com cicatrizes distintas Se reconstruindo com o tempo

Ilustração: Júlia Marques

Eu te amo, mas se eu sou a droga que tu usa pra suprir as outras, que você não conseguiu curar, eu prefiro partir.

Dez 2019 | 49


#5 O que eu chamava de amor sempre vinha depois de conflitos nunca aprendi o que era ser amada pelo que sou Estou indo embora e não é culpa sua. É que mudei meus conceitos de amar Agora Meu maior conflito interno é aprender a viver com alguém que me ama e não me reprime não tenho o costume desse amor.

Gisele Sousa (Kinaya Black): escritora, graduada em Letras Inglês pela UECE e pesquisa literatura negra feminina e afrofuturismo.

50 | Pequiá


Ilustração: Fernanda Oliveira


BRUNO PAULINO

cataclismas I estava distraído perdidamente distante te vi e a terra tremeu em quixeramobim II tua mão na minha e os fogos de santo antônio no céu: o amor é sempre uma explosão III te beijar foi como beber um açude inteiro num só gole

52 | Pequiá


cantiga de abraçar passarinho

Ilustração: Yanne Vieira

cantiga de abraçar passarinho orvalhei adoudamente o sol como um peixinho de aquário soletrei com resistência: liberdade! sonhei uma viagem pelo azul sobrevoando a limpidez, clara e casta, de um rio imorredouro; comi fruta madura num pomar de goiaba cantei franciscanamente louvores ao divino mistério da criação feito um menino malino abracei com pureza o amor nas asas de todos os passarinhos

Bruno Paulino é quixeramobinense e graduado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Autor de A Menina da Chuva (2016) e Lá nas Marinheiras (2013). Professor de língua portuguesa e narrador dos casos cotidianos, ele utiliza o sertão central como substância para suas histórias

Dez 2019 | 53


LUCIANA DANTAS

Negação Tão distante da verdade, tão sentida é a vontade, mas mesmo assim se nega! Nega abrir os olhos, enxergar Perceber a centelha e permitir a brasa flamejar Teme ouvir como as coisas são O quão efêmero é o vagão dessa jornada pela terra E segue em negação Não aceitando a amplidão de escutar o universo Deixar luzir o aparente desconexo Que pode mudar o tom de tantos caminhos Tão presente é a noção do que se sente Mas tão pretérita é a nascente do sentir Talvez por isso vague por aí Perdido, aflito, em constante conflito A se perder de si.


Encantamento Gira mundo no balanço da saia Que docemente arrebata outro verso canção.. o cordão conduz ao momento.. tecendo sem pressa o tempo que agora se anuncia.. Ela vem e com ela a poesia que minha alma reconhece Seu balanço delicado e forte entorpece O suor orvalhando em perfume a pele Acordes debulhando arrepios.. É mulher se despindo em rodopios Intenções desabrochando olhares O óbvio desnudando a tarde E a noite povoada de lua A Zabumba em meu peito pungindo crua Chega a chuva e eu me banho inteira junto a à tua pele nua. Luciana Dantas é romeira filha de João Pessoa/PB e juazeirense de coração. É advogada, escritora, poeta e letrista. Tem premiações na área de música, possuindo também publicações literárias.


C

urta o onto

Omelete no pôr do sol Taylane Cruz Nasci surda-muda. Silenciosa e solitária, sou um ovo. Meu coração é ocluso. Hoje decidi colocar tudo para fora. Estou farta dos gestos fantasmagóricos, da mímica ridícula para que me entendam. Vou por aqui tudo – ou pelo menos parte – do que está preso na minha garganta, tenho muita coisa presa na garganta, se bobear até cobras, girinos, corpos de outros humanos, pedras, e borboletas perigam sair daqui. Quando penso que ninguém jamais conhecerá o tom da minha voz, fico triste. Ou não, porque aqui dentro sei, minha voz é algo perto do etéreo. Sabe como é? Não? Pare para olhar uma nuvem e entenderá. Foi assim que ouvi minha voz, as faíscas de um arco-íris brotavam de uma nuvem enorme. Caiu chuva, fez sol, apareceu o arco-íris. Naquele dia me ouvi. Não sei como, nem sei ensinar, apenas ouvi. Tenho tanta coisa para dizer que a boca não alcança, e se tento minha fala nasce morta. Por exemplo, outro dia estava no açougue da esquina. Dona Rita, me vendo entrar, limpou as mãos no avental, pousou a faca suja de sangue no balcão, se apressou para me atender abrindo e fechando enorme a boca: “Veeeeeeiooooooo buscaaaaaar” ─ começou a usar as mãos para falar ─ “os biiiiiiiiiifes da sua” ─ apontou com o dedo para mim e depois fingiu embalar um bebê invisível nos

56 | Pequiá


Dez 2019 | 57

Ilustração: Benjamin Yousef


braços ─ “mãezinhaaaaaaaa, Carmela?” Assenti com a cabeça, ela logo entendeu, repetiu o meu gesto. Dona Rita não sabe como é ridículo me tratar assim? Estava cheia de ódio daquela mulher de cabelos ruivos espantados, o pescoço sujo de lodo. Queria dizer-lhe: “A senhora está muito arrepiada hoje, seu cabelo não viu o pente?” Mas recebi a sacola de bifes e fui embora com a frase trivial estraçalhando meu peito. No mesmo dia vi um cão roubando os biscoitos de uma velhinha na feira, ergui os braços, tentei tanger o bicho. A velhinha me olhou com desprezo, me tangeu para longe. Quis dizer “a senhora é muito burra, o safado do cachorro levou todos os seus biscoitos”. Deixei para lá, odiar a velhinha era perda de tempo, ela era horrorosa com aquelas verrugas no queixo e aquele pescoço muxibento. Voltei para casa, vi um filme na televisão, filme russo que adoro, meu pai do lado traduzindo com as mãos para mim. Eu quis dizer “pai, pelo amor de Deus, sai daqui, me deixa ver o filme sozinha, quem vê nuvem sabe ver filme sem precisar de tradução, me deixa ver o filme em paz”. Ele não saiu de perto até o filme acabar. Broxou meu Sokurovi. No dia seguinte, tia Genalva foi me buscar para ajudar na horta, acha que lidar com a terra me faz bem, tem dó de mim, ela diz assim sem nenhum pudor “tenhoooooo dó de vooooooocê, Carmelinha” ─ aponta o dedo pra mim e abre o bocão igual à dona Rita. Fui até a horta de tia Genalva e naquele dia plantamos alface, couve e uns nabos. Eu até gosto da horta, na terra estão as minhocas, as formigas, os insetos desconhecidos que se escondem. É um consolo saber que, ao contrário do mundo, conheço o barulho deles. Vantagens de ser muda. Alguma vantagem há de ter. As alfaces e as couves têm gestos que reconheço, se estão irritadas com o excesso de sol, murcham, se a

58 | Pequiá


Quando penso que ninguém jamais conhecerá o tom da minha voz, fico triste. Ou não, porque aqui dentro sei, minha voz é algo perto do etéreo

água as alegra, se vivificam verdinhas, brilhantes como esmeraldas. São assim feito a gente cheias de humores. O que me irrita é tia Genalva do meu lado o tempo todo, fica olhando para o nada, pensativa, cara de madalena arrependida. Eu queria dizer a ela “vai pra sua dança, tia, deixa essa horta, põe um batom, volta para suas aulas”. Tia Genalva é triste, tem cara de planta seca, alface murcha. Ama dançar, mas tem um marido tão ridículo quanto o novo corte de cabelo dela, está proibida de fazer aulas. Não falei nada, grunhi apenas, ela ficou com mais dó de mim. Fui embora, tia Genalva ficou lá com as mãos cobertas de adubo esperando o marido voltar. O sol da tardinha se derramava nas platibandas das casas, uma cortina de luz alaranjada cobria as janelas, uma coisa mágica, dava para ver os ladrilhos brilharem. Atravessei a rua, subi a ladeira, uma beleza a cidade lá de cima. Fiquei uns minutos olhando o sol se apagar. Lá embaixo da ladeira antenas com pássaros pousados se despediam do sol, um terreno baldio do lado compunha o cenário, coisa de filme. Detrás de uma árvore, vi dois braços surgirem, depois mais dois. Fiquei confusa. Galhos não eram, tinha certeza. Desci, me esgueirei curiosa. Devia ser


mais um casal, dava muito namoro por ali. Fiquei animada com a ideia de um romance secreto, corpos se esfregando debaixo do pôr do sol. Quer coisa mais romântica para se ver? Eu, que nunca me apaixonei, senti até uma coceirinha na barriga. Aconcheguei-me detrás de uns entulhos de onde podia ver nitidamente a cena. Mas algo estava estranho, a moça ─ tratava-se de uma moça morena e um rapaz alto ─ se debatia com desespero. Eu não conseguia ver a sensualidade nos movimentos, a umidade poética no encontro das peles. Era tudo rápido, violento, como se o rapaz ao invés de amar aquela jovem a odiasse, atirando-a contra a árvore e inserindo-lhe seu sexo rijo sem nenhuma paixão. Mal podia acreditar no que via. Houve tapas, puxões de cabelo, a mão dele no pescoço dela, a penugem negra surgindo da bermuda jeans, a boca dele querendo devorar o rosto dela, de onde brotavam lágrimas grossas. Ele virou o seu corpo, o rosto ─ que era bonito ─ foi esmagado contra o tronco da árvore ─ testemunha triste e impotente. A boca da jovem se abriu enorme. Meu coração ouviu o grito. Gelei. O sol se punha na minha cabeça. Esqueci o brilho dos ladrilhos das casas. Esqueci os pássaros se despedindo do dia. Esqueci a minha própria voz. Não havia uma nuvem no céu. Tive um enjoo, uma tontura. O rapaz estocava nela o órgão prestes a arrefecer. Quis gritar, dizer que estava vendo tudo, mas corri. Corri até em casa, atravessei a sala, fui direto para a cozinha. Meu pai fritava um ovo, os gestos cheios de candura, a colher na sua mão e os olhos sem sofrimento revelavam: “Vou fazer omelete pra gente comer com pão”. Minha boca, meus gestos, tudo era um caos. Eu era um ovo estrelado numa frigideira quente.

60 | Pequiá


Ilustração: Intervenção sobre arte de Benjamin Yousef

Taylane Cruz é formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe, escritora e assessora de comunicação da Mostra de Cinema Negro de Sergipe - EGBÉ e do Festival Sergipe de Audiovisual - Sercine. Em 2015 lançou seu primeiro livro de contos “Aula de Dança e Outros Contos”(Infographics). Já colaborou com a antologia Senhoras Obscenas (Editora Benfazeja, SP) e Golpe: uma antologia-manifesto (Editora Nosotroseditorial, SP). Participou de oficinas de criação literária com os escritores Luiz Rufatto, Marcelino Freire e Gonçalo Tavares. Ministrou a oficina de Microcontos durante a semana literária do Sesc em 2017. Hoje, além de escrever, atua como palestrante e ministra oficinas de escrita criativa. Seu segundo livro de contos, “A pele das coisas” (Editora Multifoco, RJ) foi lançado em 2018.

Dez 2019 | 61


C

Foto: CC0 public domain

urta a rônica

O que fazer da literatura? Rafael Rodrigues Dentro da floresta, livro do jornalista norteamericano David Remnick, traz perfis de personalidades como os escritores Amós Oz, Don DeLillo e Philip Roth; políticos como Al Gore, Benjamin Netanyahu e Vladimir Putin; e esportistas como Mike Tyson e Larry Holmes. Publicado em 2006 tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil (graças a uma força-tarefa composta por três tradutores), o livro traz textos escritos entre 1994 e janeiro de 2006. O primeiro perfil que li foi o de Philip Roth, um dos autores que mais admiro, publicado originalmente em 2000 na revista New Yorker (da qual Remnick é editor desde 1998). Nele, o jornalista consegue

62 | Pequiá


declarações pertinentes e exclusivas de Roth, como uma citação que ele faz de Virginia Woolf ou comentários sobre polêmicas envolvendo alguns de seus livros. Uma delas, incômoda e precisa naquela época, é ainda mais pertinente agora: “‘A cada ano, morrem setenta leitores e apenas dois são substituídos. Eis um modo bem fácil de visualizar a questão [do interesse pela leitura]”, Roth disse. Por ‘leitores’ ele entende pessoas que leem livros sérios regular e seriamente. A prova de que ‘a era literária chegou a seu final está por toda a parte’, ele afirmou. ‘A prova é a cultura, a prova é a sociedade, a prova é a tela, a passagem da tela do cinema para a tela da televisão e para a do computador. Não temos muito tempo, nem muito espaço, e poucos hábitos mentais determinam o modo como as pessoas usam seu tempo livre. A literatura exige um hábito mental que desapareceu. Exige silêncio, algum tipo de isolamento e a concentração continuada na presença de um fator enigmático. É difícil apreender um romance maduro, inteligente, adulto. É difícil saber o que fazer da literatura. Por isso digo que dizem coisas estúpidas sobre ela, pois, a não ser que as pessoas sejam suficientemente educadas, elas não sabem o que fazer dela’.” Muita coisa mudou, nesse ínterim — Roth, inclusive, parou de escrever, em 2012, vindo a falecer em 2018. Os e-books ganharam força, as livrarias entraram em crise em diversos países (inclusive no Brasil), uma geração cresceu ao mesmo tempo em que a internet se proliferou e as inovações tecnológicas deram um salto gigantesco. Hoje, além

Dez 2019 | 63


de lermos na tela do computador, podemos ler em e-readers, celulares e tablets. Mas se, por um lado, esses novos suportes teoricamente aumentam as possibilidades de leitura, por outro eles dão aos usuários uma infinita gama de opções de entretenimento, desde o acesso a sites de informação até os milhares de aplicativos e jogos que sequestram as nossas atenções, fazendo com que a leitura literária seja colocada em segundo plano. Repetindo Philip Roth, a leitura “exige um hábito mental que desapareceu. Exige silêncio, algum tipo de isolamento e a concentração continuada na presença de um fator enigmático”, e estamos perdendo isso. Não foi à toa que o escritor norteamericano Nicholas Carr escreveu um livro intitulado A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros (2011), do qual vale a pena destacar um trecho: “Quando menciono os meus problemas com leitura para amigos, muitos dizem que estão passando por aflições semelhantes. Quanto mais usam a web, mais têm que se esforçar para permanecerem focados em longos trechos de escrita. Alguns se preocupam se seus cérebros não estão se tornando cronicamente dispersos. Vários dos blogueiros que eu sigo também mencionaram o fenômeno. Scott Karp, que trabalhava em uma revista e que agora escreve um blog sobre mídias on-line, confessa que parou de ler livros completamente”. Eu já passei — e às vezes ainda passo — por esse problema de concentração em leituras. Felizmente, ele tem se tornado cada vez menor, mas há algum tempo me peguei, por exemplo, trocando mensagens instantâneas pelo celular enquanto lia um romance “maduro, inteligente, adulto” — a saber, Stoner, de John Williams (o qual recomendo

64 | Pequiá


fortemente). E se eu, que prezo muito pelo isolamento e concentração numa leitura, me peguei fazendo isso, imagino que muito mais pessoas façam algo semelhante. Mas voltemos à declaração de Roth, mais especificamente à passagem que considero fundamental e faz perguntar “o que fazer da literatura?”. O escritor turco Orhan Pamuk, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2006, diz que “Carregar um livro no bolso ou na mala, especialmente em tempos de tristeza, é estar de posse de outro mundo, um mundo que pode trazer felicidade. (...) Entre os quinze e os 26 anos, ler era parte fundamental do meu esforço para me tornar alguém, elevar minha consciência, dar forma à minha alma. Que tipo de homem eu seria? Qual é o sentido do mundo? Até onde podem ir meus pensamentos, meus interesses, meus sonhos, as terras que eu via com os olhos da mente?”. Já o brasileiro Moacyr Scliar, ao se perguntar “por que tantas pessoas amam o livro”, afirma que o livro “(...) tem a coragem de ser o que é num mundo que anseia por renovação todos os dias, num mundo em que trombetear glórias e alardear vantagens é parte da regra do jogo, num mundo em que ser prático é questão de sobrevivência. E, sendo o que é, o livro nos vincula ao passado, a essa imensa corrente humana que, através dos tempos, fez da palavra escrita a forma de entender a realidade e de intercambiar emoções; e nos projeta para o futuro onde sempre haverá lugar para ele”. O ensaísta francês Michel Montaigne escreveu que “O convívio com o livro sempre me ajudou, em todas as circunstâncias; consola-me na velhice e na solidão, suaviza uma ociosidade que poderia ser

Dez 2019 | 65


aborrecida e livra-me das pessoas inoportunas; (...) Para afastar uma ideia desagradável, nada como recorrer aos livros; apossam-se de mim e fazem-me esquecê-la”. “A literatura pode muito”, diz o crítico literário Tzvetan Todorov. “Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuidados para com a alma; porém, revelação do mundo, ela pode também, em seu percurso, nos transformar a cada um de nós a partir de dentro.” Para esses e muitos outros leitores — porque todo escritor é, antes de qualquer coisa, um leitor —, a literatura não é somente um passatempo ou um trabalho. Ela é uma amiga, uma companheira. Não de todas as horas, talvez, mas certamente de muitas. Eis, portanto, o que fazer da literatura: tê-la sempre por perto. (E lê-la, é claro.)

Rafael Rodrigues é escritor, revisor e resenhista. Publicou os livros “O escritor premiado e outros contos” (Multifoco, 2011) e “Mais um para a sua estante” (Casa Impressora de Almería, 2017). Mantém o blog Paliativos (http://www.paliativos.com. br) e edita a revista eletrônica de contos Outros Ares (http:// outrosares.wordpress.com). Mora em Feira de Santana (BA).

66 | Pequiá


Ilustração: Paulo Anaximandro Tavares


Uma análise sobre “O Apanhador no Campo de Centeio” Márcio Silvestre Conheci a obra O Apanhador no Campo de Centeio (The Catcher in the Rye) na adolescência. Lembro que vi muitas referências em filmes e após uma rápida pesquisa descobri a terrível fama de o livro ter influenciado Mark David Chapman, o assassino de John Lennon, a cometer o crime. Também houve outros relatos, fictícios e reais, que relacionam o romance a algum comportamento psicótico, mas para um jovem leitor curioso isso só atiça mais a vontade de lê-lo. É curioso como a obra de Jerome David Salinger, publicada em 1951, teve impacto em tantas gerações e se consolidou como um clássico da literatura norteamericana, estando na lista dos livros mais vendidos de todos os tempos com aproximadamente 65 milhões de cópias. Após o sucesso de The Catcher in the Rye, Salinger torna-se recluso, publicando menos do que antes. O autor decidiu prezar pelo anonimato. O Apanhador no Campo de Centeio é um convite à percepção das mazelas sociais pela ótica de um adolescente norte americano. A obra é atemporal e se trata de alguns dias na vida de Holden Calfield, suas lembranças, medos, sonhos e angústias. É um período difícil para o jovem, que se sente deprimido e sem ânimo para conviver com todas as regras, valores e costumes da cultura norte americana, hoje globalizada. Narrada pelo próprio Holden a história se passa em Nova

68 | Pequiá


York, nas vésperas do Natal. O garoto tem 16 anos e acaba de ser expulso do colégio Pencey, por ter tido mal desempenho em quase todas as matérias, menos inglês. Não suportando mais o Pencey e todos os “cretinos” que ali habitam, Holden foge do colégio, antes que seus pais viessem buscá-lo. O adiamento do confronto com os pais é uma analogia à etapa da vida de Holden. Ele está crescendo e não suporta o fato de se tornar adulto. Ao fugir do colégio, o jovem inicia uma aventura solitária por Nova York expressando suas impressões sobre os lugares, comportamentos e pessoas que encontra. O confronto entre as novas experiências e lembranças de sua infância, família e amigos dão ao romance um teor psicológico, numa sequência angustiante, que dá a impressão que o personagem está preste a desaparecer, vivendo seus últimos momentos. Crítico ferrenho e debochado, Holden julga sem limites tudo o que considera sujo e errado. Denuncia a farsa do cinema, para ele Hollywood é um depósito de lixo. Sua maior aversão é à hipocrisia e toda forma de falsidade. Anda de “saco cheio” por encontrar “cretinos” por todo canto onde passa. E sua travessia exterior, Holden passa por lugares famosos como o Central Park, Quinta Avenida e a Broadway. Encontros importantes também marcam esses dias de fuga. Um passeio com Sally, uma amiga/namorada com quem acaba brigando, por não conseguir fazê-la compreender seus ideais e Antolini um ex-professor e amigo que o abriga por uma noite, mas com quem termina se desentendendo por ter sido surpreendido com demonstrações de afetos durante o sono. Em seu percurso o jovem conhece muitos outros personagens que de alguma maneira acabam lhe deprimindo e reforçando sua aversão ao mundo adulto. Há uma forte ligação do personagem com seu irmão Allen, que faleceu de leucemia. Holden nutre sentimentos de sublime afeto e nostalgia pelo irmão mais novo, que para ele era o mais inteligente e altruísta da família. A morte de Allen é uma barreira não superada pelo adolescente. Quando se sente triste ou com medo,

Dez 2019 | 69


Holden imagina que Allen está ao seu lado e começa a conversar com ele. A morte do irmão está, de alguma forma, associada ao embalsamento da infância cultuado pelo protagonista. Por ser Allen um garotinho bondoso e puro, que não rompeu a linha tênue da juventude e maturidade. Apesar da linguagem informal, cheia de gírias e palavrões, o romance tem uma carga muito densa. Salinger consegue angustiar gradativamente o leitor, que acompanhando o desenvolvimento da personagem, começa a auto perceber-se enquanto indivíduo social, pertencente a um sistema falho, cuja origem está na fragilidade das relações e no enaltecimento do ter sobre o ser. O ápice da narrativa, fundamental para entender toda a história, em minha opinião, é quando Holden chega em casa. Ainda é madrugada, escondido, ele entra sem fazer barulho e vai ao quarto de Phoebe, sua irmãzinha, única pessoa com a qual Holden consegue manter uma aproximação sem se sentir angustiado. Inteligente e observadora, Phoebe não demora a descobrir que o irmão foi expulso de mais um colégio, e o questiona se ele gosta de alguma coisa e o que ele quer ser. Holden revela que sua maior pretensão é se tornar um apanhador no campo de centeio, alguém cuja única responsabilidade é proteger as crianças que brincam no campo de caírem num abismo. Abismo esse que pode ser encarado como a morte ou mesmo a vida adulta. Márcio Silvestre é Jornalista formado pela Universidade Federal do Cariri - UFCA, com experiência em Assessoria de Imprensa e Produção Cultural. Escreve para Cariri Revista.

Serviço O Apanhador no Campo de Centeio J.D. Salinger Editora Todavia. 256 páginas. R$ 45,52

70 | Pequiá


Livro: Tempo Bom, Contos Autor: Vários Editora: Iluminuras A obra nasceu guiada pelo prazer da leitura e pela qualidade da criação. Quer compartilhar com os leitores as mais instigantes experiências, indagações, tesões e alumbramentos. Tempo Bom nasceu com o intuito de ajudar pessoas que precisam de escolhas que façam a diferença. Os escritores que participam da antologia, dentre eles Xico Sá, cederam seus direitos autorais em prol de ajudar as vítimas de enchentes no interior de Pernambuco e Alagoas.

Livro: Judas Autor: Amós Oz Editora: Companhia das Letras Amós Oz fez de sua obra uma reflexão sobre o povo judeu. Judas é exemplo da densidade da obra de Oz. Shmuel Asch é um estudante que se vê em apuros no inverno de 1959: sua namorada o deixou, seus pais faliram e ele foi obrigado a abandonar os estudos e a pesquisa sobre a figura de Jesus sob a ótica dos judeus. Passado o desespero inicial, encontra morada e emprego em uma casa no extremo de Jerusalém, servindo de interlocutor para um velho inválido e perspicaz. Na mesma casa, vive Atalia Abravanel, com quase o dobro de sua idade. Shmuel é atraído por ela, até que a curiosidade e o desejo transformam-se numa paixão sem futuro.

Livro: Demian Autor: Herman Hesse Editora: Record O autor narra o crescimento para a maturidade de Emil Sinclair, que sucumbe à influência de Max Demian, uma figura estranhamente possessiva. À medida que Sinclair progredia, através de uma educação ortodoxa e um misticismo filosófico, ele tinha sempre diante de si a imagem de Demian... até chegarem ao clímax de uma confrontação num sangrento campo de batalha. Críticos consideram que, pelo poder que teve de influenciar tantas gerações de leitores, Demian é das obras mais importantes de toda a bibliografia do excepcional escritor.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.