ANO 2 EDIÇÃO 07
Pequiá
Literatura Sesc
A revista de literatura pequiá, uma realização do Sistema Fecomércio - CE em parceria com a Universidade Federal do Cariri, através da PROCULT, apresenta, em sua sétima edição, o mesmo compromisso de ser esse elemento de estímulo e difusão da literatura e leitura. A edição número 7, de 2019, trás entrevistas com o poeta maranhense Celso Borges; Ethel de Paula nos apresenta um perfil do flâneur terceiro-mundistasem-paisagem e dândi desafortunado das ruas de Fortaleza, Mário Gomes; o poeta da Via Láctea, Olavo Bilac, aparece mais vivo do que nunca na nova teia literária do chamado pós-modernismo; o caderno de poesia trás a voz de três poetisas: Marta Eugênia (AL), Anielle Oliveira (BA) e Debora Arruda (SE); quem assina a crônica desta edição é o cearense Marco Severo; o caderno de conto trás a prosa ácida de Bruno Ribeiro. Fechando nossa edição temos a resenha, assinada por Bibiana Belisário, do livro “Torto arado”, do premiado autor baiano Itamar Viera Júnior, numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa, o romance conta uma história de vida e morte, de combate e redenção. Assim, o Sesc Ceara assume seu papel social e, por meio das ações da Programa Cultura, democratiza o acesso aos bens culturais, em uma publicação de qualidade, onde as pessoas encontram bons instantes de fruição em torno da literatura, essa forma privilegiada de encarar o mundo.
Boa leitura a todos!
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EXPEDIENTE Edição 7 | Outubro/Novembro 2019 FECOMÉRCIO | SESC
DEPARTAMENTO REGIONAL DO SESC/ AR-CE
Presidente: Maurício Cavalcante Filizola Diretor Regional: Rodrigo Leite Rebouças Diretora de Programação Social: Patrícia Carnevalli R. de Paiva Diretora Administrativa: Débora Sombra Costa Lima Diretor Financeiro: Gilberto Barroso Frota Consultor de Programação Social: Chagas Sales Nogueira Lima Analista de Programação Social: Maria Bezerra UNIDADE CRATO DO SESC Gerente: Heliane Aragão Pereira Supervisor de Cultura: George Belisário Programa Cultura Sesc Crato: Suzana Carneiro, Gabriel Campos, Socorro Dantas, Talita Rocha e Raflésia Custódio Dias Bezerra UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA Reitor: Ricardo Luiz Lange Ness Vice-Reitora: Laura Hévila Inocêncio Leite Pró-Reitor de Cultura: José Robson Maia de Almeida Coord. de Política e Diversidade Cultural: Gustavo Ramos Ferreira REDAÇÃO Repórter: Mychelle Santos Colaboradores: Anielle Oliveira, Bibiana Belisário, Bruno Ribeiro, Celso Borges, Débora Arruda, Ethel de Paula, Marco Severo e Marta Eugênia Curadoria: George Belisário e Gustavo Ramos Projeto Gráfico: Estúdio Caravelas / Hanna Menezes Diagramação: Paulo Anaximandro Tavares Foto de capa: Fotos Mário Gomes: Deivyson Teixeira/Jornal O Povo Ilustrações: Espedito Duarte, Júlia Marques, Letícia Lima e Mychelle Santos Arruda, Revisão: Márcia Leite Professor Orientador: José Anderson Sandes Coordenação Editorial: George Belisário REVISTA PEQUIÁ (SESC CRATO) Rua André Cartaxo, 443 – Palmeiral Crato/CE CEP: 63100-555 Telefone: (88) 3586-9163 E-mail: gbelisario@sesc-ce.com.br Tiragem: 1000 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
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Mário Gomes (1947-2014) foi um misto de flâneur terceiro-mundista-sempaisagem e dândi desafortunado das ruas de Fortaleza. Escolheu viver solitário e em deriva e deixou uma obra poética elogiada pela crítica. Confira perfil do poeta escrito por Ethel de Paula.
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Conheça a trajetória do poeta e compositor maranhense, Celso Borges, entrevistado dessa edição. Ele participou do Festival da Palavra, projeto do Sesc-Crato. Celso rompe fronteira e reúne música e poesia num rico mosaico literário.
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O nome de Olavo Bilac, o poeta da Via Láctea, ainda brilha em meio as estrelas contemporâneas. Leia poemas de Marta Eugênia, Anielle Oliveira e Deborá Arruda e a Crônica “Perder-se. Encontrar-se”, de Marco Severo.
42 “Tô cansado, viciado, doente, digo isso ao meu filho, tô com artrite até no rabo e você não sabe de porra nenhuma”. Leia o tenso conto “Um sol morto se arrasta”, do escritor Bruno Ribeiro”.
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Guia do Crowdfunding BR A Editora Wish prepara para fevereiro a obra Crowd – o guia do financiamento coletivo para autores e editores de livros, primeira obra totalmente voltada para o crowdfunding de publicações. Desenvolvido por Marina Avila e Valquíria Vlad, responsáveis pela Wish, o guia parte da origem do cooperativismo até chegar aos cenários nacional e estrangeiro de financiamento coletivo, analisando cases de sucesso e campanhas que não atingiram a meta, com uma metodologia estratégica e dinâmica a fim de apresentar passo a passo como estruturar um projeto com tudo para ser bem-sucedido. Diamant novamente curadora da Flip A Flip anunciou a recondução de Fernanda Diamant à curadoria da sua 18ª edição, marcada para acontecer entre os dias 29 de julho e 2 de agosto de 2020. Formada em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), Fernanda foi editora de livros por dez anos e é uma das fundadoras da revista Quatro Cinco Um, onde atualmente cuida da editoria de divulgação científica. 50 anos d’O gênio do crime” Reedição de O gênio do crime, sai em comemoração aos seus 50 anos de lançamento. A obra, que em 2019 completa 50 anos de seu lançamento, deu origem a outros 12 livros protagonizados pela turma do gordo, formada por Edmundo, Pituca, Bolachão e Berenice. Na história, Seu Tomé é um homem bom, proprietário de uma fábrica de figurinhas de futebol. Além da reprodução do texto original, a edição conta com prefácio de Marisa Lajolo, análises de Guilherme Vasconcelos e Haroldo Ceravolo Sereza. Completam o material a autobiografia divulgada pelo autor em seu site pessoal, imagens que mostram o processo de criação de Mauricio Negro, responsável pelo projeto de capa, e um álbum de figurinhas idealizado pela leitora Nathalia Piovesani.
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Mário Gomes
Uma vida dentro dos sapatos
Texto | Ethel de Paula Fotos | Deivyson Teixeira/Jornal O Povo A repórter Ethel de Paula seguiu à risca um conselho dos bons e antigos jornalistas: só gastando muita sola de sapato se obtém boas histórias. Ethel não deixou por menos. Garimpou muitas histórias - perfis, entrevistas, reportagens. Passou pelas redações do jornal O Povo e Diário do Nordeste, mas foi como editora da revista Farol, publicação da Secultfor, de 2006 a 2012, que desvendou “trajetórias de vida, memórias e a força de invenção dos moradores de Fortaleza”, diz. Mário Gomes, o poeta da Praça do Ferreira, encantou a jornalista com a sua vida e sua poética. Uma espécie de vagabundo da poesia, autor de poemas sarcásticos e surrealistas, tão excêntricos quanto intrigantes. Leia abaixo trecho da dissertação de mestrado de Ethel de Paula: “A vida esculpida com os pés: memórias inacabadas de um poeta-andarilho”.
Mário Gomes (1947-2014) foi um misto de flâneur terceiro-mundista-sem-paisagem e dândi desafortunado das ruas de Fortaleza. Escolheu viver solitário e em deriva perene pelos interstícios da cidade desde os 20 anos de idade, depois de ser banido de casa pelo pai por descumprir regras de conduta doméstica incompatíveis com seu gosto explícito pela boemia e uma assumida falta de vocação para o trabalho. Aos 67 anos, idade em que falece, o homem errante, estranhamente altivo em seu precário desalinho de roupas sobrepostas, ainda gabava-se de só ter tido carteira-assinada por um ano apenas, prova inconteste de sua inadequação ambulante e da vagabundagem decantada como filosofia de vida. Palavras suas: “Eu não tenho vocação pra trabalho... não tenho vocação pra trabalhar pra ninguém não. Trabalhar pros outros? E por acaso eu tô com fome? A estrada é fechada? O cara ser vagabundo e louco não é contra lei não, rapaz! Realmente eu sou vagabundo. Vagabundo é o cara que não tem vocação para trabalho nenhum. Eu nunca vi nada bom em trabalhar. Se o vagabundo quer trabalhar ele deixa de ser vagabundo. Eu não trabalho pra não desclassificar a classe trabalhadora. Vagabundo não precisa de nada. Tem o vagabundo e o malandro. Malandro é o patrão que tem tudo, que manda o trabalhador trabalhar pra ele. Vagabundo não tem profissão nenhuma e não quer emprego em lugar nenhum”. A teima em sair do script por toda uma vida teve preço: inconformada com a rebeldia do filho, a própria família, por diversas vezes, tratou de interná-lo em hospitais psiquiátricos. Dos 20 aos 29 anos, entre internações forçosas e fugas mirabolantes, experimentou choques elétricos,
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confinamentos e tratamentos controversos, Mário Gomes foi um acabando por vencer misto de flâneur terceiropelo cansaço todas mundista-sem-paisagem e dândi desafortunado das as investidas de ruas de Fortaleza. controle e disciplina impostos, isso depois de ser enfim diagnosticado como psicótico crônico e conquistar o direito à aposentadoria por invalidez: um salário-mínimo mensal e vitalício. Assim, gozando de uma espécie de salvo-conduto, pôde voltar à casa dos pais para viver a seu modo, na pele de inveterado boêmio, poeta-andarilho e vagabundo confesso. Livre das amarras, Mário Gomes elegeu a errância sem finalidade pelas ruas como modo de vida. Só ia à casa dos pais, no bairro Bom Sucesso, periferia de Fortaleza, para refazer-se das farras e noitadas curtidas junto à arraia miúda do Centro da cidade, entre botequins, restaurantes populares e pensões alegres. Lá, após algum descanso, tomava banho, vestia roupas limpas e elegantes, se alimentava e deixava que a mãe, dona Nenzinha, diluísse um combinado de psicotrópicos em sua comida, administrando o tratamento psiquiátrico que passou a ser, de fato, recomendado e perene. De astúcias, Mário Gomes sempre foi rico. Entre perambulações, chegou a círculos literários que lhe abriram as portas para saraus e encontros artísticos de livre trânsito. Conheceu escritores consagrados e diletantes, fez da leitura hábito e companheira fiel, passou a escrever ao sereno os próprios poemas e, com o apoio de amigos remediados, acabou por tirar do prelo oito livros
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Na Praça do Ferreira, principal logradouro de Fortaleza, Mário Gomes criou o seu mundo
de sua lavra, ainda que em tiragens irrisórias. Assim, não tanto pelos escritos em si, mas pela atitude plástica e poética que tornou possível sua inscrição errática no mundo, entrou para o imaginário coletivo da cidade como o “poeta da Praça do Ferreira”, autor de poemas sarcásticos e surrealistas, tão excêntrico quanto intrigante. Entre curiosos e letrados, foi na Praça do Ferreira, principal logradouro do Centro de Fortaleza, palco de acontecimentos históricos e culturais de valor simbólico, que Mário Gomes fundou o seu “mundo”: um “escritório” ao ar livre, invisível, sem delineação, chaves ou vencimentos. Com direito a banco cativo e frequência regular tanto de figurões das letras quanto de desocupados de plantão, o assim conhecido “escritório do poeta Mário Gomes” se forjou ainda na década de 1970, entre a Coluna da
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Hora e a sombra dos benjamins, bem em frente ao cinema São Luiz. Como ponto de encontro fluido e sem paredes, seguiu ativo até meados da década de 1990, reeditando o ritual de rodas de conversa formadas em torno do anfitrião bonachão que, diariamente, vestia a sua melhor roupa e vinha do bairro de origem, o Bom Sucesso, até a Praça do Ferreira, com um único intuito: dizer e ouvir poemas recitados ao léu, conversar sobre literatura e atualidades, tomar uns tragos com amigos e lançar ao vento, entre risos, todo o “besteirol literário” que lhe assaltava a cabeça delirante. O tempo deu voltas. Paulatinamente, aquela espécie de confraria à paisana e sem qualidades, feita de rima e brisa, foi se desfazendo, sem que novos habitués se somassem aos mais antigos, vencidos pelo tempo, pelo cansaço ou pela idade.
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Era o que constatava, dia após dia, entre nostálgico e inconformado, o poeta-andarilho em sua errância teimosa, sempre tendo como parada obrigatória e ponto de irradiação a Praça do Ferreira. Um eterno retorno que durou até o último dia de 2014, quando faleceu vítima de anemia e desidratação profundas. Em seus últimos anos de vida, portanto, não era surpresa ainda vê-lo circundando o bancoescritório que há muito não gozava de cúmplices ou frequentadores assíduos. Sozinho e curvado sobre si, o poeta-andarilho seguiu repetindo percursos habituais até se despedir do mundo, sempre no rastro dos nichos culturais onde era bemvindo e reconhecido como poeta outsider. Assim, diariamente, ele podia ser visto, sem falha, entre a Praça do Ferreira e o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, na Praia de Iracema, lugares de fluxo e convergência de onde invariavelmente partia para perambulações por outros bairros. No Centro da cidade, difícil é encontrar quem não tenha conhecido o poeta ou colocado os olhos curiosos sobre ele, ao menos uma vez. Até hoje, os comerciantes do entorno falam de um tempo em que era “bom da cabeça”, corpulento e andava com livros e jornais embaixo do braço, sempre muito bem vestido e garboso. Por outro lado, dão conta também do início de uma fase que consideram degradante, testemunhada a partir da segunda metade dos anos 2000, quando o poeta teria perdido a mãe, dona Nenzinha, único vínculo afetivo por ele mantido em visitas cada vez mais esporádicas à casa da família, no bairro Bom Sucesso. Com isso, cogita-se, teria interrompido
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o tratamento psiquiátrico contínuo até então Vagabundo é o cara que não administrado por ela. tem vocação para trabalho. O poeta não Se o vagabundo quer confirmava nem trabalhar ele deixa de ser vagabundo. Eu não trabalho desmentia as lendas pra não desclassificar a em torno de si. Seguia classe trabalhadora falando sozinho, não pedia esmolas, não conversava com qualquer um, e, gozando de crédito a fundo perdido junto a ambulantes, sempre carregava cigarros e birita no bolso. Outro “vício”: era “assinante” confesso da revista Playboy, comprando edições antigas a preços módicos nas bancas de revista da Praça do Ferreira. Os amigos conhecedores de seu passado também lhe faziam cortesia. No Duda’s Burguer, lanchonete contígua à Praça, tinha carta branca do dono para entrar, beber água e comer livremente, tanto quanto quisesse. Quase nunca queria, porque imperativo era a cachaça. Mas se a fome batesse entre uma ressaca e outra, a boca já quase sem dentes de sexagenário errante só lhe permitia ingerir alimentos pastosos, como o vatapá que, só para ele, podia ser servido em copo de plástico. Outro capricho: descolar com o amigo engraxate de longa data, Pirrita, sapatos recauchutados que lhe conferissem, além de charme singular, equilíbrio e agilidade para os pés andarilhos. Um flagrante apetite diante do belo que também se deixava revelar no modo de vestir. Ainda que sujo ou amarrotado, Mário Gomes fazia questão de compor o visual, tendo como marca-registrada um indefectível paletó sem gravata. Não à toa, inventou para si e vivia a contar sobre um improvável guarda-
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roupas a céu aberto, onde casacos, calças e camisas estariam “Ninguém mora na rua. embaixo de pedras A gente mora dentro da gente. Moro dentro de mim, e árvores que só ele dentro dos meus sapatos. identificava. Meu carro é meu corpo. Na rua, flagrantes Minha casa também. No de amor próprio: dia em que for embora ao se deparar com o carro vai pra sucata e qualquer espelho, a casa desmorona. Meu montava e remontava nome é Pensamento”, apresentou-se. o figurino, mirava-se durante horas e era capaz de conversar com a própria imagem aos risos, olho no olho, em dialeto quase indecifrável. Tesourinha em punho, o despudorado habitué das ruas ia além: alinhava o gesto, envergava ainda mais o corpo e saia aparando cabelo, barba, bigode e pêlos das narinas, milimetricamente. Assim, admirando-se em diferentes ângulos, destacado do mundo, parecia satisfeito e em paz com o que via refletido. Vaidoso confesso, Mário Gomes não cansava de inventar arranjos plásticos e novas bricolagens a cada dia para sua indumentária de cavaleiro andante. Em suas mãos, uma simples tira de pano poderia ganhar status de lenço e se sobressair elegante no bolso do casaco risca-de-giz, enquanto o arame retorcido salvo do limbo, preso ao cinto, faria as vezes de abotoadura precária, mas funcional para o que se propunha. O próprio Mário, que teimosamente também fazia valer o bom humor e a ironia como traços de fina formosura, batizava a invenção: “cinto muito!”. Uma gaiatice sempre puxando a outra. Se provocado em torno de gosto e estilo, não se furtava
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em exibir a ceroula cor de abóbora repuxada de dentro Ao se deparar com da calça frouxa que qualquer espelho, compunha o paletó montava e remontava o figurino, mirava-se sem gravata, sua durante horas e era inseparável marcacapaz de conversar com a registrada. Sobre própria imagem aos risos, a origem da peça olho no olho, em dialeto mais importante quase indecifrável de seu vestuário torto, colecionava estórias: “Eu tava na praça e um senhor chegou perto e disse: “Rapaz, você tem estilo cinematográfico! Vou te dar o terno do dia do meu casamento! E deu!”, gabava-se, experimentando a peça ali mesmo na Praça, sob sol a pino. Passos adiante, criava uma segunda versão: “caiu lá de cima de um condomínio, quando eu tava passando ali pelo Papicu... Vi que aquilo tinha qualidade, Pierre Cardin, e apanhei do lixo”, disparava, em tom de especialista no assunto. Entre “tiradas” e galhofas, o outsider que, ainda em idade escolar, questionava professores em sala de aula e, aos 18 anos, chegou a dar aulas de filosofia para crianças, não se furtava em opinar ou demonstrar algum conhecimento sobre qualquer assunto, incluindo moda. Era o vivido e, sobretudo, as ruas suas fontes de sabedoria. Assim, o simples fato de ter tido uma mãe costureira bastava para lhe imprimir ares de esteta. “Ela pegava a revista Cláudia e fazia o vestido igualzinho. Quando eu era menino, calção e camisa era ela quem fazia. Tudo no capricho”, dizia, deixando entrever daí a sua flagrante inclinação para roupas e acessórios
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incomuns, vistosos, de uma elegância ímpar, mesmo quando precários ou gastos. “Sou obrigado a gostar de me vestir, ora! Quero cobrir minha nudez porque se não vou ser castigado por atentado ao pudor! Não diz que toda nudez será castigada?”, ilustrava, rindo-se, emendando de bate-pronto uma ressalva galanteadora: “a nudez no homem é castigada, na mulher é adorada! Adoro nu artístico!”. Mulheres, eis a maior personificação do belo que Mário Gomes não cansava de cortejar e reverenciar em ditos e escritos. Tal qual Baudelaire (1821-1867), o poeta francês para quem “a mulher é antes uma divindade, um astro que preside todas as concepções do cérebro masculino”, Mário Gomes escreveu, ao seu estilo, um elogio igualmente enfático ao sexo feminino. Antropofagismo, o poema, não tem meias palavras nem economia de adjetivos ou predicados: Eu, sem ser antropófago, já saboreei muita gente por aí. Minhas preferências são os esbeltos, violônicos corpos femininos: a mulher. Ah! Se a humanidade fosse toda antropófoga como eu teria o prazer de ser devorado em um banquete ou bacanal de lindas garotas sexys, histéricas, eróticas e eu, em cima de uma mesa qualquer totalmente nu Assado ou cozido Recheado de cebolas, tomates e farofas. Enquanto Odete espetava um dos meus esverdeados olhos que outrora foram profanos, Judite arrancava minha língua e mastigava furiosamente. Depois Maria Helena pegava uma faquinha de mesa e cortava delicadamente meu pênis ereto e dizia entre-dentes: - Como é gostoso esse Mário Gomes.
Gostosos e despretensiosos, os poemas de Mário Gomes também dizem sobre o poeta de encanto cambiante que sabia rir de si e até já havia escolhido a frase de seu epitáfio: “Já que a natureza/me trouxe chorando/deixai, ó morte/ que eu morra rindo de ti”. Boa praça sim. Mas que ninguém se arvorasse a confundi-lo com mendigo, pedinte ou morador de rua. “Ninguém mora na rua. A gente mora dentro da gente. Moro dentro de mim, dentro dos meus sapatos. Meu carro é meu corpo. Minha casa também. No dia em que for embora o carro vai pra sucata e a casa desmorona. Meu nome é Pensamento”, apresentou-se. Altivo mesmo quando barrado à porta da Academia Cearense de Letras, ele próprio se autoconsagrava: o anel de “juiz de Direito” que trazia no dedo, desfalcado de pedra preciosa, figurava como o acessório mais-que-perfeito a coroar sua errância sem casta, sem canudo e sem capital. Da cabeça aos pés, o controverso charme do homem das multidões, que tinha a rua como casa e nela se sentia à vontade, não sucumbira jamais. Pente fino; espelho portátil, sabonete Johnson´s; barbeador descartável; panos e mais panos coloridos entocados nos muitos bolsos do paletó. Em cada “inutensílio”, um rastro de beleza velada – ou “a simplicidade absoluta que embeleza a beleza”, como escreveu Baudelaire. Mário Gomes se fazia bonito a seu modo, com os meios possíveis. Dizia que herdou boniteza e carisma do pai, Benedito Ferreira Gomes, um chofer de caminhão de “fala mansa e dentinho de ouro”. “Era todo eu! Os olhos não, os olhos são de minha mãe”, derretia-se o filho de olhar esverdeado. Nenhuma compaixão por si mesmo, nenhum pudor em afirmar a plasticidade única que o distinguia e o
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protegia da multidão. Ciente do próprio magnetismo e de uma inteligência refletida no gesto, Mário Gomes, o poeta-andarilho, esbanjava o que Nietzsche chamou em um de seus aforismos de “o charme da imperfeição”, traço com o qual também se reinventou e se fez reconhecer, estranhamente belo, nas ruas.
A autora escreveu o livro”Mario Gomes” Coleção Terra Bárbara, publicado através das Edições Demócrito Rocha, em 2017, e Cinema de Pedra - Histórias de Filmes Gravados em Quixadá (SECULT)
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Na rotação do dia, poeta do sol e da lua Uma violenta orgia universal
Olhei o sol. Me irreitei E larguei a mão na cara dele. No qual ele ficou Desacordado por 12 horas ininterruptas. Dei um ponta-pé nos ovos da terra. Afastei São Jorge E mantive relações sexuais com a lua. Pisoteei o cadáver de satanás Numa esquina encontrei-me com Deus E saímos abraçados: rindo e cantando.... Chovia Quando eu morrer
Quando eu morrer Irão distribuir minhas camisas, Minhas calças, minhas meias, meus sapatos. As cuecas jogarão fora. Ninguém usa cueca de defunto. Irão vascular minha gaveta. Vão encontrar muita poesia, Documentos e documentários. Só sei dizer Que foi gostoso viver. Sentir o amor e proteção de minha mãe. De conhecer meus irmãos, meus amigos. De vê de perto as mulheres. Só posso deixar escrito: “obrigado vida”.
Celso Borges No instante do tempo
Entrevista | José Anderson Sandes e Mychelle Santos
O poeta maranhense Celso Borges traz na escrita o passado e o presente desde a São Luís de 1612, fundada pelos franceses e colonizada pelos portugueses, segundo ele uma mini Lisboa “misturada com o som e o batuque que nasceram nas senzalas”. Mas também é um poeta repleto de fragmentações pós-modernas, unindo poesia e música em muitos dos seus projetos. Morou 20 anos em São Paulo, onde realizou muitos projetos, conheceu e dialogou com vários artistas do país - “costumo dizer que tenho dois santos
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na minha vida: São Luís e São Paulo” - e retornou para São Luís em 2009. Jornalista, Celso passou pelo batente das redações, do rádio e da tv, mas a literatura pulsou mais forte na sua vida. São 14 livros - está terminando um novo “livrinho” da série Poesia afetiva” e um outro sobre a saga de sua família - seus pais são migrantes portugueses - “família de sete irmãos, três Antonios e quatro Marias. O livro vai se chamar Quase Todos os Dias. Já tenho mais de 200 laudas escritas”.Celso Borges participou, de 15 a 18 de outubro passado, do Festival da Palavra - O movimento das letras que gritam por liberdade, promovido pelo Sesc-Crato. O evento reuniu poetas locais e de outras regiões do país. Aconteceu em diversos palcos na escola Polivalente e principalmente na Praça Siqueira Campos, todos no Crato. Nesta entrevista, ele fala de poesia, música, projetos, jornalismo e de muita literatura. Confira trechos. PEQUIÁ | Celso, você nasceu no Maranhão, terra de Ferreira Gullar e de tantos outros poetas dos Século XiX e XX. Essa herança espraia-se pelos dias de hoje? CELSO | Sim, temos uma história literária cheia de grandes poetas. Há um simbolismo em torno disso, que já faz parte da tradição. Essa fama vem, sobretudo, porque tivemos uma geração importante de escritores no século 19, dois deles fundadores de uma linguagem. Gonçalves Dias, o mais importante romântico, e Sousândrade, que nos trouxe, de alguma forma, a modernidade. No século 20, tivemos outros poetas entre os maiores da língua portuguesa: Ferreira Gullar, Bandeira Tribuzi, Nauro Machado e José Chagas. Nos últimos trinta anos, mais nomes de destaque: Salgado Maranhão, Luís Augusto Cassas, Viriato Gaspar, Deo
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Silva. Roberto Kenard, Fernando Abreu, Paulo Melo Sousa, Antonio Ailton, Josoaldo Lima Rego, Reuben da Rocha, Jorgeana Braga, Lúcia Santos, Dyl Pires, Félix Alberto Lima, entre outros. PEQUIÁ | Quais suas primeiras influências? CELSO | Gullar e Neruda foram, sem dúvida, as duas primeiras grandes influências. A leitura do Poema Sujo, de Gullar, escrito no exílio, foi fundadora, falava sobre uma São Luís de uma forma que eu nunca tinha lido antes. De Neruda, o Canto Geral me impressionou pelo Chile que o artista me apresentava e que carregava com ele, além da lírica amorosa dos Vinte poemas de amor. PEQUIÁ | Você começou a escrever poemas ainda adolescente. Conte esse processo. CELSO | Comecei a escrever poesia aos 17, 18 anos. Antes disso, já era um leitor dos clássicos juvenis, principalmente do universo da prosa. O amor pela poesia veio um pouco depois: Neruda, Gullar e Thiago de Melo foram os primeiros. Gostava também naquela época, finais dos anos 1970, dos mais engajados. Quando eu tinha 13, 14 anos, havia uma coleção, acho que da Abril Cultural, com tradução de clássicos da literatura juvenil. Foi ali que descobri Tom Sawyer, de Mark Twain, Viagem ao redor da lua e Viagem ao mundo em 80 dias, de Julio Verne, e A ilha do tesouro, de Stevenson, entre outros. Comecei a ler muito também a obra de José de Alencar e José Mauro Vasconcelos. Costumo dizer que este último foi o meu Monteiro Lobato. Não posso deixar de mencionar, também, o maranhense Humberto de Campos. Meu pai tinha uma grande coleção da obra dele e eu peguei na luta contra a ditadura militar, entre eles Ernesto Cardenal e Pedro Tierra. Além de Gullar e Neruda,
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Thiago de Melo, Cecília Meireles e os modernistas brasileiros. PEQUIÁ | E sobre o processo de escrita ainda nos anos verdes? CELSO | Eu me apaixonei violentamente por uma menina e a poesia foi a forma que encontrei para tentar explicar aquilo que estava acontecendo comigo. A experiência do amor sempre foi um motor importante Naquele momento, me no meu processo senti atraído por aqueles de criação. Nunca versos coloquiais, de rua, mais fui o mesmo despojados, sem o rigor por causa disso e a acadêmico poesia passou a ser a minha resposta ao mundo e às experiências que eu vivia. E vai ser assim até o fim. PEQUIÁ | Você começou a escrever nos anos de chumbo. Esse contexto de ditadura foi bom ou ruim, já que tínhamos uma poesia marginal bem sofisticada e contrária ao regime militar ? CELSO | Enfrentar a ditadura era também um motor para a criação. No caso da poesia marginal, aquela da Zona Sul carioca, só fui conhecer um pouco depois, na primeira metade dos anos 1980, quando o regime militar estava enfraquecido e agonizava. E de alguma forma ela me tirou do rigor, ou da falta dele, que havia na poesia engajada politicamente contra a ditadura, muitas vezes uma prisão para os poetas. A maioria dos engajados depois revelou-se de qualidade poética duvidosa. PEQUIÁ | Como foi o seu contato com os poetas engajados? CELSO | Só fui conhecer a poesia marginal quase dez anos depois que o carioca Chacal escreveu
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o seu primeiro livro. Naquele momento, me senti atraído por aqueles versos coloquiais, de rua, despojados, sem o rigor acadêmico. Até ali, minha influência maior vinha da estética gullariana, presente, sobretudo, no meu segundo livro, No instante da cidade, de 1983. PEQUIÁ | Mas você já era poeta no contexto da repressão? CELSO | Não sofri diretamente a repressão. No caso de São Luís, os compositores de música popular foram os que mais sofreram. Tinham que mandar suas canções para a censura liberar, etc. O pessoal do teatro, também, mas desconheço algum livro ou poeta que tenha sido censurado, como o foram algumas canções de César Teixeira, por exemplo, que é um dos nossos compositores mais importantes. Quando começamos a escrever e gritar os poemas engajados, a ditadura já não tinha tanta força para nos impedir. PEQUIÁ | Fale da sua infância no Maranhão, seus pais, irmãos… CELSO | Nasci no centro da cidade, no largo de São João, em frente a uma igreja católica. Até seis anos de idade, ainda via os bondes circularem pelas ruas, a gente jogava bola na pracinha, nas manhãs de domingo. Nas férias íamos para o bairro do Olho D’água, pertinho da praia. Natureza, rio, mar, mato, futebol, papagaio (pipa). Um outro mundo. Não falo isso com saudosismo. Cada época tem a sua vibração, cor, espaço e seus barulhos. Eu procuro ouvir o barulho de todas as épocas e ainda sentir prazer e alegria com isso. Meus pais são portugueses, minha mãe, do Porto, veio pra cá com três anos; meu pai, de Braga, aos 18, no meio da Segunda Guerra. É uma história linda que estou escrevendo. Família de sete irmãos, três Antonios
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e quatro Marias. O livro vai se chamar Não sou contra o artista fazer parcerias com o poder público, mas ele não pode ser escravo desse poder, depender dele
Quase Todos os Dias. Já tenho mais de 200 laudas escritas. PEQUIÁ | Pulando da poesia, de tantas leituras e lembranças, como o
Jornalismo aportou em sua vida? CELSO | Me formei em jornalismo em 1982 e sempre trabalhei na profissão, em televisão, rádio e jornal impresso. Hoje faço mais assessorias de imprensa de projetos culturais. Adoro rádio e TV, principalmente rádio, trabalhar com música, uma de minhas paixões. A canção popular me enche de alegria. Fiz também durante muito tempo edição de textos para telejornais e documentários. Isso me ajudou a cortar, editar, pensar na palavra editada, sua espacialização na página. O som da palavra sendo ouvida e transformada, os diferentes mosaicos de um texto. PEQUIÁ | Por que escolheu o Jornalismo, já que a literatura já tinha uma forte pulsão na sua vida? CELSO | Antes de fazer comunicação social e optar pelo jornalismo, fiz dois anos de engenharia civil e seis meses de eletrônica, mas não gostava daquilo. Ciências exatas não é comigo. Comunicação Social foi o meu plano B. Tinha interesse também por letras e história, mas achava que no jornalismo as
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possibilidades de inserção no mercado de trabalho eram maiores. PEQUIÁ | Qual a sua interpretação do Jornalismo brasileiro, de ontem e de hoje? CELSO | A imprensa tradicional quase sempre está comprometida com o que há de pior da nossa sociedade, com as forças conservadoras. Ontem e hoje. No passado, claro que houve alguns momentos de resistência, de poucos veículos, de alguns jornalistas corajosos. Atualmente a gente vê, aqui e ali, na internet, principalmente, jornalistas e programas de qualidade, progressistas. Quase nunca vejo as TVs abertas, fico indignado. William Bonner, Miriam Leitão, Merval Pereira e Boris Casoy, entre tantos outros, me dão vontade de vomitar. PEQUIÁ | Política e jornalismo parece sempre andarem de mãos dadas no nosso processo histórico e o Maranhão foi uma espécie de capitania hereditária regida pela família Sarney... CELSO | Sarney sempre foi um liberal que se aliou com quem podia mantê-lo no poder. Assim foi na época da ditadura, depois na Nova República e mais tarde com FHC, Lula etc. Apoiou a todos. Se vivesse mil anos estaria ao lado dos que estão mandando. É muito inteligente e tem boa formação cultural, mas e daí? Quando esteve no governo do Maranhão, de 1966 a 1969, trouxe técnicos competentes para a máquina pública que o ajudaram a implementar alguns projetos interessantes, mas os que o sucederam, quase todos apoiados por ele, mantiveram a mesma estrutura social injusta que o próprio Sarney não conseguiu modificar. Nesse processo de permanência no poder construiu um império de comunicação e manteve o judiciário atrelado aos seus interesses. O que fez é muito pouco ou quase
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nada para quem tinha como um dos slogans de sua campanha ao governo a frase “A poesia no poder”. PEQUIÁ | Essa oligarquia atrapalhou muito o processo de arte e artistas do Maranhão? CELSO | Os artistas provincianos, de São Luís ou de qualquer outro lugar, sempre esperam pelo poder público para fazer seus shows, gravar seus discos, lançar seus livros. Os dois lados, o do artista e o do poder, se ajudam, se atrapalham e se diminuem. Não sou contra o artista fazer parcerias com o poder público, mas ele não pode ser escravo desse poder, depender dele. As oligarquias adoram ver os artistas comendo em suas mãos para poderem mantê-los próximos, imobilizados, sem a rebeldia essencial que temos que manter viva dentro e fora da gente. PEQUIÁ | O que o impulsionou a mudar-se para a “Paulicéia Desvairada”? CELSO | Duas coisas: primeiro me apaixonei violentamente por uma menina de lá, que morou um tempo em São Luís. Depois, por uma necessidade de conhecer outros lugares, pessoas, vivências, experiências profissionais, etc. Morei em São Paulo 20 anos intensos e sempre que volto me sinto em casa. Costumo dizer que tenho dois santos na minha vida: São Luís e São Paulo. Ali fiz muitos projetos, lancei livros, conheci e dialoguei com artistas de todo o país. Mas não me arrependo de ter voltado pra São Luís, em 2009. PEQUIÁ | Quais foram os seus primeiros contatos com os poetas de São Paulo? CELSO | Conheci muita gente, diálogo intenso, tanto com poetas como compositores: Ademir Assunção, Marcelo Montenegro, Andréa Catropa, Carlos Careqa, Kleber Albuquerque, Chico César,
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Lira, artistas de várias cidades do país respirando aquela cidade, diversa e plural. PEQUIÁ | Mesmo em São Paulo o Nordeste ficou presente em sua poesia? CELSO | O Maranhão fica no Nordeste e São Luís fica no Maranhão. Minha poesia está chapada dessa cidade, fundada em 1612 pelos franceses e colonizada pelos portugueses, uma mini Lisboa misturada com o som e o batuque que nasceram
Show no Sesc Pompeia, São Paulo, Projeto Catarse. Com Rafael Agra, 2006
nas senzalas, quilombos e tribos indígenas de todo o estado, uma miscigenação maravilhosa. Tudo isso tá dentro de minha alma e reverbera nos meus versos, recitais e na musicalidade de minha poesia. PEQUIÁ | Então, o que São Paulo trouxe de influência na vida e na sua poesia? CELSO | O mundo radicalmente urbano passou a bailar nas páginas dos meus livros. Vivências, diálogos e experiências afetivas e estéticas
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com pessoas e artistas de diferentes cidades, convivendo comigo naquele espaço físico de muitas referências culturais. Uma vida cultural intensa e plural. Adoro isso. A espacialização do poema na página mudou, a fragmentação me abraçou em muitos textos, muitas referências num mesmo livro. Comecei a experimentar formas diferentes de dizer poesia, realizando projetos de poesia no palco, gravando poemas com interferências sonoras, etc. PEQUIÁ | O concretismo? CELSO | Também, mas eu já vinha namorando referências e desdobramentos do concretismo desde São Luís. Em São Paulo, num espaço urbano cosmopolita, verticalizado, passei a sentir na pele e no peito o concretismo que estava apenas nas páginas dos livros. PEQUIÁ | Fale do seu processo de escrita. CELSO | É muito variado. Tenho uma agenda pequena onde faço algumas anotações e depois coloco no computador. Se não tiver com a agenda, anoto em qualquer pedaço de papel. Se não tiver papel, fico repetindo na cabeça. Isso em qualquer lugar e circunstância. No trabalho e fora dele, no carro, no banheiro, no teatro, dando um abraço, um beijo, ouvindo música, vendo um filme, um quadro, conversando, caminhando, aqui e ali uma palavra que escapa e serve como motor para o poema. Gosto também de textos e poemas encomendados, fico ruminando vários dias. É um privilégio poder vivenciar essas experiências. PEQUIÁ | São 14 livros lançados. Prefere algum em especial? CELSO | Muito difícil escolher. Cada livro tem suas dores e delícias, suas influências, conceitos e motivações. Ultimamente estou muito próximo dos livrinhos de uma série chamada Poéticas afetivas,
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edições em formato pequeno, com tiragem limitada. Parceria com o fotógrafo Márcio Vasconcelos (A árvore envenenada), os artistas plásticos Cláudio Costa e Fernando Mendonça (Nonada e O drible) e projeto gráfico de Claudio Lima. PEQUIÁ | Existem muitas diferenças de um livro para o outro? CELSO | Sim, porque foram escritos em tempos diferentes, com influências diferentes, às vezes em cidades diferentes. PEQUIÁ | Você tem três livros CDs: XXI (2000), Música (2006) e Belle Époque (2010). Fale desses projetos. CELSO | É uma trilogia que chamo de A posição da poesia é oposição. No final da década de 1990 comecei a me interessar por uma aproximação maior entre música e poesia, que desembocou na publicação desses três trabalhos, além dos projetos de palco, que passei a fazer, quase como um desdobramento das gravações. Os livros CDs têm também um espírito coletivo, já que reúnem dezenas de artistas de todo o país. No primeiro, XXI, coloquei 21 poetas locais lendo meus versos e fiz as trilhas com o baixista Paulo Le Petit, da banda Isca de Polícia, que acompanhava Itamar Assunção. No segundo, Música, ampliei as participações, agora Morei em São Paulo 20 com 50 compositores anos intensos e sempre e poetas de todo o que volto me sinto em casa. país e projeto gráfico Costumo dizer que tenho de Claudio Lima. No dois santos na minha vida: último, Belle Époque, São Luís e São Paulo me calei. Explico: como os poemas do livro eram muito
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intensos, achei que qualquer leitura musical soaria um excesso. Por isso, o disco Quase, no encarte, está repleto de silêncios, explicados na última faixa: Essa espera, esse silêncio, essa angústia é o próprio... parecia perto, parecia prestes a, mas às vezes é assim: NÃO.
PEQUIÁ | Você começou em São Paulo os projetos de poesia no palco, como o Poesia Dub? Como foi essa experiência? Ela continuou no Maranhão? CELSO | O Poesia Dub foi o meu primeiro projeto no palco, feito em parceria com o DJ e pesquisador paulistano Otávio Rodrigues, autoridade em música do terceiro mundo, principalmente o reggae.
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Fizemos várias apresentações, três delas muito importantes: no Free Jazz Festival (2005), no projeto Outros Bárbaros, no Itaú Cultural (2005 e 2007), ambas em São Paulo; e em São Luís, no BR 135 (2016). Eu nos vocais, Otávio Rodrigues nas trilhas e backings; o saudoso Gerson da Conceição,
Celso Borges no palco da Tribo de Pixixita, festival de músicos do Maranhão
no baixo e Celso ou Luiz Claudio, na percussão. O nome do projeto é uma tradução direta de “dub poetry”, referência ao dub, gênero criado a partir de versões instrumentais do reggae, nas quais são sobrepostos ecos e efeitos. O dub é considerado uma espécie de jazz do reggae. Quando voltei pra São Luís, desenvolvi outros dois projetos no
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palco: A posição da poesia é oposição, com o guitarrista Com fascismo ou não, a Christian Portela e o poesia está sempre viva. A percussionista Luiz gente escreve, cria, berra porque morre se não fizer Claudio, e Sarau Cerol isso, independentemente de com o compositor qualquer sistema de governo e DJ Beto Ehongue. Com eles, fizemos apresentações em várias cidades: Teresina (PI), Fortaleza, Juazeiro do Norte (CE), Montes Claros (MG) e Palmas (TO). PEQUIÁ | Falamos da poesia marginal do tempo da Ditadura, hoje temos também no Brasil coletivos de poetas marginais. Quais as diferenças entre estes dois contextos? CELSO | Esses coletivos são muito importantes porque eles vêm contribuindo para a descentralização dos locais onde aconteciam os recitais. Muitos desses coletivos vêm das periferias, com influência do rap. Eu gosto desse movimento, eles ocupam praças e ruas, recitam bem, tem muito vigor. PEQUIÁ | A editora, a circulação, a mídia tradicional, os prêmios de poesia são importantes ou não para os jovens poetas? As redes sociais bastam? CELSO | A maioria dos premiados se sente valorizada, isso é legítimo. É importante quando existe um reconhecimento. Mas não podemos ficar o tempo todo preocupado com isso, como acontece com a maioria. Todos somos, em algum nível, vaidosos, mas temos de lutar para que a vaidade não seja maior do que aquilo que a gente escreve. Devemos estar sempre atentos para não ficarmos refém dela e da busca doentia pelo sucesso.
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Festival Grito Pro Rock 2 Circo da Cidade, João Pessoa, março de 2011
Quanto às redes sociais, também são importantes, devemos ocupá-las com qualidade. Mas eu continuo adorando os livros de papel, gosto do cheiro, do toque, do objeto. Quero que as pessoas que adquiram meus livros tenham prazer em abrilos, em tocá-los e se tornem, de alguma forma, mais humanos com isso. PEQUIÁ | Você fez letras para Zeca Baleiro, Fagner e Chico César. Fale dessas parcerias. CELSO | Poucas coisas me dão tanto prazer quanto escrever canções com outros artistas. Porque há ali também um afeto, uma comunhão e cumplicidade com o outro, além do prazer de ver música e poesia juntas. Tenho um carinho enorme
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por meus parceiros mais freqüentes: Zeca Baleiro, Assis Medeiros, Alê Muniz, Nosly, Marcos Magah e o querido Gerson da Conceição, que perdemos recentemente. Cada um deles, apesar de ter uma pegada pessoal, tem uma musicalidade que me comove. Adoro estar com eles e fazemos canções de diferentes formas. A minha preferida é quando sento ao lado de cada um, às vezes com a letra quase pronta, outras vezes inventando novos versos durante o encontro. E depois de alguns minutos, eis o milagre de podermos tocar no violão e ouvir uma nova canção pronta. Que maravilha! PEQUIÁ | Você também editou a revista Pitomba... CELSO | Na verdade, a Pitomba foi uma revista que teve apenas seis edições, entre 2011 e 2013. Eu era um dos editores, juntamente com Bruno Azevedo e Reuben da Rocha. A revista era uma publicação marcada pela pluralidade de linguagens; poesia, prosa, fotografia, quadrinhos, artes plásticas, etc. Publicávamos basicamente artistas do Norte e Nordeste, uma reação ao monopólio do eixo Rio - São Paulo. Sempre gostei de revistas culturais. Nos anos 1980, participei como coeditor de duas outras publicações: a Guarnicê, entre 1983 e 1986, e a revista Uns & Outros, da Akademia dos Párias, entre 1984 e 1988. PEQUIÁ | Como está hoje o contexto da literatura maranhense? CELSO | Nossa literatura contemporânea tem muita potência, principalmente a poesia. Posso fazer uma lista de vários nomes que escrevem bem hoje no Maranhão. Além daqueles já citados anteriormente, que vivem em São Luís, temos também poetas de outras cidades, como Carvalho Júnior (Caxias), Kissyan Castro (Barro do Corda) e Paulo Rodrigues (Santa Inês). Na prosa, também, Bruno Azevedo,
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José Ewerton, Wilson Marques e Samarone Marinho. Há quem transite em duas linguagens, prosa e poesia, como é o caso de Samarone. E Diego Dourado, que é poeta, performer e artista visual. PEQUIÁ | O Brasil hoje está dividido desde as últimas eleições. Como a poesia sobrevive nesse contexto?
Celso Borges desenvolve projetos de poesia e música no palco
CELSO | Com fascismo ou não, a poesia está sempre viva. A gente escreve, cria, berra porque morre se não fizer isso, independentemente de qualquer sistema de governo. PEQUIÁ | O governo Bolsonaro já censurou o cinema, o teatro, as artes plásticas e até a literatura na última bienal do Rio. Como você analisa esse cenário? CELSO | O governo Bolsonaro é deprimente. E pensar que mais de 50 milhões de brasileiros
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votaram numa pessoa como ele, tosca, despreparada, Quero que as pessoas que beira a idiotia. que adquiram meus livros tenham prazer em abri-los, Mas não estou em tocá-los e se tornem, pessimista, acho de alguma forma, mais que ele tem os dias humanos com isso contados. Fogo nos fascistas!, como diz o querido Chico César. PEQUIÁ | O acesso à leitura e o número de leitores no Brasil ainda é pequeno. Como investir na formação do público, principalmente de poesia? CELSO | O caminho passa necessariamente pela educação básica, de boa qualidade, principalmente nas escolas públicas, além de bons salários para os professores. Tudo isso a gente já sabe, fala há muito tempo. É um trabalho de muitas gerações. No campo individual, procuro demonstrar verdade e entusiasmo por onde ando, nos encontros com estudantes e professores. Procuro passar e vivenciar a literatura como algo que dá alegria e prazer. PEQUIÁ | Qual é o seu cânone de poetas de hoje e do passado? CELSO | É um caldeirão muito diverso. Pessoa, Whitman, Drummond, Cabral, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Maiakovski, Leminski, Vasko Popa, Hilda Hilst, Bishop, Augusto e Haroldo de Campos, Gullar, Nauro Machado, Auden, Ginsberg, Bukovski, Akmatova, Herberto Helder e os contemporâneos Ricardo Aleixo, Matilde Campilho, Carlito Azevedo, Marcelo Montenegro, Manoel Ricardo de Lima,
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Carlos Augusto Lima, Micheliny Verunschk. É uma lista enorme, tô esquecendo de vários essenciais. PEQUIÁ | Numa entrevista a Folha de S. Paulo, Milton Nascimento disse que a música brasileira estaria uma merda... CELSO | Milton foi muito infeliz nessa declaração. A gente tem de saber ouvir e saber onde encontrar música de qualidade. Nas rádios comerciais e nas TVs abertas dificilmente vamos encontrar. É preciso alimentar alguma curiosidade para poder enxergar e ouvir o novo. Muita gente vai perdendo isso. Pra literatura e poesia vale o mesmo discurso, guardadas as devidas proporções, já que a penetração da música é muito maior. Existem muitos bons poetas Brasil afora, em todos os estados. Tenho procurado dialogar com alguns deles. Participo com alguma regularidade de projetos em várias cidades. Não podemos ficar presos só ao cânone do passado. Viva o presente e os artistas que vivem intensamente o seu tempo!
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O poeta da Via Láctea entre nós Texto | José Anderson Sandes
Quando falamos em parnasianismo, logo, logo lembramos um nome que ainda hoje cintila em meio a tantas mudanças tecnológicas, lógicas e científicas: Olavo Bilac. O Príncipe dos Poetas Brasileiros vive entre nós. É que, muitas vezes, mal o reconhecemos. Ou melhor, mal sabemos que muita poesia, numa intertextualidade ou hipertextualidade sem fim, vem desse parnasiano, cronista, autor do hino da Bandeira Nacional, de livros infantis e de tantos textos mais do que nunca vivos na nova teia literária do chamado pós-modernismo. Arnaldo Antunes, por exemplo, pega carona em Bilac e se inspira numa das mais célebres poesias dele em “Eu sonhei com você”. “Ora, direis ouvir estrelas/Perdeste o senso meu bem/Ou tudo foi brincadeira/. Me deixe saber o
que os anjos sentem por lá./ Mas fale bem perto, baixinho, para eu não acordar”. Ou o nosso Belchior que, em sua bela Comédia Divina Humana, canta: Eu quero é gozar no seu céu/ pode ser no seu inferno/ Viver a Divina Comédia humana onde nada é eterno/ Ora direis, ouvir estrelas, certo perdeste o senso/Eu vos direi no entanto: enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não/ Eu canto. Assim como Belchior e Arnaldo Antunes de hoje, o Bilac de ontem escreveu em seu poema mais conhecido: “Ora (direis) ouvir estrelas/ Certo (perdeste o senso)/E eu vos direi, no entanto/, que para ouvilas, muita vez desperto/, e abro as janelas pálido de espanto/. E conversamos toda a noite/, enquanto a Via-Láctea, como um pálio, Cintila/. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto/, indo às procuro pelo céu do deserto”. Três poetas perdidos no tempo e no espaço, mas ligados pela beleza da literatura e da poesia. Num mundo em profundas transformações tecnológicas. Como também era o de Bilac. A vida de jornalista de Olavo Bilac foi intensa, bem como sua trajetória como poeta. Foi o principal nome do parnasianismo, ao lado dos poetas Alberto Oliveira e Raimundo Correa. Para Otto Maria Carpeaux, foi o movimento poético de maior repercussão no Brasil no último terço do Século XIX e dos começos do Século XX. Carpeaux cita na sua “Biografia Crítica da Literatura Brasileira” que Bilac foi o poeta mais citado e, sobretudo, mais imitado do Brasil, responsável pelo predomínio do soneto parnasiano. Mesmo com o advento do modernismo – movimento cultural que tentou desqualificar os parnasianos - “o ritmo das edições dos livros de Bilac demonstrou que o público permaneceu fiel ao poeta”. Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac nasceu no Rio de Janeiro, em 16 de dezembro de 1865.
Filho do cirurgião do exército, Brás Martins dos Guimarães e de Delfina Belmira Gomes de Paula. Talvez por influência do pai militar, cresceu ouvindo histórias de hinos – ele abraçou, na vida adulta, campanhas como a do serviço militar obrigatório e a da alfabetização. Nacionalista, fundou a Liga de Defesa Nacional, quando realizou várias conferências cívicas pelo País. Nosso poeta da Via Láctea também escreveu livros e poesias infantis. Esqueceu a complicada estrutura frasal do parnaso e chegou aos corações infantis numa linguagem simples, fugindo das bruxas e dragões, monstros que punham medo nas crianças. Seus temas eram Tenho a maior satisfação em outros: trabalho, declarar que, sofrendo de fé, natureza, dever, uma bronquite pertinaz, fiquei pátria – histórias em radicalmente curado com o que “a bondade é uso do Bromil louvada e premiada”, escreveu ele ao explicar seu conceito de literatura infantil. A passagem do Século XIX para o XX e do XX para o XXI têm lá suas conexões. O passado não deixa de empurrar o presente. No XIX para o XX, vivíamos as maravilhas das novas tecnologias e de profundas mudanças urbanas – quem não se lembra do põe abaixo do prefeito Pereira Passos no Rio, mudanças que, em suas crônicas na Gazeta de Notícias, tanto defendeu Olavo Bilac. Eram tempos do cinematógrafo, do fonógrafo, das Marinonis (rotativas), os daguerreótipos, do linotipo – novas tecnologias envolviam o imaginário social. É também do alvorecer da grande imprensa – Gazeta de Notícias, O País, Jornal do Brasil, Jornal do Comércio, Correio da Manhã e tantos outros. Ali também começou a se consolidar, ainda na
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plataforma do jornal impresso e também do livro, nosso sistema literário. Foi nessa época de intensas mudanças que Bilac pontificou, também, como grande cronista da Gazeta de Notícias, jornal carioca criado por Ferreira de Araújo, um dos responsáveis pela modernização da imprensa brasileira. Em 1987, Bilac assume o espaço que era de Machado de Assis. Um espaço muito desejado por ele, não pelo dinheiro, mas pela busca da fama, para ficar ao lado de grandes escritores, como Coelho Neto. Lá escreveu por mais de vinte anos. Segundo um dos seus estudiosos, o professor Antônio Dimas, suas crônicas, ao contrário de Machado, tinham um “olhar bisbilhoteiro e nem sempre certeiro”. Crônicas ideologicamente irregulares, segundo Dimas, “fato compreensível para quem não se pautava por credo único, religioso ou político, apontando ora para soluções reacionárias, ora identificadas com o sistema vigente ou para a sua contestação”. No cenário na belle époque, Olavo Bilac disparava suas crônicas nada “certeiras”, ou melhor o que chamamos hoje de politicamente incorreto. Em uma delas, escrita em 1907, Olavo Bilac fala da imprensa, ou melhor, de como qualquer governante – de hoje ou de ontem – julga nossa brava imprensa. Isso quando ela não favorece aos donos do poder de plantão. “Deodoro lia todos os jornais: quando neles achava alguma agressão ao seu governo, ficava sufocado de ira. E, assim que se abria a sessão do conselho de ministros, o ditador insinuava, mostrava, aconselhava, impunha a necessidade da repressão”. Nada mais atual do que hoje. Ou não? Tanto ditaduras quanto democracias tentam desestabilizar o jornalismo. E naquela quadra histórica, o jornalismo brasileiro já tinha trocado as calças curtas do Século XIX e vestia paletó e gravata. Ou seja, já tinha consciência do seu papel
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social. E Bilac era engajadíssimo nas causas da República nascente. Em outra crônica, Olavo Bilac chama a atenção de um problema tão nosso – de ontem e hoje - a educação. Isso no limiar da República, questão que, infelizmente, ainda é um problema crônico do Brasil republicano. A crônica foi escrita também na Gazeta de Notícias, de 1905: “Não sei se o regime republicano pode florescer e frutificar bem, num país que conta no seu seio mais de dez milhões de analfabetos... O melhor meio de honrar o regime e honrar quem o fundou, é associar à memória do fundador à obra santa da instrução primária”. O voto era proibido para os analfabetos, mas numa outra crônica da Gazeta, nosso poeta parnasiano assinalava “o que importa é que todo o homem válido, sabendo ler e escrever, queira desse modo afirmar a sua vontade de ser cidadão, ser eleitor, de ser alguém”. Bilac colaborou com dezenas de veículos, quase todos do Rio e São Paulo. Além da Gazeta de Notícias, ele passou pela A Bruxa, A Cigarra, Kosmos, Correio Paulistano e O Estado de S. Paulo. Em todos deixou sua marca, seu discurso, sonetos e versos fesceninos. O poeta ganhou a vida ainda como publicitário – reclames em formas de versos para fábricas de velas, fósforos, lojas de tecidos e medicamentos. E cobrava bastante caro quando o reclame tinha a sua assinatura. Um dos mais famosos é do xarope Bromil: “Tenho a maior satisfação em declarar que, sofrendo de uma bronquite pertinaz, fiquei radicalmente curado com o uso do Bromil”, assinalava o cartaz em letras garrafais com a foto e assinatura de Bilac, veiculado em jornais e revistas do País. Olavo Bilac nunca se casou. Seu grande romance com Amélia de Oliveira, irmã do poeta Alberto de Oliveira, não chegou a um final feliz, segundo biógrafos de Bilac, por oposição de outro irmão de
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Alberto, que suspeitava que Bilac seria “um homem arruinado”. Bilac nunca concluiu nem Direito, nem Medicina, duas profissões que almejava na mocidade. Preferiu ser o poeta da Via Láctea. E viver sozinho até o final da vida. Seu amigo, o cearense Antonio Sales, conta que ele nunca esqueceu Amélia e atribuía o fracasso de sua vida sentimental a esse afastamento no poema “Maldição”. Próximo à morte, o poeta se refugiou de amigos e do trabalho. Num rápido encontro com Antônio Sales, disse: “Quando me olho no espelho tenho Malditas sejas pelo ideal perdido! Pelo mal que fizeste sem querer! Pelo amor que morreu sem ter nascido! Pelas horas vividas sem prazer! Pela tristeza do que eu tenho sido! Pelo esplendor que eu deixei de ser!
nojo da minha cara”. Sales explica o motivo: “Pude ver como ele estava com as feições alteradas pela desordem da circulação consequente à miocárdia que o matava aos poucos. A deformação não era, aliás, tão notável; apenas uma certa vermelhidão e turgescência no rosto. Mas era o bastante para o entristecer de seu aspecto. Isso fez supô-lo atacado de lepra, o que é inteiramente falso.” Olavo Bilac faleceu em 28 de dezembro de 1918. A literatura nunca é provisória, mas sim permanente. E neste Século XXI, também de tantos ‘ismos’, permanece viva a poesia de Bilac interpretada e reinterpretada na academia e por novos poetas. Seus livros permanecem em circulação, seja no meio físico ou digital. Novos, velhos tempos. O tempo não pára.
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MARTA EUGÊNIA
Ilustração: Letícia Lima
Post Scriptum A mesa sustenta livros, papéis, canetas e xícaras sujas de café... - Mãe, cadê as meias? Tenho jogo logo cedo! Então paro de escrever a poesia E começo a fazer poesia tirando meias do varal.
Certas Coisas na Janela Meu pai, homem de poucas palavras, possuía uma certa ingenuidade cabocla, mas nós víamos bússola em seus olhos. Lembro-me de suas risadas quando pra ele eu lia sobre um auto e uma compadecida. Depois, nos lembrávamos de nossa terra. Histórias de João cambão da Costela do Cão que passava na rua e a criançada gritava em refrão: ‘João cambão, Costela do Cão, trocou a mulher por um pedaço de pão’. Certas coisas sempre voltam quando abro a janela. Marta Eugênia publicou o livro “Tanto Quanto” (Multifoco, 2015). É poeta e professora. Desde 2017 media o circuito de autores do projeto Arte da Palavra, em Arapiraca e Palmeira dos Índios.
ANIELLE OLIVEIRA
Sobre Nossos Sons e Só
Ilustração: Júlia Marques
Sua voz é um prenúncio lindo Que nem os primeiros chilreios do dia Os ruídos da espera por você Desde o desejo até sua aproximação Meu ouvido ansioso A sinfonia dos suspiros A suave percussão em seu peito Me concentro em cada sussurro Até seu bocejo tão íntimo
Quero todos os sons de sua pele Nossos corpos conversam A melodia de nosso abraço Respiração ofegante Soa como canção Da paixão e seus sons Quero nunca deixar de escutar Seu tom de quando diz meu nome A afinação de nossos beijos Suas mãos sobre mim É um eterno ajustar de acordes. Sob(re) o Céu e Limites Através da grade, O azul banhando o pequeno jardim. Flores, folhas, o verde represado Por metal e cimento. O céu está bem ali, azul, vibrante. A gaiola não nos impede de vê-lo e sentir a brisa que entra pela janela, A menos que nosso foco pouse sobre o gradil e as paredes. Se olharmos, contudo, por entre os espaços, Veremos que a imensidão nos pertence. Os limites querem dizer, Mas só dirão se permitirmos. Anielle Oliveira é doutora em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia. Analista em Literatura no Sesc Bahia, desde 2018, atuando na curadoria e produção de projetos de literatura e cinema (Flipelô, Arte da Palavra e Cine Sesc).
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DÉBORA ARRUDA
Para que Nunca se Esqueça colonizaram o nosso país invadiram as nossas mentes dominaram a nossa quebrada mas conquistamos independência porque a nossa revolta também é armada os cadernos viraram escudos e as canetas, munição enquanto derramam o nosso sangue pelas ruas a gente transforma as nossas lágrimas em ação
falam que somos a pior coisa que existe dentro da cidade mas sabemos quem é que fede e o que é o verdadeiro lixo dessa sociedade estamos vendo merda e sujeira todos os dias mas ainda não encontramos nada tão podre
Ilustração: Espedito Duarte
dizem que estamos paradas e que pobre não presta pra nada respeitem os calos dos nossos pés! andamos muito, não tivemos tempo para ficar esperando sentada
quanto a burguesia sabemos do que somos capazes pois antes de vocês nós já estávamos por aqui homens brancos e ricos exterminadores da nação destruíram a nossa cultura e a matança foi chamada de salvação enquanto vocês passaram cinco anos na faculdade de engenharia civil nossa sabedoria ancestral nos fez mestres de obras muito antes dessa terra ter o nome de brasil falam que a nossa produção não tem qualidade mas foram as nossas mãos que levantaram toda essa cidade PARA QUE NUNCA SE ESQUEÇA não foram as balas de borracha que apagaram a nossa história foram tiros de metralhadora que ainda ecoam na nossa memória é muito fácil você vir me dizer
que eu só falo de dor e de violência se pra você, que mora na 13 de julho o sinônimo de luta é estender uma bandeira na janela da sua “humilde” residência vocês têm medo, por isso não saem dos seus prédios passam a vida dentro de carros com vidros fechados mas saibam que é privilégio ficar reclamando do tédio vocês nem sabem o nome do bairro onde moram as suas empregadas ela é como se fosse da família mas enquanto cês tão na mesa ela tá sentada no chão comendo os restos do patrão
Débora Arruda é natural de Aracaju (SE), formada em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) é professora, escritora e poeta. O contato com a poesia começou dentro de coletivos como o Sarau de Baixo.
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Ilustração: Letícia Lima
deixamos de ser submissas agora somos nós as protagonistas das nossas vidas criaremos um novo destino jamais visto na terra vamos trazer a nossa versão dos fatos por que dessa vez nós é quem vamos vencer a guerra.
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CELSO BORGES
Feminina pra Nina Horta, que me ditou essas lições naqueles dias o leite pode talhar a gordura ficar rançosa a carne apodrecer melhor não entrar na dispensa naqueles dias para não mofar o mel o vinho os legumes
naqueles dias talvez o fogo apague os efeitos dos fluidos femininos é aconselhável não tocar em cremes doces molhos tudo que é liga ou emulsão sem fogo desanda a maionese o chantilli as claras em neve naqueles dias embaçam os espelhos cortam o brilho do marfim escurecem o cobre pepinos e abóboras murcham naqueles dias cebolas choram e a natureza feminina é mais forte que o sal não podem lavar roupa, ir ao cabeleireiro (o penteado não pega) devem evitar o frio naqueles dias cresce o desejo sexual
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Ilustração: Mychelle Santos
os estrumes perfumam as saias dos demônios naqueles dias melhor só tocar no que é seco as coisas úmidas podem se deteriorar não se deve matar os porcos principalmente os com acima de 100 kg que levam um ano para crescer
e não há registro nos almanaques femininos se há mais ou menos poesia naqueles dias naqueles dias melhor não evitar a poesia Paraíso talvez um dia quando o buraco dos olhos vazar pelos pregos enferrujados do amor a gente possa cobrir o rosto dos sonhos com o véu que eva secou as línguas de adão Celso Borges é poeta, letrista e jornalista. Confira entrevista na página 22.
C
urta o onto
Um sol morto se arrasta Bruno Ribeiro Te amo. Encarei o espelho e repeti esta frase quatro vezes. Contei minhas rugas, penteei o que restou dos cabelos brancos, adentrei nos olhos moribundos que me fitavam. Ainda vivo. Havia poeira e cuspe no espelho. Atrás de mim, mictórios quebrados e moscas no ar. Saí, o sol queimou aquilo que chamo de visão. Fui até o posto de gasolina, pedi pra encher o tanque. Entrei na loja de conveniência e comprei duas latinhas de cerveja. 6 reais. O frentista tinha espinhas na cara, era rosado, virgem. Paguei, agradeci e entrei no Chevette. Liguei e acelerei, um cheiro de enxofre vazava do cano de escape. Liguei o som: Erasmo Carlos. Balancei a cabeça e deixei que seus acordes conduzissem o percurso. Chego na casa dela de meio dia. Bato na porta uma vez. Ela abre prontamente. Sempre em ponto, ela responde mastigando um chiclete. Odeio atraso. Por isso abro a porta na hora. Tu bebeu? Entro com tudo, deixo ela falando sozinha. Ela segura meu ombro. De bêbado eu cobro mais caro. Cê sabe. Cobra o que quiser, não enche. Tiro a roupa. Ela também. A casa é pequena, o
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quarto fazia parte da cozinha que fazia parte da sala que fazia parte do banheiro que fazia parte do todo, incluindo nós dois. O corpo negro da mulher se fundiu com a penumbra da casa e os feixes de luz solar que entram pelas frestas das cortinas perfuram pedaços chaves da nossa carne. Aqueles pedaços escondidos. Ela dança ao som de uma música sem som. Eu choro. Te amo. *** Em casa, bebia uísque e fumava cigarros. Matei duas carteiras. Ao meu redor um vazio de móveis, cheiro e essência. Eu, sentado num sofá velho que estava encostado em uma parede branca, descascada, mofada. Um calor tremendo. Duas da tarde. Meu corpo envelhecido e ébrio suava. Olhos piscando. Preparei cinco linhas e cheirei. Ardeu o nariz. Nevou no inferno. *** Saí para comprar mais cocaína. Na rua de sempre, esquina com paredes pichadas, cheia de michês traficantes com sungas enfiadas até o fim da curva, novinhos de universidade, fanáticos por dinheiro e bens materiais, loiros e brancos, negros e trançados, suados, um convênio de anjos tiranos, belos horrendos. Um deles, o maior e mais novo, se aproximou do carro. Lambi os lábios. Sinto. Pecado da glande. Nariz arrepiado de química e sexo. Peguei meu colar com um pingente de crucifixo e beijei-o. O rapaz colou na janela do Chevette. Cheiro de algodão doce, olhos de coruja, lábios molhados & lábios que perguntam algo que não escuto, pois não estou aqui, estou lá no sol quente, no suor que desce da testa, ensopa, pinga, molha o banco, asfalto, quarteirão, bairro, etc.
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O senhor tá surdo?, o anjo grita. Desculpe. Vai querer quanto? 30. O moleque enfiou a mão na sunga, deixou os pentelhos negros à mostra e arrancou do vão do seu escrotal, umedecidíssimo, o pacote. Peguei em silêncio e lhe entreguei o dinheiro. Vai querer mais nada não, senhor? Não. Acelerei o carro ao som de seus uivos debochados. *** Você me ama?, perguntei. Amo tanto que assim que sinto o cheiro do seu carro minha buceta começa a pingar. Você consegue gozar comigo? Gozo tanto que meus gritos espantam todos os urubus que sobrevoam a área. Não sobra um. O colchão lembrava um oceano, tamanha a quantidade das ondas de suor derramadas. Suor de tensão, não de tesão. Ela agarrou meu pau. Sua mão negra desceu e subiu, subiu e desceu. Ela enfiou a bocarra e o engoliu. Senti o estalo da sua goela. Te amo, disse. Hmmmmmmmm... Pelas cortinas da janela vi os fios amarelados purificarem nossas peles diferenciadas pelo tempo. Te amo de verdade. Hmmmmahammmm... Ela para de chupar e diz que terá que aumentar o preço. Inflação, crise, menino no colégio, feijão subiu o preço, médico, sabe como é, diz. Te amo. Tá.
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*** Um cachorro começou a me seguir. O chamo de Au Pacino. Peguei o pacote e cheirei: Deus enfiou o dedo lá dentro do meu nariz. Excitei-me. Chorei. Brochei. Caí de joelhos. O cachorro me abraçou. Tentei passar umas linhas para ele, mas Au é do tipo saudável. Entre uma cheirada e outra, meu nariz sangrou. Lambi o vermelho como canibal, bicho; o sangue tinha gosto de aço. Joguei o pacote fora. Terminei de desmontar alguns carros e aguardei. Geralmente chegavam alguns bandidinhos pé de chinelo com carrões. Eles sabiam que no meu desmanche eu ajeitava tudo. Arrancava o que tinha que arrancar e deixava o que tinha que deixar, mas neste dia não chegou ninguém. Ficamos eu e Au Pacino observando o sol, redondo tirano, descer com sua hecatombe fervida, fugindo do inferno que criou na terra, escorregando até deixar de existir e ser substituído pelo negrume da noite, que vem acompanhado da lua minguante e algumas pouquíssimas estrelas que ousavam iluminar este fim de mundo onde vivemos. Au Pacino latiu e eu sorri. Estávamos felizes. Era hora de vazar desse trampo insistente e exaustivo. Meu filho que mora lá no sul diz que eu devia me aposentar. Aposentar como? O povo acha bonito ver velho trabalhando. Olha só que exemplo, que bonito, que saudável. Eles acham lindo ver gente morrendo de tanto servir aos patrões sem rosto. Tô cansado, viciado, doente, digo isso ao meu filho, tô com artrite até no rabo e você não sabe de porra nenhuma. Fica aí no seu apê luxuoso, papai é homem trabalhador, certo?, é isso que você e os seus amigos de terno exaltam, curtem ver as rugas e pelancas ralando e se quebrando. Não existe
Ilustração: Júlia Marques
mais aposentadoria neste limbo, já era. E é sério que você, justo você, vem falar de aposentadoria comigo? O que vocês fizeram é de uma escrotidão... Aí ele manda um beijo pra mim e desliga. Cuspo no chão: sai preto. Entrei no carro com o Au Pacino. Liguei. Aumentei o som. Acelerei. Cheguei em casa, o cachorro começou a correr pelo espaço deserto de vida e móveis do lar. Sentei no sofá, único objeto vivo da minha casa, abri uma cerveja, acendi um cigarro, aguardei o sino da igreja tocar uma, duas, três vezes, para pontuar meia noite e eu poder simular um sono em paz. Um sono ou uma morte, tanto faz. Os sinos não paravam de tocar em minha cabeça, ecos de fé, eternos, desafinados, insones; nunca há silêncio nesta terra que se arrasta, nunca.
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Bruno Ribeiro ĂŠ um mineiro radicado na ParaĂba. Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF), foi um dos vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela Amazon.
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urta a rônica
Perder-se. Encontrar-se.
Marco Severo Li num conto da escritora argentina Silvina Ocampo que depois de muitos papéis rasgados, de objetos perdidos, de afetos desfeitos, a vida fica mais leve. Pensei sobre isso um instante e declarei em silêncio: perdas. Perdas necessárias. De imediato, lembrei de alguns percursos da infância. Haviam me dito que eu ia começar a estudar, e que isso era bom. Também me foi dito que eu ia fazer muitos coleguinhas e que a tia ia me ensinar coisas novas. Isso me foi dito pela minha mãe, que sabia do meu espírito curioso. Eu queria fazer novos amigos, mas fiquei desconfiado com essa história de tia – eu tinha várias, todas irmãs de minha mãe. Qual delas seria? Descobri muito rapidamente que era uma tia nova, que só me davam a conhecer naquele dia. Do corredor, ela me olhava com uma afeição profissional, e fazia um gesto com a mão, chamando. Por alguma razão, me senti ameaçado e disse não. Eu não queria ir. Meu pai sorria e dizia, Vai ser ótimo, meu filho, vá! Do outro lado do pátio, a mulher insistia para que eu fosse. Eu me agarrei às pernas do meu pai e abri uma choradeira que ecoava por todo aquele espaço repleto de cerâmica, colunas e um teto relativamente baixo,
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onde ficaríamos durante o recreio, eu descobriria pouco depois. Olhando de baixo para cima, meu pai era um gigante. Foi desse gigante que veio um abraço acolhedor: pronto, eu estava protegido, ninguém ia me obrigar a ir com aquela mulher. O que eu ouvi, no entanto, não era bem o que eu queria: Escute, meu filho: papai tem que ir trabalhar, você precisa ir com a tia Rosana. Na hora do almoço eu estou de volta e a gente vai almoçar em casa, tá bom? Mas eu tinha acabado de tomar o café da manhã! O horário de almoço parecia a mim que ia demorar tempo demais. Mas havia na fala do meu pai três palavras mágicas: eu estou de volta. Ele vivia dizendo que era o meu melhor amigo, e eu acreditei. Já levava comigo no peito a certeza de que melhores amigos não mentem. Nem desaparecem. O tempo passa. O natal se aproximava e eu disse ao Papai Noel que queria ganhar uma bicicleta. Tinha olhos para tudo, mas não vi quando meu pai e minha mãe receberam um bilhetinho onde estava escrito “bicicleta”, que foi o que acabei ganhando dias depois. E fiquei feliz porque aqueles ainda eram dias de contentamento. No dia seguinte, meu pai estacionou o carro na rua e trouxe a caixa da bicileta para dentro da garagem, onde uniu todas as partes com as ferramentas que tinha esclusivamente para este fim, ou assim queria meu coração de menino. Ele apertou bem as rodinhas laterais e disse, Agora vá andar por aí, conselho que me daria tantas vezes pela vida. E eu pedalei pela rua, porque aqueles também não eram dias de medo. Então chegou o tempo de sentir, já que não entendia, o desamparo. Clarice Lispector disse
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certa vez que somos livres, e este é o inferno. A multiartista Elke Maravilha tinha opinião mais contida: só somos livres para escolher a gaiola onde queremos estar. Percebi que vivia comigo um homem que havia escolhido ser pai ao longe. Muitos anos se passariam até que eu compreendesse o que vai na alma das liberdades individuais, e que existir de longe também é uma escolha. Aprendi a andar de bicicletas sem as rodinhas com um vizinho, a dirigir, anos mais tarde, com um professor de auto-escola. Era do conjunto dos meus desejos que meu pai fosse mesmo meu melhor amigo, como prometido desde sempre, mas o distanciamento se fazia no construto das solidões. Havia instantes em que ele se esforçava para estar lá, mas, sendo ele próprio um homem só, não sabia educar para ser junto, condenando forçosamente os que estavam no seu entorno ao mesmo destino. Observei com o passar do tempo que eu não era o único a crescer perdido. O filhote de uma vaca, de uma galinha, de um cavalo – todos aprendem a andar sozinhos, a se virar com poucos dias de nascido. O ser humano, não. Somos a única espécie completamente dependente de seres adultos para que não pereçamos. Mas perder-se também é caminho, e a gente se encontra é colocando pé ante pé – uma estrada gera outra estrada e, quando nos damos conta, uma jornada se fez. Guimarães Rosa nos ensina: quem elegeu a busca não pode recusar a travessia. O preço de querer existir é a necessidade da coragem. O tempo do aprendizado é longo e árduo, porque dura toda uma existência, um dia dei por mim. Antes desse dar-se conta, a cada esboço de amor vindo do sentimento paterno, a esperança vicejava. E eram tão bonitos, aqueles instantes-retratos: as
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Ilustração: Espedito Duarte
perguntas feitas a mim com um gravador diante do meu rosto, para que eu pudesse me reconhecer, tempos depois, na voz daquela criança; os LPs ouvidos juntos, enquanto meu pai tomava uísque e eu, refrigerante; o sagrado périplo aos sábados pelo centro de Fortaleza – e a certeza da recompensa de tanto suor ao final, quando tomávamos uma legítima cajuína – a inventada por Rodolfo Teófilo – geladíssima ao pé do balcão de um bar qualquer. Estávamos sempre juntos, mas fragmentados. Eu tinha para mim o pai possível. Desfiz-me, então, daquilo que pulsava como um coração onde na verdade era dor, para que a vida se tornasse, de fato, mais leve. Por esta compreensão foi que me tornei um homem de enfrentamentos: é a alegria e a coragem que fazem os dias parecerem felizes.
Marco Severo é professor formado em Letras/Inglês pela UFC. Tem contos publicados no Brasil e no exterior. Colabora com vários sites de literatura. É também orientador na Escrita Criativa.
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Brasil torto e arado Por Bibiana Belisário Torto arado, romance do baiano Itamar Vieira Júnior, carrega em seu cerne a metáfora de um país que nunca conseguiu resolver seus déficits sociais. Narrado a partir da perspectiva feminina, o autor conduz as vozes de Belonísia e Bibiana, personagens que vivem quase em simbiose, numa sedutora narrativa poética dividida em três partes. Itamar foi o vencedor do Prêmio LeYa de Romance no ano de 2018 e é o segundo brasileiro a arrebatá-lo, conquistando a mídia e crítica lusitana por unanimidade. O mineiro Murilo Carvalho venceu a primeira edição do concurso literário com o romance O rastro do jaguar. A obra que chega ao leitor brasileiro pela Ed. Todavia (SP) bebe da herança dos clássicos e aparece em consonância ao sertão de Guimarães Rosa, onde o mundo dos personagens, não é um lugar que transmite a miséria, mas sim o cenário ideal para a reflexão sobre o existencialismo da vida. Elaborada minuciosamente com uma carga de oralidade, utiliza-se da comunicação em sua dimensão mais humana para construção de um protagonismo aos que nunca os tiveram ou perderam pelas nossas desventuras, mostrando indiretamente que é na linguagem que a consciência amadurece. O pontapé da história se dá quando as irmãs Belonísia e Bibiana, por curiosidade, buscam uma mala misteriosa no quarto da avó Donana, personagem idealizada como uma entidade encarnada dotada de graças em mãos “capazes de entrar no ventre de uma mulher para virar
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com destreza uma criança atravessada, malencaixada, crianças com os movimentos errados para nascer”. Sob a cama está guardado o assombro que deixa um marco divisor na vida das personagens. O acontecimento termina por emudecer uma das irmãs e as tornam ligadas pelos sentidos que se aguçam, afinal “...a que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar”. Sob o influxo de um cotidiano estigmatizante, na fazenda Água Negra os trabalhadores viviam “como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o descanso”. As irmãs de ascendência escrava contam como foi nascer e crescer no seio de uma família de trabalhadores rurais no sertão baiano, onde mesmo depois de quase dois séculos da abolição, as práticas escravocratas e as opressões no campo, como a falta de recursos e opções, a grande mortalidade infantil e o sexo com fim reprodutor, são contextos que ainda fervilham em seu meio. Belonísia, de personalidade paciente e tolerante, permanece ao lado do pai - Zeca Chapéu Grande, a haste que sustenta a fazenda e carrega a vitalidade da germinação com seu dom de curar a saúde do espírito, o corpo dos aflitos e a mente dos perdidos. Enquanto isso, Bibiana se descobre refratária àquele mundo de exploração, seguindo outro rumo que lhe custa grandes despedidas. Com toda atemporalidade que Torto Arado carrega, o elemento que os une é a morada da terra no peito de cada um, que “brotou e enraizou”, transpassando as personalidades contrastantes em seus modos de viver, mas de naturezas impecáveis no enfrentamento de suas escolhas. Nas redondezas da fazenda, a prática do Jarê, vertente religiosa conhecida como Candomblé de Caboclo, é um respiro comum. Os personagens coexistem nos fortes laços das matrizes africanas e comungam em noites de ritos que mesclam elementos das culturas negras, portuguesas e indígenas. O encantado apresenta-se
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como seus mentores espirituais e os alivia da atmosfera de adaptação ao inóspito que nunca parece sair de cena. Em uma das celebrações no Jarê de Zeca Chapéu Grande, a entidade Santa Rita Pescadeira se apresenta. Parece caminhar junto a narrativa inteira como o seu próprio espírito. A última parte do livro, onde as linhas se dão pelos olhos da encantada, vem carregada de críticas às imposições religiosas que até hoje sofrem as comunidades quilombolas. Um pastor - candidato a vereador -, chega ao povoado para celebrar um culto, segregando culturalmente e gerando impactos diretos na identidade coletiva do lugar. O romance político traz uma procissão de lembranças ainda acesas da subserviência que nunca se desassociou do imaginário de um Brasil sentenciado ao atraso, que partilha as sobras de um sistema apartado. Itamar conseguiu transitar em realidades. Passado, presente, arcaico, moderno. Mostra a condenação de um destino nacional nunca revogado e traz o eterno embate com os antagonismos brasileiros, mostrando a fertilidade da paisagem para os sensíveis explorarem. A voz autoral imposta pelo autor se sobressai como um novo horizonte clareando a cena atual da literatura brasileira. O lirismo envolvente em sua narrativa ensina a maneira de ser observador de seus próprios personagens, escorrendo até o limite entre os mistérios que ali povoam. Bibiana Belisário é gestora cultural e estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri - UFCA.
Serviço Torto arado Itamar Vieira Júnior Editora Todavia. 264 páginas. R$ 43,92
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Livro: Os Miseráveis Autor: Victor Hugo Editora: Cosac Naify Edição do bicentenário de Victor Hugo (18021885). Um panorama completo de Paris e da França em meados do século XIX. O fio condutor é o personagem de Jean Valjean. Por ter roubado um pão para alimentar a família, ele é preso e passa 19 anos na prisão. Solto e tomado de ódio por causa da rejeição social que experimenta, é acolhido por uma noite por um bispo. O encontro transforma radicalmente sua vida e, após mudar de nome, prospera como negociante de vidrilhos, até que nova reviravolta o reconduz à prisão.
Livro: Habeas Asas, Sertão Do Céu Autor: Arthur Martins Cecim Editora: Record Romance mítico, em que as vidas dos homens são complexificadas com as vidas dos pássaros. Habeas Asas, sertão de céu! é uma parábola, na qual elementos sagrados e profanos, mundanos e supramundanos, coexistem como um só, vistos no mesmo espelho da alma. O livro é uma busca pela bem-aventurança na terra. Ele fala de um sertão da alma, que habita em todos nós, todos os seres do universo. Livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2010.
Livro: A Bala na Agulha Autor: Marcelo Rubens Paiva Editora: Siciliano Ex-garoto de programa no Brasil, Thomaz é um traficante de oportunidade em Nova York. Apesar da atividade de risco, ele se aborrece numa vida sem emoções. Se sente estagnado, frustrado, e anseia, pela primeira vez em muitos anos, por uma mudança que o tire da mesmice. A agitação que tanto queria chega como um furacão, trazendo uma reviravolta de conseqüências perigosas para sua vida. Thomaz passa a ser perseguido e se vê envolvido num brutal assassinato em Manhattan. O jovem precisa escapar de uma grande conspiração que se armou contra ele.