Revista Pequiá 5a. ed.

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ANO 2 EDIÇÃO 05

Pequiá

Literatura Sesc

TÉRCIA MONTENEGRO

Experimentações na literatura e na vida


A revista de literatura Pequiá, uma realização do Sistema Fecomércio - CE em parceria com a Universidade Federal do Cariri, através da PROCULT, chega a seu segundo ano mantendo o mesmo compromisso de ser esse elemento de estímulo à leitura e difusão da literatura. No primeiro número de 2019, conhecemos o trabalho do poeta de rua Daniel Viana, numa conversa sobre escrita criativa, arte de rua e literatura enquanto forma de resistência; outro destaque é a entrevista da escritora Tércia Montenegro, que fala de sua trajetória e do percurso de seu trabalho entre a palavra e a imagem; temos, também, as contribuições do professor Tiago Coutinho, com sua Iracema transviada; da jornalista do Jornal O Povo, Isabel Costa, com a resenha do livro A Origem do Mundo, da sueca Liv Strömquist; do poeta sergipano Pedro Bomba, que nos presenteia com dois poemas inéditos; da poeta Thailyta Feitosa, com sua poesia viva; do professor Luís Celestino e do escritor Ronaldo Salgado, que nos trazem conto e crônica, respectivamente. Nesse mosaico, a Pequiá constrói o diálogo com as vozes da escrita do Cariri, do Ceará, do Nordeste, do Brasil, matéria-prima do tecido dessa rede de afetos da nossa arte da palavra. Assim, o Sesc assume seu papel social e, por meio das ações do Programa Cultura, democratiza o acesso aos bens culturais, em uma publicação de qualidade, onde as pessoas encontram bons instantes de fruição em torno da literatura, essa forma privilegiada de encarar o mundo. Boa leitura a todos!

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EXPEDIENTE Edição 5 | Junho/Julho 2019 FECOMÉRCIO | SESC

DEPARTAMENTO REGIONAL DO SESC/ AR-CE

Presidente: Maurício Cavalcante Filizola Diretor Regional: Rodrigo Leite Rebouças Diretora de Programação Social: Patrícia Carnevalli R. de Paiva Diretora Administrativa: Débora Sombra Costa Lima Diretor Financeiro: Gilberto Barroso Frota Gerente do Programa Cultura: Chagas Sales Nogueira Lima Coord. Regional do Programa Cultura: Maria Bezerra UNIDADE CRATO DO SESC Gerente: Heliane Pereira Aragão Supervisor de Cultura: George Belisário Técnicos do Programa Cultura Sesc Crato: Suzana Carneiro (Técnica de Cultura), Gabriel Campos (Técnico de Cultura), Socorro Dantas (Bibliotecária), Talita Rocha (Auxiliar de Biblioteca) e Raflesia Custódio Dias Bezerra (Assistente de Biblioteca) UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA Reitor: Ricardo Luiz Lange Ness Vice-Reitora: Laura Hévila Inocêncio Leite Pró-Reitor de Cultura: José Robson Maia de Almeida Coord. de Política e Diversidade Cultural: Gustavo Ramos Ferreira REDAÇÃO Repórter: Paulo Rossi Colaboradores: Adler Sousa, Isabel Costa, Jayne Machado, Luís Celestino, Pedro Bomba, Ronaldo Salgado, Thailyta Feitosa e Tiago Coutinho Curadoria: George Belisário e Gustavo Ramos Projeto Gráfico: Estúdio Caravelas / Hanna Menezes Diagramação: Paulo Anaximandro Tavares Foto de capa: Coletivo Colher Ilustrações: Espedito Duarte, Júlia Marques, Marcello Nunes e Thamyres de Souza Revisão: Márcia Leite e Paulo Rossi Professor Orientador: José Anderson Sandes Coordenação Editorial: George Belisário REVISTA PEQUIÁ (SESC CRATO) Rua André Cartaxo, 443 – Palmeiral Crato/CE CEP: 63100-555 Telefone: (88) 3586-9163 E-mail: gbelisario@sesc-ce.com.br Tiragem: 1000 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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Tércia Montenegro fala sobre sua trajetória, infância, prêmios, influências literárias, seu primeiro romance, Turismo para Cegos, e conta um pouco de sua próxima obra.

06 O escritor Daniel Viana conversa sobre sua escrita, processos criativos, oficina ministrada no Sesc Crato, arte de rua e literatura enquanto forma de resistência.

22 O professor Tiago Coutinho escreve sobre sua tese de doutorado, a respeito do livro Iracema, de José de Alencar, desconstruindo o mito de fundação do Ceará.

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O caderno de poesias traz poemas de Pedro Bomba e Thailyta Feitosa. Em Curta o Conto leia “Dois”, escrito pelo professor Luís Celestino; e em Curta a Crônica, “Nos tempos do Bel Air”, do professor Ronaldo Salgado.

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Leia resenha escrita por Isabel Costa do livro A Origem do Mundo – Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva VS. o Patriarcado, de Liv Strömquist.

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Em busca de novos leitores Muito se fala que o brasileiro lê pouco. Diante das estatísticas frias, de fato o País não alcança o patamar de índices de países desenvolvidos. Ao mesmo tempo, são muitos os projetos que contemplam toda a cadeia em torno do livro, principalmente no que toca à formação de novos leitores. Iniciativas como a do Sesc Crato mostram como o Brasil ainda se tornará um “País de Leitores”. Para conhecer as futuras ações nesse universo, fiquem atentos ao site: www.sesc-ce.com.br. No balanço da Memória Contos e Crônicas do Sertão: Ressignificados da Memória Icoense, de autoria do professor do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Cariri, Ives Romero Tavares do Nascimento, e da estudante recémformada em História, Maria Bonfim Monte de Almeida, já está disponível em e-book. O projeto foi realizado durante o ano passado, com apoio da Pró-Reitoria de Cultura e, agora, publicado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação. O livro está disponível em https://ebooks. ufca.edu.br/catalogo/contos-e-cronicas-do-sertãoressignificados-da-memoria-icoense/. Bienal de Fortaleza A Bienal Internacional do Livro do Ceará começou no início da década de 90 como Feira do Livro, replicando inúmeros eventos que aconteciam em quase todo o Brasil. Atualmente, é um dos acontecimentos mais importantes da área de literatura. A última Bienal homenageou o renomado contista cearense Moreira Campos. Este ano, o tema é “As Cidades e os Livros”. O evento tem curadoria da escritora Ana Miranda e acontece de 16 a 25 de agosto, no Centro de Convenções de Fortaleza.

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Foto: Júlio Lira

T’’ércia Montenegro “A literatura é uma arte visual” Entrevista | José Anderson Sandes

Tércia Montenegro, 42 anos, já escreveu muito e ganhou prêmios importantes no cenário literário brasileiro. Filha de pais professores, Tércia se descobriu escritora ainda menina. Uma das principais referências é Lygia Fagundes Telles – escritora que encontrou entre os muitos livros espalhados pela sua casa em Fortaleza – e seus contos “visuais”. Da infância, lembra a tranquilidade, os livros, os gatos

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e o gosto pelas palavras - “uma paixão essencial”. Sua trajetória foi construída ainda aos 12 anos, quando publicava contos em jornais de Fortaleza. Além de escritora, é professora de Literatura da Universidade Federal do Ceará. Ao contrário do escritor solitário, Tércia seguiu outros rumos e buscou outras linguagens artísticas. “O ofício da escrita é quase sempre solitário, e talvez por isso haja tantos autores submersos em vaidades injustificadas. Quem faz arte coletiva percebe a necessidade de dialogar com o outro e refazer o trabalho, várias vezes”, diz. A autora já prepara lançamento do novo livro, também pela Companhia das Letras, Em Plena Luz. Nesta entrevista, Tércia Montenegro fala da sua obra, seu processo de escrita e de literatura. PEQUIÁ | Depois de publicar contos e livros infantis, você lançou seu primeiro romance - Turismo para Cegos. Quer dizer, sua trajetória no campo literário é das mais férteis, ganhando no início da carreira prêmios importantes. Conte um pouco dessa história. TÉRCIA MONTENEGRO | Comecei a escrever ficção com 12 anos, e as primeiras publicações foram contos que divulgava em jornais de Fortaleza. Quando entrei no curso de Letras, estava com meu primeiro livro pronto, O vendedor de Judas, que foi lançado inicialmente pela Alagadiço Novo, da Universidade Federal do Ceará. Este já tinha sido um livro selecionado pela Funarte em 1997, no projeto Oficina do Autor. Depois, veio Linha Férrea, publicado através do prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira, promovido pela revista Cult, em 2000. O Resto de teu Corpo no Aquário, em 2005, foi premiado pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. Em 2012, foi a vez de O Tempo em Estado Sólido, volume que recebeu o prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura e o prêmio nacional Ideal Clube de Literatura, tendo sido selecionado pela primeira

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temporada de originais da editora Grua, de São Paulo. Em 2013, esse livro foi finalista do Jabuti e do prêmio Portugal Telecom. Dois anos depois, o meu Turismo para Cegos saiu pela Companhia das Letras e foi eleito o melhor romance brasileiro de 2015, através do prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. De lá para cá, continuo interessada nas narrativas longas, que me permitem conviver durante mais tempo com os personagens e suas tramas. Em breve sairá meu novo romance, Em Plena Luz, também pela Companhia das Letras. PEQUIÁ | Seus pais influenciaram na sua escolha pela literatura? TÉRCIA MONTENEGRO | Eu nasci numa família de professores, então fui realmente uma privilegiada, porque na minha casa sempre houve livros, e livros em todos os lugares. Além do espaço da biblioteca (que era sem dúvidas o mais importante), os livros estavam em todos os outros quartos, na cozinha, no banheiro... A presença da arte e da leitura era cotidiana, então essa foi uma grande influência positiva. Eu me tornei igualmente professora, assim como meus pais e minha irmã; há mais de vinte anos leciono. Comecei ensinando em escolas, ao mesmo tempo que fazia graduação em Letras. Depois fiz mestrado em Literatura, doutorado em Linguística e um pós-doutorado em Semiótica, este último já como professora efetiva da Universidade Federal do Ceará. A palavra e as demais representações sígnicas do mundo sempre foram o meu grande interesse, e nunca deixo de estudar aspectos ligados a esse eixo. A pesquisa e o magistério são enormes paixões, ao lado da prática artística. PEQUIÁ | Por falar em pais, fale um pouco da sua infância em Fortaleza e suas principais lembranças. TÉRCIA MONTENEGRO | Tive uma infância muito tranquila e amorosa, rodeada por livros e bichos,

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Foto: Gentil Barreira


Foto: Marco Ribeiro

Tércia posa numa montanha de livros numa de suas viagens

principalmente gatos. Até hoje esse é o estilo de vida que eu adoto e no qual me sinto perfeitamente feliz. A infância em Fortaleza me traz ótimas lembranças, porque a cidade era tranquila, andava-se a pé sem sobressaltos. Mas mesmo com toda a transformação pesada que a cidade sofreu ao longo das décadas, eu ainda a defendo e escolho morar aqui. Inclusive publiquei em 2014 um livro intitulado Dicionário Amoroso de Fortaleza, que em breve vai ter um novo formato, vai ser atualizado. E os meus romances trazem referência explícita a Fortaleza, citam o seu nome, põem os personagens para andar por suas ruas... Acredito que devemos amar e (re)construir os espaços, não abandoná-los ou delegar o seu cuidado exclusivamente aos governos. PEQUIÁ | Como surgiu a Tércia escritora? Quais foram as suas primeiras leituras? TÉRCIA MONTENEGRO | O farto acesso que eu tive aos livros, desde criança, fez com que as narrativas – e principalmente os contos – se entranhassem tanto na minha rotina, que inevitavelmente eu teria

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que desaguar numa prática de escrita. O convívio com as palavras virou uma paixão essencial e, nessa época dos primeiros textos, uma autora das mais importantes foi a Lygia Fagundes Telles. Os seus contos foram, e continuam sendo para mim, uma grande referência de técnica literária. Creio que ela foi a primeira escritora que me fez perceber que a grande estratégia para montar um texto é a cena, a imagem. A ação vem depois, nasce desencadeada desse impacto inicial, que é responsabilidade do cenário. Isso se tornou tão crucial na minha prática, que desenvolvi uma série de trabalhos – palestras, ensaios e até intervenções urbanas – sob o tema “A literatura é uma arte visual”. Claro que essa visualidade transcende o imaginário e se faz presente inclusive na matéria gráfica da palavra impressa. PEQUIÁ | Da escrita solitária, seu livro Linha Férrea foi adaptado para o teatro, um trabalho coletivo... TÉRCIA MONTENEGRO | Todo esse processo reflexivo deslanchou no início dos anos 2000, quando o grupo teatral Cabauêba fez uma adaptação de alguns contos do meu livro Linha Férrea, A palavra e as demais para um espetáculo representações sígnicas do de mesmo nome. mundo sempre foram o meu Foi um momento grande interesse, e nunca lindo; viajamos deixo de estudar aspectos para o Festival de ligados a esse eixo Londrina, e a peça ficou mais de um mês em temporada em Fortaleza, no Sesc. Depois houve outra montagem dela em São Paulo, creio que no ano de 2013, com um outro elenco, mas sempre sob a direção do Lucas Sancho, do grupo Cabauêba.

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Foto: Renato Parada

Escritora e fotógrafa: “tudo está no mesmo jogo criativo”

Conviver com os atores e participar da maturação de um espetáculo, vendo os ensaios, as transformações que a obra vai ganhando... tudo isso foi uma lição inestimável para mim! A partir dessa época, comecei a perceber que os escritores em geral têm uma carência muito grande de troca com os seus pares. O ofício da escrita é quase sempre solitário, e talvez por isso haja tantos autores submersos em vaidades injustificadas. Quem faz arte coletiva percebe a necessidade de dialogar com o outro e refazer o trabalho, várias vezes. PEQUIÁ | Literatura, teatro, fotografia, artes visuais. Quer dizer, você trabalha com uma mistura de linguagens... TÉRCIA MONTENEGRO | Eu sempre estive interessada no aprendizado e no processo das artes, muito mais do que no resultado, na obra fechada. Essa inquietação me levou a promover encontros de várias linguagens. Por exemplo: eu fotografo há muito tempo; cheguei a ganhar, em 2009, o prêmio Unifor Plástica nesta categoria, e fiz algumas exposições aqui e acolá – mas antes considerava a fotografia algo “à parte”, diferente do que eu fazia com a escrita. Com a maturidade, percebi que tudo está no mesmo

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jogo criativo. Passei a trabalhar intensamente com personagens que são artistas – fotógrafos, bailarinos, escultores, desenhistas – e, por outro lado, misturei a literatura com a fotografia e a performance. No lançamento do meu livro Turismo para Cegos, eu performei a minha entrada para a sessão de autógrafos: entrei “interpretando” a personagem Laila, com óculos escuros e sendo levada por um cão-guia, que interpretava o cachorro da história. PEQUIÁ | Como se processa essa relação tão forte entre literatura e imagem? TÉRCIA MONTENEGRO | Mais recentemente, participando do Coletivo Colher, tenho acompanhado muitos processos interessantes de criação em várias áreas. Fizemos uma exposição que ficou em cartaz no final de 2018, na Casa de Cultura Alemã, com uma série fotoperformática intitulada “Wie man Steine Deutsch lehrt” (Como ensinar alemão às pedras). A proposta era baseada em poemas do Paul Celan, e foi mais uma ocasião em que literatura e imagem dialogavam – de novo, aquela ideia subjacente, de que a literatura é uma arte visual… O nome deste grupo, inclusive, brinca com uma questão de linguagem, porque sua escrita é ambígua, e na leitura em voz alta se pode decidir por uma pronúncia aberta (quando a palavra “colher” é substantivo, significando o instrumento utilizado para levar o alimento à boca) ou por uma pronúncia fechada (quando a palavra então é um verbo, significando a ação que resulta numa colheita). Essa duplicidade é intencional, porque entendemos o ato de criar como algo que, ao mesmo tempo, é captura e nutrição, é tanto a coleta que se faz (dos apelos estéticos do mundo) quanto o que depois se oferece como alimento ao público. Não consigo pensar na arte fora desse movimento, e há várias pessoas que poderia citar como referências nesse sentido. A Ana Miranda é

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uma grande influência, um exemplo de multiartista: mais conhecida como escritora, ela é igualmente uma artista plástica talentosíssima. A Raísa Christina – outra cearense maravilhosa, cheia de dons – desenha e pinta lindamente e tem uns poemas ótimos. Poderia citar ainda uma safra de excelentes escritoras: Tânia Dourado, Natércia Pontes, Kah Dantas, Nina Rizzi... cada uma delas tem voz autêntica e trabalha de modo intenso e ético. PEQUIÁ | A condição da mulher, segundo algumas entrevistas, parece ser tema recorrente na sua obra. Por exemplo, a questão da maternidade e da opressão da sociedade... TÉRCIA MONTENEGRO | Sendo mulher, Eu sempre estive sou levada – por interessada no aprendizado experiência direta e no processo das artes, – a questionar muito mais do que no alguns aspectos que resultado, na obra fechada circulam em torno do feminino. A questão da maternidade, a violência de gênero, as crenças e códigos culturais que tanto oprimiram (e ainda oprimem) as mulheres são temas que me interessam, inclusive porque várias vezes o discurso da opressão parte de mulheres que se põem no papel de controladoras de outras, fiscalizando suas atitudes sob um viés machista que elas reproduzem sem pensar. Há uma autora chilena muito interessante, a Lina Meruane, que recentemente publicou um livro intitulado Contra os Filhos. Ela não é a única pensadora a discutir a cobrança da maternidade; há décadas, intelectuais respeitadas como Virginia Woolf, Simone de Beauvoir e Elisabeth Badinter já debatiam o assunto, e mais

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Foto: Arquivo Pessoal Desde criança, TÊrcia cultiva amor pelos gatos e pela literatura

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recentemente Silvia Federici e Orna O estético, já se sabe, é Donath são outros sair do estado anestésico nomes, dentre tantos, – ou seja, é movimentar, voltados para o tema. fazer reagir, tirar da O fato é que ainda paralisia estamos longe de evitar “polêmicas” quando se defende uma questão aparentemente simples e óbvia como a liberdade para gerir o próprio corpo e planejar o modelo de família que se deseja. Muitas pessoas sequer admitem uma reflexão a respeito; há um perigo conservador até em certas propostas feministas. É uma pena que seja assim, porque o primeiro passo essencial para a liberdade é permitir-se o pensamento. Contra os Filhos, por exemplo, é um título que cria, sim, repulsa: mas vencêla já é sinal de maturidade reflexiva. Se dedicamos um olhar racional aos assuntos, conseguimos domesticálos – não somos mais seus reféns, não caímos em fanatismos ou passionalidades desastrosas. A partir daí, surge toda uma prática de autonomia e autocuidado, para fazermos nossas escolhas com consciência. PEQUIÁ | Parece que você tem uma proximidade com a escrita existencialista. TÉRCIA MONTENEGRO | Eu acredito numa literatura filosófica, que leva a reflexões. O estético, já se sabe, é sair do estado anestésico – ou seja, é movimentar, fazer reagir, tirar da paralisia. Então, o próprio trabalho artístico com as palavras leva o texto a um dinamismo, uma inquietação que é um princípio filosófico. Gosto da literatura que deixa um pensamento reverberando, um entendimento – que está longe de ser uma moral, mas na verdade consiste em algum tipo de “gancho”

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que o leitor pode levar para a vida, uma forma de compreender (ou, pelo contrário, de estranhar) as pessoas e suas atitudes. E gosto do humor – porque poucas coisas são mais importantes na vida do que o riso. Rir é o principal sintoma de saúde! PEQUIÁ | Por muito tempo, você foi cronista do jornal O Povo, de Fortaleza. Qual a sua relação com o jornalismo? TÉRCIA MONTENEGRO | O jornalismo é uma área que também lida com a palavra, então por este ponto eu já me identifico. Fui cronista do jornal O Povo durante dois, três anos; reuni alguns dos textos dessa época em dois livros: Os Espantos, publicado pela editora Dummar, e Meu Destino Exótico, publicado em e-book, pela Amazon, este último só com crônicas de viagem. Agora estou colaborando com o jornal curitibano Rascunho; mantenho lá uma coluna mensal intitulada “Tudo é narrativa”, de ensaios sobre arte em várias linguagens. É uma experiência bem motivadora, que me faz sempre pesquisar coisas novas e às vezes me leva a mexer com a comicidade. Sobre o novo livro, Em Plena Luz, a ser lançado ainda este ano pela Companhia das Letras, Tércia guarda segredo. Diz apenas que “é uma história de amor em tempos de terrorismo”.

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Artigo / Turismo para Cegos

Observações de um leitor apressado Turismo para Cegos. O título causa repentino estranhamento. Mais estranhamento quando vamos lendo os pequenos capítulos, quase um roteiro cinematográfico, com diálogos ou frases sobre duas existências inúteis. Vidas entrelaçadas por dois destinos: Laila, a artista plástica cega, e Pierre, um funcionário público frustrado, que carrega preconceitos no corpo e na alma. A relação entre os dois sempre é complicada. Pierre tenta agradar Laila. Laila tenta desconstruir Pierre. Tempo e espaços talvez pouco importem. Ceará (Fortaleza, Paracuru), Minas Gerais, Bahia. Lugares em que os personagens transitam, mas que apenas permanecem em suas vidas como um amarelado retrato pendurado na parede. O que importa mesmo são os cheiros, as vozes, os toques, os batuques, as imagens, as sensações ou idealizações de Pierre e Laila, do seu cãoguia, também chamado de Pierre, e da narradora do romance, uma vendedora de pet shop. Vida de cochichos, pequenos gestos, trapaças. Vidas inúteis. Pierre até tentou acreditar na máxima do avô, perdida no espaço e tempo da sua memória: “Quem passa a vida circulando pelos mesmos lugares tem a alma redonda e funda; quem se desloca e atravessa continentes tem a alma longa, cheia de vértices”. Preceito que não se encaixa nem na vida de Laila nem tampouco na de Pierre. Li avidamente o livro de Tércia Montenegro, já estranhando o título – Turismo para Cegos. Confesso que li apressadamente. O objetivo era realizar entrevista por e-mail para a Pequiá e tinha pressa. Tércia estava em Fortaleza. Eu em Juazeiro

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do Norte. Preparei muitas perguntas sobre o livro e os seus inúteis personagens. Como leitor apressado, queria saber da própria Tércia sobre as alegorias carregadas pelas duas criaturas, já tão enigmáticas. Ou inúteis. Ou seja, pedia de mão beijada a interpretação dela para o seu próprio livro. Meu objetivo profundo era facilitar a vida dos futuros leitores. E quem sabe apaziguar a minha incompetência de analisar personagens fortes e agudos, mas inúteis. Tércia sabiamente não respondeu às perguntas sobre sua obra, nem seus personagens, nem sobre cegos, cachorros, pet shops, cães-guias. Antes de continuar esse breve artigo, quero fazer uma confissão. Para mim, entrevista por e-mail não existe. Nem pelo telefone. E olhe que prefiro o telefone – ali pelo menos ouço os pigarros, os silêncios, o timbre da voz do entrevistado diante de uma pergunta mais complexa. Por e-mail, nem isso tenho, nem isso avalio. Eu, solitário repórter, perco totalmente o comando da entrevista. Ela, solitária entrevistada, pensa na melhor maneira de responder o questionário, de fundir perguntas, de mudar itinerários, antes traçados apenas na cabeça do repórter. Afinal, a entrevista realizou-se por e-mail. Correio eletrônico do século XXI. Século às vezes tão parecido com o século XIX. Algo parecido com a Cabra Vadia, do Nelson Rodrigues. Mas ali, Nelson fazia entrevistas imaginárias. Só de um gênio e da cabeça de um visionário como ele sairia tantas pérolas, hoje esquecidas infelizmente pelas novas gerações. Lembro-me até de um artigo dele – está no livro O Reacionário –, que, por acaso, leio agora. Por acaso, não. Antes de dormir sempre leio um artigo, crônica ou confissão do velho sábio Nelson

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Ilustração: Espedito Duarte

Rodrigues. De A vida como ela é, sua marca maior. Bem, voltando à entrevista por telefone e, agora, por e-mail. Em um artigo – intitulado “Maravilhosa Cacilda Becker”–, Nelson retoma um dos seus temas prediletos ao atacar o jornalismo, sua objetividade, as tão decantadas estagiárias e as redações de jornais dos anos 1970, tão óbvias, tão ululantes, tão javalis com suas cerdas bravas. Depois de tentar entrevistas por telefone com o escritor Coelho Neto e outros arautos da época dele – muitos do Instituto Histórico e Geográfico –, sempre a resposta, muitas vezes mal-educada, era a mesma: “Por telefone, não falo”. Nelson ficava constrangido. Vagava pela redação, esbarrava nas mesas, tropeçava nas cadeiras. E concluiu que Coelho Neto lhe dera uma pequena e luminosa lição de vida. E começou a ruminar:

“Assim eram os velhos de passadas gerações. Preservavam, até o fim, uma dignidade superiormente crespa. Os novos tempos é que trouxeram para a imprensa novos usos, costumes, valores, maneiras. Hoje uma redação tem qualquer coisa de irreal, de alucinatório”. E coloque alucinatório nisso. Nem sei o que o meu querido e estimado Nelson Rodrigues falaria dos tempos de hoje, tão vazios. Das redações convergentes, multiplataformas. Decretaria com certeza a morte do jornalismo. Tão óbvio, tão igual, tão sem sentimento, tão sem ponto

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de exclamação, tão ululante. Tudo junto ao mesmo tempo agora, afinal, nunca deu certo. Do ponto de vista do capital, talvez. Mas nunca das emoções e dores humanas. Mas voltemos à entrevista por e-mail. Ela quase inexiste. Isso se pensarmos no livro da professora Cremilda Medina – A Entrevista, o Diálogo Possível. Ou de outros defensores da entrevista ao vivo e em cores. Como o mestre Edgar Morin e suas entrevistas confessionais. Unindo os espaços da memória, da história e da literatura. Falei que a entrevista quase inexiste nestes tempos tão diáfanos. Mas hoje é tão comum, tão comum. Repórteres com a bunda sentada na cadeira entrevistam até aiatolás. Eles também respondem as perguntas sentados ou deitados em suas luxuosas mansões com cascatas artificiais e filhotes de jacarés. Sobre a minha entrevista com Tércia Montenegro, não poderia ser diferente. Moramos quase em estados diferentes. E uma conversa por e-mail encurta distância, se resolve. Fica feliz o repórter, o dono do jornal. Já o leitor é outra história. Ela respondeu a quase tudo que indaguei, inclusive algumas perguntas cretinas. Mas deixou de lado todas as questões sobre suas criaturas e o seu romance. Ora, caro Anderson, você que interprete. Se os personagens são inúteis, alegóricos, redondos, esféricos; como ela manipula representações e cria, através das palavras, imagens tão vivas e doídas… é outra equação. Repeti várias vezes a palavra inútil referindo-me a Laila e Pierre, figuras que mexem com a inutilidade da existência. Ou a utilidade dessa mesma existência. Depende, lógico, do ponto de vista. Para alguns, a literatura ou a poesia é inútil. Ora, a literatura é que salva a vida. E o primeiro romance de Tércia Montenegro resulta em um grande susto, uma grande busca, em grandes incertezas. Como a boa literatura. Ou uma boa contadora de histórias. José Anderson Sandes

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Daniel Viana A escrita do afeto

Entrevista | Adler Sousa Fotos | Jayne Machado Ele é escritor e poeta nascido em Poços de Caldas, Minas Gerais. Logo cedo, descobriu sua maior paixão – as artes, particularmente o teatro e a literatura. Ainda em Poços de Caldas, começou a mexer com palavras, juntamente com um grupo de amigos. Hoje, morando em São Paulo, desenvolve um singular trabalho de literatura e ministra oficinas de texto por todo o País. Em abril deste ano, desembarcou no Cariri para mais uma oficina – no Sesc Crato – e foi lá que a Pequiá entrevistou Daniel Viana, 35 anos, um artista preocupado com a complexa e criativa arte da palavra. Escritor de textos pequenos, ou melhor, pequenos retratos biográficos e outras histórias. Daniel conta que é o único artista da sua família – “meus interesses não dialogavam com a casa” – e, além disso, conta que era tímido, o que o fez desenvolver um olhar intimista para as coisas, os objetos – “acabava

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me fechando em mim mesmo; minha escrita era muito silenciosa”. Para sobreviver, exerceu antes da literatura as profissões de garçom, balconista e animador de festa infantil. Sem apoio nem estímulo da família, começou a traçar as primeiras linhas, ou melhor, primeiras artes, com um grupo de amigos de Poços de Caldas. Tímido, mas teimoso, resolveu trocar Poços de Caldas por Belo Horizonte e Belo Horizonte por São Paulo. O teatro foi o primeiro sopro. Em São Paulo, aos 28 anos, estudou direção teatral na Escola Livre de Teatro de Santo André. Participou então do núcleo de direção e logo escreveu a primeira peça – “a O tempo é agora. Meu escrita começou trabalho tem uma relação a surgir na minha vida como um direta com o cotidiano, processo”. Dirigiu com a história das e encenou o texto, pessoas mas não deixou de ler autores como Marina Colasanti, Marcelino Freire e Manoel de Barros, inspirações que carrega até hoje. Conta que são escritores inspiradores, que mexem “na fragilidade do seu interior”. Escritores provocadores – como deve ser qualquer escrita, provocadora – e que, ao compor um conto, busca ser tão desafiador quanto essa turma de criadores da arte da palavra. Outro desafio foi encontrar a melhor maneira de extravasar todo o sentido de uma história em poucas, pouquíssimas palavras, linhas e parágrafos. Primeiro, desconstruiu o que

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aprendeu na escola – “você só passava uma mensagem em textos mais longos, de no mínimo quinze linhas”. Na outra ponta, o desafio de ignorar a gramática, ou seja, a chamada língua padrão defendida por puristas da gramática e companhia. “Eu compreendi que com poucas palavras realmente contava algo interessante, poderia dizer muita coisa. Apresentava personagens, desenhava conflitos, cenários e situações. Um trabalho de limar o texto. A escrita literária toma sempre cuidados com as palavras”, diz. ESCRITA LIVRE

Daí Daniel começou a descobrir as micronarrativas – uma forma minimalista de contar histórias –, gênero que tem tomado proporção cada vez maior entre escritores. “O que eu chamo de micronarrativa, outros escritores podem até usar outras nomenclaturas – microconto, micropoesia, microficção. Me adapto melhor com o conceito de micronarrativa, que são poucas palavras contando uma história, produzindo sentidos”. Outra lição foi escrever sem julgamentos. Ou seja, sem ideologia? Não é bem assim, segundo Daniel. Me adapto melhor O problema é com o conceito de escrever com o micronarrativa, que são sentido de agradar poucas palavras contando o outro, o leitor. uma história, produzindo Segundo ele, devesentidos se escrever para si mesmo e compartilhar, independentemente do julgamento que o outro fizer. Diz que a escrita

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O escritor tatuou em seu braço a imagem da primeira máquina de escrever: lembrança e afeto

é uma prática. “Se você fica aguardando o momento de inspiração, você acaba produzindo pouco”. A escrita, afinal, é um exercício diário, de ética, caráter e compromisso. Ele não segue cartilhas das teorias literárias: unidades de tempo, espaço, ação, personagens principais, secundários, núcleos. Nada de manuais de literatura. “Sou muito desobediente a isso. O tempo é agora. Meu trabalho tem uma relação direta com o cotidiano, com a história das pessoas. Por mais que fale do passado, meu tempo é sempre o de agora. É o encontro de um artista de rua, um poeta de rua, com a realidade da rua. Meu texto reflete essa urgência do cotidiano. A vida em São Paulo também tem esse olhar da urgência”, afirma. Daniel Vieira exerce com disciplina esse olhar sobre a cidade, a rapidez dos tempos de hoje, quando escreve sua autoficção – histórias que conhece, histórias vividas – “aí me sinto mais confortável para escrever”. Autoficção? Ora, a autoficção combina estilos paradoxalmente contraditórios – autobiografia, memorialismo

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e ficção. Como reunir tudo isso em pequenos textos? Ele explica que escreve a partir de histórias que conhece, vividas. Você pega algo da realidade e faz um recorte, reconstrói a narrativa a partir de você mesmo. “Do jeito que a história mora em você, nem sempre do modo como ela aconteceu. Esse é o caminho que me atrai mais”.

O estudante de jornalismo Adler Sousa entrevista Daniel Viana: vida e literatura

Para ele, não existem limites entre ficção e realidade. Uma linha muito tênue: “compartilho minhas vivências e observações através da minha literatura. Por exemplo, posso contar a história sobre meu pai que abandonou a casa e passou dez anos longe; que fui criado somente pela minha mãe. Ora, isso conto do jeito que essa história mora dentro de mim. Esse jeito que mora dentro de mim não é uma mentira, é a maneira que o meu “eu” percebe

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o mundo. É uma linha muito tênue São muitos caminhos, entre ficção e muitas estantes, muitas realidade. Muitas bibliotecas. A literatura vezes, para a fornece às pessoas gente apreender a o sentido da vida, da realidade, a gente busca a ficção. Por existência isso, o teatro, o cinema, a novela, a literatura. É uma espécie de simulação da vida”. MARGINAL

Outro ponto que Daniel faz questão de ressaltar é que cresceu na periferia de Poços de Caldas, estudante de escola pública. O escritor abandonou os estudos e só os concluiu aos 22 anos. Atualmente cursa Letras em São Paulo, o que lhe permitiu conhecer alguns conceitos da escrita literária, mas foi a sua escrita que, desde cedo, ampliou a sua visão de mundo. A partir de suas histórias e vivências, Daniel tece micronarrativas. Se define como um escritor marginal – reforça que vem da periferia –, mesmo hoje não morando na periferia de São Paulo. “A periferia está em mim, está na minha história.” Por outro lado é independente, seus livros são publicados por ele mesmo, e a expansão do seu trabalho lhe proporciona participar de projetos como o Arte da Palavra, do Sesc, e viajar pelo Brasil. “Eu não tenho nenhuma editora que me representa. Meu trabalho é muito divulgado boca a boca. Eu acho isso maravilhoso. Muito potente. Se edito dois mil livros, eles logo esgotam. Sei que o percurso para chegar

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nesses leitores foi um percurso de afetos. Para mim, interessa essa microrrevolução de afetos”, afirma. Os projetos literários na vida de Daniel também começaram de forma especial. Ao visitar a sua mãe, em 2012, em Poços de Caldas, reencontrou a sua antiga máquina de escrever, uma Olivetti portátil, do tempo de adolescência, quando começou a tecer seus primeiros contos. Levou a máquina para São Paulo. Foi um pulo para montar seu lugar de trabalho – as ruas do centro de São Paulo. Lá ouviu histórias, ideias. Começou a escrever contos e poemas. Corria o ano de 2013. Diz que jamais imaginou que o seu trabalho na rua chamasse tanta atenção – “é uma performance, onde a moeda de troca foi a poesia”. Os transeuntes lhe contavam suas histórias e casos, imediatamente transformadas em literatura. Tudo escrito à máquina. E num pequeno guardanapo. Surgiu aí o projeto Guardanapos Poéticos, com contos e poesias. “Eu pensei no guardanapo porque ele é um papel frágil, visto como algo descartável, mas muito bonito. Sua fragilidade reflete a nossa própria fragilidade. Noto isso quando entrego o poema ou o conto às pessoas – elas recebem com muito cuidado. Ali também estão as suas histórias. Lido com as fragilidades humanas e não existe melhor tipo de papel para as representações delas que o guardanapo”, conta. AGRESSIVIDADE

Surgiram outras ideias e projetos, entre eles Troco um Causo por um Conto, e Daniel

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continuou indo para a rua, mas diz que atualmente com menor frequência. Segundo ele, a rua ganhou novos movimentos, novos olhares, mais agressividade, principalmente com os artistas de rua. “Não por medo, mas comecei a entender qual era o meu território na rua, no centro de São Paulo”. Outro movimento foi o político, ou talvez, a polarização política que tomou conta do país nos últimos anos. Os pensamentos e ideias políticas não inspiravam Daniel. Segundo ele, a questão não era falar de política nas suas poesias – “ocupar a rua como arte é um ato político. Mas, no meu caso, essa transformação do espaço da rua, os depoimentos que ouvia e colhia não me representavam. Comecei a me questionar sobre o trabalho”. O escritor, no entanto, não abandonou a rua. Foi nela que encontrou visibilidade para os seus trabalhos e contos. Hoje busca o percurso inverso – do centro para a periferia. Lá encontrou muitas histórias e, como ele próprio vem da periferia, logo reconheceu que a arte não chega naquele espaço com muita facilidade. AVENIDA ON-LINE

Em tempos de redes sociais, Daniel Viana não esqueceu também o espaço on-line, uma via de mão dupla. Foi uma espécie de desapego, os

O espaço on-line foi muito importante para a divulgação dos meus textos. Quando lancei o livro “Cem contos por dez contos trocados”, muitos já conheciam minha obra

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originais ou os guardanapos sempre ficaram com os autores das histórias; ele com os cadernos e, quando começou a postar na internet, os textos foram disponibilizados para muitos leitores. “As pessoas começaram a acompanhar o meu trabalho, minha criação literária. O espaço online foi muito importante para a divulgação dos meus textos. Tanto que, quando lancei o livro Cem Contos por Dez Contos Trocados, uma coletânea desses textos escritos entre janeiro e setembro de 2013, muitos já conheciam minha obra. Vendi mil exemplares em vinte dias. Muito para um escritor independente como eu”, afirma. OFICINA AMOROSA

O importante para Daniel é seguir sempre a trilha da literatura – entre oficinas, livros e escrita. Para ele, as oficinas que ministra pelo país parte dos afetos, de muitos Brasis, cada um com as suas especificidades. São muitas potencialidades e trocas de experiências entre mais jovens e mais velhos mediados pela literatura. “Tenho me surpreendido muito. No Ceará, por exemplo, a cultura do nordestino, sua oralidade muito forte, a literatura de cordel, os repentes, uma escrita para o ouvido”. Ele sempre busca a literatura que lhe cabe – de repente um romance, um conto, uma novela, a poesia. São muitos caminhos, muitas estantes, muitas bibliotecas. A literatura fornece às pessoas o sentido da vida, da existência. E com o tempo, ele vai ampliando seu olhar sobre a literatura, um espaço de lazer e aprendizado.

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Sobre a literatura atual, vê muita potencialidade e a expansão do espaço da escrita. Escrita que o atual momento político tenta sufocar, desvalorizando a arte e os artistas. Acredita, entretanto, na resistência dos escritores diante de tantas dificuldades colocadas na atual quadra histórica do país. Afirma que está “num momento dramático de pausa”. E reafirma sua teimosia diante da literatura. “Minha escrita é teimosa, para soltar os meus monstros, para transformar o que me dói. Escrevo sobre despedidas, ausências. Esse é meu universo, minha história. A existência dói e a arte é um caminho complicado. A escrita não é um ego, mas sim um eco”, afirma. A sua Olivetti de adolescência, hoje tatuada em seu braço, ele guardou em casa, após uma tentativa de roubo. Daniel segue com o seu trabalho nas ruas da periferia paulista, agora com uma outra máquina que ganhou de presente. “Essa não sai mais de casa, um objeto para mim que tem muito valor, que tem uma simbologia, pois conta a minha história”. Sua história e de outros narradas através da arte do conto e da poesia.

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Fotos: Arquivo Pessoal Capa da playboy 2005

Iracema, a personagem, o romance, a tese Por Tiago Coutinho

Professor de Jornalismo da UFCA

SINOPSE PARA QUEM NÃO LEU O LIVRO

Iracema, mulher Tabajara, tirava um cochilo depois do almoço quando escutou um barulho. Atirou uma flecha no possível inimigo. Era Martim: colonizador português, aliado dos Potiguaras, inimigos dos Tabajaras. A tradição pedia o acolhimento ao

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estrangeiro. Martim quer muito furnicar com Iracema. Ela resiste, pois é a virgem de Tupã, guardadora do segredo da Jurema. Na noite antes de Martim ir embora, ele força a barra. Sem sabermos direito como, Iracema perde a virgindade. Instaura-se uma guerra entre os dois povos. Os portugueses matam os Tabajaras e cristianizam os Potiguaras. No meio dessa história, Iracema engravida de Martim, dá a luz a Moacir e morre logo depois de o parir. Quatro anos depois, Martim termina a colonização no Ceará e parte para ocupar o Maranhão. QUATRO LEMBRANÇAS INICIAIS I

Iracema é um romance publicado no século XIX, mas que narra um episódio ocorrido no século XVII. O livro faz referência a personagens históricos, mas, apesar de ser a protagonista, não há documento que comprove a existência de Iracema. Por isso, há uma dúvida se o livro é um romance histórico ou não. Definições de gêneros, sejam sexuais ou textuais, não me interessam. Meu objetivo é contar um pouco da história desse romance e seus desdobramentos. Por enquanto, precisamos gravar essa informação: Iracema é uma personagem inventada por um homem branco e latifundiário do século XIX. II

O recorte da tese é o da memória. Não linear, não determinado, cheio de idas e vindas no tempo, e, ao mesmo tempo, abrangendo desde os rascunhos de Iracema até os dias atuais. Ela é

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um mito incessante, uma imagem que está em constante processo de reconstrução. “Iracema permanece viva” poderia ser a conclusão. A repetição da imagem de Iracema, talvez, seja o objeto de estudo. A tese é que os intelectuais e artistas mais interessados em repetir a imagem dela na forma de culto são os intelectuais mais conservadores e com afinidade com o Estado. Ao fazerem a repetição acrítica, exaltam o processo de violência colonial, que estuprou mulheres e exterminou etnias não brancas. III

Os rascunhos da tese foram escritos em vários caderninhos sem pauta. Toda vez que eu mexo nos cadernos, me assusto. São quatro anos de doutorado, quatro anos de coisas que eu ia escrevendo. Muitas ideias que me pareciam novas já estavam nos cadernos há dois, três anos. Estavam lá, anotadas, mas eu esquecia um pouco das coisas que ia fazendo. Depois ia lembrando. IV

O título da tese ficou Iracema – horizontes de memória do mito incessante. O título é roubado do poema “O Jangadeiro”, de Adriano Espínola, do livro Beira-Sol. Ele escreveu assim: “Que importa a lenda, ao longe, na história,/ se elas cruzam, ligeiras, nesse instante,/ o horizonte esticado da memória,/ tornando o que se vê mito incessante?”. A memória, na tese, aparece como horizonte. O horizonte é aquilo que a gente vê. Na praia, na

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Reprod u

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tese

serra, no sertão, lá está o horizonte, local onde ninguém consegue chegar. Estou falando do horizonte mesmo, e não do depois dele. Nunca se chegou lá, mas, o lá existe. Todas veem. O horizonte é fruto da nossa imaginação, uma imagem visível. Então, memória é isso, uma imagem visível. É muito importante pensar a memória no nível da crença e da imaginação, mas sempre bom lembrar: ela existe. SOBRE A FORMA

Parece que você só consegue ter dimensão do que é a tese mesmo quando você a entrega. A gente vai fazendo, fazendo, fazendo, até que ela surge. Então vamos lá. A tese tem um formato não

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Iracema, José Maria de Medeiros, 1881

convencional. Ela não tem sumário nem conclusão. A ideia foi construir um texto, literalmente, aberto, com uma leitura não linear, sem sugestão de como deve ser lida. Em vez de capítulos, há cinco cadernos. Três cadernos se dividem entre Iracema, Alencar e Moacir, um para cada. Há um caderno sobre memória e esquecimento e um outro com os protocolos, afinal nós estamos em uma Universidade, que exige uma tal “folha de rosto”. Não vou comentar todos os cadernos por aqui. Deixo apenas um aperitivo. Apesar de a tese ser sobre o romance Iracema, é uma tese em Memória Social, uma área considerada “interdisciplinar”, por isso, passeia por várias áreas: História, Literatura, Filosofia, Antropologia, Sociologia, Geografia, sem se fixar em nenhuma. Todas juntas me ajudam a pensar as linguagens artísticas e os produtos da indústria cultural que envolvem Iracema. No fundo, acho que é uma tese em Comunicação. É meio doido, a

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tese não é de nenhuma área, mas é de várias ao mesmo tempo. Não sei como vai ser a recepção de cada área específica, talvez ela não tenha um aprofundamento que se exige. No caderno de protocolos, falo sobre a dificuldade de terminar a tese porque toda vida aparecia alguma coisa nova, que me fazia repensar. De repente, chegava um print que uma amiga minha enviava: “tu saca isso aqui?”. Outra me mandava uma foto ou um cartaz: “tu já viu isso?”. Alguém sugeriu uma bibliografia: “conhece?”. A tese foi toda feita nessa costura. Tem um banco de imagens gigante e uma ruma de textos que ficaram pra ler depois. A ORIGEM

E como surgiu essa tese? Em 2005 eu era repórter do Diário do Nordeste. Havia a efeméride, naquele ano, de 140 anos da publicação de Iracema. O então governador do Ceará, Lúcio Alcântara, realizou uma série de ações comemorativas. E pipocavam matérias no Sistema Verdes Mares (grupo de comunicação ao qual pertence o Diário do Nordeste e cujo nome faz referência à Iracema). Eu mesma fiz várias matérias sem ter relido o livro. Aí tal dia: “cara, vou reler”. Eu tinha lido no colégio e lembrava muito pouco. Quando reli, fiquei assustado, porque Iracema é uma Iracema é um conflito de história muito triste, terra. É um conflito de é uma história muito colonização. Os colonos violenta. É muito buscando tomar as terras dolorosa. E eu fiquei: indígenas, um conflito “gente, mas por que permanente hoje Fortaleza gosta tanto de Iracema? Por que

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é uma personagem tão importante, tão cultuada? E por que o Estado tem tanto essa preocupação de cultuar a Iracema?”. E isso ficou. Em 2005, eu terminei a graduação, depois fiz o mestrado sobre outras coisas, mas lá apareceu Iracema também. Fiquei muito com uma frase do último capítulo do livro. Quando Moacir está indo embora, Alencar escreve: “O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?”. Nessa época, muitos de meus amigos estavam indo fazer mestrado em outras cidades, não havia mestrado em Comunicação no Ceará, todo mundo saindo de Fortaleza. Foi aí também que conheci as músicas do Ednardo, aquela saudade eterna do Ceará, por ter migrado. Isso ficou na minha cabeça, e ainda hoje me interessa como pesquisa. Finalmente, consegui criar um projeto de doutorado. Trabalhar um pouco com saudade, Iracema e Fortaleza. Eu passei com esse projeto: mas aí mudou tudo. Aos poucos, surgia a relação de Iracema com o pensamento conservador, um pensamento nacionalista e de direita. O jogo virou. Até hoje, não sei se fiz de fato uma tese, mas parto da hipótese de que o Estado se apropria de Iracema e de Alencar para produzir uma política de memória nacionalista conservadora em que há uma cristalização, uma fixação da Apesar de a tese ser imagem tanto de sobre o romance Alencar quanto Iracema, é uma tese de Iracema. Essa em Memória Social, imagem é produzida uma área considerada por intelectuais e “interdisciplinar” artistas de afinidade com o Estado, só

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Print enviado por uma amiga

que ela cresce ao ponto de ser reproduzida por vários outros artistas e intelectuais, que, não necessariamente, tenham relação com o Estado. Foi essa tentativa de fixação de uma imagem pela ala conservadora do pensamento brasileiro que pesquisei ao longo de quatro anos. E compartilho um pouco por aqui. A TESE NÃO TEM FIM

Vamos aos protocolos. Em janeiro deste ano, eu penso: “tô terminando a tese…”. Aí o Ernesto Araújo assume o Ministério das Relações Exteriores e faz eu mexer em tudo. O discurso dele de posse é uma peça de ficção científica. Entre os milhões de absurdos que ele fala, sugere parar de ler The New York Times, pois, para os brasileiros, na atual conjuntura, seria melhor ler José de Alencar e se concentrar em pensar o Brasil isoladamente, parar

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Foto: Tiago Coutinho Pombo cagando na cabeรงa de Alencar

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de pensar o externo. Segundo o ministro, o Brasil está muito preocupado com a opinião do exterior, para ele, uma grande besteira. “Caralho, não vou terminar essa tese, meu irmão”, suando frio de medo. Aí ele ainda diz que o Brasil tem uma história a ser recontada. Ele vai agradecer aos jesuítas, por ter colonizado o Brasil, por ter inventado a língua geral, por ter traduzido a Ave Maria para o Tupi… No meio do discurso, ele cita que o Ministério de Relações Exteriores nunca esteve tão empenhado quanto vai estar agora com o agronegócio. Sim, ele fala exatamente isso: agronegócio. Não tem como não pensar na última frase do romance: “tudo passa sobre a terra”. Iracema é um conflito de terra. É um conflito de colonização. Os colonos buscando tomar as terras indígenas, um conflito permanente hoje. TUDO PASSA SOBRE A TERRA

O nome do caderno sobre Iracema é “Gotas de sangue borbulham na face desconhecida”. Começo lembrando a revista Playboy de 2005, que traz na capa a modelo Natália Nara, com a manchete “A nudez selvagem da Iracema do reality show”. Os textos utilizados pela revista são bem violentos. O título do ensaio é “Alegria de Português”. Nele, há trechos como: “Recriamos a Mata Atlântica e o canto de uma aldeia dos Tabajaras (…) o resto da fantasia de colono é contigo. Vem, Martim! Que o jantar já está na mesa”. Há, portanto, um convite para o leitor ser colonizador, desbravar uma mata chamada Iracema, colonizar corpos. Isso me dispara a lembrança do filme Iracema, Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Talvez seja a leitura mais radical que encontrei na pesquisa sobre Iracema. O filme, proibido na época da ditadura, se passa em Belém,

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na década de 70. O título faz um trocadilho com a rodovia transamazônica, projeto do ditador Emílio Garrastazu Médici. Em síntese, Tião, “um homem de estrada”, como ele se autodefine, é um extrativista ilegal de madeira no Pará. Lá, conhece Iracema, uma jovem que tem a vida roubada pela exploração sexual da região. Divido o caderno de Iracema em quatro partes. Em “O Assim Chamado Paraíso”, mostro como o descobrimento da América é fundamental para a formação do capitalismo na sua forma primitiva. Em paralelo, as narrativas em torno do Brasil e da América são colocadas como um retorno ao paraíso. Mas o paraíso é apenas a abertura para chegar o que nos interessa de fato: “A colonização como um estupro”. Não sabemos o que aconteceu com Iracema na noite em que ela perde a virgindade, Alencar não diz. Martim, o colonizador branco, insiste que Iracema busque a Jurema, bebida sagrada fabricada por Iracema, para ele beber. Quando ele bebe, acaba dormindo e tem delírios. No dia seguinte, Iracema fala que o pai dela não permitirá mais que ela fique na aldeia, ela não é mais virgem. Martim duvida, e Iracema segue afirmando que algo aconteceu, mas não diz o quê. Martim a leva para a terra dos inimigos, os Potiguaras, onde ela sofreu muito. O sofrimento de Iracema é retratado na pintura na transição entre os séculos XIX e XX. Tanto José Maria de Medeiros, como Antônio Parreiras escolhem a mesma cena para representar em seus quadros. Após Iracema fugir de casa, Martim a deixa em terra inimiga e parte para guerra contra os Tabajaras, povo de Iracema. Ele deixa um recado para que ela o espere, coloca uma flor de maracujá, um guaiamum e uma flecha com um recado: “Daqui você não passa!”. Claro que ele não falou desse jeito,

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lembremos que estamos numa cena do século XVII. O fato é que Iracema espera Martim. Quando ele volta, está grávida. Ele vai para outra batalha, com os Guaraciabas, e ela fica completamente abandonada. Iracema tem o filho, está desnutrida e sem condições de o amamentar. Quando Martim volta, Iracema entrega o filho e morre logo depois. Iracema é a única mulher do livro. Não sabemos

Iracema, Antonio Parreiras, 1909

a história da mãe dela, se ela tem irmãs, ela não tem amigas, ela tem uma jandaia como companhia. Alencar considera Iracema, literalmente, dessa vez ele disse assim mesmo “o perfume que faltava” para contar as histórias de Martim; o Mel Redondo – pai de Iracema, e de Poti, dos Potiguaras. Ele tinha feito um estudo sobre esses três homens, mas faltava um “perfume” para os ligar. A Iracema

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é utilizada, basicamente, para gerar Moacir. Vamos já chegar nele, mas antes, recomendo a leitura dos escritos de Sueli Carneiro sobre o estupro colonial. NADA DE HISTÓRIA DE AMOR, É GUERRA

Pelo tanto de sangue que escorre na narrativa, considero o romance um livro de guerra por terras. Alencar dá a entender, ao final do romance, não

Cena do filme Iracema, uma transa amazônica

haver mais índios no Ceará, pois Moacir não é mais índio, Moacir é mestiço, uma nova era. Em 1863, dois anos antes de Iracema ser publicado, saiu um relatório provincial do Ceará, onde o chefe de estado dizia não haver mais índios no Ceará. O que estava em jogo, e continua até hoje, na verdade, eram as terras. No ano de 1850, é sancionada a lei da terra, com a qual o Império passa a regular a

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posse das terras. Para que um índio tivesse direito à terra, ele precisaria ser reconhecido como índio pelo Estado. Hoje, 2019, há pelo menos 14 povos indígenas em busca de reconhecimento no Ceará. É evidente que o relatório dizia não existir mais índio no Ceará para poder tomar as terras deles. Ao mesmo tempo, o Império constrói a narrativa do índio como “a origem do Brasil”. Lembra daquela fase dos romances indígenas que a gente estuda em literatura? Pois é… O Império estava matando os índios, tomando suas terras, e, cinicamente, construindo uma ideologia de que índio é coisa do passado. Poderíamos atualizar a política perversa do Império com a frase “índio bom é índio morto”. Até hoje os povos indígenas são exterminados e perseguidos, mas a galera só lembra de Iracema como anagrama de América ou, pior, como “a virgem dos lábios de mel”. Em 1929, Afrânio Peixoto inventou a interpretação de Iracema ser um romance de formação da América. Isso porque Iracema e América são anagramas. No fundo, essa teoria é fruto de uma lógica imperialista brasileira e está desconectada das narrativas do restante da América. Há, pelo menos, duas narrativas muito parecidas com Iracema, uma no México, Malinche, e outra nos Estados Unidos, Pocahontas. É típico do nacionalismo querer se colocar no centro do mundo. Foi o que o Brasil, país que não se reconhece como América Latina, fez com Iracema. ONDE FOI PARAR A CRIANÇA?

Se insistem em colocar Moacir como o primeiro mestiço-cearense-brasileiro-americano, eu pergunto: como podemos pensar Moacir? Podemos pensar Moacir a partir da lógica da predestinação. Geralmente há muita expectativa em torno de um nascimento. A criança aparece quase como

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uma promessa e já com uma biografia. Gilberto Freyre só falta Uma das primeiras pedir que a vida dos grandes narrativas se cearenses não melhore, concentra no sexo. pois faltaria mão de obra Ter um pênis ou uma barata para colonizar o vagina, muitas vezes, vai definir se é menino restante do país ou menina, sem perguntar se aquela vida quer ser menino, menina ou nenhum dos dois. No caso do Moacir, José de Alencar faz a analogia de Moacir ser o Brasil na sua infância, sendo ambos filhos da Europa. Em um texto assustador, chamado “Antiguidade da América”, Alencar diz que a origem do mundo começou pelo Brasil, mas teve o dilúvio, que matou todas as pessoas, menos os americanos, que seriam, assim, “antediluvianos”. Esse povo fez a migração para a Ásia e para a África e, daí, gerou a Europa. Fechando o ciclo, a Europa voltou para a América. Quando os europeus chegam ao Brasil, Alencar considera que os índios estavam num processo de extinção, dando espaço para o homem branco dominar o Brasil e a América todinha. Alencar ignora a imigração asiática, mas considera que se juntarmos os povos negros, os povos brancos e os povos indígenas, dessa mistura, seríamos superiores à Europa, mas seríamos todos brancos. A teoria de raça de Alencar demonstra o desejo de ser branco. Então, quando Moacir é apresentado pela crítica literária como o primeiro mameluco, o primeiro mestiço, ele está comemorando um processo lento e gradual de embranquecimento dos brasileiros. Na prática, significa a eliminação dos demais povos que ocupam o território brasileiro.

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Nessa mesma pegada, os intelectuais brasileiros tentam buscar uma definição do que é o Brasil, o que é ser brasileiro. A mestiçagem, por muito tempo, foi rechaçada e vista como um problema. Mas Gilberto Freyre, com Casa-Grande e Senzala, dá uma guinada e torna a ideia de mestiçagem positiva. Ele dizia que o Brasil é um país que deu certo na mistura de todas as raças, criando a falsa ideia de democracia racial. Essa ideia, da década de 30, encontra-se na maioria dos intelectuais que vão pensar o Brasil. Darcy Ribeiro, por exemplo, em O Povo Brasileiro”, não busca a branquitude, mas a morenização, e acredita na possibilidade de uma raça homogênea. Mas qual o problema de pensar o brasileiro, de pensar uma homogeneidade? O problema é que, ao pensar a homogeneidade, eliminam-se as diferenças. Abdias do Nascimento e Kabengele Munanga foram dois autores fundamentais na tese. Para eles, ao defendermos a mestiçagem como um projeto de identidade brasileira, há a exclusão dos povos indígenas, dos povos negros, dos povos asiáticos. Se todos são mestiços, não existe negro, índio, asiático, branco. A gente sabe, no entanto, que, nessa camuflagem do mestiço, o branco domina. O homem branco é, portanto, o grande problema, mas ninguém precisa de uma tese pra concluir isso, né? A VIRADA

Há a expectativa de que Moacir seja um homem branco. O romance, no entanto, dá uma abertura para pensá-lo diferente. Pouco sabemos sobre a biografia de Moacir. Ele sofreu ao nascer, seu pai o colocou no barco e foi-se embora. Ele encerra o romance entrando no mar, o espaço onde o imprevisível opera com frequência. Alencar aposta que Moacir seja a predestinação da raça cearense

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que foge da sua origem geográfica. Dessa abertura no romance, proponho Moacir como utopia, uma poesia capaz de se transformar e mudar a realidade da predestinação. Daí, penso e crio a trajetória de alguns personagens cearenses, ficcionais ou não, que migraram e dialogam ou fogem da predestinação de Moacir. Alencar é um dos primeiros a se colocar como uma atualização de Moacir. Ainda criança, ele migra e se radica no Rio de Janeiro. Gilberto Freyre, sempre ele, escreveu dois textos com o mote “Precisa-se do Ceará”. O primeiro, de 1944, apresenta o cearense como personagem fundamental na colonização do Brasil, pois o cearense seria o judeu brasileiro e se espalha por todos os lugares do país. Em 66, no entanto, Freyre atualiza o texto, questionando que a vida dos cearenses estava melhorando, pois estava sendo favorecida pelo cearense Castelo Branco, ditador no comando do Brasil naquela data. Para Freyre, os cearenses não estavam mais migrando, o que atrapalhava a colonização brasileira. Ele propõe um estudo para saber se existe a característica do cearense de se fixar. Ele propõe um estudo etnológico, para saber se há uma tendência do cearense migrar, ou não. Ele só falta pedir que a vida dos cearenses não melhore, pois faltaria mão de obra barata para colonizar o restante do país. TU VEIO DAR O CU NESSE POLO NORTE, FOI?

Outro personagem que foge e não volta mais é Donato, personagem interpretado por Wagner Moura, no filme Praia do Futuro, de Karim Aïnouz. Donato é um salva-vidas gay, que se envolve com um alemão e vai embora para Berlim sem dar notícias para a família. Treze anos depois, o irmão bate na porta e diz: “Tu veio dar o teu cu nesse Polo Norte?”, como quem diz: “Tu é covarde,

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fugiu de casa”. Karim Aïnouz, em 2018, foi capa da Revista Dragão do Mar que trouxe o perfil do cineasta com o seguinte título: “Karim de Iracema, o filho da dor”. A publicação associa Karim a Moacir. Por coincidência, a mãe dele também se chamava Iracema. Mas Karim é filho de um pai argelino e uma mãe cearense que se conheceram nos Estados Unidos. Karim nasce no Ceará, mas vai morar na França com o pai e, lá, por causa do nome, não é considerado brasileiro, mas argelino e

Cena do filme Praia do Futuro

sofre xenofobia. Essa é uma figuração muito interessante de como fugir da predestinação de uma raça e de como a noção de identidade nacional tanto é uma falácia, como também uma norma de poder estabelecida pelos europeus. Só eles são puros? Mas voltemos a Donato. Pela relação sexual estabelecida com o estrangeiro, pela fuga da família, há uma dúvida se Donato atualiza Iracema, Moacir ou os dois. Não esqueçamos que Iracema também migra. Não, não

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é uma predestinação, minha genty. As fugas não se dão por ser cearense ou não. As fugas se dão para fugir de conflitos, na crença de buscar um outro lugar possível de existência. Assim Donato fez. INDIENNE: A FECHAÇÃO

Donato, Iracema, Karim, Alencar, Moacir, que nada, quem fecha mesmo com essa tese é Indienne Du Bois. Ela é personagem da peça Avental Todo Sujo de Ovo, de Marcos Barbosa, cuja montagem conheci por meio do Grupo Ninho de Teatro, do Cariri. Se você não suporta spoiler, melhor parar de ler o texto por aqui. Na peça, Moacir é um menino que desapareceu há 19 anos, fugiu de casa, e, todo ano, a mãe prepara, no dia do aniversário dele, o prato favorito da criança, na esperança de que ele sinta o cheiro e volte. Dezenove anos depois, o aniversário de Moacir cai no dia das mães, e Alzira, a mãe, está preparando o arroz de leite. Alguém bate na porta, mas não é o Moacir, é a Indienne. O corpo de Moacir não o pertence mais. A dona do pedaço,


Foto: Cristóvão Teixeira

Indienne, uma mulher trans, uma travesti de volta para casa. Marcos Barbosa faz muitas referências à Iracema, como cachorro Japi e as cartas que não chegam. Moacir, de Avental, no entanto, para continuar existindo, precisa abrir mão da sua identidade imposta, constrói um novo nome, dá um novo rumo, e constrói Indienne Du Bois, a índia da selva. Se em Praia do Futuro temos dúvida de Donato atualizar Iracema ou Moacir, em Avental não resta mais dúvida alguma. Moacir transformou seu corpo em pura poesia e resistência. Em Indienne, Moacir doa seu corpo à Iracema como forma de manter o corpo vivo e pulsante. Somente como um poema radical, Indienne pode voltar à casa de seus pais. Moacir nos ensina, portanto, que nada na vida é definitivo, e há sempre a possibilidade de se transformar e mudar as imposições perversas das predestinações.

Espetáculo “Avental todo sujo de ovo”, montagem do Grupo Ninho de Teatro, com texto de Marcos Barbosa e direção de Jânio Tavares


molhei teus pés com resto de chuva de meus cabelos, nos olhávamos como parte um dois da mesma parte, partilha, cuidado, encanto, mais tu já ia, e eu sabia, e é como se não fosse, é que também não ia, já tava, já era parte, depois daquele dia que te vi ir, voltar e novamente seguir, voltei à terra algumas dezenas de vezes, aprendi a tocar flauta, dancei ao redor do fogo, voei em trapézio, caí, escalei poço,


brinquei com porções e cartas, ervas e cigarras, entre odores e temperos cruzei mares... sempre soube de sua presença comigo, algumas vezes ignorei, estacionei no tabuleiro, sentia voltar, mas não voltava, só parava enquanto tudo seguia, queria voltar várias das várias partes em que ficamos a nos olhar, mas não volta, não volta nunca, e sempre está, eu projeto de Fada e tu Leão de Judá, as noites que me arremesso entre dedos, tremores intensos me trazem você escrito em Itálico, e o fôlego é curto, ,e os beijos são quentes, ,e a aderência do toque,,, enquanto datilografo lentamente, caminhamos por praças até que sinto o reboco quente do quartinho do sobrado, e a digital do seu lábio, e o meu mamilo tatuado

Ilustração: Marcello Nunes

(Thailyta Feitosa)


DEITO AO TEU LADO EM SENTINELA

quando levanto da cama vejo teu jeito de ocupar meus lençóis minha ausência temporária. como se deitasse sobre meu corpo que não se encontra mais e está de pé à beira do precipício em que dormimos. te observo sonhando aquecendo teu corpo do lado em que me deito, um vulcão adormecido na cidade pequena do nosso quarto. faço de tudo para não te acordar tão cedo. creio que o sonho crie imagens melhores das que vemos nas notícias. também não quero que durmas muito pois tenho medo que um país invada a porta de teu sono te fazendo perguntas sobre quem és o que pretende se segue a ordem mundial se surfa na onda conservadora. quando essas coisas passam por minha cabeça volto a me deitar ao teu lado em sentinela. atento a qualquer sinal de um

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Ilustração: Thamyres de Souza

país disposto a invadir nossa porta. imaginando que se vier virá com pés de projetos políticos os quais não estamos inclusos. muito menos nossas amigas nossos amigos e as pessoas que amamos. então fico deitado à espreita para que se pelo menos um país invadir nossa cidade eu possa dividir contigo as perguntas. dividir nossos medos nossos silêncios segurar firme tua mão. não responderei nada ao país se caso perguntar onde estão nossas aliadas se geramos lucros se contribuímos com um país em desgoverno e revisão. apenas abraçarei teu corpo e quero que me abraces também. como quem abraça uma bomba um animal um vulcão. como quem abraça um grande amor. sem medo do sono interrompido sem medo da morte sem medo de nada.

Jun/Jul 2019 | 57


ESPAÇO FUNDADO

é madrugada e os cachorros latem enquanto gravo este poema. tem pessoas se revirando na cama sem conseguir pegar no sono. por vezes lhes surgem imagens aceleradas de coisas que se partiram ou de feridas. eu não me reviro na cama porque estou sentado escrevendo um poema. eu me reviro no poema juntando coisas que partiram, lambendo minhas feridas. mudo de lugar não adormeço até que apareça o poema. se as feridas me fazem revirar na cama escrevo um poema, fundo um espaço. é neste espaço onde o poema cria seu jeito de recolocar as dores. fundo um espaço para as dores e digo-lhes: aqui é um lugar propício

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para vocês permanecerem. o tempo que for é o tempo que podem ficar. assim as dores não se atrasam para as mudanças e vão viver no espaço fundado dentro do poema. ao menos pelo tempo que for preciso ou até cair em tédio e irem embora se dissolvendo. ou morrerem de velhice na cama antes da romaria. ou retornarem inevitavelmente à minha cabeça como quem retorna à cidade onde viveu sua infância. escuto uma música. é um poema que canta e funda um espaço. que música linda penso. vou apresentá-la às minhas dores. quem sabe elas não queiram passar as férias por lá.

Ilustração: Espedito Duarte

(Pedro Bomba)

Jun/Jul 2019 | 59


C

urta o onto

Dois Luís Celestino Na pista de dança de uma boate, alguém dança. Na pista de dança de uma boate, toca música eletrônica. Talvez house. Na pista de dança de uma boate, alguém que dança percebe que alguém se aproxima. - Oi. Como se chama o garoto que dança? - ... - Oi. Como se chama o garoto tímido que dança? - ... - Talquei. Eu te vi de longe, guri. - E? - E daí eu vim aqui ver se tu não querias dançar comigo. - ... - Essa boate é meio flopada, não achas? - Eu gosto daqui. - Acho tudo aqui meio brega, meia luz, pintura na parede ... - Eu gosto daqui. - Você é daqui mesmo? - Sou. - Não parece. - ... - Eu não sou daqui. - ... - Eu vim de longe.

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Ilustração: Thamyres de Souza

- ... - Gostei da sua camisa. - Obrigado. - Poxa... você é daqueles que agradecem quando recebem um elogio. Nunca imaginei. - Gostei da sua camisa. - Você consegue ver ela? - Claro. - Que cor é? - Azul. - Não, não é. - Tô me sentindo naquele desafio pra saber se a saia é azul ou rosa. - Pra mim, a saia sempre era azul. - Pra mim, a saia era sempre rosa. - Acho que azul e rosa combinam sempre. - Que cafona. - Você é dos caras que agradecem um elogio e que acham rosa e azul juntos cafona. - Não acho. - Você acabou de falar. - Eu acho essa coisa de ficar discutindo


combinação de cores cafona. - Não é. - Tá bom. Pra você não é. Mas, pra mim, é. - Você é sempre assim? - Assim como? - Calado? - Tô falando contigo e você nem perguntou se eu queria conversar contigo. - Você quer conversar comigo? - ... - Não? - ... - Então vou embora. - Fica. - Então me beija. - Assim? - Assim do nada? - E o que é que antecede um beijo? - Sei lá. Conversa. - Conversamos. - Sei lá. Química. - Agora é a minha vez de colocar três pontinhos. - Eu já beijei essa noite. - Quem você beijou? - Você não conhece. - E por que você não está com ele? - Ele? - Sim. Ela. Ela estuda comigo. - Ela? - Desculpa. Vou indo. - Pera. Por quê? - Acho que me confundi. - Com o quê? - Esse papo das cores das camisas. - Não sabia se era azul ou rosa? - Pra mim, era cinza.

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- Pra mim, também. - Então me beija. - Aqui? - Sim. Aqui. - Na frente de todo mundo? - Quem é todo mundo? - Todo mundo dançando. - Você conhecia a garota que você beijou? - Sim. - E havia química? - Sim. - E por que você não está com ela? - ... - Você já beijou um garoto? - Nunca. - Por quê? - Dizem que quem beija um garoto e uma garota na mesma noite desaparece. - É? Nunca vi falar nisso. - Mas já viu alguém beijar um garoto e uma garota na mesma festa? - Não. - Tá vendo? - Por que acontece isso? - Dizem que é uma maldição. - Maldição? - Você tem medo de maldição? E os dois se beijam. E se beijam. Se beijam. Mas somente um dos dois desaparece.

Luís Celestino é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri.

Jun/Jul 2019 | 63


C

urta a rônica Ilustração: Júlia Marques

Nos tempos do Bel Air

Ronaldo Salgado Bel Air era o nome do Chevrolet de meu pai, o saudoso Chico Salgado, a partir de meados dos anos 60 do século passado, de fabricação americana, cor azul anil metálica, com o qual o velho singrava as ruas do Crato, com toda a família, em passeios diários após o expediente vespertino. Era sagrado. Isso atiçava meu imaginário infanto-juvenil de forma potencial e a dos meus irmãos e irmãs, Carlos César, Reginaldo, Rosângela, Viviane, Ana Cláudia, Salgadinho, Roseane e Ana Helga. Morávamos à Rua José Carvalho, 469, bem por trás da Igreja da Sé. O escritório do velho

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Chico ficava na Rua Senador Pompeu, próximo à Praça Siqueira Campos, de onde papai saía às cinco e meia da tarde para pegarnos e nos levar para passear pelas ruas da Princesa do Cariri. Tudo durava entre meia hora e 45 minutos de encanto, alegria, magia, imaginação... No toca-fitas do Bel Air, a trilha sonora se dividia entre Glenn Miller, Pérez Prado, Ray Conniff, Nat King Cole, Louis Armstrong, Beatles, Nélson Gonçalves, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Moacyr Franco, Chico Buarque, Nelson Ned, toda a Jovem Guarda e a Bossa Nova. Enfim, era música para todos os gostos e apetites. Uma plêiade musical de embalar sonhos e fantasias, emoções e imaginação de pessoas de idades as mais disparatadas. Os passeios abarcavam o Bairro do Pimenta, o Bairro Vermelho, o Alto do Seminário, a Batateira, o Restaurante Pau do Guarda, o Lameiro, o Parque de Exposição... Às vezes, se estendiam aos canaviais de Barbalha, às ruas e praças de Juazeiro do Norte, ao antigo aeroporto do Cariri, sedimentando em nossos corações flores de afeto, amor, memória, emoção. Tudo isso embalado pelos assovios e cantarolares do meu velho, que parecia, com aquele desfile público de paternidade atenta, graciosa e repleta de carinhos e manifestações escancaradas de amor, afastar de vez os cansaços e estresses das rotinas de trabalho sem titubeação. Aos domingos, o Bel Air se enchia de biquínis e shorts de banho, em meio a panelas de arroz com pequi, feijão verde ou de corda e carne assada na brasa, e acelerava em direção aos banhos de piscina e às sombras

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das árvores ora no Crato Tênis Clube, no Chico da Cascata ou no Itaytera Clube, ora no Serrano ou no Granjeiro. Os aclives e declives que dão contornos às subidas para esses paraísos serranos emoldurados pela Chapada do Araripe ainda reverberam em meu coração cratense e em minha memória de modo indelével, inexpugnável, inolvidável. Os tempos do Bel Air são para mim não manifestação de saudosismo; ao contrário, são imperativos memoriais que me remetem a reverenciar a memória de papai, que, além de ter sido um cara que lutou com as armas de um economista e contabilista para o desenvolvimento de projetos industriais na Região do Cariri, foi um carnavalesco incorrigível e um amigo de muitos amigos. Nessa mescla de amizades e carnavais, não me esqueço das curriolas desses amigos quer lá em casa entoando marchinhas de carnavais para sair em corso pelas ruas cratenses, quer naqueles paraísos serranos em mesas repletas de aguardente Vale do Cariri, uísque Cavalo Branco, cerveja Brahma ou Antárctica. Como não citá-los, mesmo correndo o risco de ser traído pela memória? Quixaba, Zé Conrado, Cândido Figueiredo, Juvêncio Mariano, Gilberto Mariano, Miguel Teúnas, Miguel Castro, Kléber Calou, Pedro Felício Cavalcante, Don João, Alagoano, seu Macário, seu Oscar, seu Zé Walter... Ah, se a mim fosse dado o dom da Deusa da Memória, Mnemósine, para não falhar neste momento em que as palavras me atropelam como que pelos pneus do Bel Air... Sim, Bel Air que me cutuca nesta crônica para esses mergulhos traiçoeiros de memória é o mesmo que com a Miss Crato – a qual foi

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eleita Miss Ceará e, posteriormente, terceiro lugar Aos domingos, o Bel Air se no concurso de enchia de biquines e shorts Miss Brasil em de banho, em meio a panelas 1966 – vestida a de arroz com pequi, feijão caráter, desfilou verde ou de corda e carne pelas principais assada na brasa ruas em louvor à beleza de Franci. É o mesmo que encantava seu Zé Aragão, um amigo fraterno de papai, motorista por vários anos a servir o velho Chico Salgado, levando-o ao aeroporto para as viagens constantes a Recife, onde apresentava os projetos de desenvolvimento industrial e econômico na antiga Superintendência de Desenvolvimento Econômico do Nordeste (Sudene). Ora, ora, ora, leitor e leitora destas linhas mal tracejadas em cujas entrelinhas eu debulho lágrimas e sorrisos, encantamentos e saudades, o tal Bel Air embalou o sonho do segundo amor de papai, minha segunda mãe, Maria Nilza Barbosa Salgado, a quem chamo carinhosa e afetuosamente de minha veinha, uma mulher de fibra, coração e energia de fazer inveja ao tal Bel Air...

Ronaldo Salgado é professor aposentado do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará.

Jun/Jul 2019 | 67


Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado Por Isabel Costa Uma pesquisa histórica bem elaborada, um traço pungente, uma narradora sólida e muito, mas muito, humor sarcástico. Essa é a “receita” de A Origem do Mundo – Uma História Cultural da Vagina ou A Vulva VS. o Patriarcado, produção da quadrinista sueca Liv Strömquist que chegou ao Brasil em edição da Companhia das Letras. A história em quadrinhos – constituída majoritariamente em preto e branco – mostra como o corpo feminino foi dissecado, mal estudado, punido, cerceado e ignorado ao longo da história da humanidade. Antes disso, conforme mostra Liv, existiu adoração à genitália feminina em algumas culturas. Mas, em algum ponto, o status de divindade foi substituído pelo escárnio e pelo desconhecimento quando se fala da vagina. Esses, aliás, são os sentimentos existentes em relação a vários campos do corpo e da existência feminina. Ao longo da narrativa, Liv mostra que fez uma pesquisa teórica muito bem apurada. O mérito dela é conseguir transpor o conhecimento histórico e científico de forma palatável. O leitor não fica entediado. Ao contrário, os textos e as imagens fluem para nos fazer querer sempre avançar mais uma página. É uma leitura extremamente contagiante! É particularmente interessante acompanhar o humor

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de Liv ao abordar o pensamento de pesquisadores e cientistas. “A maioria das mulheres não é incomodada por nenhum tipo de relação sexual”, disse o médico Willian Acton. “Para três quartos de todas as mulheres, os abraços do marido são um suplício”, disse o médico Adam Raciborski. “O pescoço caracteristicamente alongado da mulher é sinal de sua falta de paixão”, segundo a frenologia – uma pseudociência popular no século XIX. Essas e outras “barbaridades” foram faladas, replicadas e consideradas verdadeiras por muitos e muitos anos. À época, claro, esse era o conhecimento teórico vigente e não existiam muitas contestações para as “recentes descobertas” feitas por “cientistas” que “estudavam” a vulva. A quadrinista passeia por vários assuntos que são considerados tabus. E questiona: por qual razão eles são tabus? Menstruação, desejo sexual, publicidade, orgasmo, clitóris. A falta de pesquisas sérias – ou a existência de investigações baseadas em avaliação empírica e sem respaldo científico – nos fez desconhecer a vagina durante séculos. Como consequência, há um pudor excessivo e errôneo de muitas mulheres em relação aos próprios corpos. Com bom humor e arte, Liv ajuda a quebrar algumas barreiras e a explicar que – não importa o que estão falando – nossos corpos não são sujos, estranhos ou unidades feitas para o prazer alheio. Serviço A origem do mundo – Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado Liv Strömquist Tradução: Kristin Lie Garrubo

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Livro: Carta aos Loucos Autor: Carlos Nejar Editora: Record (1998) Carta aos Loucos é a biografia de uma aldeia-mulher. É a história de um povoado disposto a abolir o tempo que o envelhece, determinado a passar o tempo como alma animal. É também o retorno a uma narrativa primitiva de Homero e dos clássicos, quando a narração, antes de tomar o formato de romance, era indivisível poema. Nejar aponta o rio da memória em que o realismo mágico necessita desembocar. Não basta mais expor a realidade pelos seus excessos, mas mostrar o impossível, o fantástico. Livro: Acenos e Afagos Autor: João Gilberto Noll Editora: Record Noll conta a história de um homem que abandona uma vida monótona para buscar sua verdadeira identidade e suas paixões. O escritor Sérgio Sant’Anna afirma na orelha do livro: “Como em A Fúria do Corpo (1981), outra grande obra de João Gilberto Noll, é a libido, radicalmente, que move a escrita (...) Uma libido, no presente caso, quase sempre homoerótica, sem freios, culpa ou pecado”. Livro: O Presidente Negro Autor: Monteiro Lobato Editora: Globo A história de O Presidente Negro se passa nos Estados Unidos, na década de 1920, e aborda temas como a segregação racial, aculturação, feminismo e ainda profetiza o surgimento de uma rede pela qual as pessoas se comunicariam e trabalhariam a distância, semelhante à internet.

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Arte da Palavra - Rede SESC de Leituras

O projeto Arte da Palavra – Rede Sesc de Leituras é um circuito atuante em todas as regiões do país que estimula a divulgação de autores nas suas diferentes formas de manifestação. Durante o ano de 2018, mais de 70 representantes da diversidade literária brasileira percorrerão todos os estados do país. A fim de promover o intercâmbio de artistas e a formação de leitores, o projeto tem como objetivo oferecer ações que atuem em toda a cadeia da literatura, incluindo a formação e a divulgação de novos autores, a valorização das novas formas de produção e fruição literária, possibilitadas pela emergência de discursos periféricos e a utilização de novas tecnologias. Dentre os participantes de 2019, nomes como Luisa Geisler, Raphael Montes, Eliane Alves Cruz, Fabrício Corsalleti e Bruna Mitrano percorrerão o país. Entre março e dezembro, serão realizados mais de 700 encontros, apresentações e oficinas. http://www.sesc.com.br/portal/site/ArtedaPalavra/ home (site oficial do projeto)

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