ANO 2 EDIÇÃO 06
Pequiá
Literatura Sesc
A revista de literatura Pequiá, uma realização do Sistema Fecomércio - CE em parceria com a Universidade Federal do Cariri, através da PROCULT, dando continuidade a sua missão, apresenta, nesta edição, o mesmo compromisso de ser esse elemento de estímulo à leitura e difusão da literatura. A segunda edição de 2019 traz entrevistas com os premiados autores Itamar Vieira Junior, vencedor do Prêmio LeYa 2018 com o livro “Torto Arado”; e Mailson Furtado, vencedor do Prêmio Jabuti 2018 com o livro “À Cidade”. O movimento de articulação e fomento à leitura da Comunidade do Gesso, na cidade de Crato, Roda de Poesia, é destaque na edição da Pequiá. O Caderno de Contos apresenta a prosa de Ricardo Salmito. Temos também contribuições de Aline Medeiros, que resenha o livro “Com Armas Sonolentas”, de Carola Saavedra, revelando como a autora constrói uma narrativa admirável e inteligente, representativa da ancestralidade feminina; crônica de Ronaldo Salgado; e poesias de Lisiane Forte, Talles Azigon e Paulo Júnior. Nesse caminho, o Sesc assume seu papel social e, por meio das ações do Programa Cultura, democratiza o acesso aos bens culturais, em uma publicação de qualidade, na qual as pessoas encontram bons instantes de fruição em torno da literatura, essa forma privilegiada de encarar o mundo. Boa leitura a todos!
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EXPEDIENTE Edição 6 | Agosto/Setembro 2019 FECOMÉRCIO | SESC
DEPARTAMENTO REGIONAL DO SESC/ AR-CE
Presidente: Maurício Cavalcante Filizola Diretor Regional: Rodrigo Leite Rebouças Diretora de Programação Social: Patrícia Carnevalli R. de Paiva Diretora Administrativa: Débora Sombra Costa Lima Diretor Financeiro: Gilberto Barroso Frota Gerente do Programa Cultura: Chagas Sales Nogueira Lima Coord. Regional do Programa Cultura: Maria Bezerra UNIDADE CRATO DO SESC Gerente: Heliane Aragão Pereira Supervisor de Cultura: George Belisário Técnicos do Programa Cultura Sesc Crato: Suzana Carneiro (Técnica de Cultura), Gabriel Campos (Técnico de Cultura), Socorro Dantas (Bibliotecária), Talita Rocha (Auxiliar de Biblioteca) e Raflésia Custódio Dias Bezerra (Assistente de Biblioteca) UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA Reitor: Ricardo Luiz Lange Ness Vice-Reitora: Laura Hévila Inocêncio Leite Pró-Reitor de Cultura: José Robson Maia de Almeida Coord. de Política e Diversidade Cultural: Gustavo Ramos Ferreira REDAÇÃO Repórteres: Clarice Rosane e Paulo Rossi Colaboradores: Aline Medeiros, Dalila da Silva, Lisiane Forte, Márcio Mattos, Paulo Júnior, Ricardo Salmito, Ronaldo Salgado e Talles Azigon Curadoria: George Belisário e Gustavo Ramos Projeto Gráfico: Estúdio Caravelas / Hanna Menezes Diagramação: Paulo Anaximandro Tavares Foto de capa: Paulo Anaximandro Tavares Ilustrações: Espedito Duarte e Thamyres de Souza Revisão: Márcia Leite e Paulo Rossi Professor Orientador: José Anderson Sandes Coordenação Editorial: George Belisário REVISTA PEQUIÁ (SESC CRATO) Rua André Cartaxo, 443 – Palmeiral Crato/CE CEP: 63100-555 Telefone: (88) 3586-9163 E-mail: gbelisario@sesc-ce.com.br Tiragem: 1000 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
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Leia o perfil de Mailson Furtado, poeta cearense premiado com o Jabuti de 2018, conquistado através do livro “À Cidade”. Ele fala sobre a obra, processo criativo e revela aspectos de sua vida.
06 Confira entrevista com o baiano Itamar Vieira Junior, autor de “Torto Arado”, livro vencedor do Prêmio LeYa 2018. O escritor fala sobre a importância da antropologia e da pesquisa para compor seu romance, além de conversar sobre sua infância e influências literárias.
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Descubra como foi a edição do mês de junho da “Roda de Poesia”, organizada pelo Coletivo Camaradas, que acontece regularmente no último domingo de cada mês, na Comunidade do Gesso, em Crato.
44 Curta a crônica de Ronaldo Salgado, “Seres Urbanos, Seres Humanos”; e o conto de Ricardo Salmito, “Jitiranas”. Aprecie também a resenha escrita por Aline Medeiros do livro “Com Armas Sonolentas”, de Carola Saavedra; e as poesias de Lisiane Forte, Talles Azigon e Paulo Júnior.
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Engrenagens da Escrita A escritora gaúcha Carol Bensimon lançou este ano curso on-line de escrita. A oficina “As engrenagens do romance” é composta por 12 aulas, liberadas a cada semana, que tratam dos diversos aspectos do processo de escrita ficcional. Bensimon venceu o Jabuti de Melhor Romance, em 2018, com “O Clube dos Jardineiros de Fumaça”. Interessados podem se inscrever pelo link https://tinyurl. com/y3xxus39 Vagalumes Resistentes A vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura (Estreante +40) com o livro “Oito do Sete”, Cristina Judar, lançou antologia “A Resistência dos Vagalumes”, onde reúne contos, poemas, etc. com temática LGBT+, na FLIP, em Paraty. Ao lado de Alexandre Rabelo, detectou 60 vozes de tantos cantos e origens, suas linguagens, suas marcas, sua literatura dita, cantada, gritada, escrita, professada. A antologia foi publicada pela editora Nós. Prêmio Sesc Foram anunciados os vencedores do Prêmio Sesc de Literatura deste ano. Na categoria Contos, o escolhido foi João Gabriel Paulsen, com “O Doce e o Amargo”. Entre os romances, “O Legado da Nossa Miséria”, de Felipe Holloway, levou o prêmio. Foram quase 2 mil obras inscritas, número recorde para a premiação. A comissão julgadora final ficou a cargo de Ana Miranda, Tércia Montenegro, Veronica Stigger e Julián Fuks. Os vencedores terão sua obras publicadas e distribuídas pela editora Record.
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Foto: Arquivo Pessoal
Mailson Furtado Escrita Genealógica
Entrevista | Clarice Rosane Texto final | Paulo Rossi O escritor cearense Mailson Furtado, que atualmente reside em Varjota, viu sua vida mudar em 2018 após ganhar o prêmio Jabuti com o livro “À Cidade”. Dentista, 28 anos, nascido em Cariré, ele diz que não pretende abandonar o consultório. Dono de uma forma de escrever que já passou pela prosa - bastante criticada pelo próprio autor, que também faz teatro -, Mailson afirma que tem
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“uma escrita poética voltada muito para a parte da consciência” e conta que a descoberta de vários autores e cantores, na adolescência, moldou sua vida até agora. A seguir, você confere trechos da entrevista para a Pequiá. PEQUIÁ | Sua poesia nasceu no sertão nordestino, você bebeu da fonte de Ariano Suassuna, autor de “A Pedra do Reino”, uma obra complexa e cheia de signos. Fale sobre a relação entre a sua poesia e o romance “A Pedra do Reino”. MAILSON FURTADO | Tenho influência do Ariano no sentido de buscar o fortalecimento popular, uma visão popularesca necessária e, ao mesmo tempo, acadêmica. Sempre me preocupo com esses dois lados. Quanto ao livro “A Pedra do Reino”, ele me foi um estalo, um motivo - e não influência estética. O que me marcou muito foi essa questão da pontuação, da marcação geográfica, da marcação local, que é muito característico do Ariano até na força política dele de defender a arte. Eu tinha lido a obra em 2015, pouco tempo depois vim numa turnê de teatro que passou por Juazeiro, depois pela região de Serra Talhada e Caruaru. Nesta região veio todo esse mapa que Ariano traz nessa obra. Lá, senti o estar ali sem nunca ter estado, simplesmente pelo poder da poesia. Isso foi muito forte pra mim, ver toda aquela paisagem que se passava. Voltando para casa, senti a necessidade de um dia marcar alguém um pouquinho da mesma forma que o Ariano me marcou com a obra dele. PEQUIÁ | A cidade onde você mora, Varjota, foi inundada pelo rio Acaraú a partir da construção de uma barragem, forçando os habitantes a migrarem para uma região vizinha. De que forma você explora o passado e as memórias da cidade em seus poemas?
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MAILSON FURTADO | Varjota é um lugar inventado. Existe uma Varjota depois da barragem totalmente diferente da de antes. Como a construção era uma obra muito extensa, na época migrou muita gente para lá. A partir disso, surgiu um monte de lendas da pré-cidade, mas também veio muita coisa do momento da construção, por ser uma época que existia pouca imprensa. Quando não existe registro, as histórias acabam por virar mitologia. Hoje grande parte da população são pessoas que naquela época foram trabalhar lá e acabaram escolhendo ficar por ali... PEQUIÁ | Como se deu o processo de pesquisa dessa genealogia? MAILSON FURTADO | Por incrível que pareça, eu comecei a pesquisar pela internet. E, uma coisa que Ariano também dizia, como eu não sou historiador, não tenho obrigação nenhuma com delimitação de marcar a história como ela foi. Muitos dados fui pegando, coletando e fui montando minha verdade artística. O padre Sadoc, de Sobral, tem um trabalho magnífico de toda essa genealogia dos primórdios da região onde se localiza Varjota, algo gigantesco. Casei tanto a internet quanto esses documentos sacros, da Igreja. PEQUIÁ | Como Varjota surge no livro? MAILSON FURTADO | Na verdade eu descarreguei a história por ela mesma. Varjota contando sua própria história. PEQUIÁ | Ao escrever o livro você pensou nos aspectos culturais, geográficos, históricos e políticos? MAILSON FURTADO | Eu tenho uma escrita poética voltada muito para a parte da consciência, aquela coisa que o Ferreira Gullar fala do estado de poesia. Esse livro eu escrevi em vinte dias. É algo que a gente vai escrevendo e não pensa, vai só
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Foto: Arquivo Pessoal O poeta-ator
descarregando o que está dentro de si e a caneta vai sacudindo fora. Além disso, existe todo esse arcabouço de dados, tem muito essa coisa histórica de onde eu fui pesquisando e que ficava em mim, tem muita coisa da Geografia. Varjota acontece da década de 1960 para cá e se tornou cidade apenas em 1985 do século passado, com 34 anos agora. Eu vi as ruas crescerem, vi elas mudarem de aspecto; uma coisa que me marcou muito na infância eram as árvores da moda na época. Fui percebendo o caminhar a partir desses cenários de imagens que tive na infância. Falo que as folhas dançam no terreiro e misturam sempre verdes e mungubas que parecem perto, mas estão muito longe. Essas coisinhas pequenas, que vão contando visões, conscientizei e trouxe para a obra. Não é à toa que eu falo muito pouco do açude Araras, eu trago aqui a invenção do sertão por três camadas, pelo menos, da minha região. Uma pelo rio do
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Acaraú. O percorrer do rio foi inventando localidades, Acredito que ainda vai peguei-o para ser demorar um tempo esse termo inicial para acontecer esse esquecimento do livro físico. de bandeirantes, Acho ele muito fundamental, de portugueses importante existir” na época. Depois veio grande e maciçamente a estrada de ferro, século XIX, que cortou desde o Camocim até o Crateús. Por último, na década de 1940 para 1950, a rodagem, a estrada de barro. Trago o rio como primeiro elemento formador daquele lugar, o primeiro motivo de ser daquele lugar, daí sua grande importância. Uma visão muito forte pra mim, na época de 2015, quando eu tinha 25 anos, foi a represa seca. Eu nunca tinha visto o rio seco. Há muitos balneários e, ao chegar, no domingo à tarde, e ver aquela gente, mesmo não tendo água, mesmo tendo aquela coisa que a gente vê em asfalto quente, poeira, isso me espantou muito e me marcou, não é à toa que eu coloco até no livro uma parte que, apesar do rio estar seco, tudo vale para namorar o Acaraú. PEQUIÁ | Como foi o processo de escrita do seu primeiro livro, “Sortimento”? MAILSON FURTADO | “Sortimento” é um livro muito cru, amador, que escrevi com 17 anos. Comecei a escrever nesse período, comecei a ver que eu podia ter uma visão minha de mundo. Esse momento foi muito importante pra mim na adolescência, conhecendo muitos autores, principalmente música, na época principalmente a galera do rock-b, do rock Brasil, galera do rock inglês, rock americano
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60-70, música psicodélica. Depois disso vieram os primeiros despontares poéticos. Não queria um dia morrer por morrer, queria deixar alguma coisa e percebi que poderia ser através de livros, de literatura, de poesia. Comecei a escrever na época, muito cru, muito amador, iniciei com 14 anos, terminei com 17 ou 18, finalizando o ensino médio. Em 2008 o livro estava pronto, aí descobri que para lançar precisava de dinheiro, era um lascado na época. Fui atrás de alguém que pudesse me bancar e só ganhei “não”. Abandonei o projeto, engavetei, nesse tempo eu sempre tive trabalho com o teatro, paralelamente, então isso me animava... PEQUIÁ | Desde quando você trabalha com as linguagens do teatro e da literatura? MAILSON FURTADO | Desde 2006. Na sétima série eu fui para uma outra escola, lá eu descobri o mundo, toda essa coisa da música, do rock que eu falei. A minha turma da escola foi muito marcante para mim porque líamos, escutávamos nossas coisinhas e a gente ia pras casas uns dos outros pra conversar sobre filosofia, política, astrofísica - entender o que era a teoria da relatividade, essas viagens -, tudo do nosso jeito. Uma parte dessa galera foi pro teatro, uma pra música, outra foi escrever. Eu enveredei para o teatro e comecei a escrever. O livro estava pronto em 2008, abandonei, mas não deixei de escrever na época, queria mostrar para alguém, ser lido, e descobri que podia lançar na internet. Fiz um blog com esses trabalhos, com alguma divulgação de teatro, com meros conceitos que eu tinha de arte e consegui alguns acessos legais. Participei de uns concursos que existiam na época e esse blog foi indicado para alguns prêmios. Isso me animou de novo. A partir dessas indicações
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veio a confiança. Tem a parte positiva e a parte negativa de ter feito tudo com muita pressa, mas esse trabalho foi muito importante por ter aberto um mar de portas. Nessa época, eu pedi um empréstimo a muitos amigos, “me empresta que eu vou te pagar vendendo livro”. A inocência… PEQUIÁ | Tem que ter muita confiança… MAILSON FURTADO | Mas eu estava tão confiante que vendi tudo o que eu tinha pra vender, paguei tudo o que gastei e ainda lucrei um pouquinho, então deu certo. PEQUIÁ | Foram quantos exemplares? MAILSON FURTADO | 500, na época. PEQUIÁ | 500 exemplares? Uma boa tiragem, né? Para um primeiro livro... MAILSON FURTADO | Como a cidade é muito novinha, acho que fui o segundo autor a lançar livro. Tem muita gente que não vai comprar o livro para ler, vai para te agradar, tenho consciência disso, sou bem sincero. Esse livro abriu muitas portas pra mim. Por ter publicado tive acesso a um campo muito grande de contatos e comecei a viajar, ir para escolas para dar palestras, rodar. O primeiro livro já era todo diagramado. PEQUIÁ | A poesia no Brasil está tão longe das pessoas, depois da nossa modernidade tardia. Como é que você vê essa questão, de ainda publicar poesia quando a gente sente essa distância por parte da população, por parte dos jovens? MAILSON FURTADO | Olha, por incrível que pareça está surgindo uma onda muito bacana agora, no meu entender, por conta de mídias sociais. A poesia pode não vender, mas a galera está lendo mais. Vejo com bons olhos. Pelo menos há um primeiro encontrar da poesia com essa galera nova. As pessoas nunca leram tanto como hoje,
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Foto: Paulo Anaximandro Tavares
Foto: Arquivo Pessoal Mailson Furtado durante palestra no TEDxFortaleza
você passa pelo menos duas horas por dia com o celular lendo coisas boas ou ruins. Dentro das boas, vez ou outra aparece um poeminha, trechinhos, microcontos, micropoemas, final de algum poema, um espacinho de uma frasezinha do epílogo de um romance que podem abrir o campo, né? A internet é fundamental nisso. Quanto à poesia em si, o mercado está se fortalecendo muito esses dias, ao meu entender, principalmente com uma poesia de protesto de forma oral. A oralidade que está nesse novo macro de intervenções, principalmente em periferias de grandes cidades, minorias talvez, as classes menos favorecidas, ou que antes eram esquecidas. Oportunidade de falar a partir da poesia. Dentro desse campo já tem tanto a condição social quanto a potência artística nisso. Os principais selos que a gente chama de selos pequenos no Brasil publicam poesia: Patuá, 7Letras, Garupa. A Companhia das Letras até já tem espaços internos legais dedicados à poesia. Ano passado saiu muita coisa legal, e está chegando muita tradução de alguns autores. Conheci muita gente esse ano por conta dessas traduções que estão chegando ao Brasil, toda essa leva de poesias, de continhos… vejo com otimismo todos
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esses movimentos que acontecem: os saraus, os slams, as pelejas, o cordel em todo canto, a internet trabalhando com pelejas virtuais, falando de livro. Tem canais sendo vistos por milhares de pessoas que falam sobre literatura. PEQUIÁ | E como foi o processo de inscrever um livro no Jabuti, você esperava ganhar essa premiação? MAILSON FURTADO | Nada, eu tinha escrito os três livros e parei um tempo para fazer toda aquela pesquisa e entender aquilo que eu podia escrever. O Jabuti veio de querer entender o que diabo eu estava escrevendo dentro do cenário nacional. Eu nunca tinha saído do Nordeste até o ano passado, fui pra Flip ano passado justamente para tentar entender o que era isso e voltei muito feliz. Três meses depois veio o Jabuti. Esse livro trago como meu primeiro livro maduro. O primeiro é muito cru, o segundo é de prosa, eu não trabalho com prosa, foi uma aventura, o terceiro já é algo mais experimental, mas ainda não estava no ponto. Então trago esse como meu primeiro, também tem um caráter muito experimental, mas com uma pesquisa bem profunda. Eu escrevi buscando esse motivo, tentando entender. Caso o livro tivesse potência, se destacasse dentro do prêmio, ele poderia me dar a resposta. Para minha Não queria um dia morrer alegria, deu. por morrer, queria deixar PEQUIÁ | Depois do alguma coisa e percebi que poderia ser através de livros, prêmio as vendas de literatura, de poesia” foram alavancadas? Você tem ideia de quantos exemplares já foram vendidos?
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Foto: Arquivo Pessoal
MAILSON FURTADO | Mais de quatro mil. No início tirei 300 exemplares e espalhei uns 100 pra escritores, pra imprensa. Mandei para quem eu fui pegando clandestinamente e-mails e endereços postais, mandei para muita gente. Uns 100 eu vendi em evento, viajava muito por conta do teatro e levava. Os outros 100 ficaram debaixo da estante. Pronto, depois dessa coisa toda, eu e minha esposa tivemos que aprender a vender livro. Questão de vendas, questão burocrática eu não sabia nada, nota fiscal, prestação é um inferno, e ligar para a editora e cobrar de editora, livraria é um inferno. A gente teve que aprender do dia pra noite, porque estava recebendo e-mail de Porto Alegre a Rio Branco querendo esse livro, e agora? Tinha que pôr esse trabalho pra rodar. Conseguimos colocar em alguns pontos de venda e está dando certo, na internet. Consegui o livro em dezembro e, de lá pra cá, foram quatro meses. PEQUIÁ | Fala-se muito do difícil processo de produção e circulação de uma obra, de um novo circuito de poetas, ou seja, os poetas marginais. Você se colocaria dentro dessa tribo? Mailson em cena com a Companhia Criando Arte, da qual foi fundador
MAILSON FURTADO | Seria uma honra para mim estar. A primeira grande coisa que me chocou foi conhecer a poesia marginal da década de 1970, quando entrei na biblioteca da escola em 2007 e encontrei Paulo Leminski. Fui conhecendo essa galera e é isso o que eu quero ser. É uma escola que marca profundamente. PEQUIÁ | Você assinou contrato com alguma editora depois do prêmio? MAILSON FURTADO | Ainda não, estou com alguns projetos e pensando nessa possibilidade de mandar. Na verdade eu sempre mandei, nunca neguei, porque eu acho um espaço necessário e importante das editoras. Só acho que precisa ter uma reflexão, como venho debatendo desde novembro. Tem que ter um repensar mercadológico de todos nessa questão. Acho que se precisa de uma visão mais responsável para dar voz ao que o Brasil precisa entender, mostrar o que o Brasil tem. PEQUIÁ | É muito concentrado na região Sudeste, né? O Nordeste por enquanto se encontra um pouco mais negligenciado... não sei, mas com pouca visibilidade para os escritores nordestinos... MAILSON FURTADO | Acho que esse nem seria o grande problema em si, a regionalização. Acho que há uma negação de novas vozes... PEQUIÁ | Falta de espaço, né? MAILSON FURTADO | Hoje há amigos no Sul que estão no Rio, mas também não têm espaço. Claro que eu acho que aqui, no Nordeste, realmente a gente apanha mais por vários motivos. Saí hoje de casa às cinco e meia da manhã para chegar aqui às duas da tarde, rodei quase 600 quilômetros. Nesse intervalo de espaço de Varjota até aqui, nenhuma cidade tem livraria. É um negócio gritante. Você só vai encontrar uma livraria em Juazeiro do
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Norte, Fortaleza, Sobral. Ainda bem que a internet conseguiu pelo menos promover um pouquinho de acesso. Livraria não é só espaço de venda, é espaço cultural, é importante para passeio, é um espaço. Já é um problema a questão de distribuidores, que a gente não tem - até porque não tem livraria, não tem pra quem distribuir, não vai colocar livro em bodega. Há ausência de parques gráficos de editoras, faltam eventos grandes, em proporções mais firmadas, que não sejam meramente convites de amigos. Às vezes é pesado ficar participando de eventos somente pela amizade, sem ter um retorno financeiro. Eu acho que o mercado deve repensar muita coisa, deve se montar muitas instruções. Fico até feliz porque está acontecendo, acho que devagarzinho, mas não é à toa que tem um amigo que me falou “cara, teu prêmio foi muito mais sociológico do que literário”, porque teve algumas questões muito importantes nesse sentido. Eu sou, como se diz, fora do eixo. Não sou de Rio nem de São Paulo, é um livro totalmente independente e por isso gera muita discussão nesse mercado, desde muito positivas até muito ácidas, críticas. Fiquei muito feliz de ter havido discussão, ter aberto um pouquinho do olhar para isso, para o que A primeira grande coisa que está acontecendo, me chocou foi conhecer a o que está deixando poesia marginal da década de acontecer. A de 1970, quando entrei na gente está num biblioteca da escola em 2007 momento realmente e encontrei Paulo Leminski” de metamorfose. Na época da música vimos isso muito
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fortemente lá em 2009, quando, desde 2003, surgiram os aparelhos de mídia não física. Agora já com on demand, ninguém nem baixa mais música. PEQUIÁ | É, para algumas pessoas, essa “fluidez” está tirando alguns prazeres como o de comprar um livro e sentir o cheiro, tocar nele, aquele cheiro de livro novo... MAILSON FURTADO | Acredito que ainda vai demorar um tempo para acontecer esse esquecimento do livro físico. Acho ele muito fundamental, importante existir. Acredito muito na vida útil duradoura do livro. PEQUIÁ | “Conto a Conto” e “Versos Pingados” surgiram como exercícios literários... MAILSON FURTADO | O “Conto a Conto” foi uma experiência muito ruim. Nessa época eu estava na faculdade, estava realmente precisando de dinheiro. Não que eu tenha escrito por isso, mas teve essa questão e foi um projeto que eu desenhei para publicar, feito às pressas. Eu nunca tinha feito prosa talvez de forma decente, e inventei de fazer. É um compilado de onze trabalhos, mistura contos e crônicas e várias temáticas, foi em parte uma aventura que talvez me consolidou um pouquinho mais nesse campo literário. O “Conto a Conto”, por incrível que pareça, é realmente um livro que eu não gosto. Apesar de tudo, é até utilizado em escolas. É uma autocrítica muito forte, depois disso até parei de escrever prosa. Tive dias atrás umas ideias que acho que só cabem em prosa e pensei “ah, agora eu vou ter uns dias, vou voltar a escrever prosa devagar de novo”, mas literariamente acho que foi uma experiência não muito exitosa. O “Versos Pingados” foi uma experiência bem diferente porque é um trabalho também independente feito por uma editora lá de São Paulo.
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eu me invado em pitadas de saudades do jardim de infância na tia cleide do passeio domingo à tarde nas estradas do sombrio do banho na beira do rio depois da aula da escalada na barragem paulo sarasate das traquinagens no quintal do vizinho do roubo de tamarindos no caminho de casa do tocar violão debaixo do poste junto do paulo henrique” Trecho de “À Cidade”
A gente paga pra eles, num formato independente, eles editam. Eu comecei a trabalhar muito escolas que eu estava lendo na época, década de 1970, e foi um período também que em Varjota a gente inventou, sempre fui muito ativista cultural nesse sentido, movimentos teatrais. Na época me sentia em Varjota escrevendo como um músico sem banda - “tenho que encontrar uma galera para discutir literatura comigo”. Encontrei um sujeito que gostava e montamos uma turma. A gente se reunia todo sábado de manhã nas margens do Rio Acaraú, o grupo literário Pescaria. Essas reuniões duraram três anos e eram bem bacanas. Fomos influenciados pela Padaria Espiritual e alguns grupos literários aqui do estado, como O Clã, que existiu na década de 1940. A gente fundou esse grupo para se reunir e conversar sobre várias
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Foto: Paulo Anaximandro Tavares
coisas: literatura, filosofia, arte, besteira também, na margem do rio. Dentro dessa brincadeira que era o Pescaria, a gente fez exercício de personagens heterônimos para entender como escrevíamos na época - alguns na verdade nem escreviam e montar personagem para escrever diferente daquilo. Isso, pelo menos pra mim, foi muito marcante, porque ter consciência da forma como eu escrevia foi muito importante para escrever de outra forma ou melhorar. O “Versos Pingados” surgiu nessa época, por isso eu falei que era experimental. PEQUIÁ | O crítico literário João Rufino dos Santos disse que quem ama literatura não estuda literatura. Você, como dentista, estudou alguma teoria literária? MAILSON FURTADO| Acho que não. Eu gosto de ler crítica literária, mas não é algo que me prenda para escrever a partir disso. Leio para tomar consciência
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do que faço ou de algumas coisas que leio. Alguns livros Esse termo poeta ainda me tenho que começar a assusta muito, meu Deus! ler pela orelha. Não Digo de boa que sou diretor, me nego, mas não é ator, mas poeta às vezes eu algo que eu busque. me ‘entalo’” PEQUIÁ | Você casou com a Yane, que é artista e com ela fundou um grupo de teatro... MAILSON FURTADO | Na verdade eu fundei e ela entrou bem depois. PEQUIÁ | Fora apresentações teatrais, você só saiu de Varjota para estudar? Quando foi que você concluiu? MAILSON FURTADO | Eu estudei em Sobral, mas Sobral é do lado de Varjota, 60 km. O curso era integral e bem puxado, eu passava a semana em Sobral, mas fim de semana eu tinha que estar em Varjota, justamente para trabalhar com teatro. PEQUIÁ | E por que na área de odontologia e não jornalismo, por exemplo? Foto: Arquivo Pessoal
MAILSON FURTADO | Olha, não minto que era uma das minhas grandes vontades na época, mas eu tinha esse tesão por área de saúde. Surgiu a oportunidade de fazer odontologia lá em Sobral na Federal, enquanto Jornalismo na época não tinha. Eu teria que sair de lá, teria que sair da minha região e não tinha a mínima condição de me bancar. Na verdade eu queria entrar em uma universidade e tinha a questão também de eu ser muito pragmático. Ter bem arquitetada a vida. O financeiro colaborou muito também para a escolha do curso. PEQUIÁ | A família o influenciou de alguma forma? MAILSON FURTADO | Não, minha família sempre foi muito liberal nesse sentido. PEQUIÁ | Me fala como foi tua meninice em Varjota. MAILSON FURTADO | Eu acho que eu era um menino muito chato, sei lá. PEQUIÁ | Tomou muito banho de rio ou não? MAILSON FURTADO | Não, por incrível que pareça. Por isso que eu digo, um cara chato, só que pragmático. Eu vim conhecer a vida com essa turma de adolescentes, com 14 anos. De fugir da escola para tomar banho de rio. Em casa eu sempre fui certinho, sempre fui muito de ler, muito regrado. Não por marcação de família. Sempre fui o CDF da turma. A única lembrança que eu tenho de infância fortemente é o futebol. PEQUIÁ | Qual é o seu time do coração? MAILSON FURTADO | Vasco. Depois comecei uma paixão pelo Fortaleza também. PEQUIÁ | São quantos irmãos ao todo? MAILSON FURTADO | São duas irmãs, eu sou o mais velho. PEQUIÁ | Não tem irmão? MAILSON FURTADO | Não. E eu sempre fui muito
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fechado. Até os meus 10 anos de idade eu nunca tinha tido um grande amigo. Minha grande diversão era chegar as férias para eu ir para a casa dos meus avós no interior, encontrar os meus primos de Fortaleza e a gente brincar. PEQUIÁ | Quais são os seus poetas e romances preferidos? Eles influenciaram de alguma forma na sua escrita? MAILSON FURTADO | Influenciam muito. Sou muito fascinado por distopias do século XX, principalmente o “1984”. Orwell é muito marcante pra mim. Tem o “Cem Anos de Solidão”, do Gabo. Agora que eu li o “Grande Sertão” e “Os Sertões”. São duas obras para se entender o país realmente. De poesia, tenho muita influência do Gullar, pelo neoconcreto, pelas poesias sociais dele. Tem um poeta muito marcante cearense que eu não sei por que não é lido e não é conhecido, que é o Gerardo Mello Mourão, único cearense indicado ao Nobel, um cara que ninguém conhece, um cara que mudou minha vida nesse sentido. Tem muito dele aqui no livro e a poesia de 1970 é muito forte para mim. O Leminski, Ana Cristina Cesar mudaram muito minha cabeça quando eu li. Vez ou outra aparece um que me martela bem. Ano passado teve duas bem potentes que foram a Wislawa Szymborska, poeta da polônia, que ganhou um Nobel em 1996, e uma poeta contemporânea que é a Ana Martins Marques, mineira. PEQUIÁ | Qual a sua relação com escritores cearenses e de Varjota? MAILSON FURTADO| Eu citaria um livro, “Parabélum”, do professor Gilmar de Carvalho. Eu terminei de ler aquele livro e falei: “é, realmente não dá para mim escrever prosa”. É fabuloso, a Universidade fez em 2017 40 anos do livro.
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É muito marcante pra mim, traz um romance cearense. PEQUIÁ | Você tem algum contato com alguns poetas fortalezenses ou não? MAILSON FURTADO | Muito. Hoje Fortaleza é uma das minhas cidades também, está muito mais próxima pra mim do que Sobral. Sempre tive O poeta-dentista amigos na capital. PEQUIÁ | Você pretende deixar de ser dentista, sua vida mudou muito depois do prêmio? MAILSON FURTADO | Assim que saiu o prêmio, muitas pessoas comentaram “ah agora tu vai deixar de ser dentista, né?”. Mudou muito, no início eu até fui ver essa questão de dar um tempo. Se eu vivesse só para escrever talvez eu me preocupasse, por conta dessas inquietações que eu tenho de arquitetura social, de vida. Quando eu tenho um trabalho fixo, escrevo um livro desses, sem me preocupar se vai vender ou não. Se eu trabalhasse só disso, minha primeira preocupação seria venda e não sei se conseguiria viver feliz. Acho que prejudicaria muito meu trabalho artístico, mas realmente vejo que tenho que dedicar um pouquinho mais de tempo. Apesar da pressa cotidiana, sempre tratei a literatura com muita seriedade. Tento ler o máximo que posso. PEQUIÁ | Por falar nisso, você se considera um profissional dentista de ponta assim como você
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está sendo na poesia? MAILSON FURTADO | Não. PEQUIÁ | Você se considera então melhor poeta do que dentista? MAILSON FURTADO | Esse termo poeta ainda me assusta muito, meu Deus! Digo de boa que sou diretor, ator, mas poeta às vezes eu me “entalo”. A poesia para mim surgiu de um estado de poesia como Ferreira Gullar, sou poeta desses momentos, sou poeta às vezes. PEQUIÁ | É um estado de ser poeta... MAILSON FURTADO | Às vezes acontece, diferente de algumas pessoas. Esses gênios da literatura de cordel estão em estado de poesia sempre. Eu realmente trato com muita seriedade porque é algo que realmente precisa de muita seriedade. Me dedico para crescer muito mais na literatura do que para crescer em odontologia. Não tenho a mínima pretensão de ter um pós-doutorado em odontologia, de ter uma clínica mais bonita, mas tudo o que eu faço em odontologia é com muita seriedade e com a maior qualidade que eu posso dar. Diferente da literatura, que eu tenho essa vontade bem mais. PEQUIÁ | Sempre instigando… MAILSON FURTADO | Lendo e entendendo o que é que eu estou fazendo. Sempre quero estar um pouquinho além do que eu posso.
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Fotos: Paulo Anaximandro Tavares
Fotos: Arquivo Pessoal
Itamar Vieira Junior
A escravidão que atravessa séculos Entrevista e texto | José Anderson Sandes e Paulo Rossi Ganhador do Prêmio LeYa de Literatura 2018 com o romance “Torto Arado”, o baiano Itamar Vieira Junior se viu levando o troféu e 100 mil euros concedidos durante a 89ª edição da Feira Literária de Lisboa, em Portugal. Escritor desde menino, o romance traz inquietações de uma mente que conviveu com muitas dificuldades e que pensa nos povos marginalizados da nossa sociedade. “Torto Arado” é uma ficção, mas traz laços
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com a realidade da vida camponesa do Brasil. Uma história que finca suas raízes no nosso passado escravista. “Toda a desigualdade e violência que emana da história têm um fundamento na História. Enquanto não confrontarmos o nosso passado, jamais conseguiremos superar nossas mazelas sociais”, diz Itamar Vieira à revista Pequiá. Confira a seguir trechos da entrevista. PEQUIÁ | Para começar, conte um pouco da sua trajetória como escritor. Quando você começou a escrever? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Comecei a escrever quando aprendi a ler e escrever. Nunca parei. Meus primeiros textos eram peças de teatro e eu interpretava com os colegas de turma na escola. Acontecia também de eu ler histórias e depois as contar do meu jeito, escrevendo finais diferentes. PEQUIÁ | Quais as primeiras influências? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | A leitura de história em quadrinhos, a literatura infanto-juvenil (em especial a série Vaga-Lume da editora Ática) e os seriados televisivos. Com dez, onze anos, passei a ler os clássicos da literatura em língua portuguesa: Machado de Assis, José de Alencar, Eça de Queiroz. Li quase tudo o que encontrei desses e de outros autores, como Jorge Amado e Graciliano Ramos, ainda muito cedo. PEQUIÁ | Na sua literatura, você se debruça sobre histórias de escravizados, índios, enfim, os marginalizados pela sociedade patriarcal e autoritária brasileira. São dramas já contados desde o romance de 30, inclusive pelo baiano Jorge Amado. Quando começou a sua preocupação pelo universo trágico do país? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | É a história que me
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cerca desde a infância. Vim de uma família simples Uma das maravilhas e cresci em bairros da literatura é poder periféricos onde conhecer culturas a desigualdade e lugares distantes, social gritava – e onde talvez nunca nós grita - de forma ponhamos os pés” perene. Minha família passou muitas dificuldades, como a da maioria dos brasileiros. Meu pai tinha ascendência indígena, e a memória de sua origem foi brutalizada, como a de milhões de pessoas. Pouco sabemos, de forma direta, sobre os nossos antepassados. A família de minha mãe tem ascendência negra e portuguesa, imigrantes pobres que tiveram uma vida muito austera. Muito mais tarde fui trabalhar com camponeses sem-terra e quilombolas, pessoas que permanecem esquecidas e excluídas na nossa sociedade. Minha preocupação não poderia ser outra. PEQUIÁ | Como foi a sua infância em Salvador? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Foi uma infância livre, apesar das dificuldades. Sou o mais velho de quatro irmãos. Nós brincávamos na rua, estudávamos muito, pelo esforço de nossos pais para nos dar o melhor. Na década de 1980, a violência na Bahia não era endêmica como vemos agora. Minha adolescência passei em Pernambuco. PEQUIÁ | Conte um pouco sobre ela... ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Era uma infância como a de qualquer criança daquele tempo. A única diferença era que meu pai não permitia que saíssemos à noite, nem podíamos assistir a telenovelas, então,
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sobrava-me tempo para as brincadeiras com os irmãos e para muita leitura. PEQUIÁ | Sua família teve alguma influência nas suas escolhas profissionais? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Diretamente, não. Mas lembro de minha mãe encontrar meus escritos no fundo do guarda-roupa e me censurar por perder tempo escrevendo “besteira”, quando deveria focar minha energia em coisas úteis. Certamente achava a vida de escritor como a de qualquer outro artista: cercada de insegurança financeira e de fantasia. Essa censura me marcou por muitos anos, porque eu rasgava e escondia as coisas que escrevia. E fiz minha formação superior em Geografia, para ser professor e ter um emprego que me desse dignidade e um pouco de conforto. Por muito tempo era como se eu
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tivesse duas vidas: a do homem comum que trabalhava e parecia estar muito distante da arte, e a do artista, uma vida interior pulsante, mas escondida a todo custo. PEQUIÁ | Então quando cursava o fundamental e médio, já pensava em ser escritor... ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Sim. Mas também pensei em ser piloto de avião e jornalista, para cobrir eventos de guerra, por exemplo. PEQUIÁ | Como se deu a escolha pela Geografia? Desejava seguir carreira acadêmica? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | A escolha pela Geografia veio no ensino médio. Eu era muito tímido, então passava os intervalos da aula na biblioteca da escola. Como havia poucas obras literárias, gostava de ler os livros de Geografia. Eu ficava fascinado com a diversidade de paisagens, a diversidade humana e cultural. Lembro-me também que, na minha casa, quando era criança, não havia livros. A exceção era uma enciclopédia – a Enciclopédia do Estudante (Editora Abril) – e eu lia e relia aqueles verbetes, estudava os mapas, a história dos países. Eu tive o contato, essa formação, muito cedo com a Geografia. Já na Universidade, quis seguir carreira acadêmica, fiz mestrado e doutorado. Mas, por necessidade, prestei concursos e fui trabalhar onde havia vaga e emprego. PEQUIÁ | Sobre o mestrado e doutorado, conte um pouco sobre sua dissertação e tese... ITAMAR VIEIRA JUNIOR | A minha dissertação foi sobre expansão urbana. Pesquisei planejamento urbano em vetores de expansão e valorização imobiliária. Fui integrante de um grupo de pesquisa sobre o espaço urbano por muitos anos. Depois fui trabalhar no INCRA com pequenos agricultores sem-
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terra, assentados e quilombolas, e me enveredei Não tenho a ilusão de pelo caminho que meu trabalho possa da Antropologia, visibilizar quem quer que dos estudos seja. De imediato, meu sociológicos. compromisso é com a arte” Minha tese foi sobre etnicidade e regularização fundiária de uma comunidade no Sertão baiano. PEQUIÁ | Em 2018, você venceu por unanimidade o Prêmio LeYa com seu primeiro romance “Torto Arado”. Esperava esse reconhecimento tão cedo? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Não. Nem escrevi de forma planejada para concorrer ao prêmio. Quando finalizei o romance, a inscrição para o Prêmio LeYa foi a primeira que me apareceu. Quando fui postar os volumes nos Correios, vi que era tão caro que até pensei em desistir, achando que não leriam meu livro, ou que se lessem, a obra estaria distante do que um júri de notáveis gostaria de ler. PEQUIÁ | Seu interesse por histórias de comunidades negras rurais surgiu quando? É algo que você traz dentro de si desde pequeno? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Lembro que ainda criança, devia ter nove anos, escrevi a história da escravizada Anastácia depois de ver uma série ou documentário, já não me lembro o que era. Com onze anos, assisti ao filme de Steven Spielberg, “A Cor Púrpura”, baseado no magistral romance de Alice Walker, que só vim ler anos depois. Essas histórias de sofrimento e desigualdade sempre foram uma constante em minha vida. Vejo como natural o meu interesse pelo tema. E, por fim, há exatamente
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treze anos, fui trabalhar com comunidades rurais, especialmente com grupos quilombolas, e lembro que foi um choque saber que eles existiam, e que sobreviviam em uma relação precária na terra. Eram quase invisíveis na estrutura social do nosso país. PEQUIÁ | Há uma presença marcante de personagens femininas fortes em “Torto Arado”. Por quê? Como é o seu processo criativo na construção dessas mulheres? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Como queria contar
Meus primeiros textos eram peças de teatro e eu as interpretava com os colegas na escola”
uma história sobre uma comunidade de descendentes de escravizados no coração do Sertão baiano, era inevitável que as protagonistas fossem mulheres, porque elas detêm o protagonismo neste espaço. Nos longos períodos de estiagem, ou por conta dos conflitos fundiários, os homens migram para trabalhar em outros locais, e elas conduzem as roças, as famílias e suas comunidades.
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Tornam-se lideranças políticas. Falar sobre mulheres não é algo estranho a mim. As mulheres da minha família têm personalidade forte. Cresci entre elas, então não é um tema estranho ao meu universo pessoal. PEQUIÁ | “Torto Arado” surgiu a partir de trabalhos antropológicos. De que forma a realidade vista e vivida por você durante suas pesquisas está presente nessa obra? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Está presente de muitas formas. Eu cresci na cidade, então meu contato com o mundo rural veio primeiro como estudante da universidade, depois como servidor público. Minha ficção é atravessada por minha vivência entre camponeses e quilombolas e pela memória das vivências que eles tiveram. Sem meu contato com eles, não seria Meu pai tinha possível adentrar ascendência indígena, e esse universo. a memória de sua origem PEQUIÁ | Ficção e foi brutalizada, como a de não ficção parecem milhões de pessoas” entrelaçadas no seu romance – já que a narrativa vem de pesquisas antropológicas e da intertextualidade... ITAMAR VIEIRA JUNIOR | O romance é uma ficção, inspirado livremente na vida camponesa de certa região do nosso país. As histórias das irmãs, da mudez, do acidente, da faca de Donana, dos seus segredos, e os demais personagens são frutos da minha imaginação, com raras exceções. As histórias das crenças do jarê, do passado escravagista, da mineração na Chapada Diamantina demandaram pesquisa documental. O conhecimento sobre a terra e a agricultura tive
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o privilégio de aprender entre os camponeses, o que me levou a escrever essa declaração de amor à terra que eles inscreveram em mim com suas oralidades. PEQUIÁ | Por que dividir “Torto Arado” em três partes? De que forma a estratégia de contar com três narradoras – nas duas primeiras partes, as duas protagonistas; e, na terceira, uma narradora onisciente – ajudou na construção do enredo? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Inicialmente, eu concebi a história narrada apenas por Bibiana. À medida que o romance foi crescendo, precisei dividir o ponto de vista com a outra protagonista, Belonísia. A última narradora, que é um espírito que atravessou os séculos, vem nos iluminar com a História escrita com H maiúsculo. É uma personagem que pode trazer a compreensão mais ampla ao leitor de que nada é por acaso. Toda a desigualdade e violência que emanam da história têm um fundamento na História. Enquanto não confrontarmos o nosso passado, jamais conseguiremos superar nossas mazelas sociais. PEQUIÁ | “Torto Arado” já foi classificado como um romance de formação. Fale das personagens Bibiana e Belonísia... ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Bibiana e Belonísia são personagens de uma força e grandeza... fica até estranho este autor falar sobre elas, afinal, são minhas crias. Mas a inspiração para escrever sobre elas veio das mulheres de minha família, que são determinadas e têm personalidade forte, e das mulheres camponesas que conheci ao longo dos anos. Minha inspiração vem também das grandes personagens da literatura universal. Bibiana
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é uma mulher determinada, que não hesita em mudar seu caminho, se for necessário. Belonísia é uma força da natureza, tamanho o conhecimento e a coragem que carrega. Todas descendentes de uma linhagem de mulheres fortes, como Donana e Salustiana. São mulheres que reagem aos papéis que lhes foram destinados, não se conformam com o que a sociedade designa para elas. Na ausência do homem, a quem sempre atribuem o monopólio da força bruta, da violência, elas precisam também utilizar dos mesmos meios para não sucumbir, não perecer. Assim elas atravessam o tempo e conduzem com mãos e força as suas vidas. PEQUIÁ | Você já publicou dois livros de contos: “Dias” e “A Oração do Carrasco”. Qual a diferença para você do conto para o romance? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Sou admirador das duas formas. O conto, em sua estrutura, se assemelha ao poema. É preciso, cirúrgico, não dá espaço para fuga, lhe envolve por inteiro. O romance é um projeto longo, uma mundividência, nos permite mergulhos profundos na experiência humana. PEQUIÁ | Os três livros, de certa forma, conduzem ao mesmo tema? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Sim e não. Em “Dias” há espaço para certos problemas sociais, mas as histórias têm uma relação mais íntima com a alma humana. Os problemas sociais apenas as tangenciam. “A Oração do Carrasco” e “Torto Arado” têm temáticas semelhantes, mas ainda assim são diferentes. Em “A Oração do Carrasco” há alegorias que, por exemplo, não caberiam em “Torto Arado”. Mas todos os livros tentam nos dar, assim eu penso, a dimensão
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da experiência humana que é própria da literatura enquanto arte. PEQUIÁ | Você já afirmou, certa vez, que “toda arte é política”... ITAMAR VIEIRA JUNIOR | A arte como expressão humana acomoda, involuntariamente, a narrativa da nossa experiência. Atravessando os séculos – das artes rupestres ao romance contemporâneo – ela sempre trouxe como sua razão de existir o descortinar de nossa condição. Hannah Arendt, em sua obra “A
Detalhe da capa do livro “Torto Arado”
Condição Humana”, diz que a política é um dos três pilares da vita activa do homem. Tanto o trabalho quanto a obra – os outros dois pilares – são executados pelo homem em sua solidão, a partir das acepções que Arendt apresenta sobre trabalho e obra. Mas a política só se dá através do homem e entre os homens. Ou seja, somos seres essencialmente políticos, e a literatura carrega, invariavelmente, a exposição
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do que um escritor é e pensa sobre o mundo a sua Somos seres volta. Já disse essencialmente políticos, em algumas e a literatura carrega, entrevistas, mas invariavelmente, a não me furto em exposição do que um repetir: sem a escritor é e pensa sobre o política seríamos mundo a sua volta” amebas vagando no mar do nada. PEQUIÁ | E os novos escritores baianos, você participa de coletivos literários? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Não participo de coletivos, mas tenho bom contato com grande parte dos escritores da Bahia, além de acompanhar com interesse o que é feito aqui. PEQUIÁ | Como você analisa o atual cenário da literatura brasileira? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | A literatura brasileira vive um excelente momento. Há uma profusão de temas que nos têm chegado e que tocam em questões muito caras. PEQUIÁ | Existe, segundo alguns, uma grande barreira a ser vencida por novos escritores, formada por jornais, editoras e distribuidoras. Quer dizer, quem não circula nestes espaços não ganha visibilidade. Como mudar essa situação no contexto de um país que ainda lê pouco? ITAMAR VIEIRA JÚNIOR | A princípio vejo que vivemos um avanço em direção à democratização do acesso à publicação. Mais obras, que não seriam acolhidas pelas grandes editoras, chegam ao público, ainda que essa circulação seja restrita. São livros que, graças às plataformas digitais e às pequenas editoras, têm tornado possível a construção de uma
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bibliografia que é ainda um pequeno panorama da nossa diversidade enquanto sociedade. Sobre isso não há dúvidas: obras de qualidade têm encontrado espaço no segmento das pequenas editoras. Basta observar as últimas premiações. Vivemos num país com baixos índices de leitura comparado a outras nações em desenvolvimento. Dentre os possíveis leitores há ainda um grande caminho a percorrer. É preciso construir uma política pública que fomente a formação de leitores. PEQUIÁ | Lê pouco, por falta de políticas sérias para a educação. E tudo indica que as coisas vão piorar nesse governo... ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Sim, até porque o atual governo não tem política para a cultura, muitos menos para a formação de leitores. Aliás, não há projeto para nada que não seja armamento da população, liberação de agrotóxicos e destruição do meio ambiente. PEQUIÁ | Quais são os seus projetos literários para o futuro? Já trabalha em novo livro? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Ainda não tenho projetos, nem estou trabalhando num novo livro. O Prêmio LeYa exigiu uma dedicação grande de minha parte para a divulgação do livro, o que tenho feito com prazer. É uma experiência Por muito tempo era nova. Mas tenho feito pesquisas, e como se eu tivesse é um sinal de que duas vidas: a do homem daí projetos podem comum que trabalhava nascer. e parecia estar muito PEQUIÁ | Que tipo distante da arte, e a do de leitura você artista, uma vida interior consome? Tem lido pulsante, mas escondida autores nacionais? a todo custo”
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Acompanha alguém do meio literário? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Leio autores nacionais e estrangeiros. Uma das maravilhas da literatura é poder conhecer culturas e lugares distantes, onde talvez nunca nós ponhamos os pés. Leio autores nacionais: conheço os que se consagraram na nossa literatura e acompanho com interesse o trabalho dos meus pares. Tenho lido muito a produção nacional. PEQUIÁ | Você acredita que a sua obra visibiliza pessoas que se sentem invisíveis dentro da nossa sociedade? ITAMAR VIEIRA JUNIOR | Não tenho a ilusão de que meu trabalho possa visibilizar quem quer que seja. De imediato meu compromisso é com a arte. Mas tenho a consciência de que a arte tem a capacidade de nos humanizar. A literatura tem o condão mágico de nos permitir a troca de papéis, um acordo que pactuamos enquanto escritores e leitores: ao ler – ou escrever –, vivemos a vida dos personagens, perscrutamos os mais insondáveis segredos e nos reconhecemos na imensidão de nossa humanidade.
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TRECHO DE “TORTO ARADO”
Ilustração: Espedito Duarte
Quando retirei a faca da mala de roupas, embrulhada em um pedaço de tecido antigo e encardido, com nódoas escuras e um nó no meio, tinha pouco mais de sete anos. Minha irmã, Belonísia, que estava comigo, era mais nova um ano. Pouco antes daquele evento, estávamos no terreiro da casa antiga, brincando com bonecas feitas de espigas de milho colhidas na semana anterior. Aproveitávamos as palhas que já amarelavam para vestir feito roupas nos sabugos. Falávamos que as bonecas eram nossas filhas, filhas de Bibiana e Belonísia. Ao percebermos nossa avó se afastar da casa pela lateral do terreiro, nos olhamos em sinal de que o terreiro estava livre, para em seguida dizer que era a hora de descobrir o que Donana escondia na mala de couro em meio às roupas surradas com cheiro de gordura rançosa. Donana notava que crescíamos e, curiosas, invadíamos seu quarto para perguntar sobre conversas que escutávamos e sobre as coisas de que nada sabíamos, como os objetos no interior de sua mala. A todo instante, éramos repreendidas por nosso pai ou nossa mãe. Minha avó, em particular, só precisava nos olhar com firmeza para sentirmos a pele arrepiar e arder, como se tivéssemos nos aproximando de uma fogueira.
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Foto: Márcio Mattos
Poesia no Gesso Lirismo em várias linguagens Por Paulo Rossi
Domingo. 30 de junho. O Coletivo Camaradas acabou de realizar mais uma Roda de Poesia, como tem repetido há seis anos durante todos os últimos domingos de cada mês. “Pensamos numa arte para o povo numa perspectiva de emancipação humana, como instrumento de humanização, de resistência, de descoberta do mundo”, afirma Alexandre Lucas, um dos fundadores do Coletivo, criado em 2007. Crianças recitaram poesias, por elas mesmas escolhidas entre as centenas de livros da biblioteca
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Foto: Dalila da Silva
Foto: Dalila da Silva Foto: Márcio Mattos Foto: Dalila da Silva No evento se apresentaram o grupo de rap OHS e o Laboratório Cênico da UFCA, com a peça “Sonho de uma Noite de Verão”. A poeta Margarida Luna (centro) lançou o livro “A Porta”.
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mantida pelo projeto. Foram apresentados diversos poetas e temáticas. Momento de ansiedade, nervosismo e muita alegria para as crianças e para a plateia, formada na maioria por moradores da Comunidade do Gesso, em Crato. O rap cantado também foi outra atração, apresentado por jovens do grupo OHS. SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO Ocorreu também o ensaio aberto de “Sonho de Uma Noite de Verão”, adaptação da peça homônima de Shakespeare, pelo Laboratório Cênico da UFCA. As crianças ficaram encantadas com o ensaio dos atores da companhia, que durou cerca de 15 minutos. A peça é uma releitura do bardo inglês para a literatura de cordel. Foram apresentados apenas trechos do espetáculo, pois a peça está em processo de desenvolvimento. Cleiviane Marques é a diretora geral e a adaptação do texto foi realizada pelo diretor teatral Paulo Anaximandro. A plateia se deleitou com os versos, que não subestimam a inteligência do público. Com músicas que passeiam pelo maracatu, coco e forró pé de serra (baião), trabalhadas pelo diretor musical Márcio Mattos, e um elenco de 18 atores, a peça deve estrear em novembro. A PORTA Como última convidada da noite, a poeta Margarida Luna lançou seu livro “A Porta”, quando recitou poemas no palco. A autora, que também escreveu “Matéria Humana”, em 1990, e “Ponte Mágica”, em 1994, conta que sua nova obra é voltada para que o leitor tenha “uma vida interior saudável” e que possa, através da poesia, “encontrar o caminho para proteger o seu coração”. Ela observou o comportamento humano em busca
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Foto: Arquivo Pessoal
de inspiração para o livro. Foram 2 anos de trabalho para terminar “A Porta”. Sobre o espaço de tempo de quase 25 anos entre a segunda publicação e a última, Margarida contou que “esteve envolvida em outros trabalhos”. A Roda de Poesia superou expectativas. “Não se trata somente da poesia, esse é um espaço que possibilita o trânsito de pessoas, o acesso a várias linguagens artísticas”, afirma Alexandre Lucas. É feito uma roda de linguagens que gira sempre em torno da arte, a poesia se mostrou ali, no Gesso, através do afeto e de várias outras maneiras, seja em um musical, num livro, na música ou nos encontros proporcionados pelo Coletivo Camaradas. E se quase sempre o debate sobre arte, educação
e cidades é falho em nosso cotidiano, a força que essa iniciativa tem é lírica e arrebatadora.
LEMBRANÇAS DO TEMPO
Quantas vezes te falei? Que eu não saberia viver sem ti. Tantas vezes te pedi Por inúmeras implorei Para não partires sem mim Porém, agora, o tempo. Ah, este tempo cruel Que não se conforta em parar Naquele instante de alegria. Instante em que eu te beijava E me sentindo seguro te abraçava. Minha mão, o teu corpo percorria E meu coração, ah o coração De tão apaixonado sangrava No meu peito pulsava. E a cada batida dele que eu sentia Mais me convencia do quanto te amava. Mas o tempo, na sua ânsia por passar. Nos aproximou Permitiu-me do teu lado deitar Deixou-me amar-te No entanto, o tempo Que sempre obstina por caminhar Envelheceu-nos E com sua sabedoria Mais que na juventude
Ilustração: Espedito Duarte
Na velhice pudemos nos amar Mas hoje, estou com ódio do tempo. Pois para ele, o nosso tempo juntos acabou. Vejo-te tão sorridente a me olhar Com o mesmo olhar de 50 anos atrás E hoje, assim como para todo o sempre Nós nos sentimos amar. Agora as lágrimas surgem nos meus olhos Pois vejo os teus se fecharem. Te amo, estaremos sempre juntos Nas lembranças do tempo Sempre juntos, em qualquer para sempre. Sempre juntos, sempre juntos. Te amo. (Paulo Júnior)
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INSURGENTES CONTEMPORÂNEOS
agora as notícias chegam em cascatas, repentinas e duras – as palavras não esperam mais que a minha mente deduza. a cena aberta me toma de assalto e instiga tudo o que vejo; os insurgentes contemporâneos, os conflitivos desejos e o enigmático direito que temos de interpretá-los. destemidos e vigorosos, não se pode combatê-los – receio. receio recuar, implacavelmente, de todas as frentes, tatear nas incertezas e especular onde não possa provar veementemente dessas mensagens que particularizam o corpo e as palavras repentinas e duras, que chegam em cascatas. (Lisiane Forte)
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Ilustração: Thamyres de Souza
A TARDE DAS COUSAS
Ilustração: Thamyres de Souza
Cada cousa amanhecida possui seu tempo de vida a luz em crescente expõe do nascente ao poente: Um sapato esquecido, os cadarços já sujos esparramados ao chão. Pano de prato, calha na telha, vasilha de plástico, depósito de sabão. Eis que a tudo rega o sol, emprenhando-as de luz. Depois, declina pro oeste Órfãs, as cousas, são impelidas no fim a acender sua própria luz.
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POR ONDE VAI O ÔNIBUS
alguns mil quilômetros alguns bancos de couro sintético alguns quilos de ferro e estanho até a Argentina? Mais longe ainda? Para onde vais, ônibus? Paisagem de fome estrada paisagem de serra estrada vaquinha, carnaúbas cemitério não para não para não para não para não para se segue agreste, serrado floresta, campina um moleque à distância empina uma pipa por quem vai o ônibus? Dona Djanira perdeu o seu filho na guerra ao tráfico? Qual tráfico? O aéreo? O tráfico do rio? O tráfego de pobre Maior droga do Estado
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Pra quando vai o ônibus? Para dois militanto pós golpe pós morte da história de Deus do verso da América Por que vai o ônibus? Porque o amor Saudade, distância por onde por quem para quando? Com pneus da Amazônia Janelas do Paraná Motor de Brasília Bateria do Ceará Tão incerto quanto a estrada e a chuva nas colinas suspiro, bagagem da amada levando-a para seu noivo em Jeripari Óleo diesel apreensão fluxo de freio ódio, paixão puxam o cordão levando-o na estrada o ônibus (Diadorim Neblina)
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Ilustração: Thamyres de Souza
C
urta o onto
Jitiranas Ricardo Salmito Vazia, a última mesa do boteco com jeitinho de lanchonete. Meio garagem, meio fundos de casa. E no improviso tácito e ornamental do lugar, os dois, beijos e abraços. Se amaram, como se amam normalmente aqueles que se veem e sintonizam no aberto das frases. Ficara martelando a data, em malsã, por alguma suspeita de aniversário ou compromisso. Enfim, era isso que recordava pelos exatos quarenta anos depois, acionado ao reler, na caderneta, seu horário marcado. Era o retorno com os exames. Era junho. Entre os andares do prédio comercial, de repente, ancorou essa cena. Resumida e condensada pelo espaço e pelo beijo. Sem entornos. Aquele dia marcado como borrão de tinta espalhada, foi, aos poucos, cobrindo o raso do pensamento, correndo segura, a mancha, quão um líquido não tão espesso, mas não tão fino, que ganha superfície e marca, e cobre, e recobre. Esse volume de memória de captura, completamente inusitado, provocou um descompasso horizontal, que o fez encostar no espelho. Tonteou. Oitavo andar. Desce alguém, que, de costas, parecia um conhecido. Agora, as rotas sinuosas da lembrança jogavam, por proximidade, tudo em conexão, como se tivesse sido criado
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um portal em que toda a sua história se encaminhasse E o fim, assim, retilínea. Dos indesejado, mas útil, passados possíveis, mastiga os afetos, releva atrelados em os detalhes pequeninos imagens e sons, ao de força de corpo e presente mais banal. introduz, sem meias Décimo andar. Saiu palavras, a paralisia” do elevador. Ficou ali em antepasso. Conhecia a localização da sala, portanto, a hesitação era sobre si. Não se tratava – a dúvida – se abortava a consulta, mas se desconstruiria imediatamente a lembrança daquele dia, ou se investia, um pouco mais, no fio reduzido das sensações de permanência. Ela vestia preto. Percorreu todo o corredor do andar, acompanhado de uma dessas melodias de ambiente, que regulam o pensamento: compasso de ocasião. Era difícil perceber, ao certo, que ritmo era aquele. Voltou à sua introspecção desordenada. A música pode operar essa dose necessária de realidade. Em frente ao consultório, apertou a campainha para liberação da porta. Houve demora. Vozes internas discutiam a cobertura do plano de saúde sobre um procedimento. Olhou ao redor. Tocou novamente. A entrada foi permitida. Já na antessala do consultório, reviveu os sofás descombinados em verde oliva, quadros abstratos comprados por metro, com acordo em amarelo e laranja, e uma TV com notícias da bolsa de valores e do dólar. Divisou uma cadeira vaga, de canto. Foi à bancada, comunicou seu nome para a atendente. Seis consultas antes da sua. Ok. Sentou-se. Evitou
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os olhares, pois queria, mesmo sem perceber, um pouco de si a si. A cena voltara agora. Seus receios originários, o pouco dinheiro para dividir entre o presentinho, a cerveja e a passagem de ônibus. Acima de qualquer coisa, o sorriso dela, que soube decifrar tão bem seus lábios finos e indecisos. Era ingênuo, um tanto. Mas tinham tudo para dar certo. Ela estava com uma blusa de alcinha e batom muito discreto, sem cor ou de cor leve. Não recordava bem. E, ainda assim, foi aparecendo tão sem querer e com tanto mistério... Ele não buscava esclarecimento, puxava com corda pesada a recordação. Um bloco sólido de memória vinha se arrastando com barulho e arrepios de pele. Seu esforço estava em tentar trazer a cena inteira, os detalhes de cada gesto, do clima e do sorriso, seu sorriso. O sorriso perdido durante os anos todos. Hoje, ali, com os exames, apenas velho, solitário e vingativo. Tudo o que tinha ganhado na vida de significativo foi arrombando a porta, brigando, jogando com gente e dinheiro, com muita habilidade, sem preservar ninguém. Era homem exclusivamente de si mesmo. Jeitoso, até alguém descobrir que fora enganado, ou diminuído, ou usado, ou abandonado. Cultivava relações na medida exata do usufruto pessoal. Evitava se dar. Conseguiu, ao longo do tempo, uma empresa com oitenta funcionários, uma casa de primeiro andar, três carros, fazenda com fruticultura e pecuária, aplicações diversificadas no banco, divórcio, filhos distantes e, agora, um câncer. As mãos dela eram macias, muito suaves. As dele tremiam. Ela lia livros sem ser por obrigação e imprimia uma delicadeza amorosa por onde passava. Não era popular por uma reserva própria,
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entretanto, era de encher qualquer recinto. Ninguém queria evitar a sua presença e isso o incomodava. Certa vez, ele desgostou de outros sorrisos por perto. Ela, sem nenhuma intenção de flerte, teve confundida sua amabilidade afetuosa e habitual. Acusada de traí-lo, chorou. Ele, por grosseria, saiu espalhando casos... Era o ciúme regendo seu estilo. Nada justificava, a não ser essa comum fragilidade do humano, que, entre ser feliz no miúdo dos fatos e antecipar inflação dos receios, escolhe, altaneiro e irredutível, o medo e a doença. Telefone tocou, era da empresa. Fez menção automática de atender. Algo o deteve. Não estava por hoje. Chegar ao fim é uma operação de estilo. E o fim, assim, indesejado, mas útil, mastiga os afetos, releva os detalhes pequeninos de força de corpo e introduz, sem meias palavras, a paralisia. Na agenda incompleta dos acontecimentos, o dia tinha recebido concretude de compromisso, porque ele havia desenhado, meio sem competência, embora repleto de convicção, um pequeno texto com a expressão “amor”, sob variações. Nunca voltou a sentir aquilo, um arrebatamento desconexo, assim pra frente e firme. Certamente estava em jogo alguma combinação de elementos e luas. Caso exista, ainda que ilusória, feita da mesma matéria da vivência regular, a felicidade é um bando de jitiranas tomando o baldio, sem canteiro, sem jardinagem, por descuido, mas com grande insistência e cor. Era a sua vez, avisou a atendente. Parecia ter estado naquela sala de espera por muitos anos. O aguardo, porém, impulsiona inúmeros intervalos luminescentes. Entrou. O médico mantinha a
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cordialidade de sempre. Perguntou sobre os hábitos, forneceu banalidade aos fatos da política, e, com duas ou três indagações, investigou como estava se sentindo. Fez-se silêncio. Precisava retornar ao jogo polivalente da linguagem. Tergiversou. Desentendeu-se. O doutor pediu os exames, que permaneciam em seu colo. Entregou. Vagarosamente, os envelopes foram abertos e se procedeu uma leitura formal de números e índices. O padrão dos exames foi alterado e alguns dados chamaram a atenção. Esse momento demorou bastante, embora, do tempo, ele já perdera a noção. São tantas as gravidades que o médico não lhe forneceu meios termos. Não havia o que fazer, em resumo. A ordem natural das coisas era esperar, esperar que a vida trouxesse algum acordo. Esperar outra ordem. Qual caminho ela terá seguido, nesse mundo de roteiros interrompidos e desgarrados? Por onde andaria? Desceu. Precisava de uma bebida. Um uísque, algo forte. Café. Café serve. É quente. Recuperou o telefone e havia dezenove chamadas perdidas. Entretanto, de urgente, aquele expresso e seus vapores aromáticos. Ele não queria lembrar de mais nada, porque a data já havia trazido tantos extremos, juntos, na mesma direção. E sem percurso de palavra, por ser assim tão desiguais, tão aproximados, a gente nunca sabe o que fazer com o amor e com a morte. Fazem é com a gente, o que a gente foi e adiante. Para sempre.
Ricardo Salmito é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA).
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C
Ilustração: Espedito Duarte
urta a rônica
Seres urbanos, seres humanos Ronaldo Salgado As cidades sempre foram espaço literário para obras maravilhosas, repletas de narrativas inesquecíveis e personagens reais ou imaginários incríveis, tanto do ponto de vista literário quanto da perspectiva jornalística. Romances, contos, crônicas, entrevistas, perfis e reportagens são gêneros que captam essências humanas capazes de nos remeter a viagens fantásticas pelo imaginário coletivo e pela realidade nua e crua. Eu não quero ficar aqui fazendo um inventário literário e jornalístico sobre esses espaços e personagens. Não é o meu papel dar conta de um inventário de tamanha envergadura. Mas, desde menino de calças curtas – quando eu ainda engatinhava sonhos de um dia ser jornalista –, sempre fui um
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observador curioso da cena urbana, com os personagens e as minudências do cotidiano, resguardadas as proporções do alcance desse olhar ingênuo e carregado de fantasia, imaginação e curiosidade. Imagine, leitor e leitora destas linhas, o quanto de personagens uma cidade abriga no passar dos dias. Seja uma cidadezinha do interior situada no oco do mundo, seja em grandes metrópoles de densidade populacional inacreditável, esses personagens pululam por ruas, avenidas, becos, botecos, zonas de prostituição, feiras, mercados e praças. Dentre algumas figuras típicas que ornamentavam ruas, bares, botequins e praças do meu Crato de menino, três delas ainda fustigam as minhas reminiscências infantis: Pedro Cabeção, Tandô e Capela. Pedro tinha o cognome de Cabeção, claro, em função da enormidade da cabeça. Tandô não é nome próprio; é apelido – nunca soube o nome verdadeiro dele. Capela era um homossexual assumido, para o horror das famílias à época. Cada qual com um estilo de vida, uma essência personalística própria. Uma particularidade do corpo ou da alma. Pedro Cabeção morava pras bandas do Alto do Seminário. Era um senhorzinho de certa idade, estatura mediana, com níveis de deficiência física e mental. Sofria de epilepsia cujos ataques aos meus olhos de menino causavam espanto e medo. Perambulava pelas ruas, postando-se em esquinas para pedir esmolas ou uma ajuda qualquer – muitas vezes ganhava refeições de alguma família pesarosa com aquele ser humano excêntrico, paupérrimo, de corpo desproporcional ante
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a cabeça. Fazia presepadas para chamar atenção e distrair adultos e crianças nas calçadas. E, mesmo com a deficiência física que o impossibilitava de andar normalmente, sempre mudava de lugar dia após dia. Tandô parecia ter vindo ao mundo saído de dentro de uma caixa de Pandora. Sim, porque surpreendia a todo o momento quer pelo modo de vestir-se, quer pelos trejeitos que fazia repentinamente para chamar atenção. Ele era um senhor todo paramentado, cheio de pulseiras, anéis de ruma nos dedos, colares e roupas entre o singelo e o espalhafatoso. Proseava com todo mundo que por ele passava, soltando uma gracinha aqui, outro gracejo acolá, sempre sorrindo e fazendo os outros rirem. Principalmente de certas malandragens típicas de um João Grilo qualquer. Esperto, baixinho, arisco e falastrão, Tandô cativava crianças, assustava moças com galanteios ingênuos, mas invasivos. Já Capela, homossexual com estardalhaço, desfilava pelas ruas da cidade com o corpanzil caracterizado mais pela altura do que por uma musculatura forte, como se estivesse em plena passarela de um concurso de beleza – vá lá que não fosse uma beleza na expressão da palavra. Gestos e movimentos espalhafatosos, Capela não tinha papas na língua, ia pro pau com quem o incomodasse, baseado certamente pelo fato de ser uma pessoa grandalhona, cuja maneira de ser e agir deixava muitas pessoas em polvorosa. Não se preocupava em andar à luz do dia vestido de maneira a causar arrepios às matronas da tradicional família cratense. É claro que há quem não vá gostar desta
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crônica. Mas o cronista tem certas razões que os leitores desconhecem. Afinal, quando se põe em movimento o móbile da memória, os fluxos de consciência se apressam a dar conta de certas histórias que a história oficial positivista não publica. Pedro Cabeção, Tandô e Capela são seres urbanos e seres humanos, cada um com uma história de vida a engendrar narrativas dormidas nos desvãos de quem os conheceu. Cada um com direito a uma página ou a um parágrafo, se não para uma pequena homenagem, pelo menos em forma de uma crônica jornalística que se vence numa edição seguinte, ante a voracidade com que o tempo da publicação passa. Há outros tantos personagens dignos de serem lembrados com as histórias pessoais, os quais pontuaram capítulos ricos da própria história do Crato. O seu Almir, cujo bar era um reduto de torcedores flamenguistas fanáticos, no centro da cidade; Pedro Praeira, também dono de um bar no bairro do Pimenta, pontificava como um ponto de encontro bem frequentado; e dona Rosália, uma senhora que fazia chupetas de mel deliciosas, procuradas por toda a vizinhança lá de casa, enlouquecendo a garotada da rua com aquelas iguarias sorvidas após partidas de futebol nas calçadas ou disputas de jogos de botão em campeonatos épicos inesquecíveis... Mas aí são outras histórias, outras crônicas, outras memórias, outras vidas.
Ronaldo Salgado é jornalista profissional e professor aposentado da Universidade Federal do Ceará (UFC). É natural de Crato.
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Ancestralidade feminina Por Aline de Medeiros* Abrindo o objeto livro “Com Armas Sonolentas”, da escritora e tradutora Carola Saavedra, a princípio, parece ele conter três novelas isoladas. À medida que o leitor explora os textos, percebe – rapidamente, mas não sem dor – o quanto a vida de cada personagem feminina está interligada. Não pense que será fácil exercitar a alteridade com qualquer uma das três forças femininas presentes na obra. É preciso deixar-se conduzir pela costura engenhosa que a autora propõe para poder absorver cada rico universo de relações, afetividades, violências, exílios, perdas e frustrações, todos esses elementos de uma reestruturação lenta e delicada de suas vidas. O mistério e a complexidade que envolvem cada uma das mulheres, por si só já seriam suficientes para manter o interesse, a força e a vivacidade das histórias, ainda que não houvesse pontos em comum. Ao tornar seus caminhos cruzados, a autora constrói uma narrativa admirável e inteligente, dando um sentido mais intenso, tornando a obra ainda mais representativa de toda a ancestralidade feminina. Na camada mais aparente, é possível logo evidenciar como elemento fundamental a maternidade e essa relação ancestral feminina que, segundo a própria autora, em entrevista, pouco se encontra na literatura
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canônica brasileira. Pode-se dizer ainda que é um romance de formação, justamente por apresentar esse teor de evolução e de aprendizagem das mulheres que habitam o enredo. E aqui se abre a primeira provocação sobre as camadas mais profundas: estas mulheres teriam outra alternativa que não a de amadurecimento frente às escolhas que precisam tomar? A mulher que vive neste nosso presente tem condições de buscar o que realmente deseja ou segue o curso da vida tomando o caminho que é melhor para si e para sua família? Carola tem armas e ferramentas de sobra para construir narrativas envolventes (inclusive utilizando-se de elementos inusitados que amarram a parcela insólita e ancestral da obra) e que, mesmo sem apresentar um típico texto feminista engajado, vai além e nos mostra que não é mais possível retroceder. Que a mulher de hoje vai precisar enfrentar muitas lutas ainda, mesmo que não esteja ciente disso. E que existe uma chance de cura sim, nem que seja “apenas” através da arte. Observando de forma mais ampla no tempo e no espaço, é bonito acompanhar como o processo criativo de Carola se dá, tendo tantas escritoras brasileiras como referência e, por sua vez agora, sendo ela mesma uma autora essencial para esta geração. * Aline de Medeiros coordena as áreas de Biblioteca e de Literatura do Sesc RS. Tem graduação em Biblioteconomia e Especialização em Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Serviço Com Armas Sonolentas Carola Saavedra Companhia das Letras. 272 páginas. R$ 43,90
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Livro: Última Hora Autor: José Almeida Júnior Editora: Record Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2017, este romance nos leva ao Brasil do início da década de 1950, para dentro da rotina, das tramas e das intrigas do jornal Última Hora. Criado pelo presidente Getúlio Vargas em plena turbulência política, a publicação tem como editor-chefe Samuel Wainer. A trama gira em torno de Marcos, jornalista torturado na ditadura Vargas que, ao ser convidado por Wainer, primeiramente recusa, mas acaba aceitando fazer parte da redação. Livro: Deserto Autor: Luis S. Krausz Editora: Benvirá Na década de 1970, um grupo de jovens brasileiros viaja a Israel. Os adolescentes dispunham de alguns dias de folga, mas estavam proibidos de viajar à Europa. Como nos relatos bíblicos, um deles – o que assume a voz de narrador – transgride a interdição e viaja a Londres. Com esse enredo, Luis Krausz tece a história de famílias de judeus russos e do Império Austro-Húngaro, dispersos após a Primeira Guerra e início do nazismo. Livro: Hálito Autor: Gilda Freitas Editora: Karuá Quanto mais eu penso no que não vivi, mais eu sofro por não ter vivido a descoberta do mundo como mulher. Dentro de mim estava tudo o que eu procurava. Tinha que entrar em mim e tirá-lo: minha disparatada vontade de amar, de viver, de ser eu. Mas como?... não havia estrada. Se me bloquearam todos os anseios que explodiam em apetite voraz... se me fizeram engolir os sentimentos. 70 | Pequiá
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