Revista Pequiá - 4a. Edição

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ANO 1 EDIÇÃO 04

Pequiá

Literatura Sesc

POETA DE MEIA-TIGELA

No sangue circulam versos


A revista Pequiá, iniciativa do Sesc em parceria com a Pró-Reitoria de Cultura da UFCA, tem por objetivo discutir a literatura cearense e os escritores que dialogam com o espaço do sertão-híbrido, do povo caririense, da Fortaleza-metrópole e com tudo o que toca a vivência no Brasil atual. Esta quarta edição traz a entrevista comemorativa de 15 anos do Prêmio Sesc de Literatura, com um de seus criadores, Henrique Rodrigues, que fala sobre incentivo à produção nacional; o perfil fica por conta do fortalezense Poeta de Meia-Tigela, que fala da sua rica trajetória e da sua poesia como “sangue que corre nas veias”; o escritor Guilherme de Miranda Ramos faz uma crônica do dia a dia com gostinho de café, a partir das estripulias da letra “S”; o jornalista Sérgio Tavares escreve resenha sobre a obra “Última Hora”, de José Almeida Júnior; tudo isso combinado com um caderno de poesias escritas por Ana Paula Simonaci, Dennis Radünz, Oliverio Girondo (traduzido por Fred Girauta) e Poeta de Meia-Tigela. A literatura é sentida e vivida de diferentes formas, mas sempre encontra um ponto em comum para quem se permite apreciá-la. Permita-se e boa leitura!

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EXPEDIENTE Edição 4 | Dezembro 2018 FECOMÉRCIO | SESC

DEPARTAMENTO REGIONAL DO SESC/ AR-CE

Presidente: Maurício Cavalcante Filizola Diretor Regional: Rodrigo Leite Rebouças Diretora de Programação Social: Patrícia Carnevalli R. de Paiva Diretora Administrativa: Débora Sombra Costa Lima Diretor Financeiro: Gilberto Barroso Frota Gerente do Programa Cultura: Chagas Sales Nogueira Lima Coord. Regional do Programa Cultura: Maria Bezerra UNIDADE CRATO DO SESC Gerente: Francisca Lúcia Bezerra Supervisor de Cultura: George Belisário Técnicos do Programa Cultura Sesc Crato: Suzana Carneiro (Técnica de Cultura), Gabriel Campos (Técnico de Cultura), Socorro Dantas (Bibliotecária), Talita Rocha (Auxiliar de Biblioteca) e Raflesia Custódio Dias Bezerra (Assistente de Biblioteca) UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA Reitor: Ricardo Luiz Lange Ness Vice-Reitor: Juscelino Pereira Silva Pró-Reitor de Cultura: José Robson Maia de Almeida Coord. de Política e Diversidade Cultural: Gustavo Ramos Ferreira REDAÇÃO Repórter: Alexia Mesquita Colaboradores: Ana Paula Simonaci, Dennis Radünz, Fred Girauta, Guilherme de Miranda Ramos, Poeta de Meia-Tigela e Sérgio Tavares Curadoria: George Belisário e Gustavo Ramos Projeto Gráfico: Estúdio Caravelas / Hanna Menezes Diagramação: Paulo Anaximandro Tavares Ilustrações: Paulo Anaximandro Tavares Revisão: Alexia Mesquita e Márcia Leite Professor Orientador: José Anderson Sandes Coordenação Editorial: George Belisário REVISTA PEQUIÁ (SESC CRATO) Rua André Cartaxo, 443 – Palmeiral Crato/CE CEP: 63100-555 Telefone: (88) 3586-9163 E-mail: gbelisario@sesc-ce.com.br Tiragem: 300 exemplares DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

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Entrevista com o escritor Henrique Rodrigues, coordenador dos projetos de literatura no Departamento Nacional do Sesc e criador do Prêmio Sesc de Literatura, que apresenta um pouco de sua obra e trajetória profissional.

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Confira a trajetória poética de Alves de Aquino, o cearense de pseudônimo marcante, tanto quanto sua poesia. Conhecido como Poeta de Meia-Tigela, é autor de “Miravilha”, “Girândola” e “Memorial Bárbara de Alencar”.

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Conheça a poesia de Ana Paula Simonaci, Dennis Radünz, Oliverio Girondo e Poeta de Meia-Tigela.

12 Curta a crônica do escritor Guilherme de Miranda Ramos, que apresenta uma reflexão sobre a letra “S”. Tudo começa a partir de um cafezinho com torradas.

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O jornalista Sérgio Tavares traz resenha do livro “Última Hora”, escrito por José Almeida Júnior, envolvendo personagens históricos, como o jornalista Samuel Wainer (foto) e Getúlio Vargas.

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Lançamento do livro Caderno Rosa

Produzido com apoio da Pró-Reitoria de Cultura, a publicação traz escritos literários de Carlos Miranda, também conhecido como Khettyle Rayanne. Os poemas revelam as dores e os amores de um eu lírico que experienciou a vida com bastante intensidade. O lançamento da obra está previsto para o início de 2019. Lançamento da segunda edição da Revista Bárbaras

A segunda edição da Bárbaras, revista experimental produzida por estudantes de jornalismo, traz o tema “Meu Poder, Meu Lugar”, com entrevistas, crônicas, ilustrações e ensaios fotográficos de mulheres em lugares cotidianos de resistência no Cariri cearense. O lançamento está previsto para ocorrer em fevereiro de 2019. Mais informações: instagram. com/revistabarbaras. Concurso Literário da Editora Olympia

A Editora Olympia está recebendo, até o dia 30 de dezembro de 2018, contos que tenham como ponto de partida as fábulas de Esopo, que se constituem como literatura que alicerça nossa compreensão do mundo. O objetivo da antologia é publicar textos que revelem novas narrativas para as fábulas. Os contos deverão ter de 2 a 5 páginas. Os interessados deverão enviaro conto em formato digital para o endereço: antologia@editoraolympia.com.

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Há 15 anos, o Prêmio Sesc de Literatura revela novos escritores Texto | Alexia Mesquita O Prêmio Sesc de Literatura teve seu início em 2003 e, desde então, acontece anualmente. Trata-se de um dos prêmios mais importantes para autores inéditos no país, pois seleciona escritores iniciantes e independentes que não tiveram suas obras publicadas em nenhum outro meio. O único critério do concurso é a qualidade literária, que possibilitará a edição e a circulação nacional dessas obras. Desde

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Fotos: Arquivo Pessoal

sua criação, a premiação já revelou vinte e sete novos autores. O projeto tem o propósito de promover a literatura nacional e premia em duas categorias: Romance e Conto. As inscrições são realizadas on-line e completamente gratuitas. Qualquer pessoa pode se inscrever, desde que a obra apresente o número mínimo de caracteres exigido e obedeça a outras regras de organização estipuladas no edital disponível anualmente no site oficial do concurso. Há seis subcomissões, além das duas comissões finais, compostas por especialistas em literatura, jornalistas e críticos literários que fazem uma espécie de triagem das submissões realizadas pelos participantes. O processo é feito no completo anonimato. Não há como o avaliador saber quem escreveu e vice-versa. Além disso, a composição dos membros que integram as comissões julgadoras muda todo ano. O concurso, em sua décima quinta edição este ano, teve as inscrições de janeiro a fevereiro, com 1.540 obras inscritas. O resultado foi divulgado em junho e premiou os escritores Tobias Carvalho, na categoria Conto, com a obra “As Coisas”, e Juliana Leite, com o romance “Entre as Mãos”. Tobias é estudante de Relações Internacionais na UFRGS, e Juliana é mestre em Literatura Comparada pela UERJ. A bancada final foi formada pelos escritores e críticos literários Letícia Wierzchowski e Daniel Galera, que selecionaram na categoria Conto; junto com Beatriz Resende e Flávio Carneiro, na categoria Romance. Henrique Rodrigues, 43 anos, coordenador dos projetos de literatura no Departamento Nacional do Sesc e um dos criadores do prêmio, diz que este é um projeto bastante ousado. “Ele surgiu de uma ideia ainda inédita, de premiar justamente quem não publicou ainda. Porque os prêmios maiores existem

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para aqueles já com estrada. Então Ele surgiu de uma ideia arriscar um grande ainda inédita, de premiar investimento em justamente quem não dois autores que não publicou ainda. Porque os sabemos quem são, prêmios maiores existem o que escrevem e de para aqueles já com estrada. onde vêm é algo bem Então arriscar um grande ousado”, diz. investimento em dois Henrique, que autores que não sabemos também é escritor de quem são, o que escrevem contos e romances, e de onde vêm é algo bem descreve os dois livros ousado premiados em 2018 pelo Sesc. “As Coisas” é um livro de uma singeleza complexa. Nos contos se percebe a solidão de uma geração para a qual tudo está na palma da mão, de fácil acesso – menos o afeto – e por isso fala muito dos nossos dias. Já “Entre as Mãos” é um livro escrito como uma colcha de retalhos, que costura a reconstrução e redescoberta de uma personagem muito interessante, numa prosa sofisticada de autora que já surge bem madura. Depois de uma cerimônia de comemoração realizada em novembro, ambos os vencedores fizeram uma turnê de lançamento pelo Brasil. Além da divulgação, os livros são publicados pela Editora Record, com tiragem inicial de dois mil exemplares, e distribuídos para todas as bibliotecas e salas de leitura do Sesc e do Senac. Os premiados dos anos anteriores permanecem no panorama literário e participam ativamente de outras premiações e circuitos de literatura. Este ano, por exemplo, o Sesc promoveu um circuito em Portugal com seis vencedores do Prêmio, no Festival Literário

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Internacional de Óbidos e em outras cidades do país. A exemplo de reconhecimento internacional, o autor João Meirelles, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2017, teve o conto “Poraquê”, que faz parte do livro “O Abridor de Letras”, traduzido para o coreano e publicado na revista Global World Literature, da Universidade Nacional de Seul (SNU), na Coreia do Sul. Rafael Gallo, vencedor do Prêmio Sesc 2012, foi finalista do Prêmio Jabuti com o livro de contos “Réveillon”, assim como Luisa Geisler, também vencedora do Sesc, foi finalista do Jabuti por dois anos consecutivos, pelos livros “Contos de Mentira” e “Quiçá”, respectivamente, além de ter sido selecionada pela revista britânica Granta como uma das melhores autoras brasileiras com menos de 40 anos. Outros ganhadores do prêmio Sesc venceram os certames Machado de Assis e Prêmio São Paulo de Literatura. Entre prêmios e livros Henrique Rodrigues tem treze livros lançados. Publicou poesia, conto, literatura juvenil e crônicas. Nascido no Rio de Janeiro, é formado em Letras pela UERJ e doutor em Letras pela Puc-Rio. Ele trabalha na área de literatura há 18 anos, considerando o breve período em que foi professor de Literatura, mas a maioria foi como gestor de projetos de estímulo à leitura. Entre suas obras, a mais recente, “O Próximo da Fila”, de 2015, veio de uma necessidade de escrever um romance quando chegava à casa dos 40 anos, com proposta diferente de todos os outros gêneros que já havia escrito. “Queria fazer um romance de formação, passado na Era Collor, que colocasse um jovem como metáfora de um País que tinha que crescer sem estar preparado.

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Daí, por coincidência, descobri que o McDonald’s, onde trabalhei dos 15 aos 18 anos, havia sido demolido. Então toda uma carga de emoções e lembranças emergiu na minha cuca, e decidi que tinha ali uma história para contar. Mesmo porque um dos meus objetivos na literatura é justamente contar as histórias dos invisíveis sociais, como são os atendentes de lanchonete”, diz. Apesar da semelhança do seu trabalho na adolescência com a ocupação do personagem principal – atendente no McDonald’s –, afirma que o livro não é autobiográfico. Mesmo que tenha ocorrido uma revisitação de sentimentos, a história é toda ficcional, com exceção de um episódio verídico sobre a paralisação dos funcionários da lanchonete. De resto, conta que só resgatou da memória os aspectos de cenário da lanchonete, em especial nos pequenos detalhes, quando as pessoas, em geral, não veem ou sentem, como os cheiros, a perspectiva do mundo atrás do balcão. Rodrigo também é apaixonado por música, abordando o tema em suas obras. Por exemplo, ele organizou o livro de contos “Como se não Houvesse Amanhã” sobre a musicografia da “Legião Urbana”. São vinte histórias inspiradas na banda, escritas por 20 autores brasileiros. “Escutava o álbum ‘Acrilic on Canvas’ quando tive a ideia”. Ainda organizou uma antologia inspirada nos Beatles, “O Livro Branco”; e outra em Noel Rosa, “Conversas de Botequim”, esta em parceria com Marcelo Moutinho. “É muito interessante fazer esse tipo de antologia com vários autores diferentes, pois o resultado fica com um monte de perspectivas diferentes partindo de um

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“Um dos meus objetivos na literatura é contar a história dos invisíveis sociais”

mesmo tipo de objeto”. Rodrigo fala sobre literatura, estilos, vozes e potências com conhecimento. Analisa positivamente a nova literatura nordestina. Diante da crise das livrarias e do livro, ele é um otimista. Lembra que pequenas editoras – casas menores – são bastante relevantes para a publicação de uma literatura de qualidade. Afirma ainda que o prêmio que ajudou a criar é um projeto mais do que especial e alavanca toda uma cadeia produtiva envolvendo o livro e a literatura.

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Poeta de meia-tigela Contra o tecnicismo, a poesia Texto | José Anderson Sandes* Eu pensei em fazer um abre técnico, jornalístico para apresentar esse poeta meiotigeliano. A conversa foi por e-mail. E pra mim, não sei se para vocês, rolou. Não ouvi a voz do poeta. Seu tom. Mas senti em cada prenúncio, a voz da poesia. Com todos os seus hiatos, fatos, desfatos, memórias e imemórias. Revi alguns amigos de Fortaleza (ele cita muitos). A conversa tem perguntas abertas – de jornalista principiante – com respostas poéticas *Com colaboração de Alexia Mesquita

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ou antipoéticas. Deixo ao leitor essa conversa, essa trilha aberta pela Pequiá sobre pensar o pensamento. Ou pensar a poesia. O Brasil sem aquarelas. Abaixo, trechos dessa longa conversa com o Poeta de Meia-Tigela.

Fotos: Arquivo Pessoal

PEQUIÁ | Como surgiu seu pseudônimo? Tem

alguma ligação com o conteúdo da sua poesia? POETA DMT | Completamente. Era incômoda a ideia de assinar um livro com nome de registro: como alguns pintores contemporâneos não rubricam seus quadros a fim de não impor à pintura uma assinatura que não faz parte da composição. Para que meu “nome de autor” integrasse a obra, deveria ser nome literário. No romance de Érico Veríssimo, “Música ao Longe”, Clarissa fica decepcionada ao conhecer Anfilóquio Bonfim porque este nada tinha a ver com o que ela dele imaginara a partir do codinome “Paulo Madrigal”. A fim de não incentivar decepção parecida, optei por pseudônimo antes irônico que lírico: poderia ser Anfilóquio Bonfim, preferi O Poeta de Meia-Tigela. A intenção ficou sendo criar um personagente (palavra de Guimarães Rosa), um saltimbanco das letras, que substituísse no imaginário do leitor um suposto Alves de Aquino real. A verdade é que me agradava idear numa coisa tão séria quanto uma ficha catalográfica o seguinte: “Meia-Tigela, O Poeta de”. E presumia com humor as referências nos textos acadêmicos: “a poesia tigelina”, “a poesia tigeliana”, “a poesia tigelense”... Acrescente-se a variação Poeta DMT (dimetiltriptamina), em razão de meu bom encontro com a ayahuasca, e a ligação da expressão “meia-tigela” ao extrato social dos desfavorecidos, e já temos uma boa noção das razões de adoção desse criptônimo. Mas se passaram dez anos, outros tantos “poetas de meia-

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tigela” são encontrados na internet e na externet, talvez seja hora de nova pirueta. “Se sou de Meia-Tigela/ Se sou de Tigela-e-Meia/ Meu verso o dirá: me leia/ Vale a pena uma espiadela” (“Quadrinha em tom de desafio”, poema inédito do Livro)

PEQUIÁ | Você escreveu “Memorial de

Bárbara de Alencar & Outros Poemas”. Qual o retrato que você faz poeticamente no livro? POETA DMT | Eu projetava escrever um poema dramático que trouxesse Bárbara de Alencar como figura central. Por razões pessoais (meus avós são Alencar e do Cariri, uma das minhas datas de nascimento é 28 de agosto, data de morte de Babu) e políticas: acrescentar ao Ceará Moleque, portanto cômico, o Ceará Trágico, inclusive equilibrando o sarcasmo do meu próprio codinome, e homenagear a primeira mulher a ser presa por razões políticas no Brasil, a saber, por ser republicana, atuante e bem-pensante em tempos monarquistas e patriarcais. Quando vi, em 2007, nas ruas do centro de Fortaleza, o cortejo em comemoração ao dia do patrimônio cultural do estado do Ceará, uma série de alas festivas e reivindicativas sob a direção de Oswald Barroso; quando vi aquele cortejo, foi como se visse a animada realização do poema que eu estava por escrever. Nasce, então, uma Dona Bárbara aguerrida, desafiadora, mas fragilizada pelos revezes. Por ser – sobretudo – dramático, o Memorial complementa o retrato poético feito por Caetano Ximenes Aragão, em

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seu “Romanceiro de Bárbara (1980). A Bárbara de Caetano é elegíaca, “a ave da madrugada” que “canta de noite e de dia”. Não posso deixar de mencionar a bem cuidada reedição, de 2011, do livro de Caetano Ximenes, a cargo de Raymundo Netto, e para a qual fiz um ensaio como posfácio, pagando com gosto uma espécie de tributo ao

poeta de Alcântaras. Curiosamente, 2011 foi o mesmo ano da reedição, prefaciada por Gilmar de Carvalho, do “Memorial”. Em 2014, Ana Miranda publica “Semíramis”, em que figuram Bárbara e José de Alencar. É uma pena que tais revivências não sejam suficientes, enquanto memória poéticohistórica, para barrar atos como a concessão,

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pela Câmara dos Vereadores de Crato, em 2017, do título de cidadão cratense ao então deputado federal e atual presidente eleito. “Muitas mulheres seguiram/ O exemplo de Babu/ Vamos aqui relembrar/ Joana Angélica, Pagu/ Maria Bonita e Dadá/ Olga Benário, Zuzu.// Tantas outras cujos nomes/ Não nos chegam ao ouvido/ Nem por isso mereciam/ Ser legadas ao ouvido/ Louvemos as heroínas/ De nome desconhecido” (trecho do poema 64 do Memorial, “Despedida”)

PEQUIÁ | Como você se classifica enquanto poeta

num mundo em fragmentação, pós-moderno, tecnológico e globalizado? POETA DMT | Apesar de não me definir otimista (Leibniz está longe de ser filósofo de minha predileção), não me direi pessimista. O pessimismo conduz ao derrotismo que, por sua vez, implica na aceitação do pior enquanto fatalidade, e assim como não aceito a bem-aventurança (a vem-abenturança) de um paraíso além-mundo ou terreal, também não exclamaria eclesiasticamente que “melhor é o fim das coisas que o princípio delas”. Não afirmarei “nada de novo sob o sol”: como o faria? Minha filhinha nasceu a menos de um mês e chama-se Aurora: será que não aposto pela esperança? Gosto de Ernst Bloch, da defesa que faz do conceito de utopia como “sonhar de olhos abertos”, antecipação do que pode ser. Para Bloch, se o passado condiciona o presente, o futuro enquanto expectativa o atrai, concernindonos a criação de um presente que aproxime expectativa e realidade. Como o Brasil atual é desastroso, e parte significativa do mundo vem guinando para o pior conservadorismo, cabe-nos agir. Sem certeza feliz de “vitória inevitável”, sem a resignação triste da derrota imediata. Contra a

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fragmentação, uma mundividência; contra o pósmoderno, a manutenção do que deve ser mantido sob o risco de liquidarmos nossa própria história e identidade, por mais complexas que sejam essas expressões; contra o tecnicismo (o presidente eleito quer “técnicos” e não “ideólogos” no governo: uma falácia, porque a defesa da tecnocracia por si só é uma ideologia e não há técnico que, no governo, não deva servir à ideologia para a qual trabalha), contra o tecnicismo, a poesia (entendase pelo termo qualquer forma de oposição à mão mais que visível do capital); contra a globalização (na verdade, uniformização global), a defensão ardorosa das comunidades e culturas locais, seus valores, seu modus vivendi, suas terras, seu direito à terra. “Os calos me doem/ se me calo perante o pisão/ Dos cortes o que me arde/ é o corte da esperança ao meio/ Dos pontos incomodam/ os que entrego sem mesmo procurar/ pontuar/ Das porradas me agridem/ as não evitadas/ as levadas por nada/ por dada/ de antepé/ como terminada/ e perdida/ a luta” (trecho de “Poema do abalo cívico”, inédito do Livro)

PEQUIÁ | Você é um poeta engajado politicamente.

Diria que sua poesia é social? POETA DMT | Num sentido amplo, toda poesia é

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social. Se rabisco um verso e rasgo-o sem que nem minha sombra o leia, escrevo num papel e com uma caneta chegados através de uma trama complexa de produção, distribuição e venda, o que implica, claro, a sociabilidade. Até um poema lírico é, pois, social. A questão a se colocar é: qual o nível de consciência do poeta quanto ao lugar que ocupa na sociedade em que escrevive? [para lembrar muadié Dércio Braúna e seu “Escrevivências”: livro de vidas imaginografadas]. Qual o nível de consciência social do poeta? Minha poesia é social. Mas nem toda ela precisa, por ter a consciência de sê-lo, reduzir-se à sociopolítica. Graciliano Ramos era do Partido Comunista e não alinhava sua escrita ao realismo soviético, no final das contas um irrealismo empobrecedor. A fase mais engajada de Cortázar não o desviava da escrita de textos fantásticos ou hilários, o que ele defendia como sendo igualmente revolucionário (vide a mescla, em “O livro de Manuel”, entre o jornalístico-denunciativo e o desastrado-cômico). A própria consciência social me pede a abertura do leque temático e formal: a diversidade com que procuro apreender e expressar poeticamente a realidade resulta da convicção de que, se pretendo evitar a comodidade e o lugarcomum, devo não me acomodar eu mesmo num só plano ou configuração lineares. Porém, sempre que a situação pede, sempre que meu corcérebro exige, volto aos poemas políticos. É inevitável: no sangue circulam os versos e eu os golfejo. Meu sangue não tem glóbulos brancos: são todos vermelhos. Lembre-se irmão: mesmo o joão-ninguém antes de ser ninguém é joão

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PEQUIÁ | Qual a relação de sua poesia com

Fortaleza?

POETA DMT | Minha poesia se identifica plenamente

Foto: Divulgação

com a cidade em que se gesta porque é ambígua ou, melhor, multígua como esta. “acidade” (2016), em parceria com meu irmão caçula Carlos Nóbrega, atesta isso. É um livro atravessado por imagens (fotografias desenhos colagens montagens), um tanto sujo, semelhante a um zine, em que os poemas não são assinados por um nem outro, mantendo um semianonimato a exemplo das pichações. Assinados são somente o prefácio (“Arrebatamento”, poema de Bárbara Costa Ribeiro) e o posfácio (“A Cidade”, conto de LiLê Santos/ Lia Leite). Ao mesmo tempo que “acidade” é a abordagem ácida da urbe porque Fortaleza tem se tornado isso, um lugar não para se viver, mas para se morrer (um cemitério, uma “cidade horizontal”); “acidade” é a negação da metrópole cruel enquanto projeção utópica de uma possível “mudança de endereço” para “Shangri-aqui”. Aproximando-se, enquanto sonhar blochiano, daqueles poemas publicados no Memorial, o “Marco ∞: Fortaleza” e “Apocalipsiará”: Cidade Sidérea”. “Troquem a fita/ da barbaria/ por outra, aquela/ da Utopia:/ Não é pra ter/ (é uma heresia)/ ter palafita/ difteria,/ porrada tanta/ pancadaria/ que fere a pele/ peleferia” (poema “A Santa Guerreira contra a Dragoa da Maldade”, acidade)

PEQUIÁ | A imprensa do

Ceará dá espaço para a literatura cearense? POETA DMT | Quando ouço falar de “espaço na imprensa”, penso imediatamente na

acredito que além de concorrer a prêmios e prestigiar feiras estabelecidas, importa igualmente deslocar o centro dos eventos”

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imprensa impressa. Por ser frequente nos cadernos de arte a divulgação dos eventos literários, bem como por haver o espaço dos cronistas, dos críticos etc., ocorre menos nesta mídia que em outras – a radiofônica (há Lilian Martins, “Autores e Ideias”) – a televisiva (há Mônica Silveira, com o “Papo Literário” e Rosanni Guerra, “Cabeceira”) – a eletrônica, dos blogs, dos portais de notícias (há

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páginas especializadas em literatura, inúmeras, cito “O Silêncio entre as Palavras”, de Fernando de Souza, e “Arcanos Grávidos”, de Webston Moura) – a indevida mensuração, eu dizia, quanto ao valor do que divulgar. Indevida mensuração? Estou sendo ingênuo: por ser mensurado devidamente o valor do que deve ser divulgado, exorbitante é o espaço para o inócuo, o ridiculamente desimportante. Mas desimportante para quem? Sejamos sinceros: para a grande maioria do povo brasileiro, quem interessa mais, o ator bonitão da novela das oito, a jovem simpática e frenética do funk, o jogador nativo em time estrangeiro, o sociopata da vez, deputado federal mais votado, ou aquele escritor, aquele muito-aquele cujo nome soa, se tanto, ligeiramente familiar (digamos que não seja participante do programa da Fátima Bernardes)? Antes de choramingar pela literatura cearense, pensemos na situação difícil de nosso povo. Pensemos nas condições de transformação dessa miséria a fim de que, juntamente com a falta de leitura, seja sanada a falta de outras tantas coisas imprescindíveis. “Quem quiser ser escritor/ Faça também como eu faço/ Aprenda a respirar pouco/ Pois que tudo é parco, escasso/ (E a lição aqui se encerra:/ Fora do Planeta Terra/ Existe bastante espaço)” (sextilha composta para entrevista em versos, não-publicada pelo Diário do Nordeste e publicada no livro Girândola)

PEQUIÁ | Recentemente, o cearense Mailson

Furtado ganhou o Jabuti, maior prêmio da literatura brasileira, com o “à cidade”. Como você analisa esse feito? POETA DMT | Eu conhecia a atividade do Mailson porque participei, juntamente com o esteta do cangaço Luciano Bonfim, da apresentação da antologia “O cambo” (2014), do Grupo Literário

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Pescaria, que ele, Mailson, integrava. Pedro Salgueiro, com “Inimigos” (contos), e Raymundo Netto com “Crônicas Absurdas de Segunda”, já haviam sido indicados ao prêmio, porém, sem dúvidas, é um grande e bom feito sair vencedor. Mailson terá maior facilidade de publicação, veiculação, circulação, participação em eventos, outras premiações. Felicito-o, e o que direi não tem a menor intenção de desdourar a vitória do poeta de Varjota. Porém, acredito que além de concorrer a prêmios e prestigiar feiras estabelecidas, importa igualmente deslocar o centro dos eventos e afirmar realizações com caráter menos oficial, menos standard. Mesmo aqui, no Ceará, vemos os autores acorrerem à Bienal do Livro, azafamarem-se para publicar seus volumes a tempo e, para quê? Para se verem muitas vezes preteridos pelos demais inúmeros acontecimentos concomitantes, mas com a satisfação de terem lançado (e vendido, com alguma sorte) livros na Bienal. Certamente a Bienal é um momento singular para a cidade, para o estado. Mas mais uma vez: qual a consciência social do poeta? Quando se perceberá que a questão não é apenas recorrer a eventos assentados, marcados pela visão mercadológica, porém criar também alternativas? Alternativas que espelhem oportunidades de furar a mesmice do livro enquanto simples mercadoria e, assim, devolver à autora-autor e ao leitor-leitora a oportunidade de estarem diante de uma criação, ou seja, uma dádiva, um presente! Lembro, a propósito, a turma da Revista Pindaíba, que ocupa as praças do Benfica; os Poetas de Lugar Nenhum, que têm à frente Samuel Denker e que realizam sarais pelas periferias de Fortaleza, em especial no

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Jangurussu. E lembro que Mailson Furtado me enviou por e-mail a versão primeira de seu livro-poema à cidade e que esse gesto deve ser considerado tão digno de nota quanto sua vitória do Jabuti. PEQUIÁ | Como se dá a impressão e distribuição de sua obra? Só no Ceará? POETA DMT | O único livro que teve maior distribuição (e não muita) foi o “Miravilha – Liriai o Campo dos Olhos” (2015, Confraria do Vento). É possível encontrá-lo nas piores lojas do ramo, as grandes que estão baixando as portas. Os demais, publicados aqui, encontram-se em sebos locais como o de Geraldo e Estela, Solarissebo, ou virtuais (a Estante), e estes nunca fecham. Mas, em geral, são distribuídos da maneira de

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que mais gosto: de mão em mão (uma das mãos pode ser a do carteiro, já que boa parte é enviada pelo correio, gratuitamente). Recordando que não são práticas exclusivas minhas, pelo contrário. Fiz amigos correspondentes: Álvaro Alencar, André Seffrin, Antônio Carlos Secchin, Antônio Miranda, o caríssimo Atílio Bergamini, Celso Borges, Claúdio B. Carlos, Eleuda de Carvalho, Helena Ortiz, Hugo Pontes, Irineu Volpato, o formidável casal Jorge Amaral (Mané do Café) e Eliana de Castela, o haicaísta Léo Prudêncio, que conheci jovem e vem se tornando um girassol maduro, Patrícia Gonçalves Tenório, Rita Moutinho... A maior parte dos escritores brasileiros, depois do lançamento, vende seus livros muito a retalho. Como não tenho a menor intenção de enriquecer (financeiramente), mesmo nos lançamentos despacho os livros a baixo custo e avisando aos compradores que, se não os comprarem, os ganharão depois como castigo. É até anedótico: eu e o Nóbrega combinamos lançar o “acidade” no Bar do Pedim, que fica ao lado de algumas galerias de arte (uma delas a de Vlamir de Sousa), na rua Joaquim Magalhães, Fortaleza. O “acidade” tem 156 páginas. Por quanto, Nóbrega? R$ 15,00? Ele: não, tá caro, a R$ 10,00. No dia montamos uma mesa para os livros, ao lado das mesas para os comes e bebes

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(o feijão verde do Pedim é famoso), e o resultado: não vendemos nenhum. Distribuímos para quem foi ao lançamento (alô, Felipe Franklin), e para quem, ao passar, tinha a curiosidade de parar e perguntar o que era aquilo. É de fazer os agentes literários torcerem o nariz, é revoltante para os editores e livreiros, é contraproducente para os autores que querem suas obras bem cotadas, é absolutamente antiprofissional, excessivamente amadorístico. Mas é poético. “O que é poesia? Qualquer coisa de estranhamente inútil que mostra não funcionar bem aquilo que, pelo contrário, se pretende útil, mas que, ao se mostrar opostamente funcional por não precisar funcionar, apenas é como é e o que é, poesia” (definição inventada agora)

PEQUIÁ | Por falar nisso, como é a relação entre

os poetas cearenses? Como funciona o coletivo “Poetas de Quinta”? POETA DMT | Sabe, é que não penso em termos de relacionamento entre “poetas”. Eu me relaciono com pessoas e algumas destas leem e escrevem versos. E a experiência vem me mostrando que o fato de o fazerem não as torna, necessariamente, pessoas melhores. Há diferença entre escrever poemas e ser poeta. O grande/a grande poeta não precisam escrever nada: ele/ela agem, vivem poeticamente. Por isso direi que a relação entre os poetas cearenses é como qualquer relação humana: complexa. Contudo, tenho amigos e amigas poetas bastantes, citados ao longo desta entrevista. Falando em amizade, “Poetas de Quinta” não é um coletivo: é uma cambada, um canelau, que se reunia no Bar do Assis, no Benfica, para beber e falar mais dos escritores ausentes que de suas obras. Por infausta ideia de um dos

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frequentadores, decidiu-se batizar a quadrilha, e o tal ainda teve a infâmia de sugerir uma coisa maçonicamente pomposa como “Poesia e Boemia”! A fim de evitar o desastre, redargui com “Poetas de Quinta”, porque nos reuníamos às quintas e era o que valíamos: Arilo, o leitor cronopiano de policiais; Bernivaldo, o sátiro irreverente; Brennand, o arquiteto das oito paredes; Carlos Vaz, o único dentre nós do mundo dos vivos; Casqueiro, o mais do que branco, transparente; Eugênio Leandro, o além dos cataventos; Frede Rico, o caótico, último a chegar e primeiro a sair; Glauco Sobreira, o náutico mundográfico; Irajacy, o contista farpado dos vestígios; Lúcio Cleto, o fazedor de si mesmo; Luís Marcos, o Bukowski do Jardim América; Manuel Bulcão, o obviamente esquisito (já liberto); Mário Sawatani, o Bomba-zen; Nóbrega, o daquele canto aceso; Paulo Avelino, o filatélico esparso; Pedro Sal, o valoroso inimigo de todos; Raymundo Sonetto, o acangapeba da calçada. Ficou “Poetas de Quinta” e o ponto de desencontro virou itinerante. Mas projeto literário em comum, nada, no máximo uns pitacos maldosos nas obras dos outros, hem Eugênio? “Faz tempo que sei de cor/ Vou dizer sem medo algum/ Os poetas são só um/ Os poetas são um só// Outros foram o que sou/ E eu sou outros que serão/ Eu a continuação/ Do que há muito começou” (quadras inéditas do Livro)

PEQUIÁ | Fale do conjunto de sua obra. POETA DMT | Compreendo que os poemas são dados

por finalizados em função de uma necessidade humana de contemplar um todo, de postar-se diante do acabado, do provisoriamente tido por terminado, a fim de se ter a ilusão de prosseguir, transcender-se em direção a algo diferente. Contudo, essa ilusão veio se desfazendo e fui ficando ciente da continuação e entrecruzamento

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dos versos, das retomadas impensadas, despropositais, porém vigentes, de imagens, temas, obsessões. Delineou-se a necessidade de arregimentar sob idêntico agrupamento os textos similares em forma e/ou temário, a fim de que se reforcem mutuamente por intencional alocação. As iniciais procuras de organização do conjunto foram muitas e se desenvolveram ao longo de bom tempo, até resultarem no que chamei de “Concerto”. Concerto n. 1nico (leia-se número úmnico) em mim maior para palavra e orquestra.


Poema”. A palavra “poema” na rabeira do título é deliberada: afirma a unidade, confirma o livro como um só poema em andamento, um macrotexto, um hipertexto constituído de versos, imagens, prosas vinculados por arcabouço quaternário. O “Concerto” é hoje denominado simplesmente Livro: sim, o livro úmnico chamar-se-á Livro. Que está dividido em quatro segmentos, cada qual subdividido em quatro

livros, cada qual repartido em quatro seções, cada qual composta por ajuntamentos quaternários de poemas. O poema “Memorial Bárbara de Alencar”, por exemplo, está localizado na terceira seção do livro primeiro do segundo segmento do Livro. Notese que o “Memorial” é quaternário, pois composto de 64 poemas (quatro vezes quatro vezes quatro). Todos os volumes que publiquei foram organizados como uma unidade autônoma, mas provisória: são opúsculos da obra “Livro” e podem se desfazer neste, estilhaçados em várias de suas seções. Para

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que se entenda: o “Miravilha” contém sessenta e quatro sonetos. É um volume, pois, de unidade formal. Mas os seus poemas foram colhidos ao longo dos quatro segmentos do Livro inteiro: não possuem, neste, a mesma distribuição que lhes foi dada a título de divulgação, enquanto “Miravilha”. Sei que parece obscuro: é assim mesmo, até eu me confundo às vezes.

“Fosse cada manhã folgar o entrudo/ mas de um carnavalíntimo: beleza/ de deixar do abajur a luz acesa/ e o livro da vez no criado-mudo” (trecho do soneto “Código de Amantíssima Proeza”, inédito do Livro)

PEQUIÁ | A sua poesia está em constante inovação,

como afirma a escritora Ana Miranda na orelha de seu livro “Miravilha - Liriai o Campo dos Olhos”. Isso quer dizer, você lança mão de vários estilos e temáticas, do cordel ao haicai. Por quê?

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Programa Autores e Ideias, no SESC Fortaleza

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POETA DMT | “Girândola” é bom livro para

explicar essa diversificação: seus poemas são aparentemente aleatórios, porém dispostos em conformidade com uma ordem rigorosa percebida por quem atentar para o vai-vem dos desenhos, temas e formas: rabiscos, haicais, poemas de bolso, poemas feminis, sonetos, versões de canções rock’n’roll, contículos, poemas sacros, metapoéticos. O “foguetório”, ao fim do volume, dá a dica do arranjo a partir do qual tudo se conglomera: trata-se de uma girândola, portanto as seções do livro giram enquanto disparam, não se seguindo linearmente, e tudo se confunde ao passo que tudo está no lugar devido. O “Livro”, o todo ao qual me referi, é uma girândola de proporções gigantescas. Nele se sucedem em seções e interseções cumulativas textimagens que esparramam uma hibridez de pseudogêneros que vão da poesia metrificada, livre, concreta, visual, à pichação, ao estêncil, quadrinhos, poema-objeto, instalações, prosa lírica, crítica, autobiográfica, autocrítica, metacrítica, mantendo, no entanto, a perspectiva de que a aparente heterogeneidade se resolve na harmonia do poema único, o “Livro”. Por que o incessante experimentalismo? Porque se me é impossível esgotar mesmo o campo do possível; se de todas as possibilidades de ser optei radicalmente por uma, essa a que se denomina a de ser poeta; quero, não esgotar por saber impossível, mas procurar experienciar o máximo de possível nesse campo inesgotável que é o da poesia. O que resulta numa vivência poética integral: do Livro ao Livro do Mundo. Ser poeta, para mim, é assumir uma po(ética. Venho, a propósito, procurando esclarecer essa dimensão ética da poiesis num escrito desenvolvido aos bocadinhos, o “Breve tratado de vida poética”. Que atualmente ocupa a seção terceira do livro quatro do quarto

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segmento do “Livro”. “Na próxima encadernação/ quero ter costura/ capa dura/ com verniz —/ assim diz/ a brochura/ em off set —/ e quero pintar o 7/ obra de Henry Miller/ ou Anaïs/ com estórias/ cabeludas:// Nosso Editor me perdoe/ mas quero ser feliz/ não quero me reeditar/ Manual de Autoajuda” (poema “Reencadernação”, com LiLê Santos)

PEQUIÁ | Escrever poemas é inspiração ou muito

trabalho e técnica? Quem são suas inspirações literárias? POETA DMT | Existe uma longa, antiquíssima tradição afirmadora da inspiração como essência da poesia. Para os gregos, o poeta necessitava de um “grão de loucura”, um “sopro de insensatez” (compreendendo-se a insensatez enquanto delírio inspira-dor/ ins-pirador). Quanto a mim, mais antigo que os ditos antigos (alguém, não me lembro quem, disse: os gregos são “os novos” porque de certo modo inauguradores, nós é que somos os “velhos” com relação a eles, já que herdeiros de uma tradição ocidental de cerca de três mil anos); quanto a mim, não sou o afortunado que se senta à mesa e “autopsicografa” o poema. Sou pobre de espíritos (talvez eu não tenha nem um), e compreendi que, se quiser me fazer merecer o verso de amanhã, devo ler e escrever hoje. E reler o escrito e reescrever o relido. Embora compondo desde os quatorze, publiquei o primeiro livro, o “Memorial”, aos trinta e dois (não contando uma brochura de 1997, chamada “Noite sem Lume”, e cuja edição queimei quase integralmente – vai ver que o espírito de Gogol se apossou de mim). Pois bem, mencionei um russo. Durante bom tempo a influência, confluência ou fruência maior foi

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Dostoiévski. Mas depois ocorreram Osman Lins, quem me conhece sabe Cortázar, Juan que uma pessoa para Carlos Onetti, mim é já conspiração; Donoso, Lobo duas pessoas, reunião; Antunes, Hermann três, agremiação; quatro, Broch, um tanto Virgina Woolf, e os multidão; cinco, erupção” filósofos e filósofas, claro: Platão, Espinosa, Schopenhauer e Nietzsche (destes dois já convalesci), Sartre, Simone de Beauvoir, Simone Weil, Ernst Bloch. Posso citar poetas, porém pouco os leio em comparação ao montante de romances e de preferência os caudalosos e/ou romances ensaísticos, labirínticos. Faz tempo compreendi que a poesia é o único gênero literário e que pode ser escrita em verso, prosa ou cambiando entre as duas formas. Por isso prefiro os livros em que a estrutura e o discurso se desafiam e nos desafiam, assumindo-se híbridos, entre a narrativa, o ensaio, o jornalístico, o dramatológico, o paródico, o que der na telha da escritora-escritor. “Não sei o que é soneto só sei que/ este é para cortázar e cioran/ camus beauvoir sartre maupassant/ (graças à rima é para william blake)// ao chaplin e o orson wells de f for fake/ para glauber louis malle ingmar bergman/ para bach villa-lobos e chopin/ para os beatles bob dylan nick drake// beethoven paganini erik satie/ silvio rodriguez victor jara liszt/ violeta parra e para debussy// para marc chagall e o solar xul/ para candinho e last but not least/ é claro que é também leitor pra tu” (soneto “Ofertório”, inédito do Livro)

PEQUIÁ | Além de poeta e professor universitário de

filosofia, você já trabalhou como editor da revista

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Mutirão e atualmente é revisor na revista Propulsão. Como é essa experiência? POETA DMT | Falei de sociabilidade, mas quem me conhece sabe que uma pessoa para mim é já conspiração; duas pessoas, reunião; três, agremiação; quatro, multidão; cinco, erupção. Tenho confrades (alô, Roberto Cunha; alô, André Álcman), confreiras (alô, Geisi; alô, Martine Kunz), graças à vida, mas gosto de encontrá-los e encontrá-las aos pouquinhos. Empreendimentos como a edição e revisão, orelhas, prefácios (que prefiro posfácios) nascem ou da vontade de consolidar amizades ou de amizades constituídas. Ao longo de 2009 editei seis números de um jornalzinho literário chamado V.o.l.a.n.t.e (Veículo. original. litero. alternativo. nascido. totalmente. emancipado), tiragem de mil exemplares e que buscava unir autores-autoras em torno da publicação: por completar em breve dez anos, citarei, a título de rememoração, alguns colaboradores-doras. Amorbez, Ana Cristina de Moraes, Ana Miranda, Ary Salgueiro, Astolfo Lima Sandy, Cellina Muniz, Dedhan Califa, Denis Moura, Deribaldo Santos, Diogo Fontenelle, Francisco Carvalho (houve um número especial em homenagem a esse imenso poeta e com entrevista inédita e capa com ilustração de André Dias), Francisco José da Silva, Jorge Furtado, Jorge Tufic, Manoel Carlos Jorge, Nilto Maciel, Pedro Ernesto, Tércia Montenegro. Carlos Vazconcelos e Frederico Régis eram colaboradores cativos, o primeiro com a seção “Procura-se”, dedicada a algum cearense (Lívio Barreto, Raimundo Varão, Ramos Cotoco – Varão e Cotoco, citados assim, formam engraçado oximoro, não?) e o segundo com a seção “Palindromania” (“suma, Camus”). Já o “Mutirão” conta com três edições, cujas capas foram, respectivamente, de Nataly Pinho (2014),

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Zé Tarcísio (2016) e Francisco de Almeida (2017). Tornei-me chegado ao Zé a partir desse trabalho. O Mutirão # 3 traz a novidade de um CD com quatro faixas, parceria de Henrique Beltrão e o maestro Ellis Mário. Perdoem-me tantos nomes: é por amizade, reconhecimento. Por reconhecimento aos quatro seguintes devo dizer que sou considerado por Fernando Siqueira, Glauco Sobreira, Jesus Irajacy e Pedro Salgueiro, coeditor da “Para Mamíferos” (que caminha para a quinta edição). E por amor sou revisor da Revista Propulsão (www. revistapropulsao.com/): amor à revisão? Amor à revista? Sim, mas, sobretudo, amor à talentosa editora e diagramadora Lia Leite e, o que não torna duvidoso meu reconhecimento, talentosa muito antes de ser minha esposa. “o olhar-cumplicidade o riso-seita:/ tudo é dar de mãos — ímãs — tudo o ir-mão// conjunção nome a nome dos que se irmam/ comunhão corpo a corpo dos que se almam” (trecho do soneto “Amizade”, inédito do Livro)

PEQUIÁ | Projetos futuros? POETA DMT | A publicação do Mutirão # 4,

homenagem a minha mãe Francisca Tenório e constituído apenas por autorAs. A convivência bem de pertinho com minha filha (nome melhor não há para encerrar esta entrevista) Aurora.

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CANTO I esta é a realidade. eu sou porque meu gato me vê. dentro de seus olhos o mundo já não existe mais. com sua face felina ele me vê, um corpo, ele me vê, um alma, ele me vê, uma dança. nômade de mim, vazio, expurgo, êxtase.

rejeitar certas formas de viver me fizeram livre e meio desesperada. se eu fosse eu, seria muitas. tem corpos com medo de ser. eles têm medo ser. eu não sou ninguém. Eu não sou daqui. [os loucos não sabem. não sabem quem são e por isso existem.]

eu sou porque Deus não é. seria a escuridão o que faz os raios de sol existirem? voa, voa, meu pequeno pássaro. leva minha canção. me traga olhos de borboletas, de mariposas, olhos de rapina. rapte olhos para que eu possa ver um novo mundo.

miro no céu, vejo os dias que passam.

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as aves voam. a lua reflete as sombras sobre o mar. as ondas quebram sobre outras ondas. eu morro e nasço.

eu sou a futura sombra dos pássaros passados que revezavam as guias da vida. eu sou todos os deuses que fazem morada nas nuvens. eu sou todas as chuvas, todos os raios! [e todos eles não existem] e eu não existo quando Deus é.

[meu gato pula em meu colo e me torno eu sem metafísica] CANTO VII eu sou a louca pólvora que estoura dançando

os dados no ar enquanto giram entre os dedos de um deus da sorte que se lança sobre os fracos

sou o corão sendo lido no trem o talmude em um muro a bíblia que evoca a chama dourada as erva de poder quando sussurram aos seus

sou os dia sem chão dos pássaros eu grito pelas montanhas e ninguém ouve eu uivo pelas selva e nada se move e agora entre o sim e o não que deriva no vento

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de quatro sou ele sou ela sou falo ou fenda

farejo os passos de um vazio olhemos as estrelas talvez um raio mudo sinal esquivo de um mar que se quebra

Parta o mundo

ao meio

E de um ovo nasça Andrógeno guia (Ana Paula Simonaci)

QUE OS RUÍDOS TE PERFUREM OS DENTES Que os ruídos te perfurem os dentes, como uma broca de dentista, e a memória te encha de ferrugem, de odores descompostos e de palavras rotas. Que cresça em cada um dos teus poros, uma pata de aranha; que só possas alimentar-te de baralhos usados e que o sonho te reduza, como uma plaina, à espessura de teu retrato. Que ao sair à rua, até os faróis te botem pra correr; que um fanatismo irresistível te obrigue a ajoelhar em frente às latas de lixo e que todos os habitantes da cidade te confundam com um poste. Que quando queiras dizer: “Meu amor”, digas: “Peixe frito”;

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que tuas mãos tentem estrangular-te a cada instante, e em vez de jogar fora o cigarro, sejas tu que te atires nas escarradeiras. Que tua mulher te traia até com bujões que ao deitar-se junto a ti, se metamorfoseie em sanguessuga, e que depois de parir um corvo, ilumine uma chave inglesa. Que tua família se divirta em deformar teu esqueleto, para que os espelhos, ao te olharem, suicidem de repugnância; que teu único entretenimento consista em ficar na sala de espera dos dentistas, disfarçado de crocodilo, e que te apaixones, tão loucamente, por uma caixa de ferro, que não possas deixar, nem por um instante, de lamber-lhe a fechadura. VISITA Não estou. Não a conheço. Não quero conhecê-la. Me repugna o oco, A afeição ao mistério, O culto à cinza, O quanto se desagrega. jamais mantive contato com o inerte. Se algo tenho renegado é a indiferença. Não aspiro a transmutar-me, Nem me atenta o repouso. Entretanto me intrigam o absurdo, a graça. Não estou pro que não se move, Para o inabitado. Quando vier buscar-me, Digam: “mudou-se”.

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PREAMAR Nada anseio de nada, enquanto dura o instante de eternidade que é tudo, quando não quero nada. (Oliverio Girondo traduzido por Fred Girauta)

LINA MERUANE (enquanto eu lia “Sangue no olho”)

minha mãe esquecidiça no escuro de uma hora sem remédio e sem ponteiros cobriu-se – hoje cedo – de açúcares nas veias e de sangues na retina: cega dos seus dedos (imprevisão ainda viva) descobriu seus comprimidos por extenso e pelo peso: volve a ver daqui a tempos mas enquanto veste o assombro toca o mundo pelos tímpanos vaga em si no chão dos medos (Dennis Radünz)

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(Poeta de Meia-Tigela) Dezembro 2018 |

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C

urta a rônica

Ésses

Guilherme de Miranda Ramos – Um café. Por favor. – Disse ela, ao garçom. Seu desejo resumia-se a provar o requinte numa tarde de feriado. Feriado? Questionava-se. Para quem? Havia tantos trabalhando naquele dia para que ela pudesse descansar o corpo, a mente, a alma... Talvez fosse injusto. Talvez, não. Não saberia a resposta. Era apenas mais uma na multidão. Daqueles que nada podiam fazer. A não ser existir. “O trabalho enobrece o homem.” – lembrava o velho ditado. E para que servia mesmo? Para justificar o intenso investimento de energia, dia a dia, constantemente, quase sem parar. De segunda a sexta (às vezes, sábados, domingos e feriados), para melhor servir ao outro. Mas como o outro lida sem esses serviços? Será que não poderia, simplesmente, se virar sem isso? Sem a “servidão” sua de cada dia? Não havia nada de errado em ter esses serviços à disposição. Mas, sem eles, como ela se sentiria? – Forte, fraco, tanto faz. Apenas um café. – Disse ela. – Sim, senhora. – Disse o garçom. – Sugiro servi-lo somando-lhe salgadinhos. – Concluiu. – Seria sensacional, senhor – imitou-lhe, sorrindo. – Sobre tudo, sob suas sentenças. Só “esses”? – Sinceramente, saiu sem saber. – Sei... – E continuo a imitá-lo – Salgados se-

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rão saboreados... – Seguramente, senhora. – E O “S” inicia a saudade; retirou-se numa aparece com o sol; adoça o graça poética sorvete; tempera a salada; como poucas. inspira uma salvação; sugere – “Esses.” – Penum salvamento Mas também sou novamente. faz parte da solidão e acom– Interessante... panha qualquer sofrimento.” Seus pensamentos fluíam com mais leveza. Graças à inteligência de seu interlocutor, o garçom que só usava “ésses” no diálogo. Logo o “S”, essa letrinha que nos surpreende cada vez que é usada... O “S” tem poder de tornar coletivo o que é individual. Assim, podemos ter, por exemplo, o amor de outraS pessoaS ao longo da vida, caso aquela relação inicial não dê certo. CarroS, apartamentoS e outraS coisaS também se multiplicam com o “S”. Mais solidário impossível. Sábio. Sensacional. Sem igual. O “S” é camaleônico – rouba o som do “Z” (em casa, quando temos tesão, no peso em demasia e na sua divisão); é contagioso –, multiplica-se, feito o vírus de uma gripe, em “SS” (em nossas obsessões, na assessoria, nas assistências, nas missas, nas missões) e é mutante __ Até quando não existe, dá um jeito de ser lembrado (na educação, numa realização, pela nação e em quaisquer outras ações...). O “S” inicia a saudade; aparece com o sol; adoça o sorvete; tempera a salada; inspira uma salvação; sugere um salvamento. Mas também faz parte da solidão e acompanha qualquer sofrimento. O “S” é elemento-chave numa subversão. É


quente, no sexo. É assanhado na relação. É tão importante na economia, que vira cifrão ($) e adquire superpoderes, valorizando do centavo ao bilhão. É suave, salgado, santo, sacana; está no sangue, na saliva, no solvente, no sotaque, na seca, na saúde, na segurança, na sociedade. Sempre. O “S” é polivalente. Ao mesmo tempo que lidera e inspira o Serviço Social (SS), já foi Schutzstaffel (também SS), a nada sociável “Tropa de Proteção” alemã, paramilitar e superqueridinha de Hitler. “S” de silencio, nesse momento. Em respeito às vitimas de atos sórdidos, selvagens, beirando o surreal. O “S” É a letra heroica. Herdada de nossos pais. Presente em nosso país. Só não entendo porque insiste em usar dublê, quando vai para o exterior (e vira Brazil). Talvez seja modéstia, em não querer ser mais do que já é (e é tanta coisa, né?). O que, por si só, já é sabedoria. Não quer ser sensacionalista, confundir-se com insensatos, selvagens, sem noção, supérfluos. Talvez, ele queira ser apenas ele mesmo. Sem mais responsabilidade. Simples assim. O “S” não é egoísta, apesar de estar envolvido na palavra. Mas é altruísta. Inicia os pronomes possessivos. É seu. Não é só meu. E dá aquela força em tudo que é nosso. Está na poesia e na prosa. Nas artes, nos filmes. Envolve-se não em tudo, no todo, mas em todos (e todas) – por ser politicamente correto. Não são, assim, as pessoas simples e de boa índole? Sim, são. Sendo somente assim. Superando-se. Salvando-se. – Servindo... – chegava o café com salgados. – Sabe que você me inspirou com todos esses “ésses”, amigo?


– Sério? – Seríssimo! Muito obrigada pela inspiração! Você tem algo mais a dizer? – Sucesso. Sinceramente. Totalmente. – Ei! Mas você usou um “tê”! Por quê? – Transformação, talvez. – Entendo. Evolução, não é? Tudo muda o... - Tempo todo. – Concluiu. – Torradas?

Guilherme de Miranda Ramos é escritor de verso e prosa, autor de “Mateu Errante, Mateu Brincante” (2015), “Minha Fúria e Outros Demônios” (2016) e “Estrela Raivosa” (2017).


Nos bastidores do governo Vargas Por Sérgio Tavares A primeira coisa que salta aos olhos, durante a leitura de “Última Hora”, de José Almeida Júnior, é a ousadia. Em seu livro de estreia, o escritor potiguar não se limita a visitar uma parte da história do Brasil, e sim recriar esse recorte de tempo em seu detalhismo mais ordinário. A vida prática se mistura a acontecimentos de repercussão nacional, alimentando um processo de escrita circunferente, no qual o transporte da realidade para a ficção visa instaurar um simulado de

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mundo que imprima toda a plasticidade que há em sua origem. O triunfo de Almeida Júnior está em manipular o real a serviço da imaginação, sem que este perca seu caráter de verdade. Assim, seus personagens (como é o caso da maioria dos romances históricos) não são meras testemunhas, mas agentes determinantes deste universo, interagindo com figuras reais para fazer a História como a conhecemos. O narrador aqui é Marcos, um jornalista ligado ao Partido Comunista Brasileiro, que assina textos críticos no carioca Impressa Popular, veículo com convicções de esquerda. Passam os anos 1950, e seu alvo de ataque é o governo do presidente Getúlio Vargas. Além de considerar o mandato em vigor ilegítimo, a aversão vem de duas décadas, durante o Estado Novo, período em que combateu e foi duramente perseguido pela ditadura de Vargas. Eis que Marcos é procurado por Samuel Wainer. O ambicioso jornalista lhe confidencia que está montando o vespertino Última Hora e lhe convida a fazer parte da equipe. O objetivo é apoiar o presidente, atolado em turbulências políticas, e ser um rival do império midiático de Assis Chateaubriand, declarado opositor ao governo. Marcos, a princípio, recusa de maneira veemente (“Não vou trabalhar para aquele ditador”), contudo o ambiente familiar desmonta suas certezas ideológicas. Com o salário atrasado, dívidas, e a mulher e o filho quase passando fome, acaba aceitando a proposta de Wainer (...um revolucionário não podia se dar o direito de construir família). A partir daí, o romance se divide sensivelmente em dois núcleos: a redação e a casa, que se alternam em capítulos fechados ou no interior de um mesmo capítulo. No primeiro núcleo, apresentam-se os bastidores da

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criação do jornal, as influências e o jogo político, o exercício da profissão sob interesses escusos. Marcos interage com Wainer e ocasionalmente com Vargas, então perseguido por Carlos Lacerda, proprietário da Tribuna da Imprensa e membro da UDN, partido de orientação conservadora. Em primeiro momento, alegando defender o Última Hora e o viés populista de Vargas, Marcos se torna um combatente de Lacerda, porém o avançar da trama vai revelando seu lado desonesto, seu lema indigno de agir em favor dos próprios interesses, que trará consequências incontornáveis para a história do jornal e a do país. O mesmo ocorre em casa. Casado com Anita e pai de Fernando, o jornalista tem de conviver com as cobranças da esposa e as provocações do filho. Marcos quer que Fernando trabalhe, embora este se negue, partindo do princípio de que seu melhor amigo (filho do dono da mercearia, sujeito que Marcos despreza) não precise. O adolescente pretende ingressar na Escola Militar, ridiculariza a ideologia comunista do pai e apoia Lacerda. Quando confrontado, é protegido pela mãe. Marcos busca refúgio em drogas. Um de seus colegas de redação é Nelson Rodrigues. Dramaturgo ainda em início de carreira, o repórter de futebol é escalado por Wainer para escrever uma coluna de apelo mais popular. Nasce “A vida como ela é”, sucesso imediato entre as leitores, que congestionam o telefone com ideias para os contos. A boa lábia de Nelson também seduz Isabel, a voluptuosa secretária do jornal. Mais à frente, entre brigas e reatamentos, o casal formará um triângulo amoroso com Marcos. É interessante como Almeida Júnior consegue trabalhar dois recursos, de pesos distintos, com a mesma organicidade. Apesar de palavroso e constituído de muitas informações técnicas e dados históricos, o trabalho (impressionante) de pesquisa

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se encaixa com naturalidade na trama, servindo de motor para a jornada do protagonista. Quando focaliza a intimidade de seu narrador, o autor flerta com a intertextualidade. Os conflitos domésticos, as corrupções e as angústias, a chegada da jovem amante, a vida dupla bebem do universo consagrado por Nelson Rodrigues, especialmente em “A vida como ela é”. Funciona como um tipo de exercício em que não apenas a realidade substancia a ficção, mas a própria ficção serve para conduzir a ordem desse microcosmo ficcional. Está longe de ser fácil e corre o risco de se tornar um texto excessivamente didático, introspectivo e maçante. Não é o caso, aqui. Almeida Júnior demonstra uma habilidade incrível para um estreante, com técnica afiada para construir diálogos que fluem de maneira intuitiva e um arco dramático cujo estofo é a História que está nos livros, todavia assistida por um viés inventivo, um final que consegue segurar uma surpresa retumbante. “Última Hora” venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2017, na categoria romance. Merecidíssimo. Recria, com intensidade e coerência, um momento da política do Brasil que se repete nos dias de hoje, ou um que nunca deixamos de verdade, que nunca deixaremos de fato. Resenha publicada no site A Nova Crítica

Sérgio Tavares é jornalista e escritor. Autor de “Queda da Própria Altura”, finalista do Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura. Colunista d’O Diário do Norte do Paraná e da Gazeta Niteroiense. Editor da seção Brasil da revista argentina La Pecera. Integra o conselho editorial da São Paulo Review. Colabora com os jornais O Globo, O Diário do Norte do Paraná e Opção (GO), o suplemento literário Correio das Artes(PB) e a revista Bula, entre outras publicações. Mora em Niterói (RJ).

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Livro: Miravilha – Liriai o Campo dos Olhos Autor: Alves de Aquino Editora: Confraria do Vento O poeta e professor universitário de filosofia, Alves de Aquino, traz reflexões sobre a existência e aprofunda significados. Seus poemas são certeiros, contundentes. Brincando com as palavras, segue nos labirintos dos enigmas da sociedade, dos lances da carne e do espírito, da tragédia do cotidiano, da injustiça brasileira, ecoando cantadores repentistas, o pessimismo e o bom humor de Augusto dos Anjos, uma alquimia à la Guimarães Rosa, mas bem jovem, urbana e contemporânea. Livro: O Abridor de Letras Autor: João Meirelles Filho Editora: Record Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2017, em seus oito contos, deparamo-nos com uma Amazônia não só de riquezas, mas de rios e margens, rebanhos e cobras, e uma visão bastante singular do norte do país. João Meirelles Filho nos surpreende com o lirismo de sua escrita, combinando traços de um linguajar antigo com uma visão muito atual. Livro: Receita para se Fazer um Monstro Autor: Mário Rodrigues Editora: Record É na infância, zona obscura e amedrontadora, que predominam as paixões, os desejos inconfessáveis, a natureza humana em grau máximo de transparência, em desajuste com o mundo que a cerca. É dessa perversidade que se tratam os contos do livro, o resultado é uma sequência de sobressaltos e revelações, que podem produzir no leitor o efeito de uma obsessão.

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A literatura entre nós A revista Pequiá chegou e, em suas quatro edições, atua como elemento agregador das múltiplas vozes que compõem o mosaico literário do Cariri, do Ceará, do Brasil. Nossa linha editorial tem a missão de amplificar as vozes, nos mais variados lugares, desses artistas da palavra que fazem literatura nos quatro cantos do país. Passaram por aqui diferentes prosadores e poetas, como Ana K Lima, Guilherme Miranda, Nilton Resende, Ythallo Rodrigues, Coletivo Xanas e Denniz Radüns. Resenhas por Sérgio Tavares, Cristina Carneiro, Henrique Rodrigues, entre outros. Como parte integrante do nosso conjunto de projetos literários, a Pequiá reafirma, assim, o compromisso do Sesc com a difusão da literatura brasileira, a ampliação do universo dos leitores e a democratização do acesso às produções artísticas.

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