Pequiá 02

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ANO 1 EDIÇÃO 02

Pequiá Literatura Sesc

ANA MIRANDA

Palavras

transformadas em arte


Numa parceria entre o Serviço Social do Comércio e a Pró-Reitoria de Cultura da Universidade Federal do Cariri, a revista Pequiá chega à sua segunda edição abrindo espaço para a literatura produzida por mulheres. Em um cenário que dá pouca visibilidade a esse nicho, consideramos importante trazer à cena a produção de algumas escritoras da região do Ceará e também do Brasil, sobretudo para garantir a multiplicidade de vozes e de formatos do fazer literário. Nesse sentido, esta edição da revista traz perfil da escritora cearense Ana Miranda, entrevista com a poeta Luiza Romão, poemas de integrantes do Coletivo Xanas recitam Xanas, conto de Anna K. Lima, e resenha escrita pela jornalista Alana Maria Soares. Com isso, pretendemos dar mais visibilidade à produção local na área de literatura e ampliar a variedade de discursos, construindo este espaço como lugar de promoção da diversidade e do fortalecimento da cultura regional. Boa leitura!

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EXPEDIENTE Edição 2 | Junho/Julho 2018 FECOMÉRCIO | SESC

CONSELHO REGIONAL DO SESC AR/CE

Presidente: Maurício Cavalcante Filizola Diretora Regional: Rodrigo Leite Rebouças Diretoria de Programação Social: Patrícia Carnevalli Rinaldi de Paiva Diretoria de Administração e Finanças: Domingos Sávio da Costa Assessoria de Comunicação e Marketing: Michelle Ribeiro de O. Espíndola Gerência de Cultura: Chagas Sales Nogueira Lima Gerência do Sesc Crato: Francisca Lúcia Bezerra Supervisora de Cultura: George Belisário Bibliotecária: Maria do Socorro Dantas Santana Assistente de Biblioteca: Raflésia Custódia - Talita Rocha Lima Técnicos de Cultura: Suzana Carneiro - Maria Bezerra - Daniel Rodrigues UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI - UFCA Reitor: Ricardo Luiz Lange Ness Vice-reitor: Juscelino Pereira Silva Pró-Reitor de Cultura: José Robson Maia de Almeida Coordenadoria de Política e Diversidade Cultural: Gustavo Ramos Ferreira REDAÇÃO Repórter: Alexia Mesquita Ilustração: Ana Estela Braga Colaboradores: Anna K. Lima, Alana Maria Soares, Coletivo Xanas recitam Xanas (Bartira Dias, Jeani Duvall, Karlinha Sutil Alves e Tatiane Evangelista) Curadoria: Gustavo Ramos e Márcia Leite Projeto Gráfico: Estúdio Caravelas | Hanna Menezes Diagramação: Hanna Menezes Revisão: Márcia Leite Professor Orientador: José Anderson Sandes Supervisão: George Belisário

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Ana Miranda, a celebrada autora de “Boca do Inferno”, conta a sua trajetória e como desenvolveu a arte da escrita.

06 Luiza Romão, autora de “Coquetel Motolove” e “Sangria”, narra a história brasileira a partir da perspectiva feminina.

20 Conheça a poesia do Coletivo Xanas recitam Xanas no Caderno de Poesia.

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Confira a resenha do livro “Americanah”, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.

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Sesc-DF realiza prêmios culturais nas áreas de literatura Estão abertas as inscrições para o Prêmio Sesc Carlos Drummond de Andrade, pela categoria poesia, que podem ser feitas pelo link: https://goo.gl/PucmGo. Já para o Prêmio Sesc Monteiro Lobato, categoria contos infantis, as inscrições podem ser feitas pelo seguinte link: https://goo.gl/7hv8ra. Os escritores e artistas podem enviar o material até 31 de julho. Cada participante pode inscrever até dois trabalhos, que precisam ser inéditos (não publicados). O tema é de livre escolha.

As Cidades e Os Desejos Pensado e gestado pelo Selo Editorial Aliás, é um livro digital composto por 25 trabalhos produzidos por mulheres. A publicação busca novas interpretações sobre a cartografia das cidades e os olhares que a permeiam, a partir dos olhares de mulheres enquanto protagonistas de suas histórias. Para ler, acese o link: https://issuu.com/ alias.seloeditorial/docs/as_cidades_e_os_desejos_ebook_23h_8081acc941f9e6

IX Artefatos da Cultura Negra De 18 a 22 de setembro acontece o IX Artefatos da Cultura Negra: Aquilombar é preciso! e a I Mostra de Cinema Africano. Serão debatidas questões da negritude e africanidades na região do Cariri, com a participação de movimentos sociais, acadêmicos e pesquisadores do Brasil e do mundo. Tereza Cardenas, escritora, contadora de histórias e ativista social cubana é umas das convidadas do evento. Maiores informações: http://www. urca.br/artefatosculturanegra/ix/

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Retrato de uma artista Texto | Alexia Mesquita A escritora cearense Ana Miranda deslumbrou o Brasil quando lançou “Boca do Inferno”, em 1989, romance histórico sobre o poeta Gregório de Matos Guerra. O livro causou espanto. E não era para menos. Ana passou dez anos tecendo o romance, sobre uma quadra histórica envolvendo, além de Gregório de Matos, jesuítas, judeus, história do Brasil e Portugal, repleta de luta pelo poder numa Bahia do Século XVII. Com ele, ganhou o prêmio Jabuti de autora revelação. Ana nasceu em Fortaleza, em 1951 e, ainda na infância, junto com a irmã

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Foto: arquivo pessoal

Ana Miranda


Malui Miranda, já exercia um olhar refinado pelas artes: poesia, música e desenhos. Exercício que continuou nos novos espaços em que morou – Brasília, Rio, São Paulo –, onde conviveu com importantes artistas brasileiros. Atualmente, a escritora mora em Fortaleza. “Toda a minha vivência nesses lugares me compõe, sou fruto dessas experiências, sou feita desse ares, dessas paisagens, desses sotaques, dessas histórias”, diz, neste perfil para a revista Pequiá, onde fala também da infância, do cinema, de amigos e, principalmente, de literatura. Depois do “Boca do Inferno”, ela escreveu vários romances, como “Dias e Dias”, “O Retrato do Rei”, “Desmundo”, “A última Quimera” e, mais recentemente, “Semíramis”, este último trazendo uma personagem singular para nós, cearenses: Bárbara de Alencar.

A arte vem… Ah, sim, vem desde a infância, quando a minha irmã, Marlui Miranda, e eu, em nosso quarto mágico, passávamos o dia a fazer livrinhos, escrever poemas, desenhar, compor músicas, tocar instrumentos, tudo o que era das artes nos seduzia e apaixonava. Éramos duas pequenas artistas, desde sempre. Mas a minha irmã sempre foi nitidamente uma musicista, eu era mais dispersa, aparentemente eu ia ser uma artista visual, era o que mais aparecia em mim, eu desenhava o tempo todo, e cheguei a fazer um painel de flores de outro planeta que cobria toda a parede do nosso quarto. O desenho é mais visível, comunica num instante, mas eu tinha sempre a minha secreta atividade na poesia, ou escrevendo diários, e anotando meus sonhos. Sempre vivi no meio artístico, e desde

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menina conheci artistas, como Oscar Niemeyer e Athos Bulcão, que eram vizinhos de nossa casa em Brasília, no tempo da construção da cidade. Eu tinha uns sete, oito anos. Isso parece quase um sonho, mas eles eram só os vizinhos, eu via o Athos Bulcão pintando, ou fazendo módulos que seriam depois seus azulejos maravilhosos. Vivia isso como uma criança, achava bonito, queria fazer igual, pintar, colorir, recortar, montar. Mocinha convivi com escritores, poetas, e assim tem sido pela vida toda, essas convivências devem ter me influenciado profundamente, são a minha formação, a minha escola verdadeira. Mas nem meus desenhos nem minha literatura se parecem com as obras desses artistas com quem convivi. Eles estão, acho, mais na minha maneira de pensar do que na maneira de realizar. Uma curiosidade: meus desenhos são totalmente impermeáveis a influências, mas minha literatura é absolutamente aberta. Meus diários eram quase ficcionais, ali eu descrevia e registrava um mundo corrigido, recriado por meus desejos que eu não conseguia realizar, por minhas tristezas e incapacidades, ali eu me reconstruía e retomava forças, viver nunca é fácil, ainda mais para uma menina sensível e sonhadora. Eu contava histórias que jamais tinham acontecido comigo, como se tivessem acontecido, como se a minha realidade fosse a imaginação. Diários Os diários eram também uma fuga da realidade, das obrigações, eu queria ser livre e é sempre uma grande batalha a conquista da liberdade, eu tinha de estudar coisas que não me diziam respeito, não tinha nenhuma aptidão para a matemática, sempre soube o que eu era, uma pessoa das artes. Como

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lembrava muito dos meus sonhos, comecei um dia a anotá-los, tive alguns diários de sonhos, como se a minha realidade fosse o sonho, cheguei a publicar um “Caderno de Sonhos”, coisa mais aterradora. Eu era uma menina retraída, que vivia num mundo interior. Não escrevo mais diários, mas continuo a anotar meus sonhos, quando me recordo. Mas meus sonhos hoje são bem menos tempestuosos e se assemelham mais à realidade. Bem, eu saí de Fortaleza aos quatro anos de idade, ou cinco, e seria natural não ter muitas lembranças, mas tenho extraordinariamente muitas lembranças da nossa casa na avenida Aquidabã, da minha adorada babá, Odete, da vida feminina em nossa casa,

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Foto: arquivo pessoal

Com a amiga Rachel de Queiroz, nos anos 90

das bordadeiras e rendeiras, de nossos vestidos de renda, do mar, do vento espetando areia como agulhas nas minhas pernas, dos coqueiros, das canções que ouvia, lembro das aulas de música, de minha irmã chorando ao ouvir “Clair de Lune”, de Debussy, mil lembranças. As recordações de Brasília também são marcantes, desde a minha chegada no “planeta das bruxas”, aos sete anos de idade; as árvores tortas, a vegetação de cerrado e as emas me encantando, a liberdade pelos terrenos empoeirados, e a maravilha de minha educação na Escola Parque, onde todas as matérias eram arte. Tive uma infância deslumbrante, pouco dentro de casa, mais no mundo, um pouco em família, as histórias de engenho contadas por meu pai, a compreensão inovadora de minha mãe, e sempre com minha irmã, Marlui, que me abria todas as portas. E desde a infância fui fazendo amigos de quem nunca me esqueci ou separei, mesmo morando longe.

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Fortaleza, Brasília, Rio e São Paulo Formaram a minha geografia pessoal e me deram traços. O Ceará me deu a herança de Alencar e Rachel, uma ingenuidade e pureza de sertão e uma beleza absurda de praias. Brasília me deu um sentido de Brasil, por ser uma cidade central e formada de gente de todas as regiões brasileiras. O Rio me deu ginga, malícia, sensualidade, alegria, a exuberância das matas verdes. E São Paulo me deu uma profundidade maior nos sentimentos, uma maturidade nova. Toda a minha vivência nesses lugares me compõe, sou fruto dessas experiências, sou feita desses ares, dessas paisagens, desses sotaques, dessas histórias. Semíramis O que me inspirou a escrever “Semíramis” foi o amor que sinto pela obra de José de Alencar, aliado a um pedido feito pela Rachel de Queiroz para que eu escrevesse um livro sobre a avó do romancista, a dona Bárbara do Crato, a nossa heroína. Também fui levada pela minha vontade de escrever com os pés no Ceará, e “Semíramis” é meu primeiro livro cearense na plenitude, de corpo e alma, os outros são cearenses nas partes mais profundas da construção. A subjetividade do livro vem, decerto, de ele ser narrado na primeira pessoa. É a mocinha que fala de si mesma e de seu mundo, a Iriana. Não sei se me identifico mais com a Iriana ou com a Semíramis, que representam, aos meus olhos, a realidade e o sonho. A ciência e a arte. A província e a metrópole. A opressão e a rebeldia. Representam esses extremos que sou, e que todos somos, de certa forma. Dar explicações, na literatura, quase sempre é reduzir a compreensão dos significados, mas posso dizer

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que a Semíramis, personagem, é uma expressão da literatura do romantismo, uma personagem construída com as palavras de Alencar e inspirada nas personagens de Alencar, como Lucíola, Diva, Aurélia, as figuras femininas da parte urbana da literatura alencariana. Mas, para mim, ela é a mentira, a ilusão, a ficção, o sonho, as astúcias da arte, o encanto, o riso, a paixão. A escolha da Iriana como narradora, imagino que tenha sido por gostar de uma narradora mais racional, porque a narrativa precisava da racionalidade para observar, e para ambas, Iriana e Semíramis, comporem com seus lados opostos um elemento completo, ao mesmo tempo racional e intuitivo. Sei lá, os personagens vão surgindo na minha mente como um sonho, como raios de luz, como flores que se abrem, devem ser milhares os elementos que os compõem, quem saberia dizer? Sei que tudo tem a ver com as minhas origens. Os episódios históricos entram no romance “Semíramis” como se não fossem históricos, entram como cotidiano dos personagens. A Bárbara do Crato, heroína republicana, é apenas a dona Babu, a vizinha da Iriana, por quem o avô dela é apaixonado desde garoto, e essa paixão do avô de Iriana pela Bárbara é que vai desvendando os acontecimentos da Guerra dos Padres e da Confederação do Equador. Tudo é visto pelo lado de dentro, porque antes de se tornar história, a vida é vida, apenas. Isso cria uma porta de entrada e de compreensão diferentes, acho fascinante olhar pelo lado mais humano os personagens lendários, sagrados, como o Alencar, a Bárbara, o Castro Alves. O José de Alencar é o Cazuzinha, e só lá pelo fim do livro é que se torna Alencar, porque, afinal, somos antes de tudo pessoas humanas. E adorei viajar pelas regiões do Ceará, na imaginação,

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colhendo gravetos e ouvindo passarinhos, sentindo os sabores, conhecendo melhor as lembranças de meus antepassados e a minha herança cultural.

Foto: arquivo pessoal

Transformação da palavra Ah, eu estou sempre “pulando a cerca”, mesmo sendo nitidamente uma romancista, estou sempre a escrever livros fora do caminho central, aqui um livro de poesias, ali um de crônicas, ou livrinhos para crianças, adolescentes, e agora escrevi duas alentadas biografias, vou como se estivesse bordando a vida pelo avesso, um dia acho que tudo fará sentido. Tento me restringir ao que mais aceitaram em mim, os romances com personagens da história literária, mas, quando vejo, estou mergulhando em um livro bem diferente,

Ana Miranda fantasiada de baiana com a irmã Marlui Jun/Jul 2018 |

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Foto: arquivo pessoal

Atriz Ana Miranda na peça Cristo versus Bomba

malbaratando tudo o que construí, como me disse um amigo. Mas sou assim, por que mudar? O que há em comum entre todos esses livros talvez seja a paixão pela palavra, pela transformação da palavra em arte, o que tento fazer sempre. Os traços meus que deixo em meus livros, penso como Guimarães Rosa, que dizia: “Eu não escrevo sobre mim mesmo”, mas quando vou ler algo meu algum tempo depois percebo o quanto escrevi sobre mim mesma. Mas tenho grande interesse no Brasil, na nossa língua, e tento sempre enveredar por aí. Desde meu primeiro romance, quis escrever na primeira pessoa de uma voz feminina, uma personagem feminina narrando a história, mas o romance “histórico” não aceita, não dá bons resultados quando narrado na primeira pessoa, que é uma expressão mais subjetiva, mais adequada a romances introvertidos, psicológicos; e o meu

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primeiro romance era também uma experiência de aprendizagem da estruturação e realização de um romance nos moldes clássicos, da modernidade, a mesma estrutura de “Dom Quixote”, desde então. Não cabia de jeito nenhum a narradora feminina na primeira pessoa, mas fui insistindo, e finalmente em “Desmundo” consegui. Desde “Desmundo”, todos os meus romances são narrados por uma personagem feminina, na primeira pessoa, e isso me deu mais segurança, e um sentimento de honra, por trabalhar na literatura a favor da voz feminina. Elogio Imagine, só, a Isak Dinesen! Ela é um dos meus escritores prediletos, e há realmente algo dela em meus livros, o encanto pela história contada, pelo passado, e algo de gótico ou barroco. A editora é um pouco sob suspeição, quando elogia um autor, mas de toda forma isso me orgulhou, me deu muito alento, forças para continuar, a profissão de escritor é dura, não temos escolas que nos ensinem a escrever, não temos apoio, não temos nada a não ser nossa vontade e força pessoal, nossa paixão diante de uma página em branco, algo capaz de aterrorizar qualquer coração de pedra. Recebi muito reconhecimento quando publiquei meu primeiro romance, mas acredito que foi proporcional ao meu esforço, fiquei dez anos escrevendo o “Boca do Inferno”, sem nem mesmo saber se conseguiria editá-lo. E precisamos saber endeusar nossos autores e autoras, como tem acontecido com a Clarice no mundo. Acho que vale a pena conhecer todas as escritoras brasileiras, as escritoras do nosso tesouro literário são imprescindíveis, como a Clarice Lispector, a Rachel de Queiroz, a Lygia Fagundes Telles, a Hilda Hilst, a Adélia Prado, a

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Cora Coralina, são muitas! E tenho feito algumas descobertas de escritoras jovens, as quais posso indicar aqui, como a Mariana Ianelli, a Adriana Lisboa, a Tércia Montenegro, a Paula Parisot, a Patrícia Melo, a Beatriz Bracher, Socorro Acioli, são tantas... Cinema O campeão de propostas para a adaptação cinematográfica, dentre meus livros, é o “Boca do Inferno”, acho que porque tem mais vibração cinematográfica, mais ação, mais apelo para os cineastas. O “Amrik”quase foi realizado já duas vezes. “O Retrato do Rei” já foi comprado, para adaptação, e não deu certo. O romance “A última Quimera” foi adaptado para teatro. Mas, até agora, só o “Desmundo”foi adaptado para cinema; e uma crônica que escrevi na revista Caros Amigos, “Parque de Diversões”, adaptada por um pessoal daqui do Ceará, que fez um curta-metragem lindíssimo. Escrevo literatura pura e livros de literatura. Achei um desafio imenso para o diretor de cinema Alain Fresnot adaptar o meu romance “Desmundo”para o cinema, o filme ficou lindo, mas é bem diferente do livro, perdeu-se a arte da palavra, evidentemente. O passado é ficção Ah, isso mesmo, você já respondeu, o passado sempre será ficção, pois é apenas lembrança, não existe mais, embora seja indestrutível, esse é o paradoxo. Mas posso falar um pouco sobre o meu método de trabalhar com a pesquisa, na verdade nem chamo de pesquisa, mas de viagens ao passado, que realizo por meio das palavras; os documentos antigos são excelente material para

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a reconstrução do passado, eu trabalho como os arqueólogos, tirando poeira das palavras, ou recriando a partir de um fragmento, como eles conseguem fazer ao reconstruir um dinossauro a partir de uma pegada, ou de um osso. A ideia é que a vivência no tempo escolhido seja real, e essa vivência pode se realizar na imaginação. Devo sempre escrever sobre o que conheço, com sentimento e sensibilidade. Academia Brasileira de Letras Não tenho nenhum sentimento em relação a isso, acho bonita a história da Rachel de Queiroz entrando como a primeira mulher, e depois outras, e cada vez mais mulheres, elas são muito bem-vindas ali, a Nélida e a Ana Maria Machado foram presidentes da Academia; o fato de serem minoria expressa uma realidade, a Academia expressa uma realidade muito antiga, as mulheres viveram muito tempo à sombra dos homens, poucas foram escritoras ou poetas; como diz a Virginia Woolf, vivíamos ocupadas em gerar e educar a humanidade; agora temos nossos desejos, nossas ânsias, revelados, e estamos lutando por nossos sonhos.

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Mulheres e leitoras Parece que é estatístico, as mulheres leem muito mais ficção do que os homens, há mesmo certos trabalhos de estudiosos afirmando que as obras de Machado de Assis e José de Alencar eram escritas para as mulheres, nos folhetins de jornais, uma coisa muito graciosa, muito agradável, que nos dá orgulho. Meus livros me parecem às vezes direcionados, de forma natural, não planejada, o “Boca do Inferno” me parece um livro mais viril, muscular, e o “Amrik”, essencialmente feminino. Mas muitas vezes me surpreendo com leitoras apaixonadas pelo “Boca” e leitores pelo “Amrik”. Há muito de feminino na alma dos homens e vice-versa. Arte e mercado Acho que o momento é marcado pela ideia de inclusão da arte no mercado, e isso é bom, mas tem um perigo muito grande, pode oprimir as manifestações mais artísticas, e todo acervo cultural de todo país precisa da arte, da grande arte, e não apenas do mercado. Um pouco estamos tomando as medidas por baixo, e o nível precisa ser alto, vivemos num mundo onde os mais ricos e “O passado sempre será ficção, pois é apenas lembrança, não existe mais, embora seja indestrutível, esse é o paradoxo.”

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desenvolvidos protegem e amam muito mais a arte do que nós.

Foto: arquivo pessoal

Novas e velhas leituras Tudo o que leio me influencia fortemente, por esse motivo sou muito cuidadosa com as minhas leituras durante a escrita de um romance novo. Sinto que fui muito influenciada pela ideologia literária de Rubem Fonseca, e pelas obras de poetas como Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, e Gonçalves Dias. Ao absorver suas dicções, recebo a maior de todas as influências, a da voz. Como tenho uma obra representativa da nossa literatura, muito conectada com a tradição, recebo sempre atenção e apoio da Academia Brasileira de Letras, que já me premiou duas vezes, e muitos dos acadêmicos já me manifestaram seu agrado em me terem como participante dessa honorável instituição literária, a mais importante de todas as instituições literárias no nosso país. Mas, por enquanto, fico no meu canto, de pés descalços, a andar na areia da praia, a sonhar e ouvir passarinhos.

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Foto: Divulgação

Luiza Romão Para subverter a narrativa Luiza Romão nasceu em 1992, em Ribeirão Preto, São Paulo. Logo cedo entrou em contato com as diversas formas de arte (literatura, música e teatro) e com as lutas sociais, por meio de seus pais, professores. Formada em artes cênicas, envolveuse com o movimento de poesia teatralizada denominado Slam, que consiste também em performances ligadas a uma produção autoral e periférica. “Minha trajetória começou no teatro, na cena; a poesia, o slam, os saraus me pegaram de surpresa. Foi uma celebração da palavra e da teatralidade”, explica.

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Interessada pela escrita desde a infância, tornouse autora independente em 2014 ao lançar seu primeiro livro de poesias, “Coquetel Motolove”, e, em 2017, “Sangria”, que conta a história brasileira a partir de uma perspectiva feminista, percorrendo os 28 dias do ciclo menstrual. Com traços de oralidade e É impossível desvencilhar características fortes minha poesia da e revolucionárias, a oralidade poesia de Luiza se mostra como uma denúncia a todas as formas de opressão sofridas pela mulher brasileira. “Como artista, isso [o cenário político brasileiro] me indigna e me mobiliza. Não dá pra ficar apático ou paralisado. É tempo de radicalizar a estética, de criar estratégias, de confrontar narrativas”, acrescenta. Nesta entrevista, o nome do “Brasil” é substituído por “br*+^%-” em respeito à problemática levantada em seu novo livro, no qual a autora em um de seus poemas diz que a caneta, em um ato de revolta por todos os anos de exploração da mulher, recusa-se a escrevê-lo. PEQUIÁ | A sua paixão pela escrita veio da infância, através do trabalho de grandes romancistas. Você nunca pensou em escrever algo além de poesia? LUIZA ROMÃO | Pois então, sou apaixonada por romances, aqueles livrões que você fica um ou dois meses mergulhada. Mas foi a poesia que me pegou. Principalmente pelo lance da performance, do spoken word. Na real, nunca tive muito esse sonho de ser autora. Minha trajetória começou

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no teatro, na cena; a poesia, o slam, os saraus me pegaram de surpresa. Foi uma celebração da palavra e da teatralidade. Numa chave de denúncia/contestação. Era isso que eu buscava como artista. E aconteceu! Quem sabe, algum dia, a prosa também me flerte. Por enquanto, estou bem acompanha pelos versos. PEQUIÁ | Quais são os escritores que te influenciam? LUIZA ROMÃO | Eita. São muitos. Desde os mais canônicos: Homero, Ésquilo, Eurípedes. Salve, salve, bonde helênico! Até os e as contemporâneas: Alice Ruiz, Tatiana Nascimento, Daniel Minchoni. Sempre li muito os autores latino-americanos também: Galeano, García Márquez, Isabel Allende, Gioconda Belli. Acho que as referências se constroem no balanço da maré: o que te instiga naquele momento? Qual questão existencial não te deixa dormir? Pra onde apontam seus sonhos? Enfim, não se separa da vida. PEQUIÁ | E seus pais, como professores, tiveram influência na sua escrita? LUIZA ROMÃO |Mais do que na escrita, eles influenciaram na minha trajetória como um todo. É um privilégio que eu não consigo nem mensurar. Poder crescer com liberdade de pensamento, rodeada de livros, figurinos, idas ao teatro. Isso me formou como cidadã, como artista, como mulher. Tem uma coisa engraçada que é: eu me chamo Luiza por conta da música do Tom, e meus

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Luiza Romão em performace: “Quem é slamer, é slamer. Quem é atriz, é atriz. Quem é pintora, é pintora. Eu sou artista”.

irmãos são o Chico, o Caetano e a Bethânia. Dá pra imaginar a efervescência criativa da nossa infância, né? Impossível sair indiferente disso. PEQUIÁ | Heloísa Buarque de Hollanda, no prefácio do livro “Sangria”, diz que sua poesia dialoga com a performance. Assim, além de escritora, você também é poeta de slam e atriz. Como isso se concilia? LUIZA ROMÃO | Na produção. Um dos males da contemporaneidade é essa especialização. Quem é slamer, é slamer. Quem é atriz, é atriz. Quem é pintora, é pintora. Eu sou artista. Acima das classificações. Artista. Se um projeto pede que eu dance ballet clássico, eu vou aprender; se pra esse trabalho, eu quero me jogar como escritora, eu me jogo. A vida é múltipla; não dá pra dividir em caixas.

É um fato que a sua poesia se reconhece também na oralidade. Tendo isso em vista, você PEQUIÁ |

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está familiarizada com a literatura de cordel? LUIZA ROMÃO |Olha, muito pouco. Infelizmente. Cheguei a ler algumas coisas na juventude e ouvir bastante cordel. Mas, de fato, não é algo que compõe meu repertório. Meu spoken foi mais influenciado pelo RAP mesmo. PEQUIÁ | Falando

em cordel, você veio ao Cariri em 2017 para a Mostra Sesc de Culturas. Como foi a experiência? LUIZA ROMÃO | Foi maravilhoso. Uma dessas experiências que você carrega por muito tempo. Não só pela mesa que fiz com Anna K. (uma poeta incrível de Fortaleza, que está com um projeto editoral massa), mas pela Mostra como um todo. Conviver com artistas de diferentes linguagens e regiões do país. Trocar ideia com as manas e os movimentos culturais locais (fui numa edição do Xanas recitam Xanas, espetacular!). É combustível pra criação isso. Quero voltar de novo e logo! PEQUIÁ | Seu

novo livro, “Sangria”, não é só uma experiência individual, mas também toca o coletivo. O livro em si, com suas costuras e materiais feitos à mão pode ser considerado uma intervenção. Fale sobre o processo criativo e de escrita dele. LUIZA ROMÃO | Bom, o Fellinni tem uma citação maravilhosa que diz: “Não se pode contar uma viagem sem antes realizá-la. Quando muito se poderá dizer que se tem a intenção de fazer esta viagem. Mas, se soubéssemos desde o princípio o que nos espera, minuto por minuto, nunca sairíamos”. Pra mim, o processo criativo é bem isso: uma viagem que se faz durante o processo. Eu não sabia, exatamente, como o projeto resultaria ou que tipo de recurso (fotográfico, lírico, imagético) lançaria

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mão. Era algo sobre mulheres e sobre Brasil, sobre uma perspectiva histórico-materialista da violência de gênero. Descobri isso logo no início. O resto se revelou durante: primeiro, a estrutura de um ciclo menstrual (28 poemas, 28 dias), depois o formato do calendário (o livro quadrado que abre pra cima), que levou à ideia das fotos (cada poema é acompanhado por uma imagem performática) e também à série. Intuição, tentativa e estudo. Assim foi. PEQUIÁ | Em

uma narrativa você passeia por dois

audiovisual com a poesia? LUIZA ROMÃO | Como disse, minha trajetória começou no teatro. Então, é impossível desvencilhar minha poesia da oralidade. De forma que o suporte do livro não me contentava 100%. E nada é mais avassalador do que um artista insatisfeito. Eu queria pôr essas palavras no espaço, carregálas de métrica, timbre e corpo. Já pesquisava a

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campos, o br*+^% Colônia e os mitos gregos. Como você interliga esses dois espaços? LUIZA ROMÃO | Isso é muito pela via do afeto. Sempre fui apaixonada pela mitologia grega, pelas tragédias e epopeias; deuses, heróis e enigmas. Compõe meu imaginário desde pequena. Na hora que escrevo, esse paralelismo vem. Talvez meu próximo trabalho aprofunde ainda mais nisso. Vamos ver. de livro, “Sangria” também é uma web série. Pra você, qual é a importância de conciliar o Foto: Divulgação

PEQUIÁ | Além

linguagem do videopoema há alguns anos e decidi radicalizar nisso. Além do que, “contar a história do Brasil pela ótica de um útero”, sozinha, não fazia muito sentido. Precisava ser coletivo. Colocar outras mulheres (de outros lugares, linguagens, experiências) pra entoar essa narrativa comigo. Daí nasceu a série, na qual mais 50 artistas participaram, performando, roteirizando, captando

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som/vídeo, etc. PEQUIÁ | Dentre as dificuldades de lutar pelos direitos das mulheres em um país ainda conservador, quais foram os maiores obstáculos na produção? Você foi muito criticada? LUIZA ROMÃO | Ser uma produção de BO (baixo orçamento), já implica muita coisa. Tem que ter garra, convicção, desejo, pra não desistir no meio do caminho. As gavetas (inclusive as minhas) tão cheias de projetos geniais que não emplacaram por entraves de produção. A gente enfrentou de tudo. Desde enquadro policial até assédio verbal, hostilização, etc. Numa delas, deu aquele frio na espinha terrível. Mas, apesar disso, o saldo foi muito positivo. Conseguimos traçar uma rede afetiva através da cidade, mapear várias artistas, bolar parcerias, etc. Se fosse pra voltar atrás, faria tudo de novo! PEQUIÁ | O seu livro é focado em temas feministas e fortes críticas ao sistema patriarcal, então por que a

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“Sempre fui apaixonada pela mitologia grega, pelas tragédias e epopeias; deuses, heróis e enigmas.”

Foto: Divulgação

escolha de Sérgio Silva, uma visão masculina, como direção de arte da web série? LUIZA ROMÃO | Afetivamente? O Sérgio é meu companheiro de vida. Mais do que um diretor de arte, ele me viu sonhar esse projeto desde o começo e sempre ninou-o comigo. É meu parceiro de empreitada. Topa-tudo. Corre-junto. Vamo-aê. Precisa acordar 5h30 da manhã no feriado pra ir pra Jundiaí filmar o nascer do sol? Bora! Precisa madrugar finalizando as fotos? Tô aqui. E por aí vai. O “Sangria” é uma filha nossa. E o Sérgio foi parte fundamental da criação. Além disso, tem o lado prático da coisa! Definidor. O projeto da série foi feito sem nenhum tipo de incentivo, edital, financiamento. Levantamos com economias nossas. Eu não teria condições de pagar por um profissional em tempo quase integral. E ele não precisava disso, obviamente (risos). Ossos do ofício de namorar uma poeta! Mas apesar dele assumir a direção, é importante frisar que a equipe técnica (câmera, captação de áudio, figurino, edição,

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música) foi quase toda composta por mulheres. Foram inúmeras parcerias, desde produção local até finalização de imagem. PEQUIÁ | Além de mulheres já engajadas na luta feminista, quem você esperava atingir como público-alvo? Você se surpreendeu com o feedback do livro? LUIZA ROMÃO | Olha, está sendo incrível! Esse mês refiz os cálculos e já foram mais de mil livros por todo o Brasil (e Argentina, Uruguai e Espanha). Pruma publicação independente (o livro saiu pelo selo doburro), que não está em livrarias, que não teve matéria paga em grandes jornais e redes televisivas, isso é um marco. Sério. Me surpreende e energiza demais. É saber que o trabalho afeta, mobiliza e instiga. Num tempo de tanta apatia e truculência política, isso é uma trincheira. Meu público, como você perguntou, é majoritariamente feminino e feminista, de resistências bem diversas e contextos distintos. PEQUIÁ | “Sangria” foi traduzido para o espanhol. Você pretende traduzi-lo para outras línguas e fazer com que o seu trabalho e o seu protesto alcance mais pessoas? LUIZA ROMÃO | O fato de ser bilíngue abriu portas incríveis pra nós. O filme já foi exibido na Argentina, Uruguai, Porto Rico, e a Martina Altalef (tradutora) sempre circula por eventos nesses países. Além disso, traduzimos pro inglês no começo do ano. O filme já tá legendado. Agora é tecer parceria com alguma editora anglofônica pra publicar na gringa. PEQUIÁ | A

sua poesia é crua e militante, você a considera subversiva?

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LUIZA ROMÃO | Com

certeza. Ainda mais num momento histórico de tanta barbárie e conservadorismo, como esse que estamos passando. Tem que subverter a narrativa oficial pela lírica, pelo jeito de produzir, pela forma de circular. Não dá pra somar em rebanho, não. PEQUIÁ | Seus

livros publicados, “Coquetel Motolove” e “Sangria”, têm fortes críticas ao cenário político do país. Desde que os escreveu, ainda mais mudanças contrárias aos direitos do povo foram implantadas pelo governo. Como você analisa isso? A arte ainda resiste a esse panorama? LUIZA ROMÃO | A história é cíclica, e esse momento de conservadorismo tá só no começo. Se olharmos pro contexto da América Latina, as democracias além de muito recentes são interrompidas por golpes de Estado. No Brasil, a gente teve 64, o suicídio do Getúlio (que evitou os ianques naquele momento), uma independência forjada (somos o único país que se tornou Império e não República pós-independência). Enfim, uma sucessão de golpes que compõe a nossa trajetória - como se qualquer possibilidade de país mais popular e igualitário tivesse que ser violentamente abortada (trabalho com essa metáfora no livro, inclusive). Como artista, isso me indigna e me mobiliza. Não dá pra ficar apático ou paralisado. É tempo de radicalizar a estética, de criar estratégias, de confrontar narrativas. O Cortázar tem uma entrevista incrível que debate esse paradoxo do artista e do militante. “Creio que o ato criador é uma espécie de resposta à realidade que se confronta”. Também acredito nisso.

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Mulheres que se engajam na vida, que vivem a realidade dos dias com coragem, enfrentamento e poesia. As poetas que aqui chegam, como toda artista, experienciam a realidade e se alimentam desta para transformar o cotidiano em que vivem. Partindo de suas experiências pessoais e sociais, elas desautomatizam a linguagem para recriar um cotidiano que transpire igualdade, respeito e diversidade. O que vemos então nos seus poemas é o retrato da realidade travestido em arte, quando elas traduzem os dias por meio de palavras, provocações e pequenas revoluções. Vamos a elas?!

Abram as cancelas Enfia a culpa no curral de quem a cria Bode velho amarro pelo chifre Sigo Livre, sou Mulher, não cabrita. (Jeani Duvall)

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Poemas de cartas Vou sair por aí pegando o beco correndo risco e no meio do vento um cisco vou sair por aí quase embora quase não sinto e no meio da estrada eu multiplico se for quente a noite clama quando frio me ponho à cama e no olhar da estrela o céu me ama. (Bartira Dias)

Poema I Clara demais pra ser Negra, escura demais pra ser Branca De acordo com essa sociedade eu não tenho identidade. Assim é mais fácil conter acham que vão me convencer que “morena” sou eu prefiro me concentrar na história dos meus que justifica o silêncio dos seus. (Tatiane Evangelista)

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Marias

Sou Maria das bonitas Das pintosas, feiticeira Das prendadas poderosas Das gostosas e faceiras Sou Maria como tantas Como todas e demais Meu barulho nunca cessa Se eu quero, vou atrás Ache ruim, ache bonito Ache o que você quiser Evoluir é pra poucos Não dou trela a Zé Mané Me respeite, sou Maria De Madalena à mãe de Deus Filha dela ou sendo ela Não admite abusos seus O meu corpo me pertence Ou ao ser que eu quiser Seja a um Deus ou a um ateu Seja homem ou mulher Venham todas as Marias Nossas praças enfeitar Debater, fazer barulho E com charme protestar Seja Amor, seja afeto Seja amiga, seja calor! Ser Maria é um luxo Me tornei um beija-flor Maria Sandra me chamo! Sou barulho e mulher e flor Falo alto, sei das coisas Não sou Amélia, não senhor!

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Sou do grupo das Marias Coletivas e de cor Fortes belas e divinas Donas de si meu amor! (Sandra Alvino)

Paixão nacional É preta, pobre e fudida em nome da lei, tomam casa de assalto leva chute na barriga (único abrigo do que ainda está por vir) mas, se não morre, não dá pra ver a marca do coturno Afinal, racismo é só se amarrar no poste: pelourinho legítimo do tribunal de rua. O verbo se conjuga perante os olhos No chão: barraco, família, dignidade e sonhos... nas tetas: sangue e lágrimas pra alimentar o choro do guri enquanto assiste na copa da casa grande o futebol que destrói dos trilhos à paz. (Karlinha Sutil Alves)

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Poema II

Vamos nos conectar desatar os nós ultrapassar a tecnologia e confiar em nós Vamos progredir essa fase ultrapassar as telas olhar pelas janelas abrir abas de possibilidades e cravar no peito: eu posso! Vamos armazenar histórias respeitar as memórias visualizar esperança no feed de notícias da vida real vamos compartilhar nossos sonhos curtir o formato do nosso corpo e comentar linda no final vamos dar play na diversão selecionar impressões registrar sem pressão e baixar a bola vamos assistir sorrisos sentir cheiro e gosto de gente sem filtro vamos deslizar os dedos em anseios e desejos anexar coragem clicar em atitude e deletar nossos medos vamos seguir nossos instintos olhar nos olhos pesquisar nossas origens e salvar nossas referências Vamos fazer maratona de conhecimento adicionar temporadas de pensamento e destacar os ensinamentos vamos? (Tatiane Evangelista)

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Poema III

Para vocês que leem meus poemas de amor e de mulherzinha me chama Gostaria de dizer que não escrevo com os pentelhos da minha xana Por que então enxerga sempre a mulher antes da palavra, vá me diga? Terei eu que fazer como as antigas, assinar nome de homem? Para que assim possa ler letra por letra Sem pensar na minha buceta Vocês me dizem que não posso escrever sobre açude, amores e beijos sabor jerimum “Não é que não pode, é que não combina com você” “Não combina com o tipo de mulher que você é.” E que tipo de mulher eu sou? O que vocês não ousam dizer, pois têm sempre a boca lotada, Entupida de meias palavras É que mulheres como eu não podem ser amadas Que mulheres como eu devem passar a vida de mãos dadas com a solidão Sem o direito de escrever ou viver a palavra paixão Mas eu vos digo outra coisa Nem sempre tenho facão em punho Na rede descanso, recebo e mereço e amores Mas sem nunca da luta fugir Pois quando escrevo vislumbro vários mundos Em nenhum deles a minha escrita é restrita, marcada ou carimba Pelo desde nascença carrego entre as pernas. (Jeani Duvall)

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Eu Não gosto de gato e rato. Gosto de gato e gata. Gosto de sentir o que o infinito Pode me mostrar! Não quero ser um gole! Quero ser o ardor da cachaça...! Que lhe inebria... Que lhe confunde... Que lhe alucina! Gosto da coisa bem feita. Da coisa mal-dita! Dos cheiros, gostos e gestos. Gosto “daquilo”...!!! Que você, talvez, Nunca me proporá. (Sandra Alvino)

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Ave Mar

Mãe da escuridão do Céu Que estais entre nós na Terra Como divindade sejas reconhecida Seja Eu o Vosso reino Ensina-me a reconhecer minhas virtudes Que Eu aprenda com o Céu Que Eu me transforme no Mar Que Eu ensine Amor na Terra A água sábia e benta de vaginas e tetas nos dai hoje Me ajude a aprender com os meus próprios erros, E a não pagar pelos de mais ninguém Não me deixei cair em fálicas mãos de P* duro Mas renovai meu brilho agora e depois do Além… Ave Mar ia Cheia de graça pela praça Maria santíssima Como puta sempre apontada Enquanto passava Sobrevoando como quem nada Nadando no vento como quem voava Calçada de Lua Vestida de Sol

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Subiu aos céus Depois de apedrejada… Morte e vida feminina Para sempre repetida Para sempre lembrada… Amemos nos. (Karlinha Sutil Alves)

Quando o corpo excede à cabeça ela é uma falta de interpretação de quem pensa estar preocupada e se arde à procura de atenção para preencher o vazio de um ciúme oco enquanto a outra é um mergulho de afirmação em tão pouco para preencher o que não quer ouvir… é um balbucio em um cilindro é um espelho em tempo fatídico é um mergulho de um pequeno animal em cio e choque em copo vazio. (Bartira Dias)

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Ligue os pontos

Por Anna K. Lima A folha de papel em branco nunca me assustou, pelo contrário: me desafiava! E poucas coisas me estimulavam quando pequena, medrosa que eu era. Mamãe contava – de forma tão bonita, tão doce! – o quanto eu passava horas brincando sozinha no quintal, eu e as folhas, eu e os cacos das telhas quebraFoi aí que parei estateladas, eu e as pedras, da, diante da prateleira eu e Clarinha, a infantil: ligue os pontos e cachorra de 3 patas. venha colorir Aquele era o meu mundo: falar, ouvir vozes que eram minhas mesmas, eu conversava com o universo! Nunca sei me comportar em livraria, biblioteca, sebo, defronte às estantes de livros, quase que paraliso. Eu não sei o que fazer, fico perplexa diante de tantas palavras e possibilidades. Quando tomo em minha mão algum exemplar, acaricio-lhe lentamente a capa, percebo elementos da gráfica: o papel, a impressão para fazer parecer veludo, a tinta verniz simulando maciez do rosto de quem escreveu aquilo tudo. Abro-o e cheiro profundamente a tinta gráfica, o odor das plantações inteiras de eucaliptos plantadas com essa possibilidade. Aconteceu outra vez, estava eu lá paralisada, no meio de um Salão Internacional de Livro, centenas

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de milhares de oportunidades. Eu fingindo costume, amigas me pedindo dicas de leitura e eu com as mãos nos bolsos pensando nas minhas pedras, em meu quintal e em como ultrapassar todo aquele frio na barriga. Foi aí que parei estatelada, diante da prateleira infantil: ligue os pontos e venha colorir. Outra vez, tenho sete anos e espero papai chegar no melhor dia do mês, quando se recebem os salários. Ele traz revistas e algumas contas pagas. Para os filhos, duas revistas, iguaizinhas, para não haver disputa, e entrega a cada um aquele pedaço de paraíso. Aí vocês já sabem o processo: fecho os olhos, faço carinho no papel, cheiro as páginas… O que vocês não sabem é como aquela sensação de ligar os pontos e ver se formando uma forma absurdamente nova de qualquer coisa me deixava apaixonada! Um elefante! Uma girafa! A Mônica! Um catavento! Estou aqui, diante da estante com o livro “ligue os pontos”, emocionada, chorosa, saudosa e radiante: se eu buscava alguma resposta, algum porquê, alguma justificativa para seguir nesse caminho de aprender a me sustentar com minhas próprias pernas, dançar enquanto dói tudo aqui dentro e, ainda assim, segurar as mãos de mais e mais mulheres que – como eu, sangram e se doem, tal qual águas-vivas – e nos lançarmos ao mundo, da maneira mais bonita e viva que possamos ir, nesse momento, eu sei a resposta: ligue os pontos, construa uma nova coisa, seja uma ponte, uma escuta, um atrevimento, Aliás*. *Aliás Selo Editorial é um movimento de nove mulheres que se dedicam a ouvir e pensar junto com outras mulheres possibilidades de estarem no mundo. Anna K Lima, autora de Claviculário. Publisher da Aliás Selo Editorial. Escrevedora de cartas. Mediadora de encontros de Escrita Criativa. Atua pelo Sesc no Arte da Palavra, rodando o Brasil e se deixando ficar em cada decolagem.


Foto: Divulgação

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie

Amor e raça no século XXI Por Alana Maria Soares Apesar de ser conhecida como uma obra crítica sobre as faces do racismo no Ocidente, sobretudo nos Estados Unidos, Americanah (2013), da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, é, acima disso, uma história de amor apresentada em cativantes detalhes, desnuda de clichês, densa e

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intrigante o suficiente para imergir o leitor do início ao fim. Em 516 páginas, a autora nos apresenta Ifemelu e Obinze, dois apaixonados de primeira viagem que embarcam em um romance jovial na capital nigeriana, Lagos, em 1990, momentos antes do golpe militar. Diferente do que se poderia esperar, os protagonistas são movidos por interesses próprios e não exclusivamente pelas condições externas descritas, a exemplo de Ifemelu, que deixa a Nigéria – e o amor de Obinze – em busca de novas oportunidades e se vê na América como uma imigrante, pobre e, pela primeira vez, negra. O livro, no entanto, dividido em partes, se inicia com uma Ifemelu já adulta, formada, segura da contraditória América em que vive e figurando como uma famosa autora de um blog sobre comportamento e raça. Blog este que nos apresenta à sarcástica inteligência de Ifemelu e suas reflexões sobre ser uma negra não americana na América. São as digressões de Ifemelu que nos levam a entender o contexto em que ela se localiza e por que a personagem resolve voltar à Nigéria e ao encontro de Obinze que, por sua vez, não fica para trás na narrativa. Partes inteiras do livro são dedicadas a ele, desde sua irreal expectativa sobre a vida fora da Nigéria, à melancolia da sobrevivência em Londres e complexidade de conflitos morais na fase adulta. Até o reencontro do casal, o cotidiano apartado deles é repleto de questões tão reais quanto necessárias de serem discutidas, como racismo, corrupção, imigração, desigualdades socioeconômicas e, claro, a condição e os conflitos interiores do ser humano. Adichie segue, em partes,

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Chimamanda Ngozi Adichie. Americanah. Tradução de Julia Romeu. Companhia das Letras. 516 p. R$ 62,90

na mesma linha de seus romances, Hibisco Roxo (2003) e Meio Sol Amarelo (2006), sendo que estes possuem características próprias na maneira de narrar, que colabora para a atmosfera da trama. No geral, Adichie põe seus personagens em contato com questões sociais, trabalhando estas questões como contexto conjuntural ou reflexos e reações deles próprios diante da imposição dos tempos. É com invejável maestria que Adichie consegue traçar uma história que contempla o amor intercultural, as históricas questões étnicas e a problemática da imigração em uma narrativa arrebatadora, não apenas por sua trama, mas também por habilidade na escrita. Ela mesma revelou em entrevistas que seu processo de escrita é lento, pois revisa inúmeras vezes o texto. Sua preocupação com as frases é visível pela qualidade do produto entregue. Não à toa, Americanah foi o romance vencedor do National Book Critics Circle Award de 2013 e eleito um dos 10 melhores livros daquele ano pela NYTimes Book Review, consolidando Chimamanda Ngozi Adichie como uma das escritoras mais admiradas da atualidade.

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Trecho de Americanah “(...) Houve também a vez com o homem de Ohio, espremido ao lado dela num voo. Uma espécie de gerente administrativo, Ifemelu teve certeza ao ver seu terno largo demais e sua camisa colorida de colarinho branco. Ele perguntou o que Ifemelu queria dizer com ‘blog sobre comportamento’ e ela explicou, esperando que ele se retraísse ou pusesse um ponto final na conversa dizendo algo defensivo e inócuo como ‘A única raça que importa é a raça humana’. Mas ele disse: ‘Já escreveu sobre adoção? Ninguém quer saber de bebês negros neste país, e eu não estou falando dos mulatos, mas dos bebês negros. Nem as famílias negras querem adotar’. O homem contara a Ifemelu que ele e a esposa haviam adotado uma criança negra, e que seus vizinhos os olhavam como se tivessem decidido se tornar mártires de uma causa duvidosa. O post que ela escreveu em seu blog sobre ele, ‘Um gerente administrativo branco e malvestido de Ohio nem sempre é o que você pensa’, recebera o maior número de comentários daquele mês. Ifemelu ainda se perguntava se ele tinha lido. Ela esperava que sim”.

Alana Maria Soares é jornalista e repórter da Cariri Revista desde 2015. Formou-se pela faculdade de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), no campus Cariri, onde desenvolveu projetos culturais. A jornalista tem particular afinidade pelos temas mulher, classe, raça e disputas sociais. RP: 0003947/CE

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Livro: Orgulho e Preconceito Autor: Jane Austen Editora: L&PM (2010) Considerada a primeira romancista moderna da literatura inglesa, Jane Austen começou seu segundo romance, “Orgulho e Preconceito”, antes dos 21 anos de idade. Assim como em outras obras de Austen, o livro é escrito de forma satírica e pode ser considerado como especial porque transcende o preconceito causado pelas falsas primeiras impressões e adentra no psicológico, mostrando como o autoconhecimento pode interferir nos julgamentos errôneos feitos a outras pessoas. Livro: A Faca no Peito Autor: Adélia Prado Editora: Rocco (1988) Publicado em 1988, o livro é centrado em Jonathan, personagem que se refere tanto a Deus quanto ao sexo masculino ou à crença religiosa. Ela congrega a promessa e a fuga, a realização e o desejo, a eterna busca. Livro: A Duração do Deserto Autor: Nina Rizzi Editora: Patuá (2014) A duração do deserto tem nome de obra que levou largo tempo para composição, compreendendo pela associação dos termos duraçãodeserto, como instantes de travessia árdua e complexa. A forte inserção do corpo, dos impulsos e fluxos da carne fêmea marcam a pulsação do poema com um vigor deslumbrante.

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A Procult, ao longo de seus 5 anos de existência, vem apoiando diversas ações de cultura propostas pela comunidade acadêmica nas mais diversas áreas, como cinema, desenho, fotografia, literatura, música e teatro. Nesse sentido, apresentamos algumas das ações desenvolvidas em 2018. Armada Literária O projeto visa fomentar a leitura de escritos não acadêmicos dentro do curso de Medicina, buscando a formação de competências de compreensão leitora, de habilidades de comunicação e da empatia. Contato: https://www.facebook.com/armada. literaria.75 Revista Bárbaras A revista busca desvendar de forma crítica o machismo na região do Cariri, por meio de pautas que promovam a igualdade entre os gêneros. Visa ainda tratar assuntos considerados tabus com relação ao corpo feminino, como liberdade sexual, descriminalização do aborto e fim do conceito de feminilidades. Contato: laurabrazil@outlook.com Quatervois: Do ponto de desequilíbrio para o ponto de virada O projeto visa estimular a produção de crônicas, por meio de oficinas, que depois serão transformadas em audiocrônicas, a serem divulgadas na fanpage do projeto. Contato: https://www.facebook.com/ ufcaquatervois/

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Prรณ-Reitoria de Cultura


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