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UMA VIDA EM DEFESA DA VIDA
CLARA TERKO TAKAKI BRANDÃO: UMA VIDA EM DEFESA DA VIDA
Filha de imigrantes japoneses, formada em medicina, com especialização em pediatria e nutrologia, Clara Brandão se destaca por ter dedicado toda a sua vida à causa da infância e à cruzada contra a desnutrição. Criadora da multimistura, responsável por salvar as vidas de milhões de crianças da fome, da desnutrição crônica, do baixo peso ao nascer e da deficiência cognitiva por carências nutricionais, ela levou seu complemento alimentar prodigioso Brasil afora e a vários países em desenvolvimento, mas – devido ao lobby predatório de
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poderosas indústrias alimentícias estrangeiras – viu seu trabalho ser perseguido por governos, universidades, conselhos de classe e até mesmo por entidades assistenciais que curiosamente ganharam notoriedade justamente pelo uso da multimistura. Nesta conversa, ela fala do seu trabalho, das suas lutas e do principal legado de sua notável criação
A mesma menina antes da multimistura e 11 meses depois do uso O mesmo menino antes e 7 meses depois do uso da multimistura
PAULO CASTRO
Dra. Clara, começo com um depoimento pessoal: com três dias de uso, fui salvo pela multimistura de uma anemia ferropriva grave, com cura médica comprovada. Por isso, quando leio tantos depoimentos sobre a cura de milhões de crianças pela multimistura em tão pouco tempo, não tenho nenhuma dúvida.
A multimistura é tão importante que, no Pará, quando começou este trabalho (1975), nunca mais foi perdida uma vida sequer de criança por desnutrição ou anemia. Na região de Santarém, na época, assolada por seca intensa, 77,7% das crianças abaixo de cinco anos estavam desnutridas e não havia nenhum programa de suplementação alimentar. Nossas pesquisas comprovaram que os micronutrientes são essenciais para acabar com a fome oculta, que atinge quase metade da população mundial, caracterizada pela deficiência de minerais e vitaminas essenciais, como ferro, zinco, cobre, selênio, vitaminas A e B6, ácido fólico... Todos presentes na multimistura, que deve ser usada todos os dias, independentemente de epidemia ou pandemia existente. Seu uso propicia a redução de anemia, hipovitaminose A e infecções, melhora o apetite, recupera a estatura da criança, faz desaparecerem a diarreia e o baixo peso ao nascer, melhora o aprendizado e o desenvolvimento neuropsicomotor, evita o risco de óbito infantil por carência nutricional, acelera o trabalho de parto e previne a hemorragia pós-parto, que é a primeira causa de óbito de mulheres grávidas no mundo. Ainda promove a desintoxicação por metais pesados (como mercúrio, chumbo, níquel, cádmio e alumínio), que é reduzida com o aporte dos micronutrientes presentes na multimistura. Muitas crianças desnutridas recuperadas pela multimistura foram alfabetizadas normalmente, sem a perda da capacidade de cognição. Uma criança
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Dra. Clara Brandão, em visita a um projeto da Unesco em Ceilândia (DF)
que era desnutrida é hoje professor universitário no Pará. Isso é inédito! Para mim, é a maior vitória de uma alimentação saudável. Desde o início, a preocupação do projeto é com a sustentabilidade das comunidades. As populações têm a necessidade de ações concretas, práticas e definitivas para os seus problemas. O ideal é que toda política pública, ao ser implementada (e, nisso, inclui-se a política de alimentação e nutrição), fosse capaz de ser reproduzida pela família e pela sociedade de forma sustentável. É por isso que a multimistura nunca foi patenteada, porque assim ela pode ser comercializada pelas comunidades, que teriam, então, uma fonte de renda e sua subsistência garantida também em termos alimentares.
Como o projeto da multimistura é implementado nas comunidades onde ele atua?
A multimistura usa o que existe em cada região. É uma solução local em qualquer caso, qualquer que seja o solo ou o desastre ambiental, até para a falta de água. Excetuando-se as situações de populações com fome crônica, um grande problema não é a deficiência de volume, mas sim de qualidade dos alimentos. A falta de alimentos saudáveis gera carências que podem ocasionar até mudança de comportamento, pela ausência de micronutrientes essenciais. Com uma alimentação saudável e sustentável, a população pode consumir menos, uma média de 30%, afastando o risco de sobrepeso e obesidade, com todas as patologias relacionadas. A multimistura pode suprir isso.
Se os governos brasileiros não aderem à multimistura em âmbito nacional, é por falta de vontade política ou por interesses escusos, o que dá no mesmo. Um exemplo é a aprovação da proposta de implementação nacional da multimistura, assinada por milhares de delegados de saúde do país, na plenária da 12ª CNS (2003), resolução que foi ignorada por gestões sucessivas de governos. Ninguém pode errar por 45 anos. Estamos agora no 45º ano de implantação da multimistura. É um programa que hoje já é conhecido e respeitado
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Comparação entre os valores nutricionais de um componente da multimistura (folha de mandioca) e os nutrientes da farinha de trigo: diferença abissal
em vários países. A multimistura foi levada a 19 países da África, da Ásia e da América Latina. É o único programa alimentar e nutricional que tem mais de quatro décadas de existência e nunca foi patrocinado por governos, empresas ou ONGs. Se os governos quisessem implementar uma política nutricional realmente voltada para a sustentabilidade, um passo é a mudança do atual modelo. O Brasil é autossuficiente em arroz, mandioca e milho, que são pertencentes a todos os biomas brasileiros e que, portanto, devem ser muito valorizados, porque, além de nutrirem bem, ainda mantêm o homem produzindo no campo. Outros alimentos desprezados são o farelo de arroz e a folha da mandioca, a mais produzida no planeta: toda a América Latina, África e Ásia produzem essa folha, riquíssima em nutrientes, inclusive em selênio e zinco. O próprio gergelim, presente na multimistura, tem 10 vezes mais cálcio do que o leite. A multimistura ainda repõe vitaminas e minerais muito carentes hoje em alimentos industrializados e da monocultura. Ao invés disso, opta-se pelo trigo, que é um produto 70% a 80% importado, não orgânico, ou seja, tem agrotóxico, necessita de transporte, que libera CO 2 na atmosfera, remunerando o agricultor estrangeiro, em detrimento dos nossos pequenos agricultores, que podem produzir sem defensivos agrícolas, suprindo nutricionalmente a população local, sem a necessidade de transpor longas distâncias. Outro caso é o uso do açúcar na alimentação escolar (50 milhões por dia), que compromete a saúde desde a infância. São pequenas coisas que fazem a diferença na vida de uma pessoa, principalmente se ela for carente, estudante de escola pública... Então, fala-se em soberania e segurança alimentar, mas esse não é o foco das políticas públicas. Se privilegiarmos a sustentabilidade, as soluções locais saudáveis e sustentáveis poderiam salvar mais vidas.