ANIMA REVISTA LITERÁRIA
UMA PUBLICAÇÃO EDIÇÕES NORTON-KAPPA
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3ª Edição 15-10-2014 Editores Alexxander R. Norton (Engaiolado) Kappa (Sem retorno possível) Design Gonçalo Neves Cruz
Anima – Revista Literária
Editorial Trilo Carmina DiĂĄlogo com NinguĂŠm em Especial Rapunzel
Editorial Desculpem-nos! Mulheres de todo o mundo – e para lá disso se as houver! – desculpemnos… Mas sobretudo, desculpem-me… Quando me apercebi do erro (ainda que gostem deste estapafúrdio número de Anima) era demasiado tarde. Um número dedicado ao Feminino e construído apenas por… homens! Admito a minha culpa: a ideia foi deste vosso servo. Mas que querem? Não há ser que me dê mais prazer descrever como vós! E acreditem que tenho mil e uma complicações por isso. Personagens que deviam ser mais complexas, mulheres demasiado oitocentistas que não se aplicam aos dias de hoje. É certo que não, é certo que não. Mas aqui estou eu perante vós, escrevendo e pensando como um homem oitocentista vos falaria. Não a considerar-vos seres inferiores, mas a considerar-vos seres tão superiores que não poderei ter a pretensão de vos querer compreender… Se podíamos agora fazer uma cronologia histórica em como as mulheres sempre foram, e ainda são, reprimidas pelos homens? Podíamos, mas não o vamos fazer. Porquê? Porque são vocês que devem conhecer isso, e se estivesse aqui a destacá-lo correria o risco de vos achar ignorantes. Mas não se enganem ao pensar que são apenas os homens a praticar sexismo – oh, muitas mulheres também o fazem. Quando propus a Norton esta edição de Anima, o meu objectivo não foi, de todo, querer prestar homenagem às mulheres, ainda que os textos o possam fazer. Pretendi desafiar-me, e sobretudo desafiar o Sr. Norton. A todos os seres femininos, me despeço!
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Sr. Kappa Kurz
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Trilo Que força é essa? [acenar à audiência para eles reconhecerem a referência] Com que músculos se te sustenta A tua empobrecida vontade, Se nada há mais Que te dê vontade para agir? -o trabalho. Mas que trabalho o teu Se as vozes sensuais que te rodeiam, Com aromas que são sempre iguais À verbena aquosa que se escorre, Te exortam a deixar-te cair? Que força essa Que consegues sempre erguer fachos Mesmo quando todos os outros Dizem ter desistido. Que vontade sacrílega arde em ti?, Que merda tens na tua cabeça?, Quantos ciclones queres?, Quantos mundos construíste, Para conseguir aguentar? Só daqui se vê Uma voz que imita malapropismos De um tempo qualquer abandonado. Rezas à lua, (És homem de crenças depois) Pedes-lhe poderes Para fazeres verdades dos desejos. (És homem de fervores antes) Talvez tenhas pedido que Te amassem, mas de que serviria? E qual a tua obssessão com ordem, Com o serviço e a praticalidade, E o sentido e a razão de ser? O que queres fazer hoje? (Hoje? Hoje amarei o ente compósito. Voz de homem e corpo de mulher E mente de algo que se cruza e confunda. Amanhã, Nada disto fará sentido... E toda a minha realidade será teatral e bela E banhar-me-ei na luz indolente de ser algo mais que um ser humano E depois esmagar-me-ei de existencialismo E ajoelhar-me-ei perante a Lua para lhe rezar Mesmo sabendo que nunca perceberás porque lhe rezo E farei de cada momento uma marca E a tua pele fria crivando-me o coração E gritarei a ventos desconhecidos que sou virgem E os livros que escrevemos serão esquecidos E levar-te-ei a passear o cão E irei contigo a conferências aborrecidas E a tua voz será o único solaço quando tudo o resto for destruído Ainda que tudo o resto permaneça intacto muito depois de eu partir E rasgarei as telas que fiz durante milhares de anos E voltarei a casa rodando a chave num tambor E as tuas unhas ficarão com a minha pele nas cutículas E tu pedirás obediência E ajoelhar-me-ei perante a tua mente, não perante ti, Mesmo quando nunca compreenderes porque o faço E tudo será ardente na minha vontade E irei ver filmes que amo E verei filmes que odeio E de todas as vezes que chegar a casa esta estará sozinha E de todas as tristezas que conhecer essa será a maior Pois tu nunca estarás lá E terei de ir ao médico sozinho quando ele me disser que tenho diabetes E eu desistir de comer carne Mesmo quando já o fizeste à anos
E vou desejar nada e desejar tudo e desejar-te a ti mas nunca o dizer E vou coroar-te de flores E dizer dos teus peitos que são de rola e são perfeitos Antes de atirar ao ar um maço de notas que caem na cama seca E vou mostrar-te o que tenho de mais vil em mim, E dar-te apenas o que tenho de melhor E dar-te sempre o melhor pedaço do bife que não comes E levar-te a concertos que odiarás E descobrir que nada temos em comum Senão a própria noção de nada termos em comum, que em si é algo oximórico E vou chorar como se não houvesse amanhã E nunca usar a palavra amor apesar de o querer acima de tudo E não te dizer o quanto gosto de ti, pelo menos em português E escrever textos irados E ser Ricardo Reis E ser o príncipe das Horas Mortas que tu também conheces Mas pensas serem algo de belo quando na realidade são apenas minhas, E beberei as tuas lágrimas quando te deixar E sentirei o teu corpo húmido quando decidir não o fazer E pedir-te-ei em casamento, mesmo sabendo que nunca poderia casar contigo E lavarei as minhas lágrimas no teu busto curvílineo E amarei cada curva do teu corpo, mesmo as imperfeitas E serei precipitado E direi coisas demais E estarei sozinho, mesmo quando estiver rodeado de gente E estarei quando estiver só eu Mas nunca quando estiver junto a ti, E nunca, nunca, nunca pensar nas plantas que partes E no sufoco do ar que crias E dançarei contigo até os meus pés sangrarem E tu beijares a ferida com os dentes, E então talvez poder dizer tudo o que tenho a dizer E sublimar todo o sentimento avassalador Que não sabendo porquê se reduz a um dueto de jazz E se aplaca no som de um piano. E descansarei o meu fervor na não-melancolia, E depois deitar-me-ei junto a ti. Descansar um segundo enquanto fumo à janela porque na cama não se fuma. Deitar a tua cabeça no meu peito. Sentir-te perto, mesmo sem jeito algum para o fazer. Consumir as minhas esperanças. E ser, talvez, só nesse momento, feliz. Alexxander Norton
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Carmina Excerto de
“As Metamorfoses” 0. Quando conheci Carmo estava uma fria noite de Novembro. Vinha dos jardins da Gulbenkian, cheios de acastanhados e verde-amarelados, começou a chover muito e muito repentinamente. Entrei na igreja grande de nossa senhora, ali mesmo na avenida de Berna, incrivelmente estava aberta pelas oito da noite, provavelmente quase a fechar. Não se encontrava lá ninguém, em Lisboa estava tudo a jantar a esta hora. Sacudi o cabelo e algumas gotas da água presas na roupa, não que tivesse adiantado do quer que seja. Uma rapariga alguns cinco anos mais nova do que eu olhava-me, curiosa e com um ligeiro sorriso. Esqueci-me que estava ensopado e que estava numa igreja escura, quase sem luz, com enormes vitrais azulados, arroxeados, sei lá – naquele momento só interessava aquela rapariga… -Desculpe, não sabia que estava aqui alguém… -Uma igreja deste tamanho tem bem espaço para duas pessoas. Foram as primeiras palavras dela. Sorri, sorriu. Como se fizesse a coisa mais natural deste mundo, a rapariga tirou um cigarro duma cigarreira, estendeu-ma, voltou a sorrir enquanto também eu tirei um cigarro. Os lábios dela eram… nem carnudos nem finos… mas incrivelmente vermelhos. Os cabelos loiros, um loiro amarelado, não por serem pintados, mas um loiro nórdico. Os olhos eram de um cinzento leve com rasgos de azul, verde. A pele era muito clara, muito branca, como se nunca tivessem visto o sol. -Já não a vi algures? Perguntei, enquanto ela acendeu o cigarro. Não sei porquê, mas a rapariga sorriu antes de responder, e apercebi-me que não queria saber da resposta. Nunca a vira em toda a minha vida, nunca vira um ser mais belo do que ela. Ou talvez aquele ambiente sacro, lugrubre, religioso, a escuridão quebrada por candelabros imitando velas, velas orando a santos sacros intemporais – faziam dela a mais bela criatura. Mas havia em mim a necessidade de a querer conhecer, de a querer levar a um sítio diferente… dançar, talvez, música… descobrir que havia algo que podíamos partilhar, que podias prometer um ao outro… enfim, apaixonei-me como quem se contempla a um espelho e se apaixona: havia algo nela que era como se me visse a mim. Ela tinha a mesma altura que eu, ora mais baixa, ora ligeiramente mais alta. Não interessa. E fumávamos dentro da igreja, apesar dos sinais, apesar do ambiente. Era o nosso incenso celestial, duradouro, oferecido a um coração em chaga que era o nosso. -Penso que sim… Talvez na faculdade do outro lado da avenida. Sim, pensei para comigo, na faculdade do outro lado da avenida… Agora me lembro, ela era aluna de mestrado… já ouvira falar dela, uma jovem brilhante, artigos publicados, reitor orgulhoso, professores a convidarem-na para ensaios. Preferia não ter perguntado se a conhecia de algum lado, queria manter a intriga de quem era, o desconhecido de nada saber dela, o sabor de ela de revelar para mim, de eu me revelar para ela… Ou mesmo nada sabermos um do outro… E nada sabíamos, em verdade, alguma coisa um do outro. Mas eu queria uma coisa, a mesma coisa que ela queria, ainda que nem os nossos nomes soubéssemos… isso era perfeitamente secundário, saber nomes… Eu continuava a fumar, ela também, encostada ao primeiro banco cá do fundo da nave da igreja. Esperávamos pacientemente que a chuva, cada vez mais forte, diminuísse. Quando a chuva terminasse, iria senti-la a passar, e beijá-la-ia quando o fizesse, cruzaríamos línguas que nunca mais se cruzariam – nem que fosse metafisicamente, como já o fazia. Vestia um grande sobretudo grosso, suficiente para nos proteger aos dois, pois ela tinha uma leve blusa esverdeada que agora reparava – a cinza caia – beata ao chão – com umas calças de ganga clara e estreitas. As botas eram escuras, pelo menos essas pareciam fortes… Ela sorriu-me, deitando a sua beata também no chão. Alguém não iria ficar contente. -Para onde precisas de ir? Perguntei. -Para o metro, mas com esta chuva acho que ficarei em casa de uma amiga que tenho a dois quarteirões daqui. Sim, farei isso mesmo… Só preciso de fazer uns telefonemas. Tirou o iphone da mala branca. Não me recordo o que disse, estava demasiado concentrado a observar os seus gestos durante a chamada, as expressões ora de interrogação, ora de afirmação. Só pensava em levá-la a jantar, ela estava tão bonita. Conhecia um bom bar que fazia umas refeições óptimas. Fosse como fosse, o bicho de seda que era já não podia voltar atrás: ela fizera-me lançar o primeiro fio do casulo, a primeira nostalgia dormente para a crisálida. Antes que pudesse dizer o quer que fosse, ela sorriu, erguendo apenas os cantos dos lábios… mas só esse gesto, esse simples gesto, fez-me descobrir que ela queria que a seguisse… Saímos, baixamo-nos e puxamos o meu sobretudo para cima de nós. Era como se nos conhecêssemos há muito tempo. -Durmo em casa da minha amiga, mas ela diz que não tem jantar. -Não faz mal, levo-te a jantar aqui perto. A chuva mal deixava ouvir as palavras um do outro, batia e batia sonoramente no chão. Podíamos ter ido de metro do campo pequeno até ao Saldanha, mas atravessamos as arcadas da avenida de Berna até chegar à avenida 5 de Outubro, descemo-la até
cruzarmos com a duque de Ávila. O bar ficava aqui algures, passamos por algumas árvores, atravessamos pedra de calçada escorregadia, entramos no bar sem reparar no nome, apesar de o saber de cor. Se tivéssemos reparado, veríamos que a fachada exterior nada tinha que ver com o interior. O interior era escuro, cortinas em feltro preto e vermelho, paredes também escuras, apesar de nada disso se notar – postérs cobriam cada recanto, cada passagem, uns em cima dos outros. Logo à esquerda havia uma escada antiquada, raquítica, que subia para os próximos três andares. Pedi uma mesa para duas pessoas, e o empregado olhou os nossos corpos molhados. Chamava-se Hugo. Guiou-nos até ao andar superior, onde era a sala de refeições, explicando como o tempo era complicado para a qualquer dor de parte de corpo que o afectava. Sei que no último andar há uma sala para espectáculos de música e teatro, no terceiro ficam alguns camarins. Mas o que interessava agora era o jantar, o jantar com ela sem saber o seu nome. Acho que Hugo pensou que éramos um casal, aumentou a música jazz, pôs até uma mais calma e relaxada. Por ser dia de semana, viam-se apenas meia dúzia de pessoas no andar do restaurante, dois casais na mesma mesa, dois homens na outra ponta da sala enorme. Comemos algo fantástico e que comia sempre aqui: hambúrgueres gourmet. De inicio perguntei-me se tinha sido uma boa ideia, trazer aqui alguém cujo nome nem conheço, e por quem alimento apenas uma vontade insaciável de conhecer. Observei-a. Olhei-a. Via que ela me observava e olhava. Parecia não querer mais nada do mundo além disto… falámos como se nos conhecêssemos, como se já soubéssemos do que gostávamos… era como descobrir algo nas entrelinhas e vestir uma mascara que não era mais do que o nosso coração. Lentamente, transformávamo-nos no vidro um do outro. Eramos um espelho que reflectia um e outro nos olhos. Paguei ao empregado. Agradecemos a comida, especialmente ela, como se nunca tivesse comido nada melhor na vida. Agora que penso nisso, como eram constituídos os hambúrgueres?... Quem quer saber disso. Descemos para o bar. Já não estávamos molhados, agora até estávamos quentes. Escolhemos os acentos mais confortáveis da sala vazia. Uns cadeirões enormes, vermelhos fortes, junto de uma mesa transparente apenas com um cinzeiro em cima. A música jazz ali era muito mais mexida, parecia mesmo misturada com uns acordes de rockabilly. Pedimos as nossas bebidas. Tomamos as bebidas, pedíamos para tomar os corpos. Na minha mente, nas minhas recordações, não faço ideia quem convidou quem para dança, quem puxou pela mão de quem… provavelmente ela… os nossos corpos mexiam-se e nada mais interessava desse mexer dos nossos corpos feito dança feita toque feito beijo… dormimos juntos, virados um para o outro… até este momento nada há nas minhas recordações – o beijo dela fez a minha amnésia – o corpo ficou na minha mente noutra ocasião – ali – ali e agora só queria descobri-la. Dormimos de mãos abraçadas, como se ainda dançássemos. Sentada numa poltrona no quarto, ela observava-me, e mesmo estando eu a dormir, consigo recordar bem a sua postura já vestida. Ela acordou-me com um beijo no pescoço. O arrepio pela pele acordou-me. Do outro lado da janela, Lisboa amanhecia. -A tua pele nua amanhece. Foram as primeiras palavras dela. O meu coração batia como se tivesse acabado de nascer. -Vou-me embora. O meu nome é… Carmo. -Carmo… Foi assim que conheci Carmo. Bom dia, o meu nome é… -Não precisas de o dizer. Ela voltou a sorrir. -Não? -Não. Quando nos encontrarmos de novo, di-lo-ás.
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1. Do seu primeiro andar, Amadeus ouviu a porta do prédio a abrir, ruidosamente, raios, o quanto já tinha reclamado tanto com o dono do prédio por causa daquilo… Até porque qualquer pessoa podia abri-la, bastava que desse um certo jeito, puxasse de uma certa maneira – e Carmo sabia essa maneira… Não conseguiu ouvir passos nas escadas, nem tão pouco o elevador a trabalhar, a chuva batia com demasiada força nesse momento – campainha a tocar – Amadeus assusta-se – quase corre para a porta. Mesmo antes de tocar na maçaneta, parou. E se não for Carmo? Tocaram de novo, quase mais um sobressalto. Abriu repentinamente a porta – toque de violência que bem não podia ter acontecido – e se não fosse isso talvez aquele momento não tivesse aquela intensidade. Carmo chegara com a chuva, de casaco grosso e de cor cinza que lhe vinha abaixo da anca, branca camisola grossa de gola que lhe tapava todo o pescoço. O guarda-chuva estava ao seu lado, pingo a pingo a água escorria dele para o tapete do apartamento de Amadeus. Ele não a cumprimentou, não houve tempo para palavras, ela não queria ser cumprimentada – frenético puxar pelo casaco dela – chapéu a cair – mala de senhora no chão – a porta foi fechada com mais violência do que fora aberta – estrondo pelo prédio – e ainda assim nem Carmo, nem Amadeus deram por isso – beijavam-se loucamente, o calor das suas línguas, o suspiro para não voltarem a respirar até deixarem de se beijar – e isso nunca aconteceu verdadeiramente. Que o diga Cronos, testemunha que sentiu aqueles dois a fugirem-lhe, não tinham tempo naquele momento. Amadeus aproximou a face de Carmo, a sua mão perdia-se nos cabelos loiros dela, loiros nórdicos – Carmo, que em primeiro não soube o que fazer, apanhada de surpresa por aquela vontade súbita de ser beijada, apertada ao corpo de Amadeus – beijou-o – as mãos dela iam pelo corpo dele – ele agarrou numa, apertou-a fortemente – dois cordões unidos por um nó. O beijo terminou. E um trovão rebentou, entre as pálpebras semicerradas a luz chegou brilhante – olhos que se olham enquanto línguas se tocam – o trovão entrou em crescente – outro trovão rebentou – o vento assobiava, tempestuoso, e àquela tempestade juntava-se cada vez mais chuva que ia caindo – caindo – nas janelas ouviase o bater das gotas – Tempestade. De novo na palma de Cronos.
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2. Sentiam-se um pouco cheios do jantar, a comida pesava-lhes nos estômagos, tornando-lhes as barrigas mais redondas, mais inchadas. O vinho torvava-lhes ligeiramente a visão, os sentidos, os risos, as falas – e ainda assim não deixavam de ser verdadeiros, ou eram ainda mais verdadeiros. Carmo e Wolfgang, naquele momento, eram mais que isso, não tinham nome sequer, não tinham passado, e o presente que lhes fugia entre os dedos servia apenas para ser o futuro do momento seguinte. Abriram espaço na sala, um sofá para um lado, uma mesa para o outro, o barulho do arrastar dos móveis, os vizinhos que se queixavam em baixo, no outro dia reclamariam com aquilo. Mas pelo menos por agora, por aquele momento, a sala tinha um grande espaço livre, um quadrado sem nada, apenas chão e espaço e nada mais. Wolfgang pôs música. Não era uma música qualquer, mas também não era nenhuma música especial, era música e nada mais. E assim fui-me abraçar a ela, uma mão em volta da cintura, outra mão na nuca. O abraço que lhe dei para esta dança, uma mão na cintura, outra no ombro, a minha testa no outro ombro dele – foi o abraço que se estendia mais do que a música, era querer que ele fosse a música. E ela, o corpo dela junto do meu, era mais do que fosse ela a música, ela era o mundo. Carmo e Wolfgang naquele momento eram o mundo inteiro, apesar de fora daquela sala estarem centenas de quartos, centenas de casas, e nessas casas centenas de pessoas. As pessoas restantes, sociedade inteiras, não existiam, mas mais que não existirem: nem sequer tinham nascido, não morrerão, nunca tiveram nome. E o mundo que todas essas pessoas transformaram, era o mundo onde uma
borboleta nunca foi apreciada, era apenas uma borboleta. Carmo e Wolfgang não queriam apreciar borboletas, eles eram a própria metamorfose um do outro, e aquela casa, aquela sala, apenas mais uma de centenas, era o seu casulo. A sala estava escura, apenas a janela, ainda de precianas abertas, deixava entrar a luz avermelhada dos iluminários da rua. Uma estranha aura que combinava com a música, e assim foram lentamente rodando, ligeiramente rodopiando, incapazes de dizer seja o que for. Há momentos em que a vida não precisará de dizer nada, limita-se a olhar, a sentir, a ser apenas algo, sem necessitar de existir para além disso. Talvez tenha medo que algo fugisse, eu tenho medo que ele fuja, e eu tenho medo que ela fuja, sem mim – e neste momento Carmo chora, até este momento ela nunca chorara. Mas uma lágrima de Carmo era mais do que chuva, era mais do que todos os rios numa única corrente, era mais do que os mares de todos os oceanos. E assim, abraçados fomos continuando, aquela música parecia infinita, e era a mais pequena música que conheço, e ainda assim, era infinita, talvez porque os braços dele, talvez porque o corpo dela fosse infinito. O mundo terá sempre o sentimento de infinito quando a pessoa que é o nosso mundo for o infinito. Mas por fim, o Tempo que de infinito tem apenas a capacidade de tornar as coisas finitas, a música acabou. Contudo, Carmo, sejamos rebeldes, sejamos intemporais, continuamos abraçados, rodopiando, rodando apenas ligeiramente, sentindo, saboreando ainda o gosto do vinho nos lábios, o peso do vinho com a comida na barriga. Dançamos uma música que além dos nossos ouvidos, mais nenhum ouvido ouvirá nunca.
4. Almas em corpos unos, abismos dos nossos Seres metamorfoseados em borboletas sem asas – corpos feitos para voar e que nunca voarão. Amantes despidos e amantes de olhares apenas, fomos tudo isto, somos tudo isto, no mesmo instante, no mesmo momento… Cronos desafiamos, Carmo, Cronos desafiamos… E afinal que fez ele de nós, Amadeus, que fez ele de nós? Intemporais mortais que acabarão condenados pela Roda que gira. E ainda assim conhecemo-nos mais do que duas almas que se conhecem… De nós, afinal, houve, não a troca dos corpos em sexo, mas no sexo a troca das almas. Desterrados fomos nós todos, Sanguinários e impossíveis e improváveis Em toda a nossa loucura – E ainda assim, Carmo, amamos Mais do que Cronos permite.
3. Dançavam à luz imprópria da lua de meianoite que ia entrando pela janela. Carmo com a cabeça no ombro de Amadeus, passos lentos nos compassos vagarosos – Amadeus com uma mão na cintura dela, a outra na nuca. Nenhum deles pensava na música – sentiam-na apenas a passar pelos corpos – de corpo para corpo. Ambos sorriam, mas era como se estivessem a sorrir sozinhos. Perdidos em recordações. Amadeus apertou o corpo de Carmo ainda mais. As luzes apagaram-se na rua, ou assim pareceu, e apenas o branco do luar de inverno chegava pela janela. Tudo o resto era escuridão. Uma mão de Carmo subiu até à face de Amadeus. Olhou-o – beijou-o – a dança acabara, só interessava o toque daqueles lábios. Carmo foi empurrando Amadeus até ao sofá, empurrou-o para que se sentasse. Colocou-se ao colo dele, uma perna de cada lado. Amadeus voltou a colocar a mão na nuca dela, sentiu-lhe os cabelos – beijou-a. A outra mão dele arrastou-se ao longo da perna dela. E as línguas lascivas deixavam-se enrolar à luz da meia-noite.
5. Beijos em algures. Loucos, quentes, rápidos. As mãos de Carmo pelo corpo de Amadeus, ia-o despindo. A língua de Amadeus por Carmo. Não ficava por dentro da boca, dentadas nos lábios, saliva a escorrer pelos cantos dos lábios. Os seios de Carmo, brancos. A camisola de Inverno que caiu ao chão, branca. E a luz do candeeiro na rua entrava pela janela, a chuva que batia no vidro – beijos – fumo de cigarros no cinzeiro – beijos pelos ombros – a tua pele, Carmo – Amadeus – Amadeus… O frio na pele da fresta da janela aberta, ligeira fresta, escasso centímetro. Os olhos cinzentos de Carmo olhavam para as mãos de Amadeus, as mãos de Amadeus que a iam despindo mais, cuecas que caiam sobre a camisola. Nudez do teu corpo nas minhas mãos, as mãos que são tuas no corpo nu que é o meu. Carmo dirigiu-se à janela, correu as cortinas, a luz do candeeiro na rua findou, apagou-se. A cortina era agora a linha do horizonte, do outro lado a Luz: deste lado a Escuridão, Amadeus. Mas deste lado tens-me, estou nua, a minha pela pede pelo teu toque.
6. Estava Amadeus deitado, Carmo repousava no peito dele – adormecidos – apesar da noite de Inverno, a tempestade que não ia embora – tinham apenas um lençol por cima de si, e nem esse lhes cobria totalmente o corpo – perna de mulher destacada – um braço nu masculino e o seu ombro – um princípio de nádega, um seio, o peito dele, a virilha dele. Ambos quase nus, ainda sem frio, respiração ainda arquejante, havia ainda o cheiro do seu suor, do seu sexo. Por fim, lá a noite de inverno se abateu sobre eles, o frio arrepiou-lhes por fim a pele, acordou-os sem os ter despertado, e as colchas puxadas para trás, os cobertores para o chão, voltaram ao sítio. Só os corpos continuaram nus. Na rua, o cadeeiro continuava a deixar entrar a luz vaga, tremeluzente, assistente de vidas que passam, daqueles dois seres que estavam ali escondidos no quarto. O quarto tinha as sombras que vinha dessa luz alaranjada – sombras de móveis – corpos em inanimação – uma camisola deixada mais à vista – meia mais escondida debaixo da cama. Quem diria que aqueles dois acabaram de esgotar os seus corpos – acabaram de gemer – estavam tão em paz, agora Amadeus dum lado, Carmo de costas para o peito dele – e ainda assim ele voltara a adormecer com a mão na anca dela. Mesmo antes de adormecer, naquele momento de inconsciência quase sonho, onde não temos noção do que realidade, não é realidade – ponte ténue de dois mundos – a mão de Amadeus subiu para a cintura, sozinha caminhava toda aquela curva do corpo de Carmo. A pele dela mesmo antes da entrada no subconsciente, branca, já menos suada, mas mais lisa, mais fresca – a suavidade dum seio que tocou. Mesmo adormecida, havia em Carmo uma reminiscência disto, uma leve sensação, que pensa como um sonho, que sente como uma sonho – gemido baixo involuntário, não de prazer, mas por causa da sensação. A isto não assistiu o candeeiro, iluminário apenas para o que convinha, que aquele gesto foi debaixo do escuro dos lençóis, não por causa da castidade, mas porque o arrefecimento dos corpos depois da exaustão tem de ser tapado.
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7. A treva inunda-me o olhar, acordei desassossegado do meu leve sono dum pesado pesadelo que a estava ter: galos cantavam em campanários de igrejas com o vento a bater, tocavam os sinos, quem os puxava? Talvez o próprio forte vento que corria e uivava! Mas tudo isto passou, assim que senti a fronha da almofada na minha pele, o corpo de Carmo aqui ao pé… Afinal, os pesadelos passam, mas o desassossego por acordar num sobressalto fica sempre como uma espécie de resquio de recordação podre que se vai infiltrando pelo corpo, qual teia de aranha que tece as suas ramificações. Pergunto-me se Carmo desconfia que estou acordado, se o soubesse acordaria só para me perguntar se estou acordado, mas ela permanece a dormir num sonho só seu, tal como todos os sonhos só nossos, e ainda bem que assim são. É assim que a vejo, assim que os meus olhos se habituam ao escuro que nos rodeia neste meu quarto – a única luz é a que entra pela janela, a luz do nocturno. Carmo olhou para mim de fechados olhos, as pálpebras escondendo a sua alma para o mundo dos sonhos, pois dormimos de olhos fechados porque a nossa alma foi transportada para outros lugares, outros mundos, outras vidas. Ah, quem dera ao meu ser sonhar com esses lugares mágicos, para onde a nossa vida é transportada para outra vida, onde a nossa alma feliz é e outra é sendo ela mesma. A alma não é aquilo que em vida nos acontece, mas no que sonhamos que ela é. Oiço os vizinhos de cima, gemidos entrecortados com o ranger leve de uma cama. Oiço o relógio da sala, cada segundo martelado com uma infernal balada do pesadelo que foi meu. Abraço-me a Carmo, o corpo dela parece-me um depósito da minha mágoa; aqui, pobre Carmo, és o depósito da minha mágoa, o meu afastamento da solidão. Oiço, muito ao longe, ou imagino através do peso da minha perdida cabeça, a sinfonia ou a peça de uma noite inquietamente frustrante. Não consegui, ainda, readormecer: a noite pesa-me quase tanto como o dia, apenas estou solitariamente mais acompanhado e no mais acompanhadamente solitário – afinal, qual dos dois é? Eu sei lá, mas a minha noite é recordar milhões de pessoas na sua solidão cheia de gente, fazer-me pensar em milhões que se encontram a dormir sem a insónia da minha noite, que sonham numa consciência de sonhar, ou seja, na inconsciência perfeitamente feliz… São milhões que sonham nas suas camas, outros no chão ou no banco de jardim, mas ainda assim sonham, nem que seja que na próxima noite tenham uma refeição para os seus vazios estômagos – e pensar nestes milhões é-me banal, o impossível é imaginar esses milhões – quero imaginar esses milhões todos, imaginá-los nos seus quartos ou nos seus bancos de jardim, imaginar os vizinhos dos vizinhos de outros vizinhos dos que não são meus vizinhos, mas é como se fossem: eles moram no mesmo plano que eu, não porque eu os imagino, mas porque eles não me imaginam. Há uma parte do mundo em que, neste momento, o Sol está a raiar, uma parte oposta onde o Sol se põe: tudo o que se encontra no meio é Noite e Dia, eu sou parte de um desses meios, eu sou parte da parte da noite. Estas coisas são as poucas verdades que existem: os meus olhos vêm, a minha alma sente-o, não preciso de pensar nisso, se não fosse a maldita desta insónia que me arrasta o cérebro, eu nem a pensar estaria, estaria a dormir como tantos outros milhões. Mas já que assim é, então penso, penso até ficar sonolento, mas não com sono para finalmente adormecer; tenho, antes, uma sonolência dormente que não me cabe na cabeça, e como não me cabe saime da cabeça em pensamentos sem nexo nem sentido e que me perdem em recantos tão grandes que são todo o meu mundo. E Carmo continua repousada junto a mim, nem eu mudei desta minha posição – os meus pensamentos perdidos não perdem o meu corpo – e eu sinto-a junto a mim, e é isso que eu, sobretudo, quero. Só queria saber que horas são, há quanto tempo dormes, Carmo? Não arrisco sair desta posição por nada neste mundo, os milhões de pessoas que imaginei não me fariam sair dos teus braços, Carmo, não te fariam sair dos meus braços… Ah, nem que esses milhões fossem todos leitores meus, e fosse graças a eles que era rico e famoso – sentir a respiração leve que movimenta os teus seios contra o meu peito é-me fundamental para continuar esta noite – a próxima noite logo se vê. Não saber o tempo é um dos meus pesadelos, a hora que soa na noite é lenta, martelada por qualquer coisa que surge com o bater do vento, os olhos cansados que pensam nas órbitas, tal como o mundo pesa no Sistema Solar… A noite é um quase nada incapaz de compreender a nossa dor – se somos algo do que somos na noite, isso é porque pensamos no que somos (estamos preocupados connosco), não porque a noite saiba do que feito somos – a noite é um quase nada onde o mocho se arrasta, incapaz de achar sentido ao seu eu. Sou como
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o mocho acordado na noite, tal como acordado estou, tentando achar um sentido para mim que se enquadre à falta de sabedorias nas horas, um sentido para mim que não esteja nos braços de Carmo – sei que existo e que algo sou, mas o quê, se toda a minha vida falhou? ou talvez não tenha falhado, Carmo está junto a mim, adora-me tal como a adoro, e ela sabe o que sou, como sou… Talvez saiba melhor do que eu próprio. A noite, que vai passando, é a oportunidade para recordar tudo: tudo aquilo que é possível recordar, e infelizmente a minha memória má não é. Não acredito, honestamente, que metade do que à noite recordamos verdade seja; honestamente parece-me antes a imaginação que vai funcionando até que fantasiamos com algumas coisas: casas com salas magníficas, conversas com pessoas fantasiadas, pessoas que sentimos como parte de nós, magníficos prados cheios de flores que julgamos ter a certeza das cores, do brilho do lago ou da ribeira, lá no meio do prado. Ah, os momentos de insónia em que sonhamos do que quando a dormir estamos. Sei lá, Carmo, se o que és não é parte de um sonho maravilhoso que talvez seja a planície de flores que se estende até ao infinito do horizonte, onde um dia chegaremos como poeiras das flores que foram com o vento – para quê o querer chegar ao fim? basta-nos, tão-somente, seguir esse caminho. A noite vai-se, a noite vai-se tal como tudo se vai, principalmente a vida, Carmo. Carmo, a noite é a melhor expressão da minha vida: a noite esgota-se com a melancolia do pingar das gotas do tempo. Não pedi que tempo fosse alterado, não por mim, nem acredito que tenha sido por alguém em especial – o que aconteceu foram circunstâncias do acaso misturadas com qualquer coisa de azar e um quê de destino que não acredito por nunca me ter apetecido acreditar: acreditarei quando poder acreditar, ou simplesmente quando me apeteceu poder acreditar. Ah, insónia que me fazes pensar no destino que tenho sem sequer verdadeiramente, ou essencialmente, ter. Talvez a minha não crença no destino, que é meu, seja minha maneira de acreditar em tal coisa: nunca vi os deuses, todos eles, falarem no seu fado, nós sabemos apenas que eles se submeteram a ele, e acabou. Carmo, submeto-me a ti, e acabou. É isto que queria gritar e não vou gritar, é isto que queria fazer pela noite fria e escura que é a minha vida, mas não vou gritar. Se gritasse isso seria gritar o meu fado – que me interessa gritar tal coisa? basta-me, tão-somente, sussurrar-te isso ao ouvido, talvez assim, Carmo, poderia contar-te quem verdadeiramente sou. É isso mesmo que te farei, mas só quando acordares, agora… Agora quero ver-te apenas a repousar nesses teus sonhos, sejam eles quais forem. Honestamente não quero saber as horas que são, mas gostaria de saber a que horas acordarás Carmo – quero saber o tempo de chegada, e não o tempo de partida. Não quero saber para poder fazer uma contagem decrescente, quero saber, tão-somente, Carmo, apenas para saber quanto tempo terei de esperar para ver os teus olhos. Esses olhos que escondes nesse teu outro mundo. Quero, e nem sei se isso é honesto, entrar nesse teu outro mundo, e ver aquilo que te fizer sorrir enquanto a dormir estás – sonhar-se é ter-se quase um sentido de infinito, enquanto todos os outros sentidos são quase anulados – ficam num estado de eliminação. Sinto-me, não angustiado, não triste, nem tão pouco feliz ou alegra… Isto que sinto nem é bem sentir, mas antes uma espécie de… Desalinho… Sinto-me num certo desalinho dos meus sentidos, emoções, e sentimentos: é tudo uma espécie de turbilhão constante que se vai arrastando até qualquer coisa. Só agora consegui verdadeiramente atingir esta definição: estar desalinho por qualquer coisa que nunca me concertou, nunca me alinhou, tal como tantas mulheres e homens se alinham em frente de um grande espelho alheio ou aleatório (e apetece-me tanto um cigarro)… Fui desalinhado pelas minhas insónias, que me acordam e me pesam, e só eu sei como queria sonhar-me, e não pensar-me como pessoa – ah, pessoa de mente que nunca dorme, ou melhor, dorme o suficiente para descansar. Quase que quis gritar, outra vez, mas desta vez não quis gritar o fado que não tenho – isso só me acontece duas ou três vezes por dia – não, o que quis gritar eram barbaridades, palavra obscenas e selvagens, enquanto agito as minhas mãos ao alto, como que afugento da vida que não quero, para agarrar coisas que realmente desejo: abraçar-te, Carmo, abraço o teu corpo. Não esperava, com isso, conseguir adormecer, neste tempo que já não sei quanto passou, nem é isso que desejo, Carmo. Queria, Carmo, apenas fugir a todos os meus pensamentos; queria, Carmo, tão-somente, não ter nada na cabeça; queria, Carmo, mais que o somente, poder sentir o teu corpo e nada mais sentir… Kappa
Diálogo com Ninguém em Especial “O bairro do amor...é feito a lápis de côr...” Podia ter sido assim. Quando nos deitámos na mesma cama e estávamos banhados a mar e a frio, as roupas encharcadas e coladas ao corpo, quando tirei a camisola para expôr o meu corpo frágil e te vi tirares a camisola para mostrares o teu. Sonhei naquele momento que ali estávamos à mil anos, sempre os mesmos gestos repetidos, irresolutos a deixar passar momentos em que a luz incide sobre o teu corpo nu e eu fico na escuridão contemplando quão bela és. Não tinhas pudor. Eu não o tive também. Algo de apaixonante e excitante havia em transgredir as regras que me auto-impus. Pedi-te para ficares e não pudeste.
“-Escrevia-te agora mesmo! Bom dia! -Bom dia, bom dia -Ninguém ouve as minhas preces? Como estás? -Estou... -Estás? Nem bem nem mal, portanto? -Qualquer coisa do género. -Hum, há alguma coisa que eu possa fazer para em frente ao “estou” eu possa pôr “bem”? -Se calhar não, mas ‘estar’ não é só mau“Olhei-te com um esgar, como se imaginasse que dentro da tua cabeça todos os lugares tivessem de ser perfeitos – ansiando por te poder dar isso de mim. Mas tu contentavaste com o imperfeito e o incipiente, e a minha mente tremeu com a inconsistência e com o pouco que falaste...” -Oh, mas e vai lá uma pessoa contentar-se com não ser mau? -Se for sempre bom... -Claro! Mas isso não é contentamento, é aceitação de bom grado! -Como estás tu? -Vou estando bem. Andei à procura no Porto e em livros, em filmes e em músicas de palavras, de sons, de sensações, de coisas que me deixassem feliz e me curassem a inevitável ressaca de realidade... -Tinha que ter continuação de filme? -E eu rio-me, sem querer, porque não é a primeira vez que leio essas mesmas palavras nesta mesma situação, anos volvidos. Ora, claro. O filme está ainda agora a ser dirigido, e não te esqueças que nos filmes eles acabam por chegar a uma conclusão, -Grrr, não queria ter sido previsível. -Não foste meu amor, eu é que tenho a tendência para estes ciclos, -E...
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Aqui podias ter dito qualquer outra coisa. O tempo estava do nosso lado. Eu quedava-me em casa, placidamente fitando um ecrã, fitando-te a ti do outro lado, e imaginava os gestos ensaiados que só podias estar a fazer. Imaginas quão feliz estava? Nunca assim estive, explosivamente, em carburação absoluta, antes ou depois. Salvo uma excepção. O amor rectifica as feridas, e altera o tempo. Com a amante que é minha, o tempo parou, e tu tornaste-te... naquele momento podias ter falado do tempo, e de como havia tanto tempo. Cem mil anos bastavam, 9 anos eram tudo o que precisávamos, e eu esperaria. -Ah, uma conclusão? Nunca é a mesma, depende sempre da situação, de como se age. -Vais-me explicar como atenuar isto que vou dizer com eufemismos, de maneira a não ter que dizer...? Mais os pedidos de desculpa e os “não és tu, sou eu”. -Bem, posso ajudar, mas estou neste momento honestamente confuso sobre que mensagem queres transmitir. -É um fica por aqui, ou, quem sabe, até daqui a nove anos...quanto mais não seja do ponto de vista amoroso... -Oh...podias ter-me ligado... -Devia...e não consigo... Odiei-te pela tua cobardia, do fundo do meu coração. Não consigo hoje ainda lidar com ver em ti uma semelhante e num momento seres sombra árida, cal empedrenida, e intransponível. Quando não conseguiste falar, eu emudeci. -Não estás resoluta? -Estou, e de consciência pesada também.. -De certeza que não dá para termos esta conversa por telemóvel? É imensamente mais fácil escrever, mas não creio que o melhor, pelo menos não o mais justo, se essa palavra for sequer adequável. -É totalmente justo, sendo tu a pedir-me, eu estou a adormecer, mas ligo-te amanhã, de certeza. -Oh, amanhã vou estar de cabeça fria e coração pesado, ao menos deixa-me exorcizar por hoje, mesmo que por aqui.
“Este lugar tem uma longa história.” -Fala-me, que eu não sei muito mais.
“Algures um lugar de dor.”
-Oh Selene...deusa da lua, não era asssim que te chamava? Deixa-me puxar isto para o plano realista. Eu estive contigo 20 horas e não acredito que consigas negar a química brutal que tivemos. Odeio a palavra química, mas vá, terá de servir. Mas também estive contigo 20 horas. Não tenho o direito de te pedir que me faças a tua escolha apesar de realmente o querer, claro, mas não o farei. Porque esta é a tua escolha e eu a respeito, porque te respeito a ti. Mas se a escolha está feita, e assim é, eu te direi então a minha parte, porque acho que é apenas justo. Não menti em momento algum, e em momento algum agi como não me sentisse. De um momento para o outro estava ali e sabia que tinha de ali estar, e nada mais custava, e tudo o resto era simples. As coisas que pudessem estar no caminho, do meu lado, em dez minutos as resolvi, sem peso na consciência, simplesmente por saber que tinha ali, ao meu lado ou à minha frente, ou a dar-me a mão ou nos meus braços, uma direcção, uma razão. Tudo fazia imenso sentido. A sensação que tenho é aquele súbito vazio de direcção, como se ma arrancassem. Sei o quão suave e despreocupado consigo soar, e no fundo sentir que piso uma corda e a qualquer momento posso tropeçar. Em 20 horas eu vi um futuro, sim, mas também não te posso pedir que o vejas pelos meus olhos - já o fiz demasiadas vezes, e os meus olhos cansados não dão para empréstimos. Queria que soubesses isto só para que houvesse densidade do meu lado. Não estou magoado, ou se estou é uma ligeira mossa. Há pouco de mim ainda por partir, daí que te diga que não me podes magoar. Mas há imenso de ti intacto - e com estas palavras não quero que assim deixe de ser, apenas que o reconheças. Que o saibas. Que o ames. E que independentemente das escolhas que vás fazer daqui para a frente aquilo que eu te disse possa permanecer contigo, que é preciso viver com paixão a vida, e não tomar o conforto em detrimento do que realmente nos saberá bem. É tudo o que te sei dizer por agora. Responde-me se conseguires,
“Quão cruel posso ser? E quão justo?” -Não sou, mas li. E quando achares que deves, volta a falar comigo. E, não sei, desculpa o egoísmo todo. De repente esqueci-me de como dizer até já. -Desculpo-te o egoísmo inexistente, entristece-me a cobardia em que te escondes Catarina. -Faz parte do egoísmo, também, em parte...e a cobardia, essa, é infinita. -Mas eu tirei-te dela, vá se lá saber como, e soube-te bem. Mais valia não te ter deixado partir no comboio. Mas certo, não te quero importunar mais, porque neste momento sinto que cada palavra que escrevo é afiada como uma adaga, Só me resta fazer a questão que dói mais (mantenha-se em mente que todas as questões merecem uma resposta, retorcida e torcida, em nomes sagrados, mesmo que doa, mesmo que arda, mesmo que nunca...), porquê? “PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! PORQUÊ?! GRITO, RASGO MORDO, EXIJO UMA RESPOSTA, COMO PODES PARTIR SEM A DAR, COMO TE ATREVES, TODAS AS PERGUNTAS MERECEM...” -Porque o que eu sinto é sempre volátil demais. “Este é um bom momento para chorar” -E eu rio-me sem querer, porque já dei essa resposta antes. E se puder não ser? -Mas já é! -Já se evaporou tudo? -Claro que não!
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-Deixa-me contar-te uma história Catarina, se me permitires: há exactamente (mais dez dias, vá) dois anos, eu estava na tua posição, e usei palavras parecidas com as tuas, para justificar acabar uma relação, porque temia o que sentia, porque não tinha a certeza. Houve aquela janela de oportunidade, entre o olhar nos olhos dele e as palavras saírem-me da boca. Tudo era volátil para mim, só porque eu julgava que poderiam vir outras pessoas. Tudo era volátil, claro. Mas aquela janela de tempo acabou quando eu falei. E vi os olhos dele em cacos no chão a seguir. Durante um ano e meio dançámos de seguida, nunca nos encontrando, nunca voltando a conseguir aquele momento em que eu o deitei ao fogo. Desde então aprendi que o que se sente é sempre real. E não é volátil se não se quiser.
-Eu não queria... -Então não queiras. Então sê forte. Não (só) por mim, mais que tudo por ti. -Rodrigo, eu fiz a minha escolha. -Eu sei, e eu sou um hipócrita verboso que gosta de dizer as palavras correctas e se esquece a seguir...eu já devia ter terminado esta conversa, porque daqui para a frente só posso estragar o respeito que possas ter por mim, -Não vais, nunca, e isto não é volátil. -O respeito que tenhas por mim? -Esse mesmo! -E acreditas realmente que quando eu for rancoroso, e me encher de acidez quando o espaço que vai entre o desejo de te querer e te querer desejar se tornar demasiado vasto, e de repente eu me tornar num anjo de...que estou aqui a dizer, vês? É só verbosidade. Não sei porque estou a falar. Não sei... -Rodrigo, esta conversa já existiu. Nunca mais falámos. Aquilo que lês agora é o resultado do acumular de sentimentos que ficaram por dizer. Nunca me disseste estas coisas – talvez parte. Mas eu fiquei sempre em silêncio. Olha para aqui. Nada disto permanece. Lembra-te do que tens – o que tiveste é oco e mórbido. Estás sozinho. Rodrigo... “Não sei, não sei, sequei eu de palavras. Escrevi-te uma carta dez minutos antes desta conversa. Estou a olhar para ela e não sei que lhe fazer. Dar-ta seria dar-te peso, não ta dar é guardá-lo para mim. Que seja. Chega.” Alexxander R. Norton
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Não sei, não sei, sequei eu de palavras. Escrevi-te uma carta dez minutos antes desta conversa. Estou a olhar para ela e não sei que lhe fazer. Dar-ta seria dar-te peso, não ta dar é guardálo para mim. Que seja.
Rapu
Os teus cabelos, que não são doura Pendem por uma torre abaixo Apenas tu és inalcançável Rapunzel, nunca saberei mais Nunca saberei a tua exist Nunca serei o príncipe além d Além é uma palavra demasia Amar, Rapunzel, amoE acredita, dessas tuas mãos que Nem quero a tua alma, R Passei uma viagem inteira a contempl viage Vi que tinhas uma mão queima Quero que saibas que a tua m Ah, quem dera ao meu Ser acaricia-l Numa torre onde nos fazía As masturbações que me fa E eu, finalmente, ejacular Que está queimada e eu nunca Ah, quem dera ao meu Ser poder toc Descobrir se há mais p E beijar essa beleza qu Rapunzel, se alguma vez leres isto, fica Possuí-te até o teu sexo E assim queimamos os nossos corp
Kap 24
unzel
ados nem são cabelos de princesa, o, sem que a torre seja torre. além desta visão próxima. s além deste nome que te dei: tência além da tua forma. daquele homem que te salvou. ado metafísica para te poder -te das mãos ao sexo. e vi além da tua face e nada mais, Rapunzel – ao teu sexo. lar-te, neste trem em que faço muitas ens. ada, e, Rapunzel, se leres isto mão de pele queimada é bela. la, beijá-la, tocar-lhe em eternidades amos carceres e imortais. azias com a mão queimada… ria para cima da tua mão saberei porque está queimada. car em toda a tua pele duma só vez, partes de ti queimada. ue foi fogo na tua vida. a saber que te possuí metafisicamente. incendiar-me pelo sexo. pos até nos consumirmos pelo sexo.
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Créditos A todas as mulheres do mundo. Às nossas mães que nos ensinaram a nobre arte do cavalheirismo que levou a que levássemos com os pés repetidas vezes. Ao nosso incansável designer, que nos tem apoiado e que permitiu que esta terceira edição da Anima – Revista Literária visse a luz do dia. Aos nossos anteriores colaboradores, a quem desejamos imensa sorte, desde que não perto de nós.
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