7 minute read

Ativismo Um caso sério com Brasília

UM CASO SÉRIO COM BRASÍLIA

Ela age, protesta, incrementa, implementa. Falou que é pela capital, ela comparece. Da chegada para lecionar em Taguatinga, em 1957, a filantropa e defensora do Lago Sul, Natanry Osório, aos 83, é ativista da vida

Advertisement

Por Morillo Carvalho Fotos JP Rodrigues

“Eu vou querer fazer lá onde eu moro, porque é um paraíso terrestre e tem as minhas lhamas, que comem na mão da gente”. Foi o que Natanry Osório disse ao começarmos esta conversa, e combinarmos o ensaio fotográfico para a entrevista. E é mesmo um paraíso, com mata nativa, vista livre para o Lago Paranoá e as bichinhas, tipicamente andinas, que chegaram à sua casa após uma conversa com o embaixador da Bolívia, em 2002, em que declarou seu apreço por elas. Ele enviou um casal para Natanry – e a fêmea estava prenha. Chegaram a 20, mas hoje são apenas quatro. “Eu sou apaixonada por lhamas desde jovem, veja como nos olham, quando correm é como se fossem bailarinas’”, diz. Mas, para além da dedicação aos animais exóticos, a pioneira Natanry é dona de uma história que merece ser contada. Até porque, ao entrelaçarmos essa história com a de Brasília, tal qual pontos de croché que sua tia Iracema a ensinava na juventude, percebemos que demos um nó indissociável.

“Eu sou goiana. Quando foi decidida a transferência da capital, ou seja, a desapropriação, meu parente, José Ludovico de Almeida, era o governador do estado de Goiás. Um dia, a tia Iracema (Caldas, esposa do governador) me chamou para ir ao palácio, comer pão de queijo e fazer croché. Eu tinha 17 anos, era 1955, era normalista e sempre fui uma mulher de fé e ligada ao social. Passei no corredor e ouvi o tio conversando com Germano Roriz e Dercílio de Campos Meireles (tio de Henrique Meireles), e escuto ele dizendo que tinham que descobrir quem faria a tradução do sonho de Dom Bosco e onde seria construída Brasília. Na mesma hora, falei com meu anjo da guarda, com quem converso todos os dias: é para lá que eu quero ir. Eu quero ajudar a construir essa nova capital, alfabetizando!”, revela.

Mistérios da fé e o primeiro milagre

A história que aconteceu ficou esquecida na memória de Natí, como é carinhosamente chamada. Até que em 1958, numa matinê dançante com amigas, conheceu um jovem com ar de francês, formado em Direito e Filosofia na Universidade de Sorbonne, em Paris. Ele a chamou para dançar e, no meio do salão, soltou: “quero pedi-la em casamento”.

Era Antônio Carlos Osório, gaúcho, e tinha ido para Brasília em 1957 e, na capital, estabelecido seu escritório de advocacia. “Quando ele falou isso, meus olhos brilharam e meu coração disparou”, continua. É que o homem havia falado a palavra mágica: Brasília; e sua memória se remeteu ao dia em que havia entregado para o anjo da guarda a vontade de se mudar para a nova capital. Um ano depois, estavam casados. Mas na volta da lua de mel, ele queria deixá-la na casa da mãe, porque ia para Brasília e as condições ainda eram precárias. “Eu disse: se for para você ficar indo e eu aqui, nosso casamento acabou aqui e agora. Ele insistiu que lá era terrível, rústico, e eu disse: ‘me casei com você por Brasília e por você, não foi atrás de conforto’. E viemos”, lembra. A união durou 57 anos, até o falecimento de Antonio, aos 88, em 2016. Na Cidade Livre, foram viver em um barracão de madeira, com cama de viúva e o guarda-roupa era um cordão de um lado a outro. “Eu disse: ‘meu Deus, que aventura!’”.

Empolgada com a nova vida, sem qualquer espécie de luxo, mas repleta de experiências que só poderiam ser proporcionadas pela “epicidade” que significava a construção da capital, botou o diploma debaixo do braço e foi à Regional de Ensino. Ali, soube que todas as vagas para alfabetizadora estavam preenchidas na Cidade Livre, e que só havia outras em Taguatinga. Ia de jardineira exercer o ofício.

Ao engravidar da primeira dos cinco filhos que teria (e agora somar à prole 12 netos e cinco bisnetos), recebeu um ultimato do médico: ou deixar de lecionar, ou se mudar para Taguatinga, que na época tinha apenas barracos. O marido, no entanto, comprou uma casa de alvenaria, das primeiras da cidade, ainda sem reboco na parede ou acabamentos, e próximas ao Hospital São Vicente de Paula. Em 8 de março de 1960, nasceu o primeiro filho. E, claro, não deixou de trabalhar. “Eu o levava no moisés para a sala de aula, na hora de amamentar a diretora cuidava da turma. Alfabetizei mais de 50 crianças numa turma. O doutor Ernesto Silva, que era o diretor da área de Educação da Novacap, foi para a formatura e perguntou qual a minha metodologia. Respondi que era o amor, o compromisso”, lembra. Já em 1960, ano da inauguração, foi transferida para o Plano Piloto, e estabeleceu-se na Escola Parque da 308 Sul. A conversa com o anjo da guarda até este ponto de sua história é o que Natanry considera o primeiro milagre de sua vida.

Natanry define sua residência como um "paraíso na Terra" e expõe a vista do local e suas lhamas

Ação Social e o segundo milagre

Quando o criador da Universidade de Brasília (UnB), Darcy Ribeiro, tornou-se ministro da Educação no governo de João Goulart, Natanry foi sua secretária do Ensino Supletivo. O serviço público, no entanto, não agradou. Ela já conhecia Carmela Salgado, que havia criado a Casa do Candango, e foi com ela que, observando a demanda das mães de candanguinhos, que trabalhavam como vendedores de jornal e engraxates, resolveu criar um espaço para acolher essas crianças: a Ação Social do Planalto. É a iniciativa que considera o segundo milagre de sua vida.

Seu pai havia falecido quando ela tinha nove anos, assassinado com uma facada nas costas, numa vingança por ter praticado justiça social. Decidiu, então, que seria à prática da justiça social que dedicaria a própria vida. Aos 83 anos, orgulha-se do que construiu – e revela a idade com a alegria de saber que não parece tê-la: “pra mim idade não é limite, está na sua cabeça, se você não é egoísta, se preocupa com o outro, não vive só pra você e é extremamente otimista”.

Ano que vem, a Ação Social completará 60 anos. E coleciona feitos. “Já passaram por nós mais de 20 mil meninos, que transformaram suas vidas. Nossa sede funcionou anos na L2 Sul. Tínhamos oficinas de marcenaria, gráfica, serigrafia, futebol, natação...”, rememora, sobre o local que servia de contra turno na escola em um convênio com a então Fundação Educacional do DF, agora Secretaria de Educação.

Sem nunca deixar a Ação Social do Planalto, Natanry teve idas e vindas, ao se ocupar em outros cargos na Arquidiocese de Brasília ou na Legião Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942 pela então primeira-dama Darcy Vargas para promover a assistência a famílias necessitadas. Também foi administradora do Lago Sul – lugar em que vive e pelo qual milita, agora como presidente do Conselho Comunitário do Lago Sul (CCLS) – até receber o chamado para voltar à direção da instituição que criou com dona Carmela.

Deparou-se com uma realidade muito distinta de outrora, quando chegavam a atender, simultaneamente, 400 crianças e adolescentes. Agora era necessário ir até onde as crianças estavam. Assim, a antiga sede foi convertida em mantenedora e a sede de atividades, mesmo, passou a funcionar em São Sebastião.

Natanry em seu recanto de fé, em casa

Acidente e o terceiro milagre

Em janeiro de 2021, quando saía de casa, no terreno acidentado que a abriga, Natanry avistou uma sandália. Parou o carro para apanhá-la, mas num lapso, esqueceu-se de imobilizar o veículo. Sozinho, ele a atropelou. Por instantes, ela esteve deitada e com uma das pernas presa à carroceria capotada. Socorrida por familiares, amigos e pelo Corpo de Bombeiros, foi constatada fratura em seu metatarso e a região foi imobilizada.

As imagens daquele dia ainda não saem de sua cabeça, já que, ao lembrar, embarga a voz e tem os olhos marejados: “me emociono quando lembro desse episódio, sabia? Mas já estou andando. Estou mancando um pouquinho, não tenho mais a mesma agilidade... Não importa. As pessoas falavam, ‘puxa, você é bonita, olha como você é, você não dobra o corpo quando quer pegar alguma coisa no chão, você agacha... Como é que você consegue isso com 70, 80 anos?’, e eu levava aquilo numa naturalidade tão grande... Talvez eu tinha até inconscientemente um pouco de vaidade nisso. Então, foi preciso isso acontecer pra eu ter um pouco mais de humildade, ser um pouco mais tolerante e continuar agindo com fé, confiança e esperança. Nada vai me deter, a não ser Ele, Deus”. Quem tem ouvidos, ouça a pioneira.

This article is from: