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X SN 1415-482
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Um olhar sobre a existência de antinomias no Código Civil Brasileiro: Um problema de linguagem André Martins Barbosa
I SSN 1415 - 482X
9 771415 482002
nicanorcoelho@gmail.com
Dourados
Ano 13 - No 50
Pรกgs. 1-60
Nov-Dez/2009 - Jan/2010
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CARO LEITOR
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epois de 13 anos de ininterrupta circulação a Revista Arandu, publicação de cunho científico chega a sua edição de número cinqüenta. É uma grande vitória! Uma vitória não apenas para o Grupo Literário Arandu, mas para toda a comunidade científica de Mato Grosso do Sul. Nesta edição comemorativa estamos dando destaque especial à questão jurídica com os artigos dos professores André Martins Barbosa, Marta Moreira Luna e Paulo Dias Guimarães. É uma grande honra para nós, nesta edição, termos os trabalhos produzidos pelo professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do sul (UEMS), André Martins Barbosa, Mestre em Direito e Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). A criação do estado de Mato Grosso do Sul também ganha projeção na Revista Arandu com o artigo escrito pelo pesquisador Carlos Magno Mieres Amarilha. Publicamos também o artigo de Sivaldo de Macedo Michenco, “Os ruralista, a imprensa e o podem em Amambaí/MS”. Por ser um legitimo sul-matogrossense a presença de André nesta edição é uma prova inequívoca de que a Revista Arandu cumpre o seu papel de disseminação da ciência e da pesquisa realizas pelos nossos cientistas guaicurus. A todos uma boa e prazerosa leitura!!!
Ano 13 • No 50 • Nov.-Dez./2009-Jan./2010 ISSN 1415-482X
Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO, PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS e PLÍNIO SAMPAIO CATARINO Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO
EDITADO POR
Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sl. 01 Tel.: (67) 3423-0020 / 9238-0022 Dourados, MS CEP 79804-970 Caixa Postal 475 CNPJ 06.115.732/0001-03
Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - No 50 (Nov.-Dez./2009-Jan./ 2010). Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2010. Trimestral ISSN 1415-482X
Nicanor Coelho Editor
1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura - Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu
Ano 13 • No 50 • Nov.-Dez./2009-Jan./2010
[ SUMÁRIO
Um olhar sobre a existência de antinomias no Código Civil Brasileiro: um problema de linguagem ................................................................. 5 André Martins Barbosa Os direitos dos trabalhadores domésticos em face do princípio constitucional da igualdade ............................. 13 Paulo Dias Guimarães A evolução do social e suas soluções ................................................... 22 André Martins Barbosa Colisão dos direitos fundamentais e a ponderação de valores .................................................................... 34 Marta Moreira Luna A criação do Estado de Mato Grosso do Sul nos meandros do poder da Ditadura Militar ...................................... 40 Carlos Magno Mieres Amarilha Os ruralistas, a imprensa e o poder em Amambai/MS ...................... 49 Sivaldo de Macedo Michenco
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UM OLHAR SOBRE A EXISTÊNCIA DE ANTINOMIAS NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO: UM PROBLEMA DE LINGUAGEM André Martins Barbosa1
RESUMO Antinomia, o conflito entre normas jurídicas coloca, em alguns momentos, dúvida sobre a coerência do ordenamento jurídico. A linguagem expõe e soluciona a autocontradição nos processos aceitos de raciocínio através de métodos, condições, critérios, classificação e propõe critérios de solução. Alguns exemplos e modos de solução na legislação brasileira. Palavras-chave: Antinomia, ordenamento jurídico, linguagem, critérios de solução. ABSTRACT Antinomy, the conflict between law principles creates, sometimes, hesitation about the juridical ordainment coherence. The language exposes and solves the self-contradiction about the reasoning processes that are accepted through systems, conditions, criteria, classifications and proposes solving criteria. Some examples and methods of solution through Brazilian´s legislation. Keywords: Antinomy, juridical ordainment, language, solving criteria.
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s gregos, através da tragédia, nos trazem a idéia de antinomia. Antígona, filha de Édipo, em peça escrita por Sófocles em aproximadamente 442 a.C., labora sobre a contradição entre as leis do direito natural e do direito positivo. A peça versa sobre a antinomia entre um édito baixado por Creonte (rei de Tebas) que proibia a celebração fúnebre em honra de Polinicies (irmão de Antígona) morte em combate em defesa de Argos e uma Lei Universal-Divina
de que a família tinha o dever de enterrar piedosamente os familiares. Antígona entendia que tal lei universal transcendia (BOVENTURA, 2005) o poder de um soberano e que as leis deste não passava de um decreto de um titular do poder provisório proibindo que se enterrasse determinada pessoa. Antígona se levantou contra o chefe do governo indagando:
1 Professor adjunto do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.
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“De onde vem a tua ordem? Ela nasceu ontem. Enquanto o princípio que eu defendo é imemorial, não tem data. A tua ordem se dirige a um caso particular, mas o princípio comanda todas as nossas consciências”. (SIMON, 2003).
A antinomia no caso foi solucionada com a ação de Antígona enterrando o irmão com as devidas honrarias, aplicando o Direito natural mas, em virtude disto arcou com a condenação provinda de seu trio, o Rei Creonte, que foi a de viver sozinha em uma caverna. A origem histórica de vocábulo antinomia nos remete para Plutarco de Queróneia, autor de Dilações sobre a Justiça Divina e de diversas bibliografias. Outro autor de destaque é Gloclenius (1613), que distinguiu a antinomia tanto em sentido amplo, que ocorria entre sentenças e proposições, quanto a de sentido estrito, existente entre leis que ocorrem quando a de sentido estrito, existente entre leis. No século XVIII, J. H. Zedler (1732) a define como conflito de leis que ocorrem quando duas leis se opõem ou mesmo se contradizem. Em 1770, Baumgartem, faz menção à antinomia entre direito natural e direito civil, no seu livro Philosophia generalis. O conflito normativo como premissa do conceito adotado modernamente surgiu de consolidação de idéias políticas o jurídicas da Revolução Francesa, através de John Gilissen, que firmou a preponderância da lei enquanto fonte do direito, o controle da legalidade das decisões judiciárias e principalmente, a concepção do direito como sistema, imprescindíveis para o contrato com o problema da antinomia jurídica. DEFINIÇÃO Mas é importante precisar mais o
termo. Os dicionários da língua portuguesa definem antinomia como antítese, oposição, contradição, contradição, contraste. Marcus Cláudio Acquaviva aponta a origem do grego Anti=oposição+normos = norma, conceituando antinomia como “Conflito entre duas normas jurídicas, cuja solução não se acha prevista na ordem jurídica”. Tércio Sampaio Ferraz, para definir o termo, faz antes uma distinção entre antinomias lógico-matemáticas com antinomias semânticas, e antinomias pragmáticas. Segundo Ferraz Junior, definindo antinomia no campo da lógica, o termo mais rigorosamente definido, seria a criação de uma autocontradição por processos aceitos de raciocínio. Seria deduzir logicamente uma violação à própria lógica, surgindo então uma contradição. Antinomia semântica também é uma contradição que resulta de uma dedução correta, baseada em premissas aparentemente coerentes de linguagem. Um exemplo: Existe um dito popular de que todo pescador é mentiroso. Antonio Messa, pescador, contando como foi o resultado da última pescaria garante ao final: “- Eu estou mentindo”. Da afirmação resta a indagação se estaria falando uma verdade? Se estiver falando a verdade, ele contou uma mentira. Se estiver mentindo, ele falou a verdade. As antinomias lógica-matemática e semântica ferem, conforme Russel, princípios que corroboram a construção ideal da lógica e d semântica. Ambas são atacadas (Ferraz Junior p. 204) por conterem vícios de hierarquia lógica ou originadas de incoerências ocultas na estrutura de níveis de pensamento e da linguagem. Podemos dizer que as proposições não são essencialmente antinômicas, pois suas afirmações só encontram certa coerência
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dentro dos próprios planos. No que tange à antinomia pragmática (entre as quais se encontra a antinomia jurídica), são situações em que, conforme Ferraz Juncos, embora se caracterizem também pela falta de lógico e / ou, semântico, formam-se proposições ou afirmações realmente existentes no sistema jurídico, materializadas na escrita. Um comportamento exigido não pode ser tido como um non sense, tendo em vista ser de fato afirmado materialmente e deva ser observado pelo seu receptor. Desta forma podemos ter claro que sempre que tivemos diante de um conflito entre duas normas, ou entre dois princípios, ou ainda, entre uma norma e um principio, e não existirem critérios postos no ordenamento que resolvam esses conflitos, estaremos diante de uma antinomia jurídica. Assim, ocorre com a existência de duas normas, tipificando a mesma conduta, com soluções antagônicas, onde repousem três requisitos, a saber: incompatibilidade, indecidibilidade e necessidade de decisão. CONDIÇÕES Para que se admita ocorrer uma antinomia jurídica, deve-se observar a existência das seguintes condições. Que as normas que expressam ordens ao mesmo sujeito emanem de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo. Que as instruções dadas ao comportamento do receptor se contradigam e, para obedecê-las, ele deve também desobedecêlas; Que, ainda, o sujeito deve ficar numa posição instrumental, sem nenhuma regra jurídica que aponte uma solução positivamente valida para a solução de conflito. Norberto Bobbio (1994;P-88)
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assevera que a antinomia se configura quando no mesmo ordenamento jurídico, existam duas normas na mesma hierarquia e com o mesmo espectro de abrangência em conflito. Na obra Estruturas lógicas e o Sistema de Direito Positivo, Lourival Vilanova (p.168) destaca que um superior fundamento dentro de um sistema é o responsável pela sua unidade, segundo Lourival: “A unidade de um sistema de norma é decorrente de um superior fundamentode-validade desse sistema – a Constituição Positiva”, ou, em nível epistemoló-gico, a Constituição em sentido lógico-jurídico, ou seja, a norma fundamental. A unicidade decorre da possibilidade também gnosiológica de se poder conceber todo o material jurídico dado com um só sistema. No pluralismo dos sistemas (estatais) cada sistema é sistema porque repousa num único fundamentode-validade”.
Quando aprendemos o Direito de forma fragmentada, dividida em ramos diversos, devemos estar cientes de que essa divisão só se justifica no plano didático, pois inafastável é a unidade do Sistema Jurídico, que é formado por norma esculpidas sobre valores que, numa perspectiva propedêutica foram se desenvolvendo ou se alterando de acordo com os momentos históricos registrados e que influenciaram suas criações, mas todas elas, em conjunto formam uma unidade coerente, que se harmonizam pela existência de uma norma fundamental que sustenta toda a hierarquia normativa. Desta forma, só ocorrerá antinomia real sem após a interpretação adequada das duas normas, a incompatibilidade entre elas perdurar. Por isso é entendida como a oposição entre duas normas contraditória,
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emanadas de autoridades competentes num mesmo espaço normativo, que colocam o sujeito (aplicador do direito) numa posição insustentável de escolha sem que poss optar por uma delas, sem ferir outra. A crítica que surge é de que posição insustentável parece ser um ponto difícil de se apontar e definir, especialmente no pleno abstrato, tendo em vista a subjetividade que obscurece a situação. A pergunta que surge inevitável é: “Quando é que o aplicador do direito se verá na insustentável posição?” Terá ele, naquele momento esgotado rigorosamente e indiscutivelmente os meios de interpretação, para afirmar que as normas ali aplicáveis são contraditórias? E será que ambas são aplicáveis ao caso concreto? Todos os recursos interpretação se exauriram na busca de uma solução? A crítica nem sempre traz a solução; pelo contrário. A idéia é de questionar, para provocar a cognição. A antinomia real não é tão comum de se verificar em virtude do amplo e variado rol de soluções retirados da análise dos critérios e metacritérios disponíveis e suas opções de interpretação. Em princípio, o operador do direito, com base na idéia de unidade do sistema, deve trabalhar no sentido de tentar harmonizar os textos sistematicamente, de forma a buscar a saída interpretativa que afaste a idéia de antinomia. A esse esforço, Carlos Maximiliano (1996; 134) denomina “Terapêutica Jurídica” e ele assevera: “Sempre que se descobre uma contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si; presumir que não compreendem bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositório. Incumbe-lhe preliminarmente fazer tentativa para harmonizar
os textos; a este esforço ou arte os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, denominavam Terapêutica Jurídica”.
CRITÉRIOS Ao se fazer a análise das antinomias, surgem três critérios que devem ser levados em conta para a solução dos conflitos. O primeiro deles é o critério cronológico; sendo aquele onde a norma posterior prevalece sobre a norma anterior. Em seguida, por segundo vem o critério da especialidade cujo mandamento é de que norma especial prevalece sobre norma geral. E por derradeiro, em terceiro, vem o critério hierárquico onde se institui que a norma superior prevalece sobre a norma inferior. Dos três critérios acima referidos, o cronológico, que consta do artigo 2º da lei de Introdução ao Código Civil, é o mais débil de todos sucumbindo frente aos demais. O critério da especialidade é o intermediário e o da hierarquia o mais forte de todos, tendo em vista a importância do texto Constitucional. Após transposto esta breve análise é bom vislumbrar a classificação das antinomias, quanto aos critérios já expostos. CLASSIFICAÇÃO Alguns critérios auxiliam a classificar as antinomias. Podemos classificá-las em: a) Antinomia de 1º grau, que é o conflito de normas que envolve apenas um dos critérios exposto, e b) Antinomia de 2º grau, que é a que ocorre quando do choque de normas válidas que envolvem dois dos critérios já vistos anteriormente. E, deve-se ter em mente que havendo a possibilidade ou não de solução, conforme os meta critérios de solução de
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conflito, é adequada a seguinte divisão; 1) Antinomia aparente, que ocorre com aqueles para os quais o ordenamento encontra forma sistêmica de solução. Os critérios para solução estão no próprio ordenamento. 2) Antinomia real, que é a que ocorre quando não houver na ordem jurídica qualquer critério normativo para solucionálo, sendo, então, imprescindível para a sua eliminação a edição de uma nova norma ou a retirada de uma daquelas normas conflitantes. Maria Helena Diniz, citando Tércio Sampaio Ferraz Jr assevera que essa distinção em nada contribui no campo da Teoria Geral do Direito, pois que não se pode afirmar que os critérios de solução tenham surgido como normas e não como regras. Tércio Sampaio, sugere que esta distinção seja substituída por uma outra em que antinomia real é definida como aquela em que a posição do sujeito é insustentável por falta de critérios para sua solução, ou porque existe conflito entre critérios; e a antinomia aparente ocorre em caso contrário (P.208). Tércio Sampaio cita o exemplo de duas normas constitucionais, “(mesmo nível) igualmente gerais, (mesma extensão), prolongadas ao mesmo tempo (simultânea) configurariam caso de antinomia real. Na verdade essa distinção implica que sejam denominadas de antinomia real o caso de lacunas de regra de soulção de antinomia. Note, neste sentido, que o reconhecimento dessa lacuna não exclui a possibilidade de solução efetiva, que por meios obrigatórios (edita-se nova norma que opta por umas das normas antinômicas), que por meio de interpretação eqüitativa, recurso ao costume, à doutrina, a princípios gerais de direito, etc.(...). O reconhecimento de que há antinomias reais indica, por fim, que o direito não tem o caráter de sistema lógico-
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matemático, pois sistema pressupõe consistência, o que a presença de antinomia exclui” Então revisando, a antinomia aparente é o caso em que há meta – critério para a solução do conflito. E em conformidade com essas classificações os casos práticos devem ser estudados quando há conflitos de forma tal que: a) no caso de conflito entre norma posterior e norma anterior o que vale é a primeira de acordo com o critério cronológico (artigo 2º da lei de introdução do Código Civil); b) A norma especial deve sobrepor sobre norma geral, emergencial, segundo critério de especialidade e; c) o conflito entre norma superior e inferior, vale a primeira, pela hierarquia. Vale ressaltar que os três casos referidos são de antinomias de primeiro grau aparente pois que há solução, dentro das meta-regras para a solução do conflito. No que concerne as antinomias de segundo grau aparente podemos enumerar: a) Quando há conflito de norma especial anterior e outra geral posterior irá prevalecer o critério da especialidade, vigorando a primeira norma; b) quando houver conflito entre norma superior e norma inferior posterior irá valer a primeira, segundo o critério hierárquico e; c) Em havendo conflito entre uma norma geral superior e uma norma especial e inferior, devemos seguir a orientação de Maria Helena Diniz, que diz que não há uma meta-regra em tais casos, tratando-se de uma antinomia real e doutrinadora afirma: “No conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade, havendo uma norma superior e outra norma inferior especial não será possível estabelecer uma meta-regra geral, preferindo o critério hierárquico ao da especialidade ou vice-
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versa, sem contrariar a adaptabilidade do direito. Poder-se-á, então preferir qualquer um dos critérios, não existindo, portanto, qualquer prevalência. Todavia, segundo Bobbio, dever-se-á optar, teoricamente, pelo hierárquico; uma lei constitucional geral deverá prevalecer sobre uma lei ordinária especial, pois se se admitisse o princípio de que uma lei ordinária especial pudesse derrogar normas constitucionais, os princípios fundamentais do ordenamento jurídico estariam destinados a esvaziar-se, rapidamente , de seu conteúdo. Mas, na prática, a exigência de se adotarem as normas gerais de uma Constituição a situações novas levaria, às vezes, à aplicação de uma lei especial, ainda que ordinária, sobre a constituição. A supremacia do critério da especialidade só se justificaria, nessa hipótese, a partir do mais alto princípio da justiça: Suum Caique Tribuere, baseado na interpretação de que “o que é igual deve ser tratado como igual e o que è diferente, de maneira diferente”. Esse princípio serviria numa certa medida para solucionar antinomia, tratando igualmente o que é igual e desigualmente o que é desigual, fazendo as diferenciações exigidas tática e valorativamente”.( Conflito de normas, 2005)
Mas para iluminar a questão da antinomia e atender o objetivo do trabalho, após a elucidativa lição vamos exemplificar. O artigo 1º do decreto lei nº 3.200, de 19 de abril de 1941 dizia “Art 1º O casamento de colaterais, legítimos ou ilegítimos de terceiro grau, é permitido nos termos do presente decreto-lei.” “Art 1.521, da lei nº10.406, de 10 de janeiro de 2002: Art 1.521. não podem causar:... IV– os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;”
Como se observa os dois dispositivos são antagônicos já que um confirma um casamento entre tio e sobrinha e o Código Civil de 2002 proíbe este mesmo casamento anteriormente permitido. Os critérios de solução anteriormente apresentados auxiliam na solução desta antinomia aparente, pois lei posterior, deverá prevalecer sobre lei anterior. CRITÉRIO DE SOLUÇÃO Maria Helena Diniz assevera que o órgão judicante, levando em conta as deduções e induções, bem como os juízos valorativos, deverá observar o seguinte percurso na aplicação dos princípios gerais de direito para eliminar a antinomia real: “1) Buscar os princípios norteados da estrutura positiva da instituição a que se refere o caso subjudice; 2) Atingir, sendo inóxia a primeira medida , os princípios que informam o livro ou parte do diploma onde se insere a instituição, depois os do diploma onde se encontra o livro, a seguir, os da disciplina a que corresponde o diploma e assim por diante até chegar aos princípios gerais de todo o direito escrito, de todo o regime jurídico-político e da própria sociedade das nações, embora estes últimos só digam respeito às questões de direito internacional publico; 3) Procurar os princípios de direito consuetudinário, que não se confundem com as normas costumeiras, mas que são o ponto de partida de onde aquelas normas advêm; 4) Recorrer ao direito das gentes, especialmente ao direito comparado, onde se descobrem os princípios que regem o sistema jurídico das nações civilizadas, desde que estes não contradigam os do sistema jurídico
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interno; 5) Invocar os elementos da justiça, isto é os princípios essenciais podendo para tanto penetrar no campo da justifilosofia .” (As lacunas no Direito.p. 247-248)
Portanto, a ausência de critério na verdade é inexistente pois ainda, mesmo frente a antinomia de segundo grau, há o “critério dos critérios,” que é o da justiça no caso concreto, devendo o aplicador empregar a doutrina, os costumes e os princípios gerais do direito para os casos concretos, como para as lacunas por que a antinomia real não deixa de ser uma lacuna frente a ausência ou conflito entre os critérios normativos para a solução da antinomia. Outro exemplo de antinomia real é a existente entre o artigo 2035 do Código Civil de 2002 e a Constituição de 1998, em seu artigo 5º, XXVI. O referido artigo já foi analisado em trabalho anterior e o parágrafo único do artigo2035, do Código Civil em vigor, em interpretação literal, conduz para a regra de que os preceitos de ordem pública da lei ora em vigor poderiam ser aplicados aos contratos celebrados e exauridos antes da sua vigência. Esta leitura da norma decorre da expressão “nenhuma convenção”. Vale lembrar o referido artigo, do Código Civil: “Art. 2035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste código, obedece ao disposto mas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido previstas pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos
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Poe este código para assegurar a função social da propriedade dos contratos.”
Ao se ler o dispositivo legal, temos a idéia de que contraria a norma constitucional (artigo 5º, XXXVI) e a legal (artigo 6º da lei de introdução ao Código Civil que resguardam o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, e em virtude destes dispositivos os atos jurídicos perfeitos não podiam ser atingidos pelas disposições, mesmo que de ordem pública, da nova lei, sob risco de atingir, por conseqüência, direitos adquiridos. Desta forma, além validade mas também os efeitos dos atos e negócios jurídicos estariam sujeitos á lei do tempo em que foram elaborados, com exceção daqueles que não estariam “em curso” quanto aos seu efeitos , mas sim “em curso de constituição.” Caso em que existe o chamado Facta Pendentia. (FAZIO, 2008) Assim verificada esta a existência de antinomia total-parcial entre a norma do artigo 2035 do Código Civil Brasileiro de 2002 e as normas do artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal e do artigo 6º da lei de introdução ao Código Civil. E vale lembrar a lição de Maria Helena Diniz, no Compêndio de introdução à ciência do Direito (p.482-483) de que antinomia totalparcial ocorre “se uma das normas não puder ser aplicada, em nenhuma hipótese, sem entrar em conflito com a outra, que tem um campo de aplicação conflitante com a anterior apenas em parte.” Seguindo os ensinamentos da doutrinadora consta toda a possibilidade de antinomia real total-parcial entre o artigo 2035 do Código Civil e o artigo 5º, XXXVI, Constituição Federal percebemos que a solução é possível pelo emprego da equidade, pelo recurso à doutrina, aos costumes e aos princípios jurídicos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário acadêmico ao estudo do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. BOBBIO, Norberto. As Estruturas lógicas e o Sistema de Direito Positivo. 3ª ed. São Paulo: Noeses, 2005. BOAVENTURA, Bruno José Ricci. O fenômeno da antinomia jurídica. Jus Navigandi. Teresina. Ano 7. n. 63 março 2003. Código Civil Brasileiro de 2002. São Paulo. Saraiva: 2010. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo, Saraiva: 2010. DINIZ, Maria Helena. As lacunas no Direito. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ________________. Compendio de Introdução à Ciência do Direito. 19ª ed. São Paulo. Saraiva, 2008. ________________. Conflito de Normas. São Paulo. Saraiva, 2003. FAZIO, César Cipriano de. Análise do art.2035, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro. Constitucionalidade e antinomia. Jus Navigandi. Teresina, ano 12, n. 1916, 29/set/2008. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
OS DIREITOS DOS TRABALHADORES DOMÉSTICOS EM FACE DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE Paulo Dias Guimarães1
RESUMO Analisando o retrospecto histórico, verifica-se que o trabalhador doméstico, ao longo de sua história, há séculos, tem sido submetido ao um flagrante descaso institucional, resultando em um tratamento desigual, mormente inferiorizado, cuja violação de direitos vai além dos direitos ditos trabalhista para transbordar para o respeitável campo dos direitos humanos. Neste entendimento os trabalhadores domésticos, sob o discurso hipócrita de “fazer parte da família”, não raro, são submetidos à sobrecarga de serviços, e por conseqüência, jornadas extras sem a respectiva recompensa e ainda, atrasos no pagamento de verbas salariais. Palavras chave: Empregado Doméstico, Direito de Igualdade, Princípio Constitucional. ABSTRACT Analyzing retrospecto historical, it is verified that the domestic worker, throughout its history, has centuries, has been submitted to the one instant institucional indifference, resulting in a different treatment, mainly inferiorizado, whose breaking of rights goes beyond the said rights working to overflow for the respectable field of the human rights. In this agreement the domestic workers, under the hypocritical speech “to be part of the family”, not rare, are submitted the overload of services, and for consequence, extra days without the respective one reward and delays in the payment of wage mounts of money. Keywords: House servant, Right of Equality, Constitutional Principle
1 Professor de Prática de Processo Penal. Coord. do Núcleo de Prática e Assist. Jurídica. Curso de Direito da Univ. Estadual M. Grosso do Sul. Pósgraduação em Metodologia do Ensino Superior e Proc. Civil. Mestrando em Direito pela Fundação Eurípedes UNIVEM Marília (SP).
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INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo questionar os direitos dos trabalhadores domésticos em face do princípio constitucional da igualdade. Com efeito, há muito já suscitávamos esta indagação. A nossa Carta Maior, também chamada de Constituição Cidadã, zela pela dignidade humana e pela igualdade entre as pessoas. Assim, o legislador constituinte consignou no Título dos Princípios Fundamentais, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil o artigo 1º, inciso III a dignidade da pessoa humana (...) e no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, no artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...). Cotejando ainda a festejada e respeitável Carta Constitucional, notadamente o artigo 7º que, aliás, é a essência da Consolidação das Leis do Trabalho, inserida no Texto Constitucional, pergunta-se: Quais as razões levaram o legislador constituinte a criar o parágrafo único, no referido artigo, e ali, tratar o trabalhador doméstico de forma tão discriminada e em flagrante agressão aos seus direitos? Estaria o constituinte legislando em causa própria, já que, são por excelência, os principais e maiores empregadores da categoria? O trabalho apresenta cinco pontos, os quais, são os mesmos paradigmas norteadores do trabalho nas atividades empresariais, como, condições mínimas de segurança, salubridade e ambiente de trabalho, repouso e alimentação, reconhecimento constitucional da categoria e uma reflexão sobre a constitucionalidade. No último ponto enfocou-se aspectos de direitos humanos, supra individuais, razão maior deste questionamento, uma vez que, a justificativa do legislador, argüindo tratar-se de trabalho de natureza
residencial e sem fins lucrativos, não tem o condão de retirar do trabalhador doméstico a proteção da sua dignidade e o direito de igualdade. Ora, para o trabalhador, lavar talheres, pratos e panelas, na cozinha de uma residência ou na cozinha de um restaurante, ou ainda, de igual modo, lavar e passar roupas em uma residência ou em uma lavanderia, em termos de mão-de-obra aplicada, não tem diferença nenhuma, o trabalho é o mesmo. Neste entendimento, tentar justificar o tratamento desigual atribuído ao trabalhador doméstico equivale a pretensão de tampar o sol com uma peneira. Urge, portanto, que o legislador, democraticamente investido na função de delegado do povo, exerça o múnus público, que lhe é outorgado, com fidelidade aos princípios de igualdade, e fraternidade, fazendo tramitar projeto de lei, que subindo até a sanção presidencial, concretize a verdadeira, inclusão e justiça social. 1. DIREITOS HUMANOS 1.1 Condições mínimas de segurança As tarefas a serem executadas não podem por em risco a segurança e a integridade física de nenhum trabalhador, entre eles o doméstico. Assim, o trabalho em alturas, como a limpeza externa de janelas e fachadas de edifício, deve ser feito com redobrados cuidados e cercado de condições de segurança. O transporte ou simples levantamento de volumes pesados também deve ser reavaliado em cada caso e conforme a aptidão do trabalhador.2
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1.2 Salubridade e ambiente de trabalho Os cuidados com a salubridade devem estar além do ambiente de trabalho. Assim, a residência ou alojamento do trabalhador, quando proporcionado pelo empregador, deve ter capacidade adequada ao número de moradores e assim, possuir ventilação, e iluminação suficientes, energia elétrica e água potável tratada. Para a execução de atividades que expõe o trabalhador a agentes físicos, químicos ou biológicos, deve ser exigido o uso de luvas, botas e outros equipamentos individuais de proteção, conforme o caso. Cumpre ao empregador zelar para que o tempo de permanência em ambientes ou de contato com agentes insalubres seja reduzido ao mínimo possível, como também, adotar procedimentos permanentes de orientação e prevenção de acidentes, mantendo ferramentas e instalações em boas condições. Todo trabalhador esta sujeito a acidente no trabalho, mas os trabalhadores domésticos, mais que outras categorias, estão sujeitos a diversos tipos de acidentes, em face das circunstâncias laborais. Assim, estão sujeitos a queimaduras, choques elétricos, intoxicação com gás de cozinha, cortes e quedas. Periodicamente o trabalhador deve ser encaminhado para avaliação médica, sendo a primeira avaliação no ato da admissão. 1.3 Repouso e alimentação A Constituição Federal tem como um dos seus fundamentos, no artigo 1º inciso III “a dignidade da pessoa humana” e mais adiante no artigo 7º, inciso XV “repouso semanal remunerado, preferencialmente aos
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domingos”. Este o espírito que norteia os direitos dos trabalhadores e extensivamente aos domésticos. A lei estabelece como preferência o domingo para o dia de descanso por ser este o mais adequado com a dinâmica sócia e econômica da sociedade, todavia, nada impede que empregado e empregador ajustem entre si, outro dia para que seja cumprido o descanso semanal. A alimentação, quando fornecida pelo empregador, deverá ser em quantidade suficiente, de boa qualidade, e em horários compatíveis com a atividade laboral e necessidade nutricional. Ressalta que a oferta de moradia ou alojamento e alimentação, visam mormente, a comodidade do empregador, razão pela qual, salvo acordo expresso, não devem ser descontados. 1.4 Reconhecimento constitucional da categoria Conforme já delineado no capítulo II deste trabalho, a Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, assinalava direitos básicos do trabalhador doméstico, entretanto, foi na Constituição Federal de 1988, que o legislador constituinte consignou expressamente direitos do trabalhador doméstico, imediatamente aplicáveis, por força do parágrafo único do artigo 7º. Para Sérgio Pinto Martins: A relação do Direito do Trabalho com o Direito Constitucional é muito estreita, pois a constituição estabelece uma série de Direitos aos trabalhadores de modo geral, principalmente nos arts. 7º a 11. Mais especificamente no art. 7º, a Lei Maior garante direitos mínimos aos trabalhadores urbanos e rurais, especificando em 34 incisos. O empregado doméstico tem alguns direitos reconhecidos no parágrafo único
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do art. 7º . Mesmo o trabalhador avulso tem assegurados seus direitos no inc. XXXIV do art. 7º da Lei Fundamental, que prevê igualdade com os direitos dos trabalhadores com vínculo empregatício permanente. No art. 8º da Norma Ápice, são previstos os direitos decorrentes da organização sindical. O art. 9º da Lei Magna trata o direito da greve.3
No que pese o reconhecimento constitucional, nota-se que o trabalhador doméstico ainda restou inferiorizado perante o universo dos demais trabalhadores, evidenciado na especificação de determinados incisos, cujo conteúdo normativo foi estendido aos trabalhadores domésticos. De igual forma defeituosa veio a Lei nº 10.208 de 23 de março de 2001, que acrescentou à Lei 5.859/72, entre outros, o artigo 3-A. “É facultada a inclusão do empregado doméstico no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, de que trata a Lei 8.036, de 11 de maio de 1990, mediante requerimento do empregador, na forma do regulamento.” Como na ciência contábil não existe débito sem o respectivo crédito e vice-versa, na ciência jurídica não é diferente, pois, a todo direito corresponde uma obrigação. Assim, não precisa ser um hermeneuta para perceber que a norma acima transcrita nasceu contaminada de grave defeito. Pode-se dizer que é uma norma sem eficácia jurídica, pois, nos termos em que foi posta, o empregado só terá acesso ao regime do FGTS se o empregador quiser. Ora, dar um direito a alguém condicionado à vontade de outrem, equivale a nada lhe oferecer. Assim, se o empregado doméstico não pode exigir do empregador a implementação do seu direito, logo é porque não tem direito.
É oportuno lembrar que, tão antiga quanto o trabalhador, é a luta entre o capital e o trabalho, num embate desigual através de séculos. Assim, é forçoso concluir que o trabalhador doméstico somente alcançará a sua maioridade quando lhe for estendido, sem restrição, a plenitude dos direitos conferidos aos demais trabalhadores, e então “todos serão iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.... ” 1.5 Uma reflexão sobre a constitucionalidade A toda evidência os legisladores incorreram em contra-senso, pois, quando trataram dos direitos dos trabalhadores domésticos no parágrafo único do artigo 7º da Lei Maior, ao pontuar taxativamente determinados incisos, como fonte de direito do obreiro domiciliar, estabeleceram flagrante desigualdade em relação ao universo dos demais trabalhadores, incorrendo, inclusive, em contra-senso com o consagrado princípio da igualdade assegurado no artigo 5º caput da mesma lei. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].” Assim, instituíram indesejável discriminação à categoria dos trabalhadores domésticos em face das demais categorias não domésticas. O direito do trabalho é expressão de humanismo jurídico e arma de renovação social pela sua total identificação com as necessidades e aspirações concretas do grupo social diante dos problemas decorrentes da questão social. Representa uma atitude de intervenção
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jurídica para a restauração das instituições sociais e para melhor relacionamento entre o homem que trabalha e aqueles para os quais o trabalho é destinado.4
jurídicas do Estado. São eles, assim, as colunas mestras da grande construção do Direito, cujos fundamentos se afirmam no sistema constitucional [...]. 5
Desta forma, pode-se dizer que o direito do trabalho é mais que instrumento de tutela de direitos, é, por excelência, um instrumento de mediação no conflito de interesses entre o capital e trabalho, evitando tanto quanto possível a exploração do homem pelo próprio homem. Assim, no que pese a subsunção do ordenamento jurídico à supremacia dos princípios constitucionais, é tarefa dos legisladores superar as antinomias e buscar o caminho da harmonização destes princípios. Induvidoso que no campo dos direitos humanos, a bandeira que se hasteia é em defesa da igualdade desejada por todos, através de políticas públicas afirmativas e de efetiva inclusão social, surtindo efeitos práticos na vida das pessoas, ensejando ao ser humano condições de vida digna e de qualidade. Nesta exegese o Direito, que emana do sistema constitucional, ainda que difuso, há que ser compacto e sobremaneira coeso, alinhado, eis que, fundamenta todo o ordenamento e preserva valores importantes para a vida em sociedade. Nas palavras da Professora Carmem Lúcia Antunes Rocha:
Pois bem, ressalta-se que entre as colunas mestras da grande construção do Direito, está o princípio da igualdade, como coluna pétrea inderrogável. Assim, não há construção argumentativa que justifique a violação deste princípio, não há razões superiores que justifique a quebra do critério de paridade. A justificativa de que o trabalhador doméstico exerce atividade não lucrativa é uma afronta direta ao princípio da isonomia, guia do ordenamento jurídico brasileiro. A dignidade humana, entre outros, é um dos fundamentos da República. O Professor Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que:
Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico-normativo fundamental de um Estado. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios. Adotados pelo constituinte, sedimentam-se nas normas, tornandose, então, pilares que informam e conformam o Direito que rege as relações
Rezam as constituições – e a brasileira estabelece no art. 5o, caput – que todos são iguais perante a lei. Entende-se, em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia. O preceito magno da igualdade, como já tem sido assinalado, é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela sujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas. 6
No que pese a estranheza, não se pode duvidar que haja inconstitucionalidade em normas da própria Carta da República, o que, em tese, geraria situação de incompatibilidade e contra-senso entre seus preceitos.
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Verdade é que, uma parte da doutrina já se levanta em defesa da causa dos trabalhadores domésticos, através da qual, esta sendo ferido o princípio da isonomia. Os princípios enunciados no início do texto constitucional devem servir de bússola para nortear a elaboração das demais regras jurídicas, constitucionais e infraconstitucionais, embasando-as e servindo como forma para sua correta interpretação e aplicação, como bem lembradas por Sérgio Pinto Martins. 7
Por corolário, tem-se que o legislador constituinte, na essência do espírito, ao assinalar direitos peculiares do trabalhador doméstico, não pretendeu estabelecer distinção legal de qualquer natureza, nem tão pouco discriminar o trabalhador restringindo-lhe o acesso a outros direitos. Não é outro o entendimento do Professor José Cretella Junior: O art. 7o, parágrafo único da Constituição de 5 de outubro de 1988, que estamos comentando, alterou os princípios que informam a nossa Oitava Constituição da República Federativa do Brasil, o da igualdade entre eles. Se ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza’, o regime jurídico do trabalhador doméstico, advindo da relação empregatícia, é equiparado ao regime jurídico trabalhista dos demais empregados de fábricas, indústrias ou empresas [...].8
Concluindo e perfilando com expressiva parcela da doutrina, emerge com clareza solar que o parágrafo único do artigo 7º da Constituição, ofende o princípio da isonomia, não podendo, portanto, permanecer como válida, na órbita do sistema jurídico, uma disposição carregada de discriminação e desarmonia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo realizado é possível verificar, que o trabalho doméstico, sempre foi relegado a um plano flagrantemente inferior, sem descartar a possibilidade de encontrarmos em algum lugar pelos países afora e até mesmo aqui no Brasil, a chamada escravidão doméstica, onde a trabalhadora, ao pretexto de “fazer parte da família”, tem como recompensa do seu trabalho, apenas o alimento, algumas roupas, às vezes dispensadas pela patroa, remédios - em regra caseiros e dinheiro ou pagamento raramente, pois, “não precisa”. Quanto às medidas legais, até então consolidadas e apreciadas, visam resgatar uma dívida histórica que a sociedade brasileira e principalmente o legislador pátrio, tem para com uma categoria profissional que, embora não exercendo atividade econômica, presta relevantes serviços à família. Aliás, é preciso dizer mais, pois, exerce função nitidamente de confiança, eis que, labora no interior da casa e, senão na absoluta, mas na relativa intimidade da família. A CLT de l943, em seu art. 7º, letra “a”, expressamente excluiu o trabalhador doméstico da tutela legal. Desta forma a Lei 5.859/72, a CF/88, a Lei 10.208/200l e a Lei 11.324/2006, representam um significativo avanço nesse sentido, mas não são suficientes, pois resta conferir aos empregados domésticos o direito a prestações tais como o salário-família e sua inclusão obrigatória no sistema do FGTS, constantes de dispositivos do projeto de lei aprovado pelo Congresso e parcialmente vetados pelo Presidente da República. O trabalhador doméstico precisa, urgentemente, resgatar o seu direito à igualdade e à dignidade humana, assegurados e ao mesmo tempo negados pelo legislador
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constituinte. O veto presidencial relativo à inclusão do empregado doméstico entre os beneficiários do salário-família funda-se no § 5° do art. 195 da Constituição, que veda criação, majoração, ou extensão de benefício ou serviço da seguridade social sem a correspondente fonte de custeio ainda que complementar o que resultaria em aumento do desequilíbrio financeiro e atuarial das contas da Previdência Social. Por conseqüência, a inclusão obrigatória do trabalhador doméstico no sistema do FGTS implicaria também na imposição da multa de 40% sobre o saldo da respectiva conta, ao empregador, de modo a onerar demasiadamente o vínculo de trabalho doméstico, vindo a refletir um aumento no índice de trabalhadores sem registro na CTPS, bem como, aumento no índice de desemprego e trabalhos informais, diminuindo, portanto, a garantia de pleno emprego. De outro vértice, a premissa adotada pelo Governo Federal em torno dessa questão, suavizando os encargos sociais dos empregadores domésticos - que em sua maioria pertencem à classe média – alta, poderá ensejar o registro de grande contingente dos empregados domésticos, relegados à informalidade, fazendo-os participar dos benefícios trabalhistas e previdenciários que a Constituição e as leis ordinárias já lhes outorgam e ao mesmo tempo, carreando recursos para os cofres
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da Previdência Social. No campo dos direitos humanos, ressalta-se que os avanços alcançados ainda não se elevam o suficiente para colocar o trabalhador doméstico ao nível merecido na plena igualdade com as demais categorias, pois, como já sustentado no presente trabalho, a justificativa do legislador, argüindo tratar-se de trabalho de natureza residencial e sem fins lucrativos, é muito frágil, sem nenhuma consistência e assim, não tem o condão de retirar do trabalhador doméstico a proteção da sua dignidade e o direito de igualdade. Desta forma, como já foi dito, o direito do trabalho é mais que instrumento de tutela de direitos, é, por excelência, um instrumento de mediação no conflito de interesses entre o capital e trabalho, evitando tanto quanto possível a exploração do homem pelo próprio homem. Assim, no que pese a subsunção do ordenamento jurídico à supremacia dos princípios constitucionais, é tarefa dos legisladores superar as antinomias e buscar o caminho da harmonização destes princípios. Induvidoso que no campo dos direitos humanos, a bandeira que se hasteia é em defesa da igualdade desejada por todos, através de políticas públicas afirmativas e de efetiva inclusão social, surtindo efeitos práticos na vida das pessoas e ensejando ao ser humano condições de vida digna e de qualidade.
NOTAS 2
NASCIMENTO, op. cit., p. 388/389.
3
MARTINS, op. cit. p. 56.
4
NASCIMENTO, op. cit., p. 65.
5
ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais da Administração Pública.
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A EVOLUÇÃO DO SOCIAL E SUAS SOLUÇÕES André Martins Barbosa*
RESUMO O “homo sapiens” já se encontra em sociedade quando nasce. Evidencias deste processo estão se avolumando exponencialmente e as formas como ocorreram exigem cada vez mais a compreensão interdisciplinar, o que obriga os operadores do Direito a um esforço coletivo de construção. O inconsciente coletivo e sua percepção é uma face da complexa modernidade que apresenta soluções inusitadas. Palavras-chave: Sociedade, linguagem, operadores do Direito. inconsciente coletivo. ABSTRACT The “homo sapiens” is already in society when born. Evidence of this process is growing exponentially and the ways in which occurred require increasingly interdisciplinary understanding, which requires the operators the right to a collective effort of construction. The collective unconscious and their perception is a complex face of modernity that presents unusual solutions. Key-words: Society, language, operators the right, collective unconscious.
O
século XXI trouxe inúmeros desafios para todos os habitantes do planeta. Nada de novo pois que a vida, desde que surgiu por aqui, é um constante desafio para todos os seres. Tampouco é novidade que as espécies não adaptadas as novas condições ambientais tendem inexoravelmente a desaparecer. Assim aconteceu com cerca de 95% a 98% das espécies (para os otimistas). É uma regra, uma lei, um paradigma que há muito deixou de ser mera hipótese e que não convive
pacificamente com o criacionismo literal, infelizmente por deficiência na formação dos currículos elementares, interesses arraigados e o temor do enfrentamento com o novo, do conhecimento da diversidade e de compreender que Deus é infinito o suficiente para albergar em Si, Big Bangs, evolucionismo e todas as questiúnculas que nossa ciência ainda não abarca mas como estudiosos devemos nos debruçar, analisar e compreender através dos esforços individuais e coletivos.
* Professor adjunto do curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP.
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A pesquisa interdisciplinar favorece esta posição, fornece novas ferramentas para compreender uma realidade em complexização e os operadores do Direito não podem se esquivar ao emaranhado de tecnologias se avolumando na sociedade já devorando o modelo de produção substituído pelo de conhecimento. Os problemas que se agigantam diante dos tribunais não podem mais ser solucionados apenas com cópias de teorias alienígenas da década de 50 mal adaptadas a nossa realidade. Este comportamento neandertal levou a um descompasso perigoso entre o real e os que tem o dever de procurar, no mínimo, a compreensão. Os modelos tradicionais, confortáveis, se não forem abandonados (não se quer dizer esquecidos – embora assimilados) ameaçam a serem a mó atada aos pescoços empedernidos que se negam a observar as evidencias de que uma das leis do orbe é o da transformação, da evolução para muitos. E que outra lei da sobrevivência é o de mudar para perma-necer. Felizmente a percepção de que as mudanças são necessárias surgem entre os timoneiros1, o que fornece alento para as gerações que sucedem ao processo nunca fácil de ser conduzido. PELA COMPREENSÃO DA ANTIGUIDADE, O ENTENDIMENTO DA MODERNIDADE “Ainda em 1619, quando Lucíbio Vanini reconheceu as afinidades simianas do homem, lhe cortaram a língua e o condenaram à fogueira.” Pontes de Miranda
As questões conflitivas presentes na sociedade, a intersubjetividade, os modos de comunicação, exigem uma compreensão
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cada vez mais abrangente do contexto e a cognição de teorias de informação, análise de dados, da compreensão cada vez mais abrangente de sistemas, de lógica matemática, teorias de jogos, inteligência artificial bem como biologia, antropologia, filosofia, além de psicologia e outras áreas do saber. Claro está que não se pretende ou se espera que os operadores do Direito sejam superdotados como Einsteins (o que seria bem vindo), mas inaceitáveis as soluções de problemas através da simples procrastinação (necessária as vezes como estratégia) por desconhecimento de conceitos fundamentais para a resolução dos imbróglios sociais a que são concitados a decifrar os profissionais da pax júris. É um esforço doloroso, contínuo, necessário pois não há pax júris aeterum é o perigo do anacronismo fundado somente na força das varas que se tornam caras, quando toda a construção social é no sentido inverso. Um paradoxo. Simplificação possibilita complexização pela multiplicação exuberante do simples. E é neste sentido que procuramos desenvolver este opúsculo palmilhando apenas uma das inúmeras possibilidades, sem excluir as demais, ou relegar a formação. Sem sermos psicólogos evolucionistas tampouco profissionais da área, já é de conhecimento quase rasteiro e popular que a 6 milhões de anos os primeiros “hominídeos2” já se faziam presentes, a 4 milhões de anos descemos das árvores, a 2,5 milhões utilizamos os primeiros instrumentos de pedra graças a modificações das mãos e a dependência da carne nos deu tempo extra para aumentarmos o tamanho do cérebro. A vida humana surgida na África exporta os primeiros aventureiros a 2 milhões de anos. Aventureiros que não se fixaram, como os Vikings e os chineses que não ficaram na Groelândia e na América do
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Sul antes de Colombo e Cabral. Aventureiros extintos. A 60.000 anos aproximadamente os hominídeos modernos saem como caçadores e coletores vivendo em pequenos grupos em uma paisagem ampla mas fruto de um já longo processo evolutivo que incessantemente através das gerações joeirava as mutações favoráveis, selecionava as adaptações ao meio através das competições e eliminava os fracassos (podemos afirmar que os fracassos demoravam milhares de anos para serem eliminados, em termos atuais algumas décadas) recompensando os sucessos ocasionais . Uma odisséia em nada diferente das outras espécies, mas que produzia um novo ser que mudou drasticamente de comportamento a 50.000 anos atrás. Há 43.000 anos há vestígios dos primeiros artefatos, de contas, de colares e a 40 mil comprovadamente produzimos artefatos de pedra, marfim, osso e até com arte. No Paleolítico Superior, a 38000 anos na Europa Ocidental fabricamos massivamente estes “ornamentos”. Contas indicam uma expansão mental fenomenal uma interação social complexa, indícios inequívocos de grupos com identidade, com funções desempenhadas pelos indivíduos que os integravam. Comprovações deste período estão até na Austrália mas as evidencias são mais abundantes na Europa onde hominídeos semelhantes, os neandertais, mas não iguais, se encontravam. Se voltássemos no tempo e fizéssemos uma aposta baseada apenas no conhecimento disponível e utilizável naquela remota era apostaríamos nos robustos neandertais de cerca de 91kilos de ossos e músculos e não nos menores hominídeos dos quais descendemos e que já apresentam evidências de vida simbólica, de pinturas, de arte em cavernas, protegidos de seus oponentes “de peso”. Ah! O tempo, ferramenta “cruel” para com os que somente se
utilizam da força disponível no momento menosprezando inovações que Deus, através de sua criação infinita, oferta regularmente. A superação exigia maior vontade, determinação para produzir artefatos mais acabados que solicitavam de seus “operários” paciência e habilidade de mãos melhor adaptadas para funções meticulosas. Os neandertais produziam peças fáceis, rápidas de serem confeccionadas e que exigiam pouca paciência. Não deixaram rastros de ensino sistemático de suas técnicas como os homo sapiens. Imitavam e o que favorece a evolução seletiva é a criatividade, a diversidade e em termos humanos, o controle destas diferenças sob uma hierarquia disciplinadora e não excessivamente excludente. O que aconteceu durante esta época podemos metaforicamente dizer que é como se um plutoniano aportasse entre nós (que já utilizávamos outra linguagem), portando uma lança que não conhecíamos, que rapidamente copiamos e aperfeiçoamos enquanto o alienígena se recusava sistematicamente a aprender as novas linguagens ridicularizando quem não soubesse plutonês e impondo a tecnologia (a lança) trazida de Plutão, sem ser seu criador. Funcionou durante um tempo. O resultado é o que temos. Assim como os neandertais foram eliminados e sabemos de sua existência pelas lanças e carcaças ociptais que estão nos museus e livros que a eles fazem referência, também o hominídeo que voltou de Plutão (e que para lá foi pelo processo de mobilidade) portando uma lança mas se recusando a favorecer as novas linguagens foi condenado a virar parietal de museu. Na natureza este processo é doloroso, cotidiano, milenar e não visível aos olhos contemporâneos destreinados, sem mente aberta às inovações incessantes. O que permite coexistirem num mesmo espaço homo sapiens e neandertais. O eterno processo de substi-
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tuição, de renovação. Os mais desenvolvidos nesta arte conseguem perceber os perigos das modificações constantes e somente os corajosos e operosos procuram assimilálas e compartilhar as linguagens mais eficientes mesmo que num primeiro momento possam parecer difíceis aos aprendizes acocorados ao redor de uma fogueira. E que sensação espetacular deve ter ocorrido àqueles nossos antepassados que perceberam o que acontecia. Tiveram a humildade de se submeter ao mestre exemplar, além desta qualidade, a paciência, que permitia ensinar não somente a técnica que dominava mas a arriscar a que provavelmente seria a mais apta ao grupo, às finalidades sociais a que se destinavam os seus componentes que, devemos lembrar, era uma pequena parcela dentre milhares de tantos outros hominídeos espalhados sobre o planeta. Já copiávamos uns aos outros e a cada nova geração, novas tecnologias avolumavam-se superpondo-se, construindo esta cultura fantástica da qual dispomos e nos ameaça e nos assombra pois se torna uma criatura a assustar o criador e já se pode dizer, seu hospedeiro pois somos frutos bem mais do que a evolução biológica, da evolução cultural, a constante simbiose entre o homo sapiens e o que cria, cópia, aperfeiçoa e transmite incessantemente e mais e mais rapidamente. Os neandertais mais imitavam e o que favorece a evolução é a diversidade em atividade competitiva e cada vez mais articulada tecnologicamente, em aumento de simplicidade com máxima informação com um mínimo de signos. Isto exige mentes mais desenvolvidas, sistemas de aprendizagem “mais flexíveis”. Isto possibilita a compreensão de que iniciou-se outra corrida “armamentista” simbiótica por entre, dentro e através das diversidades. A 50.000 anos estávamos não so-
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mente imitando mas já aproveitando a experiência, o conhecimento, a sabedoria dos mais velhos, transmitida de cérebro a cérebro, na linha horizontal, não mais na hereditariedade genética, vertical, os signos necessários à sobrevivência, em competição pelos recursos naturais com outros seres e dentro da própria espécie numa espiral ascendente de relações de linguagens e mentes 3. Isto para os humanos modernos foi uma vantagem estratégica vital. As tecnologias poderiam melhorar de uma geração para outra desvinculadas da replicação comportamental com base nos genes e poderiam ser transmitidas informações por grandes distâncias e através do tempo. Imagens, signos são a forma de se comunicar com o outro sem que se esteja no local do receptor, resgatando técnicas pretéritas, aperfeiçoando-as no presente e armazenando-as para o futuro, recombinando-as. Os neandertais não realizaram estas trocas (tão intensamente) de símbolos essenciais. Viviam em bolsões isolados, separados de outros grupos que “pesquisavam” o ambiente buscando condições favoráveis. Nossos ancestrais se comunicavam “criando”, produzindo, transferindo cultura e arte portátil que trocavam, levando a distâncias consideráveis e que podem, como modo de troca ainda ser encontrados em estudos de resquícios de culturas mais “modernas” nos “papéis” desenvolvidos pelos chefes tribais analisados por Marcel Mauss 4 em seu “Ensaio sobre a Dádiva”. Aceleraram o processo de comunicações e linguagem criando redes cada vez mais complexas favorecendo mudanças genéticas importantes em simbiose com os “inventos culturais”. Uma característica dos hominídeos modernos que é favorecida pela exuberância do cérebro. Mudanças gradativas e cumulativas que permitiam que nos comunicássemos e de-
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cifrássemos como o mundo funciona. Temos cem bilhões de células nervosas, talvez cem trilhões de conexões e criando novas conexões, novas funções. Não foi o tamanho do cérebro mas a “rede de conexões” que nos forneceram novas e poderosas aptidões e entre elas foi a de viver numa complexa rede social onde a sutileza, ao contrário da violência, da força física (que é incorporada, utilizada, instrumentada, simbolizada) vai se impondo na teia de conexões. O número superando o indivíduo, a estratégia superando o tamanho, a velocidade (também absorvidas e instrumentalizadas). Na espiral evolutiva chegamos a nos colocar na posição do outro, a sentir pelo outro. Percebemos que isto acontece aos 4 ou 5 anos de idade e que nos permite sermos mais ladinos do que qualquer outra espécie.E assim, premeditar, prever, tornar-nos socialmente mais competentes e isto conta na luta. O cérebro passa a ser mais importante que a força muscular simbolizada. Mentes aperfeiçoadas, relações sociais complexas são expressas pela linguagem (relembrar o passado, ponderar sobre o futuro, ensinar crianças, contar segredos, manipular multidões, etc) e esta solicita um substrato, um hospedeiro, a comunidade, a companhia de semelhantes querendo compartilhar informações por se beneficiarem delas. A linguagem independe da voz. É uma inevitabilidade do homo sapiens. Por enquanto é impossível determinar exatamente quando a linguagem começa a evoluir e a abrir a porta do sucesso para a espécie na hierarquia zoológica. Porém, toda linguagem depende de regras determinadas e cada uma das 6.300 línguas do planeta as tem, a sintaxe. Esta não é simplesmente o conjunto de regras que se aprende na gramática das séries iniciais mas são as restrições que nos são fornecidas em virtude de termos
um mesmo modelo de cérebro. E não são somente as restrições mas a capacidade de organizar hierarquicamente as informações que nos permitem construir sentenças inéditas, construções criativas que nunca foram apresentadas. Isto nos faculta contar, montar uma história, fazer uma profecia, blefar, mentir ou transmitir a “verdade”. Os bem dotados no uso da linguagem foram sendo favorecidos, prosperaram. O desenvolvimento da linguagem tinha uma função e está demonstrado que tem a ver mais com os laços sociais do que somente a transmissão de tecnologias. Nisto as interações mais próximas foram favorecidas. O que a linguagem faz basicamente é manter a coesão dos grupos. Serve para inúmeras funções (favorecer trocas, capitalizar informações prioritárias, selecionar os mais aptos e outras ainda sob averiguação). A linguagem é a força que criou a civilização moderna. Diz: a que grupo pertencemos, como pertencemos e quais os nossos limites. Desde o surgimento da cultura, a 50.000 anos mudamos bem pouco biologicamente mas drasticamente em termos culturais. Organizamos, classificamos o que nos cerca. Fazemos ciência onde expomos idéias que precisam ser respaldadas por evidencias que por sua vez devem ser examinadas pelos colegas e solicitam confirmação por repetição e testes. Em um mundo de mudanças aceleradas pelos processos culturais as exigências se exponencializam e somente através do trabalho coletivo articulado, o conhecimento pode ser operacionalizado ou ficamos utilizando tecnologias cognitivas anacrônicas. Podemos dizer que surgem conhecimentos transmitidos já de forma ”inconsciente”. Os conhecimentos, os problemas e suas soluções perpassam de forma tal que não temos tempo de analisar em profundidade o que ocorre, como um filme que nos fornece a ilusão de
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movimento mas na verdade é composto por uma sucessão rápida de fotografias. Dos problemas que se avolumam, o da violência 4 em nossa sociedade é um dos que nos chama a atenção. Sobre ele é que podemos nos debruçar para procurar compreender a parte do “filme”, do processo social que se desenrola a nossa volta, com e sem nossa participação, como se fosse uma foto recente. Uma tentativa de escapar das amarras dogmáticas, dos grilhões epistemológicos que devem ser conhecidos mas não reverenciados exageradamente pois obstáculos existem quase que intransponíveis se utilizarmos somente as técnicas convencionais como nos faz perceber o sociólogo José Cláudio Souza Alves da UFRJ 5 quando comenta sobre a ação das mílícias. E os novos ares vem de diversos pontos 6 pois o problema é percebido como contundente e todas as abordagens devem ser consideradas para que as respostas implementadas que obtiverem sucesso sejam replicadas. E com todos os conhecimentos disponíveis começamos a procurar novas “vacinas” de enfrentamento desta violência disseminada e como e porquê estas soluções sobrevivem. Sem querer sobrepor nenhum profissional especializado mas procurando entender por outros prismas mesmo porque o jurídico tem sob seu pálio uma responsabilidade que o contrato social (mesmo sendo considerado uma mera “legitimação burguesa”, - mas as eleições estão presentes - pois inexistente historicamente) erigiu e grande parcela dos operadores que trabalham com esta estrutura mental que ainda é utilizada e é necessária pelo tempo que será gasto na substituição das tecnologias de compreensão dos fenômenos, das linguagens.
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DEPARTAMENTO DE OPERAÇÕES DE FRONTEIRA: UMA SOLUÇÃO DO INCONSCIENTE COLETIVO Embora não tenhamos formação técnica na área da Psicologia, da Psicanálise e de outras ciências que possam auxiliar, pelo menos lançar luzes, sobre os mecanismos do inconsciente, tivemos durante um semestre, aulas que foram como relâmpagos para clarear uma realidade regional. Como relâmpagos, pelo menos para quem ministrou o curso 7, mas que iluminaram o suficiente para vermos os nortes, as justificativas para a manutenção de um mito, de uma utopia, contra todas as adversidades, contra as correntes de idéias e fatos que, embora comprovadamente sem fundamento técnico tem se instituído, se propagado no país. O mito, a utopia que se tem mantido a vinte anos é o Departamento de Operações de Fronteiras, a única policia unificada em todo o território nacional, não obstante os diversos esforços governamentais, descontínuos, que procuraram criar pelo menos aparentemente, uma polícia unificada, ou seja, com um único comando e que, frente as resistências corporativas muda a intenção, as palavras, substituindo as mesmas por outras como “integração” ou “força conjunta” ou “força integrada”, conforme a época e circunstâncias. E nenhuma destas é concretizada ao longo do tempo. O Departamento foi criado como G.O.F. (Grupo de Operações de Fronteira), em 28/05/87, dentro da estrutura da Secretaria de Segurança Pública do estado de Mato Grosso do Sul, através da Resolução nº 119/87 pelo então Secretário de Estado e Segurança Pública, Francisco Leal de Queiróz, subordinado de hierarquicamente ao Governador de Estado e não aos Comandos da Polícia Civil e Militar e tinha
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como característica ímpar a atuação conjunta de policiais civis e militares, sob o comando de um único chefe, ou comandante. Uma utopia para a época e também para os dias de hoje uma rematada loucura, pois que é conhecida a aversão quase que natural, instintiva, existente entre policiais civis e militares. Aversão, dissimulada nos quartéis, delegacias e onde atuam, mas incentivada discretamente pelos extratos superiores da hierarquia policial. Situações de difícil pesquisa e comprovação para quem não pertença ou tenha pertencido a tais estruturas. Para os observadores externos só resta acompanhar pela mídia os escândalos de corrupção e violência e privilégios envolvendo as instituições. A violência mais ligada a Polícia Militar 8 e a corrupção a Polícia Civil 9 sem, contudo, ser exclusividade de qualquer uma das duas e sem exclusão 10 da magistratura 11 no segundo quesito. Embora seja da magistratura a melhor postura apresentada para a população 12 através de linhas do presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Empregando os termos de Caterina Koltai quanto a utopia e a um projeto utópico “Um mundo sem projetos é o mundo da depressão 13” e “No entanto, os humanos, desde que se constituíram em sociedade, nunca deixaram de sonhar com um mundo de paz e harmonia onde todos vivessem reconciliados com todos e cada qual consigo próprio. Foi para isso que criaram utopias, que, ao se realizarem, freqüentemente de modo totalitário, só fizeram aumentar o malestar” 14. Embora tenhamos que concordar e acompanhar a bússola epistemológica de que “é impossível conduzir os homens em direção à felicidade da vida coletiva 15, não podemos nos furtar a auxiliar na construção, pela pesquisa, pela divulgação, e esperança de reprodução, da utopia dofiana, da unificação. É uma idéia. O líder (de policiais
civis e militares, de parte da população) agora continua apenas como mito e não como chefia concreta, comandando seus subordinados. Em microescala, acontece o que já foi previsto para situações macro 16. A utopia construída sobre o mito Adib Massad é de que haja uma polícia unificada, eficiente, não violenta, qualificada, rápida, honesta, educada, gentil no atendimento, que pelo respeito da população obtenha informações para combater o crime organizado - ou não - sem lançar mão da tortura ou da compra de informações. A utopia é constituída da idéia de que é possível construir uma polícia técnica que se relacione bem com o Poder Judiciário, com o Ministério Público e com as polícias das Repúblicas vizinhas da Bolívia e Paraguai, através das vias diplomáticas e com as unidades políticas de estado, com seus representantes, os vereadores, prefeitos, deputados, bem como todas as autoridades civis e militares, indistintamente, sem privilégios de raça, credo ou recursos financeiros. Uma polícia que cumpra a lei sem infringi-la. Portanto, é uma “rematada loucura” no dizer dos teóricos. Como utopia encontra adeptos. Mas o DOF, com sua existência, demonstra ser uma utopia viável, pelo menos em parte. Esta construção utópica só foi possível ser constituída e gradativamente sedimentada porque está gravado no imaginário popular, exageradamente, no inconsciente coletivo de que inicialmente o GOF através de seus policiais inibia com grande eficácia a ação dos criminosos. Acreditamos que é esta vontade de eliminar o crime, (até por meios não convencionais, não legais) que se esconde atrás do apoio dado a vinte anos ao Departamento. É uma vontade, uma intenção difícil de ser detectada mesmo porque dificilmente verbalizada. Neste sentido a reportagem
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especial com Renato Janine Ribeiro 17 trouxe muitas luzes a um inconsciente coletivo, e como visto, não tão inconsciente, em decorrência do debate acirrado que provocou mas no sentido de negação, de recolocar novamente o monstro de volta ao buraco do qual escapara. No estado de Mato Grosso do Sul, o monstro está a solta. É um monstro mitológico, que não chega a ser um leviatã hobbeseniano, já que é constituído por uma instituição estatal onde tem em sua origem os impostos dos contribuintes e o apoio da sociedade organizada através da ONG SALVE (Sociedade dos Amigos da Liberdade, da Vigilância e da Esperança), que auxilia através de uma parceria de terceiro setor o erário público representado pela Secretaria de Segurança Pública. Não chega a ser uma milícia 18, pois que as formas de atuação e captação de recursos e representação são distintas mas apresentam o mesmo objetivo, pelo menos a principal: segurança. O monstro utópico torna-se diaa-dia mais mitológico, pois que também apresenta uma das características de outro ser lendário: a fênix que renasce das cinzas. Por três vezes a instituição esteve para ser dissolvida pelo governo do estado (em 1991, 1994 e 1999). Mas contudo, com o apoio da sociedade (que inclusive elegeu Adib Massad como vereador do Município sede do Departamento em Dourados, com votos suficientes para Deputado Estadual) o fim desejado pelo governo petista, representado na esfera municipal por Laerte Tetila e no governo do Estado por José Orcírio Miranda dos Santos não ocorreu. Quem chega ao poder política aprende a manusear os mecanismos de controle. Está no imaginário popular que os homens que compõem o Departamento realmente afugentavam a criminalidade. Mito ou não o fato é que o Comando
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Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC) e outras siglas criminosas tem vida restrita aos muros dos presídios do Estado e nenhuma atuação nas ruas. A única tentativa de ação em Dourados resultou na morte de cinco integrantes do PCC nas avenidas da cidade e num capão de mato próximo ao município de Ponta Porã, em confronto ocorrido em inicio da década de 2000. E é esta atuação (que vez ou outra se faz visível) que fortalece a imaginação agigantada nas festividades patrocinadas pelos representantes do agro negócio nos cinqüenta e três municípios em que o Departamento atua. Ora, se até um representante de renome internacional se deixa trair por atitudes inconvenientes para quem exerce um papel de preponderante visibilidade na comunidade nacional 19, o que esperar de uma comunidade predominantemente agrária em sua origem, com valores ainda fixados no período da colonização portuguesa, e embora com estruturas judiciárias bem demarcadas e índices de escolaridade ainda em ascensão senão a lei de talião? É o “olho por olho, dente por dente” que satisfaz a sede de “justiça” de uma população que não tem paciência para com uma intervenção estatal que não é certa e acha ridícula 20 a situação em que se encontram as forças policiais dos estados do sudeste do Brasil. Inúmeros são os trabalhos, pesquisas e citações que poderíamos levantar para discutir o tema, mas por contingência devemos limitar as escolhas. Bauman, para elucidar: A sociedade insegura da sobre-vivência de sua ordem desenvolve a mentalidade de uma fortaleza sitiada 21...Durante os últimos vinte e cinco anos, a população de encarcerados e de todos os que obtêm a sua subsistência da indústria carcerária - a policia, os advogados, os fornecedores
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de equipamento carcerários - tem crescido constantemente. 22.
Neste contexto de insegurança generalizada a felicidade cada vez mais é utópica e para ser alcançada, pelo menos parcialmente, também utópicos são seus caminhos 23. Mas, “temos que pensar por nós mesmos, em vez de aceitar a tradição” 24 e esta no que diz respeito a unificação, declara que é impossível de ser concretizada. Sartre é citado com freqüência por afirmar que o inferno são os outros. Podemos dizer que o inferno são os criminosos que se multiplicam, que nascem e crescem nas favelas (que também estão crescendo em
população e área), fazendo malabarismos nos sinais, que dormem sob viadutos e nos espreitam em todos os lugares. Quem irá nos salvar? É preciso construir utopias que resguardem nossa sanidade, ou alimentar nossa ilusão de que alguém nos protege, de que alguém “vingará” nosso João Hélio, (logo esquecido, misturado as outras milhares de cruzes da guerra urbana) de que esta não foi mais uma morte vã. Sem esse projeto utópico de segurança como poderemos “viver além do conforto e segurança de um divã de psicanalista?” Essa fantasia legal, patrocinada pelo estado, representa bem mais que um simples mito 26. Mas isto é tema para outro momento.
NOTAS 1
Inúmeras outras alterações importantes poderiam ser apontadas, como a possibilidade de instituir meios eletrônicos para a prática de atos processuais, que substituirá em breve a burocracia dos papéis e carimbos, e a citação por hora certa, medida para evitar que a ocultação proposital do acusado atrase o andamento do processo. (BASTOS, Márcio Thomaz e BOTTINI, Pierpaolo Cruz. In Justiça que não tarda. Folha de São Paulo. 29/08/08 p. A3). 2
O animal está em nós, e foi antes de nós, de nosso espírito. Sabia disso um homem terrível. São Paulo, na Epístola dos coríntios: “Não foi o corpo espiritual que se formou primeiro; mas o corpo animal, e o espiritual depois.” Sempre é boa norma começar-se pelas coisas primeiras. Sempre é bom, em vez de estarmos a apontar em deuses os animais que estão em nós, observar esses IN VIVO, e conhecê-los para explicando-os, sabermos o que em nós não os é. (MIRANDA, Pontes de. Garra, mão e dedo. Campinas: Bookseller. 2º ed. 2005.) 3
O ser humano, ao nascer, já se encontra em sociedade. Inicialmente, por ser animal com baixa definição prévia depende desse meio para adquirir alimento e sua bagagem inicial de informações de conhecimento. A aquisição da linguagem será um processo demorado e definidor de toda sua mundividência futura. Não lida com ocorrências e se autoconstitui como um conjunto de fatos, isto é, descrições lingüísticas de ocorrência. A consciência de si, do outro e do mundo - repousará sobre os limites de sua linguagem. E essa linguagem não é apenas um dado como suporão o funcional– estruturalistas, mas um construído. Encontrar o contexto lingüístico pronto não significa apropriar-se, de imediato de sua totalidade, porém, progressivamente apoderar-se de parcelas desse contexto e construir, também num demorado e longo processo, os eixos semânticos que darão unidade interpretativa e de ação sobre os demais interlocutores (PUGLIESI, Márcio. In Dinâmica transdisciplinar. II
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– Da Antiguidade para além da Pós-Modernidade: introdução à hermenêutica do sujeito. Apostila 02. Programa de Pós-Graduação em Direito. São Paulo. PUC. p.08). . 4
“A violência, por sua vez, expressa uma destruição da regulação do conflito, da pactuação das normas como os conflitos vêm sendo”pacificados” pelas instituições e relações de valores de negociação, perdão, reparação, acomodação e pela mediação da justiça e das leis.” (FALEIROS, Vicente de Paula. A violência contra a Pessoa Idosa: Ocorrência, Vítimas e Agressores. Brasília: Universa.2007. p.29). 5
Indagado sobre a falta de provas, disse “Faço analogia, estou depreendendo uma lógica histórica, geopolítica. Não tem trabalho de campo porque criminoso não faz ata.” WERNECK, Felipe. Execução sumária firmou-se como parte da política de segurança. O Estado de São Paulo. 31/8/08 p. C7. 6
“O Judiciário brasileiro vive dias de glórias. Desce do Olímpio para habitar o mundo dos mortais. Até parece que pediu licença às divindades para passar um tempo,um tempinho conversando ao pé do ouvido com os terráqueos, Joões, Marias e Josés que perambulam pelas ruas, engrossam as filas de ambulatórios e acorrem aos corredores das repartições públicas. E o conversa, podem ter certeza, é recheada de boas notícias... A diretriz que parece inspirar o ativismo judicial dos altos magistrados é a da aproximação entre povo e justiça. Essa meta é uma promessa até hoje não cumprida pela democracia, conforme nos lembra o filósofo Norberto Bobbio. (TORQUATO, Gaudêncio. O Judiciário desce do Olimpo. O Estado de São Paulo. 31/8/08 . p. A2) 7
Profª. Dra. Caterina Koltai. Professora de Programa de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disciplina “O Inconsciente e Suas Soluções Sociais”. Primeiro Semestre de 2007. 8
“Polícia do Rio mata 41 Civis para cada policial morto. Proporção registrada na gestão Cabral é quatro vezes maior que a média internacional”. Folha de São Paulo. 16/7/2007. p. C 1. 9
“Corrupção na Polícia. Escuta põe sob suspeita cúpula da Polícia Civil. Grampos da PF revelam esquema de propina de bingos”. O Estado de São Paulo, 22/06/2007. p. C5. 10
“Juíza da Têmis é investigada por decisões sobre “títulos podres”. Empresas conseguiram decisões sustando cobrança de impostos não pagos ao fisco e de contribuições não recolhidas ao INSS. Maria Cristina Barongeno pediu processo da Friboi, que tem seu pai como um de seus advogados”. Folha de São Paulo. 24/06/2007, p. A 2. 11
“Juíza suspeita de ajudar facção é afastada. Ida Inês Del Cid foi flagrada em conversas telefônicas com acusado de participar de esquema de lavagem de dinheiro dos criminosos”. Folha de São Paulo, 22/06/2007, p. C 13. 12
Rodrigo Collaço. O Judiciário fará a sua parte. “Devido ao elevado número de membros que integram o Judiciário, seria ingenuidade imaginar que o Poder fosse ficar imune a corrupção, especialmente num país como o Brasil, cuja tradição patrimonialista e confusão entre o público e o privado são temas recorrentes de sua história. Não há nenhuma corporação que possa se dizer o salvo de eventuais desvios cometidos por seus integrantes”. Folha de São Paulo. 20/05/07. p. A3.
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13
KOLTAI, Caterina. Ciências Sociais na Atualidade. Realidades e Imaginários. Editora Paulus. São Paulo, 2007, p. 23. 14
Idem, p. 23.
15
Ibidem.
16 “Freud previu que o líder, indispensável à manutenção da massa, poderia vir a ser
substituida por uma idéia”. Caterina
Koltai. Op. cit. p. 25. 17
Renato Janine Ribeiro. Comentando a morte violenta do garoto João Hélio no Rio de Janeiro. “ Se não defendo a pena de morte contra os assassinos, é apenas porque acho que é pouco. Não paro de pensar que deveriam ter uma morte hedionda, como que infligiram ao pobre menino. Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte. Não temos pena de morte, na lei. A Constituição proíbe, mas provavelmente executamos mais gente que o Texas, o Irã ou a China. E: o que fazemos às escondidas. Quando penso que, desses infanticidas, os próprios colegas de prisão se livrarão, confesso sentir um consolo”. Folha de São Paulo, 18/02/2007. 18
“PM investiga apoio a milícias. Moradores de favelas invadidas por milicianos dizem que até carro blindado foi utilizado”. O Estado de São Paulo. 6/21/2007. p. C6. 19
“O Sobel que cometeu aquele ato não é o que vocês conhecem”. Rabino disse que não se reconhece “nesse homem” e que é difícil “explicar o inexplicável”. Sobre o furto de cinco gravatas das marcas Louis Vuitton, Giorgio Armani, Giorgio’s e Gucci em Paim Beach, Flórida. EUA. O Estado de São Paulo. 1/04/2007. p. C10. 20
“Trio assalta dois policiais do GOE. Investigadores estavam em um bar no Jardim Miriam, na Zona Sul da Capital, onde ocorreu a ação criminosa. Ladrões levaram três pistolas e fugiram do local”. Diário de São Paulo. 19/5/2007. 21
Zygmunt Bauman. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Jorge Zahar, editor. Rio de Janeiro / RJ, 1998.Pág. 52
22
Idem. Pág. 49.
23
Sérgio Paulo Rouanet. “A felicidade é virtualmente impossível, mas temos que agir como se ela pudesse ser alcançada”. In: Mal-estar na Modernidade. Editora Companhia das Letras. 20a ed. São Paulo. 2003. p. 117. 24
Idem. p. 102.
25
Betty B. Fuks. Freud & a Cultura. “Fantasia e mitos são formas de expressão permanentes do desejo em sua articulação como a lei”. Jorge Zahar, editor. Rio de Janeiro, 2003. p. 25. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASTOS, Márcio Thomaz e BOTTINI, Pierpaolo Cruz. In Justiça que Não Tarda.Folha de São Paulo. 29/08/08.
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BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1998. COLLAÇO, Rodrigo. O Judiciário fará a sua parte. Folha de São Paulo. 20/05/07. Diário de São Paulo. Trio assalta dois policiais do GOE. 19/05/2007. FALEIROS, Vicente de Paula. A violência contra a pessoa idosa: Ocorrências, Vítimas e Agressores. Brasília: Universa. 2007. Folha de São Paulo. Juíza da Têmis é investigada por decisões sobre “títulos podres”. 24/ 06/2007. FUKS, Betty B. Freud & Cultura. Rio de Janeiro. Jorge Zahar editor. 2003. KOLTAI, Catarina. Disciplina: O Inconsciente e Suas Soluções Sociais. São Paulo: PUC. 2007. _______. Ciências Sociais na Atualidade. Realidades e Imaginários. São Paulo: Editora Paulus. 2007. MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac/Naif.2003. MIRANDA, Pontes de. Garra, mão e dedo. Campinas: Bookseller, 2º ed. 2005. O Estado de São Paulo. Juíza suspeita de ajudar facção é afastada. 22/06/2007. ______. PM investiga apoio a milícias. 6/2/2007. ______. O Sobel que cometeu aquele ato não é o que vocês conhecem. 01/04/2007. ______. Juíza suspeita de ajudar facção é afastada. 22/06/2007. ______. Corrupção na Polícia. Escuta põe sob suspeita cúpula da Polícia Civil Grampos do PF revelam esquema de propina de bingos. 22/06/2007. RIBEIRO, Renato Janine. Folha de São Paulo. 18/02/2007. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Editora Companhia das letras. 2° ed.2003. TORQUATO, Gaudêncio. O Judiciário desce do Olimpo. O Estado de São Paulo. 31/08/08. WERNECK, Felipe. Execução Sumária firmou-se como parte da política de segurança. O Estado de São Paulo. 31/08/08.
COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A PONDERAÇÃO DE VALORES Marta Moreira Luna*
RESUMO O estudo aqui proposto tem como ponto de análise a questão da colisão dos Direitos fundamentais, visto que é cediço não haver hierarquia entre os princípios e pelo fato do ordenamento jurídico, e tanto mais a ordem constitucional, repelir antinomias entre as normas e consequentemente entre os princípios. Os direitos fundamentais por agasalharem o grande mote do constitucionalismo anterior e o contemporâneo, e, ainda mais em um Estado Democrático de Direito, devem ser observados pelo Poder Executivo de forma inconteste. No entanto, muitas vezes tais direitos se chocam ou parecerem se chocarem quanto a determinadas relações jurídicas ou interesse subjetivos, cabendo então ao poder judiciário, resolver a colisão estabelecida entre esses direitos, o qual fará o equacionamento conforme os expedientes hermenêuticos necessários e apropriados quanto a tais direitos haja vista o grau de igualdade entre os mesmos. A maneira prática será a aplicação da concordância prática, onde cada um dos interessados concederá parte do seu direito ao outro de maneira a preservar partes dos direitos atingidos a todos os envolvidos e em termos teóricos a aplicação do princípio da proporcionalidade onde o intérprete sopesará as conseqüências. Palavras chave: Princípios Constitucionais. Regras Constitucionais. Direitos Fundamentais. Colisão de Princípios. ABSTRACT The study proposed here has as its analysis the question of the collision of fundamental rights, since it is musty no hierarchy among the principles and because the legal system, and especially the constitutional order, repel contradictions between the standards and consequently between the principles. The fundamental rights to wrap the big theme of previous and contemporary constitutionalism, and even more so in a democratic state of law must be observed by the Executive Branch so unchallenged. However, these rights often clash or seem to clash on certain legal relationship or interest subjective fitting then to the judiciary, established to resolve the collision between these rights, which will make the equation as the hermeneutic expedients necessary and appropriate as such rights
* Mestre em Direito pela UNIMES; especialista em Direito Empresarial e Estudos dos Problemas Brasileiros pela Universidade Mackenzie e pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Advogada e professora universitária. Reside em Campo Grande (MS).
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considering the degree of equality between them. The practical way is the application of practical agreement, where each party will grant part of his right to another so as to preserve the rights shares hit all those involved in theory and application of the principle of proportionality where the interpreter weigh the consequences . Keywords: Constitutional Principles. Constitutional rules. Fundamental Rights. Collision of Principles
INTRODUÇÃO Os direitos fundamentais têm como marco principal a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1.789, em decorrência da Revolução Francesa, a qual expressou que se considera sem Constituição a sociedade que não assegurar os direitos fundamentais de seus cidadãos e a tripartição dos poderes – art. 16. Como se sabe, toda a evolução dos direitos fundamentais está atrelada à preocupação do ser humano em afastar o governo dos homens para estabelecer o governo da lei, a qual se observou ao longo da história e desenvolvimento do homem, essa via de seu caráter geral e impessoal, ou como filosoficamente foi definida, como isenta de paixões. Sendo então os direitos fundamentais, como o nome mesmo expressa, os direitos que o ser humano tem e deve ter preservado incondicionalmente. No entanto, em algumas situações e relações interpessoais e com reflexos das mesmas no mundo ou no campo jurídico, tais direitos podem se chocar, ou melhor, se colidirem em relação aos indivíduos aos quais são destinados. Restando, assim, a problemática para o aplicador da lei, ou seja, para o operador do direito, sobre qual direito fundamental a preservar, visto que todos eles gozam de igualdade efetiva, sendo esse o objetivo desse estudo, vale dizer, verificar no
ordenamento jurídico pátrio, como as novas normas hermenêuticas vêm estabelecendo o equacionamento de tal problema. Valendo-se do método bibliográfico exploratório, esse estudo será desenvolvido de maneira a apresentar, primeiramente, ainda que de forma sucinta, a evolução dos direitos fundamentais, em seguida desenvolverá breves apontamentos sobre a dualidade entre regras e princípios de direitos fundamentais e a questão da colisão de direitos fundamentais, para ao final, chegar ao melhor equacionamento quando da colisão dos direitos fundamentais. 1. EVOLUÇAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Os direitos fundamentais são traçados por uma trajetória histórico-filosófica que guarda relação direta com a evolução do Estado, visto versarem em uma busca constante do ser humano, em relação aqueles direitos que lhe é inerente enquanto espécie humana, e os direitos estabelecidos pelo poder político. Sendo assim, estabelecidos em gerações de direito fundamentais, e mais precisamente, compondo três gerações, sendo a primeira em busca da liberdade, ou as chamadas liberdades públicas, retratando a libertação do homem do jugo que o Estado Absoluto lhe impunha, a segunda geração como conseqüência e até mesmo para assegurar a liberdade até então con-
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quistada, consignando o estabelecimento dos direitos sociais com o surgimento do Estado Social. E a terceira geração, que está em curso, em que passadas aquelas conquistas e a consagração daqueles direitos, o homem busca o meio e ambiente próprio para o exercício de tais direitos, não mais individualmente, mas sim, de forma coletiva e voltado para as gerações futuras, o que se dá em um Estado Democrático de Direito. A designação desses direitos em gerações e em decorrência de uma evolução histórico-filosófica denota-se um processo longo de conquistas, os quais muitas vezes se originaram em um período da história, mas só se estabelecendo em outra, como se verá, e como ensina Ferreira Filho1 : As três gerações, como o próprio termo gerações indica, são os grandes momentos de conscientização em que se reconhecem “famílias” de direitos. Estes têm assim características jurídicas comuns e peculiares. Ressalve-se, no entanto, que, no concernente ä estrutura, há direitos que, embora reconhecidos num momento histórico posterior, têm a que é típica de direitos de outra geração. Mas isso é um fenômeno excepcional.
De fato, os direitos de primeira geração que postularam pela liberdade do indivíduo, haja vista o jugo que o Estado Absoluto impunha ao homem, foi consagrado na França, em 1.789, com a Revolução Francesa, em decorrência dos ideais iluministas de Jean-Jacques Rousseau.Porém tais aspirações foram antecedidas nos Estados Unidos da América do Norte, com algumas legislações e determinações sobre os direitos das colônias e colonizadores e a Declaration of Rights do Estado de Virgínia, de 1776, decorrentes dos ideais de John Locke, se consagrando com a Constituição
da Federação de 1787. Passando assim, o poder político de um poder absoluto para um Estado de Direito, surgindo o imperío da lei, e a idéia de abstençao do Estado na vida do indvíduo, ou seja, estabelecendo-se a intervençao mínima. Conquistada essa liberdade, mas em decorrência de aspectos econômicos-políticos, com a expansáo do comércio e fatores como a revolução industrial e o poderio econômico nas maos de poucos, acentuaram as desigualdades sociais. No entanto, o povo por conhecer mais seus direitos que propiciaram a garantia de sua liberdade passaram a exigir, por meio de movimentos grevistas em alguns setores do trabalho, a intervençao do Estado, para minimizar aquelas desigualdades, para que de fato a liberdade ali conquistada pudesse efetivamente ser exercida, visto que a exploraçáo econômica tolhia o exercício daquele direito, haja vista, as jornadas de trabalho excessivas contra salários irrisórios, exploraçao da máo de obra feminina e do menor etc.. Estabelecendo-se então os direitos sociais em documentos jurídicos específicos e mais precisamente nos textos constitucionais, sendo eles, salário mínimo, jornada de trabalho mínima, controle do trabalho da mulher e do menor, moradia, saúde etc... Como bem explica Ferreira Filho, tais direitos deixam a ordem dos direitos naturais sendo direitos eminentemente sociais, porém, tendo sidos assegurados nas Constituiçõees dos Estados, e por assegurarem o meios de subsistência do individuo, foram agragados e chamados direito fundamentais de segunda geraçao na Declaraçao Universal dos Direitos do Homem de 1948, veja-se:
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Mas toda essa evoluçao encontrou coroamento na Declaraçao Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Assembleia Geral da Organizaçao das Naçóes Unidas, em 10 de dezembro de 1.948. Esta é uma síntese em que lao a lado se inscrevem os direitos fundamentais, ditos da primeira geraçao — as liberdades —, e os da segunda geraçao — os direitos sociais.2
Como explicitado antes, a evoluçao dos direitos fundamentais, guardam estrita relação com o Estado, o que se deu pela passagem do Estado absoluto para o de Direito igualmente chamado de liberal ou abstencionista, e após, Estado Social, mas precisamente neste denota-se que o homem enquanto cidadáo, náo pariticipa das decisóes do Estado, tal qual idealizado e previsto pelos ideais iluministas e contratualistas como Locke, Rousseau e Montesquieu, haja vista que os direitos sociais foram estabelecidos em regimes fascistas, ou seja, ditatoriais. Surgindo então o Estado democrático de direito, no qual, os homens participam das decisões via o sufrágio universal, estabelecendo-se os direitos chamados de solidariedade, os quais encontram relevância material e formal, visto que fundados na dignidade da pessoa humana, não estando mais o homem preocupado táo somente com a liberdade e os demais direitos sociais, vez que já alcançados, mas sim, passa-se a postular pelo direitos inerentes a coletividade e ainda äs geraçoes futuras em real consagraçao da espécie. Tais direitos ainda que do mesmo modo aos sociais, vêm complementar os direitos de liberdade, consitutindo-se em direitos fundamnetais visto que asseguram ao ser humano ma vida digna e respeito a todos enquanto homem, já que se referem
[37
a paz, ao pleno desenvolvimento, a autodeterminaçao dos povos, ao patrimônio comum da humanidade, ao meio ambiente etc. Ressalta-se que os direitos fundamentais sejam de que geração for, podem colidir, visto que inúmeras relações poderão por em choque tais direitos,ou os mesmos podem colidir facilmente entre si, como exemplifica Fereira Filho, como é o caso do direito a paz e o da autodetermnaçaodos povos3 . Os direitos fundamentais, portanto, positivados na ordem constitucional como é o caso do ordenamento jurídico brasileiro são os direitos inerentes ao homem, reconhecidos como tal pelo ordem estatal, sendo inaliáveis, daí o necessário cuidado hermenêutico quando da colisáo entre tais direitos. 2. DUALIDADE ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A QUESTÃO DA COLISÃO DESSES DIREITOS Como é cediço, dada a sua origem e evolução, os direitos fundamentais guardam carga valorativa, e devido sua positividade constitucional, são normas jurídicas desmembradas em normas-regra e normasprincípios. No tocante a distinção entre regras e princípios, no que se refere aos direitos fundamentais, ensina Alexy, que essa distinção é que proporcionará situar todas as questões referentes aos direitos fundamentais seja para solução dos problemas da dogmática ou mesmo para os problemas da colisão dos direitos fundamentais4 . Para depois afirmar que as normasregras ficam no campo da validade, enquanto as normas-princípios têm força otimizadora devendo ser realizados em
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maior medida, sendo qualitativo, quer dizer a norma-regra se válida deverá ser aplicada, cumprida, já o princípio não, dado o seu caráter axiológico, pois quando da ocorrência de colisão entre eles, poderá ser parcialmente aplicado ou não, uns em relação a outros, nem por isso tirando-lhe a validade, como ocorre entre as normas-regras, que na eventualidade de uma conflitar ou contradizer a outra, uma das duas deverá ser afastada5 . Sendo assim, de fundamental importância, por parte do aplicador do direito, o sopesamento dos valores dos direitos e ou princípios fundamentais em conflito, optando-se pela harmonização de ambos, através da aplicação do chamado princípio da concordância prática, por meio do qual se evitará o sacrifício ou supressão de um direito fundamental em prol de outro, mas sim, se estabelecerá limites e condicionantes recíprocos, como ensina Canotilho6 . De outro modo, na eventualidade da impossibilidade de aplicação do princípio da concordância prática, resta ao intérprete, a aplicação do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, onde, do mesmo modo, sopesará os valores dos direitos fundamentais conflitantes, aplicando-lhes, na medida dos valores e critérios de justiça, bom sen-
so, equidade e moderação, no intuito de minimizar ou mesmo evitar qualquer prevalência ou supressão de direitos fundamentais, em razão da igualdade, jurídica, material e axiológica entres os mesmos. CONCLUSÃO Tem-se, pois, que os direitos humanos, em razão de sua carga valorativa, e origem naturalista, e pela sua longa e sofrida busca de consagração, galgaram o patamar jurídico-político de direitos fundamentais. Previstos e resguardados nos textos constitucionais, e por atingir o homem, em sua essência e natureza humana, são princípios distintos, porém, colidentes, haja vista as relações e interesses jurídicos aos quais se reportam. E por isso mesmo, equiparam-se em grau e gênero dificultando qualquer análise hermenêutica ou aplicação interpretativa no sentido, de excludentes ou hierarquia entre os mesmos. Restando, pois, ao aplicador e intérprete, em caso de conflito entre os direitos fundamentais, pensá-los e aplicá-los de maneira harmoniosa com o fito de preserválos e nunca excluí-los, ainda, ou mais ainda, quando o conflito se der entre os mesmos.
NOTAS 1
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. rev. São Paulo:Saraiva, 2007. p. 6. 2
Idem p. 53
3
Ibidem p. 66
4
Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. 5ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2008 p. 85
5
Ibidem p. 83-87
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6
Canotilho apud Lenza, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 12. ed. rev. , atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 73-74. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. 5ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2008. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. rev. São Paulo:Saraiva, 2007 Lenza, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 12. ed. rev. , atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2008. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Saraiva, 1992.
A CRIAÇÃO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL NOS MEANDROS DO PODER DA DITADURA MILITAR Carlos Magno Mieres Amarilha*
RESUMO A instituição do Estado de Mato Grosso do Sul no contexto da ditadura militar e as manobras políticas da ARENA (Aliança Renovadora Nacional) para manter-se no poder por meio de decretos, com a intenção de desarticular a oposição representada pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Faço uma ponderação do nome inicialmente dado ao novo Estado criado pelos militares de Campo Grande e a troca do nome por Mato Grosso do Sul. Ressalto a importância de entender a criação do estado de Mato Grosso do Sul no contexto do governo de Ernesto Geisel, pois tudo indica que foi uma articulação política dos militares (Lei Falcão, Pacote de Abril), para garantir a eleição do general João Baptista Figueiredo e obter igualmente uma maior bancada no Congresso Nacional e no Senado Federal. Palavras-chave: Poder. Mato Grosso do Sul. Estado de Campo Grande. ABSTRACT The institution of the State of Mato Grosso do Sul in the context of military dictatorship and the political maneuvers of ARENA (National Renewal Alliance) to keep themselves in power by decree, with the intent to disrupt the opposition represented by the MDB (Brazilian Democratic Movement ). I make a trade name originally given to the new state created by the military from Campo Grande and trading name of Mato Grosso do Sul emphasize the importance of understanding the creation of the state of Mato Grosso do Sul in the context of the government of Ernesto Geisel, for all indicates that it was a joint policy of the military (Law Hawk, April Package) to ensure the election of Gen. Joao Baptista Figueiredo, and also obtain most seats in Congress and the Senate. Keywords: Power. Mato Grosso do Sul. State of Campo Grande.
* Professor de História Regional II da UEMS, Amambaí. 2010; este artigo é uma adaptação de uma parte do capítulo 4 [pp. 138-176] de AMARILHA, C. M. M. Os intelectuais e o poder: história, divisionismo e identidade em Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado) Dourados: UFGD, 2006. [p. 255].
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POR MEIO DO ATO INSTITUCIONAL N.º 05: O GOVERNO MILITAR FECHA O CONGRESSO DE O1 Á 14 DE ABRIL DE 1977. As eleições parlamentares de 1974 marcaram um novo quadro político brasileiro. A ascensão do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) partido de oposição ao regime militar principalmente nas regiões sudeste e sul do país. A vitória do MDB nas eleições de 1974 possibilitou eleger 16 das 22 cadeiras senatoriais existente. A euforia do “milagre” econômico tinha acabado, sobrava a insatisfação popular. A imagem pública dos militares como “honestos e competentes” começou a ser questionada. A alta cúpula do governo militar estava preocupado com as eleições de 1978, principalmente para governador, as quais, segundo estipulava a “Constituição” em vigor, deveriam ser diretas. O partido do governo militar a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) articula-se com projetos de mantença no poder. O presidente Ernesto Geisel (19741978), inicia a discussão sobre “distensão lenta e gradual”. A idéia era abrandar o regime, permitir a saída dos militares do poder “lenta e gradual”. Exemplo, o último militar o general João Batista Figueiredo teve o seu mandato ampliado para seis anos. Em 24 de junho de 1976, o governo militar promulgou a Lei Falcão, que impedia o debate político nos meios de comunicação, particularmente no rádio e na televisão. Ainda como estratégia, prevendo uma vitória da oposição nas eleições de 1978, o presidente Ernesto Geisel, no dia 1.° de abril de 1977, decretou tanto o fechamento do Congresso, quanto, por meio do AI-5, uma série de reformas constitucionais.
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O governo militar institucionaliza o “Pacote de Abril”, que alterava as regras eleitorais, ou seja, as bancadas estaduais da Câmara não podiam ter mais do que 55 deputados ou menos que seis. Com isso, os estados do Centro Oeste, Norte e do Nordeste, menos populosos, porém mais controlados pela ARENA, garantiriam uma boa representação no Congresso e no Senado, para poder contrabalançar as bancadas do Sul e Sudeste, onde a oposição era mais expressiva, e o número de eleitores era muito superior. Segundo Marly Motta, “uma das “novidades” do chamado “Pacote de Abril” foi a criação da eleição indireta para 1/3 dos senadores em cada Estado da federação, logo denominados pejorativamente de biônicos”. (MOTTA, 2006, p. 3). Motta analisa que “durante os 14 dias em que o Congresso esteve fechado, foi baixado um conjunto de medidas voltadas principalmente para garantir a preservação da maioria governista no Legislativo, especialmente no Senado”. Conforme Motta o Pacote Abril era Composto de 14 emendas e três artigos novos, além de seis decretos-leis, entre outras medidas:
• eleições indiretas para governador, com ampliação do Colégio Eleitoral; • instituição de sublegendas, em número de três, na eleição direta dos senadores, permitindo à Arena recompor as suas bases e aglutiná-las sob o mesmo teto; • ampliação das bancadas que representavam os estados menos desenvolvidos, nos quais a Arena costumava obter bons resultados eleitorais; • extensão às eleições estaduais e federais da Lei Falcão, que restringia a propaganda eleitoral no rádio e na televisão e fora criada para garantir a vitória governista nas eleições municipais de 1976; • alteração do quorum - de 2/3 para
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maioria simples - para a votação de emendas constitucionais pelo Congresso; • ampliação do mandato presidencial de cinco para seis anos. (MOTTA, 2006, p. 3).
O fato de o país estar submetido a uma ditadura facilitou os intentos estratégicos de Ernesto Geisel já que poderia prescindir de consultas populares sobre a aceitação ou não da medida, o que teria sido impossível na época anterior, isto é, no populismo (1946-1964). Segundo analises da historiadora Marisa Bittar, tão logo assumiu a presidência da República, o general Ernesto Geisel “sua primeira medida em respeito ao assunto foi a fusão Guanabara-Estado do Rio de Janeiro, medida que se enquadrou perfeitamente no panorama geopolítico desenhado por Golbery” (BITTAR, 1997, p. 213). O presidente Ernesto Geisel articulou a união do estado da Guanabara ao Rio de Janeiro; a manobra foi para fortalecer no senado e no Congresso a bancada da ARENA. Assim como exemplo dos seis senadores pertencentes aos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro com a fusão para um único Estado o RJ ficou com três senadores; enquanto que com a criação do Estado de Mato Grosso do Sul institucionaliza mais três senadores, com essa manobra somando-se os senadores de Mato Grosso e de Mato Grosso do Sul são seis senadores da ARENA. Em 15 de outubro de 1978 o MDB apresentou seu candidato ao colégio eleitoral, o general Euler Bentes, que recebeu 266 votos, contra 355 votos do candidato do governo, João Baptista Figueiredo. Ernesto Geisel participou intensamente da campanha da ARENA, que elegeu 15 senadores e 228 deputados federais contra 8 senadores e 196 deputados do MDB; é importante
observar que nas eleições legislativas de 15 de novembro a ARENA, obteve em todo o país 13,1 milhões de votos para o Senado e 15 milhões para a Câmara; o MDB conseguiu 17 milhões de votos para o Senado e 14,8 milhões para a Câmara. O governo garantiu a eleição de João Baptista Figueiredo. As manobras golpistas permitiram que a ARENA continuassem no comando do Congresso e do Senado com ampla maioria. Ernesto Geisel conseguiu que a “distensão” seguisse nos seus moldes, lenta, gradual e segura. Sobre a ação da ditadura militar no estado de Mato Grosso, a historiadora Marisa Bittar assinala que os dirigentes mandante no governo mato-grossense aceitou o regime militar, por acreditar que obteria uma melhoria regional. Para Marisa Bittar, “de fato, os governos militares pós-64 estavam bem apetrechados de estudos geopolíticos sobre o Centro-Oeste. A lógica do “progresso” e do “desenvolvimentismo”, como se observou, vinculada intimamente ao conceito de segurança nacional não descuidaria dos destinos de Mato Grosso” (BITTAR, 1997, p. 213, grifo do autor). De acordo com Bittar os militares usam como estratégia o discurso da segurança nacional para a ocupação dos “espaços vazios” das áreas desintegradas com projeto de “vias de penetração”. O regime autoritário instalado então, pelos objetivos a que se propôs, encarou a secular questão meridional de Mato Grosso. Segundo os ideólogos do regime, não poderia haver segurança nacional sem um alto grau de desenvolvimento econômico, pois a segurança de um país impõe o desenvolvimento de recursos produtivos, a industrialização e uma efetiva utilização dos recursos naturais, uma extensa rede de transportes e comunicações para integrar o território.
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Um país subdesenvolvido, disse Golbery do Couto e Silva, é particularmente vulnerável à estratégia do “inimigo comunista”, por isso, a contra-ofensiva deveria consistir em promover uma rápida arrancada do desenvolvimento econômico para obter o apoio da população. Preocupava o regime, sobretudo, a vulnerabilidade dos amplos espaços vazios, as “vias de penetração” que deviam ser eficazmente “tamponadas”. (BITTAR, 1997, p. 224, GRIFO DO AUTOR).
Em 1977, o governo de Ernesto Geisel decidiu criar um novo estado em Mato Grosso; “[...] dentro da lógica da ditadura, Geisel, simplesmente encarregou os ministros do Interior, Justiça e Planejamento de providenciarem o aparato legal estava tão seguro de sua aprovação” (BITTAR, 1999, p. 130). Assim, os órgãos responsáveis organizaram as medidas necessárias para a implantação do novo Estado Modelo. Decidida nos altos escalões do Exército e na Presidência da República, o ministro do Interior encarregou então a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO) de efetivar as medidas para a divisão e o órgão, por sua vez, solicitou assessoria “a quatro pessoas de expressão de Campo Grande”, Paulo Coelho Machado, Kerman Machado, Cândido Rondon e José Fragelli, que procederam a minucioso levantamento sobre a situação sócio-econômica de Mato Grosso, enfrentando, segundo Paulo Coelho Machado, a resistência do governador José Garcia Neto que “não dava qualquer informação”. Ainda de acordo com ele, esse trabalho que durou três meses, foi grande e realizado também em “sigilo absoluto”. Evidente que todo esse “sigilo” só foi possível
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naquelas circunstâncias do regime militar em que a liberdade de expressão e organização estava impedida. É importante perceber, inclusive, que a divisão oriunda desse contexto, isto é, prescindindo da participação popular, completou a trajetória do “movimento divisionista” como demanda que esteve sempre vinculada às elites políticas e econômicas do sul de Mato Grosso. Nem mesmo a Liga Sul-Mato-Grossense chegou a desempenhar função mobilizadora, especialmente após o golpe militar e mesmo sob o governo Geisel a sua estratégia não consistiu em estimular ações populares, como manifestações políticas, de rua etc. O grupo que auxiliou o governo federal confiava na tática presidencial, tanto que só pensou em reativar a Liga em 1977 (BITTAR, 1997, p. 230).
Os estudos sócio-econômicos levantados pelos Ministérios e pelo grupo sigiloso mato-grossense duraram cerca de três meses. Conforme as fontes levantadas por Marisa Bittar, em entrevista a Revista Plus, Paulo Coelho Machado, conta como aconteceram os bastidores da divisão, convidei alguns companheiros à minha casa e propus a reativação da Liga Sul-Mato-Grossense, que tinha sido desativada em 1934, para reiniciar a luta pela divisão, com os mesmos objetivos e o mesmo estatuto, apenas atualizado” (MACHADO, apud, BITTAR, 1997, p. 231, grifo do autor). Segundo Paulo Coelho Machado, reativada a Liga Sul-MatoGrossense, “[...] então começamos a fazer um trabalho subterrâneo para que saísse a divisão. Montamos a estratégia. Provocamos os cuiabanos para que eles reagissem” (MACHADO, apud, BITTAR, 1997, p. 231) Lélia Rita E. de Figueiredo Ribeiro registra a reativação da liga Sul-MatoGrossense,
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Em março de 1977, reuniu-se na residência de Paulo Machado, grande número de militantes divisionistas e pelo consenso geral foi reestruturada a organização da Liga Sul-Mato-grossense [...]. Representando a maioria exigida pelos estatutos elegemos seguintes associados para composição do Diretório Central: Afonso Simões Corrêa, Abílio Leite de Barros, Eduardo Machado Metelo, Flávio de Andrade, Renato Ribeiro, Elizabete G. Lorentz de Figueiredo, Paulo Coelho Machado, José Fragelli, Kerman Machado, Antonio Lopes Lins, Nelson Benedito Neto, Cândido C. Rondon, Eduardo Contar Filho, Cláudio Fragelli, Nelly Bacha, Lélia Rita de Figueiredo Ribeiro, Haroldo S. Ribeiro, Eloy Pereira, Demósthenes Marfins, Gen. César B. Araújo, e no Diretório Ala Jovem José Antonio Palhano, Eduardo Olímpio Machado Neto e Alexandre G. Lorentz de Figueiredo. Nada mais tendo a tratar foi lavrada a presente ata que, eu secretária assino com o presidente da mesa e demais associados [...] Campo Grande, 25 de março de 1977. (RIBEIRO, 1993, p. 469-471).
A Liga Sul-Mato-Grosense em 1977 deliberou atormentar e incitar os cuiabanos nos bastidores, para que os mesmos pudessem rebater as críticas sobre a divisão, No caso da divisão de Mato Grosso foi o que se deu. Todo o processo foi encaminhado pelos assessores mais próximos de Geisel, cabendo à Liga SulMato-Grossense, recém reativada, montar a estratégia que consistia em “provocar os cuiabanos para que eles reagissem”, criando, assim, falsos “atritos” para “acelerar o processo”. (BITTAR, 1997, p. 231, grifo do autor).
Conforme pondera Marisa Bittar pequenas querelas e manifestações ocorridas em Cuiabá depois de noticiadas eram enviadas a Ernesto Geisel, pela Liga Sul-Mato-Grossense que se empenhou nas manobras e nos arranjos políticos secretos e obscuros, apoiados pela ditadura militar, para criar o novo Estado de Campo Grande. Conforme analise da historiadora Marisa Bittar a criação do estado de Mato Grosso do Sul, foi uma determinação pessoal do presidente general Ernesto Geisel, que determinou criar um novo estado na federação, não precisando dar satisfação, já que as elites mandantes de Mato Grosso apoiavam o governo militar Deste modo, sendo uma decisão tomada de cima para baixo, igualmente trouxe uma gafe, o nome inicialmente lançado pelo governo federal do futuro estado da federação chamava-se: Estado de Campo Grande. Como foi fruto de um ato da ditadura, portanto, não precedida de um processo popular, veio acompanhada de alguns absurdos, entre os quais, o próprio nome, da nova unidade: estado de Campo Grande! Provavelmente, a gafe, do governo federal fosse decorrente do desejo de agradar ao grupo campograndense engajado na Liga, prestigiando a cidade. A correção não tardou. É que, logo fora anunciado, o nome foi contestado em algumas regiões do sul como um privilégio exacerbado de Campo Grande, já que os demais municípios que comporiam o novo estado não se sentiam representados. (BITTAR, 1999, p. 134, grifo meu).
Em 03 de maio de 1977, o presidente Ernesto Geisel, logo após o “pacote de abril”,
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em nome da Segurança Nacional, cria por meio de Lei o “Estado de Campo Grande” e apresenta oficialmente uma nova unidade da federação, sendo a sua capital, a cidade de Campo Grande. Por parte dos “moradores” do novo Estado de Campo Grande, há uma reação ao nome (e não pela divisão ou criação), da nova unidade da federação, por parte dos intelectuais, jornalistas e políticos do interior, principalmente das cidades de Dourados e Corumbá. Sobre essa temática, Lélia Rita E. de Figueiredo Ribeiro, afirma que o nome Campo Grande, dado à nova unidade não agradou a ninguém, “[...] No centro/norte acirrou-se a rivalidade entre os cuiabanos e, no sul, criou um disfarçado despeito, principalmente entre os moradores de Corumbá e Dourados, que não encontravam motivos para que o novo Estado tivesse o mesmo nome da principal cidade sulista” (RIBEIRO, 1993, p. 142). Em Dourados, Wilson Valentim Biasotto lembra que, nesse período de 1977, foi realizada uma reunião para definir o nome do novo estado 1 : “discutíamos o nome para o Estado que nasceria em breve. Muita gente apostava as fichas em Estado de Campo Grande, especialmente os habitantes da capital; no interior falava-se muito em Estado de Maracaju e, com menor entusiasmo, Entre-Rios” (BIASOTTO, 1999, p. 2, grifo do autor). Explica Wilson Valentim Biasotto: “nós estávamos firmando opinião a respeito. Entre-Rios não nos parecia boa opção. É verdade que o Estado constitui-se numa mesopotâmia, mas era coisa batida, o nome fora usado para cidade do Estado e não colara: Entre-Rios passou a chamar-se Rio Brilhante” (BIASOTTO, 1999, p. 2). Wilson Valentim Biasotto, esclarece,
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Estado de Campo Grande também não nos pareceu boa idéia. Representava, é verdade, uma realidade geográfica, boa parte do Estado é composta por terras de campo, mas, ponderávamos, estender o nome da Capital a todo o Estado seria um estímulo muito grande aos já reconhecidamente bairristas campograndenses. (BIASOTTO, 1999, p. 2, grifo do autor).
Deste modo, afirma o autor que, Maracaju também dá nome ao relevo, além da serra temos ainda o planalto com o mesmo nome, mas não nos pareceu correto termos uma serra, um planalto, uma cidade e um estado com o mesmo nome. Além do mais, da mesma forma que o estado não se constitui única e exclusivamente de campos, para chamarse Campo Grande, não é também uma única serra ou planalto. (BIASOTTO, 1999, p. 2).
Para finalizar, Wilson Valentim Biasotto assegura: [...] deveria ser Mato Grosso do Sul, concluímos àquela época. Manteríamos a tradição e o povo, especialmente os mais velhos, guardariam suas lembranças. A separação seria apenas política e territorial, manteríamos os nossos laços, inclusive através do nome. E assim nem precisaríamos abrir mão do nosso símbolo, consagrado através da música: a seriema. (BIASOTTO, 1999, p. 2).
Após a reunião, Valfrido Silva, publicou um artigo no jornal Folha de Dourados, com o título: “Pra quem fica a Seriema?”, que teve repercussão no estado, principalmente em Campo Grande, Cuiabá e Brasília.
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Uma discussão surgida quando o Presidente Geisel anunciou oficialmente a disposição de dividir o velho Mato Grosso, para criar o Estado de Campo Grande. De pronto, a polêmica foi formada, surgiram as pressões políticas e o presidente cedeu, criando o Mato Grosso do Sul, em 11 de outubro de 1977. Naquela ocasião, uma conversa deste jornalista com o professor de história Wilson Biasotto, transformou-se num artigo para o jornal Folha de Dourados, com grande repercussão em Campo Grande e até nos jornais de Cuiabá. O questionamento era, se uma vez persistindo o nome de Estado de Campo Grande, com quem ficaria a Seriema, ave símbolo de nossos campos. Sim, porque numa das canções sertanejas mais cantadas por aqui, fala-se (ou canta-se): “ó Seriema de Mato Grosso, teu canto triste me faz lembrar... daqueles tempos em que eu viajava, sinto saudades de seu cantar...”. O professor Wilson Biasotto sugeria, então, que se revisse a proposta do nome de Estado de Campo Grande ou que se transferisse a Seriema para o Mato Grosso. Mas como a música “Seriema de Mato Grosso” faz referências às cidades de Maracaju e Ponta Porã, não seria justo levar o bichinho embora. Trocar a letra para “Seriema de Campo Grande”, também não resolveria o problema. É claro que as elucubrações do jornalista e do professor não devem ter pesado na decisão da trocar de nome. Era o anseio popular que falava mais alto. E assim começamos a construir nossa história, a história do Mato Grosso do Sul. (SILVA, 1999, p. 2).
Portanto, o reconhecimento da história para o nome do vigésimo sétimo estado da federação: Mato Grosso do Sul. Segundo João Barbosa Rodrigues, “[...] a denominação inicial de Campo Grande, para o novo estado não perdurou por
iniciativa da população, através da Liga Sul Mato-Grossense, que preferiu conservar o Mato Grosso de passado glorioso na vida brasileira” (RODRIGUES, 1985, p. 164, grifo meu). O autor ainda elucida que, “Campo Grande contenta-se em ser a capital político-administrativa. Foi assim que o Estado ficou com a denominação de Mato Grosso do Sul” (Id., p. 164). Quando se fala em população é muito importante ressaltar que eram as elites, políticos, raposas velhas e novas que detinham ou ambicionavam o poder. De acordo com o memorialista João Barbosa Rodrigues, por meio da Liga Sul-Mato-Grossense, que vinha há meses colaborando com os trabalhos de desmembramento, concordou como o nome de MS, mas a capital tinha que ser a cidade morena, “[...] foi taxativa quando em seu artigo 3.° do Cap. I estabeleceu de forma lacônica e contundente: a cidade de Campo Grande é a capital do Estado” (RODRIGUES, 1985, p. 164, grifo do autor). Segundo Campestrini e Guimarães, “[...] dia 24 de agosto de 1977, o então presidente da república Ernesto Geisel enviava a Mensagem n.° 91, de 1977CN, com o projeto de lei complementar de criação do novo Estado. No dia 11 de outubro de 1977, o mesmo presidente assinava, em solenidade histórica, a Lei Complementar n.° 31, criando a Estado de Mato Grosso do Sul pelo desmembramento de área do Estado de Mato Grosso, com a capital em Campo Grande. O anteprojeto criava o Estado de Campo Grande, nome não aceito pelas lideranças sul-mato-grossenses. Qualquer consulta à população sobre o nome do novo Estado colocaria (não havia tempo) em risco o projeto. Assim, optou-se por Mato Grosso do Sul, esperando que Mato Grosso passasse a Mato Grosso do Norte,
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o que não ocorreu. Ainda: em momento algum se falou em divisão do Estado de Mato Grosso e, sim, em criação do Estado de Mato Grosso do Sul, como esta na lei complementar” (CAMPESTRINI; GUIMARÃES, 1991, p. 249; grifo meus).
O novo Estado Mato Grosso do Sul era constituído por 55 municípios e com uma população de 1.400.000 habitantes. Mato Grosso ficava com trinta e oito municípios, com uma população estimada (1977) de 900.000 habitantes, distribuídos em 903.386,1 quilômetros quadrados, Mato Grosso do Sul, abrangia cinqüenta e cinco municípios, com uma população estimada (1977) de 1.400.000 habitantes, em 357.139,9 quilômetros quadrados” (CAMPESTRINI & GUIMARÃES, 2002, p. 248/249).
Para a instituição do novo estado com o nome de Mato Grosso do Sul, segundo as análises de Marisa Bittar, dois aspectos foram contemplados; primeiro, “[...] todos os mato-grossenses do sul ficaram representados, e não apenas Campo Grande, que abarcaria uma parte, jamais o todo” (BITTAR, 1999, p. 134). O outro aspecto assinalado pela historiadora foi que o “[...] passado co-
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mum do sul e do norte não foi desprezado, isto é, tanto o sul quanto o norte, têm raízes históricas, que fazem nutrir sentimento de pertença pelo antigo Mato Grosso. Por isso, o termo Mato Grosso que nomeia os dois estados contempla as origens histórico-culturais comuns” (BITTAR, 1999, p. 135, grifo do autor). Tudo indica, que a história foi decisiva na escolha do nome do novo estado da federação. Mato Grosso do Sul foi o nome que conseguiu “agradar” as lideranças políticas do novo Estado. A criação do estado de Mato Grosso do Sul em 11 de outubro de 1977 se concretizou durante o governo da Ditadura Militar no contexto mundial da “corrida armamentista”, chamada de “Guerra Fria” entre as potencias militares dos Estados Unidos e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. As lideranças do poder mandante do “velho” Mato Grosso eram contra os “comunistas”. A institucionalização de um novo estado de Mato Grosso do Sul foi concretizado nos meandros do poder, realizado nos subterrâneos da ditadura militar, ou seja, feito em acertos de gabinetes dos políticos mandantes. Sem participação popular ou reivindicação da sociedade representativa.
NOTAS 1
Segundo Wilson Valentim Biasotto, “O artigo de Valfrido foi inspirado em uma conversa de fim de tarde entre ele, eu e o professor Ivan Aparecido Manuel, hoje na Unesp” (BIASOTTO, 1999, p. 2). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARILHA, Carlos Magno Mieres. Os intelectuais e o poder: história, divisionismo e identidade em Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado) Dourados: UFGD, 2006. [p. 255].
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BIASOTTO, Wilson Valentim. Prá quem fica a seriema? O progresso, Dourados, 10 maio 1999, p. 2. BITTAR, Marisa. Mato Grosso do Sul: do estado sonhado ao estado construído (1892-1997). 2v. Tese (Doutorado em História Social) – FFLCH/USP, São Paulo, 1997. CAMPESTRINI, Hildebrando; GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. 2. ed. Campo Grande: Assembléia Legislativa de Mato Grosso do Sul, 1991. CASTRO, Celso. Golpe de 1964. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/nav>. Acesso em: 15 maio 2006. COUTINHO, Amélia; GUIDO, Maria Cristina. Movimento político-militar de 1964. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br>. Acesso em: 10 jun. 2006. EVANGELISTA. Helio de Araújo. A fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. Disponível em: <<http://www.feth.ggf.br >. Acesso em: 10 jun. 2006. RODRIGUES, José Barbosa. História de Mato do Grosso do Sul. São Paulo: Editora do Escritor, 1985. RODRIGUES, José Barbosa. Isto é Mato Grosso do sul: Nasce um estado. São Paulo: Vaner Bícego, 1978. 141 p. SILVA, Valfrido. Estado do PT e a seriema. O progresso, Dourados, 10 maio 1999, p. 2.
OS RURALISTAS, A IMPRENSA E O PODER EM AMAMBAI/MS Sivaldo de Macedo Michenco*
RESUMO A imprensa enquanto instituinte de um discurso de verdade e autoridade é um filão profícuo para o estudo das relações de poder. Nesse sentido procura-se neste artigo discutir e analisar a linguagem textual e visual dos diversos meios de comunicação existentes no município de Amambaí (Jornais, revistas, Sites da internet e outros), identificando nesses meios de comunicação certas imposições ideológicas de um dado segmento de classe, ou seja, a classe dos ruralistas, fazendeiros, latifundiários sobre a comunidade. O foco de maior atenção é a discussão sobre um possível processo de demarcação de terras, designado pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), bem como as recentes ocupações feitas pelos sem terra em latifúndios da região. Palavras-Chave: Questão Agrária, Imprensa, Ideologia RESUMEN La prensa al mismo tiempo que se establece un discurso de la verdad y la autoridad una veta fecunda para el estudio del poder. En este sentido, este artículo pretende discutir y analizar el lenguaje de los distintos medios de comunicación textual y visual en la ciudad de Amambaí (periódicos, revistas, sitios de Internet y otros), identificando los imperativos ideológicos determinados medios de comunicación de un determinado segmento clase, es decir, la clase de los agrarios, los agricultores, propietarios de tierras en la comunidad. El foco de mayor atención es la discusión sobre un posible proceso de demarcación de las tierras, designado por la FUNAI (Fundación Nacional del Indio) y las ocupaciones realizadas recientemente por fincas sin tierra en la región. Palabras clave: Cuestión Agraria, Prensa, Ideologia
INTRODUÇÃO O uso da imprensa, somada ao poder político e econômico, estão em voga desde muito tempo no Estado do Mato Grosso do Sul, principalmente no tocante à
questão agrária. Um exemplo clássico fora a revista Brasil - Oeste, um impresso especializado em difundir reportagens sobre técnicas e dicas ao empreendimento agropastoril, além de divulgar reportagens sobre a conjuntura econômica e política da
* Mestrando do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados e Professor do quadro efetivo da Rede Estadual de Ensino do Mato Grosso do Sul.
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região Centro-Oeste, especialmente o antigo Mato Grosso. De acordo com Moreno (2007 p 119) [...] “a revista Brasil – Oeste, editada em São Paulo, com divulgação em Mato Grosso e no estrangeiro, veiculava matéria em defesa da política liberal de colonização”. Se acreditarmos que todo tipo de impresso é uma prática que resulta de uma representação, promovida por um grupo que se organiza com o intuito de difundir idéias e abarcar um público específico, entendemos que esse é um típico caso de lutas de representação. Para Chartier (2001 p. 17) [...] “A imprensa se apresenta como um dos mecanismos pelos quais um grupo se impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio”. Esta idéia está no cerne da questão, ou seja, a maneira pela qual o grupo que exerce poder frente ao jornal “A Gazeta” se articula de modo a influenciar nas políticas públicas e, principalmente, no tocante a questão agrária do município. No dia 03 de novembro do corrente ano tivemos na primeira página, edição nº 1111, do referido jornal uma reportagem dizendo a respeito da ocupação de uma fazenda nos arredores de Amambaí pela FAF (Federação da Agricultura Familiar). Na foto temos uma cerca, que segundo o jornal foi destruída pelos sem terras, o que leva o leitor diretamente ao sentido da invasão, da destruição e da violência; no Site do mesmo jornal denominado de “Gazeta News” tivemos no dia 13 de novembro do corrente ano uma reportagem o mesmo caso onde a mesma se inicia da seguinte forma: “Invasores da Fazenda Piquenique desobedecem ordem judicial”. Novamente com conotação de invasão e violência. No dia 27 do mesmo mês, edição nº 1118, tivemos uma reportagem sobre a ocu-
pação de uma fazenda no município de Coronel Sapucaia, na fronteira com o Paraguai por cerca de 250 Guaranis kaiowas, nesta vemos de forma mais descancarada a imposição ideológica contra o processo de demarcação de terras indígenas realizados pela Funai, reconhecida na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 231 e prevista no decreto nº. 177 de 08 de janeiro de 1996. A reportagem inicia novamente com a conotação de invasão. Observemos: [...] “O clima entre índios e produtores rurais está ficando cada vez pior. Mais uma propriedade rural foi invadida no município de Coronel Sapucaia”.
Vejamos a seguir trechos da mesma reportagem que nos levam a análise de que a uma intenção de justificativa da morte de dois indígenas no município de Paranhos no corrente mês por conflitos fundiários, induzindo o leitor a pensar em um Estado de direito de propriedade sem analisar a questão a fundo. [...] “Ao promover ou defender a invasão de terras por parte dos índios, como vem fazendo algumas ONGs e antropólogos, como forma de pressionar a demarcação das áreas, há uma provocação por derramamento de sangue. Claro! Qualquer um, exercendo seu direito de defender aquilo que é seu, reage a uma ameaça para proteger seu patrimônio ou sua família, ou, enfim, defender aquilo que lhe pertence de fato. Então, se o poder público, o Estado, a nação, não cumpre seu papel de garantir esse direito, é natural que o cidadão tente o fazer”.
Já na edição nº 1119 do dia 01 de dezembro do corrente ano, no início da 2ª página temos uma reportagem intitulada: Efeitos da “demarcação” afirmando que o BIRD
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(Banco Internacional para a Reconstrução do Desenvolvimento) está sendo aconselhado a não liberar verbas para a pavimentação de uma rodovia entre os municípios de Juti e Iguatemi devido ao processo de demarcação. [...] “Um exemplo claro do prejuízo que o impasse das demarcações vem causando está acontecendo em relação à pavimentação da rodovia MS-180, que liga o município de Juti a Iguatemi. A obra foi lançada pelo governador André Puccinelli dentro do pacote de obras denominado de MS Forte há algumas semanas. Os recursos serão alocados através do BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução do Desenvolvimento). Mas como a região está dentro do mapa da demarcação proposto pela FUNAI, o Bird está sendo aconselhado a não liberar o dinheiro”.
Casos como esses são comuns, pois se tratando de um jornal semanal, este periódico é produzido com o intuito de levar o grito dos fazendeiros de uma classe dominante que se vê ameaçada pelo processo de demarcações. Além disso a “sobrevivência” de tal periódico está ligada totalmente à acordos com o governo municipal (servindo como assessoria de imprensa da Prefeitura). De acordo com Jeanneney (2003. p. 219) [...] “ É importante pesquisar, no tocante à imprensa de modo geral, o dinheiro mais ou menos oculto que a irriga e que todas as migalhas que pudermos arrancar do mistério das suas finanças são preciosas”. O GAÚCHO DESBRAVADOR Para redigir este trabalho procuramos também problematizar as conjunturas sócio econômicas historicamente produzidas por uma migração gaúcha, aonde a par-
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tir do início do século XX dará um novo panorama para a região. Para Fabrini (1996 p. 6) [...] “ O processo de ocupação e colonização da região, foi marcada inicialmente pela disputa entre nações (Espanha, Portugal, Paraguai), e, posteriormente, pelo monopólio de arrendamento da Cia mate Laranjeira”. Em sua pesquisa, intitulada “A posse da terra e o sem terra no sul de Mato Grosso do sul – O caso Itaquirai” Fabrini volta-se para a porção leste do Estado, no caso aqui especificado voltamos nossos olhos para a porção oeste do Estado, ou seja, Amambaí e região fronteiriça, colonizada pela já mencionada migração gaúcha. Mas afirmamos desde já que não é intenção neste artigo explanar o processo histórico de ocupação, mas sim analisar a conjectura local proveniente deste processo. Em entrevista concedida por um integrante do Sindicato Rural de Amambai ao Site “Amambaí notícias” em 20 de novembro de 2009, pode perceber como é presente tal monopolização ideológica da visão sulista do “gaúcho desbravador”. [...] “Sangue e Raça de Amambai por R. N. M. As ações da atual Diretoria do Sindicato Rural de Amambaí nos remetem ao passado glorioso da colonização e organização deste Município. O bom sangue “gaúcho” que corria nas veias dos nossos antepassados continua vertendo e dignificando o trabalho de nossa gente que de sol a sol vem fazendo da Terra à fonte de produção e progresso para Amambaí”.
É interessante analisar que no aspecto ideológico o migrante gaúcho traz consigo uma vertente onde podemos discutir a distinção entre terra de negócio e terra de trabalho proposta por José de Souza Martins. Quando se pensa em propriedade
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rural do sul do país, logo se imagina uma família de colonos imigrantes em uma pequena propriedade em que sua família trabalha e sobrevive a partir dessa terra. No caso de Amambaí quando falamos em propriedade rural vem à mente a imagem de um sulista com uma enorme extensão de terra, que transmite para a cidade um status de latifundiário, de poder e de riqueza. Tal status é possível desde que a terra seja transformada em terra de negócio utilizando-se assim a prerrogativa da produção de alimentos para embutir o discurso da dependência da sociedade sobre essa classe. Para Martins (1991 p.54 ) [...] “O monopólio de classe sobre a terra assegura ao capitalista o direito de cobrar da sociedade inteira um tributo pelo uso da terra”. [...] “Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio: quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro”. (Martins, 1991 p. 55).
As desigualdades sociais e econômicas se acentuam também a partir da forte atuação do Estado agindo como artífice que favorece o poder estabelecido. Um exemplo são os financiamentos mirabolantes cedidos pelo Banco do Brasil aos latifundiários. Outro exemplo muito claro é quando o atual governo do Estado do Mato Grosso do Sul, juntamente com organizações como FAMASUL (Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul) e ASSOMASUL (Associação dos Municípios de Mato Grosso do Sul) se posicionam claramente e agem contra a demarcação. [...] “Em todas essas questões o papel
totalizador do Estado moderno é essencial. Ele deve sempre ajustar suas funções reguladoras em sintonia com a dinâmica variável do processo de reprodução socioeconômica, complementando politicamente e reforçando a dominação do capital contra as forças que poderiam desafiar as imensas desigualdades na distribuição e no consumo”. (Meszaros, 2005 p.110).
Além disso, temos também em circulação na cidade um jornal mensal denominado “Força do produtor” estando já em sua edição nº 113 (novembro de 2009). Tal jornal torna-se mais um dos artífices na propagação da ideologia dominante dos ruralistas. O grande orgulho de boa parte dos habitantes vem a ser a grande extensão e força do setor agropecuário. Percebe-se a forte identificação das pessoas com esse setor quando se coloca em discussão sobre a demarcação das terras indígenas ocupadas pelo latifúndio. A população defende bravamente os proprietários de terra, demonstrando um sentimento de lealdade a uma pequena elite, pois acreditam que com seu esforço e trabalho conseguirão fazer parte dessa classe. Desejo esse motivado especialmente pela influencia do discurso pregado por tal elite para sua própria defesa, de que as terras ocupadas foram obtidas a custo de muito esforço de sua família, tal afirmação se reflete bem quando um trabalhador que sobrevive com o mínimo possível coloca um adesivo em seu carro popular que diz: “Produção SIM, Demarcação NÃO!” Esse trabalhador contrasta com as camionetes dos proprietários de terras, e mesmo que trabalhe sua vida inteira, talvez não consiga comprar uma delas. Isso reflete bem as palavras de Lenharo (1986 p. 35) onde o mesmo enfoca que “[...] A grande
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propriedade, qualquer grande propriedade, não é, portanto, combatida; pelo contrário, a capitalista é inclusive desejada”. Para Bhabha (1995, p. 16) “As pessoas não são simplesmente eventos históricos ou componentes de um corpo político patriótico. São também, uma complexa estratégia retórica de referência social em que a alegação de ser representativo provoca uma crise dentro do processo de significação e endereço discursivo”. A partir dessa complexidade e no referencial social do ser cidadão amambaiense verifica-se que no bojo do discurso imperativo da manutenção da estrutura já organizada a cidade acaba dividindo-se também em fronteiras sociais estabelecidas pelo próprio acesso ao capital. Não há aqui a intenção de colocar as pessoas como apenas componente de um evento histórico ou corpo político patriótico, mas sim analisar também que em Amambai o espaço (imobiliário) é regido por certas ideologias. Santos (2006 p. 82) ao conceber o espaço como mercadoria analisa que [...] “A realidade inclui a ideologia e a ideologia é também real. A ideologia, outrora considerada como falsa, portanto não-real, de fato não é algo estranho à realidade, nem é aparência apenas. Ela é mais do que aparência, porque é real”. Nas periferias da cidade se concentra a população subserviente ao capital e na parte central e alta da cidade, conhecida popularmente como “vila dos ricos”, encontramos mansões caríssimas com dois ou três carros de luxo. Ali se concentra principalmente migrantes sulistas que possuem terras na região, comerciantes bem sucedidos, profissionais liberais e afortunados provenientes do intenso tráfico de drogas na região.
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“FOICES E FACÕES” A fim de potencializar as discussões apresentadas neste artigo utilizaremos também a bem conceituada pesquisa realizada por Camila da Silva no ano de 2008, intitulada: Relações de Poder no Jornal “A Gazeta”, até então o único trabalho de pesquisa realizado sobre o assunto, onde consideramos este tópico como um apêndice de seu trabalho. Silva (2008 p. 31) nos enfoca que [...] “a opção pelo recorte indígena em um espaço a parte tem relevância devido ao sensacionalismo ligado à idéia do indígena como ser primitivo, sobretudo quando as notícias publicadas no jornal “A Gazeta” referem-se aos Kaiowá, etnias presentes nos municípios da região. Questões referentes às aldeias prioritariamente fazem parte da página policial, onde são colocados com freqüência notas sobre conflitos entre os próprios indígenas que muitas vezes se dão por meio das chamadas armas brancas: Facas, facões, foices e enxadas; ou em relatos de suicídios que ocorreram nas aldeias Taquapery, Limão Verde e Amambaí”. [...] “O que fica no ar são as seguintes questões com relação às reportagens realizadas sobre os indígenas e a forma como são abordados no jornal: no que adianta saber se na aldeia houveram suicídios, se eles brigaram ou não, como as brigas se deram? Porque o jornal não abre espaço para essas pessoas exporem a sua cultura e a condição a qual foi relegada? Por que não procuram entender os motivos que levam os indígenas a praticarem o suicídio ou a se agredirem em vez de apenas julga-lo e tratar com indiferença esses casos?” (Silva 2008 p. 31).
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Para Moreno (2007 p. 119) [...] “analisar impressos e mídias servem para compreender alguns fenômenos sociais dentro de determinadas conjunturas” e neste caso é visível os quão massacrados pela mídia local são os indígenas. Vejamos mais uma vez como é tratado o caso das demarcações no site do jornal “A Gazeta” denominado como “Gazeta News” publicado no dia 21 de agosto de 2009: [...] “Eu não sei se alguém que está lendo esse Periscópio já teve “saco” de entrar no site do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e dar uma espiada nas baboseiras que eles escrevem, supostamente em defesa dos índios e não por interesses de ONGs e oportunistas, se é que me entendem. Eu acessei o site uma única vez, e mesmo assim obrigado, para ler o que os imbecis haviam comentado sobre um artigo que escrevi. Na verdade, nem encontrei o tal comentário e também me lixei para eles, assim como me lixo para todos aqueles que não aceitam opiniões contrárias às suas, os tais fascistas aos quais eles se referem num trecho que tiveram o cinismo de publicar. E para ficar bem claro, eu não fui ao site procurar essa matéria, apenas a recebi por e.mail enviado por gente que defende o direito à propriedade, democraticamente. E eles ficaram muito bravos com a suspensão das demarcações”.
Tal reportagem vem de encontro com a análise de Silva (2008 p. 32) onde diz: [...] o que se observa é a fabricação da notícia fragmentada e descontextualizada e, além de tudo, muitas vezes utilizando-se de discursos irônicos para instigar o leitor a assimilar a informação a partir de determinado ponto de vista, no caso o ponto de vista do jornal empresa. Assim este jornal dribla as regras propostas de responsabili-
dade social e de comprometimento com a ética da profissão. Isso se explica porque, ao mesmo tempo em que tem de ser ético, quase sempre o jornal conflita com as regras decorrentes da sua inserção no mercado. Sendo assim, ao mesmo tempo, em que o jornalista tenta construir notícias com informação e opinião também precisa de jogo de cintura para lutar pela sobrevivência do jornal-empresa que, na maioria das vezes, baseia - se no senso comum e na manipulação de estereótipos”. “OS PRODUTORES DO PÃO NOSSO DE CADA DIA” Podemos ainda analisar que até o próprio conceito de região é utilizado como arma ideológica dos ruralistas. Segundo Bourdieu (1989 p. 126) “[...] Se a região não existisse como espaço estigmatizado, como província definida pela distância econômica e social (e não geográfica) em relação ao centro, quer dizer, pela privação do capital (material e simbólico) que a capital concentra, não teria que reivindicar a existência”. Vejamos então, partes de uma entrevista de um integrante do Sindicato Rural concedida ao site do jornal “A Gazeta” no dia 11 de agosto de 2009. [...] Opinião “Sul do MS x Funai” por R. N. M. O jogo ainda não terminou. Os prejuízos dos produtores rurais e do Sul do MS como um todo ainda não acabaram, apenas foram minimizados e a partida prorrogada. O filósofo expresidente do Corinthians, Vicente Matheus, já dizia que o jogo só termina quando acaba”.
Neste caso a idéia que perpetua não é a estigmatização da região frente ao centro e sim a região como centro da produção nacional de grãos o que tal classe inculca
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como sendo a que “produz o alimento”. Observemos a seguir na reportagem divulgada na edição do jornal “A Gazeta” do dia 22 de novembro do ano de 2008 tal ideologia da produção do alimento: [...] “Os indiozinhos de papel” por R. N. M. Enquanto tudo isso vem acontecendo no Mato Grosso do Sul, a Economia parou devido à insegurança do Direito de Propriedade. Os Investidores de outros Estados fogem desta Região. As Terras estão desvalorizadas. E segundo dados divulgados na Mídia Estadual o prognostico da safra 2008/2009 já diminuiu em seis por cento. Pobres Indiozinhos de Papel e Pobres de nós que insistimos na Produção de Alimentos, por um BRASIL Verde e Amarelo, sem TERRA VERMELHA”.
Ao usar a imprensa local como artífice tal classe aplica também um certo “terrorismo no imaginário popular” da população de Amambai divulgando que a demarcação vai ser realizada também na área urbana, que os índios vão invadir a cidade, vão criar uma nação guarani, as pessoas vão perder suas casas, seus empregos. Isso tudo acaba sobrecarregando ainda mais de tensão uma disputa já cercada de violência. Vejamos trechos da reportagem publicada no dia 16 de agosto de 2008 intitulada “Terra de ninguém” por A. L. [...] “A grande maioria dos índios nem sabe o que está acontecendo e quem sabe é contra medidas unilaterais e absurdas como essa tentativa de criação de uma nação Guarani, engolindo cidades e levando o caos a uma região cuja população e constituída em sua grande maioria de gente ordeira e trabalhadora que produz e quer apenas viver em paz”.
É visível também uma suposta pre-
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ocupação com a economia e mesmo quando a reportagem tem um tom mais maleável nas suas entrelinhas podemos perceber a ideologia ruralista. Vejamos a seguir trechos de uma reportagem publicada no dia 19 de setembro de 2008: [...] “Editorial Governo e Funai por C. R. A população de Mato Grosso do Sul, principalmente de Amambai e região, torce para que esse diálogo estabelecido entre o Governo de Mato Grosso do Sul e o presidente da Funai dê resultados práticos que possam chegar a uma solução pacífica sobre as demarcações. A nossa economia futura depende muito disso”.
E, além disso, a imprensa local ainda exerce o poder e o direito de opinar como deveriam se proceder os indígenas, como os mesmos deveriam se portar na sociedade capitalista, revelando o ápice do senso comum e da alienação. Prova disto está no trecho da reportagem publicada no dia 26 de julho de 2008 intitulada “Só queremos tranqüilidade” por A. L. Observemos: [...] “Por que eu e você não temos direito de exigir nosso pedaço de terra para, pelo menos, plantar uma mandioquinha? Coisa que os índios não fazem. A maioria dos indígenas é formada por gente decente, mas que infelizmente não evoluiu o necessário para enfrentar a vida moderna, como por exemplo, fizeram os índios nos Estados Unidos. Lá eles são pecuaristas, comerciantes e até existe uma reserva em que exploram o jogo, com vários cassinos – permitido naquele país – e estão riquíssimos. Aqui, o índio, sempre manipulado por malandros, quer mais terra para arrendar para o branco trabalhador”.
Nas palavras de Meszaros (2002) encontramos, no movimento dialético da
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história, “justificativas” para tais ações e manutenção da estrutura: [...] “A manutenção da estabilidade de um sistema erigido sobre toda uma série de antagonismos estruturais explosivos é algo absolutamente impensável sem superposição de camadas artificiais de complexidade, cuja função essencial é a perpetuação da ordem dominante e o retardamento do “momento da verdade”. Não obstante, como a ativação dos limites absolutos do capital, enquanto sistema de reprodução plausível surgiu em nosso horizonte histórico, já não poderá evitar por muito mais tempo o enfrentamento da questão de como superar os pressupostos estruturais destrutivos do modo estabelecido de controle sociometabólico”. (Meszaros, 2002, p. 217)
CONSIDERAÇÕES FINAIS Consideramos que o poderio econômico dessa classe, exorbitantemente concentrado, tem repercussão direta na vida política e social da comunidade e que os in-
teresses econômicos e as articulações políticas decorrentes deste poder refletem diretamente na qualidade da informação oferecida pelos meios de comunicação ao público de Amambai. De modo geral, as formas de representação presentes nas notícias dos diversos meios de comunicação de Amambaí contribuem para a permanência da estrutura social calcada no latifúndio agro exportador. No Brasil, a cobertura política dos grandes veículos nos últimos anos mal consegue disfarçar seus interesses econômicos e políticos, imagine então em uma realidade local como a de Amambai, onde o poder dos ruralistas é mais visível e avassalador. Enfim, num mundo marcado pelo poder simbólico e pelas representações a imprensa foi e continua sendo um dos veículos de construção do mundo social na medida em que interfere nas representações e nas relações humanas com as estruturas sociais já implantadas, e hoje falar da necessidade de democratizar a mídia implica, diretamente, falar da necessidade de democratizar o poder político e econômico.
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MATO GROSSO DO SUL Poder, Memórias & Identidades
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“Um importante registro da história de famílias oriundas de outros estados ou países, mas que atualmente residem na Grande Dourados, testemunhos da formação de cidades, vilas e povoados da parte sul de Mato Grosso do Sul. Conta também a vida dos professores na época do “velho” Mato Grosso, em artigos e entrevistas resultados do empenho de educadores da rede pública e privada de ensino e estudantes universitários da região da Grande Dourados.”