Revista Arandu # 51

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82X N 1415-4 010 - ISS 2 ./ r b -A ev.-Mar. Nº 51 - F Ano 13 -

Suicídio indígena, segurança pública e inquérito policial na região da Grande Dourados

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I SSN 1415 - 482X

9 771415 482002



nicanorcoelho@gmail.com

Dourados

Ano 13 - No 51

Pรกgs. 1-132

Fev.-Mar.-Abr./2010


[ CARO LEITOR

ACARO

LEITOR

Revista Arandu consolida-se como publicação científica de qualidade superior, com a publicação de artigos dos mais importantes pesquisadores de Mato Grosso do Sul e de várias partes do país. Agora, aos quatorze anos de existência, a Revista Arandu torna-se um referência para a região da Grande Dourados, onde existe um dos mais importantes pólos de educação superior, com duas universidades privadas e duas públicas. Nesta edição número 51, publicamos uma série de artigos nas áreas do Direito, Serviço Social, Comunicação, Educação e Literatura. Destacamos os artigos do professor da UEMS, André Martins Barbosa, que abordam o “suicídio indígena, a segurança pública e o inquérito policial” e também os “diretos sociais no contexto do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania”. Eliotério Fachin Dias fala em seu artigo sobre “a proteção internacional dos direitos humanos e as violações dos direitos sociais”, enquanto que Ainda Francisca de Lima aborda em seus textos a “inform@Cão: uma experiência de comunicação organizacional por meio da newsletter do Grupo Fauna de Proteção aos Animais de Ponta Grossa” e o “Cinturão Verde de Cianorte pelo Century Park – uma cópia do American way of life no que restou da mata subtropical”. Tânia Teixeira Laky disserta sobre o corpo da mulher em situação de privação de liberdade. Djanira Pereira da Silva Chaves, em seu artigo “O medo e as dificuldades da criança” propõe uma reflexão sobre o fracasso escolar e suas conseqüências na sociedade. O “estudo da narrativa literária em Quarto de Despejo” é o escopo do artigo escrito por Ana Karoliny Teixeira da Costa e Rogério Silva Pereira. E finalmente, “a metalinguagem no livro Gramática Expositiva do Chão, de Manoel de Barros” é o tema do artigo de Damaris Pereira Ribeiro dos Santos. Tenham uma boa leitura! Nicanor Coelho Editor

Ano 13 • No 51 • Fev.-Mar.-Abr./2010 ISSN 1415-482X

Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico ANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO e PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO

EDITADO POR

Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sl. 01 Tel.: (67) 3423-0020 / 9238-0022 Dourados, MS CEP 79804-970 Caixa Postal 475 CNPJ 06.115.732/0001-03

Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - No 51 (Fev.Mar.-Abr./2010). Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2010. Trimestral ISSN 1415-482X 1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura - Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu


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[ SUMÁRIO

Suicídio indígena, segurança pública e inquérito policial na região da Grande Dourados ....................... 5 André Martins Barbosa A proteção internacional dos Direitos Humanos e as violações dos Direitos Sociais ................................................ 27 Eliotério Fachin Dias Inform@Cão: uma experiência de comunicação organizacional por meio da newsletter do Grupo Fauna de proteção aos animais, de Ponta Grossa - PR ............................ 38 Aida Franco de Lima O corpo da mulher em situação de privação de liberdade: o feminino encarcerado do descaso ao abandono ........................ 52 Tânia Teixeira Laky Direitos Sociais: PRONASCI / SUAS ........................................... 65 André Martins Barbosa O cinturão verde de Cianorte abocanhado pelo Century Park – uma cópia do American way of life no que restou da Mata Subtropical ............................................... 84 Aida Franco de Lima

INDEXAÇÃO •

CAPES - Classificada na Lista Qualis www.capes.gov.br

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• ISSN - International Standard Serial Number • Latindex - www.latindex.org • GeoDados - www.geodados.uem.br


O medo e as dificuldades da criança: uma reflexão sobre o fracasso escolar e suas conseqüências na sociedade .............. 96 Djanira Pereira da Silva Chaves Vozes marginalizadas: estudo da narrativa literária em Quarto de despejo (1960) ........................ 109 Ana Karoliny Teixeira da Costa Rogério Silva Pereira A Metalinguagem no livro Gramática Expositiva do Chão, de Manoel de Barros ........................................................................... 123 Damaris Pereira Ribeiro dos Santos

Foto da capa: Divulgação Cena do filme “Terra Vermelha” (BirdWatchers - La terra degli uomini rossi, 2008), dirigido por Marco Bechis e filmado em Dourados-MS.


SUICÍDIO INDÍGENA, SEGURANÇA PÚBLICA E INQUÉRITO POLICIAL NA REGIÃO DA GRANDE DOURADOS André Martins BARBOSA1 RESUMO Suicídio Indígena e investigação policial através de uma polícia especializada na região da Grande Dourados no Estado de Mato Grosso do Sul sob a Pragmática de uma Polícia Unificada que atende o impositivo do Estado fornecer uma Segurança Pública isonômica e eficaz a todos os habitantes da região através de uma eficaz investigação policial através do Inquérito Policial. Palavras-chaves: Suicídio Indígena, Grande Dourados, Segurança Pública, D.O.F., Inquérito Policial. ABSTRACT Indigenous suicide and police investigation through a specialized police in the Greater Golden State of Mato Grosso do Sul in the Pragmatics of a Unified Police serving the imposing of the state Public Safety to provide an effective isonomically and all the inhabitants of the region through an effective police investigation through the police inquiry. Keywords: Indigenous suicide, Grande Dourados, Public Safety, DOF, Police Investigations. 1. INTRODUÇÃO “Memento mori”. (Lembra-te que morrerás – saudação dos monges trapistas).

O presente trabalho pretende tecer, sob uma visão resultante da leitura da 1

obra O Suicídio de Emile Durkheim, (sem deixar de obter informações em outras fontes fundamentais para entender o contexto) uma pequena correlação entre o suicídio indígena que acontece na reserva indígena na região da Grande Dourados,(que inclui os municípios circunvizinhos e que, inclusive, fazem fronteira

Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito, Dr. em Ciências Sociais e Doutorando em Direito pela PUC-SP.


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com o Paraguai) estado de Mato Grosso do Sul e a atividade policial desenvolvida antes e depois do evento morte e as praticas policiais do Departamento de Operações da Fronteira, a singular polícia que unifica as instituições policiais civis e militares. Algumas pesquisas foram realizadas por antropólogos, psicólogos e sociólogos entre os povos Kaiowá e Nhandeva. Na reserva de Dourados habitam as tribos Caiwás (Kaiwás ou Kaiowá), Guaranis e Terenas, havendo também Bororos e Kadiwéus. Muitos aspectos ainda estão por ser pesquisados e o ato suicida, a forma jejuvy, ainda não recebeu nenhuma atenção especial por parte das autoridades policiais, não obstante já haver uma consciência de que é um fenômeno de grande incidência entre a população indígena que conta em sua plenitude com aproximadamente dez mil indivíduos dentro de um total, na população douradense de aproximadamente 186.357 habitantes1 . Ocorre que nem toda a população indígena é encontrada na aldeia. Ocupa uma razoável parcela da área urbana limítrofe a reserva e nos municípios circunvizinhos que formam a região da Grande Dourados, como Itaporã, Douradina, Maracajú, Jardim, Antonio João entre outros. A população indígena não está uniformemente distribuída e as etnias que a compõem não são de imediata identificação pelos que não são especialistas da área. Para a comunidade não indígena esta população é denominada simplesmente de bugre, índio, bororó ou caiuá. E o tratamento dispensado pelos organismos policiais não difere muito desta visão inicial, não existindo unidades especializadas para o atendimento a esta

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população que apresenta costumes, raça, religião e até línguas diversas. Embora as solicitações por parte da comunidade indígena -que continua a reivindicar aspectos da cidadania- já tenham sido veiculadas pela imprensa e até pedidos por parte do legislativo local, ainda não foram mobilizadas as forças governamentais no sentido específico de atender estas reclamações e a atividade policial no que tange aos crimes evolvendo indígenas, continua sem tratamento diferenciado. E nunca é demais analisar um fenômeno tão constrangedor fora do círculo estritamente jurídico-policial, recorrendo a concepção de Émile Durkheim e aos seus experientes e doutos estudiosos2 atentos aos aspectos penais que reverberam na espera processual penal, pois praticado o delito, deliberado pela sociedade como tal, incumbe ao aparato jurídico repressor, investigar e indicar autoria e materialidade do fato típico, não obstante, a visão de Durkheim, sob o ângulo de uma análise mais recente do Professor do Departamento de Sociologia da PUC-SP, ser uma concepção de direito simplista3 mesmo porque as estruturas jurídicas evoluíram muito desde então. E acresce o fato em como a nova ordem que emerge da economia de mercado que vem alterando os modos de vida tradicionais, inclusive indígenas, provocando sobressaltos e adaptações forçadas e até desastrosas para diversas etnias. Esta visão crítica é fundamental para apreender a realidade do entorno dos municípios nacionais e o de Dourados onde está a sede da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, distante apenas dez quilômetros da reserva indígena, tendo em


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seus estatutos a previsão de cotas para alunos indígenas, na ordem de dez por cento das vagas oferecidas. 2. SUICÍDIO “O homem é o único animal que sabe que deve morrer. Triste conhecimento, mas necessário, pois ele tem idéias.” Voltaire

Suicídio (do latim sui caedere) termo criado por Desfontaines em 1737 e tem em David Hume um dos primeiros escritores com sua obra Essays on suicide and immortality. A ação voluntária onde um ser humano, por ação ou omissão, logrando êxito, ceifa a própria vida, é denominada de suicídio. Ou nas palavras de Durkheim: “chama – se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vitima e que ela sabia que produziria esse resultado”4 . É ato raro, mas não incomum e é fenômeno conhecido por todas as épocas e civilizações. Exemplos clássicos são o de Cleópatra que se deixou picar por uma áspide e o de Mishima, escritor nipônico que comete o haraquiri diante da tropa formada, devidamente uniformizado e em nome de um ideal de preservação dos valores tradicionais japoneses5 . Os motivos que levam o indivíduo a praticar tal ação extrema contra a própria existência podem variar quase ao infinito, mas são agrupados em categorias geralmente constantes e definidos6 . Sem dúvida, vulgarmente, o suicídio é, antes de tudo, o ato de desespero de um homem que não faz mais questão de viver”. ( p.

13).7 Entre os motivos agrupados são encontrados os desgostos familiares, miséria e contratempos financeiros, doenças mentais, remorso e medo de condenação por crimes praticados, alcoolismo, amor, ciúmes, devassidão, má conduta, dores físicas, jogo, loucura religiosa e uma infinidade de causas que podem ser simplesmente agrupadas sob a categoria de causas desconhecidas. E a mídia não poderia deixar de explorar o tema para fundamentar também roteiros de filmes temáticos. E as causas de suicídio como se vê são numerosas e complexas e, numa primeira visão, podem ser analisadas sob três aspectos. O biológico, o psicológico e o sociológico. No primeiro sentido há indícios de que o comportamento suicida acontece em algumas famílias, mais do que em outras, sugerindo que fatores biológicos e genéticos predispõem ao evento. Certas pessoas nascem com disfunções psiquiátricas como o alcoolismo e esquizofrenia que são fatores que aumentam o risco. Os fatores psicológicos estão nos desequilíbrios mentais, nas melancolias, delírios crônicos e outras anomalias. O que nos interessa, e ao que tudo indica é a moldura que enfeixa os outros fatores, é o sentido sociológico, e socialmente é um ato que reproduz no marco de situações anômicas em que os indivíduos se vêem forçados ao ato para fugir de conflitos ou tensões inter-humanas, para os mesmos insuportáveis. Durkheim entendia que a causa só podia ser sociológica, eliminando, mas não desconhecendo, as causas biológicas e psicológicas. E enumerou três tipos de suicidas: o egoís-


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ta, o altruísta e o anômico. No primeiro a morte ocorre como escape ao sofrimento. No segundo ocorre para não dar trabalho aos demais membros da comunidade ou outro motivo meritório socialmente e no terceiro tipo a morte ocorre em decorrência de desequilí-brios de ordem econômica e social como, por exemplo, a Revolução Industrial que tirou empregos de muitas pessoas, estimulando o suicídio. A forma como se vê o ato varia de sociedade para sociedade. Um amplo número de sociedades, incluindo as de formação cristã, trata o assunto como tabu e como crime. O que torna difícil a condenação já que o criminoso é vitima, e este escapa pela desistência a vida, a uma provável condenação. A punição em algumas civilizações incide na proibição da realização dos ritos fúnebres e no vilipêndio ao cadáver, situação retratada no épico Cruzada8 , dirigido por Ridley Scott. O fato social não é somente um ato combatido pelas religiões, mas também é um problema de saúde pública e as estatísticas são utilizadas como ferramentas para melhor visualizar a realidade social. Durkheim não se preocupou em excesso em saber por que e em que eles de diferenciam uns dos outros, mas fundamentalmente quais são as condições sociais de que dependiam. E mesmo para ele era “sempre um problema difícil definir a causa de um fenômeno”9 . Não entraremos também nas distinções das diversas categorias de suicídio, mas tendo como um fato dado o que fazer com a ocorrência morte sob a perspectiva policial. Outras perspectivas podem ser problematizadas pois que também é um problema

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de saúde pública e religiosa. O ato é considerado um pecado em muitas religiões e crime em algumas legislações sendo que no brasileiro o auxílio e instigação ao suicídio são apenados. Agostinho de Hipona (354- 430) tomou o posicionamento segundo o qual os cristãos não podem cometer suicídio já que a ação estaria ferindo o mandamento ”não matarás” que proíbe matar não só os outros mas a nós mesmos em primeiro lugar. Asseverando que é um fenômeno exclusivamente humano sendo negado aos animais este comportamento, algumas culturas vêem o ato como uma maneira honrosa de escapar a situações vergonhosas ou desesperadoras, encontrando assim honra no vexame. Os japoneses praticam o seppuku visando limpar o nome da família na sociedade não manchando o clã com o ato ignóbil porventura cometido anteriormente pelo suicída que com o ato deixa de ser execrado e passa a ser relativamente honrado. Alguns comportamentos acompanham o ritual suicida e entre eles está o de deixar uma missiva ou bilhete para explicar o ato, chegando na contemporaneidade ao refinamento de se filmar e gravar o evento. Isto comprova que é um ato premeditado, mas não completamente racional mesmo que haja um esforço do suicída para levar a acreditar nesta hipótese de racionalidade. O suicídio não escolhe “classe”. Há indícios que o meio cultural influencie as taxas de suicídio. Altos níveis de coesão social e nacional reduzem as taxas de suicídio. Neste sentido, os estudos de Durkheim vêm ao encontro de sua posição conservadora que vislumbrava a pos-


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sibilidade da sociedade não entrar em conflito, negando o individuo e o colocando como produto de determinada sociedade. Durkheim parte das condições empíricas, das condições reais da existência e lança mão também das estatísticas disponíveis para construir a sua visão do real onde evita a luta de classes. Faz o caminho inverso ao estudar o suicídio. Parte de um ato individual, solitário, para a partir da união de diversos casos análogos estatisticamente, procurar princípios e leis que possam compreender a realidade, chegando as taxas, que são valores coletivos e não individuais. Não se preocupa em descortinar as intenções do suicídio porque estas são difíceis de captar, vão desaparecer com o evento morte mesmo que sejam escritas cartas relatando o motivo. E Durkheim tinha uma visão muito critica sobre as estatísticas10 . Para ele os aspectos morais não podem ser captados com precisão, mas podem ser captadas as imoralidades, as taxas de imoralidade já que há um controle dos eventos denominados imorais pela sociedade. A função é criar a solidariedade. Solidariedade até mecânica e o crime escapa a esta função já que quebra a coesão social e é alcançado como algo a ser combatido pela média das consciências. Esta média, a consciência coletiva não permite o desenvolvimento de uma consciência individual. A solidariedade -que produz a integração- é o objetivo da sociologia e também captar esta integração ou o seu inverso, a desintegração que pode ocorrer como fenômeno, no suicídio, com suas taxas em ascensão ou declínio. As estruturas jurídicas ao abordar o crime, (a rup-

tura da integração) tem caráter repressivo ou restitutivo. O segundo aspecto de difícil colmatação, pois como restituir uma vida, ou vingar o fato dela ser ceifado voluntariamente, quando autor e vítima se confundem? O direito vai apenas elencar o que é crime e o tipo de crime. E também as condições, todas elas em que o evento ocorreu. A Sociologia não vai se preocupar com os estados psíquicos individuais e tão pouco filosofar sobre as razões do viver ou o porque das coisas. Vai a Sociologia se preocupar com os fatos sociais, com as regularidades que apontam uma correlação entre causa e efeito. Vai a sociologia auxiliar na medida em que detecta nas sociedades o que há, na sua constituição e permanência, de imperativo, de coercitivo e de constante que determina as maneiras de sentir, pensar e agir comuns. E são estas características que produzem a integração em virtude da qual as taxas do suicídio, embora sendo um fenômeno cultural universal, podem variar para mais ou para menos. E, portanto, havendo variabilidade, conforme as condições determinantes se apresentem ou não podem ser administradas pelo aparelho estatal que controla os aspectos políticos e também econômicos. Portanto é de responsabilidade do estado, dentro das possibilidades materiais que dispõe, minorar até certa medida o índice de suicídios bem como, em ocorrendo, arrefecer seus efeitos e melhorar o atendimento as vítimas indiretas, geralmente familiares e círculo afetivo e da comunidade mais próxima. E esta premissa deve vigorar para todos os que compõem o agrupamento social, inclusive indígena, aldeado ou não.


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2.1 Suicídio Indígena O suicídio entre os indígenas começou a ser noticiado com regularidade nas últimas duas décadas, mas já eram de conhecimento dos profissionais da Funasa a mais tempo e é uma prática que somente recentemente começa a ser bem estudada em todo o país e em especial no estado de Mato Grosso do Sul, no município de Dourados onde se encontra a maior população indígena do país dentro de uma mesma reserva, agravado pela circunstância de estar situada próxima a área urbana. Aproximadamente dez mil índios de cinco etnias diferentes e com a peculiaridade de se deslocarem com freqüência para reservas no vizinho país fronteiriço, o Paraguai, distante apenas cem quilômetros da aldeia e onde está instalada outra grande reserva indígena, a do Picirí. O deslocamento acontece a pé sem qualquer tipo de veículo, inclusive durante o período noturno e pela estrada de ferro desativada da antiga Noroeste do Brasil. Estas e outras circunstâncias contribuem para que o índice de crimes11 entre os indígenas seja alto e as investigações de difícil realização o que confirma ainda hoje as precauções de Durkheim. Não é sempre precisa a distinção entre homicídio e suicídio e inúmeros homicídios têm sido perpetrados e ocultados sob a aparência de suicídio. O que é de difícil comprovação dadas as circunstâncias em que são levadas a termo as perícias no local do crime e os laudos necroscópicos e que nem sempre foram realizados, dando margem a imprecisões nas estatísticas. Já alertava

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Durkheim que “constantemente acontece que categorias de fatos muitos disparatados sejam reunidos indistintamente sob uma mesma rubrica, ou que realidades de mesma natureza recebam nomes diferentes”(p.09). E a prevenção não só atinge a estatística, mas a vê como fator positivo para apreender a realidade que compõe o conjunto da sociedade e “que cada número exprime é um certo estado de alma coletiva” (p.7)12 E esta alma coletiva é de percepção somente acessível aos sociólogos que conseguem ver a totalidade dos fenômenos que sob a ótica policial só surgem como homicídio, suicídio, tentativas, embriagues, rixas, dano, lesão corporal ou outros delitos que são freqüentemente cometidos no interior do aldeamento. Até a presença dos policiais é dificultada e o consumo de álcool13 um dos fatores agravantes no comportamento, pois que a facilidade com que se obtém bebida alcoólica é bem diversa no sistema tradicional da fabricação da chicha, a “pinga” indígena proveniente da fermentação do milho. Será que podemos ver na ação guarani pela desatenção aos próprios filhos uma modalidade do suicídio anômico? O suicídio de uma raça que sob o aspecto jurídico, individualmente tratado aparece como homicídio culposo praticado na modalidade de negligência?14 As condições de vida coletiva podem ser o fator preponderante para a morbidade severa dos casos. Está mais do que claro que as dimensões do problema ainda não foram devidamente percebidos nem as respostas necessárias ao mesmo visto que em 2007 o número de assassinatos entre índios guaranis e caiuás


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dobrou em relação ao ano anterior. Isto ocorre na esteira do avançado estágio de etnocídio e assimilação em decorrência da desorganização provocada pela colonização por parte do homem branco nas terras ocupadas anteriormente pelos silvícolas, que estimam os estudiosos, tinham uma população de até quatro milhões de indivíduos, (somente a população Guarani) à época do descobrimento. A resistência ao avanço do homem branco sempre se fez presente por diversas estratégias e talvez agora se manifeste em uma forma inusitada, o suicídio. Os guaranis hoje são quase quarenta mil, ainda o maior grupo nativo brasileiro, dos cerca de trezentos mil indígenas existentes no país. Devemos recordar que os cauiás habitam hoje uma área onde a floresta inexiste e praticamente desapareceu da região da Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul. Há, sob a perspectiva do homem “civilizado” uma vasta área agricultável, mas da perspectiva dos guaranis (Nhandeva) uma terra arrasada e as condições em que constituíam sua estrutura tribal, familiar se tornou por demais prejudicada15 . Além da estrutura desarticulada, confinados em reservas de área exígua para sua cultura há também a presença de pequenos grupos, fora das áreas reconhecidas, agregados ao antigo território de que dispunham bem como ao modo de ocupação e vida nômade em parte. Os “índios de fazenda” e de beira de estrada são uma expressão triste de uma realidade que evidencia uma resistência de grupos esparsos que continuam enfrentando, sem a proteção do estado, a força do agro-negócio que os que com-

pelem a deixarem o (não mais seu porque não possuem título de propriedade) território. E sob esta pressão vão se estabelecendo provisoriamente as margens das rodovias onde há proibição governamental para plantio e criação de gado. E ainda assim em terras ainda pouco cobiçadas pelo agro-negócio, como as margens da rodovia entre Maracajú e Guia Lopes, em plena Serra de Maracajú. Região de pedras onde os tratores têm a ação prejudicada. Uma pressão que a cultura sofre e que escapa para a ponta de uma corda de nylon ensebado ou uma lata de Ratumim, veneno poderoso encontrado facilmente nas fazendas em que para continuar vivendo são obrigados a mendigar ou furtar gado na modalidade de caça. Para sobreviver os grupos que outrora vagueavam livremente pelos campos de entre rios (Rio Brilhante e Vacaria) florestas e cerrados da região, Serras de Amambaí, de Maracajú, por áreas que compreendiam os rios Dourados, Iguatemi e Apa agora se encontram obrigados ao confinamento em reservas diminutas, desprovidas da vegetação original e obrigados a agricultura familiar, ao aluguel da força de trabalho nas fazendas e canaviais bem como, em menor escala a pecuária rústica, a caça medíocre, a pesca insuficiente, o artesanato vendido em beira de estrada, a atividade predatória de espécimes silvestres para venda, a submissão a doações assistenciais e a mendicância. Os espaços que sobraram como reservas imitam os capões de cerrado, ralos, longe uns dos outros e as famílias não podem mais se “espalhar” como se “espalhavam” antes e a impossibilidade de seu


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antigo modo de vida é evidente desesperadora16 . O risco de não ser nada na sociedade branca, mista, que o cerca, comprime e parece que vai a qualquer momento o levar a extinção é patente. É como se fossem uma mercadoria barata arregimentada pelos gatos para os levarem ao produtor do etanol e nesta tarefa são comboiados pelos próprios irmãos de raça. O fato de ser visto como pobre, primitivo, sem perspectiva, num mundo cercado de brancos por todos os lados, inclusive no espaço aéreo faz com que as portas do suicídio surjam como uma saída digna. E o jejuvy é a maneira mais característica dessa forma de sucumbir por vontade própria17 . O veneno é utilizado, mas raramente. Além do jejuvy e do veneno, não se tem observado o emprego de nenhum outro método, diferentemente da sociedade estabelecida bem próxima à aldeia. Isto implica a tendência de um “padrão” bastante rígido e antigo já que há referências do jesuíta Ruiz de Montoya a enforcamentos há cinco séculos. As estatísticas demonstram que os que praticam o jejuvy são preferencialmente pessoas jovens, independentes de sexo ou status matrimonial. Isto diverge das observações feitas por Durkheim no que tange ao suicídio egoísta e que correlaciona a pouca idade como um dos fatores ao não cometimento do suicídio, (pelo menos é o que as estatísticas indicavam na França)18 . O suicídio, na modalidade jejuvy é um ato individual obedecendo a forte motivação cultural que se manifesta na intimidade do indivíduo e por se tratar de um ato anti-social, que envolve dor e até polícia (que nem aos indígenas agrada), é

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praticado em isolamento, em capões de mato fechado e ao anoitecer o que faz com que a percepção do fato só ocorra na manhã do dia subseqüente. O que se tem observado é que o jejuvy acontece sem alarme e, às vezes, quando um pretende o ato o comenta com um amigo, raramente o praticam. Está evidente a presença de um forte stress, um alto grau de tensão. E os jovens de aldeia por se deslocarem com mais freqüência até a área urbana de Dourados sofrem este impacto mais fortemente, pois em havendo uma tendência à dissolução de seu modo tradicional de coexistência procuram o modo branco de integração, dentro dos Shoppings, ruas e avenidas onde a solidariedade é escassa até entre os civilizados. E os jovens são mais afetados por esta necessidade de integração. E isto não invaliliza em nada as observações de Durkhein19 apenas nos faz ficar atentos as circunstâncias em que pode acontecer o fenômeno. E querendo o conhecimento, a afirmação da individualidade, o jovem não a encontrando nos modos de vida tradicionais, dissolvidos gradativamente pelo contato com a sociedade branca, busca esta integração entre os civilizados e nesta sociedade, sendo considerado primitivo, mero mão-de-obra barata e sem perspectiva, volta a aldeia para se afirmar como ser humano através do jejuvy. Agora desvenda os motivos, se não altruístas ou egoístas, que levam a juventude Guarani, Cuiuá e terenas a optar por esta alternativa de morte, como alternativa para a vida é tarefa dificílima, até para sociólogos, pois os mortos não falam.


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3. A Grande Dourados em Mato Grosso do Sul Quando descrevemos a Grande Dourados no estado de Mato Grosso do Sul na verdade estamos descrevendo por primeiro o município de Dourados, a segunda cidade em importância econômica e por muitos denominada a detentora da “alma do estado”. Este epíteto é devido ao fato de que influencia diretamente mais de trinta outros municípios e ainda parte do Paraguai. Com uma área de 4.086 Km2 e população de 186.357 habitantes, (IBGE/ 2006 MS) localizada sob clima tropical, a 430 metros de altitude e servida pelos rios Dourados, Brilhante e Laranja Doce entre outros, estava originalmente recoberta por matas que eram ocupadas por indígenas das tribos Terenas, Kaiwás e Guaranis e os descendentes destas culturas podem ser encontrados na reserva próxima ao perímetro urbano e em toda a região compreendida pelos municípios circunvizinhos. Estão incluídos na área de influência da Grande Dourados os municípios de Itaporã, Maracajú, Rio Brilhante, Dourados, Fátima do Sul, Caarapõ, Ponta Porã, Juti, Naviraí, Jardim, Bodoquena, Bonito, Ivinhema e Glória de Dourados entre outros. Ocorre que esta área também era tida como território dos indígenas agora confinados nas aldeias a este fim destinadas e a única unidade policial a nível estadual com atuação sem delimitação de circunscrição na região é o Departamento de Operações de Fronteira. Com o término da Guerra do Paraguai em 1870 foi iniciando um povoamento mais efetivo na região e a pressão sobre a população autóctone come-

çou a se intensificar com a fixação de ex– combatentes. Também acelera o processo de ocupação a vinda de gaúchos, fugitivos em sua maioria, das conseqüências da revolução federalista, ocorrida no Rio Grande do Sul entre 1893 e 1895. Há uma intensificação do desenvolvimento da pecuária patrocinada pelas famílias mineiras situadas na área desde 1824 quando Ignácio Gonçalves Barbosa estabeleceu nas margens do Rio Miranda, em Jardim, uma fazenda e que, em conseqüência dos serviços prestados ao estado brasileiro durante a Guerra do Paraguai por um genro seu, José Francisco Lopes, o “Guia Lopes”, o imperador D. Pedro II, em reconhecimento lhe concede vastas extensões o que solidifica o predomínio da família dos Barbosas na gleba de entre rios (Vacaria e Rio Brilhante) que apresenta gramínea nativa em solo privilegiado. Um dos serviços prestados pelo Guia Lopes, além de fornecer gado ao exército brasileiro durante a Retirada da Laguna, (descrito por Visconde de Taunay em seu épico que leva o nome do episódio) o Velho como era chamado José Francisco auxiliou na contenção das forças indígenas representadas pelos Guaicurus, os índios cavaleiros da linhagem Guarani que dominavam completamente a região pois que os Barbosas estabelecidos a mais tempo nas cercanias conheciam os costumes e localizações das aldeias bem como mantinham relações mais próximas com as etnias. De tão senhores estavam os Guaicurus do território que ocupavam, em 1865 que houve um acordo entre o exército brasileiro e as lideranças indígenas para permitirem que a tropa, em retirada, transitasse por seu território. Epi-


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sódio pouco relatado na historiografia oficial e em que o papel dos primeiros fazendeiros foi fundamental. É o início do fim do predomínio Guarani. Do fim do século XIX ao início do século XX, a fazenda é o fator de ocupação do território pela ausência de povoados e o cavalo e a carroça de boi são os únicos meios de locomoção. Os conflitos com os indígenas ora são acentuados ora mitigados pela miscigenação e acolhimento por parte dos fazendeiros que adotam a pratica das relações com as indígenas, comportamento já descrito por Darcy Ribeiro em sua obra O povo brasileiro. A companhia Mate Laranjeiras já lançava seus tentáculos sobre vastas extensões na área, onde existiam ervais nativos que eram embarcados em cargas através das barrancas do rio Paraná, bem como a madeira que ia sendo derrubada quando não era queimada para abertura de novas pastagens. Esta situação vai se alterando na medida em que a estrada de ferro Noroeste do Brasil é implantada e o escoamento da produção começa a fluir para São Paulo pelos trilhos o que enfraquece sensivelmente a linha de comércio pelo Rio Paraná e que tem seu ciclo completamente encerrado com a submersão, literalmente, dos portos fluviais até então existentes, pelas águas da barragem de Itaipu. Um ciclo de devastação interminável que agora atinge o norte do país. Em 1884 é formado o povoado de São João Batista de Dourados. Em 1905 cerca de 50 pioneiros criam o patrimônio e em 1910 Marcelino Pires consegue driblar as dificuldades colocadas pela empresa Mate Laranjeiras e consegue registrar a posse

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de 3.600 hectares de terra para criar o patrimônio cuja área foi tombada pelo tenente Antônio João Ribeiro. Marcelino Pires em reconhecimento a realidade indígena existente e já procurando solucionar, mesmo inadvertidamente, pelo confinamento das etnias, principalmente Guarani, faz dois pedidos ao governador. O primeiro é a criação de um patrimônio indígena e o segundo a criação de uma Colônia Estadual. Com a Lei nº 658, de 1914, Dourados é elevado a distrito do município de Ponta Porã, portal de entrada do cone sul que somente era feito pelo Paraguai já que a travessia do rio Parará era dificílima para a época. A lei incluía os dois distritos policiais existentes e que desconheciam, na operacionalidade, a distinção entre policia administrativa e judiciária. Em 1935 é criado oficialmente o município de Dourados, desmembrando de Ponta Porã, com uma população estimada em vinte mil habitantes. 3.1 Segurança Pública Segurança é um dos fins constitutivos do Estado, e alguns autores chegam a afirmar ser o principal, e seria excesso enumerá-los. É exigência de uma sociedade cada vez mais plural enquanto consumidora de bens e serviços fornecidos pelo “Estado Assistencial”, através da polícia em suas diversas manifestações. Surge como principal pilastra e fornecedora ou não deste bem estatal, com o poder delegado pelo “Estado”, politicamente organizado. O Poder de Polícia é prerrogativa do Estado soberano. Não existe, pelo menos, “oficialmente” falando, Poder Privado


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com competência de policiar a atividade quer do Estado, quer dos particulares. Esse Poder Estatal, de Polícia, MEIRELLES20 , assim o define: Polícia Judiciária é a que se destina precisamente a reprimir infrações penais (crimes e contravenções) e apresentar os infratores à Justiça, para a necessária punição. Em face de sua missão específica, a Polícia Judiciária se exterioriza em corporações armadas e especificadas em repressões, prevenções e investigações criminais, sob a forma de forças militarizadas, polícias civis, polícias de choque, polícias técnicas, e outras mais. Atua como serviço de vigilância e de manutenção da ordem pública interna, e efetua prisões em flagrante delito ou em cumprimento de mandados judiciais. Além disso, destina-se a garantir a execução das determinações judiciárias e administrativas, quando requisitadas pelas autoridades competentes. Na Polícia Judiciária, é que reside, propriamente, a força pública do Estado.

ser típico da Administração, os demais poderes do Estado, tem assegurado, também, o poder de policiarem sua organização, nos assuntos de sua matéria interna. O Poder Legislativo, bem como o Poder Judiciário, no exercício de suas próprias funções, guarnecendo as prerrogativas dessas próprias atividades, exercem, então, inteiramente, esse Poder de Polícia. Nesse exercício policial, podem, por se tratar de um único Estado, apesar de seus poderes tripartidos se imprescindirem, se auxiliarem, das forças coercitivas, com o fim de executarem o Poder que lhes é deferido, inclusive, requisitando-as ao Poder Executivo. Têm, assim, o Chefe do Poder Legislativo, no exercício do Poder Estadual, direito a requisitar força policial ao Poder Executivo, o mesmo sucedendo com o Poder Judiciário, em circunstâncias idênticas. Observa-se então, que, a despeito de peculiar ao Executivo, têm os demais poderes do Estado, nos assuntos de seus respectivos interesses, na gestão, os mesmos poderes de Polícia que aquele primeiro. Atende-se que evidenciado está tratar-se da Polícia Administrativa.

Portanto, é um poder-dever peculiar ao Estado. A União legisla e também ela policia como bem entende PUGLIESI21 . O Estado Federal legisla e ele policia. Comple-menta o autor citado:

MEIRELLES22 define essa Polícia, que é Administrativa:

O Estado Federal, sendo uno, tem a Polícia da União e dos Estados cumprido o dever-poder de forma a auxiliarem-se reciprocamente. Verifica-se, pois, tratar-se de atividade tipicamente administrativa, peculiar ao Poder Executivo. A despeito, no entanto, de

Polícia administrativa é a que se destina a assegurar o bem-estar geral, impedindo, através de ordens, proibições e apreensões, o exercício anti-social dos direitos individuais, o uso abusivo da propriedade ou a prática de atividades prejudiciais à coletividade. A Polí-


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cia Administrativa se expressa no conjunto de órgãos e serviços incumbidos de fiscalizar, controlar e deter as atividades individuais (não os indivíduos), que se revelem inconvenientes ou nocivas à comunidade, no tocante à segurança, à higiene, saúde, à moralidade, ao sossego, ao conforto público e, até mesmo, à estética urbana.

Daí a justa referência ser levantada por MEIRELLES23 , de que Todo ato administrativo gira em torno da idéia de Polícia preventiva, destinada a procurar uma melhor paz social. E não é difícil que as organizações de serviços públicos, por mais técnicas que sejam, não passem de meios de Polícia e de garantias asseguradoras do bem-estar social.

Portanto, o Estado detém o poder de policiar os administrados; porém, cada Poder detém o mesmo poder da Polícia Administrativa, para se autofiscalizar, se autopoliciar, resguardando-se a própria independência e administração. A Polícia Administrativa é agente da própria Administração, tendo características repressivas e coercitivas. Exercitando o Poder de Polícia, a Administração representa o Poder Estadual, corrigindo os administrados e a si mesma, de forma a não ir de encontro à norma vigente. MEIRELLES24 , em sua obra Direito Administrativo Brasileiro, enumera áreas de atuação coercitiva da Polícia Administrativa nos municípios, entre outras, polícia de costumes, sanitária, atmosférica,

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pesos e medidas, trânsito, construções, etc. Complementando o tema, PUGLlESI25 , corrobora que existem diversas Polícias Administrativas, nas diferentes pessoas políticas. Assim se exprime o jurista: Ocorrido o desvio ao fim legal, deixa a Polícia Administrativa de agir, passando a verificação dos acontecimentos à égide de outro Poder. É o Poder Judiciário que haverá de decretar se foi ou não violado algum direito. Ocorre que, para o Judiciário ter a segurança de exercer, sem medo de errar, esse Poder Jurisdicional, deverá recorrer, novamente, ao Poder Executivo, para que este, através de agentes próprios, instrua todo o processo com provas hábeis a formar o convencimento do órgão do Poder Judiciário. Esse agente do Poder Executivo, recebe o nome de Polícia Judiciária, também conhecida como Polícia Civil. Surge, então, no Estado, a Polícia Judiciária, derivada desse poder-dever estatal, cujo fim não é a repressão, porém, a elucidação de fato já realizado e não reprimido pela Polícia Administrativa”.

O mestre NORONHA26 , afirma: Polícia Administrativa e Polícia Judiciária. Duas são as funções da Polícia entre nós: Administrativa e Judiciária. Com a primeira, ela garante a ordem pública e impede a prática de delitos. Sua situação é, então, preventiva, já que se destina a garantir ao indivíduo o uso e o gozo de seus direitos, a vida, a integridade corpórea, o


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patrimônio, a liberdade, etc., cuidando não sejam lesados pelos comportamentos ilícitos de outrem. A Polícia Judiciária atua após a prática do crime, colhendo os elementos que elucidam e evitando que desapareça, para que, mais tarde, possa haver lugar na ação penal. Essa fração é, pois, repressiva. Não obstante, é bem de ver que se cogita ainda de atividade administrativa. Trata-se de função investigatória destinada a auxiliar a Justiça.

GASPARINI27 esclarece, com precisão: Essas duas atividades da Administração Pública não se confundem. Com efeito, a Polícia Administrativa é essencialmente preventiva, embora algumas vezes, seus agentes ajam repressivamente, a exemplo da apreensão de mercadoria imprópria ao consumo público ou da cessação de uma reunião de pessoas, tida por ilegal. A Polícia Judiciária é, notadamente, repressiva. O exercício da Polícia Administrativa está disseminado pelos órgãos da Administração Pública, ao passo que o da Polícia Judiciária é privativo de certo e determinado órgão (Secretaria de Segurança). O objeto da Polícia Administrativa é a propriedade e a liberdade, enquanto o da Polícia Judiciária é a pessoa, na medida em que lhe cabe apurar as infrações penais, exceto as militares (art. 144, parágrafo 4°, da Constituição Federal). A Polícia Administrativa predispõe-se a impedir ou paralisar atividades anti-sociais; a Polícia Judiciária preordena-se a desco-

brir e conduzir ao Judiciário os infratores da ordem jurídica penal (art. 144, parágrafo 4°, da Constituição Federal). Por último, a Polícia Administrativa rege-se por normas administrativas; a Judiciária, por normas processuais penais.

A Polícia, em si, não é órgão ou agente vinculado ao Poder Judiciário, mas sim, agente vinculado ao Poder Executivo, sofrendo relações de subordinação deste. Assim sendo, a Polícia Judiciária é agente da administração auxiliar do Poder Judiciário, sem dele fazer parte. O fato de chamar-se Polícia Judiciária é, poder-se-ia dizer, erro técnico. A Polícia Judiciária não é órgão, ou mesmo, agente do Poder Judiciário. É agente auxiliar que colabora, no sentido de apurar os fatos tipificados no Código Penal e leis correlatas a este. E esta divisão muito tem prejudicado o trabalho de repressão e investigação das policias, tanto civil quanto militar e para evitar a perda de tempo e recursos no processo de repressão, foi criada uma polícia unificada, por iniciativa do Poder Executivo estadual, em Mato Grosso do Sul. 3.2 Departamento de Operações de Fronteira (D.O. F). Assim, de forma ímpar, temos as duas instituições policiais, civil e militar, que constituem o Departamento de Operações de Fronteira, unificado de fato, em todo o território nacional, unificado inicialmente pelas duas instituições e contando com a Polícia Técnica atualmente. Uma inovação que deixa de ser vista desta for-


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ma, quando observamos o histórico das policias que são indistintas em sua gênese, enquanto comando único. A origem do Departamento de Operações de Fronteira - DOF, remonta ao ano de 1987, quando foi criado, dentro da estrutura da Secretaria de Segurança Pública, a 28 de maio daquele ano, através da Resolução n. 119/87, pelo então Secretário de Estado e Segurança Pública, Francisco Leal de Queiroz, o Grupo de Operações de Fronteira - GOF, com a responsabilidade pelo policiamento ostensivo itinerante, preventivo e repressivo, em toda a área de fronteira seca com a República do Paraguai, abrangendo cerca de 610 km (DOF, 2007). A missão principal do GOF, desde sempre, foi o patrulhamento ostensivo em áreas rurais dos municípios fronteiriços com o Paraguai, objetivando combater o narcotráfico, o contrabando e ou descaminho, o furto/roubo de veículos e cargas, o abigeato e os crimes peculiares à região, como os assaltos às propriedades e proprietários rurais, falsa comunicação de crime (golpe do seguro), e outros ilícitos. Desde aquela época o Grupo ficou diretamente subordinado, administrativa e operacionalmente, ao Secretário de Segurança Pública, e foi composto por policiais militares e policiais civis, fato inédito em todo o pais, sendo o primeiro unificado da história recente. (DOF, 2007). Seu primeiro Chefe foi o Coronel PM RR Adib Massad, que anteriormente já havia sido designado Delegado de Polícia em várias localidades do Estado de Mato Grosso, como Cáceres, Cuiabá e Rondonópolis e também em Mato Grosso do Sul, nas Ci-

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dades de Três Lagoas, Paranaíba e Campo Grande, circunstância que lhe possibilitou transitar com desenvoltura entre as duas Instituições Policiais, a Polícia Militar e a Polícia Civil (DOF, 2007). Quando de sua criação o GOF estava sediado em Campo Grande, porém, devido à distância de sua área de atuação, no ano de 1989 a sede do Grupo foi transferida para a cidade de Dourados, e atualmente ocupa, desde 1994, em regime de comodato, instalações da Sociedade de Amigos da Liberdade, Vigilância e Esperança - SALVE, entidade proprietária do prédio, que tem por finalidade essencial suprir as necessidades do Grupo, suplementando o Estado em seu mister. Através do Decreto Estadual n. 8.431, de 15 de janeiro de 1996, o GOF passou a ser denominado de Departamento de Operações de Fronteira - DOF, em virtude da administrativa e operacional da Secretaria de Segurança Pública e ampliação de seu efetivo (DOF, 2007). Com a credibilidade alcançada pelo Departamento, que velo a tomar-se o órgão policial mais respeitado do Estado, sua área de atuação foi ampliada, passando a atender também a fronteira internacional com a República da Bolívia, o que foi feito através da Resolução SSP n. 228, de 21 de maio de 1999, do então Secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública, Franklin Rodrigues Masruha, daí aIcançando um total de 1.517 km de fronteira internacional, sob responsabilidade do DOF. Atualmente, o Departamento é um exemplo claro de funcionalidade, sendo o pioneiro na integração das polícias estaduais, servindo de referência para outros Estados, e tem sido um dos ór-


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gãos que mais drogas apreendem, que mais veículos recuperam, que mais mandados de prisão cumpre e que recupera o maior de animais furtados (DOF, 2007). Dentro desta vasta área de atuação o Departamento tem sob sua circunscrição diversos municípios, em quase sua totalidade dentro da área da Grande Dourados que teve um aumento populacional explosivo nas últimas décadas. E dentro desta área estão localizadas a maior parte das reservas indígenas do estado. A competência para apuração dos crimes ocorridos em área indígena é originariamente da Polícia Federal. Ocorre, que por convênio, esta competência passou para a esfera das Polícias Civis em todos os estados da federação e como o Departamento tem em sua estrutura tanto a Polícia Civil quanto a Técnica é o organismo policial que mais condições apresenta de atender os eventos dentro das áreas indígenas mesmo que inicialmente não seja esta a sua missão primordial. A distinção da unificação ocorre em nível de direção do Departamento que conta com um diretor, geralmente coronel PM, mas podendo ser um Delegado de Polícia Civil (o que não aconteceu ainda) assessorado por um subdiretor. E na hierarquia, está subordinada, a polícia ostensiva, representada por soldados e oficiais oriundos das polícias militares (rodoviária, ambiental), a polícia judiciária e a polícia técnica. Estas três instituições policiais têm a missão de prevenir, até ostensivamente, o crime em suas diversas modalidades. E também, em ocorrendo, apurar o fato. Neste momento a perícia, a polícia técnica aparece em destaque pois que será

esta polícia quem determinará se é caso de homicídio ou suicídio. As contínuas críticas que sofrem as estatísticas podem ter aqui seu ponto frágil inicial. São mencionadas regularmente que as determinantes do suicídio bem como das tentativas fracassadas, são muitas vezes vagas, imprecisas e de difícil constatação. Todo evento que apresenta cadáver deverá ser periciado e ao local deverá comparecer (e isto é norma obrigatória no estado de Mato Grosso do Sul) um delegado de polícia bem como um perito. Quando se trata de indígena o problema fica agravado já que o cadáver geralmente é encontrado em reserva, nem sempre de fácil acesso. Não há estatística em que sejam esclarecidas as localidades em que são encontrados os cadáveres. E após a inspeção do local e o exame do corpo os integrantes do Departamento incumbidos pelo atendimento fazem a vistoria dos instrumentos ou meios com que o ato foi praticado e é sabido que o suicida emprega geralmente os meios com que mais facilmente possa satisfazer seu desejo, sejam estes meios armas brancas, cordas ou veneno. É notória a predileção por corda não havendo casos de emprego de arma branca por parte de indígenas, Cortar os pulsos é algo desconhecido pelos peritos, no que tange a suicídio em aldeia. Importante também é levantar os fatores do suicídio, onde se buscam quais as causas físicas e psicológicas que possam ter influenciado. Inexistente ainda a preocupação com os fatores que possam ser explicados pela Sociologia. Excluindo os caso de auxílio, instigação ou induzimento, condutas tipificadas pelo artigo 122 do Código Pe-


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nal, fica a tentativa impunível, bem como o ato de se matar. E as peças dos Inquéritos Policiais como Auto de Qualificação e Interrogatório e Informações Sobre a Vida Pregressa ficam prejudicadas pois inexiste autoria quando o ato obtém êxito e quando não (fato também raro entre indígenas pois que o êxito é grande) somente são ouvidos os sobreviventes em Termo de Declarações. A perspectiva policial do Departamento é limitada já que o treinamento dos policiais é para apurar o fato sob uma perspectiva convencional. Mas mesmo sem um grande treinamento e formação específica em sociologia fica evidente que fatores de risco estão presentes nos suicídios investigados. Já se sabe que algumas mudanças podem acentuar os episódios.28 Os fatores de risco do comportamento suicida que incluem sexo, idade, classe social, estado civil, profissão, família, e outros ainda como fatores biológicos, genéticos, o momento histórico e a situação ocupacional bem como a alteração social ainda não são analisados em minúncias pelos responsáveis dos Inquéritos Policiais. Se a apuração ainda longe está da perfeição com esta ótica é que se deve observar o aspecto prevenção que foge completamente da esfera policial para ser um dever do estado, mas sob esfera assistencial. Assistencial na medida em que elimine as circunstâncias em que o suicídio tem acontecido nas áreas indígenas do estado. A atividade policial pode apurar o evento morte e em muito melhorar a construção das estatísticas que são encaradas pela comunidade médico-científica com bastante desconfiança. Desconfiança esta que remonta a Durkheim, já que suas obras

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são referências obrigatórias não só nos cursos de direito bem como em todo curso que tenha em sua grade curricular a disciplina Sociologia. E uma visão é compartilhada por muitos dos que estão fora da reserva. É a dos habitantes da Grande Dourados que observam as aldeias clamando por mais espaço. Esta visão não recebe pesquisadores para ser verificada e quantificada. Mas é de que os índios não desenvolvem as mesmas atividades, não trabalham da mesma forma e com o mesmo empenho que os civilizados e portanto, tem uma vida melhor, mais fácil. E a prova disto, segundo esta visão, é de que estariam recebendo auxílio governamental, sofrendo bem menos do que os habitantes da periferia de Dourados. E talvez Durkheim, aqui também tenha lançado algumas luzes ao analisar as estatísticas29 . E o citamos mais como uma indagação, uma curiosidade, até mórbida, para ser respondida não aqui, mas em trabalhos posteriores. E não podemos deixar de observar que as condições de vida dos Guarani, Terena e Caiuás são não só um caso de política, mas um caso de polícia no que tange aos responsáveis pela situação. 4. Uma Conclusão em Aberto Concluir um trabalho não é fácil pois que ficam inúmeras dúvidas e incertezas. Quanto a clareza na linguagem, as fontes utilizadas, a metodologia empregada e outros aspectos relevantes. Para evitar muitos embaraços nos escudamos na experiência consumada e correndo o risco de plágio (afastado pela referência rigorosa da fonte utilizada) não podemos deixar de ci-


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tar até a abertura desta conclusão como inspirada pelo Dr. Bizelli que já realizou trabalho por demais fecundo sobre o tema, deixando muitas expressões que não podem deixar de ser mencionadas30 . Entre os fatores óbvios que envolvem o tema, a desagregação das estruturas sociais das etnias em questão é notória. O suicídio é fenômeno cultural que surge em todas as sociedades não importa a etnia, religião, clima, condições geográficas e outros fatores para a sua não existência. Importam na medida em que estão conjugados a outros elementos. A Sociologia procura desvendar os fatores que podem influenciar as taxas de suicídio, seu aumento ou diminuição. E as estatísticas, embora não plenamente confiáveis são um instrumental valioso para a percepção destas circunstâncias. Os mapas de suicídio, não obstante Durkheim haver analisado os pormenores já nas décadas de 1860 a 1890 ainda não são realizados, tampouco fornecidos com regularidade em muitos estados do Brasil. As taxas de suicídio vêm, quando separadas distintamente, elencadas juntamente com outros eventos de morte, ou seja, homicídios dolosos e culposos, infanticídio, latrocínio, e demais delitos (furto, roubo, contrabando, rixa e outros). Este tratamento já fornece indícios de como o fenômeno é observado. Agravado pela situação de peculiaridade. E é o que ocorre no que concerne a população indígena, uma das mais afetadas pelo fenômeno. O que não se pode afirmar que é a mais afetada, pois que as pesquisas que comparam as taxas e estatísticas com as demais parcelas da população são es-

cassas, para não afirmar inexistentes. Mas a evidência de que o estado ainda não dispõe de todo os instrumental para conter o alto índice de suicídios entre os indígenas da região da Grande Dourados não impede de serem envidados esforços no sentido de arrefecer a situação. E entre estes esforços estão incluídos a conscientização dos profissionais envolvidos na repressão e apuração de delitos. O alto índice de suicídio é patológico e encerramos com uma citação do sempre lúcido BIZELLI e que se enquadra perfeitamente, servindo de alerta a toda uma região envolvida com o problema. E fala o mestre que se casos patológicos “não forem contidos, suas progressões poderão levar a sociedade ao estado de anomia, e, então, instala-se o imprevisto” 31 . Mas não acreditamos no alerta (levantado pelo autor estudado por BIZELLI) de que dentro do imprevisto estaria a possibilidade de insurreição. Acreditamos mais numa miscigenação progressiva em concomitância a uma anomia profunda se não houver intervenção efetiva dos órgãos governamentais, com conseqüências imprevisíveis para as culturas Caiuás, Terenas e demais aldeadas nos municípios região da Grande Dourados. Os organismos policiais, por mais eficientes que possam ser, como o Departamento de Operações de Fronteira que traz a inovação da unificação, em pouco podem auxiliar a diminuir os altos índices de suicídio. A principal contribuição é a formulação de estatísticas mais próximas da realidade e que levem em conta também critérios sociológicos de análise no evento investigado.


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NOTAS 1

(Wikpedia/Dourados).

2 “Retomar a questão do direito penal e civil na concepção de Émile Durkheim pode parecer uma questão supérflua ou já devidamente resolvida pelas sociedades ocidentais contemporâneas, no entanto, em que pesem os avanços (e retrocessos) dessas sociedades, a sociologia do autor se faz presente em inúmeros cursos de direito, de ciências sociais, de educação, etc. Sua presença é, portanto, bastante constante no pensamento científico e suas matrizes teóricas irradiam-se no jurídico–político e encontram bases em inúmeros setores–segmentos da sociedade (como, por exemplo, os que estão ocorrendo na sociedade brasileira com relação ao aumento das taxas de criminalidade, ondas de violência e etc.)”. BIZELLI, Edimilson Antonio. A sempre renovada presença do Émile Durkheim: o direito penal e civil. In Ciências Sociais na atualidade. (p.143). 3

BIZELLI, Edmilson Antonio. Op.cit. p. 153.

4

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. P. 14.

5

Entre nós o exemplo histórico é o de Getúlio Vargas com sua famosa carta testamento em 04/08/1954. Alguns suicidas famosos: Alberto Santos Dumont, Adolf Hitler, Assis Valente, Camilo Castelo Branco, Erment Hemingway, Eva Braun, Gilles Deleuze, Horácio Quiroga, Judas Iscariotes, Kurt Cobain, Marco Antonio, Marinlyn Morroe, Nero, Primo Levi, Sêneca, Vicent Van Gogh, Virginia Woolf, Vladimir Mayakovsky e Ykio Mishima entre inúmeros ceros. (wikipedia.org/wiki/suic). 6

“Seja a morte simplesmente aceita como uma condição lamentável, mas inevitável, segundo o objetivo da pessoa, seja ela expressamente desejada e buscada por si mesma, o individuo, tanto num caso como no outro, renúncia à existência, e as diferentes maneiras de renúncia a ela só podem ser variedades de uma mesma classe. Há entre elas demasiadas semelhanças fundamentais para que não sejam reunidas sobre a mesma expressão genérica, o que não significa que em seguida não se possam distinguir espécies dentro do gênero, assim constituídas.” (DURKHEIM, Émile. Op. cit. p.13). 7

“Os mais diversos acontecimentos da vida e até os mais contraditórios podem servir de pretexto ao suicídio. (Durkheim, Émile, 2004. Op. cit.p.382). 8

Após perder seu filho, a esposa do ferreiro Balian (Orlando Bloon) comete suicídio, o que impede o seu sepultamento conforme os ritos católicos da idade média. O corpo tem a cabeça decapitada antes do sepultamento e o crucifixo afixado em corrente que


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pende de seu pescoço é retirado pelo cura da aldeia. Balian, o jovem ferreiro francês desnorteado mata o padre e segue o pai para a Terra Santa, Jerusalém. (www.kingdomfheavensmovie.com) 9

DURKHEIM, Émile. Op.cit. 170.

10

“Os esforços da estatística devem voltar-se num sentido completamente diferente. Em vez de tentar resolver esses problemas insolúveis de casuística moral, ela deve empenhar-se em anotar com mais cuidado as concomitantes sociais do suicídio”. (Durkheim, Émile. Op. cit. p. 174). 11

“Além dos casos de assassinatos, há suicídios por enforcamento entre os guaranis e os caiuás. Foram 21 casos neste ano até o mês de agosto. De 2001 a 2006, 285 índios se enforcaram, sendo que 60 deles tinham entre 10 e 14 anos de idade, 103 tinham de 15 a 19 anos e dois eram crianças de nove anos”. (CORRÊA, Hudson. Folha de S. Paulo, 29/ 09/07. p. A6). 12

Durkheim Émile. As Regras do Método Sociológico. (p.7).

13

“A bebida, segundo relato da Funasa, também leva pais indígenas a abandonar o cuidado com crianças desnutridas, levando à morte os indiozinhos.” (Corrêa. Op. cit. p.A6).

14

“Os dados da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), que dá assistência médica aos índios, mostra ainda que neste ano –2007– a desnutrição esteve entre as causas de morte de 12 crianças guaranis e cauiás menores de cinco anos.Para evitar mortes por desnutrição, agentes da Funasa pesam semanalmente as crianças indígenas, distribuem leite e cestas básicas.No pólo indígena de Amambaí (MS), por exemplo, onde vivem 2.125 crianças guaranis e caiuás menores de cinco anos, 26 estão com desnutrição severa (muito abaixo do peso, no termo técnico), 290 com desnutrição moderada (baixo peso) e 401 em risco de nutricional.” (Corrêa. Op. cit. p. A6). 15

“Hoje, Kaiowá e “Guaranis” (Nhandewa) misturam suas unidades macro familiares ou familiares menores, na maioria das dezoito aldeias e nas oito reservas, em que foram “confinados” desde meados de 1910, confinamento que aumentou com a expansão de Dourados, Amambaí e pequenas cidades, no período desenvolvimentista e ditatorial. Famílias mistas e indivíduos soltos também são freqüentes. A população atual é de 26.836 pessoas, a maior parte Kaiowá; das vinte e seis áreas, em apenas sete, Porto Lindo, Cerrito, Pirajuí, Potrero Guasu, Arroio Cora, Sete Cerros e Paraguassu, predominam os Gurani Nhandewa.” (FOTI, Miguel Vicente. Op.cit. p.47).


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“A inviabilização dos tekoha (as aldeias), pelo modo como o território lhes foi tomado pelos brancos, a perda da memória do que eram, a interdição do acesso aos ambientes propícios para sua localização, segundo todos os caciques que pudemos entrevistar, representam a maior ameaça que já conheceram. É quase impossível qualificar o clima de desespero quando o assunto é esse, contrastando com a imagem do Guarani típico, que raramente perde a seriedade. “Por quê isto está acontecendo conosco? parece ser a pergunta que fica no ar. Segundo um entrevistado, após uma avaliação sagaz, de causas e conseqüências, perde-se do tekoha “é pior do que desaparecer”. Não é raro o discurso apocalíptico. Certa feita, um Guarani considerado mestiço (filho de pai branco e criado em fazenda), chorou cerca de meia hora diante de nosso gravador, dizendo apenas “ajuda nós.” (FOTI, Miguel Vicente. Op. cit. p.49). 17

O jejuvy está por trás do enigma representado pela onda de suicídios, recentemente constatada entre esses dois povos (Kaiowa e Nhandewa). A palavra pode ser traduzida para perto na garganta, sufocação. Típico, entre os índios de língua Guarani, da faixa meridional do Mato Grosso do Sul, ele consiste de imediato em tomar uma corda e com ela enforcar-se, à primeira vista, intempestivamente. O uso de veneno, com o qual se atinge igualmente a garganta, também ocorre, mas raramente”.(FOTI, Miguel Vicente.Op. cit. p.53).

18

“Ora até os 16 anos a tendência ao suicídio é muito fraca, simplesmente por causa da idade. Na França, para esse período da vida contam-se apenas um ou dois suicídio por milhão de habitantes; no período seguinte, já há vinte vezes mais. (Durkheim, Emile Op.cit. p.206).

19

(Sabemos, com efeito, que essa tendência cresce ininterruptamente da juventude, até a maturidade (“observamos, todavia, que essa prograssão só foi estabelecida para as sociedades européias em que o suicídio altruísta é relativamente raro.”), e que freqüentemente ela é dez vezes mais intensa no final da vida do que no início. É que, portanto, a força coletiva que impele o homem a se matar só o penetra pouco a pouco. Mantida as circunstâncias, é a medida que avança em idade que ele se torna mais acessível a ela, sem dúvida, porque são necessárias experiências reiteradas para levá-lo a sentir todo o vazio de uma existência egoísta ou toda a inutilidade das ambições sem termo.”(Durkheim Op.cit. pp.418-419).

20

MEIRELLES, Hely Lopes, 1990. p. 110.

21

PUGLIESI. p.206.

22

MEIRELLES, Op. cit. p. 112.


26

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23

Idem.

24

MEIRELLES, Op. cit. p. 112.

25

PUGLIESI, 1987. p. 208.

26

NORONHA, 1971.

27

GASPARINI, 1992. p.117.

28

“H) Alteração social: as mudanças sociais podem ser um fator sucidógeno. Exemplo disso seria o aumento do índice de autocídio entre idosos no Japão em tempos recentes, em que o respeito à terceira idade naquele país começou a enfraquecer. I) Fatores genéticos: há fortes evidências, reportadas em toda doutrina sobre o tema, de que existe risco maior de comportamento suicida entre familiares de parentes que cometeram suicídio.” (RIBEIRO, Daniel Mendelski. Suicídio: critérios científicos e legais de análise.(http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5670). 29

“...os indivíduos que mais sofrem não são os que mais se matam. ... Nas épocas e nas classes em que a vida é menos dura as pessoas se desfazem dela mais facilmente.” (DURKHEIM, Émile. O Suicídio. P. 382). 30

“A questão central da imoralidade radica exatamente na não-realização da solidariedade orgânica. Não é sem sentido que em nossa sociedade a solidariedade adquira uma outra conotação – a de ajuda, assistência, de prestamos de serviços sociais, em grande medida difundido pelos menos de comunicação, igrejas, ONGs e mesmo programas governamentais que buscam rearticular os chamados grupos secundários que enfrentam situações de desagregação e mesmo de desintegração social-moral”. (BIZELLI, Op.cit. p. 153). 31

BIZELLI, Edimilson Antonio. Op.cit. p. 154. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS E AS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS SOCIAIS Eliotério Fachin DIAS1

RESUMO O Direito Internacional está se orientando no sentido de criar obrigações que exijam dos Estados a adoção de programas capazes de garantir um nível mínimo de bem-estar econômico, social e cultural para todos os cidadãos do planeta. Desde o processo de democratização do País, em particular, a partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil tem adotado importantes medidas em prol da incorporação de instrumentos internacionais voltados à Proteção dos Direitos Humanos. A União tem a responsabilidade internacional na hipótese de violação de obrigação internacional em matéria de direitos humanos que se comprometeu juridicamente a cumprir. Palavras-chave: Instrumentos Internacionais de Direitos Humanos; Proteção e Violação dos Direitos Humanos; Responsabilidade Internacional. ABSTRACT International law is geared towards creating obligations that require States to adopt programs that ensure a minimum level of economic well-being, social and cultural benefit to all citizens of the planet. Since the democratization of the country, in particular, from the Constitution of 1988, Brazil has taken important steps towards the incorporation of international instruments aimed at the protection of human rights. It is the Union that has the international responsibility for violations of international obligations on human rights which are legally committed to do. Keywords: International Instruments on Human Rights, Protection and Violation of Human Rights, International Responsibility.

1 Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, Especialista em Direito das Obrigações.


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1. OS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS Durante séculos, o Direito Internacional moderno tratou exclusivamente dos direitos dos Estados, estabelecendo conceitos que serviram para promover e apoiar os padrões colonialistas impostos pelos europeus em todas as partes do mundo. A lei internacional, muitas vezes usada como instrumento de dominação, reconhecia direitos aos Estados em detrimento de quaisquer outros direitos, para justificar “guerras justas”, espoliação e exploração de terras até então ocupadas por outros povos, escravidão, matança e genocídio, declaram Ana Valéria Araújo e Sérgio Leitão. Segundo os autores, [...] foram necessários mais de 400 anos e duas guerras mundiais para que o Direito Internacional passasse a se preocupar com a manutenção da paz e o bem-estar do homem, incluída aí a proteção do seu ambiente e do próprio planeta. A partir de então, o direito internacional incorporou conceitos de proteção aos direitos humanos. No inicio, estes visavam apenas a proteção de indivíduos. Pouco a pouco, no entanto, e agora cada vez mais, começaram a reconhecer a existência de grupos distintos, suas especificidades, os direitos difusos e coletivos.2

No mesmo sentido, afirma David Trubek: Eu acredito que o Direito Internacio-

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nal está se orientando no sentido de criar obrigações que exijam dos Estados a adoção de programas capazes de garantir um mínimo nível de bemestar econômico, social e cultural para todos os cidadãos do planeta, de forma a progressivamente melhorar esse bem-estar.3

As ações internacionais concretizam e refletem a dinâmica integrada do sistema de proteção de direitos humanos, pela qual os atos internos do Estado estão sujeitos à supervisão e ao controle dos órgãos internacionais de proteção, quando a atuação do Estado se mostra omissa ou falha na tarefa de garantir esses mesmos direitos. Merece destaque a seguinte reflexão de T. Farer, a respeito da violação dos direitos humanos: [...] a comparação entre violações de direitos humanos requer um problemático exercício de etiologias e julgamentos de valor acerca da relativa importância de diferentes direitos e seu efeito (se algum) no contexto doméstico e internacional. Como, por exemplo, comparar governos que matam com armas e governos que permitem pessoas morrerem de fome e de desnutrição?4

As convenções e tratados internacionais, bem como as declarações e cartas sobre os direitos humanos, declaram, dentre outros, os direitos da criança, à vida, à saúde, à alimentação adequada, etc. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948,


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reconhece no artigo 3: “Todo o homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, adotado pela Resolução n. 2.200 A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, ratificado pelo Brasil, em 24 de janeiro de 1992, o artigo 6, fala de um direito à vida inerente, não ao homem, nem ao ser humano, nem à “persona”, mas sim à “persona humana”. Mesmo tendo todos estes modos de qualificar o mesmo Ser dotado de humanitas, é-nos interessante notar certa evolução na concepção do homem enquanto sujeito de direitos inalienáveis: “§ 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela Lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida”. [...] trata-se do direito de receber cuidados intensivos a fim de não perder a vida5 . Segundo Josiane Veronese6 , do universo de documentos internacionais que objetivam resguardar os direitos infantojuvenis destaca-se a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução nº L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, e ratificada pelo Brasil, em 20 de setembro de 1990. A citada Convenção trouxe para o universo jurídico a doutrina da proteção integral, situa a criança dentro de um quadro de garantia integral, evidencia que cada país deve dirigir suas políticas e diretrizes tendo por objetivo priorizar os interesses das novas gerações; pois a infância passa a ser concebida não mais como um objeto de “medidas tuteladoras”, o que

implica reconhecer a criança sob a perspectiva de sujeitos de direitos. A Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe, no artigo 6º, § 1º: “Os Estados Membros reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida”; e, no § 2º: “Os Estados Membros assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança”. Ao contrário da Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, a qual sugere princípios de natureza moral, sem nenhuma obrigação, representando basicamente “sugestões” de que os Estados poderiam se servir ou não, a Convenção tem natureza coercitiva e exige de cada Estado Parte que a subscreve e ratifica um determinado posicionamento. Como um conjunto de deveres e obrigações aos que a ela formalmente aderiram, a Convenção tem força de lei internacional e, assim, nesse caso o Estado não poderá violar seus preceitos, como também deverá tomar as medidas positivas para promovê-los. Há que se colocar, ainda, que tal documento possui mecanismos de controle que possibilitam a verificação no que tange ao cumprimento de suas disposições e obrigações. Segundo Miriam Floriano7 , dentre os documentos internacionais que embasam o direito humano à alimentação adequada encontram-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 25), a Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 27), sendo o mais abrangente no enfoque da matéria alimentar o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, ratificado pelo Brasil em 1992. O Pacto dos Direitos Econômicos, So-


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ciais e Culturais, vai além da noção do individual para abarcar os direitos coletivos. Ele garante os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência e ao seguro social, além de proteger também o direito à cultura. A Convenção, enquanto tratado de Direitos Humanos, se constitui num documento extremamente relevante num todo; no entanto, por questões metodológicas, alguns pontos devem ser salientados: 1) Todas as ações que digam respeito à criança deverão, primordialmente, considerar os seus interesses, cabendo ao Estado promover a proteção e cuidados que sejam necessários ao seu bem-estar, sobretudo quando os pais ou responsáveis não o fizerem (art. 3º). 2) os Estados são obrigados a implementar os direitos reconhecidos na Convenção, por meio de medidas legislativas, administrativas ou de outra espécie. Para tanto, é necessário que os países destinem parte de seus recursos para tal fim e mais, sendo necessário, poder-se-á até mesmo recorrer à cooperação internacional (art. 4º). [...] 3) A criança tem direito à vida, sendo dever do Estado assegurar a sua sobrevivência e o seu desenvolvimento (art. 6º). Aí se constata a importância dos arts. 5º e 6º da atual Constituição Federal, o primeiro que trata dos direitos individuais e coletivos e o segundo dos sociais, tais como o direito à educação, à moradia, ao trabalho, à saúde pública, à previdência social, ao lazer, à proteção materno-infantil, à assis-

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tência aos desamparados. Portanto, o cumprimento de tais preceitos implica garantia de cidadania, garantia de qualidade de vida. 4) Também é obrigação do Estado garantir proteção especial a crianças privadas temporária ou permanentemente de suas famílias e assegurar-lhe um ambiente familiar alternativo que seja adequado ou, nas hipóteses em que for necessária a colocação em instituições, que estas sejam apropriadas, devendo considerar o meio cultural da criança, bem como seus componente éticos, religiosos e lingüísticos (art.20).8

2. A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL Desde o processo de democratização do País, em particular, a partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil tem adotado importantes medidas em prol da incorporação de instrumentos internacionais voltados à Proteção dos Direitos Humanos. Ao ressaltar sobre a Proteção dos Direitos Humanos, ressalta Eduardo Bittar que: [...] a Carta cidadã projeta a intenção de criar condições para a afirmação de um Estado de Bem Estar Social no Brasil, à luz das experiências já sedimentadas na Europa e nos Estados Unidos da América. Por isso, a Constituição nasce e nasce garantista, fartamente revestida de caráter democrático, provedora de direitos humanos, em uma diversidade imensa de seus capítulos, antecipando-se como texto constitucional que acumulam o maior


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número de aquisições para a cidadania de toda a história do País.9 Segundo José Afonso da Silva10 , é a partir da Constituição de 1988, a Constituição-cidadã, na expressão de Ulisses Guimarães, então Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, o documento mais abrangente e pormenorizado jamais adotado no Brasil, sobre os direitos humanos, que ganham relevo extraordinário. Após a ratificação da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, em 1º de fevereiro de 1984, considerado o marco inicial do processo de incorporação do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo direito brasileiro, inúmeros outros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos foram incorporados, sob a égide da Constituição Federal de 1988, o marco jurídico da transição demográfica e da institucionalização dos direitos humanos no País. Assim, destaca Flávia Piovesan, [...] a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil. Dentre eles, destaque-se a ratificação: a) da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, tem 28 de setembro de 1989; c) da Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de setembro de 1990; d) do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) do Pacto Inter-

nacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) da Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, em 27 de novembro de 1995; h) do Protocolo à Convenção Americana referente à Abolição da Pena de Morte, em 13 de agosto de 1996; i) do Protocolo à Convenção Americana referente aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), em 21 de agosto de 1996.11

3. AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL De acordo com o Direito Internacional, a responsabilidade pelas violações de direitos humanos é sempre da União, que dispõe de personalidade jurídica na ordem internacional, conforme leciona Louis Henkin: Um Estado pode ser internacionalmente responsabilizado em virtude de agentes oficiais que atuavam inteiramente no plano das obrigações domésticas, independentemente de suas condutas terem sido endossadas ou conhecidas por oficiais responsáveis pelos assuntos internacionais. [...] Estados federais, por vezes, têm buscado negar sua responsabilidade em relação a condutas praticadas por Estados ou Províncias. Um Estado Federal é também pelo cumprimento das obrigações


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decorrentes de tratados no âmbito de seu território inteiro, independentemente das divisões internas de poder [...].12

Assim, é a União que tem a responsabilidade internacional na hipótese de violação de obrigação internacional em matéria de direitos humanos que se comprometeu juridicamente a cumprir. Todavia, ressalta Flávia Piovesan, [...] em face da sistemática até então vigente, a União, ao mesmo tempo em que detém a responsabilidade internacional, não é responsável em âmbito nacional, já que não dispõe da competência de investigar, processar e punir a violação, pela qual internacionalmente estará convocada a responder. Com a federalização restará aperfeiçoada a sistemática de responsabilidade nacional e internacional em face das graves violações de direitos humanos, o que permitirá aprimorar o grau de respostas institucionais nas diversas instâncias federativas. Para os Estados cujas instituições responderem de forma eficaz às violações, a federalização não terá incidência maior – tão-somente encorajará a importância da eficácia dessas respostas. Para os Estados, ao revés, cujas instituições se mostrarem falhas, ineficazes ou omissas, estará configurada a hipótese de deslocamento de competência para a esfera federal. A responsabilidade primária no tocante aos direitos humanos é dos Estados, enquanto a responsabilidade subsidiária passa a ser da União.13

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Assim, pode-se indagar: [...] essas ações internacionais denunciam a violação de qual categoria de direitos? Qual a natureza dos direitos violados? [...] Qual o impacto jurídico e político do sistema internacional de proteção dos direitos humanos no âmbito da sistemática constitucional brasileira de proteção de direitos? Como esse instrumental internacional pode fortalecer o regime de proteção de direitos nacionalmente previsto e o próprio mecanismo de accountabilitty, quando tais direitos são violados?14

Ao tratar sobre as violações dos direitos humanos no Brasil, Piovesan classifica-os em vários períodos, conforme destaca, no primeiro período (1964-1985), relativo ao regime militar, constata que, [...] dos 10 casos apreciados, 9 se referem a casos de detenção arbitrária e tortura ocorridas durante o regime autoritário militar, enquanto 1 caso envolve a violação dos direitos dos povos indígenas. Já no segundo período, ou seja, a partir do processo de democratização iniciado em 1985, observase que, dos 68 casos apreciados, 34 envolvem violência policial, 13 revelam situação de violência rural, 5 referem-se à violação de direitos de crianças e adolescentes, 3 envolvem violência contra a mulher, 1 se refere à violação dos direitos das populações indígenas, 1 à discriminação racial e 6 à violência contra defensores de direi-


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tos humanos. Ao lado dos 34 casos de violência policial, constata-se que os demais 34 casos restantes, concernentes ao período de democratização, refletem violência cometida em face de grupos socialmente vulneráveis, como os povos indígenas, a população negra, as mulheres, as crianças e os adolescentes.15

Nesse período, em 90% dos casos examinados, as vítimas eram líderes da Igreja Católica, estudantes, líderes de trabalhadores, professores universitários, advogados, economistas e outros profissionais, todos em geral integrantes da classe média brasileira. No segundo período, relativo ao processo de democratização, em 87% dos casos examinados as vítimas eram consideradas socialmente pobres, sem qualquer liderança destacada, ai incluídos pedreiros, vendedores, auxiliares de escritório, ajudantes de obras, mecânicos e outras atividades pouco rentáveis no Brasil, como os que viviam em favelas, nas ruas, nas estradas, nas prisões ou mesmo em regime de trabalho escravo no campo, com acentuado grau de vulnerabilidade. Nesse sentido, as vítimas, via de regra, não são mais dos setores de classe média, politicamente engajados, mas pessoas pobres, excluídas socialmente e integrantes de grupos vulneráveis. Segundo Álvaro Ribeiro Costa16 , a violência contra a cidadania no Brasil pode ser vista sob os mais variados aspectos. Salientam-se, entre eles, a violência estrutural e a violência específica. Por isso, é importante destacar alguns dados da realidade econômica e social do País, em vis-

ta dos quais melhor se compreende o quando das violações aos direitos humanos no Brasil. A chamada violência específica, cujas formas mais visíveis aparecem como homicídios, lesões corporais, torturas, seqüestros, etc., é a que habitualmente pode chamar mais atenção. No entanto, a violência estrutural, a que reside nas estruturas econômicas, políticas, sociais, culturais e jurídicas, parece ser a mais perversa e de maiores efeitos em detrimento dos direitos humanos e da cidadania, por se caracterizar pela permanência, pela profundidade e extensão de seu alcance. No entendimento de Flávia Piovesan, [...] em geral, a violação aos direitos sociais, econômicos e culturais é resultado tanto da ausência de forte suporte e intervenção governamental como da ausência de pressão internacional em favor dessa intervenção. É, portanto, um problema de ação e prioridade governamental e implementação de políticas públicas, que sejam capazes de responder a graves problemas sociais.17

Boaventura de Souza Santos afirma que, [...] a luta pelos direitos humanos, em geral, pela defesa e promoção da dignidade humana não é um mero exercício intelectual, é uma prática que resulta de uma entrega moral, afectiva e emocional ancorada na incondicionalidade do inconformismo e da exigência de acção.18


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4. AS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS A luta por direitos sociais, as configurações de welfare state e suas crises, a retórica neoliberal convivem, hoje, ao lado de tantas outras formas de exclusão e desigualdade, fazendo emergir um sentimento de violência generalizado, típico de uma sociedade aparentemente sem projetos mais incisivos de inclusão social, que parece pensar o enfrentamento da pobreza, da miséria e de toda forma de discriminação como um trabalho de Sísifo.19 As políticas públicas ou programas de ação governamental incluem-se entre as prestações positivas, sendo mais necessários em relação aos grupos da sociedade que estão inferiorizados economicamente, conforme a conceituação do Brasil como Estado Democrático de Direito e a interpretação decorrente do elenco dos objetivos fundamentais do Brasil, insculpidos no art. 3º e seus incisos da Carta Magna, a saber: construir uma sociedade livre, justa e solidaria garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.20 A propósito, o Prof. Paulo Sérgio Pinheiro lembra que [...] ‘somos campeões mundiais da desigualdade: em 1992 (dados da ONU), a renda dos 20% mais ricos era 26 vezes maior do que as dos 20% mais pobres’, [...] as elites impedem ‘as reformas que aliviariam a fome, a pobreza, a doença. A fome é parte inescondível dessa realidade. Estudos do IPEA (Ins-

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tituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontam a existência de 37 milhões de pessoas situadas abaixo do da linha de pobreza, em condições nítidas de miséria ou de indigência (9,2 milhões de famílias) (v. Jornal de Brasília, de 8 de agosto de 1993).21

Segundo Paul Farmer, de acordo com dados do relatório: [...] “Sinais vitais”, do Worldwatch Institute (2003), a desigualdade de renda se reflete nos indicadores de saúde: a mortalidade infantil nos países pobres é 13 vezes maior do que nos países ricos: a mortalidade materna é 150 vezes maior nos países de menor desenvolvimento com relação aos países industrializados. A falta de água limpa e saneamento básico mata 1,7 milhão de pessoas por ano (90% crianças), ao passo que 1,6 milhão de pessoas morrem de doenças decorrentes da utilização de combustíveis fósseis para aquecimento e preparo de alimento. O relatório ainda atenta para o fato de que a quase-totalidade dos conflitos armados se concentra no mundo em desenvolvimento, que produziu 86% de refugiados na última década.22

Para Joseph E. Stiglitz23 , o “número de pessoas vivendo na pobreza aumentou atualmente quase 100 milhões. Isto ocorreu ao mesmo tempo em que a renda mundial aumentou em média 2,5% ao ano”. Fica, por fim, o alerta do Statement to the World Conference on Human Rights on Behalf of the Committee on Economic,


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Social and Cultural Rights: “Com efeito, democracia, estabilidade e paz não podem conviver com condições de pobreza crônica, miséria e negligência”. Um grave problema de miséria assola boa parte da humanidade, segundo Eduardo Luis Leite Ferraz24 , das 79% das pessoas que vivem no Sul pobre; 1 bilhão encontra-se em estado de pobreza absoluta; 3 bilhões têm alimentação insuficiente; 60 milhões morrem de fome; e, 14 milhões de jovens abaixo de 15 anos morrem anualmente em conseqüência das doenças da fome. Em síntese, essas questões e dilemas

precisam ser ponderados quando se implementam políticas públicas de corte social enquanto ações afirmativas que visam ao enfrentamento da exclusão social, para que não se tenha o impessoalismo da pobreza como uma categoria absoluta e para que se possa refletir sobre o cotidiano histórico, cultural e até mesmo pessoal dos usuários dos serviços públicos. Assim, uma coisa é se pensar em ações de saúde, educação e moradia para população de centros urbanos, e outra, bem diferente, é se falar dos mesmos serviços para povos indígenas ou remanescentes de quilombos.

NOTAS 2

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TRUBEK, David. Apud PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 183. 4

FARER, T. Apud PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 183

5

ASSIS, José Francisco de Assis. Direitos Humanos Fundamentação Onto-Teleológica dos Direitos Humanos. Maringá PR: Unicorpore, 2005, p. 341 6

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WOLKMER, Antonio Carlos. LEITE, José Rubens Morato. (Orgs.) Os “Novos” Direi-


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tos no Brasil: Natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 42 9

BITTAR, Eduardo A. B. Maio de 68 e os Direitos Humanos. Conferencia 17.set.2008. II Congresso Transdisciplinar Direito e Cidadania. Dourados MS: UFGD/UEMS, 2008. 10

SILVA, José Afonso da. Apud PIOVESAN, 2009, p. 24.

11

PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 284-285

12

HENKIN, Louis. Apud PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 304.

13

PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 305-306

14

PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 14

15

PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 337

16

COSTA, Álvaro Ribeiro. Apud PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 337

17

PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 184

18

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 447-448

19

GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Políticas dos Direitos Fundamentais Sociais na Constituição Federal de 1988: releitura de uma constituição dirigente. Dissertação. Centro de Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas. São Luiz MA: UFMA, 2005, p.37.

20

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21

PINHEIRO, Paulo Sérgio. Apud PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 337

22

FARMER, Paul. Apud PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 184

23

STIGLITZ, Joseph E. Apud PIOVESAN, Op. Cit., 2009, p. 184

24

FERRAZ, Eduardo Luis Leite. Ars Boni et Aequi, hoje: O Direito e a Causa dos


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Pobres. Florianópolis SC: Revista de Direito do Cesusc nº 2 Jan/Jun 2007, p. 74. REFERÊNCIAS ASSIS, José Francisco de Assis. Direitos Humanos. Fundamentação Onto-Teleológica dos Direitos Humanos. Maringá PR: Unicorpore, 2005 BITTAR, Eduardo A. B. Maio de 68 e os Direitos Humanos. Conferência 17.set.2008 . II Congresso Transdisciplinar Direito e Cidadania. Dourados, MS: UFGD/UEMS, 2008. BORGES, Leticia. OLIVEIRA, Paulo Celso de. (Org) Socioambientalismo: Uma Realidade - Homenagem a Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Curitiba: Juruá, 2006 FERRAZ, Eduardo Luis Leite. Ars Boni et Aequi, hoje: O Direito e a Causa dos Pobres. Florianópolis SC: Revista de Direito do Cesusc nº 2 Jan/Jun 2007. GONÇALVES, Cláudia Maria da Costa. Políticas dos Direitos Fundamentais Sociais na Constituição Federal de 1988: releitura de uma constituição dirigente. Dissertação. São Luiz MA: UFMA, 2005 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009 PIOVESAN, Flávia; CONTI, Irio Luiz (Coord) Direito Humano à Alimentação Adequada. Rio de Janeiro: Lúmen Júris Editora, 2007 PIOVESAN, Flávia; IKAWA, Daniela (Coord) Direitos Humanos: Fundamentos, Proteção e Implementação – Perspectivas e Desafios Contemporâneos. Vol. II. Curitiba: Juruá Editora, 2008 WOLKMER, Antonio Carlos. LEITE, José Rubens Morato. (Org) Os “Novos” Direitos no Brasil: Natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003.


Inform@Cão: UMA EXPERIÊNCIA DE COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL POR MEIO DA NEWSLETTER DO GRUPO FAUNA DE PROTEÇÃO AOS ANIMAIS, DE PONTA GROSSA - PR Aida Franco de LIMA1

RESUMO O presente artigo analisa a maneira como uma ONG, o Grupo Fauna de Proteção aos Animais, localizado na cidade de Ponta Grossa - PR, com onze anos de atuação, trabalhou sua comunicação organizacional junto a um mailing list de aproximadamente 1000 usuários, tendo como objeto de divulgação a newsletter Inform@Cão. A experiência, desenvolvida no período de março de 2004 a setembro de 2005, durante 12 edições, mostrou a eficácia que o uso deste dispositivo apresenta, com feedback altamente positivo por parte do público atingido. Outro aspecto importante, motivo de escolha de tal mídia, é o baixo custo para a elaboração do mailing e a facilidade para ser destinado a um público segmentado. Atualmente, o Grupo atua com outros dispositivos, aliando o trabalho prático e ações ciberativistas. Palavras-chave: Grupo Fauna; Inform@Cão; boletim on-line; mídia alternativa, ciberativismo ABSTRACT This paper analyses the way as a NGO called “Grupo Fauna de Proteção aos Animais” (Fauna Group for Protection of Animals) located in Ponta Grossa town, Paraná state has operated its organizational communication together with a mailing list of around one thousand users for eleven years of actuation. Its disclosing objective was its Inform@Cão newsletter. The experience developed from March 2004 to September 1 Mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; Profª concursada pela PUC–MG com especialização em Educação Patrimonial – UEPG/PR; guia especializada em Atrativos Turísticos Ambientais Senac/Embratur; jornalista – UEPG e militante em ONGs ambientais paranaenses.


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2005 for 12 issues presented the efficiency of this strategy, with a highly positive feedback offered by the public reached. Another important aspect – reason to choose such a media – was the low cust to elaborate a mailing and the easiness to reach a segmented public. Nowadays the Group actuates with further strategies, joining a practical activity to cyberactivist actions. Keywords: Fauna Group; Inform@Cão; online short reports; alternative media, cyberactivism

A COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL E A VALORIZAÇÃO DO REGIONALISMO Um dos temas emergentes para a pesquisa no campo da comunicação organizacional trata do impacto das novas tecnologias e dos novos meios de comunicação sobre as instituições, quer na perspectiva da eficácia da comunicação, quer sobre a transformação do espaço de trabalho e das interações humanas. (ALVES; BLIKSTEIN & GOMES, 2004) Quando nos remetemos ao universo da internet, nos deparamos com a questão das fronteiras, da quebra do polo emissor, dentre outros. Porém, o que nos interessa neste enfoque é tratar das alternativas que a internet possibilita, dos mecanismos de comunicação realizados localmente e “artesanalmente”, mas que conquistam resultados relevantes, tanto de caráter quantitativo quanto qualitativo. Por outro lado, deparamo-nos também com a valorização das mídias locais, que crescem significativamente devido às modificações no cenário dos meios de comunicação, motivadas pela valorização

do local, tanto quanto ambiente de ação político-comunicativa cotidiana, quanto pela oportunidade mercadológica que ele representa. (PERUZZO, 2003) Pensemos nos cartazes, na publicidade comercial e política, nas lojas, nas imagens informatizadas, etc., em suma naquilo que Serge Daney chamou de ditadura do visual. A cada dia são milhares e milhares de imagens que passam sob nossos olhos entediados. Eu gostaria de me perguntar quanto à especialidade das imagens atuais, quanto a seu poder particular, em nossas sociedades mercantis, na hora do desenvolvimento de novas imagens (digitais, virtuais, em 3D) e de novos sistemas de gravação e de transmissão de imagens. Gostaria, sobretudo, de sondar as ilusões próprias de nossa época, que engendram esse volume e esse fluxo de imagens. (WOLF, 2002: 17)

O interesse pela regionalização da produção e a descoberta do local como segmento de audiência, de programas e de conteúdos por parte da grande mídia e de outros veículos de comunicação regi-


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onais e locais atende a um interesse mercadológico. Objetiva-se fundamentalmente abocanhar a verba publicitária dos anunciantes (reais ou potenciais) em cada local. Descobriu-se que o pequeno e o médio anunciantes de bairros e de cidades de interior não se interessam ou não lhes é viável pagar os altos preços cobrados pela mídia nacional ou estadual. Primeiramente, porque este tipo de anunciante consegue se comunicar com o seu consumidor por meio da comunicação dirigida, promoção no ponto de vendas, mídia exterior, veículos de mídia local (quando existentes), etc., e, muitas vezes, nem lhe interessa falar para consumidores em nível nacional ou estadual. Em segundo lugar, porque lhes é financeiramente desinteressante pagar os altos preços de veiculação cobrados pela televisão com cobertura ampliada ou os jornais de circulação nacional. Assim, a grande mídia se regionaliza parcialmente ou criam-se veículos locais para aproveitar o segmento de mercado publicitário local ou regional. (PERUZZO, 2003) De acordo com FAUSTO NETO (1998), tanto as práticas funcionalistas como as estruturalistas viam a recepção como alvo de estratégias, situada em um lugar passivo de produção e de disputa de sentido; em resumo, refém do projeto midiático. Porém, um conjunto de fatores como a remodelagem dos modelos teóricos, com enfoques que tratam a questão das novas formas de produção e do consumo: a emergência de nova concepção de identidades engendradas nos esquemas coletivos dos media; os

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novos formatos de apropriação de informação por parte dos indivíduos; etc. são dentre outras, dimensões que vão instituindo um novo perfil e um novo sujeito, enquanto receptor social. (FAUSTO NETO, 1998)

Pode-se dizer que é com vistas a este novo receptor social que o Grupo Fauna de Proteção aos Animais direcionou o veículo informativo, objeto deste artigo. Pensando em atingir aquele internauta que não é, necessariamente, um militante, mas que pode ser sensibilizado diante de um texto rápido e objetivo e, mesmo prestar contas aos voluntários do Grupo, surgiu o boletim eletrônico denominado “Inform@Cão”. O CENÁRIO QUE MOLDOU A FORMAÇÃO DO GRUPO FAUNA Antes de abordar a utilização desta mídia específica, centrada em um boletim on-line, faz-se importante traçar um perfil da instituição responsável pelo mesmo. Sediado em Ponta Grossa – PR (uma cidade com uma população em torno de 300 mil habitantes), o Grupo Fauna de Proteção aos Animais é uma ONG – organização não governamental, sem vinculação político-partidária, considerada Utilidade Pública Municipal (Lei nº 6.464/00). Fundado aos 2 de setembro de 1998, o Grupo tem entre seus objetivos estatutários a repreensão aos maus tratos aos animais, principalmente aqueles domesticados, como cães e gatos; o recolhimento destes em locais públicos, quando possível, dando especial atenção aos doentes; a promoção da


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conscientização popular mediante a educação ambiental e a defesa da posse responsável, e o incentivo ao controle da população de animais de rua por meio da castração cirúrgica. Mas o Grupo atua em diversas outras fontes, como no apoio à formulação de políticas públicas (em Ponta Grossa, foi aprovada a Lei Municipal 7924/2004, que proíbe a apresentação de circos com animais) e/ou no que concerne ao controle dos javalis no Parque Estadual de Vila Velha. Quando o Grupo Fauna surgiu, articulado como entidade, seus integrantes tinham o ânimo e a garra necessários para auxiliar os animais de rua, e também as duras experiências vividas diante das batalhas individuais que cada um havia travado até aquele momento. Os voluntários acreditavam que, a partir de então, unidos sob um movimento social juridicamente constituído, havia a real possibilidade de, juntos, transformarem suas ideias e propostas em alternativas viáveis. (LIMA, 2004) Suas vozes, até aquele momento isoladas, iriam formar um só coro. Efetuava-se um verdadeiro exercício de cidadania, conforme DURHAM, citado por COSTA (1987): A transformação de necessidades e carências em direitos pode ser vista como um amplo processo de revisão e redefinição do espaço da cidadania. (...) Na verdade, pensar a cidadania é pensar a democracia. É sob o pano de fundo da democracia que um conjunto de direitos sociais, civis e políticos é assegurado aos indivíduos de um Estado – Nação. O reconhecimento e a

garantia desses direitos são a segurança do indivíduo, por um lado, das condições necessárias e indispensáveis à sua manutenção e reprodução e, por outro lado, da sua participação na comunidade política do Estado Nacional. Noutras palavras, pensada no interior de um processo democrático, a questão da cidadania passa pela articulação entre igualdade social e liberdade política, de tal maneira que a existência de uma é condição e garantia da outra. (COSTA, 1987)

Seja no atendimento a um caso específico de um animal que necessita de auxílio ou denúncia de maus tratos, a presença de algum componente do Fauna, naturalmente atrai a atenção de pessoas. E, nessas horas, o diálogo com quem está próximo volta-se a um trabalho paralelo de educação ambiental ou àquilo que GOHN (1995) trata de educação não-formal, que é a educação gerada no processo de participação social, em ações coletivas não voltadas para o aprendizado de conteúdos da educação formal. Nestas oportunidades de contato direto com a população, os voluntários do Fauna repassam informações sobre a importância de as pessoas dispensarem cuidados mínimos aos animais, tanto pela questão ética como pelo aspecto legal, ou seja, por existir uma legislação que coíbe a crueldade contra animais e que pune aqueles que as cometem. GOHN (1995) salienta que é nos anos de 1990, com a crise do Estado brasileiro e seus reflexos no campo das políticas públicas sociais, que aconteceu uma desativação generalizada das ações esta-


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tais sob o argumento da necessidade de diminuir este Estado. E, baseado em princípios neoliberais, os movimentos sociais passam a ser chamados para a realização de parcerias com a comunidade. Progressivamente, estes passam a ser menos reivindicativos e mobilizatórios em relação à população, e mais participativos em ações e projetos coletivos voltados para a solução de problemas sociais, de forma alternativa às práticas convencionais. A mesma autora faz um importante contraponto entre educação e cultura, quando a primeira é abordada como forma de ensino/aprendizagem adquirida ao longo da vida dos cidadãos a partir da leitura, interpretação e assimilação dos fatos, eventos e acontecimentos, que os indivíduos fazem, de forma isolada ou em contato com grupos e organizações. Com relação à cultura, esta é concebida como modos, formas e processos de atuação dos homens na história. Construindo-se no decorrer da história, a cultura está constantemente se modificando, mas, ao mesmo tempo, ela é continuamente influenciada por valores que se sedimentam em tradições e são transmitidas de geração a geração. Também nas entrevistas em rádios, TVs e jornais impressos e internet, o Grupo Fauna propicia esta educação não-formal, e também quando há oportunidade de algum integrante realizar palestras e atividades práticas com escolares do município. Nestas ocasiões, são divulgadas noções de respeito à fauna e controle da população animal. Para GOHN (1995): “Os espaços onde se desenvolvem, ou se exercitam, as atividades da educação não-formal são múlti-

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plos, a saber: na casa-família, no bairroassociações; nas igrejas, nos sindicatos e nos partidos políticos; nas Organizações Não Governamentais, nos clubes, teatros e outros espaços culturais.” As ações práticas do Grupo Fauna resultaram em uma grande quantidade de animais recolhidos nos mais variados pontos da cidade, tendo-se uma estimativa de dez ligações diárias relativas a abandono, atropelamento, maus tratos, dentre outros problemas. Depois de medicados, estes animais precisavam de um espaço para serem alojados. Este local não existia e os animais permaneciam nas clínicas, onde era cobrada uma taxa de hospedagem, até que aparecesse alguém interessado em adotá-los. Esta situação, entretanto, resultou em um alto custo para a ONG, que não tinha nenhuma fonte de renda fixa. A ideia se tornou impraticável. O Grupo ainda não tem sede própria e os animais ficam hospedados em casas de particulares que recebem ração, medicamentos e atendimento veterinário custeados pelos voluntários. A ONG não tem funcionários, somente voluntários, e seus coordenadores não recebem nenhum tipo de gratificação pela função exercida. Eles são médicos, professores universitários, programadores, donas de casa, estudantes, profissionais liberais, dentre outros. Há aproximadamente 15 voluntários militantes, que abrem espaços em sua agenda de trabalho e se imiscuem do convívio familiar para se dedicarem ao Grupo. Os animais abrigados são aqueles que necessitam de cuidados emergenciais, como cadelas prenhes e filhotes abandonados. Porém, estando estes em locais improvisados, são constantes os proble-


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mas com vizinhos que os envenenam e/ ou levam denúncias à Vigilância Sanitária. A BARREIRA QUE CIRCUNDA UM PROBLEMA CRÔNICO DAS ONGS: A FALTA DE RECURSOS FINANCEIROS Com o passar do tempo, os integrantes do Fauna foram amadurecendo, principalmente no que concerne à forma de atuação. Passaram a observar mais a atitude das pessoas, que, muitas vezes, se aproveitavam da boa vontade e compaixão dos voluntários para se livrarem dos animais que não lhes interessavam mais. Este foi um dos motivos que fizeram com que as casas dos voluntários se tornassem verdadeiros locais de “desova” de animais. Ou seja, por saberem que ali estariam bem cuidados, tornou-se comum as pessoas jogarem animais na frente dos portões de suas casas. Os que necessitam de cuidados, mas que, pela falta de espaço, não têm como serem retirados de onde estão, são tratados nos locais que costumam frequentar. Assim, muitos daqueles acometidos pela sarna (o problema mais frequente encontrado nos cães) são tratados nos ambientes em que moram. Outras vezes, são recolhidos, castrados e devolvidos ao local de onde foram retirados. Para arcar com os custos de suas ações, o Grupo depende exclusivamente das doações dos voluntários associados ou eventuais. Eles usam os próprios veículos para o transporte dos animais e ainda, frequentemente, cobrem os custos com veterinários. As principais dificuldades enfrentadas

se referem à ausência de um local adequado para recolhimento e uma clínica própria para atendimento dos animais de rua. Nas casas que hospedam estes animais, não há mais espaço para outros. Soma-se a esta situação o fato de a mão-de-obra ser voluntária e, ainda assim, a comunidade exigir que o Grupo faça atendimentos, quando poucos se dispõem a ajudar os voluntários. Também há críticas por parte de pessoas ou setores da comunidade sem conhecimentos das dificuldades enfrentadas, o que interfere negativamente no trabalho da ONG. Mesmo em se tratando de um serviço totalmente voluntário, como é sempre importante frisar, os integrantes do Fauna são atingidos por críticas destrutivas, de pessoas que exigem atendimento imediato, talvez por acreditar na existência de uma completa estrutura, o que de fato não existe. Desta forma, os integrantes mais atuantes do Fauna, acostumaramse a fazer o trabalho a que se propõem, sabendo que não estão imunes às críticas infundadas, conforme rememora MEDÁGLIA (2005)2 : “Um dia, fomos procurados por uma senhora que havia perdido sua cachorra poodle. Quando a encontramos e a devolvemos, tivemos que ouvir o comentário maldoso da mesma, para outra vizinha, que, em vez de estarmos procurando cachorros na rua, deveríamos era cuidar de crianças”. Provavelmente, o grande problema que o Grupo enfrenta em suas ações é a falta de responsabilidade do poder público, explicitado pela prefeitura local. Tanto nas gestões das administrações municipais de 2001 a 2004 quanto na gestão 2005-2008, o Grupo lutou para firmar convênio, ten-


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do como objetivo a castração cirúrgica de animais que pertenciam a pessoas de baixa renda. Nas duas gestões, as negociações para iniciar as atividades só foram efetivadas na metade de cada mandato. No início de 2009, o Grupo rompeu a parceria com a prefeitura, pois, apesar de toda a infraestrutura da qual o município dispõe, proporcionalmente os voluntários do Grupo conseguiram mais resultados do que em virtude da parceria. Somente a título de exemplo, em 2007 o Fauna castrou 223 fêmeas, enquanto o município realizou 243. A importância destes números reflete o quanto a população de animais deixou de crescer, em apenas um ano, pois, multiplicando estes números por dez (que é a média de filhotes que cada fêmea produz anualmente), significa 4660 filhotes a menos nas ruas revolvendo o lixo, atrapalhando o trânsito, sofrendo maus tratos, agredindo transeuntes, dentre outros problemas gerados por uma situação comum a qualquer cidade do Brasil.3 A COMUNICAÇÃO COMO MEIO DE FORTALECER A IMAGEM INSTITUCIONAL A comunicação organizacional é um campo em completa efervescência. Invariavelmente, esta é visualizada sob o aspecto instrumental e/ou de ferramenta. Porém, é fundamental atentar-se ao viés da representatividade da comunicação como um elemento que evoca para si um emaranhado de significados e significantes entre a instituição e seus stakeholders. O processo de comunicação não deveria mais, afinal, ser encarado como um

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fenômeno que se centraliza na emissão e na mensagem. É na instância da recepção, sobretudo, que se define o êxito da comunicação. No âmbito da comunicação organizacio-nal, isso significa dizer que só podemos mensurar sua efetividade se conseguimos, de alguma forma, capturar a interpretação das mensagens por aqueles tradicionalmente denominados como públicos, ou públicos-alvo.4 (SOARES, 2007: 9)

Esta perspectiva de levar em conta o feedback, o que não é mais nenhuma novidade no cenário contemporâneo, ganha ressonância com o pensamento de FAUSTO NETO (1998), ao ressaltar que a mudança no foco de interesse para o sujeito (receptor) é por conta do abalo das concepções “modernas” sobre o indivíduo e a estrutura social. Conforme o autor: Embora as discussões relativas às questões sobre a recepção de mensagens se desenvolvam há quase meio século, somente nas duas últimas décadas é que a questão toma contornos mais específicos, principalmente na esfera acadêmica e, também junto às instituições que conduzem políticas de transferências de conhecimentos, mediante campanhas institucionais e outros protocolos comunicativos. (FAUSTO NETO, 1998: 2)

Isto equivale a dizer que as preocupações com os impactos de mensagens junto aos usuários das comunicações são contemporâneas da própria emergência da “cultura técnica mediática”. Neste contexto, duas correntes se posicionaram: a pri-


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meira, mais pragmática, em busca de conhecer os efeitos evocados pelas ofertas das emissões; a segunda, com um fundo pessimista, denunciava o poder de emissão dos media em relação aos receptores passivos. Além da dispersão dos indivíduos, no tecido social, destaca-se a ascenção de modelos de hierarquia e de confiabilidade pautados em estratégias comunicacionais desenhadas de fora para dentro em relação ao âmbito e controle dos grupos primários. (FAUSTO NETO, 1998: 3)

Conforme o autor citado, foi a partir de um cenário em que os indivíduos eram vistos sem qualquer proteção da ação dos media, e aceitando os caprichos e interesses da fonte emissora que tiveram início os estudos das mais variadas correntes teóricas, questionando os papéis, funções, impactos destes na sociedade. (FAUSTO NETO, 1998) A partir da perspectiva funcional, a recepção apresenta duas características básicas que surgiram há pelo menos três décadas a partir de pesquisas. Uma perspectiva mais ortodoxa e suas conse-quentes variantes e uma postura de relativização do impacto da ação emissional comunicativa traduzem estas inquietações. O condutivismo operante, capaz de gerar efeitos previsíveis e lineares na recepção; o Agenda Setting, que pauta as agendas diárias, e a Teoria de Comunicação Emdois-tempos, que transfere os conhecimentos, acabam por exemplificar o viés ortodoxo. Na perspectiva heterodoxa, os efeitos provocados pela esfera emissional

são mais “modestos”. Aqui, os emissores não absorvem passivamente as informações transmitidas, mas as observam e as submetem a critérios de seletividade e às suas expectativas de uso e recompensa. Desta forma, conceitos edificados sob a luz da antropologia dão lugar a denominações de ordem psicológica. Ou seja, termos como massa, audiência, grupos abrem campo para motivação, necessidade, preocupações, identificação, cognição. (FAUSTO NETO 1998). Ainda de acordo com FAUSTO NETO (1998), o poder de artilharia dos media sobre os indivíduos ganha ênfase significativa em ambas as correntes, funcionais e estruturais-marxistas. MENEZES (2007) faz uma abordagem sobre o verdadeiro desafio que a comunicação significa para as ONGs: A importância das Organizações Não Governamentais (ONGs) nos dias atuais é indiscutível. Mas muitas delas têm seu poder de ação limitado e até têm sua sobrevivência ameaçada pelo fato de não despertarem para a necessidade de um trabalho de comunicação estratégica. Enquanto muitas ONGs ainda consideram a comunicação como um luxo, algumas já despertaram para a sua necessidade, estão se beneficiando deste instrumento e se tornando cada vez mais sólidas e atuantes.O primeiro desafio da comunicação nas ONGs é revelar à sociedade a real face dessas instituições, que há muito tempo deixaram para trás seu caráter assistencialista, mas ainda continuam no imaginário da maioria da sociedade como tal. (MENEZES: 2007)


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Após o advento da internet, o Fauna agilizou seu modo de comunicação e o contato com outras ONGs ganhou maior frequência, pois, até então, eram feitos de modo eventual ou em virtude da articulação de alguma mobilização. Os convites para a participação em seminários, eventos, simpósios são constantes, mas a locomoção é sempre uma barreira. A ONG mantém maior contato com outros grupos da região Sul e Sudeste. ONGs precisam do apoio dos diversos segmentos da sociedade para sobreviver e como fazer isso se ela não tiver uma imagem de credibilidade? E como sabemos, as imagens são construídas e precisam ser reforçadas constantemente. Caso contrário, a coca-cola não precisaria mais fazer trabalhar sua imagem e esse é um trabalho que tem que ser feito sistematicamente. ONGs que têm uma imagem consolidada conseguem com mais facilidade angariar doações e voluntários. Além de parcerias, como ser beneficiada através de campanhas nacionais e até internacionais. Por falar em campanhas, muitas empresas buscam ONGs para ajudar na rede mundial de computadores, a Internet, e aí mais uma vez a comunicação se faz indispensável e não ter uma página na Internet, ou tê-la desatualizada e/ou feita de qualquer jeito, sem um profissional da área de comunicação, pode significar muitas perdas. (MENEZES, 2007)

Em relação à aceitação da mídia local, frente aos trabalhos do Fauna, a ONG é

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referência para a maioria dos casos que envolvem a questão animal. São frequentes matérias em veículos locais e regionais, sendo que somente as matérias catalogadas em meio impresso ultrapassam a faixa de 300 títulos. A importância dos trabalhos desenvolvidos pela ONG é reconhecido por meio de monografia de especialização e graduação, artigos científicos, participação em congressos em que a mesma é alvo de pesquisa. Outro fator importante a ser analisado é o relacionamento com a mídia. Esperar que a mídia busque a ONG não é suficiente. É preciso compreender “o papel que a grande mídia pode desempenhar como parceira dos movimentos sociais. Cada vez mais as organizações sem fins lucrativos se dão conta da importância da mídia no processo de comunicação com o conjunto da sociedade” (KAY: 1999, apud MENEZES, 2007).

Internamente, o Grupo veiculou com certa periodicidade o “Informativo do Fauna”, destinado aos sócios e colaboradores, abordando os trabalhos realizados, bem como os cuidados gerais, por via impressa. Outro meio de divulgação é a venda de adesivos, que auxiliam nas despesas. O CIBERATIVISMO COMO INSTRUMENTO DE MOBILIZAÇÃO De acordo com LEMOS5 , o ciberativismo abriga atitudes centradas na mobilização, informação e ação, tendo como suporte essencial de luta as novas


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tecnologias do ciberespaço. Deste modo, um número cada vez maior de grupos organizados usa portais para veicular informações relevantes às suas causas, mobilizando indivíduos para uma ação específica em um determinado espaço público, tendo como mecanismo de mobilidade os meios eletrônicos nas mais variadas partes do mundo com fins de protesto. Deparamo-nos diante do espaço eletrônico utilizado de forma complementar ao espaço físico, tornando o primeiro mais complexo. As características do ciberativismo são espelhadas em “redes de cidadãos que criam arenas, até então monopolizadas pelo Estado e por corporações, para expressar suas ideias e valores, para agir sobre o espaço concreto das cidades ou para desestabilizar instituições virtuais através de ataques pelo ciberespaço (hacktivismo).” (LEMOS: 2003) Ainda de acordo com o mesmo autor, o ciberativismo se refere a práticas sociais associativas de utilização da internet por movimentos politicamente motivados, com o intuito de alcançar suas novas e tradicionais metas. O autor cita grupos como o Electronic Disturbance Theatre ou o Critical ArtEnsemble, por exemplo, que fazem protestos pela redes (ataques DoS, desfigurações, etc) contra a globalização, contra os transgênicos, etc. Nestes casos, e em todo o ciberativismo, o objetivo é difundir informações e reivindicações sem mediação, e organizar ações independentes e livres. Diante deste contexto, LEMOS (2003) ressalta que é possível se pensar em três grandes categorias de ciberativismo:

1. conscientização e informação, como as campanhas promovidas pela Anistia Internacional, Greenpeace ou a Rede Telemática de Direitos Humanos; 2. organização e mobilização, a partir da internet, para uma determinada ação (convite para ações concretas nas cidades) e; 3. iniciativas mais conhecidas por “hacktivismo”, ações na rede, envolvendo diversos tipos de atos eletrônicos como o envio em massa de emails, criação de listas de apoio e abaixo-assinados, até desfiguramentos (defacing) e bloqueios do tipo DoS (Denial of Service). (LEMOS, 2003)

Parte da história dos onze anos do Grupo Fauna não foi registrada em vídeo ou fotografias, por impedimentos financeiros, o que tem sido possível de se realizar somente em anos recentes, com a popularização das câmeras digitais, adquiridas particularmente por seus voluntários, mas compartilhadas para o registro de suas ações. A historiografia do Grupo centra-se, principalmente, em páginas da mídia impressa, inclusive sendo tema de monografia no ano de 20046 . A primeira home page do Grupo foi ao ar em 2003, por conta de um convênio firmado com o curso de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, sendo atualizada somente por um determinado período, por conta da falta de material humano. Porém, com a iniciativa da professora e mestre em Biologia, Andresa Liriane Jacobs, uma das voluntárias, inaugurou-se em 13 de março de 2003 a lista de discussão grupofauna@grupos.com.br,


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com o objetivo de trocar informações entre os integrantes locais e demais voluntários de ONGs similares do Brasil. Diante da necessidade de se efetuar uma ponte com os apoiadores do trabalho desenvolvido e atingir futuros colaboradores, o Grupo optou por um novo canal de informação, agora não mais dirigido somente aos associados. A ideia deu lugar a uma newsletter semanal que sintetizava as principais ações realizadas. A proposta foi de elaborar um material com fácil visualização e leitura dinâmica, para que o internauta não tivesse que dispensar mais que cinco minutos para a leitura. Foi assim que surgiu o primeiro exemplar do Inform@Cão. Ao todo, foram elaborados e veiculados 12 exemplares do informativo, sendo o primeiro publicado na semana de 13 a 18 de agosto de 2004 e o último no período de 17 de setembro de 2005. Uma das características importantes que influenciou na aceitação do informativo via email é pelo fato de o mesmo ser exibido diretamente no corpo do email, e não como um anexo, o que diminui a desconfiança do destinatário de ter sua máquina invadida por vírus. Elaborado no programa Microsoft Office Publisher, o informativo apresenta facilidade para ser diagramado e enviado, pois, desde que não haja fotos muito “pesadas”, o envio transcorre de modo eficaz. Mas como falar de cães de rua e/ou animais abandonados e maltratados diante de tantos assuntos mais importantes no universo virtual? Como uma ONG pode chamar a atenção do internauta, em meio a uma gama infindável de outros temas no meio virtual? Uma particularidade para se tentar responder a estes questionamentos

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refere-se ao padrão de linguagem escolhida para tratar do tema. Sem ser piegas e/ ou sensacionalista, o caminho que o Grupo julgou mais adequado foi ao da criatividade. Assim, a cada edição foram delimitados os temas a serem abordados, com as chamadas em um breve editorial. Uma coluna fixa seria focada na divulgação dos animais a serem adotados, com um detalhe: o verbo na primeira pessoa. Ou seja, o Grupo achou por bem dar voz aos personagens que ilustravam cada edição. E esta foi uma estratégia muito bem sucedida. A cada edição do Inform@Cão, disparada aos finais de semana, a repercussão na semana seguinte era certeira: sempre havia comentários de pessoas que ora se diziam sensibilizadas com os casos relatados ou apenas querendo se solidarizar aos voluntários, ou ainda, em outras ocasiões, internautas se predispunham a conhecer e atuar junto à ONG. Dentre os temas veiculados nas edições, os principais se relacionam à retrospectiva sobre a história do Grupo; à indicação do Fauna para concorrer a uma premiação na categoria educação; à reunião promovida com o comando da PM e órgãos de meio ambiente para discutirem a Lei de Crimes Ambientais; a transformação da ONG em Oscip; o trabalho voluntário de militantes; a instauração de inquérito policial para investigar tortura contra animais; a feira de adoções; o abandono de animais em praça pública; a apresentação do projeto Castra-cão em Campinas – SP, a proposta de lei apresentada à Câmara dos Vereadores que proíbe circo com animais na cidade; a aprovação da lei de circos sem animais; a divulgação da campanha “Não à Usina de Barra Gran-


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de”; a bioética; os animais atropelados; o envenenamento e o projeto de castração de animais de pessoas carentes, aguardando decisão da prefeitura local. Por fim devemos pensar ainda a comunicação interna como um elemento fundamental para uma ONG. É através de um trabalho bem feito nessa área que o público interno irá se engajar com a causa e hoje em dia já se sabe que para as pessoas se engajarem, elas precisam estar bem informadas e se sentirem como parte integrante e ativa da instituição. Com isso, elas farão seu trabalho dentro da instituição com muito mais compromisso e serão importantes multiplicadores dessas informações, fazendo a conhecida e tão importante propaganda boca-aboca. Por todos esses aspectos, a comunicação se faz cada vez mais necessária em ONGs não só por uma questão de sobrevivência, mas também pelo fato de que o seu objetivo maior, que é a intervir na realidade, só será alcançado em sua plenitude, através de uma comunicação eficiente. (MENEZES, 2007)

Mesmo com pouco espaço, é possível observar a amplitude dos temas abordados, notando ainda que estes vão além das ações localizadas do Fauna. Ao longo do período em que foi veiculado, o boletim foi enviado a uma média de mil destinatários. É importante frisar que este número foi progressivo, diante da grande

aceitação do mesmo, o que estimulou a solicitação do envio por pessoas até então não cadastradas. Apesar da grande aceitação e, justamente por conta da alta demanda de serviços, o boletim foi temporariamente desativado. Porém, outros mecanismos passaram a ser utilizados, fazendo do ciberativismo uma extensão muito próxima dos trabalhos do cotidiano. Atualmente, o Grupo mantém espaços virtuais como o site http://www.grupo fauna.org/, que rememora a história da ONG e publica uma série de informações sobre a linha de atuação e contatos com seus voluntários, e um projeto, alocado no endereço http://www.portalcomuni tario.jor.br/news.php?cat.80, em que constam as notícias mais recentes da ONG e suas ações cotidianas, realizado mediante uma parceria com o curso de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ainda há o blog http://grupofauna. blogspot.com/, exclusivo para divulgar animais disponíveis para adoção e animais perdidos. Um perfil no Orkut é outra ferramenta utilizada, situada no endereço http://www.orkut.com.br/Main#Profile. aspx?uid=14789329969130067731, com 896 integrantes e uma comunidade, http:/ /www.orkut.com.br/Main#Community. aspx?cmm=21450716, com 359 integrantes. A antiga lista de discussão no “grupos.com” foi substituída por um endereço de email, grupofauna@gmail.com, com um mailing de aproximadamente 400 pessoas que pedem para receber informações, simpatizantes ou ligadas à causa.


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NOTAS 2

Karina Roseres Cunha Medáglia apud Lima.

3

Todas as informações relativas ao Grupo Fauna foram retiradas de dados da monografia de especialização de Aida Franco de Lima e de atas do próprio Grupo. 4

SOARES, Ana Thereza Nogueira. Comunicação e organizações sob a influência da complexidade e do risco – uma análise conceitual. Texto utilizado na disciplina isolada “Processos Interacionais nas Organizações”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social – Mestrado em Interações Midiáticas PUCMG, no primeiro semestre de 2007, p. 6. 5

Ciberativismo, in Correio Brasiliense, Caderno Pensar, 15 de novembro de 2003.

6

LIMA, Aida Franco. Um resgate histórico do Grupo Fauna de Proteção aos Animais através da mídia impressa – Especialização em Educação Patrimonial – UEPG, 2004. BIBLIOGRAFIA BLIKSTEIN, I. et alii. Nota Técnica: os estudos organizacionais e a comunicação no Brasil. In: Stewart Clegg et alii (orgs.). Handbook de Estudos Organizacionais. São Paulo: Editora Atlas, 2004. FAUSTO NETO, Antonio. O indivíduo apesar dos outros – Modos de Descrever, Modos de Construir, O Mundo da Recepção. Conferência apresentada no Seminário sobre Estudos de Avaliação das Ações do IEC – Ministério da Saúde – Brasília, 10 e 11 de novembro de 1998. GOHN, Maria da Glória. Educação Não-Formal no Brasil Anos 90. Campinas: Faculdade de Educação/Departamento de Administração: out. 1995. LEMOS, André. Ciberativismo. in Correio Brasiliense, Caderno Pensar, 15 de nov. de 2003. LIMA, Aida Franco de. Resgate Histórico do Grupo Fauna de Proteção aos Animais através da mídia impressa. Monografia do Curso de Especialização em Educação Patrimonial, do Dpto. de Métodos e Técnicas da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Ponta Grossa, 2004. MENEZES, Dinah. Comunicação nas ONGs. Luxo ou necessidade? Disponível em:< http:/ /64.233.169.104/search?q=cache:beEDaubqzxYJ:www.comtexto.com.br/


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2convicomcctsDinahMenezes.htm+a+comunicacao+das+ongs&hl=ptBR&ct=clnk&cd=2&gl=br> Acesso em 01 fev. 2008. NOVELLI, Ana Lucia Romero. Pesquisa de opinião. In: DUARTE, Jorge; BARROS, Antonio (org.). Métodos e técnicas de pesquisa em Comunicação. São Paulo: Atlas, 2005 OLIVEIRA, Ivone de Lourdes & MONTEIRO, Luisa da Silva. Constituição do campo da comunicação das organizações: interfaces e construção de sentido. Texto utilizado na disciplina isolada “Processos Interacionais nas Organizações”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social - Mestrado em Interações Midiáticas da PUC-MINAS, no primeiro semestre de 2007, p. 6. PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Mídia local e suas interfaces com a mídia comunitárias. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Belo Horizonte, 2 a 6 set. 2003, p. 16. SOARES, Ana Thereza Nogueira. Comunicação e organizações sob a influência da complexidade e do risco – uma análise conceitual. Texto utilizado na disciplina isolada “Processos Interacionais nas Organizações”, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social – Mestrado em Interações Midiáticas PUC-MG, no primeiro semestre de 2007, p. 6. WOLF, Francis. Por trás do espetáculo: o poder das imagens. In: NOVAES, Adauto (org.). Muito além do espetáculo. São Paulo: Editora Senac, 2005: p. 16-45.


O CORPO DA MULHER EM SITUAÇÃO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: O FEMININO ENCARCERADO DO DESCASO AO ABANDONO Tânia Teixeira LAKY1 RESUMO Na presente pesquisa o objeto de estudo será a mulher em situação de privação de liberdade: o feminino encarcerado. Do descaso ao abandono. Será delimitado o espaço da cidade de São Paulo, a maior cidade do Brasil e da América Latina, e que tem a maior população encarcerada do país, em número populacional e de presídios. A presente pesquisa visa apresentar como se dá o atendimento médico às essas mulheres, cidadãs e sujeitos de direitos, segundo o ordenamento jurídico brasileiro. Atualmente, no referido sistema prisional paulistano, temos muitas mulheres vivendo em situação de cárcere, e se olharmos para a maior penitenciária feminina do país, estas mulheres estão sofrendo em pleno século XXI inúmeras violências, que não têm viés de gênero, raça, idade, nacionalidade. A mulher encarcerada é vitimizada e violentada. Essas violências e vitimizações começam por meio do não acesso a práticas de prevenção, tratamento e acompanhamento médico, aqui temos o seu corpo-encarceradodoente. Há outras lesões em seus direitos não observados nos ditames da norma constitucional e na LEP – Lei de Execução Penal brasileira. A negligência do poder público torna-se vitimizadora, atingindo a mulher encarcerada, onde não há políticas públicas para a mulher que estão presas, no Brasil. Palavras-chave: Corpo Feminino, Violência, Lei de Execução Penal. ABSTRACT In this current survey, the research object will be the woman under a situation of freedom privation: the imprisoned feminine. From negligence to abandon. São Paulo will be chosen, the biggest city of Brazil and South America, which has the largest

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Advogada e Assistente Social. Mestra em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, Doutoranda em Serviço Social pela PUC-SP. Coordenadora do NPJ do Curso de Direito da UNINOVE Universidade Nove de Julho (São Paulo). Membro do NDE, do Curso de Direito da UNINOVE.


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imprisoned population of the country, talking about population and prisons numbers. This survey aims to introduce how the medical assistance reach these women, citizens and people with rights, according to the Brazilian’s juridical ordainment. Nowadays, talking about São Paulo’s prison system, we have many women living in jail, and if we look into the country’s biggest female prison, we will see these women, in the 21st century, suffering several aggressions, that do not have gender, race, age and nationality obliquity. The woman under confinement becomes a victim and is violated. These violations begin without the access to prevention practices, treatment and medical attendance, so there lays an imprisoned-sick-body. There are other wounds in their rights that were not observed in the constitutional regime principles and in Brazilian’s PEL – Penal Execution Law. The public power laziness becomes victimizing, affecting the imprisoned woman, which has no public policy when arrested in Brazil. Keywords: Feminine Body, Violence, Penal Execution Law

INTRODUÇÃO A presente comunicação trata de um dos temas mais importantes, mas pouco discutidos no Brasil: a saúde da mulher encarcerada. São pouquíssimas as informações com relação à situação das mulheres que estão sob o regime prisional, nos 27 estados da federação e no distrito federal. Analisaremos a situação do corpo da mulher encarcerada, no tocante à sua saúde. Na cidade de São Paulo, onde a população carcerária nessa cidade está proporcionalmente acima da média nacional, percebemos que há poucas pesquisas acadêmicas, que tem por objeto de estudo a situação da saúde da mulher presa, embora as presas representem entre quatro e cinco por cento da população carcerária no Brasil, e na condição de ser minoria do sistema penitenciário nacional, tem-se aqui a questão clara da sua (in)visibilidade, por isso, não trazem para o centro do debate, a sua real situação. Segundo dados da SAP - Secretaria de

Administração Penitenciária, órgão do Governo do Estado de São Paulo, que tem como missão a aplicação da Lei de Execução Penal, e observando-se a sentença judicial,o objetivo da SAP é fazer cumprir a ressocialização dos sentenciados, seja homens ou mulheres. Atualmente a SAP administra 144 unidades prisionais em todo o Estado de São Paulo. Os dados oficiais são alarmantes, temos 360 presos para cada 100 mil habitantes em São Paulo, enquanto no resto do país a proporção é de 212 presos para 100 mil habitantes. Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, em entrevista à Agência Brasil, disse que a população carcerária no Brasil teve um crescimento acelerado, e que dobrou desde 1995, e conta atualmente, com mais de 350 mil presidiários. Podemos afirmar que com este aumento significativo de presos e presas, não houve a devida adequação do sistema penitenciário à realidade acima demonstrada. Temos no Brasil além do problema de superlotação dos


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presídios, a falta de condições higiênicas e sanitárias, consideradas precárias, problemas graves de saúde no interior da massa carcerária, o não cumprimento da progressão de regime prisional, etc. Diante desses fatores, Soares afirma: “Com isso, vamos criando progressivamente um caldo de cultura para as rebeliões, porque o ressentimento e o ódio são muito grandes e as condições para organização são facilitadas por essa incompetência e essa fragilidade institucional”.

Na verdade, temos um sistema prisional falido, e o crescimento da população prisional no país, está acompanhado de violações dos direitos humanos provocados pela superpopulação, pelo desrespeito da Constituição Federal, da legislação penal, processual penal e da Lei da Execução penal, e por fim pela falta de promoção das penas alternativas. A SITUAÇÃO PRISIONAL NO ESTADO DE SÃO PAULO, HOJE Há que ressaltar, aqui, que as prisões de São Paulo têm cinqüenta por cento mais detentos que vagas. A grosso modo, isso quer dizer que o sistema prisional do Estado de São Paulo, opera hoje, em 2008, com uma população acima da sua capacidade operacional. Dados indicam que estão presas no Estado de São Paulo 145.096 pessoas para 96.540 vagas existentes no sistema prisional paulista. Estes dados foram apresentados pelo DEPEN – Departamento Penitenciário nacional, órgão do Ministério da Justiça, daí podemos

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deduzir que para cada dois presos com vaga e regular no sistema prisional temos um preso que está em situação de irregularidade, vivendo em condições sub-humanas, tendo seus direitos desrespeitados, enquanto sujeitos de direitos e deveres, pois a Lei de Execução Pena brasileira não está sendo cumprida. Há que se considerar aqui, que estes dados foram apresentados pelo DEPEN, pois a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo não fornece as estatísticas da população carcerária, porque o governo estadual entende ser questão de segurança essas informações, e não há no site da SAP quaisquer informações sobre as unidades prisionais, número de vagas e a população de cada prisão, neste espaço geopolítico, São Paulo. Para esta comunicação utilizamos os dados do DEPEN, que fez a comparação dos dados apresentados pelo governo paulista, da população carcerária de São Paulo de 2006 até junho de 2008, e foi detectado uma realidade caótica, com um aumento significativo entre a oferta e a real demanda de vagas nas prisões no estado mais populoso e mais rico do país. Já em dezembro de 2006 o DEPEN tinha chegado a conclusão que o sistema prisional paulista operava com um déficit de 44% que o número de vagas que possuía, ou seja, em 2006 tinha 90.696 vagas e 40.118 presos acima da capacidade. Sabemos que daquela época para cá esse número só aumentou e hoje o DEPEN apresenta o número de vagas de 6,4%, representando um universo de 96.540 presos, enquanto o número de detentos subiu vertiginosamente para 21%, representando 48.556 encarcerados sem vagas.


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O periódico a “Folha de S. Paulo” no Caderno Cotidiano, página C5, do dia 13 de outubro de 2008, apresentou a seguinte matéria jornalística, com a seguinte manchete:“Prisões de São Paulo têm 50% mais detentos do que vagas”: onde o Censo revela que no Estado de São Paulo, há 145 mil pessoas presas, mas apenas 96 mil vagas, no Estado. Presos no sistema penitenciário: 145.096; População prisional do Estado de São Paulo (sistema prisional + carceragem da polícia), atualmente com 158.447 presos. Se há 96.540 vagas para 158.447 presos, o déficit é de 48.556 vagas, no Estado de São Paulo. É importante aqui deixar registrado que a matéria publicada acima, apresenta o número da população carcerária do Estado de São Paulo, mas não especifica o número de presos e presas, na verdade, nos é dado apenas, a massa carcerária paulista. Acreditamos que a escassez de vagas do sistema penitenciário paulista está diretamente relacionada ao número exorbitante de presos provisórios que estão aguardando o julgamento nas prisões, se os mesmos pudessem aguardar a decisão judicial em liberdade, teríamos uma outra realidade, e ademais há a demora na concessão de progressão de regime prisional, por inúmeras razões que não convém enumerá-las neste artigo. Porém há um estudo de 2008, da Pastoral Carcerária Cristã, do voluntariado cristão e da capelania das prisões, de São Paulo, realizado na Penitenciária Feminina de Sant’ana, na zona norte da capital paulista, que apontaram 274 presas que cumpriam pena por crime considerados de menor gravidade e que por determi-

nação legal as mesmas, por exemplo, já faziam jus ao a progressão de regime fechado para o semi-aberto. Valdir João Silveira, padre que atua na Pastoral Carcerária Cristã, afirmou à entrevista no jornal Folha de S. Paulo, em 14/10/08: “Existe falha no Judiciário em não fazer com que as pessoas progridam no regime”. O professor de Direito Penal, Dr. Maurício Zanoide de Moraes, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, também se manifestou à reportagem acima, dizendo: “construir novos presídios não é a solução. O Judiciário deve agilizar os processos e os pedidos de progressão de regime. A progressão é necessária para readaptar a pessoa ao convívio social. Quando o Estado reconhecer os direitos das pessoas de maneira mais rápida, não serão necessárias tantas vagas”.

A REALIDADE DA MULHER ENCARCERADA. O PERFIL DA MULHER-PRESA Sabemos que a população carcerária feminina, em São Paulo, como no resto do país, tem no seu contingente mulheres jovens, pobres, mães-solteiras, afrodescendentes: negras e pardas e com baixo grau de escolaridade. Pesquisas prisionais, em 2008, demonstram que a metade da população carcerária no Brasil, tem menos de trinta anos. Podemos dizer que está assim distribuída segundo as idades dos presos e presas: faixa etária de 18 a 24 anos : 46.005 presos; de 25 a 29 anos: 37.708 presos; de 30 a 34 anos: 24.478 presos; de


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35 a 45 anos: 19.653 presos; de 46 a 60 anos: 7.410 presos; mais de 60 anos: 1.525 presos; e não informado: 259 presos. Há que se registrar, aqui, que referida notícia jornalística não fornece os números exatos, entre homens e mulheres, o que nós temos aí demonstrado são os números da massa carcerária, sem a distinção por sexo. Por outro lado os condenados estão presos por terem envolvimentos em tráficos de drogas ou entorpecentes e roubo. Se buscarmos os dados fornecidos pelo DEPEN, em novembro de 2006, temos o seguinte, quadro abaixo: Faixa etária

Mulheres

H om ens

18 a 24 anos

26%

34%

25 a 29 anos

23%

27%

30 a 34 anos

19%

17%

35 a 45 anos

22%

16%

46 a 60 anos

08%

06%

Mais de 60 anos

> 01%

01%

Total de mulheres: 10.649 Total de homens: 214.951 Fonte de dados: DEPEN, novembro de 2006.

Com os dados acima, de 2006, podemos dizer que o perfil etário das presas no Brasil é na maioria entre os 30 e 60 anos, enquanto os homens na sua maioria estão na faixa entre 18 a 29 anos de idade. O Estado de São Paulo, naquele período, concentrava 41% da população carcerária do país. Vamos aqui, na presente comunicação, nos ater somente a atenção integral à saúde prisional da mulher encarcerada, essa delimitação se faz necessária em face das inúmeras problemáticas sofridas pelas presas brasileiras e estrangeiras, a saber, segundo as condições carcerárias e as graves violações de

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gênero, as condições desumanas e degradantes das unidades prisionais específicas para mulheres e que nas suas arquiteturas oprimem e não respeitam os direitos das presas, em algumas delas não há espaço para o lazer, a cultura, biblioteca, acesso à educação, visita íntima, adequação necessárias ao acesso de deficientes, não há atenção necessária às presas doentes, idosas, grávida, e as que estão na menopausa, ademais, há falta de produtos essenciais de higiene asseio, como papel higiênico absorvente higiênico, pasta dental, escovas de dentes, remédios para cólicas menstruais e para menopausa; aqui podemos afirmar que o Estado não disponibiliza à estas mulheres tais produtos. O Estado apenas prende, confina, seqüestra a liberdade de ir e vir dessas mulheres. E para as presas que não têm família e as que são abandonadas pelas mesmas, na sua situação de encarcerada, tem que contar com a solidariedade das suas colegas de infortúnio, para que lhe dê o absorvente higiênico, papel higiênico e até medicamentos. Há casos de mulheres que vão acumulando durante o mês, miolo de pão para serem usados, na falta de absorventes usam-no na improvisação como “modess”, durante o período menstrual. As presas, muitas vezes, dependem de doações feitas pela Pastoral Carcerária, de acadêmicos de direito, de professores de direito e da população do entorno daquele sistema prisional. Além da exclusão histórica da mulher brasileira, ao longo do tempo, como é sabido por todos, há no caso das presas o total descaso somado ainda ao abandono pelo Estado, e também por parte dos familiares da mulher encarcerada. Obser-


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vamos aí, uma dupla vitimização, que consideramos que haja o descaso e ao mesmo tempo, o abandono. Há o estigma de que a mulher, na nossa sociedade, não pode delinqüir pois ela tem que cumprir os papéis, socialmente impostos: de mãeprotetora-cuidadora-pacificadora, etc. E se isso acontecer, se ela cometer algum delito, ela sofrerá várias vitimizações quer pelo jus puniendi do Estado, quer pela sociedade, pela pena de banimento, quer, ainda, pelos seus entes queridos. Podemos dizer que a primeira dessas vitimizações dá-se pela (in)visibilidade da condição de ser mulher-encarcerada. Quando se fala em sistema prisional no espaço geopolítico de São Paulo, local por excelência onde encontramos o maior número de pessoas encarceradas, no Brasil, pensamos logo no cenário da prisão masculina com todas as suas problemáticas, que são amplamente divulgadas em filmes, livros, noticiadas pela mídia falada, escrita e televisiva. Tomamos ciência, através desses meios de comunicações da realidade nua e crua vivida pelos homens nas penitenciárias paulistas e paulistanas, quais sejam: a questão das superlotações, as rebeliões e brigas internas, entre o “direito não-oficial” das facções do PCC – Primeiro Comando da Capital versus o C.R.B.C. – Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade, por exemplo. Há que se ressaltar aqui, que a divulgação e a visibilidade para os membros da sociedade brasileira e internacional dá-se apenas quando preso, é o masculino-encarcerado. E quanto a situação das mulheres que vivem sob o mesmo sistema de encarceramento há um silêncio, e muito pouco se fala...Perguntamos: o por que

dessa (in)visibilidade? Será que as mulheres presas não sofrem os mesmos problemas que vivenciam os homens aprisionados? Em São Paulo, no ano de 2004, houve uma rebelião na Penitenciária Feminina da Capital, que teve a duração de dois dias e deu-se por causa da superlotação, naquele local. A capacidade populacional era para 450 presas e estava abrigando 681 mulheres, naquela época, e contava com um excedente de 66% para aquele espaço prisional, caracterizando um excedente de 231 mulheres presas. Esta rebelião acabou de uma forma trágica, com uma presa morta e trinta presas rebeladas sendo transferidas, e por fim, através dessa tragédia conseguiu-se dar mais visibilidade à problemática da mulher no sistema prisional paulistano. Se levarmos em conta a percentagem acima apresentada de que “só” e “apenas” quatro a cinco por cento de mulheres estão encarceradas em face da numerosa população masculina encarcerada, entendemos que diante os índices acima apresentados, dá-se a questão da invisibilidade. Há poucas mulheres encarceradas, conseqüentemente o poder público não dê muita atenção aos problemas sofridos cotidianamente, pelas mulheres encarceradas em São Paulo e quiçá, no Brasil. Dessa forma, a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, vai colocar em suas prioridades atenção aos problemas do preso, porque são muitos, por ser a maioria no universo prisional. Ademais, os homens-encarcerados reivindicam soluções para os seus problemas, e para que as autoridades dêem mais atenção às suas necessidades.


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Na presente comunicação vamos apresentar e analisar como se dá o atendimento médico às essas mulheres, cidadãs e sujeitos de direitos, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, em especial no tocante a Constituição Cidadã e a Lei de Execução Penal. A pena de privação de liberdade tem como fundamento o controle do corpo do indivíduo, há a supressão deste corpo do mundo exterior, e o seu enclausuramento tem o objetivo da punição e da prevenção de cometer novos crimes, e nos ensinamentos de Maria de Nazareth Agra Hassen (2001): “uma vez que aquele corpo é tomado como agente de vontade ou compulsão criminosa até que seja arbitrada a sua ressocialização (regime aberto, liberdade condicional) ou cumprida a totalidade da pena”. A Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 institui a Lei FAVORECENDO deALGUNS ExecuçãoFATORES Penal no Brasil, e no seu arA CONCENTRAÇÃO tigo 1º contém dois objetivos, a saber: Fatores Produto *produto requerendo uma adaptação aos “A execução diferentes mercados;penal tem por objetivo * compras repetitivas; efetivar as disposições de sentença ou * produto no meio de seu ciclo de vida. decisão criminal e proporcionar conFatores Mercado * número limitado de mercados dições para a harmônica integração comparáveis; social do condenadocom e do internado”. *mercados/segmentos volume elevado; * mercados estáveis; O primeiro objetivo diz respeito a * fidelidade de compra elevada; * fraco risco de mandamentos reação da concorrência em efetivação dos da sentencada mercado geográfico.

ça ou decisão criminal , destinados a preFatores de marketing venir ou reprimir crimes. O segundo ob*necessidade de adquirir um jetivo, buscamos, ipsis litteris, artigo conhecimento aprofundado do no mercado e/ou dos intermediários supra mencionado, que; é a de “proporcio* Investimentos importantes para atingir a nar condições a harmônica integração massa critica para de cada país (em atividades promocionais, serviço após-venda); social do condenado e do internado”. * insuficiência de recursos para se ocupar finalidade da pena foi discutida em deA novos problemas de gestão. três teorias: para as teorias absolutas, onde o fim da pena é o castigo pelo mal praticado, e o pagamento dá-se com o

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encarceramento do corpo daquele que cometeu delito; para as teorias relativas, atribuía-se à pena uma finalidade prática: o de prevenção geral (com relação a todos) ou especial (com relação ao condenado); e para as teorias mistas, a pena tem natureza retributiva, tem seu aspecto moral e sua finalidade está na esfera da educação e da correção daquele que cometeu delito. Hoje, entendemos que a execução da pena tem como objetivo a humanização da pena, além de punir. A Lei de Execução Penal brasileira contém 204 artigos. Como parte do seu objetivo está na reabilitação e ressocialização daquele que cometeu delito, a LEP disciplina no Capítulo II, como se efetivará a assistência ao preso e ao internado, da seguinte maneira: ALGUNS“Art. FATORES FAVORECENDO 10. A assistência ao preso e ao A DISSIMILAÇÃO internado é dever do Estado, Fatores Produto objetivando prevenir o crime e orien* produto podendo ser vendido em muitos taradaptação o retorno; à convivência em sociepaíses sem * compras dade. não repetitivas; Parágrafo único. A assistência * produto no começo ou no fim de seu estende-se ao egresso.” ciclo de vida. Fatores Mercado “Art. 11. A assistência será: I – materi* muitos mercados similares; al; II - mercados/ à saúde; III –segmentos jurídica; IV – * pequenos estreitos; educacional; V – social; VI – religiosa. * mercados instáveis; * fraca fidelidade de compra; * risco importante de para reação da As Regras Mínimas o Tratamenconcorrência em cada mercado to dos Reclusos, da ONU, dispões no nº geográfico.

65, sobre o tratamento, que:

Fatores de marketing * poucos conhecimentos a obter do mercado e/ou dos intermediários; “O tratamento das pessoas condena* poucos investimentos são necessários a uma critica pena ou medida privativa para atingirdas a massa de cada país; * recursos adequados para gerir novos de liberdade deve ter por objetivo, na problemas.

medida em que o permitir a duração da condenação, criar nelas à vontade e as aptidões que as tornem capazes, após a sua libertação, de viver no res-


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peito da lei e de prover às suas necessidades. Este tratamento deve incentivar o respeito por si próprias e desenvolver o seu sentido da responsabilidade”.

Para Mirabete (2007: 62), a Lei de Execução Penal brasileira, disciplina que os meios de que o tratamento penitenciário dispõe são, fundamentalmente, de duas classes, a saber: conservadores e reeducadores. Os conservadores atendem à vida e da saúde do recluso e do internado e são eles: a alimentação, assistência médica, educação física e a evitar a ação corruptora das prisões – já que a prisão é um dos fatores criminógenos. Os meios educativos objetivam influir positivamente sobre a personalidade do recluso e modelá-la: a instrução e a educação, formação profissional, assistência psiquiátrica, assistência religiosa. Na verdade, as espécies de assistências elencadas no rol do art. 11 da LEP, mas que na prática podemos afirmar que nenhum desses benefícios são oferecidos na extensão contemplada pela lei, em especial a assistência à saúde, que consideramos ser o mais elementar dos tratamentos penitenciários, para a mulher. As Regras Míninas para o Tratamento do Recluso da ONU, disciplina, no seu artigo nº 62, a saber: “Os serviços médicos de o estabelecimento esforçar-se-ão por descobrir e tratar quaisquer deficiências ou doenças físicas ou mentais que podem constituir um obstáculo à reabilitação do recluso. Qualquer tratamento médico, cirúrgico e psiquiátrico considera-

do necessário deve ser aplicado tendo em vista esse objetivo”.

Nos presídios femininos, no Brasil, há a incidência de várias doenças levando-se em conta às más condições de habitabilidade, superpopulação e insalubridade, há a incidência de muitas doenças entre elas as doenças consideradas infecto-contagiosas como a tuberculose e a AIDS (Sida), que atingiram níveis epidêmicos jamais vistos, e o mais grave, tratado de forma preventiva. Queremos dizer com isso como os presos não estão totalmente excluídos do mundo exterior, se houver uma contaminação desenfreada, será com certeza um grave risco à saúde pública. Na verdade, concordamos com o relatório da CPI sobre a questão prisional paulista, que o diz mais ou menos que, os presídios em São Paulo, encontram-se num estado de calamidade pública. Nestes estabelecimentos destinados às mulheres presas, é grande a situação de degradação, e como conseqüência temos doenças adquiridas, emocionais, e as psiquiátricas, como a depressão, a melancolia, a angústia, a síndrome do pânico, transtorno obsessivo compulsivo, etc. Sabemos que está em vigência e com validade ante o nosso sistema jurídico a Portaria Interministerial nº1777/2003, editada em conjunto pelos Ministérios da Saúde e da Justiça, que dispõe que as unidades prisionais com mais de 100 presos terão uma equipe mínima de saúde, integrada por médico, enfermeiro odontólogo, assistente social, psicólogo, auxiliar de enfermagem e auxiliar de consultório dentário, cujos profissionais terão uma carga horária de 20 horas semanais, sen-


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do que cada equipe será responsável por até 500 presos. Aqui podemos ver como é a “lei no papel” mas que não é eficaz, ela está vigente, mas é inócua. O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, criado pela Portaria Interministerial acima declinada, não inclui as cadeias públicas, e assim elas não podem participar no orçamento anual do Governo Federal destinadas às políticas públicas de saúde, para o sistema prisional. O Estado ao negar tratamento condizente e adequado às presas, está dessa maneira não apenas ameaçando a vida dessas mulheres em situação de cárcere, mas colocando em risco toda a sociedade brasileira, tendo em vista a contaminação a ser observado o instituto da visita íntima, quer pelas visitas conjugais ou quer pelo livramento condicional. Se não há atendimento médico dentro das paredes dos presídios, ainda poderemos questionar como se dá o atendimento médico nos postos de saúde dos hospitais além das grades para estas mulheres encarceradas? Há vários obstáculos que elencaremos, em seguida, que faz com que esse tipo de serviço não tenha resultado positivo e que atinjam os objetivos. Primeiro, podemos destacar a falta ou atraso de escolta policial para acompanhar a presa, ida e volta, às situações de emergência, às consultas médicas pré-agendadas, que se dá pela falta dessa vigilância ou guarda. A falta de escolta policial é alegada pela falta de pessoal, de veículos, e recursos para atender as solicitações da administração penitenciária. No Brasil e em especial em São Paulo a falta de escolta dá-se pelo fato das mesmas estarem quase sempre à disposição das requisições para levar os presos para as

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audiências judiciais. Segundo o Relatório (2007): “ Os diretores relatam que chegam a perder sete de cada dez consultas por falta de escolta. As mulheres presas não conseguem realizar tratamento médico com atendimento ambulatorial continuado porque a ausência da escolta impossibilita a freqüência necessária para garantir a vaga”.

Apesar do crescimento significativo de presos-homens e presas-mulheres, não há falar em presídio eminentemente construído para o gênero feminino em São Paulo, e que possa acolher estas sob condição de cárcere, respeitando-se as suas especificidades, de ser mulher e estar mulher, naquele local. Há um estudo importante elaborado pelo Centro Pela Justiça e pelo Direito Internacional – CEJIL, e pelas entidades que constituem o Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas, que resultou no “Relatório sobre Mulheres Encarcerados no Brasil”, em fevereiro de 2007, e serviu de base para a nossa pesquisa documental para a presente comunicação, neste Relatório, foi dito que a questão médica no sistema prisional feminino é de decadência e ruína, como nos presídios masculinos, que também se encontram sob a égide da falência, só que no cárcere feminino temos várias agravantes, ao seu desfavor, segundo o relato acima especificado, senão vejamos: “ No caso do encarceramento feminino, há uma histórica omissão dos poderes públicos, manifesta na completa


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ausência de quaisquer políticas públicas que considerem a mulher encarcerada como sujeito de direitos inerentes à sua condição de pessoa humana e, muito particularmente, às suas especificidades advindas das questões de gênero”.

Daí, deduzimos que a assistência à saúde da mulher é deficitária, vamos exemplificar aqui, a Penitenciária de Sant’Ana, que foi reinaugurada recentemente, e a enfermaria foi alocada num local nada estratégico, ou seja, no último pavilhão, e para as presas terem acesso a este local, para tratamento ambulatorial, as mesmas precisam percorrer uma via crucis , ou seja, precisam transitar por quase todo a penitenciária para chegar àquele local: quatro lances de escadas e passar por oito portões; o descaso é total para com a mulher que já está fragilizada pelo encarceramento e pela doença. Segundo o relato do Centro Pela Justiça e pelo Direito Internacional – CEJIL, geralmente não há equipe de saúde que atenda nas cadeias públicas, embora haja enfermaria. O atendimento quando emergencial, continua o relato, é sempre realizado pelo SUS – Sistema único de Saúde, mais próximo do presídio. Há nos presídios alguns profissionais da saúde e outros como enfermeiros, ginecologistas, dermatologistas, assistentes sociais, psicólogos e estagiários de diversas áreas do conhecimento que voluntariamente atendem as presas. Se a unidade prisional estiver inscrita no Plano Nacional de Saúde do governo federal, há a previsão de atendimento à essa população carcerária.

No III Encontro “A Mulher no Sistema Carcerário”, realizado em 5 e 6 de junho de 2008, realizado pelo Grupo de Estudo e Trabalho “Mulheres Encarceradas” e por outras entidades foi dado que: “Em muitas unidades prisionais, especialmente em cadeias públicas, o controle e prevenção de doenças são inexistentes.” Podemos dizer que há um desrespeito aos direitos da mulher encarcerada e temos uma afronta ao nosso ordenamento jurídico, começando pela nossa Constituição Cidadã, que disciplinou no seu art. 5º e seus incisos um rol de direitos e garantias às pessoas privativas de liberdade, além das normas infra-constitucionais, as recomendações, tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário. Quando nos deparamos com as questões de saúde ginecológica da mulher presa, nos encontramos diante de um quadro de total omissão, tamanho o descaso e o abandono dessas mulheres por parte do poder público. Não há atendimento ginecológico, preventivo ou habitual, nas cadeias públicas de São Paulo e quiçá, do Brasil, aqui sobra omissão do Estado e falta tratamento médico integral á mulher encarcerada. Os exames periódicos que toda mulher deve fazer, de forma a proteger-se não são realizados por essas mulheres, como por exemplo, os exames Papanicolau, mamografia, hormonais, HIV (AIDS, SIDA), além de outros exames preventivos para as mulheres não são realizados e quando são, geralmente, os resultados destes exames não são compartilhados com a presa, que é a pessoa interessada, ou às vezes estes exames são comunicados por médicos meses mais tarde para a presa, confor-


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me está no Relatório (2007). O descaso é total para com a integridade da saúde da presa mulher, e se a encarcerada consegue ser atendida por médico, quanto ao receituário prescrito dos remédios pelo mesmo, ela encontra-se diante de mais uma nova problemática, primeiro, pela carência dos medicamentos, naquele local, segundo muitas vezes os familiares da presa não têm condições de adquirir os remédios prescritos. Quanto às várias campanhas de vacinações promovidas pelos governos municipal, estadual e federal, a população feminina encarcerada não tem acesso às mesmas, por exemplo as vacinas contra rubéola, gripe, hepatite, e outras. Para as presas grávidas não há atendimento pré-natal para o nascituro e para a mãe. Há casos de presas que não tiveram quaisquer atendimentos no pré-natal, e só no parto, acabaram por descobrir serem portadoras de doenças infecto-contagiosas como a AIDS/SIDA ou a sífilis. Portanto, não há que se falar em controle e prevenção nesse espaço geopolítico, chamado prisão. Em muitos presídios no Brasil, segundo o Relatório (2007), “não existe qualquer programa voltado à prática de atividades físicas, laborais e recreativas, que são de extrema importância à saúde mental, física, além de contribuírem para evitar doenças”. E o pior, finaliza, dizendo: “As mulheres estão submetidas ao ócio”. Concluímos que neste espaço prisional, não é aplicado o provérbio latino: mens sana in corpore sano. O corpo aprisionado tem que ser estático, inexpressivo e doente. Por fim, vamos trazer à tona a questão das presas com problemas psiquiá-

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tricos, e que, também, inexiste tratamento adequado nos presídios femininos, para esta problemática. No III Encontro “A Mulher no Sistema Carcerário”, foi apresentado o que se segue: “Para presas com problemas psiquiátricos faltam hospitais de custódias em muitos estados brasileiros e geralmente não existe tratamento adequado na unidade onde elas se encontram. Com a falta de unidades específicas para pessoas com doenças mentais ou transtornos psicológicos, muitas detentas acabam vivendo em meio à população geral, onde são exploradas, às vezes agredidas, ou simplesmente suportadas pelas demais, sem receber o devido tratamento especializado que necessitam”. Há o fato também, destas presas que têm tais problemas de cunho psicológico e psiquiátrico não se adequarem às regras administrativas, entendido como o “direito vigente” do presídio, ou das regras internas das detentas , aqui entendido como o “direito emergente”, que vigoram neste espaço geopolítico, entendido aqui, como pluralismo jurídico. Ademais, muitas destas presas doentes psicologicamente são colocadas nas celas de segurança (no seguro), por não serem aceitas pela população carcerária. À GUISA DE CONCLUSÃO Concluindo, qualquer trabalho que trate da questão carcerária e em especial no Estado de São Paulo que tem o maior número de presídios e o maior número de pessoas encarceradas no Brasil, devese levar em consideração a pergunta: De quem estamos falando quando falamos


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da presa, no Brasil? Quem é esta mulher que fora do cárcere deve ter um corpo comerciável e muitas vezes transformado em mercadoria, ou seja, pronto para o consumo e exploração: esbelto, magro e saudável. E quando este mesmo corpo encontra-se no cárcere, no impedimento do seu direito de ir e vir, a presa quer ver seu corpo ser tratado com respeito, e que seja observando o princípio da dignidade humana, garantindo-se à ela o que está prescrito em/na lei. Sabemos que há vários Brasis, dentro do mesmo país, e que devemos nas nossas análises levar em conta a perspectiva histórica sobre esta questão prisional. Quem está presa hoje no Brasil, são as mulheres excluídas ou que vislumbravam uma vida melhor, longe da miserabilidade e da pobreza. Há faltas de Políticas Públicas eficazes para tratar das mulheres brasileiras: as que estão livres e em especial às presas. Vimos que a prisão não pode ter somente função administrativa de Secretarias de Justiça ou Administração Penitenciária, há que desempenhar um papel maior, pois está encarcerando pessoas que são sujeitos de direito e não OBJETOS de direito. As mulheres encarceradas, no Brasil, são assunto de violações geradas pela discriminação de gênero, e pela negligência do Estado que não cumpre o seu papel. Se o Estado prende para “ressocializar”, hoje, entendemos que a execução da pena tem como objetivo a Humanização da Pena, além de punir. O Estado que prende é o mes-

mo que deverá garantir o direito à saúde, ao trabalho, ao lazer, à educação, pois constituem direitos fundamentais daquele o qual ele encarcera. Ademais, estamos sob o Estado de Direito, e no Estado Democrático de Direito, e sabemos que a lei foi feita para ser cumprida e observada, por todos. O que se busca aqui é que a lei seja eficaz. Não é demais observar que o compromisso do Estado para com o preso funda-se em princípios, que têm matriz constitucional, por exemplo: o princípio da dignidade humana. Verdadeiros dogmas, de cuja observância dependem a eficácia e a exigibilidade das leis menores. Todas as violações apresentadas nesta comunicação referem-se a direitos protegidos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos e concordamos com o Relatório (2007), que diz serem graves todas as violações de direitos humanos que ocorrem nos presídios do/no Brasil. Por fim, as conclusões analisadas não visam exaurir todas as questões que poderiam ser suscitadas sobre a temática do objeto de estudo proposto que foi a mulher em situação de privação de liberdade: o feminino encarcerado. Do descaso ao abandono. O que se procurou aqui, foi contribuir para se (re)pensar a questão prisional no Estado de São Paulo, a condição degradante que as mulheres encarceradas têm sido submetidas a maus tratos, tortura psicológica, tratamentos cruéis e desumanos, situação amplamente denunciada pelo Relatório(2007).


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Pastoral Carcerária: http://www.carceraria.org.br/?system=news&action=read&id=415&eid=68http:// www.carceraria.org.br/?system=news&action=read&id=415&eid=68 Voluntariado Cristão e a Capelania Das Prisões: Missão Pastoral Comunitária SANTOS, Christiano Jorge (2007), Direito Penal – Parte Geral , São Paulo, Elsevier


DIREITOS SOCIAIS: PRONASCI / SUAS André Martins BARBOSA1

RESUMO O Programa Nacional de Segurança Pública com cidadania (PRONASCI) é um avanço na implantação das Políticas Públicas criando um novo paradigma da Segurança Pública e de inclusão participativa de parcelas da população. É um esforço inovador em busca de legitimidade governamental. Palavras-chaves: Políticas Públicas, Programa Nacional de Segurança Pública com cidadania (PRONASCI). ABSTRACT The National Public Security and Citizenship (PRONASCI) is a step in the implementation of public policies creating a new paradigm of Public Safety and participatory inclusion of portions of the population. It is an innovative effort in search of governmental legitimacy. Keywords: Public Policy, the National Public Security and Citizenship (PRONASCI).

INTRODUÇÃO Notória e complexa a problemática atuação das esferas governamentais na área de Segurança Pública. O Brasil agiganta-se a olhos vistos em termos populacionais num território equivalente a toda a União Européia sem os problemas climáticos, de solo e de exaustão por ocupação milenar de uma população que é pouco mais do que o dobro, do que a que ocupa os espaços da nação plural, que

é o Brasil. Logicamente administrar tal complexidade requer a capacidade de atender as diversidades mantendo a coesão. Tarefa gigantesca que vai sendo sedimentada recentemente por políticas sociais realmente inovadoras. Segurança Pública sempre é um problema para os gestores públicos, pois ao que tudo indica, o crime é um fenômeno também cultural que não demonstra índices estatísticos de querer desaparecer das agendas públicas. Logo, o que se mo-

1 Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Mestre em Direito, Dr. em Ciências Sociais e Doutorando em Direito pela PUC-SP.


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difica ao longo do tempo, das administrações, quando surgem medidas de enfrentamento do problema, são as estratégias. Na estrutura jurídico-repressiva nacional, a Segurança Pública, é uma responsabilidade constitucional determinada aos governantes estaduais. A União fica com a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e até recentemente a Polícia Ferroviária Federal, bem como em caros excepcionais o exército, marinha e aeronáutica. A exceção no PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) é a idéia de compartilhamento, inicialmente como proposta e agora como Política Pública que inicia a dar os primeiros resultados. O esforço para mudar o paradigma da Segurança Pública no país é visível e este é o de não abordar a questão da criminalidade, da violência, do delito e da contravenção, não somente a partir da ótica da repressão, mas também da prevenção. Uma não excluindo a outra. Acrescenta a isto uma mudança técnica, institucional e na capacitação policial. Há em todo o programa, a preocupação na preparação psicológica, humanística e institucional das corporações policiais, para cumprir suas finalidades. E é esta visão que fez com que a partir de 2007 diversos Ministérios participaram da elaboração do PRONASCI, bem como a Caixa Econômica Federal, a Secretaria da Desigualdade Racial e os Direitos Humanos. É uma experiência que começa a frutificar e parte de novo paradigma de que uma nação se constrói não através de políticas descontínuas, pontuais, mas sim através de políticas sociais articuladas, persistentes e engajadas com os desfavo-

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recidos na partilha da riqueza nacional adquirida com o trabalho coletivo, mas injustamente distribuída. 1. PRONASCI “Eu não sei em quantos momentos na história da segurança pública do Brasil se colocou as políticas sociais como um dos itens para tratar a questão da segurança pública.” “Por que essa combinação de tantos ministros participando da elaboração de um programa de segurança pública?” Luiz Inácio Lula da Silva 20/08/2007

A medida provisória1 384 de 20/08/07 institui no Brasil o PRONASCI (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) que já no primeiro artigo estipula que deverá ser executado pela União: Por meio da articulação dos órgãos federais, em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal e municípios e com a participação das famílias, da comunidade, mediante programas, projetos e ações de assistência técnica e financeira e mobilização racionalizando a melhoria da segurança pública.

E no segundo artigo surge o que realmente é o novo paradigma, pois desloca o eixo até agora centrado na repressão para a prevenção definindo que: Destina-se à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em


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suas raízes sócio-culturais, articulando ações de segurança pública e das políticas sociais.

Observada está a notoriedade de que os modelos tradicionais de combate a criminalidade estão mais do que esgotados para responder de forma “eficaz ao universo maior e cada vez mais complexo de conflitos sociais”2 . O PRONASCI parte da idéia de que o programa deve ir corrigindo os resultados negativos, aperfeiçoando os aspectos positivos e que é para ser implantado em cinco anos tendo como eixo destacado a valorização dos profissionais de segurança pública, a reestruturação do sistema penitenciário, o combate à corrupção policial e um novo foco fundamental e que até agora tinha sido tratado pontualmente por alguns Estados, o envolvimento da comunidade na prevenção da violência. Outro aspecto inovador é que o programa foi discutido com inúmeros representantes de diversos movimentos sociais como a Central Única dos Trabalhadores e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)3 e muitos aspectos que surgem no programa já são reflexos do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) criado em 2003 e que já tinha como objetivo articular as ações Federais, Estaduais e Municipais na área da justiça criminal. O programa foi apresentado ao chefe do Executivo em 09/07/07, mas o mesmo já tinha tomado conhecimento do programa em 31/05/07 e desde então, sob determinação do líder máximo do Executivo Nacional, o programa entrou em discussão, através de colóquios e apresentações em Universidades, com a participa-

ção de Intelectuais e Mídia, onde a iniciativa foi amplamente discutida com instituições da sociedade civil e críticas foram absorvidas e muitas melhorias acrescentadas. O PRONASCI apresenta diretrizes, que inicialmente estão apresentadas como as elencadas a serem implementadas. Entre elas já se destaca a promoção dos direitos humanos, considerando as questões de gênero, étnicas, raciais, geracionais, de orientação sexual e de diversidade cultural bem como a promoção da segurança e da convivência pacífica e a intensificação de uma cultura de paz, de apoio ao desarmamento e de combate sistemático aos preconceitos4 . Ainda seguindo as diretrizes referidas no artigo terceiro deverá o PRONASCI velar pela criação e fortalecimento de redes sociais e comunitárias, a modernização das instituições de Segurança Pública e do Sistema Prisional, a valorização dos profissionais de Segurança Pública e dos agentes penitenciários; como não poderia deixar, já que se trata de uma nova visão paradigmática de rede. Deverá o programa buscar a participação do jovem e do adolescente em situação infracional ou em conflito com a lei do egresso do sistema prisional e famílias, bem como a ressocialização dos indivíduos que cumprem penas privativas de liberdade e egressos do sistema prisional mediante a implementação de projetos educativos e profissionalizantes. Não fosse isso o bastante, como programa preventivo, há a busca, a manutenção da visão anterior com o item IX do artigo terceiro que estipula que se deve manter como diretriz a intensificação e


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ampliação das medidas de enfrentamento do crime organizado e da corrupção policial. E levando em consideração a diversidade territorial quer a garantia de acesso à justiça, especialmente nos territórios vulneráveis e a garantia também de, por meio de medidas de urbanização, da recuperação dos espaços públicos e finalizando as diretrizes elencadas no terceiro artigo deve ser atendida a observância dos princípios e diretrizes dos sistemas de gestão descentralizados e participativos das políticas sociais e resoluções dos conselhos de políticas sociais e de defesa de direitos afetos ao PRONASCI. Para a concretização das diretrizes, o programa elegeu três focos prioritários, projetos e ações que compõem o PRONASCI. São eles o foco etário, social e territorial. No primeiro está compreendida a população juvenil de 15 a 29 anos, (num primeiro momento e que depois é reduzida para 24 anos) justamente onde as estatísticas de morte e incidência de pratica delituosa, enquanto comportamento é mais significativa. No segundo foco, o social, jovens e adolescentes em situação infracional ou em conflito com a lei, egressos do sistema prisional e famílias expostas à violência urbana, e, no terceiro foco, o territorial, as regiões metropolitanas e aglomerados urbanos que apresentem altos índices de homicídios e crimes violentos. Assim temos as diretrizes e focos do Pronasci que será executado de forma integrada pelos órgãos e entidades federais envolvidos e pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, que a ele se vincularem voluntariamente, mediante instrumento de cooperação federativa. E facili-

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tando esta integração foi elaborado um manual de convênios que é regularizador das parcerias e já em seu preâmbulo5 informa que o programa nasceu com três premissas básicas: a) Respeito aos projetos e ações em execução nos Ministérios e Secretarias. Isso significa dizer que o programa articulará os projetos e ações sociais do Governo Federal, Estaduais e Municipais, implementando-os na coordenada e consensualmente; b) Intensa participação de Estados e Municípios, o êxito do programa dependerá em grande parte da atuação de Estados e Municípios, tanto no que diz respeito à mobilização social quanto no compartilhamento dos seus projetos e ações; c) Ações policiais mais qualificadas e integradas, que respeitem os direitos humanos. É importante registrar que no programa estão previstas muitas ações que apontam transformações nas instituições de Segurança Pública, no sistema prisional e na carreira dos profissionais de Segurança Pública e Agentes Penitenciários o que deverá ter reflexos positivos na busca de um novo modelo de Segurança Pública.

Apresenta como objetivo geral enfrentar a criminalidade e a violência, nas suas raízes culturais e reduzir de forma significativa seus altos índices em territórios de descoesão social e para desenvolver toda a rede articulada de ações do programa o governo federal investira R$ 6,707 bilhões até o final de 2012. Como o conhecimento mais apurado da realidade


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onde incide também é premissa, foram identificadas 11 regiões metropolitanas brasileiras consideradas mais violentas e através de informações dos Ministérios da Justiça e da Saúde. Estas áreas são Belém, Belo Horizonte, Brasília (Entorno), Curitiba, Maceió, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória, as quais posteriormente estarão incluídas a cidade de Fortaleza e o Estado de Santa Catarina. Desde a implantação do programa em agosto de 2007, as formas de ver a problemática da segurança vem se aperfeiçoando e em virtude disto é editada a Medida Provisória 416 de 23/01/08 que altera a lei 11.530 de 24/10/08 que é a instituidora do PRONASCI e tem por base a Medida Provisória 384 de 20/08/07. A Medida Provisória 416 6 estipula em seu segundo artigo, aperfeiçoando os anteriores, que o PRONASCI tem por destinação a articulação de ações de segurança pública para a “prevenção, controle e repressão da criminalidade, estabelecendo políticas sociais de proteção às vitimas”. E mantendo as diretrizes do artigo terceiro mantém os incisos de forma que no primeiro propõe novamente a promoção dos direitos humanos, intensificando uma cultura de paz, de apoio ao desarmamento e de combate sistemático aos preconceitos de gênero, étnica, racial, geracional, e de orientação sexual e de diversidade cultural. Porém no inciso terceiro altera, de forma que seja contemplados os conselhos tutelares, devendo os mesmos sejam fortalecidos e o inciso terceiro passa então a ser o quarto. Na verdade as alterações são pequenas, mais uma correção para acréscimo do que uma mudança de

direção na construção do novo paradigma. A execução, que será garantida pela realização de ações no país, acontecem por meio de mobilizações policiais e comunitárias que celebram convênios7 , contratos, acordos e consórcios com Estados, Municípios, Organizações Não Governamentais e Organismos Internacionais em articulações também realizadas pelo Gabinete de Gestão Integrada Municipais (GGIm). O acompanhamento e avaliação do programa será levado a efeito pela Fundação Getúlio Vargas, que verificará os indicadores e o contexto econômico e social havendo um controle mais abrangente através da participação da sociedade, através do envolvimento da mesma em diversas formas de atuação. Como o que é desenvolvido pelos conselhos tutelares. O PRONASCI para concretizar suas diretrizes até 2012 é composto por ações envolvendo os entes políticos das três esferas de decisão além da própria comunidade e tem alguns destaques como o Bolsa-Formação, a Formação Policial, Mulheres da Paz, protejo, Sistema Prisional, Plano Nacional de Habitação para Profissionais de Segurança Pública e as Parcerias com Ministérios e Secretarias. 1.1 Bolsa–Formação É um auxilio remuneratório destinado a policiais civis e militares8 , bombeiros, agentes penitenciários e peritos com salários de até R$ 1,4 mil. O acesso à bolsa é concedido ao profissional que deverá participar dos cursos de formação de, no mínimo, quarenta horas, oferecidos ou credenciados pelo Ministério da Justiça. É


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de conhecimento geral que a ineficaz qualificação dos profissionais de Segurança Pública é um dos componentes da problemática. Com vistas ao enfrentamento desta questão é que a Medida Provisória 416 em seu artigo oitavo, inciso V, instituiu o projeto e no 8ºF, reza que é destinado aos integrantes das carreiras já existentes e que para aderir ao projeto o ente federativo deverá aceitar algumas condicionalidades, e que entre elas consta a viabilização do amplo acesso a todos os profissionais interessados bem como a instituição e manutenção de programas de polícia comunitária. O valor da bolsa pode alcançar R$ 400,00 e tem um mínimo de R$ 180,00. O pagamento será efetuado pela Caixa Econômica Federal por meio de cartão magnético. Os Estados ficarão responsáveis pela triagem dos profissionais que receberão o benefício e terão como contrapartida a instituição de um piso salarial para os servidores de segurança pública até o ano de 2012. O projeto foi lançado para a mídia após publicação, pelo Ministro da Justiça Tarso Genro em 08/ 03/08 no Rio de Janeiro e o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “O Pronasci entende a valorização dos profissionais como uma questão fundamental para a segurança pública” e o Ministro complementou na ocasião que “vamos contribuir para a melhoria da sua qualidade de vida, investindo na formação e na complementação salarial”. Ocorre que já em Fevereiro de 2008 cerca de 60.000 profissionais já haviam iniciado os cursos gratuitos do programa de educação à distância (EAD), do Ministério da Justiça9 e mesmo a distância os

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alunos contam com a ajuda de tutores que interagem com a turma, estipulam tarefas e avaliam os trabalhos produzidos. Em virtude dos baixos salários parte significativa dos profissionais não tem acesso doméstico e direto a Internet e pensando nesta circunstância os profissionais podem participar por meio de sessenta tele-centros instalados nos estados. O grande número de inscritos reflete logicamente o interesse pelo pagamento da bolsa, mas também a possibilidade de se atualizar e saber que isto faz parte do sistema de promoções que inevitavelmente se articula também em torno da capacitação e não somente pelo tempo de serviço. O Rio Grande do Sul é um dos Estados que tem participado ativamente do projeto Bolsa-Formação, sendo lançado em 03/04/08 na Praça Oliveira Rolim, bairro de Sarandi, região pobre de Porto Alegre 10 , demonstrando assim o compromisso com os profissionais e a articulação onde se faz mais necessária presença dos mesmos. Ao receber para estudar, a polícia poderá deslocar este aumento de vencimentos para melhores condições de vida e os comandos podem cobrar maior empenho no desenvolvimento de atividades fins. Logicamente que o efeito do PRONASCI se faz sentir na medida em que está agindo em concomitância com outros programas como o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) e está aberto a inovações, sugestões e pressões dos poderes constituídos em operação na Federação. Um exemplo foi a alteração para menos da idade do público alvo do PRONASCI que era para até 29 anos e o reduziu para 24 e que inclui, para mais, as


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Guardas Municipais, e que inicialmente não estavam contempladas. Em todo este processo de qualificação, de formação policial, estão incluídas práticas de segurança-cidadã, que devem repassar a utilização de tecnologias não letais, técnicas de investigação, sistema de comando de incidentes, perícia balística, DNA forense, medicina legal, direitos humanos e muitos outros aspectos que devem ser abordados em cursos oferecidos pela Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP)11 , que articula 66 Universidades Brasileiras tanto da rede pública, nas esferas existentes, quanto particulares, bem com tele-centros para educação a distância. O objetivo é o de alcançar oitenta instituições em todo o país em 2008 e de chegar a 225 mil profissionais formados no país, e recebendo a complementação. Algumas questões não estão ainda bem equacionadas quanto ao acesso pois que para se especializar em temas como polícia comunitária, tecnologias não letais e atendimento policial a vitimas de violência doméstica, o policial precisa comprovar que não cometeu infração administrativa nem penal nos últimos cinco anos. Uma situação que precisa ser analisada com maior sobriedade visto que a educação é um dos caminhos para evitar a infração. E como admitir uma filosofia para o infrator, fora dos quadros de serventuários da polícia,e para estes, não ser adotado o mesmo procedimento?

mas que incluem ética, direitos humanos e cidadania de forma que possam agir como multiplicadoras do programa, tendo a tarefa principal de, além do próprio conhecimento, aproximar os jovens, que são público alvo também alcançado pelas atividades desenvolvidas pelo PRONASCI. O projeto está previsto no também no artigo 8°A, inciso III da Medida Provisória 416 de 23/01/2008 e já no parágrafo único do artigo estipula que a escolha das participantes dar-se-á por meio de seleção pública, pautada por critérios a serem estabelecidos conjuntamente pelos entes federativos conveniados considerando, obrigatoriamente, os aspectos sócioeconômicos dos pleiteantes e é destinado “à capacitação de mulheres socialmente atuantes nas áreas geográficas abrangidas pelo PRONASCI” conforme artigo 8°D. O trabalho desenvolvido pelas mulheres da paz tem como foco:12

1.2 Mulheres da Paz

A implementação, conforme parágrafo segundo do artigo 8-D, do projeto dar-se-á por meio da: identificação das participantes e formação sócio-ju-

Este projeto capacitará as mulheres líderes das comunidades em diversos te-

I – a mobilização social para afirmação da cidadania, tendo em vista a emancipação das mulheres e prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres; e II – a articulação com jovens e adolescentes, com vistas a sua participação e inclusão em programas sociais de promoção da cidadania e na rede de organizações parceiras capazes de responder de modo consistente e permanente as mais demandas por apoio psicológico, jurídico e social.


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rídica realizada mediante cursos de capacitação legal com foco em direitos humanos, gênero, combate a violência e a criminalidade bem como o desenvolvimento de atividades de emancipação da mulher e da reeducação e valorização dos jovens e adolescentes e ainda a colaboração com as ações desenvolvidas pelo Protejo, em articulação com os conselhos tutelares. Cabe lembrar que isto já estava previsto na medida provisória 384 de agosto de 2007 e que utilizava o titulo de “Mães da Paz” e que também autorizava o poder executivo a conceder um auxilio financeiro às participantes de cento e noventa reais. Não é um projeto de fácil execução em virtude das diversas interferências partidárias a nível estadual e porque boa parte das lideranças femininas estão engajadas em setores da política estatal comprometidas com o clientelismo e embora o incentivo financeiro seja um acréscimo de motivação a completa implementação do projeto deverá estar articulado com outros fatores. Embora os motivos que levam a identificação das mulheres passem por mães que perderam seus filhos para o crime, esposas de apenados, lideres de comunidades que clamam por justiça, a transformação da expressão destas angústias em protagonismo, em sujeitos de luta pela paz, deverá ocorrer dentro de um processo que se desenha mas ainda não está claro. A trajetória social parece ser um aglutinador, mas a eficácia só resultará mediante a crença e na continuidade do projeto Mulheres da Paz.

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1.3 PROTEJO O Projeto de Proteção dos Jovens em Território Vulnerável (PROTEJO) conforme previsto pelo artigo 11 da medida provisória 384 e confirmado pelos artigos 8°A e 8°C e parágrafos da Medida Provisória 416 é destinado à formação e inclusão social de jovens e adolescentes expostos a violência doméstica e urbana, nas áreas geográficas abrangidas pelo PRONASCI. Os parágrafos do referido artigo 8°C determina que o trabalho desenvolvido pelo PROTEJO terá duração de 1 ano, podendo ser prorrogado por igual período, e tem como foco a formação cidadã dos jovens e adolescentes a partir de praticas esportivas, culturais e educacionais que visem a resgatar a auto-estima, a convivência pacífica e o incentivo a reestruturação do seu percurso sócio formativo para sua inclusão em uma vida saudável. A implementação dar-se-á por meio da identificação dos jovens e adolescentes participantes, sua inclusão em práticas esportivas, culturais e educacionais e formação sócio jurídica realizada por meio de cursos de capacitação legal, com foco em direitos humanos, combate à violência e a criminalidade, temática juvenil, bem como em atividades de emancipação e socialização que possibilitem a sua reinserção nas comunidades em que vivem. Para incentivar a participação, o artigo 8°C prevê o pagamento de cem reais para os participantes. Este projeto possibilitou a aproximação de entidades, como o instituto Ronaldinho Gaúcho13 de Porto Alegre, na zona Sul, com área de 11,7 hectares, fundado em 2006 e que atende três mil e qui-


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nhentos jovens carentes por mês, que tem acesso a diversas atividades, como práticas esportivas, oficinas de informática, curso de línguas, educação artística, dentre outras. Com o Projeto foram viabilizados os Jogos Gaúchos de Verão envolvendo mais de dois mil jovens entre 14 e 17 anos que vivem em comunidades que sofrem com a violência. Seguindo a filosofia do PRONASCI a Prefeitura forneceu uma contrapartida, e o Instituto, instalações, e assim os atletas serão capacitados em mediação de conflitos além de participar de competições esportivas em varias modalidades como Futsal, Handball e Futebol de Campo. E poderão se inscrever em dez cursos profissionalizantes, como teatro e música que serão oferecidos até setembro de 2008 pelo Instituto. Desta forma o Protejo atende as diretrizes do PRONASCI que é o enfrentamento, também através de ações preventivas, e não somente repressivas. Os resultados estarão avançando conforme a própria evolução da integração destes jovens na atividade produtiva e cultural de uma sociedade que não privilegiou a igualdade, através de seus representantes, mas o contrário. 1.4 Sistema Prisional A Segurança Pública no Brasil tem sido destaque nos noticiários mundiais através de diversos enfoques. Assassinatos, seqüestros e torturas em favelas de repórteres, policiais, traficantes e de quem caia nas garras do crime organizado. Seja pelas facções do crime reconhecido amplamente como tal ou pela modalidade

das milícias, também uma nova modalidade de crime organizado. Corrupção policial, morte em assaltos a bancos, onde correntistas, até crianças são pegos no fogo cruzado da ganância e da fome. As vertentes são desconcertantes e a impressão que o público leigo percebe é de que não há por onde começar ou terminar o enfrentamento de tais problemas. E é justamente onde se acredita que termina o crime, na prisão, é onde uma das pontas do novelo pode se apresentar. Prisões superlotadas, delegacias abarrotadas de homens, mulheres e adolescentes em promiscuidade; espaços diminutos para qualquer tentativa de ressocialização são cenas rotineiras do sistema prisional que foi concebido mais para o público masculino do que para o feminino. Em virtude disto, o PRONASCI prevê a criação de 41.300 novas vagas para homens e 5.500 para mulheres no sistema prisional14 . Os jovens entre 14 e 29 anos inicialmente e depois apenas os de 24 anos, que estão presos terão acesso a programas de alfabetização e cursos profissionalizantes. Está também prevista a remissão de pena para cada três dias de estudo. As medidas preventivas visam promover a inclusão dos jovens após o cumprimento da pena. O Plano Diretor do PRONASCI para o sistema prisional é composto15 de vinte e duas metas que, entre outros resultados, vai padronizar procedimentos e melhorar as condições dos presídios, e é com o cumprimento das metas propostas pelo Plano Diretor (e que é uma das condições que devem ser preenchidas pelos estados que estão sendo contemplados com recursos do PRONASCI) que os entes po-


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derão receber verbas. Uma Comissão de Monitoramento e Avaliação ligada ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) e subordinada ao Ministério da Justiça auxiliou os estados elaborarem uma radiografia da situação dos presídios nas unidades da federação. Com base nestas avaliações é que as ações vão sendo implementadas e corrigidas. Os primeiros estados beneficiados pela atuação da Comissão foram o de Pernambuco, Pará e Rio Grande do Sul. O Plano Diretor16 irá acompanhar a evolução e o cumprimento das propostas como metas estabelecidas para as onze regiões metropolitanas mencionadas como prioritárias. Entre as metas está a formação de um quadro de servidores penitenciários (agentes, funcionários administrativos, técnicos) bem como órgãos de execução penal, implementação de ouvidorias independentes e elaboração de regimento com normas para a custódia de presos, a construção de penitenciárias especiais para jovens17 de 18 a 24 anos e adaptação de programas educacionais e profissionais às cadeias. As melhorias alcançadas, após a identificação do número de estabelecimentos penais, número de presos nos diferentes regimes (fechado, aberto e semi-aberto), quantidade de servidores e outros itens devem ser estendidas, para todas as regiões, e não apenas para as que em um primeiro momento vão contar com as ações implementadas. Entre as ações, a modernização do sistema de identificação é ferramenta que aumenta a eficiência das administrações penitenciárias18 . O Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen) per-

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mite a identificação dos detentos por nome, cor do cabelo, de pele e altura, o que aumenta a visibilidade no acompanhamento das penas, dos presos e da realidade da área de execução penal visto que a massa carcerária em alguns presídios chega a contar com mais de mil detentos e no passado, como a “Casa de Correção” do Carandiru em São Paulo, chegou a contar com mais de sete mil detentos cumprindo pena. Esta visão abrangente sobre o sistema como um todo, leva em consideração que a prisão19 “reflete um cenário de desigualdade social, discriminação e seletividade do sistema de justiça penal, que acaba punindo grupos mais vulneráveis social e economicamente”, como a mulher, negros e adolescentes de baixa renda e de forma agravante, pois que antes da fase processual e após a sentença transitada em julgado. E é na fase de cumprimento da pena que a educação se torna ferramenta adicional. O PRONASCI também apresenta e discute a proposta de integração dos projetos de educação20 profissional (PROEJA) e de educação básica para jovens e adultos no sistema prisional. Para tanto todos os presídios construídos contarão com módulos de educação e profissionalização além dos de saúde. “A prisão, na esfera de uma política penitenciária, apenar de ser uma instituição complexa e fechada, que cumpre a função de segregação social deve necessariamente efetivar o direito a ter direitos21 . É a articulação das diversas ações das políticas de segurança pública e com as ações sociais que poderão ser minimizadas e superadas as “diversas dificuldades que envolvem a garantia dos


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direitos humanos numa instituição fechada”22 que por sua natureza e destinação engendram problemas que confrontam com o bom entendimento dos programas e políticas de emancipação e enfrentamento de tais mazelas já denunciadas a quase meio milênio por Cesare Beccaria em obra clássica “Dos Delitos e das Penas”. E inúmeros estudiosos já comprovaram que as penas resultam perdidas quando não se integra o infrator novamente a sociedade. O sistema prisional se não forem implementadas as medidas preconizadas continuará sendo um grande depósito de homens, mulheres e adolescentes. Esta massa carcerária, nas condições em que vive é também o local com o qual se pode ameaçar aos insurgentes contra a ordem estabelecida, que muda a passos lentos, mas muda. 1.5 Plano Nacional de Habitação Destinado a policiais civis e militares, bombeiros, peritos e agentes penitenciários de baixa renda o Plano Nacional de Habitação para Profissionais de Segurança Pública é uma parceria do Ministério da Justiça com a Caixa Econômica Federal e a adesão dos Estados em implementação nas doze regiões metropolitanas prioritárias do PRONASCI. Pelo plano serão disponibilizadas unidades populares para servidores de baixa renda, que recebam até quatro salários mínimos e as cartas de crédito para compra da casa própria, no valor de até cinqüenta mil reais para os servidores que recebam até dez salários mínimos sendo que em 2008 foram oferecidas trinta e cinco mil unida-

des habitacionais populares. Segundo os critérios adotados, as unidades serão oferecidas por meio do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), com o qual tem acesso o profissional com rendimento de até quatro salários mínimos mensais. Em casos excepcionais para profissionais da área de Segurança Pública serão destinadas a profissionais com renda familiar de até três mil e novecentos reais e que apresentem as condições de acessar o mercado imobiliário e que precisem de um incentivo financeiro para a aquisição do imóvel residencial. Este mínimo poderá ser majorado exclusivamente para financiamentos de imóveis situados nos municípios integrantes das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal e municípios com população igual ou superior a quinhentos mil habitantes. A majoração não ultrapassa os quatro mil e novecentos reais. 1.6 Parcerias A Administração Pública, cada vez mais consolidada dentro do Estado, adquire a significação de burocracia, de obstáculo às pretensões legítimas de morosidade, de expectativa. Este Estado, porém, tem seus fundamentos em uma estrutura político-administrativo disposta na Constituição Federal que representa o resultado dos conflitos sociais em forma de contrato que por todos deve ser cumprido e pelo Estado e Governo implementados. Neste aspecto não é possível compreender as políticas sociais na área de Segurança Pública


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se não houver uma integração de todos os níveis de Governo -Federal, Estadual e Municipal - e a participação imprescindível da Comunidade, visto que a questão é muito complexa e necessita de um compartilhamento de experiências e colaborações para se chegar a um objetivo focado nas propostas discutidas, além do mais, essas políticas não podem ser apenas voltadas a planos de operações repressivas e preventivas, como saúde, educação, saneamento, proteção ambiental , etc., o que tiraria a população da subordinação de líderes de trafico de comandos de facções criminosas, etc., conforme evidenciado PRONASCI, (...) buscando fazer o enlace das Políticas de Segurança Pública com as Políticas Sociais com a finalidade de atingir diretamente o núcleo familiar e a juventude, instituindo um território de cidadania e coesão social.23

paradigma de que não é possível enfrentar o problema de Segurança Pública de forma pontual e desarticulada de todos os fatores que compõem o problema e portanto, a solução, ou arrefecimento de sua intensidade.

Assim, ações previstas levam em conta a dinâmica das parcerias necessárias com Ministérios e Secretarias. Entre outras o PRONASCI agirá em comum acordo com Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nas regiões em que houver obras de urbanização para recuperação das áreas urbanas e aperfeiçoamento da infra-estrutura nas comunidades. Temos mais um exemplo na parceria existente entre a Secretaria Nacional AntiDrogas, da Presidência da República, que ampliará o atendimento do Viva-Voz, projeto em andamento que tem como objetivo a orientação de jovens e famílias envolvidas com a problemática das drogas. As parcerias atendem ao novo

Historicamente, as políticas sociais brasileiras carregam a marca da ineficiência e da ineficácia, com sobreposição de competências e processos de descontinuidade (Sposati, 1985; Yazbek, 1993). Carregam, sobretudo, as marcas dos mecanismos que associam repressão, controle e “disciplinarização” em favor de um modelo articulado a um conjunto de medidas que favorecem o crescimento interno desigual e os capitais externos.

2. SUAS Utilizando as palavras de Maria Carmelita Yazbeck, em apresentação de obra por ela organizada, “com a implantação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, a assistência social brasileira vive um momento especial em sua trajetória para consolidar-se como política do Estado e direito dos cidadãos”24 . E para utilizar a própria filosofia do PRONASCI que é a interrelação de parcerias e a constituição de uma rede de informações e garantias de serviços e direitos aos beneficiários, citamos Jucimeri Isolda25 que cita Sposati:

E fica claro que a implantação do SUAS é um processo que alinhava os aspectos teóricos e práticos com inúmeras tendên-


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cias que não se compõem facilmente e inúmeros debates e acirradas polêmicas tem envolvido a questão em torno de alguns eixos que são ressaltados como a relação do ordenamento do sistema unificado com as demais políticas de seguridade; a ampliação de cobertura socioassistencial e sua relação com a política econômica; as praticas profissionais e a concretização da concepção presente na política nacional de assistência social26 .

nado o posteriormente como BPC. Todavia, algumas burocracias do INSS continuam a desconfiar do ‘pobre’ cidadão, exigindo-lhe as cartas de apresentação.27

Mas a implantação não se fará através de operadores do direito com a velha formação dogmática com fins de compor os quadros da burocracia dos poderes constituídos que determinam em muito o comportamento das categorias profissionais que gravitam a sua volta, como os policiais civis, militares, agentes penitenciários e demais carreiras profissionais da Segurança Pública. E tampouco acontecerá através de profissionais da Assistência Social completamente alheios da realidade dos sistemas de repressão e dos mecanismos de poder construídos dentro do aparelho jurídico estatal e das malhas das redes do crime organizado. Embora, como afirma Sposati, numa linha clara de pensamento.

Ora esta mentalidade, que continua a vigorar, possibilitando a expedição de atestados de pobreza ou miséria e atestados de vida entre outros quando tais atestados já foram extintos a mais de duas décadas pelo antigo Ministério da Desburocratização sob comando do então ministro Hélio Beltrão, só é possível pela completa falta de integração entre os diversos setores que asseguram os direitos mínimos constitucionalmente conquistados, como saúde, alimentação, habitação e segurança para não dizer desqualificação dos quadros dos serventuários do estado. O SUAS representa um avanço importante na medida em que dinamiza a agenda pública com o relacionamento com as políticas que favorecem a participação popular. O PRONASCI como uma das políticas voltadas para a moralização do Estado, no que concerne ao seu papel, frente as populações espoliadas pelo processo de acumulação em aderir ao SUAS como mais um Programa integrado nesta filosofia. E voltando a a Jucimeri Isolda:

a relação entre o social, a polícia, a moral e o favor institucionalizado como documentos comprobatórios da dignidade do ‘brasileiro-trabalhador’ foi abolida a principio pela constituição de 1988, que assegurou ao idoso e á pessoa com deficiência o acesso a um salário mínimo mensal, denomi-

a construção e a implementação do Suas no Brasil colocam em relevo a questão da desigualdade e a consolidação de um amplo padrão proteção social, universal, redistributivo, público e de qualidade. A direção social, nesse processo, depende das iniciativas regulatórias propagadas sobretudo


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pela esfera federal, dada a cultura da hierarquização entre as esferas e a frágil cultura política no âmbito local28 .

Assim pensando o SUAS atende ao que está prescrito na Constituição Federal que trata do assunto no capítulo II, na questão da Seguridade Social que conta com quatro seções e dez artigos e traz no artigo 194 o conceito de que a Seguridade Social compete ao poder público, nos termos da lei, devendo ser organizada com base nos seguintes objetivos: I – Universalidade da cobertura e do atendimento; II – Uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV – Irredutibilidade do valor dos benefícios; V – Equidade na forma de participação no custeio; VI - Diversidade da base do financiamento; VII -Caráter democrático da gestão administrativa, com a participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados.29

Não é sem razão que a Seguridade Social está inserida com o segundo capítulo do Titulo VIII do Constituição, que trata da Ordem Social sendo que o capitulo I só apresenta um artigo, o 193, que na disposição geral afirma apenas que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social. Fica claro a relevância

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da Política de Assistência Social por estar integrada a Seguridade Social, prevista na magna lei. Contudo é excessivamente genérica no que concerne as definições e o modo de sua implementação, o que ficou como incumbência para a atividade infraconstitucional e que é resultado do enfrentamento e tensões da luta de classes que na medida em que são implementados os princípios previstos constitucionalmente. Com a descentralização das discussões, com a participação popular é que o gestor público terá mais um elemento para implantar uma rede territorializada de serviços de proteção social, deixando de ser apenas uma carta programática de intenções, a carta constitucional. As resistências são inúmeras, pois que não há culturalmente a idéia de que a cidadania deve ser exercida. A idéia predominante é de que deve ser conquistada quando na verdade já o foi e a Constituição expressa essa conquista através dos artigos que refletem o pacto, o contrato social estampado em seu artigo 194 e correlatos. O que deve ocorrer é a aplicação, a efetividade do que foi pactuado. E isto depende não só da vontade governamental representando o Estado, nas gestões que se sucedem, mas também na participação popular através dos diversos dispositivos até em leis previstos. Mas a lei é inócua, é letra morta sem a ação do sujeito de direito. CONCLUSÕES A constituição de uma sociedade justa no tocante a distribuição da riqueza, bens e serviços por todos produzida não é um


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processo fácil, tampouco rápido. Demanda esforço coletivo, constante: consciente das limitações do próprio processo e de que não bastam artigos inseridos na constituição ou legislação esparsa. Nos princípios fundamentais da Constituição já no artigo primeiro encontramos a previsão de que a Republica Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal e constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento a cidadania, a dignidade da pessoa humana, além da soberania e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Em seu primeiro parágrafo está inserido que todo poder emana do povo. No artigo terceiro enumerados como objetivos fundamentais da República, estão o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e ainda o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação30 . A responsabilidade da garantia dos direitos, dos mínimos sociais, da assistência “é incumbência tanto do Estado, quanto da sociedade civil, mas com a primazia da obrigação estatal, em razão de seu papel de condutor das políticas sociais”.31 E ainda a advertência de que “o tempo em que o Estado “lavava as mãos” e deixava à iniciativa privada todas as ações de assistência social já está superado”32 . Mas é da participação das três esferas políticas, União, Estados e Municípios e também da comunidade que Programas como o PROINASCI e, consonância com o SUAS

poderão minimizar a distância existente entre as classes sociais de minorar a tensão social a que estão submetidas não somente as classes marginalizadas mas também as que estão inseridas na riqueza e até privilegiadamente encasteladas nas benesses que o sistema proporciona. Os desfavorecidos não podem usufruir da riqueza por todas produzida por estarem apartados do partilha e as classes abastadas por não terem a segurança para usufruir do amealhado. Programas como o Protejo, Plano Nacional de Habitação Para Profissionais da Segurança, Mulheres da Paz, Melhoria do Sistema Penitenciário e Bolsa-Formação vem, além de cumprir os preceitos constitucionais, dinamizar a implementação do SUAS, aumentando a consciência e o conhecimento, aos profissionais da área de todo um trabalho que há de evoluir e que vem sendo desenvolvido e que não será finalizado com o PRONASCI que é, dentro de toda uma estratégia de diminuição das desigualdades, mais um avanço. E, para lutar sem esmorecer é preciso cantar. Caminhando e cantando, somos todos iguais, braços dados ou não... Esta é a parte que lhe cabe deste latifúndio: É uma cova rasa, bem de medida Eu queria estar alegre, mas acho que estou decepcionado... Com a boca escancarada, cheia de dentes Esperando a morte chegar Ando onde há espaço Meu tempo é quando Vamos precisar de todo mundo Um mais Um é sempre melhor que dois


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Para recomeçar a vida nova Não deixemos nada pra depois

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Estes que aí estão Atravancando o meu caminho Estes passarão, Eu passarinho.

NOTAS 1

Medida Provisória nº 384, de 20/08/0. Publicado no DOU (Diário Oficial da União de 21/8/2007). 2

FAVRETO, Rogério. “Redes de mediação: um novo paradigma à pacificação dos conflitos”. In Folha de São Paulo. 3/12/2007. 3

Informativo Pronasci. Número 1- 4/7/2007 (Pronasci@mj.gov.br).

4

Medida provisória nº. 384, art 3.

5

Manual de convênios. Pronasci. Ministério da Justiça. 2ª ed. 07/05/2008, p.04.

6

Medida Provisória número 416 de 23/1/2008. publicado no DOU (Diário Oficial da União de 24/01/2008). 7

Portaria nº. 459, de 9/4/2008. publicada no DOU (Diário Oficial da União de 16/4/ 2008). 8

Informativo Pronasci nº. 36. 5/3/2008. www.mj.gov.br/pronasci.

9

Informativo Pronasci nº. 35. 27/2/2008. www.mj.gov.br/pronasci.

10

Informativo Pronasci nº. 41. 09/4/2008. www.mj.gov.br/pronasci.

11

O que é Pronasci. 20/5/2008. www.mj.gov.br/pronasci.

12

Informativo Pronasci nº. 46. 27/2/2008. www.mj.gov.br/pronasci..

13

Informativo Pronasci nº. 27. 2/2/2008. www.mj.gov.br/pronasci.

14

Informativo Pronasci, nº 2. 11/7/07. www.mj.gov.br/pronasci

15

Informativo Pronasci, nº 17. 24/10/07. www.mj.gov.br/pronasci


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16

Informativo Pronasci, nº 18. 31/10/07. www.mj.gov.br/pronasci

17

Informativo Pronasci, nº 19. 07/11/07. www.mj.gov.br/pronasci

18

Informativo Pronasci, nº 34. 07/11/07. www.mj.gov.br/pronasci

19

“Uma busca contramão das barbáries: políticas de encarceramento focadas nas particularidades do gênero”. RITA, Rosangela Peixoto Santo. Art. Informartivo Pronasci. N 20. 23/1/08. www.mj.gov.br/pronasci. 20

Informativo Pronasci, nº 38. 19/03/07. www.mj.gov.br/pronasci

21

RITA, Rosangela Peixoto Santo. op. cit. N 20. 23/1/08.

22

Ibidem.

23

SIMÃO, Severino da Costa. A polícia ideal sob à ótica do PNSP (Plano Nacional de Segurança Pública). Informativo PRONASCI nº.36 de 05 de março de 2008. Disponível em http://www.mj.gov.br/PRONASCI. 24

BATTINI, Odário (ORG). SUAS – Sistema Único de Assistência Social em Debate. Veras editora. Curitiba – PR. CIPEC, 2007, p.07. 25 SILVEIRA, Jucimere Isolda. In SUAS – Sistema Único de Assistência Social em Debate. op cit. págs. 64,65. 26

SILVEIRA, Jucimeri Isolda. op cit. p.65.

27

SPOSATI, Aldaíza (ORG). In Proteção Social de Cidadania: Inclusão de Idosos e pessoas com deficiência no Brasil. França e Portugal. Editora Cortez, p.129, 2004. 28

SILVEIRA, Jucimeri Isolda. op cit. p. 97.

29

Constituição da República Federativa do Brasil. In Código Civil. Editora Saraiva – 10ª ed. 2004, p.792. 30

31

Constituição da República Federativa do Brasil. op cit. p.764.

COLIN, Denise Ratmam Arruda e FOWLER, Marcos Bittencourt. Loas-Lei Orgânica da Assistência Social Anotada. Veras Editora CIPEC. São Paulo, 1999, p.33.


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COLIN, Denise Ratmam Arruda e FOWLER, Marcos Bittencourt. op cit. p.33. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATTINI, Odário (org). SUAS – Sistema Único de Assistência Social em Debate. Veras editora. Curitiba – PR. CIPEC, 2007. COLIN, Denise Ratmam Arruda e FOWLER, Marcos Bittencourt. Loas-Lei orgânica da Assistência Social Anotada. Veras Editora CIPEC. São Paulo, 1999. Constituição da República Federativa do Brasil. In Código Civil. Editora Saraiva – 10ª ed. 2004. FAVRETO, Rogério. Redes de mediação: um novo paradigma à pacificação dos conflitos. In Folha de São Paulo. 3/12/07. Informativo Pronasci nº. 27. 2/2/2008. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci nº. 35. 27/2/2008. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci nº. 36. 5/3/2008. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci nº. 41. 09/4/2008. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci nº. 46. 27/2/2008. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci, n 38. 19/03/07. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci, nº 17. 24/10/07. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci, nº 18. 31/10/07. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci, nº 19. 07/11/07. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci, nº 2. 11/7/07. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Informativo Pronasci. Número 1 de 4/7/2007 (Pronasci@mj.gov.br). Manual de Convênios. Pronasci. Ministério da Justiça. 2ª ed. 07/05/2008 Medida Provisória nº 384, de 20/08/0. Publicada no DOU (Diário Oficial da União de 21/ 8/2007)


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Medida Provisória número 416 de 23/1/2008. Publicado no DOU (Diário Oficial da União de 24/01/2008). O que é Pronasci. 20/5/2008. Disponível em: http://www.mj.gov.br/pronasci. Portaria nº. 459, de 9/4/2008. Publicado no DOU (Diário Oficial da União de 16/4/2008). RITA, Rosangela Peixoto Santo. Artigo no Informativo Pronasci. nº 20. 23/1/08. www.mj.gov.br/pronasci “Uma luz na contramão das barbáries: políticas de encarceramento focadas nas particularidades do gênero”. SILVEIRA, Jucimere Isolda. In SUAS – Sistema Único de Assistência Social em Debate. SIMÃO, Severino da Costa. A polícia ideal sob à ótica do PNSP (Plano Nacional de Segurança Pública). Informativo PRONASCI nº.36 de 05 de março de 2008. – disponível em http://www.mj.gov.br/PRONASCI. SPOSATI, Aldaíza (org). In Proteção Social de Cidadania: Inclusão de Idosos e pessoas com deficiência no Brasil. França e Portugal. Editora Cortez, 2004.


O CINTURÃO VERDE DE CIANORTE ABOCANHADO PELO CENTURY PARK – UMA CÓPIA DO AMERICAN WAY OF LIFE NO QUE RESTOU DA MATA SUBTROPICAL Aida Franco de LIMA1 RESUMO O presente artigo aborda a construção do Century Park, um condomínio residencial, erguido em meio a uma fatia de área verde, no município de Cianorte, Paraná. É realizada uma crítica com relação ao modo como tal empreendimento se sobrepôs em meio à floresta e à cultura local, propagando um novo conceito de moradia e estilo de vida. Palavras-chave: Cinturão Verde de Cianorte, Century Park, CMNP ABSTRACT This paper deals with the construction of Century Park, a residential condominium built in a Green belt of Cianorte town, Parana state. I accomplished a comment upon the way that such undertaking has been overlaid in the midst of the forest and among the local community, disclosing a new and pernicious concept of dwelling places and life style. Keywords: Cianorte Green Belt, Century Park, CMNP

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Cinturão Verde de Cianorte é a maior riqueza natural do município do Noroeste paranaense. Uma área que pertencia à colonizadora, a CMNP –

Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, transformada em Parque Municipal após muitos anos de negociações que envolveram interesses diversos, repercus-

1 Mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; Profª concursada pela PUC–MG com especialização em Educação Patrimonial – UEPG/PR; guia especializada em Atrativos Turísticos Ambientais Senac/Embratur; jornalista – UEPG e militante em ONGs ambientais paranaenses.


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são na mídia e protestos da comunidade. Polêmicas que surgiram em virtude da autorização para desmatamento de 231 hectares, trocados pela preservação de outros 282,371 hectares (somados a outros 28,724 hectares de reserva legal) que constituiriam o citado Parque. Porém, em anos anteriores uma fatia de área verde foi abocanhada por um empreendimento imobiliário. Além da perda da diversidade biológica, a cultura local, ao menos naquele espaço geográfico foi acobertada pela cultura estadunidense. Century Park: Via Atlanta, Via Los Angeles, ruas Flórida, Olimpic, Alabama, Louisiania, Pensilvânia, Mississipi, Montana, Indiana, Geórgia, São Francisco, Nevada. O que esses nomes poderiam refletir em um primeiro momento? Infinitas imagens. Mas, a mais provável está ligada ao fato de serem endereços abrasileirados, inspirados em algumas regiões dos Estados Unidos. Como se não bastasse a nomenclatura empregada, a situação vai além: trata-se de exemplo de transgressão às normas ambientais e mesmo ao que se passa abaixo da linha do Equador — mais especificamente à geografia, ao clima tropical, à cultura brasileira como um todo. Assim, o Century Park se refere a um empreendimento imobiliário encravado em 1995 no Cinturão Verde de Cianorte, anunciado como uma oportunidade de trazer os Estados Unidos da América ao Noroeste paranaense, mais exatamente a Cianorte. O “estilo americano de viver” é anunciado como um sonho possível, ao alcance de quem tenha “cacife” financeiro para fazer parte do grupo privilegiado de um condomínio residencial fechado, de

“alto padrão”2 , junto à natureza - como se o jeito de se viver nos Estados Unidos fosse um exemplo a ser seguido, negligenciando todo o contexto histórico, geográfico e ambiental, dentre outros, nessa região paranaense ou de qualquer outra localidade que seja subjugada em detrimento de outro modelo exógeno. O estereótipo do Century Park se choca com a proposta da mestiçagem cultural que, segundo PINHEIRO (2007), implica uma operação tradutória, que foi levada em última consequência na obra barroca e pode ocorrer tanto com um utensílio de cozinha como em uma grande catedral, passando pelas obras de arte e pela convivência humana. Mas como essas configurações mestiças em mosaico móveis são extremamente complexas, elas colocam em crise quem está dentro delas. A América Latina assusta porque ela é muito complexa. Em uma grande cidade da Europa o turista fica sossegado porque a conhece de cor mesmo sem ter ido para ela. Já em cidades da América Latina este mesmo turista se sente sacolejado e projetado para elementos que estão em coligação que vieram dos índios, mouriscos, judeus, italianos e que formam uma espécie de caos urbano. (PINHEIRO, 2007: 1)

O loteamento denominado Century Park foi aprovado pelo Decreto Municipal nº 131/92, de 8 de dezembro de 1992, como loteamento comum. Porém, em 2005 a Lei Municipal nº 2.584 o transformaria em “Loteamento Fechado Century Park”, permitindo a concessão de uso das


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vias públicas, praças e espaços livres aos proprietários de imóveis do mesmo3 . Os trâmites que viabilizaram a autorização para que José Noé Martelli, proprietário da Imobiliária e Construtora Martelli 4 , recortasse uma fatia do Cinturão Verde para a construção de seu empreendimento, poderiam ser fruto de uma grande investida de pesquisa. Mas o fato é que, quando a primeira propaganda do citado empreendimento foi ao ar no canal local — uma TV a cabo denominada TV Cinturão Verde de Cianorte, no final dos anos de 1990 —, uma frase chamava a atenção. Os offs do comercial convidavam: “Venha viver em meio à natureza”, encerrando de forma contundente com o discurso: “Venha para o Century Park, um estilo americano de morar”.

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Tratava-se da propaganda daquilo que o Google Maps5 , anos depois, intitularia de “Martelli Complex”. Na figura 1 é possível ter uma dimensão do impacto do empreendimento na área verde e do disparate que envolve a situação: Ver Figura 1, abaixo. Pelo lado de dentro dos muros, as ruas simulam atmosfera estadunidense, como se quem ali residisse insistisse em não olhar para o entorno e deparar-se com a Estrada Cianorte, a Praça Rui Barbosa, a Rua Maceió — logradouros típicos —, e assim por diante. Mas a incorporação do outro ou a negação do ser (ou estar) brasileiro, paranaense e cianortense não se centra

Figura 1: Foto aérea parcial de Cianorte, com destaque para o condomínio fechado Century Park. Fonte: Google Maps, acessado em, 25 mar. de 2010. Disponível em <http://maps.google.com.br/>.


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somente na ofuscação dos nomes nativos. O “estilo americano” anunciado na propaganda também é incorporado na arquitetura das residências, como no exemplo assinado pelo arquiteto Vinícius Nicolleti e nos detalhes exteriores, promovidos pela empresa Claris6 (Figura 2).

Figura 2: Acabamento em vidro da empresa Claris. Fonte: Divulgação.

O grande paradoxo entre o estilo do Century Park e o cenário habitual de Cianorte é o fato de ela ser uma destas típicas cidades do interior que, nas últimas três décadas, tem experimentado o gosto pelo desenvolvimento de suas atividades industriais. Com amplo marketing promovido por seus administradores, o município ganhou fama nacional e internacional como “Capital do Vestuário”. A ideia de batizá-la assim surgiu no início dos anos de 1990, quando o então prefeito Edno Guimarães (reeleito nos mandatos de 2005-2008 e 2009-2012) espalhou placas pelo Brasil afora com a nova marca da cidade. A ideia foi absorvida depois que o carro-chefe da economia da região até os anos de 1980, ou seja, a cafeicultura, entrou em decadência, o que obrigou Cianorte a investir em outro segmento econômico.

Em 2003 foram pesquisadas 3.638 indústrias em todo o Estado, e Cianorte apareceu como a oitava agência do IBGE em volume de pesquisa industrial. Ao considerarmos que em Curitiba há três agências, podemos dizer que Cianorte é a sexta cidade do Estado e a quinta do interior em atividade industrial. (SECRETARIA MUNICIPAL DE INDÚSTRIA, COMÉRCIO E TURISMO, 2009: 1)

A mesma secretaria aponta que há destaque também para a indústria da construção civil, com empreendimentos vultosos despontando em todos os bairros da cidade. A estratégia do formato de condomínio fechado poderia ser apenas reflexo de uma tentativa de defesa com relação à violência urbana. Porém, a concepção do mesmo — desde o momento em que foi derrubada a mata nativa para que fosse construído — e a posterior propaganda convidando o interessado a morar junto à natureza (agora completamente asséptica) gera margens para outras interpretações, da mesma maneira que apregoar o modo americano como um estilo a ser copiado soa um tanto inaudível quando levado em consideração o ambiente em que o mesmo está inserido. Com um breve passar de olhos na figura 2, que ilustra uma das residências, é possível verificar o uso intensivo de vidro em uma edificação. Estivesse em um ambiente com temperaturas mais baixas, o mesmo seria até recomendado, haja vista a necessidade de se reter o calor. Porém, como explica Lombardo (2005)7 , o uso do vidro em larga escala na face externa das constru-


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ções as transformam em verdadeiras estufas, onde o calor produzido pelos raios solares fica retido. Para evitar esse desconforto, lança-se mão do sistema de ar condicionado que equilibra a temperatura interna, mas provoca outros problemas: além do consumo de energia, a má conservação de seus dutos estimula a proliferação de fungos, bactérias e ácaros, que pode infectar quem frequenta esses locais. Não há uma receita arquitetônica única para um clima específico. “A possibilidade de utilização de materiais nas edificações atuais é ampla, desde que conhecidas as características térmicas desses produtos e sua adequação à região” (LOMBARDO, 2005: 1). No entanto, a mesma autora adverte que o vidro, apesar de ser necessário para o conforto luminoso, deve ter sua área de aplicação muito bem planejada, para que não seja a causa de aumento do calor e do gasto de energia. Talvez seja importante lembrar que a média das temperaturas em Cianorte nos meses mais quentes é superior a 22ºC. A dos meses mais frios é inferior a 18ºC (cf. ATLAS DO ESTADO DO PARANÁ: 1987). De acordo com PINHEIRO (2009)8 , todo conhecimento se transforma a partir da capacidade neurossensorial de cada um e os objetos da cultura. Isso funciona como um sistema de retroalimentação, que retorna para ser elaborado como novas formas de conhecimento e desemboca na cultura continuamente. Isto é, refere-se ao conhecimento situado, que ocorre por meio de uma necessária relação não só da mente, como também do corpo para com as coisas. Um problema

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recorrente é a pessoa acreditar ser possível ficar muito culta estando fechada dentro de casa. Essa imagem de uma atitude erudita e superior ao que acontece na rua é praticada razoavelmente na academia. “A pessoa quase se sente assim um pouco orgulhosa em dizer que não tem nada a ver com o bairro ou a cidade”, exemplifica PINHEIRO (2009), ao ressaltar que essa é uma atitude que deve ser revista. Em primeiro lugar, porque o bairro e a cidade são lugares interessantes do “perigo” – não o perigo contemporâneo da violência. A rua é um lugar de risco de conviver excessiva e extraordinariamente com uma multidão de outros. Toda sociedade que contém uma grande pluralidade cultural, como as das cidades da América Latina, têm reserva energética ou são um reservatório de eletricidade muito grande, o que coloca em risco todos os prognósticos que a gente possa fazer a respeito do sucesso de nosso eu. A rua é risco e é anonimato. Lá, você tem que, separado da domesticidade familiar, elaborar modos de diálogos com a multidão de outros. Aprender a conversar com todos os tipos de pessoas, se e que isso se aprende, e perceber que você aprende possivelmente muito mais do que com professores em sala ou com o pai em casa. Esta é uma desterritorialização necessária, que normalmente a família, infelizmente, tenta impedir. As famílias, em geral, são um grande empecilho para este diálogo com os outros todos. Isso se acentuou demais na América Latina por causa do au-


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mento desesperador da heterogeneidade. O que a ciência clássica fez foi controlar as heterogeneidades; é isso que quero falar desde o começo. De que modo poderíamos depurá-las, fazer de conta que elas não existem, ou que as que sobram sejam consideradas desprezíveis, desconsideradas? Todo o trabalho da ciência clássica foi criar invariantes modelos arquetípicos do conhecimento que se transformassem em noções dominantes que não pudessem ser facilmente contempladas. O pensamento clássico tem estas noções é um pensamento por etapa sucessiva, dirigindo-se do baixo ao alto. Deste modo, passou-se a se conferir uma importância muito grande à coesão interna das coisas e não à sua relação com o externo. Esta é outra condição da ciência clássica a sua desnecessidade de relação com o lado de fora, entre o interno e externo. O extratexto passou a ser desinteressante. (PINHEIRO, 2009)

Nativo de Cianorte, Jotabê (João Batista Medeiros, crítico cultural do jornal O Estado de São Paulo) reserva uma postagem em seu blog sobre o tema, ao referir-se ao “Rio Fantasminha” que se abriga no mesmo Cinturão Verde: O problema é que as cópias dos sistemas sociais da burguesia eclodem de maneira perversa nos interiores brasileiros. E o Fantasminha foi sendo engolido por novos condomínios residenciais fechados e casarões murados, decalques de Alphaville9 num lugar em que nada disso seria necessá-

rio. Conforme vamos perdendo a infância de vista, a gente corre desesperada para recuperar a pipa que o cerol cortou. Lembro perfeitamente de quando eu voltava do Fantasminha, depois de uma heróica tarde de vagabundagem, e ficava quebrando coquinho com pedra no canteiro da avenida, e devorando vorazmente a pequena noz branca que ficava no seu interior. O que significa aprendizado, e o que significa desperdício? (MEDEIROS, 2007: 1)

SOUZA et alii (2000) fazem considerações sobre a região que abriga o Fantasminha e o citado condomínio: Foram visitadas várias partes do “cinturão verde”, tendo-se notado alguns problemas de conservação, tais como áreas fortemente erodidas, rasgadas por profundas voçorocas, servindo de depósito de entulho e lixo urbano, inclusive um riacho, conhecido como Ribeirão Fantasminha, que recebe depósitos líquidos poluentes, tornando a água colorida, com tonalidade azul esverdeada. Num dos pontos desse “cinturão” notou-se uma ruptura provocada pela instalação de um condomínio horizontal com residências de alto padrão. (SOUZA et alii, 2000: 1)

Morar em um condomínio estilizado não impedirá que essas pessoas falem com o sotaque característico do Noroeste paranaense (como dizem, no modo popular, puxando o “r”), negando suas raízes caipiras e as influências dos bandeirantes paulistas.


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Ao traçar um paralelo entre o tema e alguns tópicos das aulas de PINHEIRO (2009), torna-se interessante destacar que o conhecimento clássico se dirigiu a um lugar que tem a ver com a noção da terminologia conceitual, que deve ser refeita. Essa, aliás, é uma tarefa que exige grande trabalho. O mesmo autor argumenta que esse pensar limitado tem uma capacidade de impregnação de tal modo, que “fica colado como uma espécie de esparadrapo no cerebelo da pessoa”. Assim, ela não consegue se livrar de uma terminologia decadente, gasta, que é justamente uma terminologia conceitual proveniente da ciência ou do conhecimento clássico. Evidentemente, perde-se muito tempo com isso. Ainda de acordo as falas de PINHEIRO (2009), essa situação é algo importante a se pensar, exatamente quando se questiona sobre o tempo perdido com determinadas coisas. Isso tem a ver com o fato de que parte da sociedade latino-americana, especialmente aquela que teve o poder dirigente (ou seja, a academia, profissionais liberais, a mídia), acreditou sempre que a ciência clássica era algo que a América Latina deveria adotar e seguir. Se não tivesse alcançado estes “valores”, ela estaria mal de tal modo que ficaria vinculada a uma espécie de sentimento de culpa e até de punição por não ter acompanhado o que se chama de “evolução do conhecimento clássico”. E por que falar sobre isso? Porque é um tema vivo ainda hoje. Quando se aborda a construção do citado condomínio, visivelmente em lugar rasgado dentro de uma mata que faz parte de um dos últimos remanescentes brasileiros de Mata Atlântica, é possível

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fazer um vínculo com a insistência no pensamento clássico, do homem como ser onipotente domador da natureza, ainda subjugada. Este conhecimento com a evolução e desenvolvimento, que começou na metade do século XIX com várias figuras como Bacon e outros, começou a estabelecer a necessidade de divulgar o conhecimento que fosse geral, quantitativo e totalizante no universo. Isso tinha a ver com a crença que foi desenvolvida lentamente no período das Luzes: de que o ser humano tem um poder extraordinário e que ele se diferencia com relação a todos os outros seres e objetos da natureza. Portanto, ele pode dominar e controlar a natureza. Nem vou desenvolver aqui o quanto os fatos mostraram como isso foi um grande equívoco, algo bárbaro. Depois de esse equívoco ter sido praticado, o que se pode apenas fazer é corrigir o problema e continuar pensando dessa mesma maneira. (PINHEIRO, 2009)

Infelizmente, esse modelo equivocado ainda reflete no cenário atual. Principalmente se levada em conta a existência de cópias de um estereótipo falido, o dos EUA, que tem no mecanismo do consumo a principal ferramenta para o não enferrujamento das engrenagens que impulsionam a economia. Vide o exemplo do impasse criado por aquele país por conta da insistência em não assinar o Protocolo de Kyoto em 1997 – que propunha a redução da produção de CO2 em “defesa” da economia americana. Uma situa-


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ção que somente em 2009 ganhou o tom de promessa durante conferência sobre mudança climática entre os dias 7 e 11 de dezembro, em Copenhague, mas, sem nenhuma, medida efetiva ou concretização de legislação rígida para o setor interno. Uma vez mais PINHEIRO (2009) faz uma retrospectiva sobre lugares do mundo considerados centrais e a maneira errônea como determinadas civilizações tentam e/ou sobrepõem-se a outras em virtude do discurso das ciências clássicas. Para o citado autor, mais grave do que a ideia do homem dominando e controlando a natureza, é que os lugares do mundo considerados como centro que desenvolveram esses conhecimentos passaram a ser tidos como lugares que apreenderam de maneira mais interessante “os modos de se usar o cérebro”. Na realidade, vale frisar que sob essa perspectiva existe uma terminologia conceitual que tem a ver com palavras como centralidade, homogeneidade e totalidade, todas empregadas como termos que pareceriam não poder ser contestados. (PINHEIRO, 2009) Conforme a linha de raciocínio do autor referenciado acima, é notória a existência de uma bibliografia clássica da ciência nas áreas de linguística, antropologia, filosofia, etc., que teria estabelecido um sistema classificatório capaz de comprovar o poder e a superioridade das civilizações que desenvolveram as ciências tradicionais. Tudo isso ligado a essa pretensa capacidade de, por um lado, elevar o homem por meio do conhecimento objetivo por sobre todas as outras coisas do universo; por outro, classificar a humanidade conforme os seus graus de ele-

vação na direção de um saber mais substancial, um predicado da coesão que teria a capacidade de se transformar em um conhecimento unitário. Quem não pertencia a esse tipo de conhecimento foi considerado como o lugar da desagregação, da degeneração, do atraso, do desvio, do erro. Tal pensamento ainda está presente nos intelectuais e em nós. Basta ligar a televisão e ver o que falam os entrevistados, os comentaristas políticos e esportivos, os professores, os pais ou os interlocutores em um conversa informal de padaria. Ainda vigora, para uma parte da sociedade, a noção de crescimento contínuo e progressivo na direção de formas que teriam maior inteireza. Ainda conforme PINHEIRO (2009), todo o desenvolvimento da astrofísica e da biologia mostraram que este ideal da ciência clássica caiu por terra. A primeira delas, a astrofísica, comprovou, mediante estudos de vários autores que o mundo galáctico e o bionatural são formados por estruturas bipartivas e caóticas, nas quais o marginal e o erro são componentes fundamentais para o sistema. Ainda de acordo com PINHEIRO (2009), as estruturas de modo linear, de baixa complexidade, são pobres do ponto de vista de sua complexidade. Em contrapartida, as menores, desagregadas, referem-se às estruturas sociais mais ricas, conforme as últimas descobertas das ciências não clássicas. Porém, passou-se muito tempo e essas sociedades se sufocaram em uma espécie de incapacidade para se reconhecerem, como vários pesquisadores explicam. O citado autor exemplifica a questão:


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Como no caso de um mulato que perde a vida por não reconhecer quem ele é. Então, para esconder que é mulato (poderia ser qualquer outro exemplo), a pessoa adota práticas artificiais, adota outros sotaques que lhe sejam mais bem-vindos, relaciona-se com pessoas que esconderiam sua caboclice. Mas você conversa com ela e percebe que em tudo que ela faz existe esta fragorosa ilegitimidade que a impede de pensar a relação com o entorno. Com o ambiente. Ambiente quer dizer “relação com”. Não é um fenômeno incomum e a pessoa desenvolve estratégias extremamente complexas de dissimulação para não aparecer na sociedade como ela é. E, evidentemente, causa danos irreversíveis do ponto de vista físico e mental. Vai namorar, vai se casar, os filhos vão ter que aguentá-la escondendo a caboclice. Evidentemente que ela vai acabar frequentando toda semana um psicanalista... E por que os consultórios estão cheios? Porque as pessoas querem ser o que não são. Esta inautenticidade que aparece em cada um, felizmente não aparece em todos. A pessoa do lado não quer ser caboclo, mas a outra quer. Claro, este é um quadro didático. As configurações são múltiplas e complexas. Na verdade as coisas não se dão desta maneira. Isso tem a ver com um quadro intelectual extraordinariamente problemático, porque o ensino descuidou da tarefa de reconhecer o que o continente é. Como, por exemplo, já a partir do currículo você impede a pessoa de saber quais

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são as circunstancias de conhecimento que existem no lugar onde nasceu. Diversos autores desenvolvem isso, como Boa Aventura de Souza Santos, Morin, Martin Barbeiro, que tem a ver com a seguinte questão: só há conhecimento situado. Você só pode praticar o conhecimento situado. Se você vive em um continente mulato, caboclo, cafuzo, mestiço... Se você não gosta de ser, você vai ter que resolver este problema. Isso pode ter consequências trágicas do ponto de vista psicanalítico. Aliás, não sei se a psicanálise pode resolver isso, porque um caboclo não pode ser psicanalisado do mesmo modo que um francês de Paris. Isso é um problema para ser resolvido. Há uma relação entre conhecimento e cultura. O livro O método quatro, de Morin, desenvolve isso. (PINHEIRO, 2009)

O mesmo autor diz que não se trata de não se poder assimilar conhecimento de fora da cultura. É fundamental a leitura de autores diversos. O que não se pode é generalizar a aplicação aos objetos de qualquer cultura o conhecimento assimilado de modo internacional, que necessita passar pelo crivo, pela “peneira” da situação epistemológica que não se explica de maneira geral e homogênea. “E a relação entre conhecimento e cultura como mostram vários autores se dá em um continuo vai-e-vem, onde não há determinante e determinado”. (PINHEIRO, 2009) Reconhecer a si próprio é um desafio que exige coragem para aceitar situações reais que nem sempre são desejadas. Acei-


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tar o próprio “eu” é o primeiro passo para ter o olhar externo como elemento que explora o diferente e não que simplesmente o evita, construindo fortalezas (ou “condomínios”) de proteção. A construção do citado condomínio é exemplo de uma grande aberração. Em primeiro lugar, o mesmo só nasceu porque uma grande área de mata nativa foi derrubada, fazendo da mensagem publicitária que o anuncia algo ilusório. O Century Park vende ao usuário a ideia de que o conjunto habitacional integrase à natureza, quando, de fato, a mata foi completamente devastada para dar lugar ao empreendimento. Não é a mata que vem a cercar o condomínio. Na realidade, o condomínio invadiu um espaço para ser ambientado. O condomínio devora a mata! Ao entronizar o American way of life, quem ali mora parece acreditar que não mais faz parte do cenário real no qual está inserido, e também é como se esse modus vivendi fosse uma “carta na manga” para quem tem poder aquisitivo para estar em Cianorte, porém, levando um padrão americano de vida. E o que é pior: é como se esse fosse o modelo ideal. O ideário americano engole os traços da cultura local. A denominação das ruas surge como algo insosso, pois promove uma comple-

ta desconexão com os elementos do entorno. Ao olhar para fora, depara-se com a Estrada Imbituva, vocábulo indígena que significa cipoal, “lugar de muito imbé”, ou com a Estrada dos Amores, que dispensa uma explicação lexical e certamente causa mais interesse do que os nomes de referência estadunidense. A própria estrutura física do empreendimento, com mansões estilizadas, jardins limpos, casas distantes uma das outras contrasta significativamente com a cultura latina, de efervescência, de proximidade, de toque, com beijos e abraços. A ilustração 2 impõe um clima frio, que se assemelha aos ambientes hospitalares e de repartições públicas, que contrastam com o jeito brasileiro de ser. Essa breve leitura demonstra ainda o costumeiro posicionamento em situação de atraso quando a pretensão é se adiantar. Um paradoxo, pois o Century Park poderia ser um condomínio fechado, sim. Mas não necessariamente, em meio a uma floresta. Ele poderia ser um condomínio com adaptações que valorizassem tal ambiente. Um espaço habitacional que não negasse as raízes. Que mesmo cercado à questionável segurança dos muros altos, cercas elétricas e vigias, permanecesse conectado com o ir e vir da multidão dos “outros” que compõem os quase 70 mil moradores de Cianorte.

NOTAS 2

A autora coloca o termo “alto padrão” entre aspas, pois poderia ser tema de uma outra discussão. Porém, neste caso, refere-se estritamente à questão financeira, desconsiderando outros conceitos do que seria alto ou baixo padrão.


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A Lei nº 2.067/2000 que dispõe sobre a criação do Parque do Cinturão Verde e dá outras providências estabelece em seu artigo 2º: II – Lote “Reserva Florestal” do Loteamento “Century Park”, desta cidade e Comarca de Cianorte, com área total de 8,645808 hectares, iguais a 3,5726 alqueires paulistas, ou ainda 86.458,08 m , conforme matrícula nº 10.144 do CRI –1º Ofício da Comarca de Cianorte, que constitui o módulo Uruçora, do Parque Cinturão Verde, criado pela da Lei Municipal nº 1.625/95, de 31 de janeiro de 1995. 4

Um empreendimento de um dos pioneiros da cidade, transformado em uma das principais referências da construção civil cianortense. 5

As fotos foram retiradas do citado mecanismo de busca online.

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Em seu site, a empresa informa que no Paraná a JB Casa e Conforto foi a responsável pela entrada das marcas da construtora Constral e da Ophicina Arquitetura no Century Park. O condomínio de casas recebeu quadros fixos, persianas motorizadas, janelas de correr e portas-giro da Claris. 7

Magda Adelaide Lombardo, geógrafa do campus da Unesp de Rio Claro, que, desde o final da década de 1970 estuda as ilhas de calor na maior cidade brasileira. 8

Falas de PINHEIRO, José Amalio de Branco. Aulas ministradas durante o segundo semestre de 2009, às quintas-feiras, das 14h às 17h, na disciplina de “Teorias da Comunicação: teorias culturalistas da comunicação”, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. 9

Outra referência de nome e cunho em Inglês. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CIANORTE. Decreto Municipal nº 131/92, de 08 de dezembro de 1992, que denomina o loteamento comum o complexo Century Park e dá outras providências. Câmara de Cianorte. Disponível em: < http://www.camaracianorte.pr.gov.br/lei.php?envia= true&id=625>. Acesso em: 1 nov.09. CIANORTE. Lei Municipal nº 2.584 /05, de 22 de setembro de 2005, que altera a classificação do loteamento denominado “Century Park”, aprovado pelo Decreto Municipal nº 131/92, de 08 de dezembro de 1992, como loteamento comum, para Loteamento Fechado “Century Park”, autoriza o Poder Executivo efetuar a concessão de uso das vias públicas, praças e espaços livres aos proprietários de imóveis do referido loteamento, e dá outras providências. Câmara de Cianorte. Disponível em: < http://


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www.camaracianorte.pr.gov.br/lei.php?envia=true&id=625>. Acesso em 01 nov. 2009. CIANORTE. Secretaria Municipal de Indústria, Comércio e Turismo. Disponível em: <http://www.cianorte.pr.gov.br/cianorte_comercio.php+a+industria+da+ confecção+em+cianorte> Acesso em: 21 abr. 2010. CLARIS. News. In: Informativo Claris Bem Viver. 2008. Disponível em: <http:// www.clarisportasejanelas.com.br/news/fevereiro/indexFevereiro.htm> Acesso em: 21 abr. 2010 LOMBARDO, Magda Adelaide. A morada do calor. Disponível em: <http:// www.unesp.br/aci/jornal/203/ilhas.php>. Acesso em: 1 dez. 2009. MEDEIROS, Jatobê. Histórias Paranaenses 2. In: Estadão.com.br: Seção Q Come Pedra. 2007. Disponível em: <http://blog.estadao.com.br/blog/index.php?blog=17&m=200706>. Acesso em: 1 nov. 2009. PINHEIRO, José Amálio de Branco – Disciplina de Teorias da Comunicação – Teorias Culturalísticas da Comunicação I. 2009. Gravação de aulas. _______________________________. Barroco e Mestiçagem. In: Seminário de Comunicação e Cultura, 3, 2007. Disponível em: <http://barrocomestico.incubadora. fapesp.br/portal/referencias/14_amalio_final%201.mp3/view> . Acesso em: 1 nov. 09. SECRETARIA DO ESTADO DA AGRICULTURA E DO ABASTECIMENTO. Atlas do Estado do Paraná. Curitiba: Instituto de Terras, Cartografia e Florestas, 1987. SOUZA, Maria Conceição; SANTOS, Valdovino Damásio dos; MOSCHETA, Ismar Sebastião. Relatório de Avaliação de Desflorestamentos Realizados em Cianorte (PR). Maringá: Universidade Estadual de Maringá, 2000.


O MEDO E AS DIFICULDADES DA CRIANÇA: UMA REFLEXÃO SOBRE O FRACASSO ESCOLAR E SUAS CONSEQÜÊNCIAS NA SOCIEDADE Djanira Pereira da Silva CHAVES1 RESUMO Neste artigo pretende-se descrever e analisar as percepções do medo em torno das crianças com dificuldades de aprendizagem nas escolas, o fracasso escolar e suas conseqüências perante a sociedade a qual ela faz parte, pois, a prática da reprovação escolar constitui-se também um processo de exclusão, visto que o medo (insegurança) da criança dificulta ainda mais o processo ensino-aprendizagem e o fracasso dessa escola irá refletir em seu meio social, sendo assim, uma permanência escolar digna para as crianças, com base escolar sólida em todos os seus aspectos , corrobora para a construção de um ser humano mais capaz e digno. Desta forma a escola deve procurar desenvolver a auto-estima da criança, criando subsídios para o aluno com Dificuldades de Aprendizagem-DA, avaliando o ser (criança em desenvolvimento) não o ter (notas), trabalhando reciprocamente: escola, criança, família, sociedade. O aprendizado faz parte da vida de todo individuo assim como as dificuldades. A escola deve promover subsídios para que uma criança com DA receba um tratamento de igualdade em relação aos outros alunos que não possuem dificuldades, mas precisa saber diferenciar de forma que, explore o potencial do aluno com DA e não suas dificuldades, pois, nem sempre o problema pode estar na criança e sim no ambiente social e familiar a qual ela esta inserida. Palavras-chave: Medo — Fracasso Escolar — Sociedade. RESUMEM El artículo al presente se prepone describir y analizar las opiniones del miedo alrededor de los niños con dificultades de aprender en las escuelas, de la falta referente a escuela y de sus consecuencias antes de que consista la sociedad que es parte, por lo 1 Aluna do Curso de Pós-Graduação à Distância em Psicopedagogia da UNIGRAN-DouradosMS. A autora agradece à sua orientadora Drª.Amélia Leite de Almeida e ao corpo docente do curso pelo apoio.


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tanto, la que está de referente a reprovação de la escuela también un proceso de la exclusión, puesto que el miedo (falta de fiabilidad) del niño hace te difícil el proceso todavía el más enseñar-aprender y la falta de esta escuela irá a reflejar en su ambiente, estando así, un digno referente a la permanencia de la escuela para los niños, con el sólido referente a base de la escuela en todo su los aspectos, corroboran más para la construcción de ser humano capaz y digno. De tal manera la escuela debe buscar para desarrollar la automóvil-estima del niño, creando los subsidios para la pupila con dificultades de aprender - DE, evaluando el (niño en el desarrollo) para no tenerlo (las notas), reciprocamente del funcionamiento: escuela, niño, familia, sociedad. El aprender es parte de la vida de todo el individuo así como las dificultades. La escuela debe promover subsidios de modo que un niño con DE reciba un tratamiento de igualdad en lo referente a las otras pupilas que no poseen dificultades, solamente a las necesidades de saber para distinguir de forma eso, explore el potencial de la pupila con DE y no sus dificultades, por lo tanto, ni siempre el problema puedan estar en el niño y sí en el ambiente social y familiar que esto insertó uno. Palabras Clave: Miedo - La Falta Del La Escuela - A La Sociedad INTRODUÇÃO Neste artigo pretende-se descrever e analisar as percepções do medo em torno das crianças com dificuldades de aprendizagem nas escolas e suas conseqüências perante a sociedade a qual ela faz parte, pois, a prática da reprovação escolar constitui-se também um processo de exclusão, visto que o Medo (insegurança) da criança dificulta ainda mais o processo ensino-aprendizagem e o fracasso dessa escola irá refletir em seu meio social, sendo assim, uma permanência escolar digna para as crianças construirá também um ser humano digno. Por meio desse estudo bibliográfico e descritivo procurar-se-á aqui abordar aspectos qualitativos e não quantitativos como procedimento central de investigação na busca de mecanismos para eliminar essa insegurança que permeia o aluno e a es-

cola, pois, as escolas atuais estão vivenciando um processo de inclusão social conforme nos apresenta o Ministério da Educação - MEC. Até que ponto a reprovação escolar pode ser usada como ferramenta para exclusão escolar e conseqüentemente social? A questão da permanência dos alunos nas escolas tornouse uma preocupação social, muitas escolas estão alicerçadas num sistema caracterizado de reprovação com uma justificativa de que, a retenção escolar trará aos alunos a possibilidade de reverem aquilo que consideram não adquiridos naquele ano letivo, sendo assim, embora as crianças estejam nas escolas, o número de repetência e evasões tem gerado uma redução nas possibilidades de democratização no ambiente escolar, impedindo os alunos de poderem cursar uma universidade ou até mesmo de concluírem o ensino fundamental e médio.


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Uma criança que não permanece na escola e não conclui seus níveis educacionais, com certeza está sendo excluída da sociedade, tendo como única opção “as ruas”. Sendo assim, quais as conseqüências da reprovação escolar na vida de uma criança? A retenção de um aluno aumenta a qualidade do ensino-aprendizagem? Por que reter um aluno com DA1 ? Qual o papel da sociedade? Este estudo tem como objetivo mostrar também que o papel fundamental da escola é o de propiciar aos alunos uma aquisição de conhecimentos não de notas, para que ele possa ter uma participação democrática na sociedade sem exclusão, entendendo que as relações que nele se estabelece podem criar um bem cultural para que ele possa transformar o mundo o qual está incluído. Desta forma a escola deve procurar desenvolver a auto-estima da criança, criando subsídios para o aluno com DA, avaliando o ser (criança em desenvolvimento) não o ter (notas), trabalhando reciprocamente: escola, criança, família, sociedade. O aprendizado faz parte da vida de todo individuo assim como as dificuldades. Segundo Almeida(2005,p.9) “É importante dizer que não aprendemos de qualquer um, aprendemos daquele a quem outorgamos confiança e o direito de nos ensinar”. A escola, o professor em si deve ter consciência de que ele é o condutor de um processo no qual ele também aprenderá e que não está ali por ser o dono da verdade absoluta, dialeticamente falando: o professor não apenas ensinará, pois, faz parte de um processo de ensino-aprendizagem. De acordo com a citação de Lima(2001):2

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Isto nos remete a DEMO (1995) quando destaca a necessidade de “construir a capacidade de construir” que significa, pois, saber pensar, aprender a aprender para melhor intervir e inovar. Isto aponta e sinaliza outra forma de trabalhar do professor com os seus alunos na escola, na qual estes precisam necessariamente ser agentes dinâmicos do processo de aprendizagem. Para ele, a “aula tradicional” é desnecessária, a aula necessária é aquela que o professor age como pesquisador e promove a pesquisa com os seus alunos, travando uma relação pedagógica de sujeitos, o que exige uma atitude reconstrutiva em ambas as partes, professor e aluno. (DEMO.P.1994 apud LIMA.T.B..2001,p. 101).

Segundo a psicologia sócio-histórica, como base na teoria de Vygotsky que concebe o desenvolvimento humano a partir das relações sociais que a pessoa estabelece no decorrer de sua vida: A sala de aula deve ser considerada um lugar privilegiado de sistematização do conhecimento e o professor um articulador na construção do saber. Tendo como base tais pressupostos teóricos, esse texto sistematiza alguns pontos da teoria com a possibilidade de trabalho do professor junto a seus alunos 3 . (MARTINS, João Carlos, 1997, p.111).

Nesse sentido vale ressaltar que, o professor deve auxiliar seu(s) aluno(s) em suas dificuldades sendo parceiro não rival, demonstrando que ele está a seu lado


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e não acima. A criança com DA pode trazer para escola alguns problemas de sua personalidade, ou seja, emocionais, de sua suas vivências sociais e familiares. A escola deve promover subsídios para que uma criança com DA receba um tratamento de igualdade em relação aos outros alunos que não possuem dificuldades, mas precisa saber diferenciar de forma que, explore o potencial do aluno com DA e não suas dificuldades, pois, nem sempre o problema pode estar na criança e sim no ambiente social e familiar a qual ela esta inserida. Segundo Vygotsky, a demanda por desenvolvimento é característica das crianças, sendo assim, elas próprias fazem da brincadeira um exercício de ser o que ainda não são e a escola que se limita ao que elas já sabem é inútil. Segundo Galvão: “Reprovar é sinônimo de expulsar, negar, excluir. É a própria negação do ensino”4 . (GALVÃO, Izabel 1995, p. 123). Partindo desse contexto, este artigo pretende mostrar que o “Medo” de fracassar (reprovar) da criança com DA implica em perdas significativas para o processo ensino-aprendizagem e, sendo assim, “fracassa” também a escola e o reflexo desses “fracassos” não trará bons resultados para a sociedade, pois, o adulto de hoje com certeza foi à criança de ontem. O MEDO “Em verdade temos medo. Nascemos no escuro. As existências são poucas; Carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios Vadeamos...”. (Carlos Drumond de Andrade)

Conseqüências do medo na criança Quantos de nós já não fizemos referência a esta frase “o medo é o maior inimigo do homem”. Quem nunca sentiu medo de alguma coisa, seja ela, “uma estória, conto, morte, abandono”... Mas podemos dizer também que, o medo está por trás do fracasso, pois, nós seres humanos temos um medo que se diferencia dos animais, “o medo de fracassar”, pois, quando fracassamos passamos a nos sentir inútil tanto para nós mesmos como para as pessoas que nos rodeiam e sendo assim, passamos a ter atitudes humanas desagradáveis. O medo é um pensamento em sua mente e você tem medo dos seus próprios pensamentos. Um menino pode ficar paralisado pelo medo quando lhes dizem que há um homem mau debaixo de sua cama e que vai levá-lo. Quando o pai acende a luz e mostra-lhe que não há ninguém, ele se liberta do medo. O medo na mente do menino foi tão real como se houvesse de fato um homem debaixo de sua cama. Ele se curou de um pensamento falso em sua mente. A coisa que temia, na verdade, não existia. Da mesma forma, a maioria dos seus medos não têm base na realidade. Constitui apenas um conglomerado de sombras sinistras e as sombras não têm realidade5 .


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E assim, torna-se uma criança com DA na escola, uma criança fóbica, ou seja, crianças precavidas, desconfiadas amedrontadas, sem autoconfiança, mas são também frágeis, pois, estão sempre a procura de alguém que as possam “guiar’ e quando encontram se deixam orientar. É também por medo que excluímos da nossa vida social aqueles que são diferentes de nós e desta forma, perdemos também nossa capacidade de transformar a vida de uma pessoa. Quando a escola não tem consciência de que um aluno com DA também é uma criança amedrontada, pois, se sente diferente dos outros que considera “bem mais capaz que ela”, possuindo assim uma baixa-auto-estima, acaba por ser “derrotada” diante da reprovação que, por sua vez, vem comprovar o que realmente está se sentindo diferente e incapaz, pois, precisa retomar novamente no próximo ano o que acabou de “ver” e observa de longe passar por ela, muitas vezes por vários anos, outras crianças a qual gostaria de ser. É preciso ir além do básico, estendendo-se a discussão do sucesso á qualidade da escolaridade: passa-se assim de um conceito bancário – quantos dentro e quantos fora – para um conceito qualitativo sobre as aquisições, de quem está dentro e de quem está fora, para alcançar uma vida digna como brasileiro. (SPOSAT, 2000 p. 25).

O medo aumenta, a insegurança ainda mais e ninguém precisa lhe dizer nada, pois, percebe que aquilo (estudar, escola) não serve pra ela, não conseguirá alcançar se ali continuar (no ambiente escolar)

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seus colegas, simplesmente “ficou para trás”, ou melhor dizendo, foi excluída de um mundo que pensou ser para todos e conclui que, ser inteligente é passar de ano na escola. O medo da escola e os seus reflexos na sociedade Sentir medo é natural do próprio ser existente. “Os medos” se apresentam de várias formas e aspectos como: medo de perder alguém, ser abandonado, medo de morrer, medo até mesmo de viver infeliz... Enfim falar sobre este assunto (medo) de forma abrangente seria quase impossível, por isso, retrataremos aqui dois medos que consideramos necessário para este estudo. Partindo do princípio de que existem muitas “diferenças” na escola, a inclusão social que é do conhecimento de todos nesses últimos anos demanda a permanência de crianças com deficiências no ensino comum, são crianças que apresentam: deficiências auditivas, visual, física e mental consideradas aptas para estudarem juntamente aos alunos considerados “normais” está causando um pânico entre alguns educadores, pois, alegam não saberem o que fazer e não estão preparados para receber essas crianças. O medo está sendo manifestado por meio da insegurança em realizar atividades as quais se consideram não preparados. Mas não seria a inclusão o meio de preparálos (professores e alunos) não apenas para realizarem atividades, mas para aprenderem a conviver realmente em sociedade sem discriminação ou concessão de individuo nesse mundo? Não seria um meio de inserir partes de um mesmo


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mundo que a vida inteira viveram separados? E o medo dessas crianças de enfrentar todo esse processo não conta? A inclusão deve ir além da sala de aula, tanto para as pessoas com deficiências quanto para pessoas com distúrbios que geram as DA. O medo se apresenta na escola também relacionado à violência que perpassa diferentes relações sociais e está explicita na mídia escrita, falada e televisiva, infelizmente até programas infantis não escapam dessa realidade. Mas não seria o individuo que ali se apresenta como criminoso a criança que estava sentado anos atrás naquela cadeira, naquela sala de aula e na naquela escola? Por que esses indivíduos não estão na universidade como tantos outros? Porque na nossa realidade, no nosso país, apenas uma minoria consegue concluir o ensino básico. Conforme nos mostra Dulce Whitaker (1994, p. 55-66.), “ajuda não só a obscurecer a violência que está no dia-a-dia, no cotidiano, como também a esconder suas verdadeiras causas”. É a violência sutil que, em geral, não aparece de forma tão explícita e serve para escamotear e dissimular os conflitos. “os professores não se dão conta de que o que torna as crianças apáticas, não são propriamente os conteúdos ministrados, mas sim o ponto de partida da ação pedagógica que se apresenta carregado de autoritarismo e, portanto, de violência simbólica”6 . Com essa visão percebemos o medo da escola de encarar um dos seus papéis: Educar para o mundo, educar a criança não apenas por meio da avaliação reprovativa ou aprovativa, mas educar também para o profissionalismo e o convívio social.

O FRACASSO ESCOLAR “É nas tramas do fazer e do viver o pedagógico quotidianamente nas escolas, que se pode perceber as reais razões do fracasso escolar das crianças advindas dos meios sócio-culturais mais pobres”. (Cecília Azevedo Lima Collares)

Crianças com DA consideradas como “crianças problemas”, em sua maioria são provenientes de escolas públicas ou ainda de camada pobres da população, sendo assim, muitos alunos que freqüentam escolas da rede pública em nosso país têm se defrontado com o fracasso escolar. Segundo Maria Helena Souza Patto: […] o que aparece como natural é social; o que aparece como a-histórico é histórico; o que aparece como relação justa, é exploração; o que aparece como resultado de deficiências individuais de capacidade, é produto de dominação e desigualdade de direitos determinada historicamente. (PATTO, 1997, p.57).

Como nos mostra a citação, uma escola produz seu próprio fracasso escolar, ao pensar que, o “sucesso” escolar pertence apenas a uma pequena parte, sendo assim, não é para todos, porém, valores como direitos humanos, igualdade, democracia, pode-se dizer assim que a escola, por não tratar ou não saber tratar seus usuários com igualdade, fracassa nos seus objetivos. Não há como negar que as condições materiais, concretas, de vida da maioria das crianças que freqüentam a escola pú-


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blica são de fato extremamente precárias, e se encontram, freqüentemente, num quadro de alimentação deficiente, falta de atenção, de carinho e de estímulos em casa, de informações, de contatos com a língua escrita, além da necessidade de ajudar, seja trabalhando seja tomando conta dos irmãos. Sabe-se também que não contam com auxílio e até mesmo espaço apropriado para estudar. Conhecer essa realidade deve ser ponto de partida para adequar a prática pedagógica e psicológica às crianças que nela estão inseridas, e não como vem sendo feito, usar esse conhecimento como álibi para eximir a escola de seu papel na produção do fracasso escolar7 . Infelizmente muitas escolas continuam sendo seletivas e excludentes mesmo com os avanços construídos e implementados em alguns sistemas de ensino em nosso país, nos defrontando com problemas de crianças e adultos que não aprendem. Segundo afirmação de Patto: As dificuldades de aprendizagem da criança pobre decorrem de suas condições de vida.(...) A escola pública é uma escola adequada às crianças de classe média e o professor tende a agir, em sala de aula, tendo em mente um aluno ideal. (...) Os professores não entendem ou discriminam seus alunos de classe baixa por terem pouca sensibilidade e grande falta de conhecimento a respeito dos padrões culturais dos alunos pobres, em função de sua condição de classe média. (PATTO, 1987, p. 583).

A partir desta reflexão podemos dizer

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que, as DA apresentadas pela criança pobre quase sempre mal interpretada pela escola, traz grandes danos à sociedade, pois, a essas crianças ao serem excluídas, acabam por abandonar a escola para que possam garantir o sustento da família e a escola, que deveria ser lugar de perspectivas e possibilidades torna-se a ser lugar de humilhação e desigualdades e infelizmente esta realidade acaba por tornar-se natural perante nossa sociedade. Mesmo que nossa sociedade concorde ou não que o “fracasso escolar” é produzido pelo sistema de ensino e pela escola, o que realmente podemos afirmar é que, as desigualdades sociais existem e que crianças pobres são consideradas crianças que não aprendem, assim sendo, o fracasso escolar termina por excluir essas crianças da escola e da sociedade como um todo e infelizmente grande parte dessas crianças são pobres. AS PERDAS SOCIAIS COMO REFLEXO DO FRACASSO ESCOLAR Como seres humanos que somos, temos necessidades de viver em sociedade e é na escola que o ser (criança) deveria receber auxilio, incentivo para a sua sociabilização. Segundo Wallon (1986, p. 141) entende que é ‘’pelas relações de sociabilidade que a vida da criança necessariamente principia. Tais relações ultrapassam o plano do mundo físico e, com o tempo, vão modificando o comportamento humano: de visceral para socialmente orientado”. A partir dessa reflexão, podemos dizer que o relacionamento humano entre


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indivíduos possui vida própria que ultrapassam as características daqueles que os compõem manifestando-se assim, não só na relação de um grupo com outro, mas também, nas relações que os membros de um grupo mantêm entre si. Podemos dizer que, diante do fracasso escolar temos então uma educação que passa a assumir um papel excludente do sujeito, uma vez que, a grande maioria das crianças se viu excluída e assim sendo, não foi considerada capaz de responder à escolarização. Desta forma pode-se dizer que: [...] a escola está aumentando a distância entre as palavras que lemos e o mundo que vivemos. Nessa dicotomia, o mundo da leitura é só o mundo do processo de escolarização, um mundo fechado isolado do mundo onde vivemos experiências sobre as quais não lemos. Ao ler as palavras, a escola se torna um lugar especial que nos ensina a ler apenas as ‘palavras da escola’ e não as ‘palavras da realidade. (ZACCUR, 1999, p.22).

Dessas acepções, podemos ressaltar que o fracasso escolar pode imobilizar um sujeito e acabar assim com seus sonhos de realizações, neste caso, o papel da escola deveria ser de educar, mas educar para um mundo social, formando assim, cidadãos integrados à sociedade, mostrando ao sujeito que ele é capaz de transformar essa sociedade, pois, o papel da educação também é o de transformar e modificar essa mesma sociedade em que vivemos e que o individuo deve e faz parte deste mundo.

Quando nos referimos ao valor das interações em sala de aula, é importante pensarmos que este referencial não compactua com a idéia de classes socialmente homogêneas, onde uma determinada classe social organiza o sistema educacional de forma a reproduzir seu domínio social e sua visão de mundo8 . Em uma sociedade homogênea o sujeito busca o sucesso profissional com competência a qualquer custo e a escola possui esta mesma concepção, mas, aqueles que não conseguem responder às exigências escolares sofrem, pois, também não alcançarão o sucesso desejado profissionalmente, desta forma, o fracasso escolar mostra-nos claramente perdas significativas para a sociedade. A reprovação escolar não é estúpida apenas porque destrói a auto-estima do educando, num processo antieducativo que despreza o mais importante na relação pedagógica, ou seja, a condição de sujeito do aluno, a única que permite o êxito no aprendizado. Ela é estúpida também por motivos que poderiam estar à disposição mesmo de quem não tenha conhecimentos especializados em pedagogia. Isso porque a reprovação, a pretexto de pôr, no aluno, a culpa por um fracasso que é de todo o sistema escolar, revela-se a própria negação do mais comezinho processo avaliativo, necessário a qualquer prática humana, individual ou coletiva. Ao invés de um processo contínuo e permanente de avaliação de todos os elementos envolvidos, acompanhando o desenrolar da atividade, corrigindolhe os rumos e adequando os meios aos fins, opta-se por um processo irracional que espera um ano inteiro para, em vez


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de corrigir os erros, apenas condenar o aluno a repetir todo um ano do mesmo ensino medíocre9 . Portanto, o desenvolvimento social, a vida em grupo exige uma organização formal que discipline a atividade dos indivíduos, sendo assim, vivemos numa sociedade que impõe padrões, que nos enquadra. Quando uma criança não é enquadrada as exigências escolares, ela é excluída e excluída torna-se também na vida adulta perante a sociedade em que vive, mas sabe-se também que, para que a forma de aprender tenha mudanças é necessária mudança na forma de ensinar, “afinal de contas”, se um individuo não pensa igual ao outro, também não aprenderá da mesma forma, sendo assim, é necessário que a escola e a sociedade aprenda a aceitar as diferenças entre os indivíduos e respeite a individualidade de aprendizagem de cada criança para não sofrer conseqüências como: violência, abandono enfim pobreza social. Dentro deste contexto, podemos afirmar que a reprovação escolar não traz nenhuma contribuição social. CONSIDERAÇÕES FINAIS A intenção deste artigo foi mostrar por meio da reflexão um olhar diferente em relação a o fracasso escolar e suas conseqüências sociais, sendo assim, se o medo está por trás do fracasso da criança, teremos então crianças inseguras e também adultos inseguros e conseqüentemente fracassados. Com essa visão também se mostrou a escola com medo de encarar seu principal papel: o de Educar para a sociedade e para o mundo e desta forma

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faz uso dos artifícios da reprovação para se eximir da sua própria negação e acaba por excluir. Dentro deste contexto podemos dizer então que o fracasso escolar contribui mais ainda para o aumento das desigualdades sociais, pois, crianças fracassadas na escola são sinônimas de adultos fracassados na sociedade. Como indica Carvalho (2000), a cultura escolar, em geral hegemônica e rotuladora, se confronta diretamente com outras formas de interação social e discursiva trazidas pelos alunos. Estes, quando chegam à escola, trazem consigo uma identidade, um mundo real particular e um conjunto de relações sociais abrangentes, construídas a partir das vivências no seu cotidiano. Para ela, “o ‘sinal distintivo’, que diferencia os alunos entre si, está na relação que cada um estabelece com a cultura escolar” (p.37). Tais afirmações vêm de encontro ao que acreditamos, assim é importante enfatizar que a escola precisa romper os paradigmas do fracasso e pensar no aluno como ser aprendente/ensinante, pois, este faz parte de um ensino-aprendizagem, sendo assim é importante que todos os envolvidos nesse processo, vejam as crianças como um ser capaz de transformar e ser transformado. A criança se forma não apenas pelos “saberes escolares” mas, pelo que lhe é transmitido. Portanto, se as práticas pedagógicas podem interferir nas práticas sociais então devemos refletir sobre tais práticas e buscar novos caminhos com vistas à aproximação e conhecimento do aluno e de suas necessidades. Principalmente se estes alunos apresentarem uma realidade diferente da realidade do ensinante.


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Nesse sentido podemos afirmar que, buscar soluções para o fracasso escolar não consiste em patologizar o aprendente, mas em ampliar este foco, abrindo espaço para outras variáveis que

também influenciam no processo da aprendizagem como a instituição, o método de ensino, as relações ensinanteaprendente, os aspectos sócio-culturais, a história de vida do sujeito, entre outras.

NOTAS 1

Todas as citações referentes às dificuldades de aprendizagem serão indicadas pelas letras DA. 2

DEMO, Pedro. Educação e Qualidade. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994. Apud LIMA, Terezinha Bazé. Relações da Leitura e Escrita no processo de Produção do Conhecimento: Caminhos para a formação continuada de Professores das séries iniciais do Ensino Fundamental. Tese de Doutorado-Unicamp. Campinas, SP: 2001.

3

MARTINS, João Carlos. Vygotsky e o papel das interações sociais na sala de aula: reconhecer e desvendar o mundo. Série Idéias n. 28, São Paulo: FDE, 1997. p. 111-122.

4

GALVÃO, Isabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. Ed. Vozes, 1995. 5

Texto extraído de O Poder do Subconsciente, do Dr. Joseph Murphy, cedido por Marcia Villas-Bôas. Disponível em: http://www.casadobruxo.com.br/textos/medo.htm. 6

WHITAKER, Dulce. Violência na Escola. In Revista Idéias nº 21-FDE-SP-1994. Professora da Universidade Federal de Pernambuco-Doutoranda da Universidade de São Paulo. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/aida1.htm. Acessado em 15/10/2006. 7

FERNANDES, Priscila Valverde. “Fracasso escolar: realidade ou produção?” . Discente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br//006/06fernandes.htm. acessado em 15/10//2006. 8

9

Publicação: Série Idéias n. 28. São Paulo: FDE, 1997. Páginas: 111-122.

Artigo “Progressão Continuada e Ignorância”, escrito e publicado em 15 de setembro de 2003, por PARO, Vitor Henrique. Professor Titular da Faculdade de Educação da USP. Disponível em: http://www.inep.gov.br/imprensa/artigos/vitor_paro.htm. Acessado em 15/10/2006.


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VOZES MARGINALIZADAS: ESTUDO DA NARRATIVA LITERÁRIA EM QUARTO DE DESPEJO (1960) Ana Karoliny Teixeira da COSTA1 Rogério Silva PEREIRA2 RESUMO O seguinte trabalho teve como proposta desenvolver estudos que possibilitassem colaborar para entrever fronteiras mais precisas para a Literatura Brasileira Contemporânea na sua relação com o Modernismo. O método, pode-se dizer, é comparativo. Elegemos a obra Quarto de Despejo: Diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus, em diálogo com as obras Vidas Secas de Graciliano Ramos (1938); Uma Vida em Segredo de Autran Dourado (1964) e A Hora da Estrela de Clarice Lispector (1978). Neste caminho, observamos a estreita ligação entre essas obras. A comparação entre as mesmas foi responsável por desencadear diversas hipóteses para pensarmos a presença de procedimentos literários novos, ditos contemporâneos. Entre as hipóteses, destaco a nossa principal: a presença de aspectos diferenciados na tessitura da obra caroliniana, uma vez que contém formas romanescas arregimentadas de um texto que se autodenomina diário. Para sustentar essas hipóteses, lançamos mãos do apoio teórico do Bakhtin (2000); Lukács (2000); Robert (2008), entre outros. Palavras–chave: Forma Romanesca, Diagrama da Comunicação Literária, Crise da Tradição Republicana. ABSTRACT The current work had as proposal to develop studies that would able to collaborate to glimpse more precise boundaries for the Brazilian Contemporaneous Literature in its relation with Modernism. The method, as it can be said, is comparative. We choose the work Quarto de Despejo Diário de uma favelada (1960), by Carolina Maria de Jesus,

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Graduada em Letras/Literatura, pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em 2009. 2 Graduado em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996), Mestre em Literaturas de lingua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1999) e Doutor em Literaturas de língua portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2004). Professor da UFGD-MS.


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in dialog with the works Vidas Secas, by Graciliano Ramos (1938); Uma Vida em Segredo, by Autran Dourado (1964) and A Hora da Estrela, by Clarice Linspector (1978). On this way, we observe the closer connection between these works. The comparison between them was responsible for unlocking many hypotheses for us to think the presence of new literary procedures, said contemporaneous. Among the hypotheses, highlight our main: the presence of differed aspects on the texture of the Carolinian work, once it has Romanesque regimented forms of a text that self-denominates diary. To support these hypotheses, we got base on the theoretical support of Bakhtin (2000); Lukács (2000); Robert (2008), among others. Keywords: Romanesque Form; Diagram of Literary Communication; Crisis of Republican Tradition

INTRODUÇÃO O trabalho Vozes Marginalizadas: Estudo da Narrativa Literária em Quarto de Despejo (1960), faz parte de um desdobramento do projeto Fronteiras da Literatura Brasileira Contemporânea, coordenado pelo professor Dr. Rogério Silva Pereira (FACALE/UFGD), iniciado em 2006, com o apoio do PIBICCNPq. Estes possuem o mesmo objetivo, a saber, através de métodos comparativos e um apoio bibliográfico, procuramos enfocar uma possível fronteira literária entre o Modernismo e uma nova esfera literária que começaria a se esboçar em meados dos anos 1960, denominada Literatura Brasileira Contemporânea (LBC). Desde já uma ressalva: aqui usaremos a noção de fronteira somente de modo metafórico — estaremos de fato distante dos sentidos geográficos do termo. Portanto, fronteira aqui significaria a linha possível entre dois períodos literários, no caso: o modernismo e a contemporaneidade brasileiros.

O assunto é relevante à medida que observamos o quanto aspectos especificamente literários não são levados em conta na definição das referidas fronteiras. Geralmente, na delimitação dessas fronteiras são usados a marcos meramente cronológicos ou históricos, tais como: 1968, ano das manifestações estudantis, ou ano do AI-5; 1964, ano do Golpe Militar, ou ainda a vaga alusão a uma ou outra década, “Os anos 60”, “Os anos 70”, dentre outros. A proposta, desde o início, foi fazer uma análise comparativa entre obras notoriamente pertencentes aos dois períodos literários aludidos, isto é, Vidas Secas de Graciliano Ramos (1938), como representante da literatura modernista; Uma Vida em Segredo de Autran Dourado (1964) e Quarto de Despejo: Diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus, enquanto obras representantes do período modernista. A ideia era a observação de elementos literários e discursivos ditos novos, que fossem capazes de auxiliar na periodização literária.


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Carolina Maria de Jeus e capa da 1a edição de Quarto de Despejo

Esta proposta metodológica se funda nas discussões levantadas por Bakhtin (2000; 2002), nas quais são ressaltadas que cada comunidade ou cada esfera de comunicação humana (exemplo: trabalho, família, escola) possui seu próprio conjunto de gêneros de comunicação. Assim, por exemplo, sabemos que a esfera jurídica tem seus próprios gêneros (o auto, a petição, a sentença). Da mesma forma, a esfera escolar também tem os seus (a prova, a aula, a redação). Assim também é a esfera literária e seus gêneros. Na esteira disso, podemos dizer que uma modificação na esfera de comunicação poderá ser observada nos gêneros produzidos nesta mesma esfera. A recíproca também é verdadeira: abordar o gênero é entrever nele aspectos de mudanças ou permanências nas esferas de comunicação onde são produzidos. Uma de nossas hipóteses fortes: supomos que há uma nova esfera de comunicação literária nos anos pós-1964. Essa esfera, por sua vez, convenciona novas estruturas dentro dos gêneros literários que a análise acaba por entrever.

Diante dessa perspectiva, elegemos Quarto de Despejo: diário de uma favelada (QD), de Carolina Maria de Jesus, publicado em 1960, como um gênero exemplar da manifestação desta nova formação literária. Decorrente, em especial, pela forma como a linguagem do gênero diário rompe com seus pactos de composição, e insere aspectos romanescos, conforme tentaremos mostrar, com o apoio de alguns teóricos do romance, tais como: Marthe Robert, Lukács, Bakhtin, Auerbach, entre outros. A partir da defesa desta hipótese, acreditamos ser possível o estudo de mecanismos que articulam o desenvolvimento de uma nova concepção de literatura, proveniente das mudanças ideológicas presentes na sociedade e, por seguinte, refletidas no texto de Carolina Maria de Jesus. Sendo essa manifestação aqui defendida por nós como a crise da Tradição Republicana e o início de uma nova organização Literária, denominada Contemporânea, como dissemos.


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1. MUDANÇA NO DIAGRAMA DA COMUNICAÇÃO LITERÁRIA A construção da literatura contemporânea se firma em bases da crise da Tradição Republicana (TR). Tal crise significou, para a literatura, a ruptura com uma visão ideológica de inclusão dos marginalizados, via literatura, almejando uma posterior inclusão social. Os intelectuais (escritores e poetas) criavam personagens com ‘perfis’ semelhantes aos excluídos socialmente (mulheres, negros, migrantes) e tomavam para si a tarefa de “falarem” por eles, tendo como utopia a ideia de que isso era o suficiente para colaborar com uma futura inclusão desses em uma sociedade democrática. O ápice desse pensamento é a primeira metade do século XX, mas essa imagem de inclusão se ‘arrasta’ por uma longa tradição de autores que remonta a José de Alencar — com a preocupação de incluir o índio — à Euclides da Cunha e Graciliano — com a tentativa de incluir o sertanejo no discurso literário (PEREIRA, 2005). Tal utopia passa a ir de encontro com os pensamentos contemporâneos. Perdese, a partir de meados dos anos 1950, o sentido de se falar pelo excluído, com o intuito de incluí-lo na sociedade. A literatura havia tomado para si a alta tarefa de ser a porta de entrada para os marginalizados, que depois adentrariam a própria vida social de um país profundamente injusto, com direitos sociais e políticos. Ao lado disso, “estetizou-se” na Literatura Brasileira certo engajamento, certo “empenho”, em que era preciso falar do pobre e do miserável para se fazer Literatura Brasileira. Ao lado disso, as mas-

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sas não esperaram que os intelectuais e a elite abrissem as portas da vida social para promover sua inclusão. Porém, cada vez mais ao longo do século XX a utopia paternalista de inclusão dos miseráveis na literatura modernista veio sendo posta em questão. De fato, as próprias massas tomaram sua história na mão. Deixaram de lado os “pais” da elite que prometiam sua própria inclusão. Na esteira disso, explicita-se o paradoxo: em um país com tamanhas contradições sociais, com um fosso quase intransponível entre letrados e não letrados, pode a elite falar sem qualquer pudor ou desconforto pelos miseráveis? Vejamos, por exemplo, as obras Vidas Secas (VS) e Uma vida em Segredo (UVS), as quais são exemplos de obras que têm um narrador que fala por/sobre seus personagens sem apresentar menor desconforto, apesar das grandes diferenças entre narrador e personagem. Nelas encontramos duas personagens cuja relação respectiva com seus narradores é conflitante: sinha Vitória em VS e Biela em UVS. São exemplos de obras em que temos um narrador do sexo masculino, que fala por/sobre mulheres através do discurso indireto (DI) e indireto livre (DIL). Ao mesmo tempo, estamos diante de narradores cujo discurso os remete à elite econômica letrada, enquanto as personagens pertencem às camadas economicamente subalternas da sociedade — além de serem analfabetas. Construindo tal situação, chegamos ao ponto de quando colocadas para falar através do discurso direto, em raras passagens, essas personagens constroem apenas frases curtas e com a sintaxe simplificada.


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O sucesso de Carolina Maria de Jesus, com o lançamento de Quarto de Despejo, chamou a atenção de intelectuais como Clarice Lispector. Foto do acervo de Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector

A marginalização dessas personagens é percebida na medida em que nos deparemos com o seguinte diagrama da comunicação literária, no qual, temos um EU (narrador), falando para um TU (elite alfabetizada, que tem condição de comprar livros), sobre um ELE (migrante “pobre” e analfabeto). Sendo a construção deste ELE pelo narrador desenvolvida por métodos que poderíamos chamar, por assim dizer, de “adivinhação”. Apesar de verossímil é preciso reconhecer que o narrador tem pouca relação com as origens sociais daquelas personagens. Em outras palavras, a personagem ganha corpo através das construções préestabelecidas pelo narrador, por intermédio de seus preconceitos (PEREIRA, 2008), tomados do imaginário de uma elite burguesa brasileira de fins de século XIX e início do século XX. Vianna (2006) faz um recorte histórico e observa que junto com um processo de modernização econômica da sociedade brasileira, na passagem de uma sociedade tradicional para uma urbano-industri-

al, iniciada já na década de 1930, há um importante processo de democratização, no qual, vigora a abertura de espaço para novas oportunidades de vida. Esse processo de democratização ganhará bases sólidas a partir da conquista da democracia política, institucionalizada pela Carta de 1988. Diz o autor: (...) o processo societal de democratização deixou de obedecer ao padrão “administrativo”, tal como imposto pela revolução burguesa pelo “alto”, à brasileira. Desde então, passa a consistir num movimento de baixo para cima em que milhões de indivíduos vêm se descobrindo na situação de portadores de interesses próprios, os quais, por meio da prática da vida associativa, têm se tornado conversíveis em direitos, com a generalização, para eles, da perspectiva do exercício da cidadania na esfera pública (VIANNA, 2006, p. 15).

Em outras palavras: os grupos sociais


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tomam para si a tarefa de se incluir na vida social e política brasileira — atividade antes realizada pela elite paternalista brasileira, incluindo aí parte da elite literária. A esses podemos chamar de intelectuais modernistas. Os reflexos deste processo de democratização já se fazem visíveis também na literatura. Podemos perceber isso nas obras A Hora da Estrela (1978), de Clarice Lispector, e Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus. Clarice faz duas críticas fundamentais: a primeira se refere aos questionamentos do narrador Rodrigo S.M. sobre sua capacidade de narrar, de poder falar pelo outro. Quem conhece o romance sabe das enormes dúvidas que assaltam o narrador logo nas primeiras páginas; o que leva o romance a uma enorme indecisão. A segunda crítica diz respeito ao final. Aquilo que deveria ser um conto de fadas ingênuo (a feia e pobre Macabéa que encontra uma fada e seu príncipe) é radicalmente subvertido no momento em que a personagem Macabéa é atropelada — e isso sem que o narrador tenha qualquer controle sobre o que narra. A autora então expõe o narrador ao ridículo. Seu objetivo parece ser o de dizer que não é mais possível falar pelo outro, sem ter que enfrentar as desconfianças do leitor sobre a possibilidade do narrador estar falando de um assunto que não domina (Adorno, 2003). Em AHE o que temos é um narrador que desconhece seu assunto, é um homem de elite que não sabe o que é a miséria de Macabéa, mas insiste em imaginá-la e narrá-la. Pondo-nos a refletir com Hayden White (1995), podemos entrever Macabéa como uma

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espécie de Cinderela de um enredo de conto de fada, cujo final deveria ser feliz, mas que acaba sendo deliberadamente frustrado pelo autor — e à revelia do narrador (PEREIRA, 2008). Falar sobre assuntos que são desconhecidos. Ser um homem de elite e falar por uma miserável: isso só pode gerar constrangimento. Isso é reflexo de um novo regime de verdade. A partir de então, essas classes “representadas” tendem a ganhar voz e falar por si mesmas, através de um movimento sócio-político-econômico. É nesse contexto que se insere a obra de Carolina Maria de Jesus. Estamos falando de uma autora do sexo feminino, negra, solteira, com três crianças para sustentar, favelada, que foi catadora de papel na cidade de São Paulo e que fazia das folhas velhas de cadernos recolhidas do lixo seu diário. Uma mulher escritora, a qual, de certa forma, dispensa os serviços da elite que, talvez, viesse tentar falar por ela e passa a falar por si mesma — com a linguagem de que dispõe, driblando aquela literatura do passado que se arrogava falar sobre os marginais, sem, no entanto, conhecê-los. O diário escrito por Carolina ganha grande importância nesse contexto, uma vez que vem romper com a ideologia de inclusão via literária mediada pelo outroelite, ao passar a falar por si mesma, tornando-se o EU e o ELE do discurso — isto é, narradora,autora e personagem. 2. REALIDADE FRAGMENTÁRIA George Lukács (1885-1971) — filósofo húngaro — ao refletir sobre as funções e


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características do romance, no livro A teoria do romance (1914), propõe a seguinte comparação: “O romance é a forma da virilidade madura, em contraposição à puerilidade normativa da epopéia” (p. 71). Diante desta afirmação é possível inferir duas questões. A primeira é que o romance é delineado como a necessidade de agir (“virilidade”), o qual é comparado ao mundo maduro, em contraposição a epopéia que é considerada um mundo infantil, tutelado pelos deuses. O romance assume a função de transformar a realidade que é percebida como caótica pelo romancista — na distância entre a definição do mundo e do EU — em uma realidade objetiva. Sendo assim, o romance tem por função a necessidade de impregnar a realidade de modo estético para explicitar essa distância. A segunda afirmação é um complemento da primeira. O romancista se impõe o dever de articular fragmentos retirados da vida, dando-lhes forma coesa, dando a estes uma configuração minimamente comunicável ao seu leitor. Como texto, o gênero diário se apresenta como um exemplo da necessidade que o homem tem de ligar fragmentos da realidade. Assim também é o romance. A diferença básica é que enquanto o escritor de diário ordena os fatos para si mesmo, o romancista ordena esses fatos visando outrem. Em alusões à dissertação de Andrade (2008), é possível observar uma série de elementos que mostram o processo de fragmentação na obra caroliniana. A autora tenta unir fatos isolados tomados ao seu cotidiano, em uma tessitura coesa, isto é, a autora sente a necessidade de apre-

sentar ao outro, seu interlocutor, o que é a favela, por intermédio de suas experiências cotidianas. Percebe-se, neste sentido, que, assim como o indivíduo, sente dificuldades de apreender a realidade como um todo, o diário também se desenha com esta dificuldade de totalização, dependendo de fatos isolados, para tentar se consolidar como um todo coerente, à semelhança de uma colcha de retalhos. Outra forma de se observar a semelhança do gênero com os conflitos percebidos pela fragmentação da realidade é a impossibilidade de um fecho conclusivo na obra. É possível observar esse processo de fragmentação na própria construção do EU na narrativa caroliniana, a qual é dividida em três categorias: escritora, narradora e personagem principal, todas chamadas Carolina Maria de Jesus. Isto é, Carolina escritora é uma pessoa real, que viveu na favela de Canindé, cidade de São Paulo. Sendo base para a credibilidade da narradora e personagem. No entanto, deve-se levar em conta que um EU construído por intermédio da palavra é atravessado por discursos pré-estabelecidos, os quais são responsáveis por uma representação mais ou menos fiel da realidade, sendo esta construída por intermédio do diálogo entre memória e imaginação. Formando um todo responsável por relativizar os limites entre passado e presente, realidade e ficção. Neste meio, Carolina narradora tenta passar uma imagem de credibilidade e seriedade para a personagem Carolina. No entanto, ao longo da narrativa esta se trai, e constrói em diversos momentos situações que tornam o caráter da perso-


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nagem ambíguo, sendo este um resultado da fragmentação do mundo, em diversos domínios, e do individualismo presentes na contemporaneidade. Um ponto que denota ambiguidade é a contradição que se instala no discurso caroliniano, em virtude da presença de uma consciência social e, ao mesmo tempo, a expressão de um sentimento de superioridade em relação aos demais moradores da favela, por se considerar uma cidadã e uma intelectual, como ela mesma sugere: “... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido” (p. 35) [sic] (grifo nosso). Aqui, Carolina toma a palavra. Ela quer ser a representante do “seu povo oprimido” para defendê-lo. A autora se coloca na condição de intelectual. Exatamente aquele intelectual que no período do modernismo queria ser o representante do povo. A diferença é que Carolina ocupa o mesmo lugar social que esse povo; ao contrário dos intelectuais do Modernismo que eram da elite letrada — intelectuais tão claramente configurados no texto de A Hora da Estrela. A forma como Carolina defenderia seu povo seria pela escrita. Ela recolhe papéis nos lixos da cidade de São Paulo, os quais, ironicamente, são utilizados pela autora para escrever seu diário. Outro ponto importante. A cor negra, também exaltada por ela, em defesa da cor da sua pele, é a mesma aludida para designar as mazelas da vida social: “Quando puis [sic] a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia” (p. 39) [sic]. Carolina passa grande parte da narrativa

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mostrando cenas de violência e as condenando, no entanto, é possível encontrar trechos em que a mesma se envolve em brigas e se comporta de modo violento e profere ameaças: “Eu chinguei [sic] o Chico de ordinário, cachorro, eu queria ser um raio para cortar-lhe em mil pedaços” (p. 44) [sic]. 2.1. Carolina “arrivista”? O arrivista é aquele que usa de vários expedientes para subir na vida. Conforme o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, versão 2001, o arrivista é aquele que “[...] se determinou a triunfar a qualquer preço, mesmo em prejuízo de outrem”. Não é o caso pleno de Carolina. Em seu texto a autora dá mostras de ser ética, à medida que tenta “se construir” como uma personagem que não quer saber dos assuntos alheios “(...) Tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo quer saber! A língua dela é como os pés de galinha. Tudo espalha” (JESUS, 2004, p. 12) (sic); não gosta de discussões com as mulheres da favela: “(...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo” (idem, p. 19) (sic); não bebe bebida alcoólica para preservar seus filhos “Se eu viciar no alcool os meus filhos não irá respeitar-me. (...) Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no alcool” (idem, p. 65) (sic). Apesar desta configuração da Carolina personagem, julgamos importante sublinhar o quanto a autora tem a ambição do arrivista, quando a questão é sair da favela. Sua “vítima” principal é o gênero diário, o qual chega a se aproximar do


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gênero romance. Nessa linha, decidimos pensar o diário de Carolina como um texto que traz em si aspectos do gênero romanesco. Seu diário se parece com o gênero romanesco proposto por Marthe Robert. De fato, o termo “arrivista” é empregado por Robert (2007), na tentativa de definir o que é o gênero romance. Ao retomar a história deste gênero, a autora constatou que o romance é relativamente novo, e que não matem uma ligação próxima com a tradição de origem. O adjetivo empregado — arrivista — surge da forma espantosa com que em um curto espaço de tempo, na passagem do século XVIII para o XIX, o romance deixou de ser encarado como “publicamente indigno [aos] leitores” (p. 12) e se tornou aceito por esses. Além de conseguir encontrar um espaço na sociedade, de modo relativamente rápido, outro ponto que chama atenção é a forma como o romance ganha esse espaço. Ele conquista o espaço dos demais gêneros, absorve as características desses e os tornam dependentes. Este movimento de conquista de espaço foi importante para que o romance deixasse de ser considerado um “gênero menor” e passasse a ser uma potência, ao ponto de ser capaz de interferir na vida literária, e fazer com que esta se tornasse economicamente dependente de seu sucesso. Em processo de expansão, o romance consegue se apropriar de todas as formas de expressão e de setores cada vez mais vastos da experiência humana. A forma como o romance usa para se desenvolver na sociedade é comparada por Robert (2007) ao parasitismo, uma vez que o romance depende da forma escrita

e das coisas reais — cuja verdade pretende “enunciar” (p. 13) — para sobreviver, proporcionando uma situação, ao contrário do que se pode imaginar, favorável ao aumento de suas forças e à ampliação de seus limites. Cabe ressaltar que o romance não consegue acessar a realidade, no entanto, “ele a toca sempre num ponto decisivo, figurando o desejo real de mudá-la” (p. 28). Isso quer dizer que o romance transforma a realidade empírica, conforme seus desejos pessoais, acreditando ser possível realizá-lo por intermédio da mentira e da sedução. A subversão da realidade, para a concretização de sonhos é um tema presente na obra de Carolina. Toda forma de concretizar a realidade é uma construção limitada, a qual é configurada segundo os códigos pré-definidos pelo enunciador. Carolina descreve a realidade da favela, inclusive a si mesma, segundo seus (pre)conceitos. Um exemplo do que se fala é quando a autora parece eliminar as distâncias espaciais entre favela e cidade, proporcionando um diálogo entre as partes, no qual é possível entrever que a favela está em função da cidade, como uma espécie de metáfora de organização da sociedade. A favela descrita por Carolina só se define a partir de sua ligação com a cidade. “Dei banho nas crianças e preparei [sic] para sair. Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais” (p. 22); “Saí e fui catar papel. Não conversei com ninguem [sic]. [...] Penetrou um espinho no meu pé e eu parei para retirálo. Depois amarrei um pano no pé. Catei uns tomates e vim para casa” (p. 102); “Eu saí. Levei a Vera. Catei papeis, achei um


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par de sapatos no lixo. Vendi por 20 cruzeiros. Voltei para a favela” (p. 164). Carolina em todos os trechos quando sai, sai da favela em direção à cidade. Quando volta, volta da cidade para a favela. Outra forma de subversão encontrada na narrativa é quando Carolina se afasta da realidade com seus jogos poéticos e, em seguida, oferece-nos um “choque térmico” ao nos trazer de volta à realidade, com as mazelas da favela e da fome: ... O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se [sic]. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há varias coisas belas no mundo que não é possivel descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe [sic] (p. 39, grifo nosso).

O trecho acima marca bem o lado poético de Carolina, a qual se aliena, por alguns instantes, do relato de uma vida sofrida em nome de uma sensibilidade demonstrada pela capacidade de apreciar a natureza e os fenômenos naturais, passados despercebidos pela maioria das pessoas no cotidiano. Em resumo, podemos dizer que Carolina usa seu diário como forma de “sair” da favela. Seu diário é o diário de “uma arrivista” que de diversos modos — com a intenção de vender livros; com a inten-

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ção de fugir imaginariamente, entre outros, — quer ir para a cidade; quer melhorar de vida. Mais importante que isso, mas nessa linha, Carolina se vale de seu diário para tentar fazer isso. O diário como gênero é ampliado em seus fundamentos tradicionais que era para ser um gênero da intimidade, tornando-se um gênero público, tal qual o romance. Uma importante característica de subversão, desse uso arrivista do gênero diário implica na disposição da autora de usar seu diário, que deveria ser um texto da intimidade, para denunciar a condições de vida do povo da favela — e a sua própria. 2.2. A função da denúncia em Quarto de Despejo Para fazer uma discussão sobre a linguagem de denúncia presente em QD, utilizaremos algumas considerações feitas por Bakhtin, no capítulo Funções do trapaceiro, do bufão e do bobo no romance, do livro Questões de Literatura e Estética: A teoria do romance (2000). Neste capítulo, Bakhtin traça algumas características de três figuras literárias (o trapaceiro, o bufão e o bobo) que influenciaram o desenvolvimento do romance europeu. Essas figuras não possuem datas específicas de surgimento. Tudo o que fazem ou dizem está no sentido figurado, ou até mesmo no sentido inverso. Sua função é criar um modo singular para mostrar o homem em seu interior por meio do riso paródico. O Trapaceiro, Bufão e o Bobo vestiam máscaras, que lhes conferiam o privilégio consagrado de não participação na vida e da inteligibilidade de seu discurso


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(BAKHTIN, 2000, p. 277), para fazer críticas às convenções institucionalizadas pela sociedade feudal, por intermédio de figuras pitorescas. No romance também é possível encontrar a necessidade que o autor tem de se posicionar diante de uma ação narrada, o romancista precisa de alguma espécie de máscara consistente na forma e no gênero que determine tanto a sua posição para ver a vida, como também a posição para tornar pública essa vida (p. 277). Assim como esses personagens, Carolina recria seu mundo como forma de denúncia contra espécies de convenções falsas das relações humanas. O romance toma para si esta autoridade e passa a ter o direito de tornar público a vida privada, com todos os seus segredos mais íntimos. Carolina faz isso com seu diário. O mesmo “direito” é utilizado com frequência na obra caroliniana, como é o caso de quando resolve relatar o que aconteceu com “Ela” ... Eu estava escrevendo. Ela perguntou-me: — Dona Carolina, eu estou neste livro? Deixa eu ver! — Não. Quem vai ler isto é o senhor Audálio Dantas, que vai publicá-lo. — E porque é que eu estou nisto? — Você está aqui por que naquele dia que o Armim brigou com você e começou a bater-te, você saiu correndo nua para a rua. Ela não gostou e disse-me: — O que é que a senhora ganha com isto? ... Resolvi entrar para dentro de casa. Olhei o céu com suas nuvens negras

que estavam prestes a transformar-se em chuva (p. 126) [sic]

E é esta a autoridade que Carolina toma para si, ao relatar as mazelas da favela, com outras personagens, ao mesmo tempo em que oferece o seu julgamento sobre as coisas que aprova ou reprova na favela: “Tenho pavor destas mulheres da favela” (p. 12). Aos moldes do gênero romance, Carolina parece voltar ao tempo feudal, período em que as figuras pitorescas tinham permissão para vestir máscaras, a fim de oferecer a si mesma o direito de poder falar pelo outro, mais especificamente, de falar sobre o modo de vida dos moradores da favela de Canindé. CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos constatar que a obra caroliniana apresenta aspectos instigantes em virtude da presença da forma romanesca articulada na tessitura desse diário, resultado da soma de diversos fatores que surgem do embate entre as características presentes no gênero diário e, por sua vez, características que extrapolam esses limites e se inserem no campo do gênero romanesco. Tais exemplos são retratados na tensão presente na escrita do gênero diário, com interesses que primam pela sua publicação; a fragmentação exposta na ambiguidade ao tentar construir a imagem do “EU” Carolina personagem; a subversão da realidade para a construção do livro; e até mesmo a linguagem de denúncia presente no texto. E são os mesmos exemplos que nos fazem ver nuances de mudanças no quadro literário. Mudan-


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ças, que por sinal, são consideradas relevantes para pensarmos a presença de uma nova formação literária, a Literatura Brasileira Contemporânea. Sendo estas de suma importância para comprovarmos a necessidade de uma fronteira calcada em princípios próprios. Vimos que nosso trabalho tenta contribuir para a delimitação de certa fronteira da literatura contemporânea. Sabemos de antemão que essas fronteiras não são rígidas. Nesses termos, não podemos falar em limites fixos, isto é, em determinado ano se pensa de uma forma e, em outro, definitivamente, não se pode mais. Isso é exigir muito de uma realidade histórica que é sempre dinâmica. Refletindo sobre isso, nos últimos dois anos, chegamos a um quase paradoxo se formos comparar Quarto de Despejo com Uma vida em segredo, de Autran Dourado, que estudamos no período do PIBIC 2007-2008. Neste último, temos um autor que fala por/sobre sua personagem, sem apresentar menor desconforto, como vimos. Quatro anos antes, temos Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, cuja obra tem autora, narradora e personagem como sendo a mesma pessoa — Carolina Maria de Jesus. Nesse quadro, Carolina, uma negra favelada, não possui ninguém que fale por ela, seu texto

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amplia a noção de gêneros e a linguagem dita culta no desejo de falar por si mesma. Pensando com Luiz Werneck Vianna (2006), o que temos é que o texto de Carolina põe em prática o que já acontecia na sociedade brasileira de então (no conturbado início dos anos 1960), isto é: os homens e mulheres comuns já tomavam para si o direito de falarem por si mesmos. Na outra ponta, quatro anos depois, o autor mineiro Autran Dourado insiste em dar voz, em se permitir, sem constrangimento, falar pelo não-letrado, falar pelo homem de classe inferior. Faz isso aos moldes dos modernistas, como Graciliano Ramos, dentre outros. Constatar que Autran continue insistindo nisso, é reconhecer que nesse período estava acontecendo intensa negociação no contexto das representações literárias. Negociação da qual a própria Clarice Lispector faz parte com seu A Hora da Estrela, no qual, como vimos, ela também coloca um narrador de classe alta, muito constrangido, para falar pelo outro de classe baixa (Cf. PEREIRA, 2008). Os três livros acima mencionados marcam importante inflexão na forma de representação literária. O exame das mesmas se mostrou muito importante para a contribuição de fronteiras para a Literatura Brasileira Contemporânea.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T.W. Posição do narrador no romance contemporâneo. Notas de Leitura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003. ANDRADE, Letícia Pereira de. O diário como utopia: Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Dissertação de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, Três Lagoas, 2008.


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A METALINGUAGEM NO LIVRO GRAMÁTICA EXPOSITIVA DO CHÃO, DE MANOEL DE BARROS Damaris Pereira Ribeiro dos SANTOS1

RESUMO O objetivo deste artigo é sintetizar um estudo da metalinguagem no livro Gramática Expositiva do Chão, de Manoel de Barros buscando compreender as palavras usadas por ele em seus textos que é sem dúvida nas palavras, que o poeta transmite o seu fazer poético, no momento em que a mesma sofre uma desconstrução lingüística na busca de sua própria origem permitindo-nos uma livre interpretação, ou seja, permite-nos entendermos a sua mensagem. Sabe-se que o sentido metalingüístico é uma realidade histórica e cultural, porque quando a linguagem volta-se para si mesma, há uma inserção dentro da cultura e da própria história. Palavras-chave: Manoel de Barros; Linguagem; Metalinguagem ABSTRACT It is understood that the metalinguistic meaning of words has a cultural and historical significance. Indeed, when the word turns to itself, it also turns itself into culture and history. The purpose of the present paper is to summarize a study of the metalinguistic aspects presented on de book Gramática Expositiva do Chao, written by Manoel de Barros. The study aimed at analyzing the words user in his texts, and thus prepares readers to understand how poet Manoel de Barros attempts to convey his messages. Keywords: Manoel de Barros; Language; metalanguage

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principal objetivo desse artigo é refletir sobre a metalinguagem, porque entende-se que, somente através desse conhecimento, torna-se possível o entendimento dos textos do poeta Manoel

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de Barros. A poesia, sabemos, é uma realidade que encontra-se dentro da história e, dessa forma, sofre mudanças, cabendo a nós, leitores, nos situarmos dentro dessa realidade e encontrarmos meios para

Graduada em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa pela UNIGRAN. Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional (UNIGRAN). Professora da rede municipal de ensino de Dourados.


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entendê-la. Gramática Expositiva do Chão possui em seu conteúdo, poemas que nos permitem ver a realidade que nos cerca por meio da natureza como também os valores presentes na sociedade de consumo, que nesse aspecto gera o caos, e o poeta incorpora essa realidade dentro dos seus poemas. Manoel de Barros constrói seus poemas, fazendo uma relação entre imagens e texto, através de uma linguagem visual marcada por objetos presentes no mundo da natureza como: chão, árvores, plantas e o próprio homem que fazem o seu fazer poético ser real. Daí dizer-se que o poeta cria e recria no momento em que as coisas tornam-se para ele matéria de poesia. Nesse jogo com as palavras, o poeta tenta reconstruí-la voltando-se para o mundo infantil na busca de um entendimento, porque entende que o nascimento da mesma se faz através da criança. Observa-se que o uso da metalinguagem se faz presente em seus textos no momento em que a mesma volta-se para si mesma, ou seja, ela retoma a sua origem como na fala infantil, enfim, o poeta tenta reconstruí-la discutindo seu fazer poético envolvendo-se por sentimentos em que a vida e a morte se confundem. Como resultado tem uma nova visão de linguagem, em que o poeta penetra nas entranhas das palavras transportando inteiramente para o seu fazer poético um novo nascimento. O conhecimento de metalinguagem para o entendimento dos poemas de Manoel de Barros torna-se obrigatório, e faz parte do perfil histórico da literatura onde não existe um critério único de interpretação, mas na aceitação da mesma,

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ou seja, no enfoque que ela transmite. Desse modo, a poesia torna-se um mistério, e introduzir-se no seu mundo, é, conhecer um mundo fantástico, pois a mesma pode também ser usada como instrumento para transformar o significado de muitas coisas numa relação pragmática. O mundo contemporâneo tem uma nova concepção de poesia, conseqüentemente o poeta passa a ser produtor de uma nova maneira de fazê-la, isto é, a palavra torna-se para ele elemento primordial no seu sentido metalingüístico, porque sabemos, as sociedades se transformam e dentro dessa complexidade de transformação, o poeta não se distancia do homem e do objeto que a compõem, mas os integram no seu fazer poético, e para que isso ocorra, ele os reverencia num jogo semântico e pragmático. Evanildo Bechara fala a respeito de semântica: “Semântica é o estudo da significação dos vocábulos e das transformações de sentido porque esses mesmos vocábulos passam. No decorrer de sua história nem sempre o vocábulo guarda seu sentido etmológico, isto é, originário. Por motivos variadíssimos o sentido ultrapassa os limites de sua primitiva “esfera semântica” e assume valores novos. (BECHARA, 1979, p. 34).

Dentre as temáticas utilizadas por Manoel de Barros, predomina o viver telúrico, ou seja, o contato com a natureza, onde o chão é o lugar das coisas ínfimas que ele valoriza e incorpora aos escombros da civilização moderna ociden-


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tal. Há também a predominância da presença do pantanal, no entanto, o poeta segue também o percurso das águas e utiliza-se do mar como matéria de poesia como pode ser visto em Gramática Expositiva do Chão. O uso das sobras da civilização ocupa papel de destaque em seus poemas, criando um contraste ao associá-las à natureza pantaneira. Sua poética é voltada para a concretização da realidade fragmentada, que a partir dos movimentos da Arte Moderna e de Vanguarda, vêm buscando se utilizar do processo imagético, metafórico e metonímico para se construir o discurso, propiciando a renovação do universo, favorecendo ao homem uma definição de seu caos existencial. Sobre esse aspecto aborda José Fernandes “É nesse sentido que a linguagem manifesta o ser, porque expressão genuína da cosmovião e da experiência de mundo do poeta. A linguagem é a verdade do homem, revelada em toda a sua crueldade e em sua concretude” (1987p. 60). Dessa maneira o homem busca a sua reconstrução, em que a poesia ganha uma nova dimensão. Manoel de Barros é possuidor de uma estilística e uma linguagem inovadora que lhe permite criar uma nova temática, com uma lingüística inusitada perpassando os padrões comuns cercadas de neologismos com os quais o leitor não está acostumado, tomando como tema tudo que nos parece inútil, as coisas miúdas, os trastes e até mesmo o homem fragmentado, mas para o poeta tudo se torna matéria para a sua poesia. Manoel de Barros, incorpora em seus poemas a singeleza de elementos aliados à pobreza

e mostra a realidade do cotidiano e da miséria identificando o homem e o chão e de como ambos se decompõem. O poeta ressalta através do florescimento de uma árvore, seu aspecto vital, tudo isso reforçado na visão de fertilização, no que se refere à pedra, o artista entende que se trata da medição entre o vegetal e a terra, em meio a aves, o poeta diz ser a medição entre a terra e o céu, e que elas estão ligadas aos astros e regulam o comportamento, tudo isso resulta numa imagem paradisíaca do próprio sentimento que por meio do seu viver telúrico lhe é permitido não obedecendo nenhuma norma, apenas as palavras ganham novos valores observados pelo uso constante de sinestesia e ilogismo como mostra esse poema de Manoel de Barros do livro Gramática Expositiva do Chão: “Na fazenda barulhinho vermelho de cajus E o riacho passando Nos fundos do quintal... Dali Se escutavam os ventos com a boca Como um dia de árvore”... (BARROS, 1999,p. 147 ).

Manoel de Barros se supera em cada obra e nos apresenta uma visão fragmentada do ser, revelada pelo caos da sua existência nesse mundo que somente através da fantasia e da imaginação do poeta torna-se possível a sua reconstrução porque só elas podem ultrapassar a realidade, e possibilitar o surgimento de uma natureza refeita, sem limites entre o cronológico


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e o geográfico, que por sí só, são distantes. Essa busca incessante está pautada na compreensão que o homem moderno busca, procurando uma maneira de sentir-se seguro nas suas relações para minimizar as tensões da própria realidade vivida. Assim sendo, Maria Adélia Menegazzo, em consonância com esse aspecto poético observa: “Tendo a poesia como a loucura da palavra, Manoel de Barros permite que ela se liberte do mundo objetivo e se anime nas necessidades do imaginário: Descreve então personagens pela loucura das imagens como “O Palhaço”: Gostava só de lixeiros criança e árvores Arrastava na rua por uma corda uma estrela Suja Todo estragado de azul (MENEGAZZO, 1991,p. 184 ).

Podemos observar no poema a seguir, um discurso auto-reflexivo fragmentando elementos da natureza, rompendo com a palavra habitual como a que está indicada no trecho “ele está contaminado de pássaros, de árvores, de rãs, cujo sentido nos remete a várias interpretações. Dessa maneira o verso sugere uma reflexão a própria linguagem que tem como objeto a palavra voltada para si mesma. Nesse sentido, a palavra emerge do ato poético num processo metalingüístico, nos direcionando à fragmentação no verso voltado para o próprio poeta”.A máquina de chilrear está enferrujada e o limo apodreceu a voz do poeta”.

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O POETA (se usando de farrapos) -Meu corpo não serve mais nem para o amor nem para o canto O CARAMUJO ( olhos embaraçados de noite) - E a máquina de chilrear, Poeta? A ÁRVORE (desinfluída de cantos) -É possessão de ouriços A RÃ ( de dentro de sua pedra) -Sua voz parece vir de um poço escuro O PÁSSARO ( cheiroso som de asas no ar) -ela está enferrujada A ÁRVORE (apoderada de estrelas) -Até o chão se enraíza de seu corpo)! O CÓRREGO ( no alto de seus passarinhos) -Ervas e grilos crescem-lhe por cima O PÁSSARO (submetido de árvores) - A Máquina de Chilrear está enferrujada e o limo apodreceu de vez a voz do poeta CHICO MIRANDA ( na rua do ouvidor) - O poeta é promíscuo dos bichos, dos vegetais, das pedras. Sua gramática se apóia em contaminações sintáticas. Ele está contaminado de pássaros de árvores de rãs (BARROS, 1998, p.171).

Manoel de Barros diz pertencer à geração de 45 somente cronologicamente porque há uma reconstrução poética, uma visão de reconstrução do homem e do mundo atual numa linguagem renovada própria do Modernismo evidenciada nos seus textos, que ele amplia no discurso poético, percebe-se nesse aspecto dois pontos relevantes: a consciência histórica


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e a metalinguagem, esta por sua vez aumenta as suas possibilidades de criação literária, ou seja, sua interação com as palavras do cotidiano incorporadas no universo do “chão” que compõem as coisas que para muitos não tem sentido o poeta tira delas a sua essência para compor seus poemas tornado-as matéria de poesia. Manoel de Barros viveu sua infância, pés descalço em meio às terras na simplicidade que lhe é peculiar, e isso também ele incorpora em seus poemas trazendo à tona a sua origem, o pantanal, sua imagem maior que volta-se para a menor, ou seja, animais, aves e insetos que ele acrescenta em sua poesia de uma forma despretensiosa mas com muita sensibilidade, nesse sentido ele acrescenta novos vocábulos numa desconstrução metalingüística que ele retoma depois reconstruindo-a através do absurdo e do nada. A poética manoelina assemelha-se a de Rimbaud no sentido de desconstrução das palavras, há um desregramento em que os objetos ganham novos significados no sentido de construção de imagens, formando novos termos, valendo-se da variedade da língua. Por tudo isso, a metáfora presente no mundo poético rompe os limites, voltase para a infância, numa visão de inocência que só a criança tem. Nesse sentido, em cada palavra inventada, aparece uma nova realidade, onde o mundo e os objetos ganham novos olhares caracterizados pela transformação do que é real, mesmo as coisas pequenas, sem importância como: pedras caracóis e conchas transformam-se em poesia. Nesse sentido Manoel de Barros e

Rimbaud usam a poética desregrada extrapolando os limites da linguagem usando a fantasia, reconstruindo os seres fragmentados, possibilitando uma nova visão do homem e das coisas numa amplitude maior no que diz respeito aos seus sentimentos. Para exemplificar como esse processo da livre fantasia rimbaudiana aparece nos poemas de Manoel de Barros, tomaremos como exemplo o poema XIII da parte inicial denominada “Uma didátca da invensão” do livro das Ignorancas: As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul que nem criança que você olha de ave. (BARROS, 2000, p.21). Nesse trecho entende-se que para podermos ver além das coisas, a razão deve ficar em segundo plano, ou seja, tem que ser olhada de maneira diferente, como o olhar de uma criança, nesse sentido, perde-se a lógica comum presentes nas suas construções poéticas. Desse modo entende-se que o mundo da criança é o que possui maior liberdade, podendo ser observado da maneira que quisermos ou entendermos, pois não existe um critério de interpretação, o que deve ser analisado são os elementos contidos dentro do texto. Ainda sobre o fenômeno da imaginação destacaremos “O guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro, e o “Guardador de águas” de Manoel de Barros. Caeiro é heterônimo de Fernando Pessoa, nascido em Lisboa dia 16 de abril de 1889 e falecido em 1915 na mesma cidade em que nasceu. Tanto Caeiro como Manoel de Barros, possuem uma poética nascida do Epícuro, ou seja, as coisas simples ou as mais glamorosas proporcionam o mes-


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mo prazer. Epícuro de Samos foi um filósofo grego do período helenístico que defendia a idéia de que para atingir a certeza é necessário confiar no que foi recebido passivamente na pura sensação, para ter a liberdade e a tranqüilidade necessárias ao espírito. Os dois poemas acima citados possuem uma linguagem simples, com as mesmas características, ou seja, a natureza com a sua simplicidade, e essa é a característica dos dois poetas, em que os mesmos invocam a natureza e tudo quanto ela tem para oferecer, porque é nela que reside toda a obra divinal presente no equilíbrio natural onde acontece o ciclo da vida, e dessa maneira os dois apresentam o mundo, através de suas obras literárias. O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. O rio da minha aldeia não faz pensar em nada./ quem está só ao pé dele (CAEIRO, 1993, p.215-6). Em Manoel de Barros, O guardador de águas, no poema II, o poeta fala de Bernardo, trata-se de um sujeito pré-histórico que permanece nas fronteiras entre o animal e o vegetal, estabelecendo-se dessa maneira a grande imagem da união que enfrenta a morte, graças aos dons que possui ao lidar com as coisas do cotidiano. Bernardo é a imagem poética de uma árvore, estendendo-se pela praia suas raízes e sua copa, exemplo vivo da convivência dos elementos da natureza, tudo isso, comparado ao homem que poderia viver como uma árvore, crescer como ela, com toda retidão e verdade, vivendo entre o céu e a terra, para Manoel de Barros

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Bernardo é uma das muitas árvores existentes, mas o objeto é o mesmo, porém modificado, nos levando a várias percepções. Bernardo é nos apresentado de uma maneira que lhe garante um lugar privilegiado junto ao leitor. Esse é Bernardo da mata. Apresento./ Ele faz encurtamento de águas./ Apanha um pouco de rio com as mãos e espreme nos vidros/ Até que as águas se ajoelhem./ Do tamanho de uma lagarta nos vidros./ No falar cós as águas rãs o exercitam (BARROS, 1998, p. 10). Quando o poeta diz do encurtamento da águas, percebe-se o manuseio da inconstância desse elemento, a o mesmo tempo que promove a união que vem da terra dispostos nas barrancas do rio, intercalados daquilo que vem de dentro do próprio homem, intrometendo-se num movimento circular de elementos com nova vida, numa constante transmutação nos sugerindo uma aprendizagem do dialeto aplicado em seus poemas como larval e pedral dentre outros. Nesse sentido, o poeta argumenta: “Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a língua.” (BARROS, 1998 p.64). A presença do ilogismo demonstra que a lógica não está em primeiro lugar, mas está ligada a ação e torna-se dedutiva. Manoel de Barros tenta passar a idéia do absurdo para que nós retornemos à nossas origens, integrando uma linguagem ilógica a uma visão de mundo reconectada à ancestralidade. Dessa maneira, a arte poética vai se compondo de imagens, metáforas com vocábulos que ele mesmo cria, tornando esse livro exuberante caracterizado pela junção de coisas desprezadas pela sociedade, e pela beleza que o panta-


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nal mato-grossense exerce, onde a natureza reinventa a si mesma. Percebe-se que a poética manoelina caminha no sentido da busca de recursos advindos da pintura de vanguarda e a estética surrealista de composição de imagens na fusão com a realidade. Desse modo, a estética surrealista usada por Manoel de Barros em seus poemas é voltada para o ilogismo, mas as imagens tentam explicar os traços reais. Pode-se observar isso nesse poema, “Poeminhas pescados numa fala de João”: Você viu um passarinho abrido naquela casa Que ele não veio comer na minha mão? Minha boca estava seca Igual do que de uma pedra em cima do rio (BARROS, 1999, p.129).

A estética cubista na poesia de Manoel de Barros revela-se através do recurso de collage, ou montagem, podendo ser observada na “Descrição da tela pelo Dr. Francisco R. de Miranda, amigo do preso”, de Gramática Expositiva do Chão: O artista recolhe neste quadro seus companheiros Pobres do chão: a lata, a corda, a borra Vestígios de árvores Realiza uma colagem de estopa, arame Tampinhas de cerveja Pedaços de jornal pedras e acrescenta inscrições

Produzidas em muros – números trucados Careta pênis coxas (2) e 1 aranha febril Tudo muito manchado de pobreza e miséria Que se não engana é da cor encardida entre amarelo e gosma. (BARROS, 1999, p. 155).

Esse poema mostra a realidade da miséria e da pobreza. No tocante a livre fantasia, é através dela que se dá a construção de imagens e fragmentos incorporados em seu universo poético. Nesse sentido, Paul Klee e Manoel de Barros se identificam, de um lado P.K. dá forma ao informe, do outro, o poeta nomeia o inominado, exemplo disso é o poema “ A Máquina de Chilrear em seu uso doméstico de Manoel de Barros e a Máquina de Chilrear de Paul Klee, somente o ponto de partida de ambos se coincidem. Não se trata de um poema sobre o quadro, nesse caso, o artista cria a máquina, enquanto o poeta a usa em seu espaço próprio, com sua livre fantasia. A “máquina” nesse caso, é simplesmente o elemento que se apresenta na fantasia do poeta, ambos possuem a tendência de conciliar o impossível, que é a característica dos dois, pois os mesmos se superam a cada obra. Revelam uma visão do mundo em que o ser fragmentado pelo caos existencial só encontra possibilidades de se reconstruir pela fantasia e pela imaginação. Nesse sentido observa José Fernandes: A importância da imagem, nesse caso, reside no desafio à própria realidade, ferindo os princípios da contradição, ao unir elementos distantes e, por vezes, até an-


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tagônicos. (FERNANDES, 1987, p. 55). O poeta moderno busca através de seus poema mostrar as verdades, tornandoas autênticas, nos permitindo uma interação com a realidade. Essa característica é observada nos poemas de Manoel de Barros, pois seus poemas nos envolvem numa realidade, que temos a impressão de poder tocar, porque homem e terra se identificam, misturam-se com a natureza, principalmente no que diz respeito ao pantanal sua maior inspiração. Nesse sentido Carlos Felipe Moisés nos direciona: “É a procura dessa poesia autêntica, feita de entranhas e raízes, empenhada na verdade da vida, sem subterfúgios, que está na consciência do poeta moderno. (MOISÉS, 1996, p. 153). Manoel de Barros procura mostrar em seus poemas a realidade que nos cerca numa lin-

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guagem simples, pantaneira obedecendo a relação homem/natureza que de maneira alguma podem ser violadas, buscando integrar no seu fazer poético o que ele chama de inutensilio, ou seja, o que para muitos não tem utilidade, residindo aí a essência do poético. Por tudo isso, compreender seus poemas não é conceituá-lo dentro de uma lógica, mas exige sim um certo encantamento, e acima de tudo, penetrar na sua essência, e que sabemos, ao homem e somente à ele é dada essa capacidade. Assim sendo, introduzir-se no mundo poético desse autor, é, pois, compartilhar com ele um mundo cheio de fantasias em que a palavra tem o poder sublime, pois é através dela que o poeta demonstra a sua inquietação, e não compreendêla seria ocultar a história, a sociedade.

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“Um importante registro da história de famílias oriundas de outros estados ou países, mas que atualmente residem na Grande Dourados, testemunhos da formação de cidades, vilas e povoados da parte sul de Mato Grosso do Sul. Conta também a vida dos professores na época do “velho” Mato Grosso, em artigos e entrevistas resultados do empenho de educadores da rede pública e privada de ensino e estudantes universitários da região da Grande Dourados.”


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