Revista Arandu # 52

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15-482X - ISSN 14

O subalterno cobra seus direitos na obra de

RUBEM FONSECA

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I SSN 1415 - 482X

9 771415 482002



nicanorcoelho@gmail.com

Dourados Ano 13 - No 52 Pรกgs. 1-70 Maio-Junho-Julho/2010


[ CARO LEITOR

OCARO

LEITOR

escritor Rubem Fonseca é o tema principal da Revista Arandu, que ao número 52 apresentando uma série de seis artigos científicos focados na literatura, na língua e na linguagem. “O subalterno cobra seus direitos na obra de Rubem Fonseca” é o primeiro texto desta edição onde os autores Hans Stander Loureiro e Rosana Cristina Zanelatto Santos analisam os contos das obras Feliz Ano Novo e O Cobrador. A professora Josiane Cortes Buzzio escreveu “Confissões de Mandrake em A Grande Arte”, enquanto que Célia Regina Delácio Fernandes e Maisa Barbosa da Silva Cordeiro são autoras do texto “A leitura no acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola – 2008: Ensino Fundamental”. Também participam desta edição Neurivaldo Campos Pedroso Júnior que escrever o artigo “Roland Barthes: em busca da textualidade perdida”; Débora Pereira Simões com o trabalho “Os papéis narrativos em cena: uma breve leitura de Inkheart” e, finalmente, Rosicley Andrade Coimbra que escreveu o texto intitulado “Espreitando Lavoura Arcaica pelas frestas da linguagem”. Acreditamos que com a publicação destes trabalhos a Revista Arandu cumpre a sua parte na disseminação da arte, da literatura e da ciência na região da Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul e no Brasil. Tenha uma ótima leitura!

Ano 13 • No 52 • Maio-Junho-Julho/2010

ISSN 1415-482X

Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico ANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO e PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS Coordenadora desta edição ROSANA CRISTINA ZANELATTO SANTOS Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO

EDITADO POR

Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sl. 01 Tel.: (67) 3423-0020 / 9238-0022 Dourados, MS CEP 79804-970 Caixa Postal 475 CNPJ 06.115.732/0001-03

Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - No 52 (MaioJunho-Julho/2010). Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2010. Trimestral ISSN 1415-482X

Nicanor Coelho Editor

1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura - Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu


Ano 13 • No 52 • Maio-Junho-Julho/2010

[ SUMÁRIO

O subalterno cobra seus direitos na obra de Rubem Fonseca ............................................................................ 5 Hans Stander Loureiro Rosana Cristina Zanelatto Santos Confissões de Mandrake em A Grande Arte ......................................... 15 Josiane Cortes Buzzio A leitura no acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola – 2008: Ensino Fundamental ................................................ 26 Célia Regina Delácio Fernandes Maisa Barbosa da Silva Cordeiro Roland Barthes: em busca da textualidade perdida ........................... 40 Neurivaldo Campos Pedroso Júnior Os papéis narrativos em cena: uma breve leitura de Inkheart ....... 50 Debora Pereira Simões Espreitando Lavoura Arcaica pelas frestas da linguagem .............. 58 Rosicley Andrade Coimbra

INDEXAÇÃO •

CAPES - Classificada na Lista Qualis www.capes.gov.br

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Foto da capa: Zeca Fonseca / Divulgação O escritor Rubem Fonseca em sua biblioteca.


O SUBALTERNO COBRA SEUS DIREITOS NA OBRA DE RUBEM FONSECA Hans Stander LOUREIRO1 Rosana Cristina Zanelatto SANTOS2

RESUMO Tomando como objetos de análise os contos “Feliz Ano Novo” e “O Cobrador,” dos livros homônimos de Rubem Fonseca, pretendemos demonstrar como a subalternidade manifesta-se na ação do personagem narrador, sendo marcada sobretudo pela violência, consubstanciada nos vários atos dos bandidos em “Feliz Ano Novo” e do Cobrador no conto do mesmo nome. A violência física das personagens é destrutiva, porém se justifica, nos contos, por toda uma vida de relações assimétricas, na qual a promessa de liberdade, de igualdade, de autonomia e de dignidade era para poucos, muito poucos. As personagens, então, reivindicam tudo o que têm direito, e aqui usamos as palavras de Arendt, “usando o cano de uma arma”, de onde emana o poder mais efetivo e que leva à mais completa obediência. Palavras-chave: Subalternidade; Violência; Rubem Fonseca.

ABSTRACT This analysis has two short stories as objects: “Feliz Ano Novo” and “O C obrador,” by Rubem Fonseca. We intended to demonstrate how the subordination is manifested in the action of the narrator, marked particularly by violence. Physical violence is destructive, however justified in “Feliz Ano Novo” and “O cobrador” for a life of asymmetric relations in which the promise of freedom, equality, autonomy and dignity were a few persons. The characters use “the barrel of a gun” to emanates the power more effective and leads to more complete obedience. Keywords: Subordination; Violence; Rubem Fonseca.

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Mestrando em Estudos de Linguagens na UFMS. Bolsista da FUNDECT. Doutora em Letras pela USP. Docente da UFMS. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

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INTRODUÇÃO Tomando como objeto de análise os contos “Feliz Ano Novo”, do livro Feliz Ano Novo, e o “O Cobrador”, de O Cobrador, ambos de autoria de Rubem Fonseca, pretendemos demonstrar como a subalternidade manifesta-se na ação das personagens-protagonistas não somente tomadas de insatisfação com o seu tratamento em sociedade, mas sobretudo assumindo a forma de violência, consubstanciada nos atos durante a festa de Revellion em “Feliz Ano Novo” e nas atitudes do Cobrador durante o percurso narrativo. 1. LEITURAS SOBRE O SUBALTERNO No Capítulo I, intitulado El subalterno y los límites del sáber académico, que compõe o livro Subalternidad y Representácion3 (2004), de John Beverly, o autor remete a Jacques Lacan que um dia contou a seguinte história em um de seus seminários em Paris: que em sua juventude, quando queria viajar e ter alguma experiência prática do mundo, juntou-se a pequenos pescadores em sua embarcação também pequena. Em certa ocasião, estando no mar para recolher a rede com os pescados, um dos companheiros, por nome Petit Jean, lhe mostrou uma lata a boiar no mar. Era uma lata de sardinhas. Petit Jean lhe disse: “Você vê a lata? Você a vê? Pois bem, ela não o vê!” Lacan, sem entender o por quê do companheiro se divertir com o que disse, conclui que estava fora do lugar, deslocado em meio aos pescadores (LACAN apud BEVERLY, 2004, p. 53). Beverly usa a história de Lacan para ilustrar como é o sujeito dono de um su-

posto saber. Lacan, por sua vez, ilustra com a narrativa a relação entre o sujeito e o campo visual, como parte de suas leituras sobre a imagem e o objeto. Porém, essa também é uma história sobre a subalternidade e a representação, nesse caso, sobre como o sujeito subalterno se (re)apresenta ao sujeito dominante e, nesse processo, há a troca mediante uma negociação ou deslocamento — ao perceber a divertida reação de Petit Jean diante da lata de sardinhas boiando no mar, Lacan diz: “Eu estava fora do lugar no quadro” (LACAN apud BEVERLY, 2004, p. 53). Para Ranajit Guha4 , citado por Beverly, subalterno é um nome para o atributo geral da subordinação, que se expressa em termos de classe social, etnia, idade, gênero, trabalho, entre letrados e não-letrados, entre os que frequentam ou não a academia. Segundo Beverly, proposição de Guha coincide com o que fica da história de Lacan: ele, um jovem intelectual, que podemos classificar como pertencente à classe dominante, querendo conhecer o mundo dos subalternos, materializado no pequeno barco dos pequenos pescadores. A ideia de Lacan é a de intercâmbio: ele queria estar do lado de lá, ao lado “[...] do mundo de trabalho [prático] e de sua materialidade, na posição do escravo” (BEVERLY, 2004, p. 54). Ainda segundo a leitura de Beverly da obra de Guha, o subalterno, ou melhor, sua identidade reside na negação. Pode se entender o subalterno como alguém que não somente não possui poder socioeconômico ou cultural, mas também não tem uma representação clara de si mesmo. Assim, a proposição de Guha é resgatar o subalterno como sujeito da história, sobretudo de sua própria história.


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Segundo Beverly, usando como exemplo o campesino rebelado, O problema é que os feitos empíricos [históricos] dessas rebeliões [as rebeliões campesinas] são transcritos na linguagem e pelas correspondentes pautas culturais da elite — pautas tanto a nativa quanto a colonial — contra as quais as rebeliões precisamente se dirigiam (2004, p. 54).

Portanto, os insurgentes/os subalternos se veem falados, traduzidos e retratados por aqueles contra quem se insurgiram, o que fatalmente criará uma imagem negativa ou opaca do subalterno. O projeto de Guha é recuperar o reapresentar do subalterno como um sujeito histórico — ‘uma entidade cuja vontade e razão constituem uma prática chamada rebelião’ — desde a confusão da documentação até os discursos historiográficos que lhe negam o poder de autogestão (BEVERLY, 2004, p. 55).

O subalterno é uma entidade em estado de rebelião. Ele pode falar e sua fala é a marca da rebelião contra aqueles que, como Gayatri Spivak5 , dizem que o subalterno fala, porém não altera “[...] as relações de poder/saber que o constituem como subalterno” (apud BEVERLY, 2004, p. 57). Em face da globalização6 e sua capacidade de produzir novos modos de exploração e de dominação, os estudos sobre a subalternidade, seja pela visão de Guha, seja pela de Spivak, não somente contribuem para a produção de conhecimento

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sobre o tema, mas também podem intervir politicamente em favor da discussão sobre o subalterno e sua mudança de status no mundo. Ainda que no meio acadêmico se depare com uma certa dificuldade em representar o subalterno, não é necessário recorrer ao que dizem do subalterno os pesquisadores. As falas dos subalternos estão aí para serem lidas, escutadas e compreendidas. Beverly cita como exemplo a narrativa Me llamo Rigoberta Menchú, dizendo que se textos como esse são admitidos em centros de hegemonia acadêmico-intelectual, como foi sua inclusão em um curso de Cultura Ocidental na Universidade de Stanford, em plena era Reagan, é porque é possível aceitar suas reivindicações pelo direito à diferença e à autoridade que cada um tem na sua diferença (BEVERLY, 2004, p. 58). O que de fato interessa politicamente não é a verdade do sujeito, porém o que é a verdade para esse sujeito. O certo é que “A subalternidade é uma identidade relacional muito mais do que ontológica; trata-se, pois, de uma identidade (ou identidades) contingente e sobredeterminada” (BEVERLY, 2004, p. 59). Há que se considerar, hoje, que os EUA são o terceiro país de fala hispânica no mundo. Aqui não nos referimos ao espanhol, como o da Espanha, mas a um registro eivado de espanhol, de inglês, de black english e outros falares de populações que vivem em território norteamericano e são consideradas subalternas. Perguntamos: será que com um número como esse de falantes — e aí consideramos também suas práticas socioculturais — o subalterno de fato não tem voz?


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Em meio a questões como a posta acima, Beverly faz referência a Richard Rodriguez7 . De ascendência latino-americana, em seus tempos de colégio na Califórnia, ressentia-se dos comentários sobre seu parco vocabulário em língua inglesa, tornando-se, mais tarde, especialista em literatura inglesa. Seu livro Hunger of memory: the education of Richard Rodriguez foi recebido por Henry Staten, citado por Beverly (2004, p. 58-59), da seguinte maneira: Apesar de sua familiar distinção ideológica dos pobres, apesar de sua metafísica transcendental, Richard sente uma profunda conexão com os mexicanos, percebidos de maneira mais abjeta, e deseja manter contato com eles [...] Em parte, esses sentimentos constituem o ‘paroquianismo da classe média’ contra o qual ele mesmo nos adverte (Hunger 6): um romance cultural interclasses no qual a burguesia anseia a corporeidade e a imediatez dos trabalhadores. Porém, no caso de Richard, é muito mais do que isso, por pelo menos duas razões: primeiro porque ele compartilha o fenótipo dos trabalhadores e, segundo, porque seu pai, ainda que ‘branco’ e identificado com a burguesia, fala inglês precariamente, tem as mãos calejadas pelo trabalho e foi humilhado na vida por ser subalterno (Hunger 119-20), como os mexicanos de pele morena que Richard retrata. A identidade de Richard divide-se com relação a seu pai, que por um lado representa a pessoa que permite a Richard ser diferente dos pobres e, por outro, representa os pobres dos quais Richard é diferente.

O que se percebe na leitura de Staten da obra de Rodriguez é que o sujeito de ascendência latino-americana Richard não consegue escapar à contradição que paira sobre o subalterno. É um estado constante de tensão: como a subalternidade é, de modo geral, confundida com a pobreza socioeconômica, quando os subalternos querem participar da cultura hegemônica, tornando-se assimilados, há uma tendência a separar-se de seu grupo pela condição econômica — eles não são pobres — e a fazer parte dele pela cultura familiar, pelas histórias (de sofrimento, de humilhação, de ódio étnico) que carregam seus ascendentes. Assim, o subalterno é o rebelde que contradiz as verdades de seus inimigos, do dominante, tentando abolir as marcas de sua própria condição. O que a história, como área de saber, deveria fazer é se aprofundar nos estudos sobre a subalternidade, compreendendo-a politicamente e procurando modos, a partir dela, de mudar as condições de subordinação na sociedade. Estudar a subalternidade é diferente de fazer a história dos que vêm “de baixo”, considerando esta expressão social, econômica e culturalmente. O subalterno traz consigo algumas características que podem não ser encontradas naqueles que vêm “de baixo”. Isso cria um registro débil nos estudos sobre a subalternidade, dificultando à academia/à universidade representar o subalterno não somente para o outro, mas também para ele próprio. Dipesh Chakrabarty8 adverte sobre aquela confusão em três áreas: [...] (a) uma relativa separação entre a


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história do poder e qualquer história universalista do capital, (b) uma crítica da forma nação, e (c) uma interrogação da relação entre saber e poder (e por meio dela do arquivo mesmo e da história como forma de saber) (apud BEVERLY, 2004, p. 67).

Beverly critica a história no seu apego ao passado pelo passado: Nada é trocado no passado porque o passado é o passado; tampouco também nada é trocado no presente enquanto a história como tal — ou seja, como uma forma de saber — não modifica as relações existentes de dominação e de subordinação. De alguma forma, é o contrário: a acumulação de conhecimento histórico como capital cultural por parte da universidade e dos centros de saber aprofunda as subalternidades já existentes. Paradoxalmente, então, haveria que se produzir um momento em que o subalterno se insurja contra os estudos subalternos [...] (2004, p. 63).

Nessa encruzilhada, Beverly volta à questão levantada por Chakrabarty: [...] se a educação ‘superior’ — a academia — em si mesma produz e reproduz a relação dominante/subalterno (porque se é superior deve haver outra educação que é inferior), como ela pode ser um lugar onde o subalterno adquira hegemonia? (2004, p. 63).

A partir desse questionamento, Beverly passa a ler o livro Campesino y nación (Campesinato e Nação), de Florencia

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Mallon9 , no qual a autora deseja mostrar “[...] como os subalternos [...] ajudaram a definir os contornos do que foi possível na construção dos Estados-nação [na América Latina]” (apud BEVERLY, 2004, p. 64). Mallon observa que o imaginário iluminista, herança do século XVIII europeu, tomou conta das revoluções póscolonialistas do Peru e do México no século XIX. No entanto, a promessa de liberdade, de igualdade, de autonomia e de dignidade era para poucos, os poucos que estavam em acordo com critérios de exclusão de classe e étnica. Pergunta, pois, Beverly: Como então recuperar os projetos e as vozes dos excluídos? O ponto de partida de Mallon é uma noção de ‘hegemonia comunal’, baseada no parentesco e na autoridade das gerações (especialmente o patriarcal) e em formas coletivas ou semicoletivas de propriedade dos grupos indígenas (2004, p. 64).

A recuperação das vozes locais, das vozes dos excluídos, deve partir, dentre outros pontos, da devolução às comunidades rurais de sua condição de sujeito de sua própria história, possibilitando uma relação simétrica entre o intelectual e o sujeito campesino que rompa “[...] com a divisão artificial entre o analista como intelectual e o campesino como sujeito” (BEVERLY, 2004, p. 65). Para Beverly, o trunfo das proposições de Mallon é perceber que os habitantes locais — campesinos/rurais — tanto do México quanto do Peru atuaram de fato na formação dos Estados modernos em


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seus países. Porém, há um problema nessas proposições: Mallon “[...] mantém uma forma narrativa diacrônica, isto é, um sentido da história como desenvolvimento, amadurecimento [...]” (2004, BEVERLY, p. 66). Em face de todas as leituras feitas, Beverly propõe que Assumir como possíveis o projeto de representar o subalterno na academia e o projeto de auto-representação do subalterno como ele próprio é, simplesmente, isso: uma assunção. Na verdade, seria mais correto dizer que estes são projetos diferentes e antagônicos. [Beverly crê] que a universidade deve ‘servir ao povo’; para isso, deve ser mais acessível, democratizada, oferecendo mais possibilidades de resistência (2004, p.68).

Referindo-se à Teologia da Libertação, Beverly observa que os estudos subalternos acadêmicos devem mostrar um novo modo de falar sobre os subalternos e também construir relações solidárias entre os pesquisadores/os acadêmicos e os sujeitos subalternos. Para tanto, cita o teólogo Gustavo Gutiérrez10 quando ele fala de “[...] uma amizade concreta com o pobre: não pode ser simplesmente um assunto de ter uma ‘conversa com’ [...] ou romantizar ou idealizar o subalterno” (apud BEVERLY, 2004, p. 69-70). Ao fim da discussão, Beverly chega à conclusão de que [...] nós não reivindicamos o direito de representar (‘fazer um mapa cognitivo’, ‘deixar falar’, ‘falar por’, ‘escavar’) o subalterno. Os estudos su-

balternos tratam, ao contrário, de como o saber que nós produzimos e compartilhamos como pesquisadores/ acadêmicos está estruturado pela ausência, pela dificuldade ou pela impossibilidade de representação do subalterno. Isso é reconhecer, sem dúvida, a inadequação fundamental de nosso saber e das instituições que o detêm e, por outro lado, a necessidade de uma mudança radical em direção a uma ordem social mais democrática e igualitária (2004, p. 70-71).

2. O SUBALTERNO EM RUBEM FONSECA De modo geral, Do ponto de vista temático, a narrativa fonsequiana explora as experiências humanas dos indivíduos que se embatem nas grandes cidades. A violência física que envolve os protagonistas sustenta-se numa forma outra, de ordem econômica e estrutural, criando uma atmosfera de confrontação e hostilidade que permeia as relações entre os indivíduos tanto na esfera da vida pública quanto nas relações pessoais, afetivas e familiares (CONCEIÇÃO, 2010, p. 2).

No primeiro conto de Feliz Ano Novo, que leva o mesmo nome do livro, Rubem Fonseca expõe a diferença entre a classe pobre marginalizada e a rica burguesia, alheia ao que acontece na periferia da cidade. Enquanto as granfas bem nutridas e de boa aparência compram roupas, joias e preparam jantares com comidas e bebidas finas, os três protagonistas, provavel-


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mente pobres e moradores da periferia, estão afundados em suas misérias sociais, vivendo em lugares fétidos, entre armas e drogas. Quando resolvem invadir uma casa em São Conrado, a ação vai muita além de um simples assalto — eles se tornam “cobradores”. Apesar de sonharem em ter uma vida como a dos “bacanas”, demonstram desprezo pelo ambiente de luxo que vêem. Pisam, sujam, destroem e defecam sobre a colcha de cetim do quarto de uma das vítimas, como se quisessem dizer: “Não podemos ter, então destruímos, violentamos, matamos”. Tal desprezo chega ao extremo da crueldade quando uma das vítimas diz que “podem também comer e beber a vontade”. O marginal faz toda uma preparação da sua vítima, fazendo-o dizer o nome, levantar-se e posicionar-se perto da parede, “encostado não, uns dois metros de distância”, para atirar bem no peito dele, esvaziando os dois canos da carabina doze. No encontro entre os marginais e os demais participantes da narrativa, há um embate (ou seria um combate?) entre dominação e subordinação. Nesse embate / combate vem à tona a violência. Segundo Hannah Arendt, Devemos sempre lembrar que a violência não depende de números ou de opiniões, mas de implementos, [...] os implementos da violência, como todas as ferramentas, amplificam e multiplicam o vigor humano. [...] A violência sempre pode destruir o poder; do cano de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência (2009, p. 70).

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No conto “Feliz Ano Novo”, instauram-se situações que se a princípio tem um fundamento — a lógica dos marginais humilhados pelo poder do capital, representados pelos convidados da festa — no decorrer da narrativa aquele fundamento se perde em meio à violência que inicialmente atinge os corpos para depois atingir outras dimensões. Subalternos e dominadores perdem-se em meio à maldade humana e ao comando das armas: Você ai, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um carinha magrinho, de cabelos compridos. Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha. Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula. Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira. Eu não disse? (FONSECA, 1995, p. 20. Grifos nossos).

Porém, os bandidos não serão mais dominados. Se os ricos e os poderosos dominam pelo poder do dinheiro ou do status social, os bandidos dominam pela violência, pela força que emana de seu “poder de fogo”. Em “Feliz Ano Novo”, os subalternos


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se lançam em uma luta não por dinheiro ou bens materiais, porém em uma luta contra o fim da subordinação e da exclusão social. Eles são os subalternos que decidem fazer sua própria história. Já o conto “O cobrador”, que abre o livro homônimo de Rubem Fonseca, à primeira vista, pode parecer a narrativa de um serial killer sobre seus crimes. Seria mais fácil dar conta da literatura fonsequiana se assim o fosse. Sem nome, ou, ao contrário, negando-se como homem e auto-denominando-se como o Cobrador (“Não sou homem porra nenhuma, digo suavemente, sou o Cobrador. / Sou o Cobrador!, grito” – FONSECA, 2010, p. 26), logo na abertura do conto a personagem vai ao dentista e quando este lhe cobra pelos serviços, é surpreendido pela resposta do cliente: “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro. / Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta” (FONSECA, 2010, p. 12). O que devem ao Cobrador? Ele responde: A rua está cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo (FONSECA, 2010, p. 12-13).

Na maioria dos encontros entre o Cobrador e os demais participantes da narrativa, há um embate (ou seria um combate?) entre dominação e subordinação. Durante a ida ao “estabelecimento” de um traficante de vários objetos, entre eles, armas de fogo, o Cobrador, quando

ia atravessar a rua, é molestado pela buzina de um carro. Diante disso, ele fica parado na frente do carro. O motorista o chama: Como é?, ele gritou. Era de noite e não tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e atirei no para-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito. Ele arrancou com o carro, para me pegar [...] Parou logo adiante. Fui até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha (FONSECA, 2010, p. 13).

A vontade de dominação está sempre presente. Porém, novamente, o narrador não será mais cobrado ou dominado. O Cobrador suplanta o poder socioeconômico de seus oponentes pela violência, pela força que emana de seu arsenal de guerra. Mesmo o traficante que lhe “vendeu” a Magnum não é perdoado: ao final da transação, ele é morto com um tiro certeiro “[...] e mais dois tiros só para ouvir puf, puf ” (FONSECA, 2010, p. 14). Em “O Cobrador”, o narrador se lança em uma luta incansável não por um lugar ao sol, porém em uma luta contra o fim da subordinação e da exclusão social. Ele é o subalterno que decide fazer e contar sua própria história. Ele é o subalterno que sabe qual é o seu lugar e reconhece seus iguais, como no caso da empregada do apartamento onde entrou como encanador:


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Deve haver um engano, ela [a dona da casa] disse, nós não precisamos de bombeiro. Tirei o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senão mato as duas. Tem mais alguém em casa? O marido estava trabalhando e o menino no colégio. Amarrei a empregada, fechei sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro quarto (FONSECA, 2010, p. 21).

Ele não estuprou, nem matou a empregada. Apenas a imobilizou. A violência do estupro estava destinada à dona do apartamento. O Cobrador reivindica tudo o que tem direito. E na praia, lugar onde “[...] somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores pois não temos aquela barriga grande e a bunda mole dos parasitas” (FONSECA, 2010, p. 22), ele conhece Ana, a moça branca dentre duas que lhe chamaram a atenção na areia. Por algum motivo não esclarecido pelo narrador, Ana estabelece “uma amizade concreta com o pobre” (BEVERLY, 2004, p. 69), o subalterno, sem idealizá-lo. O Cobrador leva a moça para a pensão onde mora. Eles transam e ele lhe mostra as armas. [Ele lhe pergunta] Quer atirar? pode atirar, a velha não vai ouvir. Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo

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suspendo o cano até a altura da minha testa. Aqui não dói. Você já matou alguém? Ana aponta a arma para minha testa. Já. Foi bom? Foi. Como? Como um alívio (FONSECA, 2010, p. 29).

Talvez, aqui, um alívio duplo: o de eliminar seus algozes nas relações de subordinação e o de contar com uma aliada entre os dominantes no seu desejo de cobrança. CONCLUSÃO A violência física das personagensprotagonistas dos contos “Feliz Ano Novo” e “O Cobrador”, de Rubem Fonseca, é destrutiva, porém (parece) se justificar por toda uma vida de relações assimétricas, na qual a promessa de liberdade, de igualdade, de autonomia e de dignidade era para poucos, muito poucos. E elas não estavam entre esses poucos. Os subalternos, então, reivindicam tudo o que têm direito. E em todos os lugares por onde passam, destroem não somente os símbolos de poder econômico dos granfas, mas também a (aparente) dignidade que o status social lhes traz, tornando-os tão indigentes quanto a si próprios.

NOTAS 3

Todas as traduções feitas do espanhol para o português no decorrer do seminário são de nossa autoria.


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Ranajit Guha (1922) é historiador e nasceu na Índia. É dos maiores estudiosos da subalternidade do mundo, sendo o fundador da Revista de Estudos Subalternos. Migrou na década de 1960 para a Inglaterra. 5

Gayatri Chakravorty Spivak (1942) é indiana, também estudiosa da subalternidade, e conhecida por seu artigo Can the Subaltern Speak?, considerado um texto fundamental sobre o pós-colonialismo e a subalternidade. Leciona na Columbia University. É membro-visitante do Centre for Studies in Social Sciences de Calcutá. 6

Aqui não teceremos quaisquer comentários sobre se o processo de globalização é positivo ou negativo. Somente dizemos que ele existe. 7

Richard Rodriguez (1944) é estudioso norte-americano de literatura de língua inglesa, nascido em uma família de imigrantes mexicanos. Até seu ingresso em uma escola católica na Califórnia, onde nasceu, falava somente espanhol. 8

Dipesh Chakrabarty é historiador nascido em Bengali e que muito tem contribuído para os estudos pós-coloniais e de subalternidade. Ele ensina na Índia. Tem colaborado decisivamente para a intersecção entre a história e os estudos pós-coloniais. 9

Florencia Mallon nasceu em Santiago (Chile) em 1951. Historiadora, sua área de interesse é a história moderna da América Latina. 10

Gustavo Gutiérrez Merino é teólogo peruano e sacerdote dominicano, considerado por muitos como o fundador da Teologia da Libertação. Na década de 1980 sofreu processo da Cúria Romana, que acusava sua obra de reduzir a fé à política. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução Andréa Duarte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. BEVERLY, John. El subalterno y los límites del sáber académico. In: _______. Subalternidad y Representácion. Madrid: Iberoamericano, 2004. p. 53-71. CONCEIÇÃO, Daniele Barros da. Sob o signo da derrota: os justiceiros desiludidos de Rubem Fonseca. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro, CLA – Faculdade de Letras/UFRJ, 3. ed., p. 1-14, jun. 2010. Disponível em: <www.forumdeliteratura.com> Acesso em 4 jun.2010. FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. In. _______. Feliz Ano Novo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. FONSECA, Rubem. O Cobrador. In. _______. O Cobrador. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2010. p. 9-31.


CONFISSÕES DE MANDRAKE EM A GRANDE ARTE Josiane Cortes Buzzio1

RESUMO O presente trabalho objetiva refletir sobre a figura do narrador do romance A grande arte, de Rubem Fonseca. O narrador é a figura encarregada de contar a história do seu tempo e o faz atravessado pelo seu ponto de vista, mas ele já não pretende transmitir ensinamentos, desejando tão somente registrar a história do seu tempo, atento, porém, às obscuridades deste. Nesse sentido, o narrador de A grande arte quer confessar as violências físicas e morais praticadas sem peias pelos sujeitos da sociedade. Em A grande arte o narrador expõe suas angústias, liberta-se e modifica-se por meio da confissão. Palavras-Chave: Narrador; Violência; Confissão; Rubem Fonseca.

ABSTRACT The present work has as an objective to reflect over the figure of the narrator of the novel A Grande Arte by Rubem Fonseca. It is the figure narrator in charge of telling the story at his time and does it crossed by his point of view, but he does not intend to transmit teachings, wants only to register the history of this time, attentive, however, to its obscurities. This way, the narrator of A Grande Arte wants to confess the physical and moral violence practiced with no pity by the subjects of this society. In A Grande Arte, the narrator exposes his anguishes, frees himself, and modifies himself through the method of confession. Keywords: Narrator; Violence; Confession; Rubem Fonseca.

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romance A grande arte, de Rubem Fonseca, chama atenção pelo aspecto da violência e da sexualidade marcantes. Violência que aparece justificada seja em nome da sobrevivência, do processo civilizatório, ou da cultura. Segue a linha dos romances urbanos que retratam as atuais situações enfrentadas nas cidades, acabando por demonstrar a mudança de

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comportamento da sociedade como também as transformações pelas quais a mentalidade urbana tem passado. A solidão da grande cidade é matéria prima para o romance, onde os sujeitos seguem sem saber de si, nem do outro, manipulando situações, cientes de que podem sucumbir a qualquer momento. É na cidade do Rio de Janeiro, em meio à

Mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS. Docente do Ensino Médio em Dourados-MS.


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paisagem do cotidiano e à violência urbana, que personagens marginais e da alta sociedade ora se misturam, ora se confrontam, mantendo em comum a desenfreada busca pela sobrevivência. Integrado às personagens, fazendo a história, está a figura do narrador: “Muito embora as histórias sejam resultado inevitável da ação, não é o ator, e sim o narrador que percebe e ‘faz’ a história.” (ARENDT, 2008, p. 205). Mandrake, o advogado metido a investigador é quem conduz a trama e ao mesmo tempo é engolfado por ela, cumprindo a função de exteriorizar a escuridão que vislumbra em meio à luz. Segundo Giorgio Agamben, o contemporâneo deve manter o olhar fixo no seu tempo, não para enxergar as luzes, mas a escuridão. Não se trata do tempo cronológico, mas daquele que urge dentro deste, transformando-o. “Todos os tempos são para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.” (AGAMBEM, 1999, p. 62) O narrador de A grande arte traduz a sociedade carioca, passando por subúrbios, favelas, avenidas e mansões, mostrando bandidos vencedores e instituições incompetentes para cumprir suas atribuições de vigiar e punir, abandonando “[...] o caráter de literatura reconfortante e socialmente integrante típico do gênero, em que o criminoso é sempre apanhado, a justiça é sempre feita, o crime não compensa e a legalidade e os valores burgueses triunfam.” (PELLEGRINI, 1999, p. 104) Ele é testemunha da violência cotidiana que nos deixa à mercê de nosso semelhante, pronto a apertar o gatilho a qual-

quer momento; da corrupção que cresce a cada dia, deixando a humanidade cada vez mais desacreditada de seus representantes públicos; e da angústia da sociedade atual frente aos avanços tecnológicos, que nos empurram para algum lugar que não sabemos qual. É contemporâneo porque, segundo Silviano Santiago, narra a partir do que observa, que “[...] se afirma pelo olhar que lança ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes” (1989, p. 43). Que está ocupado em observar e narrar a história de um tempo em que a narrativa heróica e maravilhosa, sustentada na bravura e na solidariedade humana, converteu-se na tarefa infinita do narrador de buscar em seu interior uma “[...] verdade que a própria forma da confissão acena como sendo inacessível.” (FOUCAULT, 1988, p. 60) O indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem (família, lealdade, proteção); posteriormente passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo. A confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder. (FOUCAULT, 1988, p. 58)

Ainda na Idade Média as sociedades ocidentais instituíram a confissão como o instrumento eficaz na produção da verdade: na religião, estabelecendo a confissão como sacramento; na justiça criminal, com o desenvolvimento de métodos para produzir a verdade, sustentados na confissão do suspeito; na instauração dos Tribunais da Inquisição. Tudo isso com o


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intuito de produzir a verdade a partir da confissão. Nos poderes civis e religiosos, a sociedade ocidental tornou-se uma sociedade confessanda. O sujeito passou a ser autenticado não por suas ações em relação aos outros, mas pelo seu discurso sobre si mesmo. A confissão “[...] difundiu amplamente seus efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes.” (FOUCAULT, 1988, p. 62) Confessar implica em exposição e quem o faz torna-se previsível, indefeso, exposto à análise do outro. Quem silencia, ao contrário, representa uma incógnita e como o medo do desconhecido é humano, a dominação e o cerceamento recaem sobre quem se mostra. Daí a razão de colocar o outro sob jugo, conhecer sua mente para, a partir de então, poder decifrá-lo, dominá-lo. A confissão é uma forma de estabelecer uma relação de poder, pois para confessar o indivíduo precisa da presença do outro que se constitui em uma instância a impor a confissão, intervindo para [...] julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; enfim, um ritual onde a enunciação em si, independentemente de suas conseqüências externas, produz em quem a articula modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação. (FOUCAULT, 1988, p. 61)

O que se busca com a confissão é a

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produção da verdade, ainda que seja uma verdade relativa. O indivíduo que confessa quer exteriorizar o que está em seu íntimo, quer receber uma censura ou aprovação, ou simplesmente, desabafar, dizer de si por meio da história do seu tempo. “Todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito” (DINESEN apud ARENDT, 2008, p. 188). A confissão como que redime. Quem confessa modifica-se, liberta-se daquilo que a incomoda, que a aprisiona. Mas, apesar de o mundo querer impedir que isso acontecesse, as pessoas mudavam e não mudavam mais porque eram reprimidas, os que mudavam eram amedrontados com a acusação de desleais, incoerentes, traidores, eu sabia disso e não ia deixar que os outros me dissessem o que devia ser e fazer. Agora não gostava mais do Direito (outra mudança) nem minha maior alegria era levar uma mulher para a cama. Quanto tempo isso duraria? Não me tornara, tinha certeza, uma pessoa moralmente melhor do que na época em que mantinha, alternadamente, a cópula fornicatória com oito mulheres. Continuava gostando das mulheres, talvez até mais, mas estava mudado. (FONSECA, 1990, p. 60)

“As pessoas mudam”: eis a afirmação do narrador de A grande arte que quer externar, conhecer essa mudança; não se trata de uma justificativa para os atos humanos, mas uma constatação a partir de sua própria realidade. Ele mesmo passa por muitas transformações no decorrer


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da narrativa, mudanças intrínsecas e significativas. No início, ao aparecer no escritório de advocacia com seu sócio, analisando os processos de sempre, tratando de problemas alheios com o distanciamento definido como “profissional”, é um. No decorrer da trama — desde o momento em que se envolve no caso do assassinato de uma prostituta morta por esganadura e que teve a letra “P” inscrita na face por uma faca de pequeno porte — vai gradativamente se tornando outro. Sua intromissão no caso também o faz vítima. O distanciamento das situações de perigo o protege; a intromissão o compromete. Agora ele, também vítima, é tomado pelo sentimento de vingança que o motiva a sair à procura de seus algozes. Porém, trata-se de um herói ingênuo, como é ingênuo um homem diante da fúria de outro homem. “A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença.” (ARENDT, 2008, p.188) O que possibilita à humanidade entender seus ancestrais e os anseios das gerações futuras é a igualdade. A diferença, por sua vez, determina a importância da linguagem humana, por permitir ao homem comunicar aos outros seus anseios. A questão da diferença, da igualdade e da pluralidade torna o ser humano imprevisível e que subestima a força e o poder do outro, e um poder investido de violência pode ter resultados inomináveis. É o que acontece com o narrador de A grande arte. Depois de intrometer-se no caso das prostitutas, torna-se também alvo dos criminosos. Também é vitimado e violentado. A partir de então passa a nutrir pelos seus algozes um sentimento de vingança. Em determinado momento,

Fuentes, o homem que o esfaqueara, é preso. Mandrake então é chamado para reconhecê-lo na cadeia, sendo logo em seguida informado de que Fuentes faz parte de uma quadrilha de traficantes à qual a Polícia Federal está no encalço há tempos e, por isso, para que a Polícia possa seguilo e desbancar a quadrilha, Fuentes será solto. Inconformado, Mandrake segue viagem no rastro do bandido, sem saber ainda o que procura. “Apesar dos perigos que envolve, a viagem enriquece a vida e ajuda a transpô-la” (LINS, 1990, p. 203) Em seu percurso de viagem, o narrador enfrenta grandes perigos. A viagem provoca-lhe modificações significativas. “É uma tarefa para o meio termo da idade, um instante em que a aventura nos atrai e podemos empreendê-la com um mínimo de segurança porque dominamos as nossas energias físicas e mentais.” (LINS, 1990, p. 204) Mandrake segue um roteiro que não faria de outra forma. A busca é por alguém que lhe tirou algo que já é perdido. Ele julga que, eliminando seu algoz, cumprindo sua missão, sua vingança terá restabelecido sua paz interior e recuperado sua dignidade. A viagem sempre é um meio de busca. Oportuniza desbravar, conhecer, dominar o outro e o desconhecido. O desconhecido nesse caso é o próprio Mandrake, embora ele ainda não saiba disso. “’Tudo ameaça aos navegantes com uma morte certa’, diz Virgílio, para logo demonstrar que Enéias vence as ameaças e cresce com elas.” (LINS, 1990, p. 204) Entretanto, o narrador de A grande arte não alcança com sua viagem uma vitória como o herói épico. Depois de colocar em perigo sua vida e a vida dos que o


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acompanham, põe a perder todo um trabalho de anos da Polícia Federal para prender uma quadrilha de traficantes. Perde a vida de Mercedes, a mulher com quem se envolvera no trajeto, “[...] a melhor agente” da Polícia. Retorna para casa frustrado, amargurado por ter sido responsável por mais uma perda, tomando consciência assim de seu lugar. Na concepção dos gregos ‘O risco externo, desviando-o de si mesmo, ajuda-o a aprimorar-se e a superar angústias que, de outro modo, se tornariam perniciosas’. Enfrentá-lo trás, reestabelecida a paz, a sensação de serenidade, o reconhecimento de que o pior caos se esconde no interior da alma e ela, sempre que possível nos sopra coisas terríveis nos ouvidos. (LINS, 1990, p. 204)

“Na verdade, Homero refará, em outros termos, o que contara na Ilíada, isto é, o triunfo da inteligência, da sagacidade e da astúcia sobre a força, sobre os elementos.” (LINS, 1990, p. 205). Mandrake, ao contrário, reafirma sua condição de impotente diante da violência da qual fora vítima, de sua fraqueza e ingenuidade diante do outro desconhecido, o possuidor da força e da astúcia. Fuentes mostra-se um sujeito rústico que conheceu a crueldade dos homens ainda criança e sabia o quanto precisava ser atencioso para não sucumbir como seu pai. Ele sim possui a inteligência alimentada pela raiva, nutrida durante longos e amargos anos, da miserável e humilhada infância e adolescência até a promessa na vida adulta de não ter pena de brasileiro algum. Assim como não tiveram dele a vida toda.

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Notou que o adversário possuía aquilo que Cassidy lhe dissera, durante o treinamento, ser a grande qualidade do lutador — o “ódio frio”. Esse ódio extraordinário não prejudicava, ao contrário, fortalecia a indispensável disciplina mental do combatente. Hermes percebeu, ainda, com admiração, na plena imobilidade de Fuentes, o controle que o adversário exercia sobre sua energia física e mental. (FONSECA, 1990, p. 290)

Mandrake, ao contrário, sempre absorto em sua vida de classe média, fora “[...] um bom estudante e depois um bom advogado [...]” (FONSECA, 1990, p.60), possuíra desde a infância a segurança e o conforto de um lar. Não podia suspeitar qual fúria dominava e motivava homens como Fuentes e Nariz de Ferro. Ingenuamente nosso herói lança-se em um mundo desconhecido, cheio de perigos, empunhando uma pequena faca e acreditando que com ela faria de Fuentes sua vítima. O objetivo maior do Ulisses, de Homero, é a sobrevivência, mesmo nos confrontos com inimigos gigantescos, mostrando-se ágil e astuto o suficiente para vencê-los. Mandrake, ao contrário, quer matar, porém mostra-se incompetente para tanto, assumindo um ar estúpido frente aos policiais que o informam da operação frustrada por conta de sua intromissão e da morte de Mercedes, que fora descoberta graças aos seus descuidos. A viagem de Mandrake, assim como a viagem do narrador contemporâneo, conta


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[...] as circunstâncias de um naufrágio. [...] A crise das utopias e das ideologias só se instaura na década de 50 para os nossos dias. Mesmo assim, o personagem que ocupa o primeiro plano da cena é aquele que revira a alma em busca de uma decifração interior de sua própria aventura na vida. (LINS, 1990, p. 210-211)

A viagem é uma alegoria dessa busca. Parte-se do pressuposto de que o que temos de saber encontra-se oculto dentro de nós mesmos. É um meio que possibilita a transformação. O uso da alegoria e da viagem interior baseia-se na premissa pela qual o que devemos saber se acha oculto, soterrado por camadas invisíveis de impressões e suposições que, se confiarmos nelas, nos atiram, desorientados, de um lado para outro, como um barco à deriva. (LINS, 1990, p. 212)

O narrador em A grande arte modifica-se no decorrer da trama, confessa seus medos, suas decepções e seus fracassos. Reconhece não ser astuto como pensava. O mundo em que vivera era outro; sua realidade de homem de classe média não o fizera um homem forte o suficiente para sobreviver na selva feroz onde se metera ao fazer a rota do tráfico. Era inocente demais para achar que sobreviveria à fúria de homens como Fuentes. A confissão constitui uma “faca de dois gumes”. Por um lado, provoca modificações em quem confessa; por outro, aquele que confessa o faz guiado pela convicção de que se afirmará pelo discurso que

profere sobre si mesmo e isso o torna suscetível à censura alheia. “Ora, desde a penitência cristã até os nossos dias o sexo tem sido a matéria privilegiada de confissão.” (FOUCAULT, 1988, p. 61) Nesse sentido, pertencemos a uma sociedade que “[...] articulou o difícil saber do sexo, não na transmissão do segredo, mas em torno da lenta ascensão da confidência.” (FOUCAULT, 1988, p. 62) A sexualidade foi por esse motivo durante muito tempo reservada ao discurso, transformando-se assim em algo a ser interpretado e analisado cientificamente. Nossa civilização, pelo menos à primeira vista, não possui ars erótica. Em compensação é a única, sem dúvida, a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam, quanto ao essencial, em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral, é a confissão. (FOUCAULT, 1988, p. 58)

A civilização ocidental criou uma necessidade de dizer sobre os prazeres individuais como forma de produção de verdade sobre si mesma. A partir disso os indivíduos eram definidos pelo que diziam sobre sua sexualidade. Instituiu-se assim uma ciência-confissão sobre sexo. Livros científicos foram escritos e lidos a respeito, assim como as consultas médicas eram direcionadas nesse sentido. Nas entrevistas, o paciente era induzido a dizer de si para o outro, misturando sentimentos de angústia pela exposição e de prazer por ser interpretado.


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Mandrake indaga sobre o uso de um discurso sobre sexo, desempenhando uma função de proibição e de repressão sexual como meio de coagir o indivíduo a enquadrar-se em um determinado modo de conduta, quando relata uma fase de sua infância, do seu tempo de menino na escola, ouvindo os ensinamentos do padre, seu professor, falando de sexualidade e do quão pecadora é a mulher, sempre induzindo o homem ao pecado desde os tempos de Eva. Como isso pudera acontecer com o menino que ouvia arrebatado as palavras inspiradoras do professor padre Lepinski contra o pecado da libido? O padre (que também era vegetariano, como os seguidores de Mani) pregava a castidade, o ascetismo com todas as suas opressivas abstinências. “Bom seria a um homem não tocar mulher alguma”, citava Lepinski o São Paulo da Epístola aos coríntios. O casamento era aceito por ser (ainda são Paulo) “uma forma de cada um evitar a luxúria”. “Mas, mas, mas — “e essa adversativa dita com sotaque polonês, crescendo de intensidade como chicotadas em um condenado, sempre antecedia uma revelação terrível — “mas, mesmo no casamento, a relação sexual é pecaminosa.” (Santo Agostinho, quem diria?) “A mulher levava o homem ao pecado”, explicava Lepinski, “não foi assim desde Eva, a tentadora, agressiva e sensual raiz de todo o Mal?” “Toda mulher devia corar ao refletir que é uma mulher”, bradava o padre com desgosto, citando seu teólogo favorito, Clemente de Alexandria. A concupiscência havia

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destruído Sodoma, Gomorra, Egito, Grécia, Roma e os Estados Unidos. (FONSECA, 1990, p. 60)

A ciência sexual esteve essencialmente vinculada a uma moral e nesse sentido utilizava normas médicas como parâmetros de análise. Diante da menor possibilidade de desvio sexual, atribuíase ao indivíduo uma carga de culpa ante aos possíveis reflexos maléficos resultantes de sua conduta na própria vida, na vida das gerações futuras e da humanidade. Enfim, “[...] no final dos prazeres insólitos colocou-se nada menos do que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie.” (FOUCAULT, 1988, p. 54) O que se buscava assim não era a produção da verdade, ao contrário, tencionava-se impedir que ela viesse à tona. Segundo Michel Foucault, o interessante é a ligação que se estabelece hoje entre “[...] sexo, a revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um novo dia e a promessa de uma certa felicidade [...].” (FOUCAULT, 1988, p.13) Nesse momento os prazeres mais singulares eram solicitados a sustentar um discurso de verdade sobre si mesmos, discurso que deveria articular-se não mais àquele que fala do pecado e da salvação, da morte e da eternidade, mas ao que fala do corpo e da vida — o discurso da ciência. (FOUCAULT, 1989, p. 64)

Assuntos como nascimento e morte constituem a natureza humana, assim como a sexualidade. No entanto, o homem evita falar de tudo o que remete à sua natureza humana, portanto, mortal.


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Falar de sexualidade implica falar de vida, cópula, nascimento e morte. O que justifica a humanidade ter mudado seu modo de encarar a morte. É como se no decorrer dos tempos ela fosse perdendo sua onipresença; as pessoas evitam seu espetáculo; o que antes era um acontecimento comum, natural na vida de qualquer indivíduo, passou a ser dissimulado. “Morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo, e seu caráter era altamente exemplar”. (BENJAMIN, 1994, p. 207) ‘Man created death’ é a que mais aparece. Essa frase me fez pensar muito. Creio que ela explica um pouco, o Lima Prado. O homem criou a morte. Porque sabe que a morte existe, o homem criou a arte, um pensamento nietzschiano. O nome do pensador alemão também aparece na balbúrdia de anotações ‘Birth, copulation and death’ é a segunda frase que mais aparece, e esta como a outra, também me fez refletir demoradamente. Nascimento, cópula e morte. Afinal, isto talvez fosse, também, a história da minha vida. De todas as vidas. (FONSECA, 1990, p. 176)

O sujeito encontra-se tão obcecado pela morte violenta, que figura na TV todos os dias pelos noticiários, que deixou de enxergar a morte como um processo natural. Todo indivíduo, ao menos que tenha sua vida ceifada antes, chegará à velhice e encontrará a morte quando não tiver mais forças para continuar sua caminhada. Em A grande arte, o episódio da descoberta de Lima Prado sobre sua origem confronta temas como sexualidade e mor-

te sendo por isso objeto de análise e observação do narrador. Com a morte da avó, Lima Prado herdara o casarão onde ela morava. Todos os dias ele revirava gavetas e caixas, lia cartas antigas e descobria um pouco mais de si. Uma das cartas, porém, continha uma revelação surpreendente. Ele era filho incestuoso de seu pai com a própria irmã; sua tia, que vivera encarcerada em um porão da casa, que uivava como um lobo, que gritava o tempo todo e era “por isso” privada do convívio dos outros. A tia trancafiada era sua mãe. Transtornado com a informação, buscou em um primeiro momento descobrir o paradeiro da mãe. Embora penoso, era preciso encontrá-la, ampará-la, tentar reparar o irreparável, e ele era o único que podia fazê-lo. Encontrou-a internada em um sanatório, vivendo em péssimas condições de saúde e de higiene, muito velha e abandonada. A situação era demasiadamente crítica, exigindo demais dele, obrigando-o a ir ao encontro de seus maiores medos. Caminharam por um longo corredor, passando por várias enfermarias até chegar àquela em que estava Maria Clara. A pobreza tinha um cheiro, a velhice tinha um cheiro, a morte tinha um cheiro — e todos eles pairavam misturados no ar do corredor, como uma espessa neblina rançosa invisível, que parecia umectar a pele do rosto e as narinas de Lima Prado. (FONSECA, p. 272)

Maria Clara fora mantida enclausurada pela mão a vida toda, Laurinda justificativa a prisão da filha alegando sua loucura, um pretexto para esconder a vergo-


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nhosa relação incestuosa que ocorrera dentro da família. Quando Maria Clara envelheceu foi abandonada em um sanatório. Morreria sem que ninguém a visse. A sociedade burguesa manda seus enfermos para morrerem em lugares “apropriados”, como hospitais e sanatórios, evitando assim presenciar a morte. Porém, é na hora da morte que a verdade aparece, o que foi vivido, o que foi perdido, o que valeu a pena ou não. A história de uma vida transforma-se em narrativa, inscreve-se em um tempo. É o momento em que o indivíduo pode transmitir sua história de vida, livre de qualquer intenção oculta. “Quem tem apenas um momento de vida não tem mais nada a dissimular” (FONSECA, 1990, p. 43). Assim o homem afasta-se de seus doentes no momento da morte, como busca afastarse da ideia da velhice, do tempo corroendo-lhe o corpo, limitando-lhe a ação. Segundo Arendt (2008, p. 28), os homens são os únicos mortais que existem, eles diferem dos demais animais que são considerados membros de uma espécie e garantem sua imortalidade pela procriação. Nesse sentido, o que possibilita ao homem perpetuar sua existência são suas obras, o resultado de suas ações. A ação alimenta o homem, sua vida, sua existência. A tarefa e a grandeza potencial dos mortais têm a ver com sua capacidade de produzir coisas — obras e feitos e palavras — que mereceriam pertencer e, pelo menos até certo ponto, pertencem à eternidade, de sorte que, através delas, os mortais possam encontrar o seu lugar num cosmo onde tudo é imortal exceto eles próprios.

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Por sua capacidade de feitos imortais, por poderem deixar atrás de si vestígios imorredouros, os homens, a despeito de sua mortalidade individual, atingem o seu próprio tipo de imortalidade e demonstram sua natureza divina. (ARENDT, 2008, p. 28)

Com o passar do tempo, utilizando sua capacidade criativa, o homem foi aprimorando seus inventos. “Sem dúvida, as máquinas tornaram-se condição tão inalienável de nossa existência como os utensílios e ferramentas o foram em todas as eras anteriores.” (ARENDT, 2008, p. 160) Na modernidade a máquina ficou responsável pelo serviço mais pesado, para que a humanidade gozasse de mais tempo livre. Esse processo de modernização teve um início, mas não aponta um final. O criador tornou-se escravo de sua própria criatura. A cada dia surgem máquinas mais modernas que as anteriores, prometendo desempenhar sua função em menor tempo e com mais qualidade. Formou-se um círculo vicioso: produzir, comprar, consumir e produzir. “Só o esforço de consumir restará das ‘fadigas e penas’ inerentes ao ciclo biológico à cuja força motriz está ligada a vida humana.” (ARENDT, 2008, p. 144) A vida biológica passa necessariamente pelos estágios do labor e do consumo, mas o que tem ocorrido é que todo labor humano tem sido gasto consumindo de forma que sobra pouco tempo para o lazer. O homem precisa mostrar-se produtivo para dar conta da demanda do consumo. Em contrapartida o tempo vago é gasto consumindo. A personagem de Cila, a terceira prostituta assassinada represen-


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ta no romance o indivíduo escravo desse consumismo desenfreado. Ao adentrar no apartamento da moça Mandrake observa a decoração, o excesso de roupas caras e tão bem arrumadas no armário, o perfume do ambiente misturado ao cheiro podre do corpo sobre a cama. Todo aquele luxo já não lhe serviria mais. A sala fora montada por um decorador profissional. Móveis, quadros, luminárias, tapetes criavam um ambiente de luxo moderno que logo estaria obsoleto, quando surgisse a nova moda. “Passatempo de arrivistas em país subdesenvolvido”, eu disso. ‘O quê?’, perguntou Licurgo, em voz baixa. ‘Decoração’, sussurrei de volta. (FONSECA, 1990, p. 52)

O processo de produção e consumo vai se acentuando na medida em que o gosto das pessoas vai sendo tornado mais refinado. A produção procura atender a um público cada vez mais exigente, que não se limita a consumir produtos para atender às suas necessidades básicas mas às suas superficialidades, acarretando o perigo de que Hannah Arendt nos alerta: “Chegará o momento em que nenhum objeto do mundo estará a salvo do consumo e da aniquilação através do consumo.” (2008, p. 146) A mecanização e a artificialização da vida natural resultantes do processo de produção acelerada constituem um risco. Entretanto, o maior risco que acomete a sociedade nesse processo está no fato de que a humanidade, buscando aumentar a produtividade em função da demanda, tem suas forças sugadas pelo esforço da produção, pelo trabalho

repetitivo, reduzindo-lhe a vida a produzir/consumir, diminuindo com isso o tempo dos materiais fornecidos pela natureza nesse mundo: Pois agora já não usamos material tal como a natureza o fornece, matando processos naturais, interrompendo-os ou imitando-os. Em todos estes casos, alteramos e desnaturalizamos a natureza para os nossos próprios fins mundanos, de sorte que o mundo ou o artifício humano, de um lado, e a natureza, de outro, passam a ser duas entidades nitidamente separadas. Hoje, passamos a criar, por assim dizer, isto é, a desencadear processos naturais nossos que jamais teriam ocorrido sem nós; e, ao invés de defender cuidadosamente o artifício humano contas as forças elementares da natureza, mantendo-as o mais possível à parte do mundo feito pelo homem, canalizamos essas forças, juntamente com o seu poder elementar, para o próprio mundo. (ARENDT, 2008, p. 161)

Assim, Mandrake segue seu destino cercado por personagens carentes de posturas que lhes possibilitem julgar tanto suas ações quanto os acontecimentos ao seu redor, consumidas por um vazio existencial como figuras errantes e incapazes de enquadrar-se no padrão ético das virtudes tradicionais: bondade, solidariedade, amor despretensioso. Por outro lado, também não podem viver sem culpa, conduzidas que são pelo mercado de trocas e engolfadas pelas relações sociais alienantes, além de se reprimirem sexualmente ao mesmo tempo em que massacram economicamente o outro.


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O narrador de A grande arte expõe seu ponto de vista frente a um mundo alienado e alienante, percorrendo o caminho rumo ao futuro incerto ele traduz em palavras a angústia do sujeito contemporâneo frente às intercorrências do presente, angústia extraída do âmago do ser e externada pela confissão. A confissão, segundo Foucault, pressupõe um ouvinte que se encontra em uma posição superior de onde conferirá ao exposto censura ou aprovação e, consequentemente a condenação ou liberação do interlocutor. O narrador de A

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grande arte outorga ao leitor uma superioridade buscando liberar-se assim da sua culpa pela inércia frente às barbáries cometidas em um tempo que atribui aos indivíduos — que agem ou que se omitem — a responsabilidade pela situação presente. É ele que tem a incumbência de narrar o hoje, deixando registradas suas impressões sobre esse tempo aos seus contemporâneos e à posteridade pois “A vida não passava de uma luta de vida ou de morte entre as pessoas. Entre os animais. Entre os povos. Entre as forças da natureza”. (FONSECA, 1990, p. 133)

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Posfácio de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: _______. Obras escolhidas. Magia e técnica. Arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (V. 1). FONSECA, Rubem. A grande arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FOUCAULT, Michael. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. LINS, Ronaldo Lima. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. PELEGRINI, Tânia. A imagem e a letra: aspectos da ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Mercado das Letras, 1999. SANTIAGO, Silviano. O narrador pós-moderno. In: _______. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.


A LEITURA NO ACERVO DO PROGRAMA NACIONAL BIBLIOTECA DA ESCOLA – 2008: ENSINO FUNDAMENTAL Célia Regina Delácio FERNANDES1 Maisa Barbosa da Silva CORDEIRO2 RESUMO Este artigo busca analisar as imagens de leitura presentes nas obras literárias infantojuvenis que circulam nas escolas públicas do Brasil, por meio de compras governamentais, realizadas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE/2008. Para tanto, serão levantados e estudados as concepções de leitura, os significados das práticas de leitura, os espaços de leitura, os sujeitos leitores, os mediadores, a circulação dos livros, os modos de ler e as conotações que permeiam as leituras representadas nos títulos selecionados. Assim, a pesquisa pretende contribuir para discutir as possíveis relações entre leitura, literatura infantojuvenil, escola e políticas públicas de leitura. Palavras-Chave: 1) Literatura infantojuvenil; 2) Leitura; 3) PNBE/2008.

ABSTRACT This research analyzes the images found in reading literary works for children and young people circulating in the public schools in Brazil, through government procurement, conducted by the Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE/2008. For this, we collected and studied the concepts of reading, the meanings of reading practices, the areas of reading, subjects readers, the mediators, the circulation of books, the ways of reading and the connotations that permeate the readings represented in the titles selected. Thus, the research aims to contribute to discuss the possible relationship between reading, children’s literature, school and public policies of reading. Keywords: 1) Children’s literature; 2) Reading; 3) PNBE/2008.

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Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista - UNESP (1990), Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Estadual Paulista - UNESP (1996) e Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade de Campinas - UNICAMP (2004). Professora da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: celwal@terra.com.br. 2 Graduanda em Letras com habilitação em Português/Inglês, pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). Bolsista de iniciação científica pelo PIBIC/CNPq da UFGD. E-mail: maysa_bdasilva@yahoo.com.br.


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INTRODUÇÃO A função da escola em capacitar os alunos a lerem os diferentes tipos de textos que circulam socialmente ao final dos nove anos de ensino fundamental é confirmada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN’s de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998). Contudo, nem sempre a escola tem se constituído no locus privilegiado para a existência dos estímulos necessários ao desenvolvimento dessa capacidade. Como alertam os PCN’s de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, p. 29), não se formam bons leitores com materiais empobrecidos, ou alienados às realidades deles: “as pessoas aprendem a gostar de ler quando, de alguma forma, a qualidade de suas vidas melhora com a leitura”. Nesse sentido, para auxiliar as escolas públicas, municipais e estaduais, a transformarem a atitude defensiva dos alunos frente ao texto literário, o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE vem distribuindo acervos de literatura infantojuvenil para aprimoramento das bibliotecas escolares. Como se vê, o PNBE foi criado devido à necessidade de sanar o problema da falta de bons materiais de leitura nas escolas públicas. Em vista disso, os critérios para seleção das obras a cada ano tornam-se mais rigorosos, com o propósito de, a cada preparação de acervos, melhorarem a perspectiva sobre o que vem a ser qualidade literária. Ao pensar o PNBE como um programa que visa à formação de leitores literários, é importante observar como se constituem as representações de leitura nas obras selecionadas, já que podem ser importantes atrativos na conquista de novos públicos. Além disso, as imagens de

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leitura contribuem para desvendar “[...] a capacidade dos recursos linguísticos de concretizar significados ao mesmo tempo em que o disseminam” (WALTY; FONSECA; CURY, 2006, p. 09). Dessa forma, mais dos que meras abordagens sobre o tema, as imagens de leitura, bem elaboradas e condizentes com diferentes tipos de contextos sócio-histórico-culturais, podem dialogar com as diversas realidades dos alunos de escolas públicas. Ao observar essas discussões, pretende-se, neste artigo, analisar as representações de leitura de um corpus de dez obras, resultante do desenvolvimento do plano de trabalho de iniciação científica financiado pelo PIBIC/CNPq e vinculado ao projeto de pesquisa “Imagens de escola e de leitura na literatura infanto-juvenil”, coordenado pela Profa. Dra. Célia Regina Delácio Fernandes. A discussão dessas imagens, tanto no âmbito social como no acadêmico, é fundamental para problematizar e discutir a formação de leitores literários. Ao abordar a constituição das imagens de leitura presentes em um acervo público, a pesquisa objetiva contribuir para a discussão da necessidade e melhoria das políticas públicas de popularização da leitura no Brasil. Para nortear o estudo, foram utilizadas as seguintes categorias para análise: as concepções de leitura; os significados das práticas de leitura; os espaços de leitura; os sujeitos leitores; os mediadores; a circulação dos livros; os modos de ler e as conotações que permeiam as leituras representadas nos títulos selecionados. Dessa maneira, serão utilizados, como base teórica, os estudos de especialistas da área (CECCANTINI, 2008; FERNANDES, 2007; FREIRE, 1982; LAJOLO;


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ZILBERMAN, 1988) e a pesquisa federal Programa Nacional Biblioteca da Escola [PNBE]: leitura e biblioteca nas escolas públicas brasileiras (BRASIL, 2008) realizada pela Secretaria de Educação Básica – SEB – do Ministério da Educação em parceria com uma equipe de pesquisadores ligados à Associação Latino-americana de Pesquisa e Ação Cultural (ALPAC), do Laboratório de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DO CORPUS O plano de trabalho do qual resultou este estudo mapeou as cem obras destinadas às séries/anos iniciais do ensino fundamental selecionadas pelo PNBE/ 2008, dispostas no sítio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE (BRASIL, 2007). As obras foram encontradas nas escolas estaduais e municipais de Dourados/MS. A procura pelos livros foi feita no período de agosto a outubro de 2009 em trinta e cinco escolas, das quais vinte e seis possuíam obras do acervo do PNBE/2008: ensino fundamental. Das cem obras, vinte e nove faziam menção à leitura, das quais foram selecionados dez em que as imagens de leitura foram consideradas mais significativas para compor o corpus a ser utilizado para redação deste artigo. Também foi feita, durante a pesquisa, a análise do edital de convocação para inscrição de obras de literatura no processo de avaliação e seleção para o PNBE/2008 (BRASIL, 2007). Para seleção das obras pelo Programa, foram apresentados, no edital, três critérios básicos: qualidade do

texto, adequação temática e projeto gráfico. Tendo em vista que, quando as crianças ingressam na escola, possuem diferentes níveis de contato com a leitura, como qualidade do texto, as obras deveriam contribuir “para ampliar o repertório lingüístico dos leitores” e “propiciar a fruição estética”, de modo a permitir a leitura individual dos alunos ou a leitura auxiliada pelo professor. Em relação à adequação temática, seriam selecionadas “obras com temáticas diversificadas, de diferentes contextos sociais, culturais e históricos” (BRASIL, 2007, p. 15). O projeto gráfico seria avaliado de acordo com: [...] apresentação de capa criativa e atraente, apropriada ao projeto estético-literário da obra; uso de tipos gráficos, espaçamento e distribuição espacial adequados aos pequenos leitores, distribuição equilibrada de texto e imagens; ilustrações que interagem com o texto, artisticamente elaboradas; uso de papel adequado à leitura e ao manuseio pelas crianças e pertinência das informações complementares (BRASIL, 2007, p. 15).

Para o processo de seleção, o edital definiu três categorias para escolha das obras e composição dos acervos: textos em verso (poemas, quadras, parlendas, cantigas, travalínguas, adivinhas); textos em prosa (pequenas histórias, novelas, contos, crônicas, textos de dramaturgia, memórias, biografias) e livros de imagens e histórias em quadrinhos (dentre os quais se incluem obras clássicas da literatura universal artisticamente adaptadas ao público) (BRASIL, 2007, p. 2). Após a seleção das cem obras foram feitos cinco acer-


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vos distintos, com vinte títulos cada, para envio às escolas de acordo com o número de alunos matriculados. O Programa encaminhou “[...] um acervo para as escolas com até 250 alunos, dois acervos para escolas com 251 a 500 matrículas, três para aquelas com 501 a 750 estudantes, quatro para aquelas com 751 estudantes a mil alunos e cinco acervos para as escolas que possuírem mais de 1.001 alunos matriculados” (MACIEL, 2008, p. 14). Dentro dos três tipos de texto que os acervos deveriam contemplar, foram encontrados, nas obras do corpus de pesquisa deste trabalho, sete títulos do gênero literário pequenas histórias, um do gênero biografia, um do gênero memórias, pertencentes à categoria textos em prosa e um com o gênero poesia, pertencente à categoria textos em verso. Com base nos critérios de seleção utilizados durante as etapas do plano de trabalho, o corpus desta pesquisa ficou delimitado nas seguintes obras: A caligrafia de Dona Sofia (2008) de André Neves, Alice viaja nas histórias (2007) de Gianni Rodari, Conversa pra boy dormir (2007) de Léo Cunha, Dadá e Dazinha (2007) de Luís Aguiar, Felpo Filva (2008) de Eva Furnari, Meu amigo mais antigo (2005) de Ziraldo, O cabelo de Lelê (2007) de Valéria Belém, O rei maluco e a rainha mais ainda (2008) de Fernanda Almeida, Patativa do Assaré: o poeta passarinho (2008) de Fabiano dos Santos e Você viu meu pai por aí? (2007) de Charles Kiefer. AS REPRESENTAÇÕES DE LEITURA NO CORPUS Abordar a formação de leitores nas escolas públicas brasileiras envolve alguns

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elementos fundamentais para que ocorra um despertar primeiro. Oferecer pluralidade literária é a primeira opção, mas nem sempre suficiente para germinar em crianças e adolescentes o gosto pelos livros. A segunda, a priorizada neste trabalho, são as formas de abordagem à temática da leitura em um acervo público. Das obras estudadas, apenas duas focaram a leitura como tema central: Felpo Filva (FURNARI, 2008) e A caligrafia de Dona Sofia (NEVES, 2006). Outras duas obras apresentaram a leitura ligada à temática do preconceito: O cabelo de Lelê (DIAS, 2007), Você viu meu pai por aí? (KIEFER, 2007). Seis das obras focaram a leitura indiretamente: Dadá e Dazinha (AGUIAR, 2007), O Rei maluco e a Rainha mais ainda (ALMEIDA, 2008), Patativa do Assaré: o poeta passarinho (SANTOS, 2008), Conversa pra boy dormir (CUNHA, 2007), Meu tempo e o seu (ZIRALDO, 2005) e Alice viaja nas histórias (RODARI, 2007). De modo predominante, as imagens de leitura encontradas nas obras do corpus apresentam-na de acordo com três concepções: fonte de conhecimento, fonte de prazer, ou, em algumas obras, há a junção das duas concepções, mostrando o livro como algo que proporciona, concomitantemente, saber e distração. Em apenas duas das obras a leitura é apresentada unicamente como fonte de saber: O cabelo de Lelê e Você viu meu pai por aí? Pode-se notar que, nas duas, a leitura está ligada a temática do preconceito racial, inserido no tema transversal de pluralidade cultural. Nota-se que, devido à representação étnica, contribuem para investir na superação da “discriminação e dar a conhecer a riqueza representada pela diversidade etnocultural” (BRASIL,


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1997). A prática de leitura é vista pelos personagens como uma possibilidade de contribuírem para o conhecimento da cultura e etnia à qual eles pertencem. No entanto, há divergência na abordagem dada à etnia. Enquanto que a afro-descendente Lelê (O cabelo de Lelê) sente orgulho da beleza particular de seu povo, não mencionando o preconceito racial, o indígena José (Você viu meu pai por aí?) sente na pele a necessidade de estudar para melhorar as condições de sua aldeia. O cabelo de Lelê, que contribui para “uma visão positivada dos negros e/ou da cultura afro-brasileira” (COSSON; MARTINS, 2008, p. 66), apresenta a personagem Lelê que, com dúvidas sobre o porquê de seu cabelo ser diferente do das outras meninas, vê o livro como algo que possui respostas para todas as dúvidas, o que a faz buscar em um livro “muito sabido” (DIAS, 2008, p. 13) as origens do seu povo: “- De onde vêm tantos cachinhos? A pergunta se mantém [...] Toda pergunta exige resposta. Em um livro vou procurar – pensa Lelê, no canto a cismar (DIAS, 2008, p. 8-10)”. Em contrapartida, o indígena José (Você viu meu pai por aí?) sofre o estigma de um menino branco que, habituado a ver índios apenas por livros ou televisão, se espanta por José usar roupas e saber ler e escrever: “- Não é nada, tu é um índio fajuto: não anda pelado, vê televisão, vai ver que até sabe ler e escrever [...]. - Sei mesmo – respondi, já estudei até a quinta série lá na Reserva e estou pensando em continuar, quero ser deputado” (KIEFER, 2007, p. 24). Observa-se, nesse ponto, a visão estereotipada de muitas crianças em relação aos povos indígenas. Devido à falta de orientação familiar e escolar, para muitas,

os índios continuam vivendo da maneira que propagam a televisão e muitos livros didáticos. Como destaca Marisa Lajolo (2001, p. 80), a partir do século XIX, a literatura “assume a função de denunciar injustiças e reivindicar uma nova ordem social”. Com efeito, constata-se entre os critérios de seleção do PNBE/2008 (BRASIL, 2007), a preocupação em aproximar, por meio dos acervos, as crianças dos diferentes meio sociais. O conhecimento proporcionado pelos livros é associado ao prazer da leitura literária em quatro das obras do corpus. Em Dadá e Dazinha, observa-se a maneira lúdica com a qual o avô-mediador apresenta o mundo dos livros à Dadá, que vê na leitura uma diversão maior do que brincar com a irmã. A leitura ainda oferece a ela a oportunidade de conhecer a cultura do outros povos: Foi aí que Dadá bateu os olhos num livro, na estante do vovô Tranquilo e se estirou na ponta dos pés para conseguir alcançá-lo. – Você não vai ler! Tem que brincar comigo! – Gritou Dazinha, se zangando. Ela morria de inveja da irmã mais velha, que já sabia ler [...] O livro tinha escrito na capa: “Histórias de ciganos”. Foi isso que atraiu Dadá. Daí quando ela abriu uma página, tinha lá uma ilustração linda e colorida de uma bola de cristal (AGUIAR, 2007, p. 48).

A leitura também é apresentada como fonte de saber e distração em O Rei maluco e a Rainha mais ainda. A protagonista Heloísa, uma menina muito formal e aten-


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ta às convenções, está em uma viagem por um reino metafórico onde tudo é diferente do mundo em que vive. O Rei, um dos personagens que apresenta à Heloísa a importância de se divertir, vê a leitura como uma preciosa fonte de conhecimento e distração, já que o livro que ele lê é sobre direção escolar: “Os caminhões partiram, a Rainha com um pé em cada um. O Rei pôs-se a caminho da escola, lendo sossegadamente o livro... Ao chegarem na escola já encontraram o Rei, lendo no portão. O Rei deu um adeusinho à Formiga e à Heloísa e voltou a engolfar-se na leitura” (ALMEIDA, 2008, p. 75). Também no livro Meu tempo e o seu (ZIRALDO, 2005), a leitura é abordada como fonte de conhecimento e prazer. Nesta obra, adultos e crianças conversam sobre as mudanças ocorridas entre as épocas e em uma das histórias, Meu amigo mais antigo, o objeto comparado é o livro. Um personagem, ao contar a história de leitura do pai, menciona a descoberta na biblioteca de livros diferentes dos utilizados na sala de aula: “[...] ele lembrava que achou estranho encontrar um livro infantil, na escola, só para menino ler e não para estudar. Ele achava isso o máximo! E não se esquecia que o livro se chamava Narizinho Arrebitado. Ele queria muito reencontrá-lo para dar para seu filho de presente” (ZIRALDO, 2005, p. 39). Destaca-se, nesta obra, a presença do pai mediador que busca compartilhar um livro que marcou sua história de vida, por meio da obra Narizinho Arrebitado, de Monteiro Lobato, autor pioneiro na literatura infantojuvenil: [...] Já havia bem mais de 20 anos que ele tinha lido aquele livro e nunca

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mais ouviu falar dele. Até que um dia cheguei da escola trazendo um livro que havia pedido emprestado na biblioteca do Grupo Escolar. E o livro se chamava Reinações de Narizinho. Eu perguntei pro meu pai: “não será essa menina aqui sua Narizinho Arrebitado, pai!” Ele me perguntou: “Como é o nome do autor do livro?” Eu disse: “um tal de Monteiro Lobato” (ZIRALDO, 2005, p. 39).

Nas outras cinco narrativas os personagens leem por prazer e adquirem o gosto pela leitura literária influenciados pela própria família, com exceção de Patativa do Assaré (SANTOS, 2008), que aprendeu a gostar de ler na escola. Já em Conversa pra boy dormir a leitura favorece o desenvolvimento de uma ligação forte entre pai e filho. O personagem principal da narrativa, o menino Mateus, de oito anos, mora somente com o pai e vê a mãe apenas uma vez por mês. A leitura é uma das formas que o pai encontra para manter um vínculo que amenize a ausência da mãe. Dentro do tema transversal da pluralidade cultural, observa-se a quebra do preconceito de que somente a mãe tem responsabilidade na educação dos filhos. O pai de Mateus, além de lhe contar histórias todas as noites, antes de dormirem, guarda os livros que marcaram sua história durante a infância e adolescência para dar a ele. O personagem destaca, dentre os livros que guardou para seu filho, a obra O caneco de prata de João Carlos Marinho (1971), que foi marco nos anos setenta devido à “proposta revolucionária” no campo da ficção policial (ZILBERMAN, 2005, p. 112):


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Tive que me inclinar uns dois palmos para frente, esticar o pescoço, apertar os olhos. Ah, sim: O caneco de prata! Incrível, nem me passou pela cabeça. E olha que eu mesmo coloquei o livro na estante [...] Inesquecível, o Caneco. Dali a uns dois anos, decidi, eu ia sugerir a leitura pro Mateus. Com certeza ele ia amar, como eu amei. A não ser que puxasse a mãe: ela sempre achou o livro esquisito demais, maluco, besta (CUNHA, 2007, p. 7).

Também se nota na história um tema essencial a ser tratado na escola, que contribui para a quebra do estereótipo de que, para gostar de ler, é necessário ser intelectual. Mateus, mesmo adorando a leitura, conserva as mesmas brincadeiras que qualquer outro menino de sua idade. A leitura também é tratada como fonte de prazer em Felpo Filva. A história é sobre um coelho com traumas de infância, que evita aparecer em público e, principalmente, relacionar-se com outras pessoas. Felpo é um poeta famoso e, um dia, recebe uma carta de uma fã chamada Charlô, que além de criticar seus poemas, modifica o final de alguns, por achá-los muito tristes. A coelha, mesmo possuindo, assim como Felpo, características físicas que a afastam do que a sociedade impõe como normal, não é deprimida como ele. A leitura, responsável pelo início da amizade dos dois, mostra aos leitores a importância do respeito às diferenças e auxilia em um sério problema enfrentado por crianças e adolescentes, o bullying: “Felpo era assim solitário desde os tempos de criança, quando os coleguinhas da escola zombavam dele porque ele tinha uma orelha mais curta que a outra”

(FURNARI, 2008, p. 8). Nota-se que a única representação docente de leitura é feita por Dona Sofia, a protagonista de A caligrafia de Dona Sofia, a terceira narrativa que traz a leitura como possibilidade de distração. A personagem é uma professora aposentada que adora poesia. Tanto que decorou todas as paredes de sua casa com os poemas de que mais gosta, para que não ficassem escondidos nos livros e ela pudesse relê-los a qualquer momento. Quando não havia mais espaço nas paredes, resolveu fazer cartões poéticos que seu amigo, o carteiro Ananias, passou a distribuir entre os moradores da cidade. A personagem contribui para a transformação da cidade ao distribuir poemas, já que a poesia vai tomando conta da vida de todos, por meio da mediação de Dona Sofia: “ Dona Sofia resgatava dos livros ou da memória os versos que tanto lhe diziam e que iriam, como sementes ao vento, desabrochar em outros corações” (NEVES, 2006, p. 13). Alice, protagonista de Alice viaja nas histórias, a quarta obra que se refere à leitura como fonte de prazer, nunca gostou de ler, até que, em um dia chuvoso, resolveu, devido à falta de alternativa, folhear um livro que encontrou na estante. Logo mergulhou, metaforicamente, no mundo dos contos de fadas que antes não a atraíam, fazendo com que sua antiga opinião sobre os livros mudasse completamente: “Olhou a primeira página sonolenta, mas na segunda página já estava tão atenta como um caracol quando levantava as antenas. Na terceira página, estava tão interessada que escorregou e caiu dentro do livro de cabeça e tudo” (RODARI, 2007, s/p).


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A última obra a abordar a leitura como fonte de prazer é Patativa do Assaré: o poeta passarinho (SANTOS, 2008). O futuro poeta, ao aprender a ler durante o pouco tempo que frequentou a escola, descobre que possui elementos ricos para escrever as histórias e a beleza do sertão, lugar onde o poeta nasceu: “Sentiu-se atraído com a música das palavras. Era poesia de cordel. Folhetos coloridos que versam sobre as coisas feitas pelo homem e pela natureza. Contos maravilhosos, romances, estórias de animais, de heróis, de cidades, de santos, de homens bons e de homens perversos” (SANTOS, 2008, p. 12). Como se vê, as representações de leitura nas obras selecionadas priorizam a relação com o conhecimento e o prazer. Do mesmo modo, evidencia-se que a leitura não é relacionada à obrigatoriedade escolar, mas alia-se a possibilidade de descobertas naturais, associando aprendizado e deleite. Como também constata Ceccantini (2008) em sua tese de doutorado, muitas das representações de leitura não buscam “convencer a todo custo o leitor da importância da leitura e de tornar-se leitor” (CECCANTINI, 2008, p. 82). Fernandes (2007), também demonstra que a literatura infantojuvenil contemporânea busca afastar a leitura da relação de obrigatoriedade com a escola. Observase que a leitura não é mais ligada à “tradição pedagogizante do gênero infanto-juvenil” (CECCANTINI, 2008, p. 81), o que contribui significantemente para a formação do gosto literário no público ao qual o corpus se dirige. As concepções de leitura abordadas nas obras deste corpus convergem com as concepções apresentadas nos depoimentos de alunos de escolas públicas obtidos

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na pesquisa federal Programa Nacional Biblioteca da Escola [PNBE]: leitura e biblioteca nas escolas públicas brasileiras (BRASIL, 2008): “A leitura abre as portas. Ler pra mim é ser cidadão. É ser gente. [...] A leitura leva a marca, também, de atividade prazerosa que permite conhecer outras realidades, mundos diferentes” [itálicos do autor] (BRASIL, 2008, p. 83). Um aspecto importante percebido nas narrativas é a intertextualidade. Em A caligrafia de Dona Sofia (NEVES, 2006), as ilustrações simulam as paredes da casa da professora aposentada decoradas com poemas de vários autores. Furnari (2008), em Felpo Filva, intercala diferentes tipos de texto como cartas, bula de remédio, receita médica, poema, adequando a fonte tipográfica a cada gênero textual. Cunha (2007), em Conversa pra boy dormir, faz referência a outras obras por meio do pai do personagem Mateus, que guarda para o filho alguns livros que foram seus. Além disso, Mateus adquire livros novos por escolha própria: “O Gato Malhado e a andorinha Sinhá eu conseguia distinguir sem esforço. O título vinha em letras enormes e vermelhas, sob o fundo branco de capa dura. Ao lado dele, A bolsa amarela, também fácil de enxergar. E depois [...] O galego da praia. O galego da praia? Que livro seria esse, meu Deus?” (CUNHA, 2007, p. 7). Em Meu tempo e o seu, além da referência a outros livros, são mencionadas também outras artes, como teatro e cinema, contribuindo para o que menciona o edital (BRASIL, 2007, p. 14) sobre a necessidade da interação dos estudantes no mundo por meio de múltiplas linguagens: “O que eu aprendi disso tudo é que uma coisa puxa a outra: o teatro, os livros e o


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cinema. Acho que também pode acontecer o contrário, de uma pessoa querer ler um livro por causa de um filme que viu, né? Foi isso que aconteceu comigo quando eu assisti Menino Maluquinho na telona” (ZIRALDO, 2005, p. 41). Nas obras que compõem o corpus observa-se a presença significativa e variada de mediadores de leitura em quatro narrativas. Em Dadá e Dazinha, era o avô que apresentava às crianças o mundo dos livros. Em Conversa pra boy dormir, o pai, responsável pela educação do filho é quem introduz o menino na leitura. Em A caligrafia de Dona Sofia, a professora aposentada e o carteiro distribuem poemas aos habitantes da cidade. Na obra Meu tempo e o seu são mencionados os pais como mediadores de leitura. Sabe-se que para se formar leitores, é fundamental o envolvimento da família. Além de adquirirem os livros e incentivarem os pequenos leitores a frequentarem bibliotecas, é importante que os pais também possuam o hábito de ler. Em pesquisa federal sobre a utilização do PNBE, constatou-se que crianças cujas mães ou outras pessoas da família estudam, a leitura é mais valorizada. Além disso, a mesma pesquisa observou que: “a falta de hábito de leitura das famílias; a baixa renda familiar que impede o estabelecimento de manter ambientes propícios para o estudo; e a falta de acesso a todo tipo de material impresso” (BRASIL, 2008, p. 81) dificultam seriamente o rendimento escolar. Quanto aos sujeitos-leitores, sete são crianças. Todas leem por prazer e por escolha própria, e algumas, como já mencionado, com a mediação dos adultos. Em três obras são encontrados leitores adultos: O Rei (ALMEIDA, 2008), Dona Sofia (NE-

VES, 2006) e o coelho escritor Felpo Filva (FURNARI, 2008). Como a maioria dos sujeitos-leitores representados são crianças que gostam de ler, o corpus contribui para mudar a realidade dos estudantes, já que muitos diretores de escola afirmaram que os alunos não gostavam de ler: “[...] um diretor disse que havia estudantes que gostavam de ler, mas eram poucos, e que a maioria lia mais em função de atividades de pesquisa, principalmente na área de humanas, do que por ter o hábito de leitura” (BRASIL, 2008, p. 90). Nas narrativas, todos os sujeitos-leitores têm fácil acesso aos livros. Com exceção de José (KIEFER, 2007), que tem dificuldades para estudar na aldeia onde vive e Patativa do Assaré (SANTOS, 2008), que pôde estudar apenas as séries iniciais, o que não o impediu de se tornar um poeta reconhecido nacionalmente. Nota-se que a representação de condição financeira propícia à aquisição de obras de literatura diverge dos resultados da pesquisa (BRASIL, 2008) sobre a utilização das obras do PNBE nas escolas. Para os estudantes que mencionaram gostar de ler, esbarram no problema do acesso aos livros. Mesmo que haja os livros na biblioteca da escola, notase a ausência de um profissional qualificado: “Eu adoro ler, gosto mesmo. [...] Li todos os livros que ganhei na escola, mas aqui realmente, que já foi uma boa escola, é difícil este acesso a todos nós. [...] Também não tem ninguém para nos ajudar a procurar os livros que precisamos” [itálicos do autor] (BRASIL, 2008, p. 91). Na análise dos modos e lugares de realização das leituras, em seis narrativas a leitura acontece na casa dos personagens, em lugares agradáveis, como o quarto ou a sala: “Gostei tanto da história que


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minha mãe comprou o livro [...] não dormia enquanto alguém não lesse a história para mim. Depois que fui alfabetizada, minha mãe sentava-se na cama comigo e eu lia a mesma história, encantada e sem nunca enjoar” (ZIRALDO, 2005, p. 41). Apenas quatro obras relacionam a leitura ao ambiente escolar, mas apenas Meu tempo e o seu faz referência à obrigatoriedade ou ao didatismo, quando o personagem descobre o tipo de leitura “só para menino ler e não para estudar” (ZIRALDO, 2005, p. 39). As outras duas obras que se referem à leitura na escola são O Rei maluco e a Rainha mais ainda e A caligrafia de Dona Sofia. Nas duas também há a representação de leitura na rua, ao ar livre: Pensando nisso, num dia de serviço, seu Ananias escutou seu Gilberto recitando alguns versos na praça da cidade; no quintal de sua casa, seu Manuel cochilava com um livro de poemas no colo. Viu também as irmãs Lia e Cléa mostrando os belos cartões recebidos de Dona Sofia. Naquele momento, os pensamentos de Seu Ananias se iluminaram, tudo clareou em sua mente. Na rua, na praça, em casa, todos liam poesia (NEVES, 2006, p. 28).

Os lugares e modos de ler citados pelos estudantes leitores entrevistados na pesquisa federal Programa Nacional Biblioteca da Escola [PNBE]: leitura e biblioteca nas escolas públicas brasileiras (BRASIL, 2008) convergem com as representadas nas obras do corpus. Os estudantes mencionaram, ainda, que os lugares que escolhem precisam ser silenciosos. Isso possivelmente associa-se ao fato de que eles buscam ler

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em ambientes que se afastem do contexto escolar: “Os estudantes contaram como gostavam de fazer quando se dispunham a ler: uns liam no quarto, na sala, outros na varanda, no terraço, e até mesmo no banheiro, mas sempre em espaços silenciosos” [itálicos do autor] (BRASIL, 2008, p. 109). É fato que a leitura literária envolve sempre a troca de sentido. Dessa maneira, mesmo a leitura solitária engloba não apenas a troca entre escritor e leitor, mas também entre as sociedades nas quais cada um se insere, “pois os sentidos são resultados de compartilhamentos de visões do mundo entre os homens no tempo e no espaço” (COSSON, 2006, p. 27). O ato de ler possibilita, então, a abertura de uma porta entre o mundo de quem escreve e o mundo de quem lê. Os leitores precisam ser estimulados a compreenderem que ler é abrir as portas de seu mundo ao mundo do outro, mesmo quando está lendo individualmente. Como destaca Tânia Carvalhal (1998), o leitor também é o autor, pois a interpretação feita por ele é algo particular e decorrente de sua construção de mundo, tanto que o receptor passou a ser considerado como “determinante no processo interliterário” (CARVALHAL, 1998, p. 72). Na obra Patativa do Assaré: o poeta passarinho é mencionada a leitura escolar, mas não associada à obrigatoriedade. Por meio dela, Patativa descobre a beleza das palavras, o que o motiva a fazer poesias com elementos do próprio sertão. A obra valoriza a poesia de cordel, citando trechos com as poesias do próprio Patativa do Assaré. Apresentar a leitura literária desvinculada do contexto educacional é necessário porque, como apontam Marisa Lajolo


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e Regina Zilberman (1998), “[...] raras vezes as leituras que produzem prazer circulam em ambiente sancionado, como a escola” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 219). Como ainda mostram as autoras, as “leituras clandestinas” – desvinculadas da escola –, “atendem às exigências da fantasia, pela qual, em acumulação infinita, articulam-se a outras de ficção ou as conhecidas por meio da transmissão oral, como as ouvidas de contadoras” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1998, p. 227). Como exemplo atual de “leitura clandestina”, apresentada por Lajolo e Zilberman (1998), pode-se mencionar as trilogias Harry Poter, da escocesa J.K. Rolling e Crepúsculo, da americana Stephenie Meyer, que independente da influência escolar, constituíram-se em verdadeiras febres entre crianças e adultos. Como destaca Sissa Jacoby (2003, p. 196), “nunca tantas crianças leram e releram com tanto entusiasmo tantas páginas em tão pouco tempo”. Em duas obras do corpus referem-se a gêneros de leitura estigmatizados. A primeira, Alice viaja nas histórias, traz a presença dos contos de fadas. Em Patativa do Assaré: o poeta passarinho encontra-se a poesia de cordel. Infelizmente, alguns estudiosos insistem em inferiorizar alguns gêneros literários. Esses profissionais, como menciona Lajolo (2001, p. 8) “dão, aulas, escrevem livros imensos, dão entrevista aos jornais”. Para Márcia Abreu (1999, s/p), “O prestígio social destes profissionais faz com que sua opinião seja tida como a única verdadeira, fazendo com que as pessoas sintam-se diminuídas por não lerem os livros certos, da maneira certa”. Isso sem dúvida acaba afastando os alunos da lei-

tura, que acabam tomando como modelo de boa literatura apenas os livros clássicos apontados pelos professores, que muitas vezes não despertam interesse em um leitor iniciante. Observa-se nas obras um número convergente entre leitores femininos e masculinos, o que contribui para a formação do gosto literário também nos meninos, que muitas vezes possuem preconceito em relação à leitura. Como aponta Ceccantini (2008), na nossa sociedade, geralmente o número de leitoras supera o de leitores. Este fato também foi constatado em pesquisa (BRASIL, 2008). Segundo bibliotecários de escolas públicas, as meninas fazem empréstimos de livros com mais frequência que os meninos. Nas obras do corpus, há cinco personagensleitores femininos e cinco masculinos. Também se percebe que cinco das obras trazem a presença de mediadores masculinos: “Havia, porém, duas coisas que meus colegas de escola não sabiam. A primeira é que eu adorava livros [...] A outra coisa é que meu pai também tinha tido livros que marcaram muito sua vida de menino” (ZIRALDO, 2005, p. 39). Apesar da representação plural de leituras nas obras do corpus, observa-se que a maioria denota leitores favorecidos socialmente. A pesquisa de campo sobre o PNBE apresenta a opinião de um gestor escolar do Pará mencionando que os acervos deveriam privilegiar as literaturas regionais: “O que é que predomina? São os escritores que nós temos no Brasil. Que nós sabemos onde eles estão mais concentrados: sul e sudeste, não é? Aqui em Belém nós também temos escritores, e acho que poderiam ser incluídos nesse projeto” [itálicos do autor ] (BRASIL, 2008, p. 117). Com


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efeito, constatou-se, neste artigo, que as imagens de leitura poucas vezes foram focalizadas com aspectos de variados contextos culturais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Aproximar o leitor da leitura literária é fundamental pelo fato de que a literatura condicionada pela escola deve explorar a fruição que textos de outros gêneros geralmente não proporcionam. Como sugere Cosson (2006, p. 27), compreender o discurso de um texto literário é mais complexo que o simples ato de decodificar algo escrito. Desse modo, as representações de leitura encontradas no corpus favorecem a pluralidade de representações, o que contribui para o desenvolvimento do gosto literário. Por meio da análise, que se dividiu em categorias específicas em relação às diversas possibilidades de referência à leitura, constatou-se que as imagens de leitura foram alvo de elaborações complexas e provocadoras, afastando-se completamente da tradição pedagogizante. Como a maioria das leituras era realizada em casa, sob a mediação familiar, é um passo importante para transformar a visão de que a leitura literária é algo relacionado somente com o intuito do professor avaliar os alunos. As obras do corpus privilegiaram a variedade de tipos de leitura, tipos de sujeitos-leitores, mediadores, locais de leitura e modos de ler, favorecendo a descoberta da leitura como algo enriquecedor e prazeroso, contribuindo com o que sugerem os PCN’s (BRASIL, 1998) para a ideia de que a leitura ofertada aos alunos deve contribuir com a qualidade de suas vidas.

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Em contrapartida, foi notado que, diferentemente do que sugere o edital de convocação para inscrição de obras de literatura no processo de avaliação e seleção para o PNBE 2008 para o fato de que as obras selecionadas favoreceriam a representação de diferentes realidades (BRASIL, 2007, p. 15), foram encontradas referências à leitura feita apenas por pessoas que possuíam fácil acesso aos livros, o que diverge da realidade da maioria dos estudantes de escolas públicas. As únicas obras do corpus que apresentaram representações opostas foram Patativa do Assaré: o poeta passarinho que aborda a história de um poeta de origem pobre nascido no ano de 1909 e Você viu meu pai por aí? que narra o preconceito sofrido por um menino indígena. Um ponto extremamente valioso observado nas narrativas foi a presença de importantes temas transversais ligados à leitura, como a pluralidade cultural. Os temas, trabalhados às vezes de forma direta e às vezes simbolicamente, são essenciais para a construção psicológica nos leitores para a necessidade de novas e melhores relações sociais. De modo geral, as narrativas selecionadas apresentaram referências à leitura essenciais para a construção do gosto literário, principalmente devido à variedade de temáticas relacionadas à leitura. No entanto, as narrativas não privilegiaram a representação de sujeitos leitores de modo a aproximarem as crianças das diferentes realidades, dificultando que os alunos de escolas públicas, aos quais se destinam os acervos do PNBE, encontrem-se ou percebam a presença, nas narrativas, a valorização dos diferentes meios sócio-culturais.


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ROLAND BARTHES: EM BUSCA DA TEXTUALIDADE PERDIDA1 Neurivaldo Campos Pedroso Junior2

RESUMO O artigo pretende discutir, com base no projeto teórico-crítico de Roland Barthes, os conceitos de textualidade, intertextualidade e transtextualidade. Procuraremos demonstrar que em Barthes os conceitos de Texto, Espaço e Imagem estão intimamente relacionados de forma a abrangem não apenas a Literatura, mas, também, as demais artes. Palavras-chave: Roland Barthes – Intertextualidade – Transtextualidade.

ABSTRACT The article intends to discuss, based on the theoretical and critical Project of Roland Barthes, the concepts of Textuality, Intertextuality and Transtextuality. We will try to demonstrate that in Barthes the concepts of Text, Space and Image are intimately related, that covers not only the Literature, but also the Other Arts. Keywords: Roland Barthes – Intertextuality – Transtextuality.

Para Maria Luiza Berwanger da Silva, com gratidão

O texto, em sua totalidade, é comparável a um céu, plano e profundo ao mesmo tempo, liso, sem bordos e sem referências; tal como o áugure, recortando com a ponta do bastão um ân-

gulo fictício no céu para aí interrogar, segundo certos princípios, a vôo dos pássaros, o comentador traça ao longo do texto zonas de leitura para nelas obervar a migração dos sentidos, o afloramento dos códigos, a passagem das citações. Roland Barthes

1 Este texto fora produzido, inicialmente, para a disciplina Tendências teórico-críticas nas Literaturas Estrangeiras Modernas: Roland Barthes – intertextualidade e transtextualidade, no Doutorado em Literatura Comparada da UFRGS, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Luiza Berwanger da Silva. O texto sai agora com algumas modificações. 2 Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Co-tutela com a Universidade de Barcelona (UB). Assessor Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação de Dourados/MS.


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Crítica Literária Latino-Americana, e por conseguinte a Brasileira, acostumou-se, desde seus primórdios, a importar da Europa modelos teóricos e metodológicos. Assim, acostumamo-nos ao contrabando – por vezes salutar de teorias como as da multiplicidade, da desconstrução, da reversão de valores, da descontuinidade e do pensamento rizomático enunciadas por Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Féliz Guattari, só para citar alguns nomes. Nessa rede de importações, acaba-se, muitas vezes, por tomar um desses teóricos ou críticos e lêlos, relê-los e translê-los sob um único aspecto de suas reflexões e críticas. Tal prática, sob nosso ponto de vista, é redutora e contra-produtiva, uma vez que desconsidera ou faz vistas grossas a outras vertentes do pensamento teórico-crítico dos autores “importados”. Assim, Jacques Derrida tem, sempre, seu nome associado à Desconstrução, enquanto que Gilles Deleuze e Félix Guattari são vistos, quase que exclusivamente, pelo viés da teoria rizomática. Não pretendemos aqui desconsiderar ou invalidar tais conjugações, desde que elas compactuem com as outras possibilidades de leituras provenientes da reflexão dos autores “importados”. Ao retomamos essa observação acerca da Crítica Latino-americana e Brasileira é porque Roland Barthes, um autor que nos é muito caro, tem, também, sofrido com essa atitude de tentar “engeçá-lo” em único modelo, reduzindo seu projeto teórico-crítico a um ou outro aspecto. Assim, Barthes tem recebido os mais diferentes rótulos, dentre os quais podemos citar o de mitólogo, “novo crítico”, semiólogo e escritor. Tais rótulos, na maioria das vezes, pretendem dar conta de

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um ângulo da reflexão barthesiana. Nesse sentido, é significativa a advertência que nos faz Leyla Perrone-Moisés, grande divulgadora da obra barthesiana no Brasil, pois para a crítica e professora: A teoria barthesiana é, portanto, uma teoria mutante, que evolui e se transforma ao longo dos anos. Por isso é impróprio chamar Barthes de crítico marxista sociológico ou de semiólogo, porque essas denominações corresponderiam apenas a determinadas fases de sua carreira (PERRONE-MOISÉS, 2004, p. 88)

Harmonizamo-nos com o pensamento de Leyla Perrone-Moisés no que diz respeito à tentativa de se enquadrar Roland Barthes dentro de uma ou outra corrente teórico-crítica, porque, uma análise mais atenta da obra barthesiana nos permitirá afirmar que Barthes pode sim receber “rótulos”, desde que estes não sejam excludentes. Assim, o que propomos neste artigo é, na verdade, uma análise mais detalhada de um ponto suscitado pela leitura da reflexão barthesiana - a questão do texto - mas, nós reconhecemos que essa mesma questão abre-se a outras tão díspares e diversas, que tentar abordá-las nos limites de um artigo seria um projeto utópico, senão, impossível. Em Barthes ou para Barthes, a reflexão acerca da noção de Texto é significativa, na medida em que, a partir dela, podese partir para outras reflexões das quais a Teoria e a Crítica Literárias - mas só elas têm se ocupado, como, por exemplo, a questão do espaço, da imagem, as posições canônicas ocupadas por Autor e Leitor e, last but not least, a própria questão


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da prática produtora desses Textos. Logo, poderíamos afirmar que a noção de Texto com a qual Barthes opera, dotada de uma flexibilidade e mobilidade, é sustentada, sobretudo, pela noção de Espaço e de Imagem, pensamos, inclusive, que em Barthes, esses três conceitos são indissociáveis: Texto - Espaço - Imagem. Dentro dessa pauta, podemos iniciar nossa reflexão, valendo-nos do conceito de Texto que Barthes propõe no verbete Texte, escrito sob encomenda para a Encyclopaedia Universalis, onde lemos, Le texte est une productivité. Cela ne veut pas dire qu’il est le produit d’un travail (tel que pouvaient l’exiger la technique de la narration et la maîtrise du style), mais le théâtre même d’une production où se rejoignent le producteur du texte et son lecteur: le texte “travaile”, à chaque moment et de quelque côte qu’on le prenne; même ecrit (fixé), il n’arrête pas de travailler, d’entretenir un processus de production (BARTHES, 1996, p.998).

O Texto abandona seu caráter de “produto” que traz implícita a ideia de algo pronto e acabado e torna-se uma “produtividade”, cujo caráter de incessante e permante trabalho é assinalado por Barthes. Mas, devemos ressaltar que, nessa operação, o “produtor” do texto e o leitor trabalham o Texto da mesma forma que o Texto os trabalha. Ou, podemos afirmar, mais ainda, que é no incessante processo de trabalho mútuo que se produz o Texto. Em O prazer do texto, Barthes desenvolve mais amplamente a ideia de incessante e contínuo trabalho de produção textual no qual estão imersos o

autor, o leitor e o próprio texto, ao registrar que Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamemto perpétuo; perdido neste tecido - nessa textura - o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia (BARTHES, 1999, p.82-83).

A imagem utlizada por Barthes para abordar o conceito de Texto, ou seja, a de Texto enquanto Tecido, já havia sido utilizada por Jacques Derrida, quando, em A farmácia de Platão, observará: Um Texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. (...) A dissimulação da textura pode, em todo caso, levar séculos para desfazer seu pano. O pano envolvendo o pano. Séculos para desfazer o pano. Reconstituindoo, também, como organismo. Regenerando indefinidamente seu próprio tecido por detrás do rastro cortante, a decisão de cada leitura (DERRIDA,2005, p.7).

Assim, o que vemos, tanto em Barthes quanto em Derrida, é que a existência do Texto está condicionada a um trabalho e a


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uma produção, e estes implicam, então, a existência de um sujeito que sustentará tais práticas. Mas, se até então as luzes tinham se centrado apenas no Autor enquanto o sujeito produtor do Texto, vemos, agora, que o leitor é também trazido para o palco da produção e divide com o autor a tarefa de tecer, destercer e retecer o tecido-pano do qual o Texto é formado, asssim, “na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não um sujeito e um objeto” (BARTHES, 1999, p.24). Nesse sentido, reconhecemos, com Paulo Nolasco dos Santos, que Tem razão o teórico da ficção ao dizer que o leitor de ficção é também um artista; que o seu esforço prolongado da recriação da forma de ficção compete com o do romancista. Daí a permanência de uma situação paradoxal que se mantém como tensão natural do leitor - o leitor crítico - que também é romancista (SANTOS, 2006, p.189)

Retomamos, aqui, a reflexão com a qual iniciamos nosso artigo, ou seja, a atitude de se ler determinados autores tendo em vista apenas um ou outro aspecto de suas obras. É o que tem acontecido, muito comumente, com Barthes e a atitude deste crítico de trazer para o plano da reflexão um sujeito que até então era esquecido pela teoria e crítica literárias o leitor - e decretar, por conseguinte, a “morte do autor”, entendido como o “dono” ou o “proprietário” do Texto. Assim, Barthes é visto, muitas vezes, apenas como aquele que decretou a morte do

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autor e, com isso, a famosa afirmação “o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor” (BARTHES, 2004, p.64) é tomada fora do contexto da reflexão barthesiana e alardeada aos quatro cantos, sem se levar em consideração o desenvolvimento dessa questão, sobretudo se considerarmos que, em Sade, Fourier, Loyola, Barthes afirmará: O prazer do Texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições (história e ensino de literatura, da filosofia, do discurso da Igreja); nem mesmo o herói de uma biografia ele é. O autor que vem de seu texto e vai para dentro de nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com mais certeza do que na epopéia de um destino; não é uma pessoa (civil, moral), é um corpo (BARTHES, 2005, p. VXI).

É por isso, que podemos afirmar que em Barthes não há uma teoria tal e qual. Mas, o que há, na verdade, são teorias. Assim, no plural. Em Barthes, há Teorias das singulariadades, dos valores e de suas transmutações. As teorias vão se formando da observação atenta, suavemente interessada, amorosa. E, portanto, livre da banal empiria. Nascem as teorias quase de um nada; são percepções sutis que se enformam subitamente, que assumem sua força,


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sem que intervenha nenhum conceito duro e prévio; apenas lampejos: aceitação da Mathesis de que se faz todo saber. E esse estado, essa sabedoria, vem de um trabalho (SANTOS, 1999, p. 95).

Diante disso, acreditamos ser mais produtivo se, ao nos atermos à discussão acerca das questões sobre autor, leitor e texto, nos concentrarmos em um ponto que tem sido deixado à margem mas que se apresenta como fudamental: o processo de produção textual, ou, ainda, nas palavras de Edgar Nolasco, O próprio conceito de texto muda sensivelmente porque, cada vez mais, falar de texto é buscar o processo, o contexto e a situação enunciativa em que ele se constrói enquanto tal, o que nos permite observar que o lugar, ou posição, do autor (a até mesmo do leitor) está sendo repensado (NOLASCO, 2001, p.29)

Mas aqui, devemos fazer uma ressalva e registrar que em Barthes a noção de texto não está circunscrita apenas à palavra escrita, ou seja, o teórico francês amplia de tal forma o noção de Texto que ela passa a acolher as diferentes manifestações artísticas (fazemos, sobretudo, alusão aos escritos recolhidos em O óbvio e o obtuso, que passam pela Literatura, pela Música, pelo Teatro e pela Escultura) e, para além disso, o Mundo torna-se um Texto, cujo processo de escrituração conta com a nossa participação, seja como “autores” seja como “leitores”. Recorremos, então, à passagem abaixo, pois acreditamos que ela pode ser tomada como um exemplo do

pensamento barthesiano acerca da abragência do conceito de Texto. E mais: se literatura e pintura deixarem de ser consideradas em uma reflexão hierárquica, uma sendo o retrovisor da outra, de que servirá mantê-las por mais tempo como objetos simultaneamente solidários e separados, em uma palavra: classificados? Por que não anular sua diferença (puramente substancial?) Por que não renunciar à pluralidade das “artes”, para melhor afirmar a pluralidade dos “textos”? (BARTHES, 1992, p.87).

As palavras de Roland Barthes citadas acima permitem-nos, então, obsevar que o trabalho do escritor e do pintor ao longo do processo de “escrita” de suas obras podem ser tomados como análogos. Assim, Barthes, em “Durante muito tempo, fui domir cedo”, volta-se a Marcel Proust para exemplificar que o escritor moderno (e aqui estendemos a reflexão a todo artista moderno, seja ele escritor, pintor, escultor ou músico) é tomado de uma hesitação com relação à escrita e, com isso, com relação à forma ou ao gênero por meio dos quais sua escrita deve “materializar-se”, criando, dessa forma, uma indecisão dos gêneros e das formas. Tal atitude, longe de se apresentar como negativa é, ao contrário, de uma produtividade exemplar, na medida em que irá proporcionar aquilo a que chamaríamos de hibridação textual, ou seja, os Textos poderão se mover entre os diferentes gêneros, discursos ou artes, criando, assim, uma terceira forma ou uma terceira margem, originada, não apenas das convergências de formas tão diversas mas, sobretudo e


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Roland Barthes (1915-1980)

principalmente, a partir das divergências entre elas, pois, (...) abalada a crono-logia, fragmentos intelectuais ou narrativos, vão formar uma sequência que se submete à lei ancestral da Narrativa ou do Raciocínio, e essa sequência produzirá, sem forçar, a terceira forma. (...) A estrutura dessa obra será, falando exatamente, rapsódica, isto é (etmologicamente), costurada; é aliás uma metáfora proustiana: a obra se faz como um vestido; o texto implca uma arte original, como é a da costureira: peças, pedaços são submetidos a cruzamentos, a arranjos, a ajustes: um vestido não é um patchwork, como tampouco o é a Busca (BARTHES, 2004, p.353).

Vemos, assim, que a prática de escrita é sustentada por um sujeito que, destituído de seu lugar de poder e, diante da multiplicidade de gêneros (e aqui incluímos os diferentes discursos e as diversas formas de manifestação artística), tal qual um Don Juan, é seduzido por todos ao mesmo tempo. E agora caímos no terre-

no da hesitação, da errância e, também, da dúvida. A dúvida de Proust, a dúvida de Barthes, a dúvida de Cézanne, enfim, de todo artista moderno. Nesse sentido, o ensaio “A dúvida de Cézanne”, de Maurice Merleau-Ponty é de grande relevância, já que acena para a questão da dúvida do artista como aquilo que impulsiona à produção e à produtividade. Além disso, Merleau-Ponty promove, com base na obra de Cézanne, discussões pertinentes acerca da Arte, em geral. Dentre esses posicionametos, harmonizamo-nos com a reflexão merleaupontiniana, quando o autor, ao discorrer sobre o estatuto da arte, registrará que, A arte não é nem uma imitação, nem, por outro lado, uma fabricação segundo os desejos do instinto ou do bom gosto. É uma operação de expressão. (...)Assim como a palavra não se assemelha ao que ela designa, a pintura não é um trompe-l’oeil, uma ilusão de realidade; Cézanne, segundo suas próprias palavras, “escreve como pintor o que ainda não está pintado e faz disso pintura absolutamente”. (...) O pintor


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retoma e converte justamente em objeto visível o que sem ele permanece encerrado na vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. Para um pintor como esse, uma única emoção é possível: o sentimento de estranheza, e um único lirismo: o da existência sempre recomeçada (MERLEAUPONTY, 2004, p.133).

Merleau-Ponty proporciona, como vimos acima, a analogia entre o ato de escrever e o ato de pintar. Ou melhor, com base nas observações de Cézanne, Merleau-Ponty afina-se, em muito, à noção barthesiana de Texto, não mais cirscunscrito à palavra escrita e à Literatura, mas que englobe também as outras formas de expressão humana. Diante da tentativa de expressar o que capta no mundo, Um pintor como Cézanne, um artista, um filósofo devem não apenas criar e exprimir uma idéia, mas ainda despertar experiências que a enraizarão nas outras consciências. Se a obra é bem sucedida, ela tem o estranho poder de ensinar-se ela mesma. Seguindo as indicações do quadro ou do livro, fazendo comparações, esbarrando de um lado e de outro, guiados pela clareza confusa de um estilo, o leitor ou o espectador acabam por redescobrir o que lhes quiseram comunicar (MERLEAU-PONTY, 2004, p.135)

Assim, a expressão da ideia ou de uma emoção pode estar estendida tanto na superfície da tela quanto a superfície da

página. Nesse sentido, podemos pensar, com Barthes, uma vez mais, para quem Toda descrição literária é uma visão. Dir-se-ia que o enunciador, antes de escrever, põe-se à janela, não tanto para ver bem, mas para construir o que vê através da própria moldura: o marco da janela faz o espetáculo. (...) para falar do “real”, é necessário que o escritor, por um rito inicial, transforme inicialmente esse real em objeto pintado (emoldurado); após o que, pode despendurar esse objeto, tirá-lo de sua pintura: em uma palavra: despintá-lo (despintar é fazer cair o tapete dos códigos, é ir, não de uma linguagem a um referente, mas de um código a outro código) (BARTHES, 1992, p.85)

A afirmação acima só vem a corroborar a ideia que vimos desenvolvendo, a saber, a semelhança entre a prática de “escrita” de um livro e a prática de “escrita” de um quadro, uma vez que, o pintor pode pensar como o escritor, da mesma forma que o escritor pode pensar como o pintor. E esse fato colhemos tanto das observações de Maurice Merleau-Ponty quanto de Roland Barthes. Todavia, a reflexão acerca dessa noção de Texto - ampla - e que serve tanto à Literatura quanto à Pintura traz para o palco uma outra questão que, sob nosso ponto de vista, sustenta o conceito barthesiano de Texto, a questão da Imagem. Em A Câmara clara, por exemplo, Barthes alude à definição para imagem, proposta por Maurice Blanchot (...) a essência da imagem é estar toda fora, sem intimidade, e no entanto


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mais inacessível e misteriosa do que o pensamento de foro íntimo; sem significação, mas invocando a profundidade de todo sentido possível; irrevelada e todavia manifesta, tendo esse presença-ausência que faz a atração e o fascínio das Sereias (BLANCHOT apud BARTHES, 1984).

Assim, a presença que oculta e a ausência que revela, configuração da imagem colhida por Barthes de Blanchot remete-nos a um outro texto, de Blanchot, novamente, quando, ao discorrer sobre o ato de escrever (e pensamos aqui na escrita de Textos de natureza as mais diversas ou de diversos códigos, para usada acima), o teórico francês observará que escrever (…) não é mostrar ou fazer aparecer, mas é, pelo contrário, testemunhar pela inelutabilidade de uma desaparição das coisas e de si no que se escreve e, portanto, valer-se de todas as maneiras possíveis para se desprender, sob a forma de um inexplicável distanciamento (BLANCHOT apud CASA NOVA, 2002, p.71)

Escrever concecta-se indissoluvelmente à vida: sua escrita. Diante disso, os escritores, os pintores, os músicos, enfim, aqueles que ousam a escrever o Texto (na concepção barthesiana), (...) podem tornar sua escrita uma infinda passagem pelos mesmos pontos, fazendo-os grafias da dor, feridas da letra ou, ao contrário, percorrer uma travessia ou ser pela letra atravessados, construindo uma via entre dois

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pontos. Tudo parece depender, afinal, da força da letra que, inscrita no sujeito, é capaz de fazê-lo, um dia, escrever o mundo, potencializando-se em distintas forças: estilo, escrita, representação (CASTELLO BRANCO & BRANDÃO, 2000, p.7)

A página apresenta-se, dessa forma, como o espaço no qual os escritores poderão mover-se, com o propósito de ligar esses pontos, dos quais nos falam Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão. É por isso que observamos, anteriormente, que a noção de Texto, a partir de Barthes, é sustentada, também, pela noção de espaço, pois, “un paysage redéfinit son espace de façon d’autant plus totale qu’il bouge d’un angle plus faible” (GUIRAUD, 1980, p. 170), mas, aqui devemos entender que o espaço “est alors, non plus le milieu à trois dimensions dans lequel l’homme vit et se déplace, mais l’événement par lequel une oeuvre accomplie outrepasse ses dimensions physiques, accède au rang de l’ouevre d’art” (GUIRAUD, 1996, p.170). A página torna-se paisagem, que os escritores vão configurando, des-configurando e re-configurando. Ora, essa prática diante da página não nos remete, uma vez mais, a Barthes e sua imagem do Texto enquanto Tecido, que nós devemos tecer e destecer? Com isso, podemos entender a composição da paisagem da tela ou da página, (...) enquanto produto do deslocamento incessante ao horizonte infinito (da textualidade), paralelamente, a paisagem da transgressão identifica nas “parages” a expressão mais legitima


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do processo de criação literária, modulado pelo ritmo duplo de tecer e destecer. Em essência, trata-se de perceber, na intimidade do artesanato poético, o fio condutor do espaço cujo traço da oscilação, do espaço que hesita entre o fazer e o desfazer, sulca a paisagem intervalar mas infinita, paisagem que concretiza o sonho baudelairriano de “vaste” (SILVA, 1998, p. 27)

Com base na reflexão de Maria Luiza B. da Silva, podemos pensar a página enquanto paisagem, mas podemos também, pensar na página, com a qual os escritores trabalharão, como um papel em branco, (…) ali, livre, disposto a que se inscrevam coisas diversas e contraditórias ao mesmo tempo: rabiscos da vida cotidiana, exposição de camadas fantasmáticas, o medo, o susto, o tremor: os grandes e os baixos desejos, os interditos, as formas de distintas espécies; ora o olhar indiferente, ora a pe-

regrinação; o cansaço, a melancolia, o bem-estar súbito, e as tantas direções do espírito durante o dia - a escrita, a fala, a aula, a paixão, os velhos hábitos. A multiplicidade do viver (SANTOS, 1999, p.97)

Assim, esse gesto de inscrever ou escrever o Texto na página em branco ou nesse papel em branco é empreendido por escritores de todas as naturezas e que lidam com os mais variados códigos, mas isso só é possível por que temos, agora, um conceito mais amplo de Texto, não mais circunscrito apenas à palavra escrita mas que coaduna, também, as diferentes formas de expressão humana. Essa noção, ampla e sustentada pela produtividade, pelo espaço e pela imagem, nós devemos a Roland Barthes. Dívida que é necessário reconhecer. Dívida que procuramos saldar com uma leitura revitalizadora, provocadora de novos questinamentos, revigorando, dessa forma, a reflexão barthesiana com o olhar atento do presente.

REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre fotografia. Trad. Júlio Castanõn Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.______. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1999.______. O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.______. S/Z. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ______. “Verbete Texte”. In. Encyclopaedia universalis : universalia 1996. Paris: Encyclopaedia Universalis, 1996. CASA NOVA, Vera. Texturas: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras, Estudos Literários/PUC Minas, 2002.


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CASTELLO BRANCO, Lúcia & BRANDÃO, Ruth Silviano. A força da letra: estilo, escrita, representação. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. GUIRAUD, Jean. “Verbete Espace”. In: Encyclopaedia universalis : universalia 1996. Paris: Encyclopaedia Universalis, 1996. MERLEAU-PONTY, Maurice. “A dúvida de Cézanne”. In. O olho e o espírito. Trad. Paulo Neves & Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. NOLASCO, Edgar Cézar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. São Paulo: Annablume, 2001. PERRONE-MOISÉS, Leyla. “Os inéditos de Roland Barthes”. In: COUTINHO, Eduardo Faria; BEHAR, Lisa Block de; RODRIGUES, Sara Viola (Orgs.). Elogio da lucidez: a comparação literária em âmbito universal - textos em homenagem a Tania Franco Carvalhal. Porto Alegre: Evangraf, 2004. SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos. O outdoor invisível: crítica reunida. Campo Grande: Ed. UFMS, 2006. SANTOS, Roberto Corrêa. Modos de saber, modos de adoecer: o corpo, a arte, o estilo, a história, a vida, o exterior. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. SILVA, Maria Luiza Berwanger. “Limiares críticos e paisagem da transgressão”. In: A Teoria na Prática Ajuda - Limiares Críticos Gt de Literatura Comparada, Rio de Janeiro, v. 4, 1998.


OS PAPÉIS NARRATIVOS EM CENA: UMA BREVE LEITURA DE INKHEART Debora Pereira Simões* RESUMO O presente estudo versa sobre questões acerca do filme Inkheart e possíveis correlações entre semiótica e teoria literária, tangenciando noções acerca do real e do ficcional e da tessitura da narrativa. Busca-se, ao longo do texto, evidenciar as diversas relações perceptíveis na narrativa e alguns pontos de contato entre estes e a teoria da linguagem e da análise literária, apontando sempre para o papel essencial do leitor, associando a ele a interferência da linguagem a leitura de mundo como fatores que auxiliam na (re)configuração da realidade. Palavras-chave: Inkheart, narrativas, semiótica,teoria, leitor

ABSTRACT The present study deals with questions about the Inkheart movie and possible correlations between semiotics and literary theory, touching on notions of the real and the fictional and the texture of the narrative. One aim, throughout the text, highlight the different relationships perceived in the narrative and some points of contact between them and the theory of language and literary analysis, always pointing to the essential role of the reader, linking him to the interference of language reading world as factors that help to (re)configuration of reality. Keywords: Inkheart, narrative, semiotics, theory, reader

A

linguística deveria, a meu ver, voltar mais a sua atenção para a natureza da experiência perceptivocognitiva e procurar detectar a função e o papel desta na configuração do “real” bem como na arquitetura conceitual de nosso pensamento. Seria na percepção-cognição, portanto

antes mesmo da própria linguagem, que se desenhariam as raízes da significação. (BLIKENSTEIN, 2003, p. 39).

“Desde o começo dos tempos, contadores de história encantam o público com suas palavras. Mas há um talento ainda mais raro. Existem aqueles que, lendo em

* Aluna regular do Programa de Pós-graduação em Nível de Mestrado em Letras da Universidade Federal da Grande Dourados/PPGL. Especialista em Literatura pela UEMS, pesquisa temáticas que se relacionem aos chamados Estudos Culturais.


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Exemplo de personagem trazida ao mundo real com marcas provocadas pela leitura deficiente, o unicórnio também aponta para a metanarratividade da obra.

voz alta, podem trazer os personagens à vida. Dos livros para o nosso mundo.” Essa é a sentença de abertura da versão cinematográfica de Inkheart ou “Coração de tinta – o livro mágico”, como foi chamado no Brasil o filme baseado na obra de Cornelia Funke. Originalmente, o livro pode ser classificado como uma metanarrativa uma vez que suscita questões ligadas à arte narrativa, à importância do leitor, ao conceito de realidade e à autoria, por exemplo. Mesmo tendo sido adaptada para o cinema, tais aspectos da obra permanecem como chaves para a compreensão do enredo e, talvez, da intencionalidade da autora do livro e/ou do diretor do filme. No entanto, qualquer leitura que se pretenda desveladora dos segredos do entretecimento de qualquer obra de arte equivaleria a decretar sua falência enquanto tal. Sim, a obra é aberta, como a trama de uma renda delicada e suas alternâncias entre vãos e fios emaranhados. Mas os liames que a constituem impõem limites às intervenções daqueles que a contemplam, delineando contornos e imagens que não podem ser simplesmente desfeitas, sob pena de se perder todo o trabalho artístico. A fim de apresentar um panorama geral da trama da obra que nos propomos a considerar, segue-se uma breve sinopse:

Mo é um encadernador de livros que possui o dom de, ao realizar leituras em voz alta, trazer as personagens e/ou acontecimentos narrados para o mundo real. Acontece que, em uma das vezes em que ele lê para sua esposa e filha, Resa — a esposa — é levada para dentro da história da narrativa Inkheart, ao passo que Capricórnio, Basta e Dust Finger são trazidos para a realidade em seu lugar. A partir desse episódio, o grande propósito da vida de Mo passa a ser encontrar um outro exemplar da obra, lê-la e desfazer a troca. Após acreditar que todos os exemplares do livro se esgotaram, procura o autor da obra literária a fim de conseguir com ele uma cópia. O autor, Sr. Cornelius, inicialmente não acredita na possibilidade de os personagens terem realmente saído do livro. “Língua de Prata é uma ótima idéia. Mas é muito absurda para acreditar. Sei que meus personagens até parecem sair do livro. Mas não é possível.” Mas, após observar a Dust Finger realizando malabares com fogo, estupefato, afirma “Exatamente como o imaginei. Deve ser a sensação de parir”. Muitos personagens que são trazidos para a realidade estão marcados por letras em seus corpos em decorrência de problemas de leitura, pois um leitor gago interfere na passagem do mundo dos livros para o mundo real.


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Numa leitura que se aproxima com o pensamento de Michel Foucault expresso em Isto não é um cachimbo, a utilização de palavras nos corpos dos personagens reforça, também, o caráter representacional do filme. É preciso não se enganar: num espaço em que cada elemento parece obedecer ao único princípio da representação plástica e da semelhança, os sinais linguísticos, que pareciam excluídos, que rondavam de longe à volta da imagem (...), se aproximaram subrepticiamente: introduziram na solidez da imagem, em sua meticulosa semelhança, uma desordem — uma ordem que só lhes pertence. Fizeram fugir o objeto, que revela a finura de sua película. (1988, p. 19)

Outras distorções ocorrem em decorrência da leitura de Dario. Um exemplo desse fato é a saída de Resa da narrativa quando ele a lê. Em função da gagueira do leitor, ela é trazida sem sua voz, que fica presa no livro. Ora, o que mais seria esse acontecimento que a alusão à necessidade de uma leitura que seja bem realizada para evitar a rotura da trama? Por outras palavras, uma leitura defeituosa prejudica a reconfiguração, na acepção de Paul Ricoeur1 , do que é lido e, consequen-temente, sua compreensão. Esta seria uma primeira categoria de leitores a se abordar. Uma das personagens que mais nos fazem refletir acerca do papel da leitura como meio de aquisição de conhecimentos e como meio de estímulo à imaginação é Elinor que diz que já foi à “Pérsia, São Petersburgo, Paris, Terra Média, planetas e Shangri-la. E nunca tive que sair daqui.

Livros são aventuras! Contêm paixão, assassinato e destruição! Amam qualquer um que os abra”. Elinor, pode ser apontada como uma representação do leitor empírico de Umberto Eco. Um leitor que se deleita com a fruição do texto, que se mantém, no mais das vezes, no nível de superfície do que lê. O que se pode comprovar pela declaração da personagem feita em um outro momento do filme. Ela fala: “Desculpe. É tudo real demais para mim. Prefiro uma história que tem o bom senso de permanecer no papel”. (...) O leitor empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto. (ECO, 1994.p. 14)

Por sua vez, os “Língua de Prata” são os leitores “especiais”, aqueles dotados de uma leitura mais elaborada, não distorciva, capaz de reconfigurar aquilo que é lido com mais habilidade que os leitores “comuns”. Personagens que, ainda numa leitura que se aproxima da classificação do escritor italiano, seriam uma espécie de tipo ideal previsto e configurado no próprio texto. Ainda sob esse prisma, Paola Pugliatti (apud ECO, 1994, p. 22) afirma que o leitor modelo: (...) não só figura como interagente e colaborador do texto, muito mais — e, em certo sentido, menos — , ele/ela nasce com o texto, sendo o sustentá-


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culo de sua estratégia de interpretação. Assim, o que determina a competência dos leitores-modelo é o tipo de estampagem genética que o texto lhes transmitiu (...) Criados com o texto — e nele aprisionados —, os leitoresmodelo desfrutam apenas a liberdade que o texto lhes concede.

É a presença de leitores mais bem preparados para e pelo exercício da leitura na narrativa que abre as grandes discussões acerca dos conceitos de representação e realidade que podem ser notados ao longo de toda a obra. De certa maneira, poderíamos estabelecer uma comparação entre essa categoria de leitores aos críticos e teóricos da literatura ao realizarem uma leitura de explicação e compreensão da obra. Um momento da narrativa é bastante representativo quanto ao que seja a construção da realidade. Farid (personagem tirado da história de Ali Baba e os 40 ladrões), após sua saída do livro e aprisionamento no castelo de Capricórnio, fica repetindo para si, como que em estado de choque, “É só um sonho. É só um sonho. É só um sonho”, para se convencer de que aquilo que vive não é real.

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Interessante é perceber que ele é uma personagem de livro que acredita que a ficção em que vive é a realidade e que o mundo real para o qual é trazido é a irrealidade, um sonho, uma ilusão. Tal atitude da personagem aponta para a fluidificação, a relativização da construção do real. O mesmo Farid serve como prova de adaptação do sujeito à realidade percebida, uma vez que apaixona-se por Meggie e, mesmo tendo a oportunidade de ser lido por Mo e retornar ao seu livro, seu universo, sua realidade inicial, decide ficar no mundo real e permanecer junto à amada. Além desse carinho especial por Meggie, o ex-ladrão, numa relação ficçãoficção, aprende a dominar o fogo com a personagem Dustfinger, criando uma nova categoria de relações no interior da obra, somando-se à relação leitor-obra, autorobra, autor-leitor, obra-obra a relação personagem-personagem, reafirmando a pluralidade significativa e narrativa que surge no âmbito da obra. Exatamente por ser portadora de uma metanarratividade, a obra pode se mostrar e mostrar o processo criador das narrativas, dando mais importância aos elementos consagrados para as análises das

Farid e Meggie: a ficção que se apaixona pela realidade


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narrativas que à própria trama. Mais importa estabelecer o diálogo entre leitorpersonagens, personagens-autor, obraobra e autor-leitor. Dessa forma, pela alusão direta ou indireta, a realidade do filme é invadida, também, por personagens de outras histórias, como Chapeuzinho Vermelho, O mágico de Oz, Peter Pan, Ali Baba e os 40 Ladrões, Rapunzel, João e Maria, Cinderela, Cachinhos Dourados a Pequena garota vendedora de fósforos, o Lobisomem, o Minotauro e Unicórnios. Um aspecto relevante a se observar por esse procedimento de trazer personagens de contos, romances, mitos e lendas para dentro da trama é a configuração de um dialogismo entre diferentes narrativas, entre diferentes gêneros literários, entre diferentes escolas literárias, estilísticas particulares além de apontar para a impossibilidade de um discurso capaz de ser plenamente original, como já afirmava Bakhtin2 . Ou, assim como Roland Barthes, que retoma o conceito de dialogismo, Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura” (1988, p. 6869).

De igual modo, cabe afirmar que apropriação de uma narrativa por outra também é uma mostra da fragmentação que permeia a arte na atualidade.

Uma forma de manter o equilíbrio entre o real e o ficcional que se pode perceber como estratégia da autoria da trama adaptada para as telas do cinema é que, no nosso mundo, as personagens se comportam da maneira como foram escritas (pensadas por seus autores) na maior parte das ações. Capricórnio é sempre um mentiroso. Dust Finger é sempre um fraco. Há um momento no filme em que ele, conversando com Resa, diz, ao ser rejeitado por ela, “é por causa do jeito como sou escrito, não é? Acha que sou fraco e falso. Não sou só isso. Não é tudo de mim.” Em um determinado momento, Mo afirma a seu respeito: “Personagem egoísta, repugnante, fraco!”, ao que ele responde que a culpa é do autor do livro. Essas oscilações entre as reações de Dust Finger e dos demais personagens trazidos de Inkworld – o nome do lugar em que a trama de Inkheart se desenvolve - no que se refere à sua existência material apontam para a questão da independência da obra em relação ao autor, a partir do momento em que esta é trazida a público. Metaforicamente, o diálogo transcrito a seguir ilustra essa perda de controle do autor sobre a obra3 . C – Dust Finger! Mo – Eu tentei impedí-lo. C – É maravilhoso conhecê-lo. D – Não, não, não. C – As cicatrizes são perfeitas. Horríveis como imaginei. Mo – Eu disse, ele tem medo. C – Mas não de mim, espero. Mo – Tem medo do que acontece no final do livro. C – Como assim? Por que ele morre? Mo – Ah, não!


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A cena em que autor e personagem dialogam

C – Entendi. Certo. Desculpe. Meggie - Ele morre no fim? C – Tinha que deixar emocionante. Nem todos têm final feliz. Afinal, a vida nem sempre tem. D – Como acontece? C – Um homem de Capricórnio o mata enquanto tenta salvar Gwin... Uma cena de morte muito tocante. Chorei quando escrevi. D – Acha que ligo para o que escreveu?... Não vai controlar o meu destino. Senão, eu não estaria aqui... Não sou só um personagem em seu livro... e você... não é meu deus... Agora, ouça, velho... tem uma cópia do livro ou não tem? Pois eu gostaria de ir para casa agora, por favor.

Dust Finger também pode simbolizar o personagem que existe como tal enquanto é lido. Ou seja, enquanto ainda pertencia ao universo da narrativa, ele estava sujeito e condicionado pelo texto de que era parte. Ao ser trazido para fora da obra, deixa de estar sujeito ao texto, passando a agir por si próprio, independentemente da intencionalidade de seu autor. No entanto esta personagem nunca leu o livro todo. Sente medo de saber como a história termina. Assim, para ele,

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a história só existe quando ele é parte integrante dela e, principalmente quando ele é lido. Dessa forma, ele só está no mundo ficcional quando o discurso se materializa. No outro extremo dessa relação obraautor, o Sr. Cornelius, enquanto personagem da trama e, concomitantemente, segundo Barthes, “personagem moderna”, é configurado para representar o ideário de uma autoria que sonha em viver num mundo como o do livro que escreveu. Ou, como a personagem afirma: “Um livro maravilhoso, devo dizer. Daria tudo para entrar nele”. Uma clara alusão à fuga da realidade em que se vive. Quanto ao nome do escritor, é possível perceber uma semelhança com o nome da autora da obra que deu origem ao filme. Seria Cornelius uma alusão direta a Cornelia Funk? Seriam as aspirações do autor, na obra, as mesmas da criadora da obra de ficção? Impossível afirmar que sim ou que não, uma vez que a obra, como já firmado aqui, foge do domínio do autor ao ser publicada, ao chegar ao seu destinatário (o público). No entanto, a existência dessa proximidade de nomes entre autores suscita, de fato, ao leitor mais atento, um ato reflexivo. Próximo ao final da história, um dos personagens sugere que o autor faça uma pequena alteração em sua aparência (reescrevendo parte do livro). Essa sugestão parece ser a única forma de “desfazer” os problemas que acabam envolvendo a trama na obra, pela devolução do poder de ditar os destinos das personagens à pena do autor. Na tentativa de alterar o final, Sr. Cornelius tem o seguinte diálogo com Meggie.


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M – Crise de criatividade?... Talvez eu possa ajudar. C – Isso. Quer ser escritora, certo? M – Fala como se fosse algo ruim. C – Não, não. Só algo solitário... Às vezes o mundo que cria parece mais amigável e vivo do que o mundo em que se vive. M – E queria poder estar lá.

Esse diálogo faz com que, ao final, por meio da leitura da menina, o autor tenha seu desejo atendido, sendo enviado para dentro do livro. Fato esse que nos remete aos questionamentos acerca do(s) papel(éis) do leitor. Ora, Meggie, não sendo originalmente a autora de Inkheart, acaba por possuir atributos iguais ou maiores que o próprio autor. É ela quem intervém e reinventa o desfecho da trama, provocando, simbolicamente, a morte do autor4 , uma vez esse processo de “assassínio” da autoria se inicia com a escritura e, diria eu, culmina na leitura. Entre tantos outros aspectos passíveis de serem analisados, a obra literária e sua versão fílmica, um embricamento entre a fantasia e a realidade, a leitura e a escrita, mostram-se como símiles da construção da realidade e de sua apreensão. Mas, finalmente, até que ponto se entretecem esses pontos eternamente interrogativos? Ora, se (...) a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade. [Desse modo] (...) trata-se da relação entre língua, pensamento, co-

nhecimento e realidade (...). (BLIKSTEIN, 2003, p. 17).

Estendendo à arte uma capacidade, não uma função, de mediar os processos de percepção, configuração e/ou apropriação da realidade, mais especificamente, neste ponto, da obra de arte literária, nos valemos das palavras de Marina Yaguello que afirma: A linguagem acciona capacidades especificamente humanas, as capacidades para a simbolização e a abstracção: o homem é capaz de evocar não apenas o que é palpável e está presente mas também o que está longe, no tempo ou no espaço, o que é abstracto ou mesmo imaginário. (1997, p. 16)

Tanto o imaginário fílmico como o literário abrem portas para realidades outras, diferenciadas mas não impossíveis, distantes mas não intangenciáveis. Tudo se configura e se conforma num jogo em que ora somos atores, ora espectadores. Detectar os actantes e os papéis desempenhados auxilia a performá-los de melhor maneira. Numa aproximação parcial, porque particular, e multifacetada, pois vários os aspectos da obra literária, metanarrativamente expostos na versão fílmica de Inkheart, buscamos evidenciar as diversas relações perceptíveis na narrativa e alguns pontos de contato entre estes e a teoria da linguagem e da análise literária, apontando sempre para o papel essencial do leitor, associando a ele a interferência da linguagem a leitura de mundo como fatores que auxiliam na (re)configuração da realidade.


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NOTAS 1

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. Tomo I.

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BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

3

A transcrição dos diálogos aqui citados foi feita a partir das cenas do filme, não do livro. Assim, para facilitar a compreensão, C corresponde a Cornelius, Mo é Mortimer e D equivale às falas de Dust Finger. 4

“Sem dúvida sempre foi assim: desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa.” (BARTHES, 1988, p. 65). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BARTHES, R. “A morte do autor”. In.: ____ O rumor da língua. Trad. Mario Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. BLIKSTEIN, I. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2003. ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das letras, 1994. FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo. 4.ed. São Paulo Paz e terra, 1988. YAGUELLO, M. Alice no país da linguagem: para compreender a linguística. Trad. Maria José Figueiredo. Lisboa: Editorial Estampa, 1997.


ESPREITANDO LAVOURA ARCAICA PELAS FRESTAS DA LINGUAGEM Rosicley Andrade Coimbra1 RESUMO Este artigo propõe percorrer os caminhos da linguagem em Lavoura arcaica, romance de Raduan Nassar. Partindo do pressuposto de que o indivíduo é revelado pela própria linguagem, intentamos investigar as posições do pai e do filho neste romance que se apresenta entrecruzado por uma infinidade de vozes dissonantes. Em certa medida, a palavra se mostra como a desencadeadora de uma crise dentro da família, pois, a partir do momento em que o filho começa a contestá-la é o início em que discursos são contrapostos e testados. Sob esse aspecto, pensaremos a palavra como sendo uma das maneiras de se adentrar neste mundo particular e espreitálo pelas frestas da linguagem. Palavras-chave: Linguagem; Palavras; Lavoura arcaica; Conflitos.

ABSTRACT This article proposes to investigate the way of language in Lavoura arcaica, by Raduan Nassar. From the presupposed that the being is revealed by own language we intent to investigate the position of father and son in this novel that is presented crossed by an infinity of dissonant voices. In way the word is showed off as a creating of crisis in that family, from the moment that one of the children start to contest the father’s word we see several discourses being opposed and tested. Under this aspect we’ll think word as being one of manners to get in that private world and spying through language skylight. Keywords: Language; Words; Lavoura arcaica; Conflicts. As palavras me escondem sem cuidado. Manoel de Barros Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. Mikhail Bakhtin 1

Graduado em Letras pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Atualmente é mestrando, bolsista CAPES, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal da Grande Dourados, na área de Literatura e Práticas Culturais.


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[...] toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves perigos quando falamos. Raduan Nassar

CONSIDERAÇÕES INICIAIS As três citações usadas como epígrafes neste texto servirão de preâmbulo para falarmos sobre linguagem no romance Lavoura arcaica (LA), de Raduan Nassar. Entendemos que elas dialogam entre si através de uma estreita ligação: a palavra como ocultamento e revelação do falante. Nesse sentido, ao procurar se “esconder” atrás da palavra o falante acaba por ser revelado justamente por aquilo que usou para se ocultar. A palavra nunca é isenta, daí afirmarmos que ela nos expõe à constante presença do outro. Foi pensando sob esse ângulo que Bakhtin sublinhou que, “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 2004, p.37). E é sob essa face especular que a palavra pode ser tratada como uma semente de ordem, mas que traz consigo também o germe da desordem. Ela se mostra transparente, neutra, por um lado e do outro oculta uma face opaca e autoritária. Falar sobre a linguagem em LA é trazer para a arena das discussões a singularidade de uma obra dentro da própria literatura brasileira. Publicada em 1975, ganhou notoriedade numa época em que a produção literária se encontrava numa via de mão dupla: ou seguir uma temática político-social, denunciando de maneira crítica os desmandos do militarismo ou seguir um caminho mais alternativo, voltado para um gênero maravilhoso-fantástico, trabalhando de maneira menos

O autor Raduan Nassar: “Toda palavra é uma semente.”

incisiva. No entanto, LA se destacou como “um romance intimista cujo trabalho formal levou a linguagem às fronteiras da prosa poética”, conforme apontou o crítico Alfredo Bosi (BOSI, 2006, p.423). Sua prosa-poética nos remete a um tempo mítico, quando somente uma voz era passível de ser ouvida e obedecida. As demais eram silenciadas por meio da coerção. Um único discurso poderia ser aceito: o discurso cominativo, ou seja, aquele que impunha, prescrevia e ao mesmo tempo castigava e penalizava. Este era o discurso autoritário do patriarcalismo. Uma ideologia precisava ser mantida, custasse o que fosse e a obediência inconteste fazia parte deste mundo. Se há denúncia em LA ela é feita de maneira velada, comedida. No entanto, há um grande labirinto de palavras que acaba por desviar o foco de uma eventual referencialidade, levando o leitor a concentrar-se somente em sua linguagem. Na verdade, o que encontramos é um romance polifônico, entrecortado por vozes dissonantes que, sob forte tensão,


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oscilam entre o lirismo e a cólera, entre a obediência e a desobediência. E ainda, o discurso autoritário presente na obra disputa lugar com o silêncio que também percorre toda sua extensão. Se por um lado temos um discurso mantenedor de uma ideologia, por outro, o silêncio se faz insuportável. Todavia, podemos dizer que se trata de um silêncio aparente, pois mesmo tendo seu significado e peso, ele não se mantém por muito tempo e acaba por se romper. O que temos daí então é o desabamento de uma grande barragem. As águas caudalosas, ao destruírem o grande dique, não poupam ninguém e os discursos, outrora bem alicerçados, são postos à prova e subvertidos. Eventuais inconsistências dos sermões do pai são apontadas por André, o filho problemático. Assim, as consequências de palavras ditas sem qualquer preocupação com o uso vêm à tona. O pai, figura austera, é o responsável por manter a ordem da família. Tudo decorre de sua vontade, que é a lei, a verdade indiscutível. O equilíbrio é estabelecido por meio de seus sermões. Seu discurso funda-se numa ordem quase religiosa, no respeito ao tempo: um tempo feito de esperas. O silêncio é a resposta esperada, é sinal de obediência e entendimento. Tudo é sempre igual, o mesmo gesto, o mesmo tom profético ao proferir as leis sagradas, que devem reinar naquela casa, naquele mundo limitado às cercas da propriedade. Contudo, nem todos são passíveis a esses ensinamentos. Há resistência, há quem não concorde com tais sermões e os julgue “inconsistentes” e este alguém é André, um dos filhos. E é este desconcerto com a vontade do pai que dará ori-

gem a uma série de acontecimentos dentro da família, e que culminarão em sua desagregação. Como dito anteriormente, LA é cruzada por vários discursos, mas dois se sobressaem e se mostram antagônicos, mas na verdade estão envolvidos numa mesma tessitura. O diálogo entre eles se faz justamente por serem conflitantes. Há, por um lado, um discurso mantenedor de uma ordem, de uma ideologia que precisa ser reafirmada a todo instante, e do outro, um que vai de encontro ao primeiro: uma espécie de contra-discurso, próximo a uma réplica, um verdadeiro ato responsivo. Temos então num pólo, o discurso cristalizado e autoritário do pai, que se constitui como o “discurso de uma verdade absoluta, sem contestações” (BARROS, 2001, p.152), e no lado oposto, o discurso de André, que procura, justamente, contestá-lo apontando-lhe incoerências, vendo que essa cristalização não condiz com a verdade, ou seja, as palavras podem remeter a outras interpretações ou significados, distando de todos aqueles ditos e prescritos pelo pai. O discurso paterno é um discurso milenar, repetido e reafirmado a cada nova geração e a ideologia que o permeia continua sendo sempre a da eterna espera e da obediência. Nesse sentido, a paciência constitui-se como única e verdadeira virtude a ser cultivada nesta lavoura arcaica. A constante repetição terminou por petrificar a tradição, tornando-as mera imitação de gestos e palavras de outrem. Sob esta ótica, propomos investigar os caminhos da linguagem, bem como a revolta de André que, de um silêncio contundente passa para uma explosão de có-


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lera. Assim, esse filho “problemático” também fará amplo uso da linguagem como forma de ficar em pé de igualdade com o pai, fazendo uso de seu próprio discurso como forma de atingi-lo. E dessa forma, des-tecendo os meandros das palavras do pai, André quebrará o silêncio de outrora, explodindo em cólera. LINGUAGEM E DISCURSO: O PODER SOB DISFARCES IDEOLÓGICOS Falemos inicialmente da linguagem citando Roland Barthes: A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação (BARTHES, 2007, p.12)

No sentido barthesiano, a linguagem carrega em si um paradoxo: ao mesmo tempo em que liberta, ela condiciona, prescrevendo o indivíduo que se lança em seu encalço. Daí a ratificação de Barthes acerca do caráter “fascista” da língua, uma vez que, segundo ele, o fascismo não impede de dizer, mas, ao contrário, obriga a dizer (BARTHES, 2007, p.14). A língua impõese como produto a ser adotado tal qual sua determinação, isto é, por ser um sistema, conforme atestara Saussure, ela está calcada em prescrições que devem ser obedecidas. Contudo, podemos dizer que tal paradoxo da língua se deve também ao próprio homem que, ao nomear objetos, o

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faz de maneira arbitrária. Assim, a linguagem, que nada mais é que o código — isto é, a língua — posto em funcionamento, surge como “um produto ideológico”, segundo Bakhtin, que destaca ainda que, todo produto ideológico possui um significado, remetendo a algo que está situado fora de si. Dessa forma, tudo o que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2004, p.31). Assim, Bakhtin vincula ideologia e signo como construções imersas em arbitrariedades. Seguindo esta concepção bakhtiniana de uma aproximação entre ideologia e signo, podemos ressaltar que a primeira também jaz numa situação de extrema arbitrariedade, posto que o significado é-lhe exterior: a ideologia sempre remete para fora de si. Numa ordem um pouco diversa, Foucault apontará um caráter dicotômico entre ideologia e verdade. Segundo ele, a ideologia “está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a verdade” (FOUCAULT, 1979, p.7). Desse modo, ideologia e verdade estariam sempre se digladiando por um lugar de destaque ou, em outras palavras, pelo poder. Todavia, a ideologia apresenta mais um paradoxo. Se por um lado ela se apresenta como um “conjunto lógico, sistemático e coerente de representações [...]”, visando sempre preservar os membros da sociedade, por outro lado, ela se mostra como normativa, prescritiva e reguladora. E ainda, sua função primordial está apoiada no apagamento das diferenças dentro de uma sociedade, isto é, seu papel é fazer passar por verdade aquilo que deveras não é: de que todos os membros da sociedade são iguais (CHAUÍ apud BARROS, 2001, p.148-9). Esta visão de ideologia, apresentada por Marilena


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Chauí, baseia-se nas divisões sociais de trabalho, na qual se observa uma divisão dessa força em “manual” e “intelectual” (BARROS, 2001, p.149). Por sua vez, o Estado, através de seus aparelhos, procura sempre reafirmar seu poder por meio da manutenção da ideologia, que se dá sempre por intermédio da repetição de um saber ou de uma verdade. Na assertiva de Barros, as ideologias também podem ser vistas como visão de mundo, uma vez que elas não nascem nos aparelhos, [mas] surgem das classes sociais, de suas condições de existência, de suas práticas, de suas lutas, e os aparelhos constituem a forma pela qual a ideologia da classe dominante se realiza. É no seu interior que se medem e se confrontam valores (BARROS, 2001, p.150).

Sob esse prisma, a ideologia da classe dominante provém do uso dos aparelhos do Estado e os confrontos de valores são instalados no interior destes aparelhos de forma a refratar a realidade, dissimulando ou apagando as diferenças, inscrevendo-se como verdade igualitária. Podemos citar a escola como um dos aparelhos usados para a realização da ideologia da classe dominante: o lema “educação para todos” está permeado neste aparelho, contudo, nem todos continuam a estudar, dando a entender que, quem não estuda é porque não quer. Ao discorrer sobre o estatuto da língua, Barros destaca que ela: não é neutra e sim complexa, pois tem o poder de instalar uma dialética interna, em que se atraem e, ao mesmo

tempo, se rejeitam elementos julgados inconciliáveis [...] As ideologias, sobretudo a dominante, tentam colocar o signo acima da luta de classes e esconder suas contradições internas, tornando-o monovalente e “neutro” (BARROS, 2001, p.151).

Uma presumida neutralidade se mostra na língua, ou seja, a arbitrariedade do signo é posta em suspenso, tornando-se velada para que contradições sejam também disfarçadas, dando assim a impressão de verdade, passando por verossímil aquilo que na realidade não é. Esta suposta neutralidade mascara o discurso legitimador do poder, uma vez que as palavras são tidas como incólumes às mudanças. Sob esta perspectiva, podemos ver na postura do patriarca em LA que, por meio de seus sermões, procura deixar claro uma veneração, segundo ele, ao tempo, mas que na verdade implica uma obediência a uma doutrina muito mais rígida, de submissão a uma única vontade, a sua. Ele, sempre ele, é o centro de seus sermões. O fato de estar sempre falando ponderadamente, como o pêndulo do relógio, evidencia sua preocupação em não ser incompreendido, já que: “Para que as pessoas se entendam, é preciso que ponham ordem em suas ideias. Palavra com palavra [...]” (NASSAR, 1989, p.160). Todavia, esse patriarca se esquece da força que tem a palavra: “toda palavra comporta duas faces”, afirmará Bakhtin (2004, p.113), e a palavra do pai, repetida há gerações, comporta duas facetas: pode continuar a ser repetida ou pode ser criticada e usada contra ele por outrem.


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O SILÊNCIO REVELADOR: QUANDO UM COPO TRANSBORD A DE CÓLERA TRANSBORDA Conforme afirmação de Bakhtin: Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. (BAKHTIN, 2004, p.147).

Partindo dessa proposição, vemos André não como um ser mudo, pois ele possui um fundo perceptivo como todo ouvinte. Ele está cheio de palavras; quer falar, ou melhor, quer o direito a voz. Quer contestar os discursos do pai, posto percebê-los como engodo. As palavras do pai levam o filho a querer a palavra também, ou como ele diz: “Queria o meu lugar na mesa da família” (NASSAR, 1989, p.160). Ele quer ter o direito de falar à mesa da família. Assim, sua postura impõe um desmascaramento da ideologia subjacente na fala do pai. Ao falar de discurso e de comunicação real, Bakhtin aventa o fato de o ouvinte ocupar (sempre) uma posição responsiva em relação ao falante, ou seja, o ouvinte pode concordar ou discordar deste a qualquer instante. Ele tanto pode completar o

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que o outro disse como aplicá-lo ou preparar para usá-lo. E mais, “essa posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante” (BAKHTIN, 2003, p.271). Podemos entrever na figura do pai uma postura do falante estudado pela linguística geral, nos chamados “desenhos esquemáticos”, questionados por Bakhtin por não corresponderem a “determinados momentos da realidade”. Segundo ele, a comunicação se dá de forma ativa, posto que “toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante” (BAKHTIN, 2003, p.271). Mas, como o discurso do pai é autoritário e carrega consigo o estigma de uma ideologia de obediência incontinenti, acaba por não abrir um precedente para um ato responsivo: o ouvinte é somente ouvinte. No outro extremo temos André que se mostra como o ouvinte que está prenhe de atos responsivos. Seu discurso está em constante diálogo com o do pai justamente por serem conflituosos. Ele não é o ouvinte passivo, mas sim o outro que deve ser levado em consideração numa comunicação real. Durante uma comunicação em condições reais, o falante não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc. (BAKHTIN, 2003, p.272).

É assim que André se comporta diante dos sermões do pai. Ele não quer repe-


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ti-los ou mantê-los. Não há uma concordância entre o que o patriarca diz e o que o filho compreende, ele quer objetar, contestar, em outras palavras, ele quer responder! Observado por esse ângulo, o comportamento de André é reflexo da própria fala do pai, uma vez que, durante uma comunicação, nem sempre ocorre a resposta em voz alta ao enunciado, ela pode realizar-se na ação ou pode permanecer de quando em quando como compreensão responsiva silenciosa [...] mas isto, por assim dizer, é uma compreensão responsiva de efeito retardado: cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte (BAKHTIN, 2003, p.272).

A compreensão responsiva de efeito retardado de André surge numa explosão de cólera, num transbordamento de raiva que, ao ser expelido, não poupa nada, nem ninguém. A quebra daquele silêncio contundente é atestada então como uma negação daquela vida arcaica, fundada em valores ossificados, mantidos por palavras desgastadas pelo uso, palavras que eram apenas repetidas de geração em geração, mas que com o passar do tempo, portanto em contexto diverso, adquiriram outros sentidos, ignorados pelo pai. E ainda, todo o universo desta família está restrito as cercanias da propriedade, uma espécie de microcosmo da sociedade. É dele, do pai, que parte toda a vontade mantenedora da ordem. Seus sermões, proferidos à mesa antes das refeições vem a lume como verdades incontestáveis, como o primum móbile da-

quele universo familiar. O silêncio que se segue as suas prédicas é entendido como uma assertiva do que fora dito. O tom profético com que fala: ai daquele que brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza, está sempre lembrando os castigos que poderão advir com o não-cumprimento das leis sagradas. Desse âmbito, os sermões do pai se apresentam sempre como uma espécie silogismo, em que temos uma premissa maior que poderia ser: “na união da família está o acabamento dos nossos princípios” (NASSAR, 1989, p.61), isto é, a felicidade está na união da família. Em seguida podemos depreender uma premissa menor: André vive numa família unida. E então teremos um conclusão: André é feliz naquela família. É claro que os sermões não se resumem a este único silogismo, existem outros de forma mais velada dentro da obra. No entanto, um silogismo não se apresenta como uma lógica verdadeira, ele é passível de ser questionado: na maioria das vezes ele se mostra como inteiramente falso. E é assim que podemos percebêlo em LA, já que André não é feliz da forma como as coisas são conduzidas em sua família, principalmente em se tratando de sua relação com o pai. Um silogismo é contestável, posto ser inverossímil. André, em seu silêncio, não concorda com os ditos do pai. Tanto que, consumado um ato incestuoso com uma das irmãs, Ana, faz questão de ironizar, dizendo que cumprira a vontade o pai: a felicidade está na união da família. Assim, se o silêncio se mostra como algo positivo para o pai, por outro lado ele tem um significado totalmente inverso para o filho pródigo. “Se a linguagem


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implica silêncio, este por sua vez, é o nãodito visto do interior da linguagem” (ORLANDI, 1993, p.23). Como André bem confessa ao irmão Pedro posteriormente: “(Tinha contundência o meu silêncio! Tinha textura a minha raiva!)” (NASSAR, 1989, p.35). A totalidade significativa no silêncio de André jaz na sua discordância ao que pregava o pai em seus sermões. Assim, conforme destaca Orlandi, o silêncio “tem significância própria”, uma vez que ele “é a garantia do movimento dos sentidos” (ORLANDI, 1993, p.23). O silêncio de André é a resposta mais contundente que este poderia dar ao pai naquele momento. Entretanto, inversamente do que acredita o pai, o filho faz uso deste silêncio como forma de negar sua verdade, posto considerá-la inconsistente. Por sua vez, Ana, após a fuga do irmão também entra em profundo mutismo. O que esconde seu silêncio? A falta do irmão ou a culpa pelo crime de incesto? Para a família Ana está muda pela falta do irmão. No entanto, sabemos que é por culpa e arrependimento. Aliás, sublinhe-se aqui o fato de que Ana não pronuncia uma única palavra em toda a obra. Nesse sentido, ela não é um personagem feito de palavras, mas de silêncio. Assim, todo um silêncio altamente significativo transita pela obra: do silêncio de André, passando por Ana, até chegar à família. O silêncio da família se manifesta em seu comportamento, posto que uma onda de retraimento se apodera desta: todos sabem o que acontece, mas ninguém ousa quebrar a cortina de quietude que o encobre. O silêncio pela fuga do filho se mostra análogo a um luto:

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não se toca no nome do morto nesta casa! Sob essa perspectiva, “o silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa” (ORLANDI, 1993, p.70): a dor pela perda de um filho, de um irmão ou de um membro da família. Mas todo esse silêncio é quebrado antes mesmo que o filho fujão retorne à fazenda. Ainda na pensão, onde fora encontrado pelo irmão mais velho, André expele toda sua cólera e convulso confessa todas suas angústias: a sufocante autoridade do pai e a paixão incestuosa pela irmã Ana. A VERSATILIDADE DA PALAVRA NO DISCURSO DE ANDRÉ André vai de encontro ao discurso do pai, procurando nas palavras deste as suas, para assim produzir seu próprio discurso. No entanto, o filho adota posição crítica e subversiva, transformando e ressignificando tais palavras, uma vez que as julgava inverossímeis. Assim, os sermões que o patriarca proferira a vida toda para a família, é usado por André como arma contra o próprio pai. A principal denuncia de André se deve a palavra do pai estar em todos os lugares: “[...] tudo em nossa casa é morbidamente impregnado da palavra do pai [...]” (NASSAR, 1989, p.43), dirá ele. Dessa forma, ele demonstra conhecer todos os imbricamentos do discurso paterno, já que será a partir disto que ele começará a eclodi-lo. Este filho pródigo sabe como manejar as palavras; ele é um conhecedor do poder que elas possuem, sabe que


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elas não são neutras como o pai acredita. Em um de seus momentos de fúria declarará ao irmão Pedro: [...] era ele [o pai] que dizia provavelmente sem saber o que estava dizendo e sem saber com certeza o uso que um de nós poderia fazer um dia, era ele descuidado num desvio [...] era ele sempre dizendo coisas assim na sua sintaxe própria, dura e enrijecida pelo sol e pela chuva, era esse lavrador fibroso catando da terra a pedra amorfa que ele não sabia tão modelável nas mãos de cada um [...] (NASSAR, 1989, p.43-44).

Durante a conversa com o irmão, André demonstra conhecer a força que aquelas palavras possuíam. Se o pai julgava sua doutrina dura e enrijecida pelo sol e pela chuva, enfim, “neutras”, o filho “tresmalhado” sabe que não é assim que funciona, ele tem pleno conhecimento de que a pedra amorfa é modelável nas mãos de cada um. Em outras palavras, André sabe que uma palavra revela muito mais do que aparenta, ela revela uma intenção subjacente, coercitiva, visando manter um controle sobre o ouvinte. Por sua vez, o pai desconhece completamente que: A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 2004, p.113).

Podemos dizer que, a palavra lançada pelo pai não admite um ato responsivo.

Contudo, ela começa a acumular-se nas mãos do ouvinte (André) que, silencioso a manobra, aguardando o instante propício para devolvê-la ao falante. Cada um tem pleno domínio da palavra que lhe é dada, podendo manejá-la de acordo com sua vontade, imprimindo-lhe uma subjetividade, uma vez que ela está alicerçada na complexidade. “A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação”, dirá mais uma vez Bakhtin (BAKHTIN, 2004, p.38). Ainda conforme Bakhtin: A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social (BAKHTIN, 2004, p.36).

O pai traz sempre consigo a ordem das palavras, isto é, seu discurso está sempre orientando para uma cumplicidade entre as palavras e o tempo. Como dito antes, cada palavra sua é ponderada pelo pêndulo do relógio, como se fosse sempre um mesmo concerto. Por outro lado, André sabe que não é assim que procedem as coisas e confessa isto ao pai: “Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo” (NASSAR, 1989, p.160). Durante o diálogo entre pai e filho, apesar de falarem sobre a mesma coisa, o patriarca não entende o que André diz: “Faça um esforço, meu filho, seja mais claro, não dissimule, não esconda nada do


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Raul Cortez interpretou o pai de André, no filme Lavoura Arcaica (2001, direção de Luiz Fernando Carvalho)

teu pai [...]” (NASSAR, 1989, p.160). As metáforas usadas pelo filho são totalmente obscuras ao pai, posto que este não compreende o uso que André fez de suas próprias palavras, e isto também é confessado ao pai, que continua sem entender: “[...] foi o senhor que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos” (NASSAR, 1989, p.167). Diante da incompreensão do que o filho fala, o pai também explode em cólera: — Cale-se! Não vem desta fonte nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o que levou milênios para se construir; ninguém em nossa casa há de falar com presumida profundidade, mudando o lugar das palavras, embaralhando as ideias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só por ficar com a própria cegueira [...] (NASSAR, 1989, p.169).

Quando percebe que não poderá compreender a fala do filho, o pai usa sua au-

toridade para reafirmar sua ideologia, deixando claro que seu discurso está calcificado, são palavras que levaram milênios para serem construídas e que, por isso, devem ser obedecidas — e repetidas. Ao filho pródigo, diante do transbordamento do copo de cólera do pai, resta “aceitar” (e conformar-se?) com sua autoridade — ao menos aparentemente. E assim, quando tudo parece voltar a antiga ordem, a do silêncio, uma grande festa de boas vindas é oferecida a André e uma “obscura revelação” põe termo a vida da irmã. O pai, paladino da ordem, se mostra fraco e falho em sua postura. Seu discurso sobre guardar-se ao mundo das paixões e do desequilíbrio cai por terra. Quanto a André... este observa tudo recostado numa grande árvore em silêncio... CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme foi possível sublinhar, LA apresenta discursos que se cruzam num labirinto de vozes abafadas. Ao se cruzarem tais discursos se mostram inteiramente antagônicos, por isso uma relação altamente dialética. Enquanto um procura manter a ideologia através de uma linguagem calcificada pelo tempo e


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pela repetição, tornando-a desgastada, o outro tende a desmascarar o que jaz por baixo da fala bem comportada dita na mesa das refeições. Observamos ainda, palavras postas em funcionamento, movimentando-se sempre, mostrando que a linguagem por mais cuidada que seja sempre deixa transparecer o que deveras encobre. Todavia, os exemplos acerca da linguagem, ilustrados por LA, não podem ser tomadas como exceção. A linguagem permeada por uma ideologia, que age silenciado a voz do outro, não é exclusividade dessa obra: o que nela está posto pode ser visualizado em qualquer outra parte, em qualquer lugar onde haja dois indivíduos em uma situação de comunicação. A literatura se mostra como exemplar para tratar dessa questão, daí a escolha desse objeto. André pode até ser tido como o avatar dos excluídos, mas não pode ser considerado o único, assim como o pai, não dever ser tido como paradigma de uma conduta autoritária. A linguagem, posta a prova em LA, é penetrada através de suas frestas que, a despeito de todos os esforços do pai, deixa vãos que são rapidamente

preenchidos por André, que encontra aí uma rota de fuga e uma forma de criticar a ideologia paterna. Se o pai julgava ter controle sobre o que dizia, André mostra-lhe o contrário ao explodir em cólera e depois, apaziguado e conformado, presenciando toda da desagregação da família à distância, deixando que o pai pereça moralmente, fazendo justamente o que o pai sempre dissera: saber esperar. E aqui, novamente recorremos ao verso de Manoel de Barros posto em epígrafe: As palavras me escondem sem cuidado, fazendo-o dialogar com Bakhtin: Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade, acrescentando em seguida a fala de André: [...] toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos. E assim, por meio desse diálogo podemos retificar uma das prescrições do pai: ai daquele que brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza. Em verdade, ele deveria dizer: “evitai proferir palavras descuidado, pois poderão vê-las serem usadas contra vós mesmos, afinal, uma palavra dita não pode ser (des)dita!”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. 3. Ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001. BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud &Yara Frateschi Vieira com a colab. de Lúcia Teixeira Wisnik & Carlos Henrique Chagas Cruz. São Paulo: Hucitec, 2004. ______. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. do russo Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


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BARTHES, Roland. Aula. Trad. e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2007. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: ____. Microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas/ SP: UNICAMP, 1993.


NORMAS PARA PUBLICAÇÃO 1) A Revista Arandu destina-se à publicação de trabalhos que pelo seu conteúdo possam contribuir para a formação e o desenvolvimento científico além de atualização nas diversas áreas do conhecimento. 2) As publicações deverão conter trabalhos da seguinte natureza: a) Artigos Originais, de revisão ou de atualização, que envolvam abordagens teóricas e/ou práticas referentes à pesquisa e que atinjam resultados conclusivos e significativos. b) Traduções de tetos não disponíveis em língua portuguesa, que constituam fundamentos das diversas áreas do conhecimento e que, por esta razão, contribuam para dar sustentação e densidade à reflexão acadêmica. c) Entrevista com autoridades que vêm apresentando trabalhos inéditos, de relevância nacional e internacional, com o propósito de manter o caráter de atualidade da Revista Arandu. d) Resenhas de produções relevantes que possam manter a comunidade acadêmica informada sobre o avanço das reflexões nas diversas áreas do conhecimento. 3) A publicação de trabalhos será submetida à aprovação do Conselho Editorial da Revista Arandu. - Caberá ao Conselho a seleção dos trabalhos com base nestas normas e o encaminhamento a consultores externos quando necessário. 4) A entrega de originais para a Revista Arandu deverá obedecer aos seguintes critérios: a) Os trabalhos deverão conter obrigatoriamente: título em português; nome do autor, identificado em rodapé e a qua-

lificação e a instituição a que pertence; notas finais, eliminando-se os recursos das notas; referências bibliográficas, segundo as normas da ABNT. b) Os trabalhos deverão ser encaminhados dentro da seguinte formatação: uma cópia em Compact Disc, editor Word For Windows 6.0 ou superior; duas cópias impressas, com texto elaborado em português e rigorosamente corrigido e revisado, devendo ser uma delas sem identificação de autoria; limite aproximado de cinco a 12 laudas para artigos; cinco laudas para resenhas; dez laudas para entrevistas e quinze laudas para traduções; a fonte utilizada deve ser Arial Naroow, corpo 12, espaço entrelinha um e meio. 5) Eventuais ilustrações e tabelas com respectivas legendas devem ser apresentadas já inseridas no próprio texto. Todo Material fotográfico deverá ser em preto e branco. 6) Ao autor de trabalhos aprovado e publicado serão fornecidos, gratuitamente cinco exemplares do número correspondente da Revista Arandu. 7) Uma vez publicados os trabalhos, a Revista Arandu se reserva todos os direitos autorais, inclusive os de tradução, permitindo, entretanto a sua posterior reprodução como transcrição e com a devida citação da fonte. 8) Os trabalhos representam o ponto de vista dos seus autores e não a posição oficial da Revista, do Grupo Literário Arandu ou de Nicanor Coelho-Editor.



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