Revista Arandu # 62

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X • ISSN 1415-482 -Janeiro/2013 12 20 o/ br m ze • Novembro-De Ano 15 • Nº 62

I SSN 1415 - 482X

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nicanorcoelho@gmail.com

Dourados-MS Ano 15 โ ข No 62 Pรกgs. 1-44

Nov.-Dez./2012-Jan.2013


[ CARO LEITOR

A

história de Mato Grosso do Sul tem sido estudada com muito afinco por diversos pesquisadores e os resultados dos seus trabalhos sempre enriquecem as páginas da Revista Arandu. Desta feita, os historiadores Laércio Cardoso de Jesus e Jocimar Lomba Albanez detém seus olhares aguçados sobre um dos períodos mais marcantes para a nossa região — o auge do cultivo da erva mate, de 1882 a 1940 — e nos dão notícias de suas análises no artigo “Para além da Companhia: a presença dos produtores independentes e o advento das frentes pioneiras sobre a região ervateira”. Por sua vez, o pesquisador Wagner Cordeiro Chagas revisita acontecimentos que marcaram a política na primeira década da criação do Estado de MS, no artigo “Entre crises e estabilidade política: Campo Grande e os primeiros passos como capital do Estado de Mato Grosso do Sul (1977 – 1985)”. Fechando a edição, publicamos o conto “Dia dos pais”, da escritora Debora Pereira Simões, cujo vigor narrativo é prova de um talento que desponta em nossas Letras. A História e a Literatura regionais são dois pilares da nossa cultura que a Revista Arandu tem orgulho em difundir. Boa leitura!

Ano 15 • No 62 • Nov.-Dez./2012-Jan./2013 ISSN 1415-482X

Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico ANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, CÉLIA REGINA DELÁCIO FERNANDES, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO, PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS e ROGÉRIO SILVA PEREIRA Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO

EDITADO POR

Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sala 01 Centro • Dourados • MS CEP 79810-110 Telefones: (67) 3423-0020 e 9238-0022 Site: www.nicanorcoelho.com.br CNPJ 06.115.732/0001-03

Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - Ano 15 N o 62 (Novembro-Dezembro/2012-Jan./ 2013). Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2013. Trimestral ISSN 1415-482X

Nicanor Coelho, editor

1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu.


Ano 15 • No 62 • Nov.-Dez./2012-Jan./2013

[ SUMÁRIO

ARTIGOS Para além da Companhia: a presença dos produtores independentes e o advento das frentes pioneiras sobre a região ervateira ............................................................ 5 Laércio Cardoso de Jesus Jocimar Lomba Albanez Entre crises e estabilidade política: Campo Grande e os primeiros passos como capital do Estado de Mato Grosso do Sul (1977 – 1985) ....................... 22 Wagner Cordeiro Chagas

FICÇÃO Dia dos Pais ................................................................................ 42 Debora Pereira Simões

Foto de capa: Arquivo Público Estadual (Fundação de Cultura de MS)

INDEXAÇÃO •

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Para além da Companhia: a presença dos produtores independentes e o advento das frentes pioneiras sobre a região ervateira Laércio Cardoso de JESUS1 Jocimar Lomba ALBANEZ2

RESUMO Sabe-se que o “Cone Sul” de Mato Grosso do Sul fora outrora espaço da economia ervateira, sob monopólio da Companhia Matte Larangeira, via sucessivas concessões de terras devolutas desde 1882. Não tão bem conhecida é a presença dos produtores independentes de erva neste domínio, presença claramente conflituosa em relação aos negócios da Companhia, mas que também, eventualmente, a produção era complementar a ela. A partir dos anos 1940, a nova política de fronteiras promovida pelo Estado Novo e o declínio das exportações de ervamate para a Argentina, possibilitou o avanço das frentes pioneiras vindas de São Paulo e do Paraná. Graduais transformações serão sentidas nessas áreas meridionais: emancipação de municípios, consolidação da agropecuária comercial e problemas sociais, verificáveis, sobretudo a partir dos anos 1970. Palavras-chave: Matte Larangeira; produtores independentes; economia ervateira; frentes pioneiras. ABSTRACT It is known that the “Southern Cone” of Mato Grosso do Sul had once saving space Herbalist, the monopoly of the Company Matte 1

Mestre em História (UFMS). Professor tutor em EAD - UFMS e Professor Multiplicador do Núcleo de Tecnologia Educacional (NTE)/ Dourados-MS. 2 Mestre em História (UFMS). Professor titular na graduação de História da UEMS, unidade de Amambai-MS.


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Larangeira via successive grants of lands since 1882. Not so well known is the presence of independent producers of grass in this area, presence clearly conflicted over the Company’s business, but also, occasionally, the production was complementary to it. Since the 1940s, the new border policy promoted by the Estado Novo and the decline in exports of yerba mate for Argentina, allowed for the advancement of pioneer from São Paulo and Paraná. Gradual changes will be felt in these southern areas: empowerment of municipalities, the consolidation of animal husbandry trade and social problems, verifiable, especially since the 1970s. Keywords: Matte Larangeira; independent producers; economy Herbalist; pioneer fronts.

A CIA MATTE LARANGEIRA E OS PRODUTORES INDEPENDENTES (1882-1940) Entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a região ervateira do antigo sul de Mato Grosso foi um espaço de grandes interesses entre a Companhia Matte Larangeira e os pequenos produtores de erva-mate, considerados como posseiros. A partir da criação da Lei 725 de 1915,3 muitos produtores tiveram possibilidades de adquirirem os títulos provisórios e definitivos da terra para a extração da erva-mate, promovendo concorrência à referida empresa. A lei de 1915 provocou reações adversas principalmente no que se referia aos interesses da Cia.. É importante observar que quando se trata da economia ervateira no antigo Sul de Mato Grosso (SMT),4 a historiografia mato-grossense e sul-mato-grossense tende a enfatizar a atuação e a presença da Companhia Matte Larangeira.5 Essa empresa, cuja origem remonta à iniciativa de Thomaz Larangeira, que entre as décadas de 1870 e 1880, exerceu um papel virtualmente monopolista na economia ervateira sul-matogrossense. Mas, é certo que muitos autores apontam a presença de produtores independentes nessa economia, entendidos como posseiros.

3 Lei estadual nº 725, de 1915, que dava direito aos posseiros à aquisição de terras num máximo de dois lotes, de extensão não superior a 3.600 hectares cada lote, desde que comprovassem morada habitual e cultura efetiva anterior a 1914.


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O crescente povoamento na região, em grande parte decorrente da migração gaúcha, avolumava-se e as vastas extensões ocupadas pela Matte Larangeira não deixavam de interessar aos novos ocupantes que tornaram-se suspeitos à Cia. A Lei estadual nº 725, em 1915, reconheceu o direito dos posseiros à aquisição de terras na área. Foi, então, concedida preferência aos posseiros para a aquisição de um máximo de dois lotes de extensão, não superior a 3.600 hectares cada lote, desde que comprovassem morada habitual e cultura efetiva anterior a 1914. No relatório apresentado pelo 1º vice-presidente, Antonino Ferrari, ao então presidente do Estado, D. Aquino Corrêa, por conta de uma viagem feita ao SMT em 1918, Ferrari destacou a situação delicada da Matte Larangeira em relação aos posseiros amparados pela lei 725. Os povoadores da Comarca de Ponta Porã, pretendentes a posse de terras, amparados no novo contrato, estavam dispostos a promover uma revolução, caso não fossem attendidos em suas pretenções, e, de outro lado, a administração da Empresa se mostrava apreensiva e immensamente prejudicada pelo contrabando, crescente e ameaçador, praticado por alguns posseiros e várias pessoas intrusas, visto que as autoridades policiaes não podiam pôr cobro a taes abusos e a Empresa indefesa não dispunha de recursos para cohibil-os (FERRARI, 1918, p. 3).

Entretanto, a partir de 1920, o jornal semanário ponta-poranense, O Progresso, expressava opinião em seu editorial a respeito da Lei 725, no sentido de que a referida lei beneficiou em certa medida a empresa arren4 SMT, neste trabalho, tem o desígnio de referir-se ao antigo sul de Mato Grosso, isto é, quando o Mato Grosso ainda era uno. Portanto, a sigla contempla também o atual sul de Mato Grosso do Sul. 4

A nomenclatura “Larangeira” deriva de nome familiar, por isso é grafada com a letra “g” no nome de Thomaz Larangeira — um nome próprio proveniente de um sobrenome —, e não com “j” como seria se derivado da fruta. Porém, muitos autores não a definem, e também em muitos documentos oficiais da empresa encontramos a palavra escrita tanto com “g” quanto com “j”. Assim, para efeito de padronização, optamos por grafar em conformidade com sua designação em vários documentos de época: Companhia Matte Larangeira.


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datária exploradora da erva-mate em detrimento dos antigos posseiros. Segundo o jornal, com o novo contrato de 1916 entre a Matte Larangeira e o Estado, esta ainda continuou com os privilégios de outrora, e aparentemente a Lei 725 não veio satisfazer os anseios dos posseiros. O legislador que elaborou o decreto 725 que privilegiou immensamente a Empreza Matte Larangeira [...] não lembrou-se, que dentro deste município existem hervaes, que além das quatrocentas léguas arrendadas àquela Empreza, ainda dá para arrendar a outra qualquer empreza que queira explorar esse negócio, tanto assim, que deu preferência de escolha à empreza arrendatária, que bem poderia medir as quatrocentas léguas arrendadas sem prejudicar um só posseiro (JORNAL O PROGRESSO, 14 mar. 1920, nº 4).

No então distrito de Dourados, o problema não foi diferente. O mesmo jornal publicou, em 13 de junho de 1920, uma matéria com o título O caso de Dourados, segundo a qual a população local causava resistências à medição de terras arrendadas à Matte Larangeira, pois muitos ocupantes das áreas ficariam sem a posse. Há um grande número de habitantes de Dourados installados na zona a ser reservada para a Empreza. Esses occupantes de terras na quasi totalidade apropriados de pequenas glebas, ficarão literalmente sem recursos, privados de tudo, pois não há quasi terras devolutas a serem requeridas ali (JORNAL O PROGRESSO, 13 jun. 1920, nº 17).

No lugar denominado Cedro (região de Ponta Porã), o fiscal do governo esteve nas posses de Severo Leite dos Santos e Theodoro Ayres de Castro, que os mesmos haviam requerido, tendo o fiscal observado os limites das ditas posses e os prejuízos que sofreram, sendo que em todas elas a Empresa havia tirado deles os cultivos e as aguadas existentes, prejudicando-os enormemente (JORNAL O PROGRESSO, 21 mar. 1920, nº 5). A esperança dos posseiros, representada pelo jornal, era que, através do fiscal do governo junto à medição de terras arrendadas a Matte Larangeira, o governo desse parecer favorável aos moradores da região. O fracionamento editado em 1915 foi reeditado em 22 de julho de 1924, através da Resolução n° 911, onde autorizava o Poder Executivo a


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arrendar em concorrência pública, pelo prazo máximo de dez anos, uma área de um milhão de hectares das terras ervateiras de propriedade do Estado6 (v.tb. ARRUDA, 1986). Com a Lei 911, a Matte Larangeira sofreu nova restrição em ocupar a vasta área dos ervais. Contudo, o vice-presidente em exercício do Estado de Mato Grosso, Estevão Alves Corrêa, sancionou a Resolução n° 930, de 16 de julho de 1925, proibindo novos contratos de arrendamentos dos ervais e reservando a partir de 1927 a venda dos lotes de 3.600 hectares (MACHADO, 1940, p. 32). Entre os protestos dos posseiros e ervateiros contra a Matte Larangeira destacamos Nazário Rosário de León, um paraguaio, que em 1918 justificou legalmente e requereu a compra de uma posse de terras pastais e lavradias, com 1.800 ha, na fazenda conhecida como Carapó (hoje município de Caarapó). Sua petição foi deferida em 1923, ou seja, dentro dos parâmetros legais estabelecidos pelo contrato de arrendamento das terras ervateiras de 1916, que garantia a antigos posseiros o direito de compra de até dois lotes de 3.600 hectares. No entanto, seu pedido foi cancelado em 1924, por pressão da Matte Larangeira, alegando-se que ele não teria providenciado a extração do título provisório dentro do prazo estabelecido. Deduzimos que Nazário desenvolvia em seu lote a elaboração de erva-mate fora do controle da Matte Larangeira, bem como prometia fracionar seu lote para outros pequenos produtores. A Companhia costumava armar bandos que moviam acirrada perseguição e praticavam violências contra os que se postavam politicamente contra a Matte Larangeira. Os posseiros, que tinham requerido a compra de terras ao Estado, sofriam pressões para abandoná-las ou enfrentavam a morosidade da repartição de terras, como informa o jornal O Matto Grosso: Os requerimentos e justificações de posse dos particulares a que a empresa trazia sempre que invariavelmente os seus protestos vieram mostrar desde logo que não era de fácil solução o assunto, que ia

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É possível encontrar referências à lei 911 de 1924 em vários trabalhos de Virgílio Corrêa Filho, dentre eles Ervais do Brasil e ervateiros, 1957, p. 68.


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exigir do governo o maior escrúpulo e perfeito conhecimento de causa para resolver caso tão intrincado. Os dois anos prescritos pela lei já se passaram; os requerimentos dos pequenos posseiros existem hoje em uma verdadeira ruína na repartição de terras sem ter tido até agora solução alguma (O MATTO GROSSO, Cuiabá, 9 de março de 1919, apud GUILLEN, 1999, p. 158).

O período posterior à Lei 725 foi uma via dolorosa para os pequenos produtores, pois os pretendentes a alguns hectares de terras tinham que provar que estavam nas condições das exigências a que se referia a lei. Os processos tramitavam em Cuiabá, de modo que se tornava muito difícil um ingênuo posseiro conseguir um advogado que pudesse realmente atender aos anseios destes, ir até Cuiabá e, através de testemunhas, garantir as posses. Uma outra angústia que atormentava os posseiros estava em que, segundo denúncias, a Comissão Esquerdo (sob o comando do engenheiro Fernando Esquerdo), encarregada de fazer as medições das áreas, pouco se importava em fazer os trabalhos dentro das normas legais, havendo indícios de que esta comissão media posses já tituladas provisoriamente, como também aquelas que não tinham títulos. Tudo isto levava os posseiros a um grande risco, e ficar a ver navios (JORNAL O PROGRESSO, 19 dez. 1920, nº 43). Os atritos entre a Companhia Matte Larangeira e os posseiros ultrapassavam os recintos da região ervateira. A vigilância da Matte, tanto no espaço ervateiro como nas esferas governamentais, tinha por objetivo evitar que os posseiros se apropriassem de grandes áreas e viessem fazer-lhe concorrência na exploração de erva-mate. Embora os contratos estabelecessem os limites do arrendamento, na prática esses limites não foram respeitados pela Matte Larangeira, isto porque a empresa, em muitos casos, cumpria somente as obrigações contratuais que lhe fossem convenientes, e porque esses limites não haviam sido demarcados pelo Estado. Portanto, a falta de demarcação dos limites do arrendamento possibilitou à Companhia usar de seus direitos contratuais, expulsando de “suas” áreas os posseiros que lhe fossem inconvenientes. Apesar de tudo, a indústria extrativa da erva-mate entrou, a partir de 1922, segundo o presidente do Estado, em fase de promissora prosperidade. A área “subtraída” da Matte Larangeira fora subdividida também


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para os produtores independentes, antigos posseiros, na intenção, segundo o Governo, de favorecer o aumento da produção. Pedro Celestino, na sua Mensagem ao Legislativo em 1924, comentou: Revertendo à posse directa do Estado a [área] excedente, calculada em 2 milhões de hectares, [...] vem sendo subdividida e alienada parcelladamente a consideravel numero de adquirentes, de modo que actualmente se estabeleceram dois factores de produção: o da Empresa e o dos particulares (COSTA, 1924, p. 77).

Assim, com a instituição da Lei 725, de fato, propiciou a muitos povoadores, que se achavam estabelecidos dentro da área antes arrendada pela Cia., a garantia da aquisição dessas terras. Saldanha (1986, p. 465) informa que de imediato começaram a aparecer quantidades de mate produzidas fora do controle da Matte Larangeira, sendo que esta nenhuma atitude tomou contra esse fato, uma vez que, não adquirindo essa erva, ela não poderia ser exportada. Neste caso, a fórmula encontrada por muitos produtores foi venderem sua produção a comerciantes paraguaios, estabelecidos do outro lado da fronteira. Muitos desenvolveram o trabalho ainda na clandestinidade, isto é, enquanto ainda havia as incertezas das posses. Isto é possível ser afirmado, uma vez que o próprio presidente do Estado, Pedro Celestino, questionava o fato de as receitas que entravam no Tesouro do Estado estarem aquém dos volumes de erva-mate exportados, sendo que grande parte dessa erva-mate circulava sem o conhecimento das coletorias de impostos. Nos anos seguintes da década de 1920, muitos produtores independentes despacharam erva-mate por meio da exportação legalizada para o Paraguai. Essa atividade era do conhecimento da Matte Larangeira, mas esta, em tese, nada podia fazer, isto porque, as ações dos produtores correspondiam à lei. Parece patente que, para levar a erva-mate por via terrestre até o Paraguai, os produtores utilizavam as mesmas estradas carreteiras que a Matte Larangeira utilizara anteriormente. O crescimento da pequena produção de erva-mate tornou-se evidente à medida em que a política de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, procurou dar continuidade às leis 725 e 911, no sentido de fragmentar os extensos latifúndios existentes no sul de Mato Grosso. Nesta


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ocasião, Vargas implantou uma política de ocupação dos extensos territórios, utilizando o slogan Marcha para Oeste. A ocupação e povoamento de levas de migrantes, oriundos do Sudeste e principalmente do Nordeste, para essas regiões com baixa densidade demográfica, se deu também em outros estados como Goiás, Paraná e Amazonas. O objetivo de tal política, segundo Alcir Lenharo (1986), era desafogar os grandes centros urbanos e povoar as vastas áreas desabitadas. Essa política terminou por desfazer o contrato de arrendamento das terras devolutas do Estado com a Matte Larangeira. Assim, em 1941, Vargas negou autorização para que se renovasse o contrato de arrendamento dos ervais; era também recomendado que se estabelecesse um regime de “livre exploração dos ervais” e “colonização racional”, devendo ainda, serem oficializados os povoados criados pela Companhia no interior de seus domínios. DECLÍNIO DAS EXPORTAÇÕES DE ERVA-MATE Como se sabe, a economia ervateira nestas paragens era fortemente voltada ao mercado externo, sobretudo o mercado consumidor argentino. Isso é válido ao menos quando se tem em mente o destino da erva elaborada pela Companhia Matte Larangeira, cuja produção vinculava-se a Buenos Aires, onde o mate cancheado era industrializado e distribuído. Porém, ao avizinhar-se os anos quarenta, a Companhia não mais detinha todo aquele poderio de outrora em parte devido à constante diminuição das importações de erva-mate brasileira pelo mercado argentino que já produzia o mate tipo suave nos ervais plantados na província de Misiones. Assim, de acordo com o pesquisador Alvanir de Figueiredo: A Argentina tendo iniciado a intensificação de formações de ervais artificiais em Misiones a partir de 1903 atingiu em 1926, ano de nossa maior exportação de erva-mate, a 18 milhões de erveiras plantadas. Acelerando o processo de plantio, que se prenunciava fecundo, o Govêrno Argentino determinou que pelo menos metade das terras aforadas no Território de Misiones deveriam destinar-se ao cultivo da erva-mate. Em 1935 nosso vizinho atingia a 48 milhões de erveiras plantadas, atingindo a superprodução (FIGUEIREDO, 1968, p. 127).


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O crescimento da produção ervateira argentina seguia constante, conseguindo mesmo superar a produção brasileira em 1937 (106.330, contra 96.544). A superposição se dava por imposição do mercado interno, porém o “País ainda importou do Brasil 35.842.160 quilos, a fim de compor os tipos comerciais com tradição” (id., ibid., p. 324-5). Pode-se afirmar aqui, que a tradicional preferência do consumidor argentino por um mate do tipo mais forte deu ainda alguma sobrevida à produção mato-grossense naquele mercado. QUESTÃO FUNDIÁRIA E MEDIAÇÃO POLÍTICA Concretamente, para as terras do Sul de Mato Grosso, o Estado Novo combinou as seguidas negações de renovação de contrato com a Matte Larangeira,7 com a instituição do Território Federal de Ponta Porã, de modo que, “onde se concentravam a sede e grande parte dos ervais da Companhia, os domínios da Matte ficavam diretamente submetidos à fiscalização federal”. A criação do Território Federal de Ponta Porã serviu ainda à estratégia do governo federal de controle da fronteira. Tendo êxito na ação, o governo voltou-se em seguida à implantação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados – CAND (1943), utilizando-se de propaganda intensiva a fim de atrair levas de populações para ocupar os “espaços vazios”8 do oeste brasileiro. O projeto civilizador aparecia bem delineado: além da criação da CAND, “tentou-se impulsionar o ensino agrícola através da criação do Aprendizado Agrícola” (LENHARO, 1986, p. 66). A esta iniciativa somaram-se os modelos de colonização de iniciativa estadual. Próximo à metade do século XX, houve uma mudança de eixo quanto à política de transferência das terras para domínio privado em Mato

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Como vimos, os negócios já declinavam com a diminuição das importações argentinas.

8 Essa expressão revela um discurso civilizador cuja intenção manifesta era o de povoar com os “nacionais”, descartando o elemento indígena nesta categoria. O contingente de paraguaios era, ao contrário, motivo de preocupação.


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Grosso. Gradativamente, privilegiou-se a transação por “contrato de compra e venda de terras devolutas” (MORENO, 1993, p.127) em detrimento das concessões de exploração. Do final dos anos de 1940, até a década de 60, a venda de grandes extensões de terras passou a ser a principal fonte de receita do estado de Mato Grosso sem, contudo, “obedecer qualquer ordenamento fundiário. Até aquele período, as regularizações fundiárias restringiram-se mais à legitimação de posses e reconhecimentos de domínios particulares (a maioria deles verdadeiros grilos)” (id., ibid., p. 7). Moreno sustenta que, após a deposição de Vargas em 1945 e com a criação da Comissão de Planejamento da Produção em 1947, que orientava a colonização no Estado, coube aos governos estaduais comandar a colonização. Viu-se aí o “continuísmo de alienações indiscriminadas de terras e na sua utilização como premiações a favores político-eleitorais” (id., ibid., p. 181). Os grupos políticos que se revezavam à frente do governo estadual facilitavam e fraudavam títulos de terras em favor de seus correligionários. É bastante conhecido que o poderio político da Companhia era expressão de um virtual monopólio que exercia sobre a imensa área de ervais nativos, situada no extremo meridional do antigo Estado de Mato Grosso. Os arrendamentos, sucessivamente prorrogados, revelavam a estreita relação com que mantinha articulados seus interesses com os de grupos políticos dirigentes à frente do Estado. Essa situação só passaria a ser seriamente enfrentada com a centralização do poder político nas mãos de Vargas, durante a ditadura do Estado Novo, sobretudo durante a propalada Marcha para o Oeste que “visava, entre outros alvos, criar um clima de emoção nacional de modo a que todos os brasileiros se vissem marchando juntos, e, conduzidos por um único chefe, consumassem coletivamente a conquista, sentindo-se diretamente responsáveis por ela” (LENHARO, 1986, p. 14). Nos discursos elaborados pelos teóricos do Estado Novo, “a Companhia Matte Larangeira foi apresentada como inimiga do projeto de colonização e nacionalização da fronteira, na medida em que obstaculizava o avanço da Marcha” (GUILLEN, 1999, p. 76). Lenharo corretamente revelou que o governo Vargas antes de acabar com a renovação dos contratos de arrendamento com a Companhia Matte Larangeira adotara como estratégia delinear uma política de intervenção em seus negócios da erva-mate (LENHARO, 1986, p. 66). Com efeito, cria-


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va através do decreto-lei nº 375, de 13/07/1938, o Instituto Nacional do Mate (INM), uma autarquia vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio 9, à qual competia, dentre outras atribuições, a de incrementar e aperfeiçoar a indústria do mate e a organização do sistema de crédito e cooperação entre produtores, industriais e exportadores. O interlocutor do INM formulava entender por ideal a distribuição metódica dos ervais a muitos para que, ao ali se radicarem, pudessem conservá-los, produzindo e comercializando inclusive para a Matte Larangeira, que absorveria grande parte da produção independente. FRENTES PIONEIRAS E A NOVA FRONTEIRA AGRÍCOLA (1940-1970) Do ponto de vista sociológico, passou-se a convencionar por frentes de expansão, as migrações espontâneas, um tanto à margem das políticas fundiárias. Já as frentes pioneiras, que se fizeram presentes em seguida, foram empreendimentos mais em sintonia com a lógica capitalista, numa conjuntura de especulação de terras e produção para o mercado. O geógrafo João Fabrini, apoiando-se na concepção sociológica de José de Souza Martins, resume bem a distinção entre os dois tipos de colonização: Com a expansão do capitalismo, o posseiro será deslocado e passa a avançar sobre as terras indígenas, pressionado pelo capital, preparando campo para o avanço da “frente pioneira”. A terra ocupada e situada entre o território do fazendeiro e a sociedade tribal, é resultado do fenômeno chamado frente de expansão. Aí se destaca a figura do posseiro. Sua economia não pode ser classificada como natural, já que está integrada através do valor de troca do excedente aí produzido, realizado na economia de mercado. No entanto, as relações não são determinadas pela produção de mercadorias. A “frente pioneira” vem num segundo momento, quando as relações capitalistas tornam-se imperativas, e avançam sobre as terras dos 9 Após a deposição de Vargas, foi o INM transferido para o Ministério da Agricultura, em 17/01/1946, nele permanecendo até sua extinção pelo decreto-lei nº 281, de 28/02/1967.


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posseiros, surgindo aí os conflitos de terra entre posseiros e fazendeiros. A “frente pioneira”, se caracteriza pelo empreendimento econômico; propriedade privada da terra (concebida como mercadoria e adquirida através de compra); e produção voltada para o mercado (FABRINI, 1995, p. 43-4).

Neste sentido, a frente de expansão enquadraria tanto os gaúchos que penetraram na região na última década do século XIX, quanto trabalhadores de outras partes do país, costumeiramente chamados posseiros, que tensionados por dificuldades econômicas desbravavam terras novas em busca de garantir o próprio sustento. Observações empíricas de geógrafos, em excursão pelo rio Paraná na década de 1950, registraram a existência de colonização com perfil de frente pioneira em terras na barra do Ivinhema. Nelas, sòmente em 1953, começavam a surgir os primeiros indícios de um início de povoamento. Em alguns casos, poucos, eram Companhias que conseguiram grandes áreas e pretendiam loteá-las, iniciando uma colonização. É o caso da Fazenda Caiuá, na margem matogrossense, a jusante da barra do Ivinhema. Em outros, eram grandes glebas apenas aproveitadas para extração de madeira. Num ou noutro dêsse tipo de propriedade, encontramos outra atividade, a exemplo da Fazenda Iporã, tambem na margem matogrossense, cêrca de 110 quilômetros ao sul da Fazenda Caiuá, onde existem canaviais e onde se fabrica aguardente, consumida em Guaíra e rio-abaixo. Entretanto, o mais comum e mais caracterizador das áreas em foco, com terras devolutas, é a presença de “posseiros” (PETRONE, 1957, p. 87).

Ao final da observação, todavia, deixam claro que predominava ainda no início dos anos 50 a ocupação de posseiros, tipicamente de “frente de expansão” — que caracteriza indivíduos marginalizados, pressionados pela luta pela sobrevivência, embrenhados nas matas das terras ribeirinhas, cultivando-as para fins de subsistência. De certa forma ratificam a análise formulada por Fabrini, de que a “presença do posseiro era marcante na margem do Rio Paraná e a ocupação da terra, rarefeita, dispersa e, em dimensão reduzida” (1995, p. 44).


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Geógrafos franceses que pesquisaram a antiga área dos ervais matogrossense, ao interpretarem os impactos que as ocupações populacionais causaram à floresta, defendem que a floresta resistiu a duas formas brandas de predação — extração da erva-mate e a atividade pecuária — até 1937, quando a colonização abriu grossas clareiras, acrescentando que, com a nova configuração ao trabalhador paraguaio dos ervais, “muito pobre e instável para tornar-se colono, [...] tornou-se o trabalhador braçal por excelência dos desmatamentos florestais” (PÉBAYLE; KOECHLIN, 1981, p. 6). Aqui, talvez os pesquisadores franceses, ao fixarem o ano de 1937, o façam por ser este o ano da instalação da ditadura do Estado Novo, em que Getúlio Vargas, ao concentrar poderes, imporia duro combate a regionalismos e, motivado por preocupações geopolíticas, lançaria (em 1938) a “Marcha para o Oeste”, sintetizando propósitos de interiorização do país com vistas à unidade nacional. Do nosso ponto de vista, parece-nos mais oportuno trabalhar com a ideia de serem as décadas de 1940 e 50, período de transição, nele convivendo elementos de frentes de expansão e de frentes pioneiras; quando do desfecho, os últimos ganhariam hegemonia e imprimiriam nova configuração socioeconômica à região. A marcha pioneira “destruidora de riquezas naturais”: tal é a segunda fase da valorização do sul de Mato Grosso. Aqui, entretanto, o avanço é a um tempo conquista e reconquista. É conquista pioneira nas florestas atingidas pela marcha na direção do Oeste, dos plantadores paulistas e paranaenses, “Homens por demais apressados”, ao qual “a economia do mundo pioneiro impôs uma técnica agrícola devastadora”. Isto de 1940 a 1965, mais ou menos. Mas ela é também reconquistada pelos homens do Rio Grande do Sul que, pelos fins dos anos 60, empreenderam transformar a exploração dos espaços criadores dos campos-limpos (PÉBAYLE; KOECHLIN, 1981, p. 10).

A esta ocorrência, adiciona o caso da localidade onde hoje é o município de Itaquiraí. A contar pelas conclusões de João Fabrini, o avanço das frentes pioneiras foi mais determinante para o povoamento local do que algum projeto de colonização — como o que ocorrera em Naviraí — o que o faz deduzir que a apropriação das terras de Itaquiraí já nascera concentrada.


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Apropriadas, na maioria, por pessoas que exerciam atividades urbanas (militares, funcionários públicos, comerciantes, empresas madeireiras, etc.) e, também, por fazendeiros pecuaristas, na década de 30 e 40, essas terras serão ocupadas mais intensamente no avanço da “frente pioneira” e com a prática da pecuária a partir da década de 50. Aqueles que adquiriram terra, via de regra, grandes propriedades, junto ao Estado (terras devolutas), deixaram-na à espera de valorização quando seriam parceladas ou vendidas integralmente a fazendeiros de São Paulo e Paraná. É, neste momento, que intensifica-se a concentração de terras na região e no município de Itaquiraí, onde a estrutura fundiária “nasceu” concentrada, acentuando-se com a expansão pioneira e a ocupação mais intensa feita por paulistas e paranaenses (FABRINI, 1995, p. 61).

Objetivamente, ao seguir para o antigo sul de Mato Grosso no sentido leste-oeste — até as vastas áreas dos ervais — a expansão da fronteira pioneira paulista provocara alterações mais profundas na paisagem e maior incremento populacional quando comparada àquela antiga corrente migratória sulista, que ocupou o território no sentido oeste-leste, exercendo a atividade pecuária e integrada também à tradicional atividade extrativa do mate. A esse respeito Alvanir de Figueiredo concluía que “a presença do mate forçou o desbravamento, mas não o povoamento maciço, deixando pouco mais que a evidência histórica de sua presença” (1968, p. 300). Figueiredo entendia que “o segundo setor, justamente aquêle ligado ao pioneirismo do leste alterou mais o quadro. A eliminação das matas e a criação de núcleos novos, com sucessivos contingentes de imigrantes, principalmente nacionais, aceleraram a ocupação” (id., p. 249). Tudo leva a crer, portanto, que o avançar da frente pioneira foi preponderante para o aceleramento da população que margeava a fronteira com o estado de São Paulo até as imediações de Dourados. À medida que marchava para os pontos mais ocidentais e meridionais, o processo era amortecido pela ocupação anterior, voltada à pecuária e à cultura ervateira, embora não suficiente para bloquear a nova onda, mais integrada ao mercado nacional. O alardeamento de terras baratas e produtivas, bem como a gradual melhoria de vias de comunicação terrestre, estimulou a migração inter-


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na de agricultores de São Paulo e da região oeste do Paraná, influindo muito significativamente nos municípios aonde ela primeiro chegou, haja vista que “no caso de Mato Grosso, a densidade populacional era tão baixa no estado em geral que o imenso fluxo migratório para o sul alterou radicalmente a composição demográfica do estado inteiro [...]” (FOWERAKER, 1982, p. 72). É considerável destacar que para o Extremo-sul de Mato Grosso eram áreas rurais (e nem tanto as urbanas) que atraíam as populações em migração, seja para apropriação das terras, seja para nelas trabalharem, destacando-se neste último caso o expressivo número de migrantes nordestinos que para ali se dirigiam.10 A respeito da erva-mate extraída (e agora também da cultivada), observa-se que, com o avançar da frente pioneira, [...] a atividade retraiu-se sempre para áreas nucleares típicas junto à fronteira, em territórios que pertenceram a Ponta Porã e que hoje dividem-se entre os atuais município de Iguatemi, Amambai, Ponta Porã, Dourados, Rio Brilhante e Antônio João, principalmente. Contudo, é em Amambai e Ponta Porã, que se concentra mais a exploração ervateira [...]o aumento vigoroso da população em processo está ligado a um pioneirismo moderno e não ao mate ou à pecuária extensiva de fins do século passado e princípios do atual (FIGUEIREDO, 1968, p. 297).

O mesmo autor, referindo-se às áreas fragmentadas no momento de sua análise (1968) pela iniciativa colonizadora, assinalava que na zona da CAND, a atividade ervateira só permanecia em áreas ainda em vias de desbravamento, como em Caarapó, Iguatemi, Naviraí etc (id., ibid., p. 253). Em resumo, estando cada vez mais reclusa nas áreas junto à fronteira, finalmente na década de 1960 a atividade ervateira iria praticamente se esgotar no Extremo-sul de Mato Grosso, se pensada em escala comer-

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Se a concentração de terras e a seca no nordeste expulsavam as famílias para as metrópoles do sudeste — São Paulo e Rio de Janeiro — a frente pioneira paulista também os atraía para, a seguir, expeli-los a áreas mais a oeste, dando o sentido do curso da marcha pioneira.


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cial de grande porte. Em seu lugar vê-se a influência das atividades agropecuárias em áreas vizinhas, que o mercado nacional impõe. Cultivam-se produtos agrícolas voltados ao abastecimento das cidades mas, gradualmente, esses serão preteridos por novas culturas agrícolas voltadas à exportação, isso já na década de 1970. Quanto à pecuária, esta se mantém forte em todo o processo — cada vez mais significativa, diríamos. FONTES BIBLIOGRÁFICAS ARRUDA, Gilmar. Heródoto. In: CICLO da erva-mate em Mato Grosso do Sul 1883 –1947. InstitutoEuvaldo Lodi. 1986, p. 219. CORRÊA FILHO, Virgílio. Ervais do Brasil e ervateiros. Documentário da Vida Rural, nº 12, Ministério da Agricultura, 1957, p. 68. FABRINI, João E. A posse da terra e o sem-terra no sul de Mato Grosso do Sul: o caso Itaquiraí. 1995. Dissertação (Mestrado em Geografia) – FCT/ UNESP, Presidente Prudente. FIGUEIREDO, Alvanir de. A presença geo-econômica da atividade ervateira. 1968. 435 f. Tese (Doutorado em Geografia Física) – F.F.C.L./UNESP, Presidente Prudente: (Doutoramento em Geografia) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – Presidente Prudente. FOWERAKER, Joe. A luta pela terra: a economia política da fronteira pioneira no Brasil de 1930 aos dias atuais. Trad. Maria Júlia Goldwasser. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. 315 p. LENHARO, Alcir. Colonização e trabalho no Brasil: Amazônia, Nordeste e Centro-Oeste. Campinas: Ed. Unicamp, 1986. MORENO, Gislaene. Os (des) caminhos da apropriação capitalista da terra em Mato Grosso. 1993. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – FFLCH/USP, São Paulo. PEBAYLE, Raymond; KOECHLIN, Jean. As frentes pioneiras de Mato Grosso do Sul: abordagem geográfica e ecológica. Espaço e conjuntura, São Paulo: USP, 1981. PETRONE, Pasquale. No Rio Paraná, de Porto Epitácio a Guairá (relatório de viagem). Boletim Paulista de Geografia, São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros, n. 27. p. 55-94, 1957. SALDANHA, Athamaril. Capataz Caatí. In: CICLO da erva-mate em Mato Grosso do Sul 1883 –1947. Instituto Euvaldo Lodi. Campo Grande, 1986.


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DOCUMENTOS, JORNAIS E FONTES DA INTERNET COSTA, Pedro Celestino Corrêa da. Presidente do Estado de Mato Grosso. Mensagem apresentada à Assembléia 13 de maio de 1924. p. 77. Cuiaba, Typographia Official. Disponível em wwwcrl.uchicago.edu/collections/ braziliangovernment. FERRARI, Antonino. (1° Vice-Presidente) Relatório apresentado ao Presidente do Estado, D. Aquino Corrêa.1918. GUILLEN, Isabel C. Martins. A luta pela terra nos sertões de Mato Grosso. Estudos Sociedade e Agricultura, n. 12, p. 148-168, abr. 1999. Disponível em http://www.redcapa.org/Downloads/esa12 guillen.pdf. JORNAL O PROGRESSO. 13 de junho de 1920. Número 17. ANNO 1. Ponta Porã – Mato Grosso. JORNAL O PROGRESSO. 14 de março de 1920. Número 4. ANNO 1. Ponta Porã – Mato Grosso. JORNAL O PROGRESSO. 21 de março de 1920. Número 5. ANNO 1. Ponta Porã – Mato Grosso. MACHADO, Dulphe Pinheiro. Relatório sobre a Inspeção realizada no sul de Mato Grosso e oeste do Paraná. Conselho de Segurança Nacional – Comissão Especial de Revisão das Concessões de Terras na Faixa de Fronteiras. Doc. 1677, nov. 1940. 212p. (Arquivo Nacional - RJ).


Entre crises e estabilidade política: Campo Grande e os primeiros passos como capital do Estado de Mato Grosso do Sul (1977 – 1985) Wagner Cordeiro CHAGAS1

RESUMO Numa cidade que se torna Capital de Estado, a população que nela reside, e os habitantes do restante do estado, esperam que esta seja conduzida pelos gestores públicos da melhor forma possível. Não foi o que ocorreu com Campo Grande, cidade escolhida para sediar o Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, ao ser elevado a essa condição no dia 11 de outubro de 1977. Ao longo de 5 anos, num período de efervescência política, caracterizado pela transição da ditadura militar para o regime democrático no Brasil, onde a oposição liderada pelo MDB/ PMDB crescia fortemente a cada ano, e ainda perduravam leis que davam o direito aos governadores de Estado de nomear os prefeitos das Capitais, onde ele poderia nomear e demitir aqueles que atendessem a seus interesses políticos, Campo Grande experimentou uma situação político-institucional crítica, tendo 7 pessoas no cargo de prefeito, numa sucessão de ascensões e quedas de mandatários, até o momento em que ocorreu a primeira eleição direta aquela prefeitura, na condição de capital de estado, no ano de 1985. Palavras-chave: Política; Prefeitura; Governo do Estado.

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Mestrando em História pela FCH-UFGD, com o tema de pesquisa: As eleições de 1982 ao governo de Mato Grosso do Sul: a vitória oposicionista. Professor de História em Fátima do Sul/MS. Este artigo foi elaborado como requisito de avaliação da disciplina Mato Grosso do Sul: história e historiografia, ministrada pelo professor doutor Paulo Roberto Cimó Queiroz, no segundo semestre do PPGH da FCHUFGD, no ano de 2012.


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ABSTRACT In a city that becomes Capital of the State, the people who live there, and the inhabitants of the rest of the state, expect it to be driven by public managers in the best way possible. That’s not what happened with Campo Grande, city chosen to host the state government of Mato Grosso do Sul, to be elevated to this status on October 11, 1977. Over 5 years, a period of political unrest, characterized by the transition from military dictatorship to democratic rule in Brazil, where the opposition led by MDB/PMDB grew strongly each year, and still lingered laws that gave the right to the governors of State to appoint the mayors of the Capital, where he could appoint and dismiss those that met their political interests, Campo Grande experienced a politico-institutional critique, with 7 people in the office of mayor, in a succession of rises and falls of trustees to the time at which the first direct election that municipality, provided the state capital, in 1985. Keywords: Politics, City Hall, the State Government. INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo tecer uma discussão introdutória a respeito do contexto político vivido pela cidade de Campo Grande a partir do momento em que se tornou sede do governo de Mato Grosso do Sul. Inicialmente traz-se um breve histórico sobre as origens da cidade, sua ocupação, seu processo de desenvolvimento econômico a partir da década de 1910, sobretudo no ano de 1914. Em seguida, aborda-se a questão do surgimento do estado de Mato Grosso do Sul, gestado a partir da cisão do antigo Mato Grosso, e discute-se rapidamente as articulações políticas e as disputas de poder que existiram na unidade federativa que nasceu para ser modelo para o Brasil e que desde os primeiros anos de instalação experimentou um processo de golpes palacianos em torno do cargo de governador. Por último, apresenta-se a situação de Campo Grande entre os anos destacados no título deste artigo, buscando apoio em algumas fontes como atas do Legislativo estadual e jornais campo-grandenses, com objetivo de representar como as articulações e disputas por poder naquela cidade marcou os primeiros anos da nova capital de estado brasileiro.


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1. AS ORIGENS DE CAMPO GRANDE Campo Grande surgiu na porção sul do antigo estado de Mato Grosso no final do século XIX numa época de conquistas dessas terras por moradores de províncias2 vizinhas, principalmente de Minas Gerais e São Paulo. Relatar as origens deste município requer uma investigação a respeito do período em que aquela localidade era habitada pelas populações indígenas, pois se a história é entendida por meio dos processos sociais da humanidade, nada mais justo do que demonstrar sua participação nesta construção. No entanto, cabe ressaltar que devido ao tema deste artigo não me aprofundarei em tais questões, mas me preocuparei em apresentar quais etnias estiveram presentes na constituição da história aqui relatada. Conforme o sociólogo Paulo Eduardo Cabral, em texto publicado na obra Campo Grande 100 anos de construção, ainda é desconhecido qual dos povos indígenas que se encontra no estado de Mato Grosso do Sul teria sido o primeiro a povoar o território do município. O autor supõe que: Dada a sua localização e as características daqueles grupos, pode-se especular entre os terenas, caiapós e guaranis. É lícito supor que os terenas, situados hoje em Aquidauana e Sidrolândia, dentre outros municípios, sejam os que, mais provavelmente, dominaram os sítios da futura capital. Já os caiapós foram uma presença marcante no caminho monçoeiro que demandava a Cuiabá, espalhados por toda a região cortada pelo rio Pardo, podendo, pois, terem estado por aqui. Os guaranis, sabe-se que foram reduzidos pelos jesuítas espanhóis, no século XVII, em algum local nas imediações de Camapuã e, embora mais remota, não se deve desconsiderar a hipótese de sua presença na área que viria a ser Campo Grande. Dessa forma, ao se pensar a população campo-grandense, sua formação, sua dinâmica, não se pode dei-

2 Até o término do período imperial, em 15 de novembro de 1889, as divisões territoriais do Brasil que hoje, devido a Constituição republicana de 1891, chamamos Estado, recebiam a denominação de Província.


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xar de consignar a sua matriz indígena, muitas vezes esquecida. É preciso sublinhar esta lacuna, indicar a necessidade de se incentivar essa pesquisa já que, como de resto em qualquer outra parte do Brasil, os índios foram os habitantes originários de todas as áreas que, depois, seriam destinadas à formação de cidades (1999, p. 27).

Nesta descrição se observa que Cabral trabalha com suposições no que tange aos grupos aborígenes que teriam passado pela região que hoje compreende Campo Grande. Ele fortalece também a ideia de se colocar o índio como elemento constitutivo da história da sociedade brasileira. A respeito da ocupação por populações não indígenas, Marisa Bittar apresenta, em obra de co-autoria com o jornalista Dante Filho, intitulada Dos campos grandes a capital dos ipês, uma indagação sobre quem teria chegado primeiro a essas terras, o mato-grossense João Nepomuceno ou o mineiro José Antônio Pereira. Segundo constatado pela autora: Notícias informam que, quando aqui chegou um 1872, José Antônio Pereira já encontrou o poconeano João Nepomuceno. Travaram conhecimento. José o encarregou de tomar conta de suas roças enquanto voltasse a Minas para buscar a família. Assim foi feito e o fato que dá primazia de fundador a José Antônio é que foi ele quem marcou o local e depois organizou o povoado. Além disso, na região já estavam estabelecidas outras famílias imigrantes: ao sul, os Barbosas da Vacaria ocupavam várias fazendas, assim como os Muzzis em Entre Rios; os Lopes e Garcias em Santana do Paranaíba; e nas proximidades de Nioaque, Antônio R. Coelho e outros. Por isto, como escreveu Abílio de Barros, na verdade, José Antônio não fez uma viagem de descobrimento, mas uma localização (BITTAR & FILHO, 2004).

Em relação a como José Antônio teria ouvido falar dos tais campos grandes, a autora demonstra que a maior hipótese é que o guia Luiz Pinto Guimarães, um dos membros da Retirada da Laguna, o tenha informado sobre a região. Sobre os retirantes do famoso episódio da Guerra do Paraguai (1865-1870), é válido destacar o que Bittar escreve sobre o momento em que os sobreviventes passaram pelas terras onde


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se encontra Campo Grande: De volta às terras sul-mato-grossense, depois do ataque a Laguna, no Paraguai, combatentes extenuados buscavam Camapuã. Na junção de dois córregos, onde se iniciavam campos grandes e abertos, os sofridos retirantes pararam para se recuperar da longa retirada. Ali desfrutaram de bom descanso e seus olhos retiveram a visão de amplas terras, horizontes abertos e largos, que a todos agradou. Especialmente um deles não deixaria que aquele lugar aprazível caísse no esquecimento (Idem, 2004).

Fundado, o povoado foi batizado com o nome de Vila de Santo Antônio de Campo Grande. A forte religiosidade do homem considerado fundador da cidade, associada à devoção a Santo Antônio, influenciou na escolha do nome para o local e também na fundação da primeira capela que recebeu a denominação do popular santo casamenteiro. A escolha do local para se fundar aquela cidade é vista por Bittar como estratégico, pois se encontrava próximo aos campos da Vacaria, lugar de abundante quantidade de gado, proximidade com Paranaíba, Goiás e o chamado Triângulo Mineiro. Em relação à distância de Miranda e Corumbá não era tão extensa a ponto de não permitir contato com aquelas cidades. Por outro lado, a historiadora discute que a fundação do povoado esteja ligada ao ensejo de seus fundadores, por um “lugar para se estabelecer, para viver e trabalhar” (Idem, 2004). Isso diferenciava aquela cidade de outras mato-grossenses que surgiram devido a exploração do ouro, como é o caso de Cuiabá, e pontos de estratégia militar, exemplos de Albuquerque, Corumbá e Miranda. A situação econômica de Campo Grande nesses primeiros momentos é assim descrita pela autora: Carroças e carros de boi passando pela desarruada e tortuosa formação, tropas de burros tocadas por peões marchando aceleradamente, levantando densa poeira e cobrindo a visão dos moradores [...] esse era o cenário típico da vila, que tinha a pecuária em comum com o Triângulo Mineiro. Por isto se diz que Campo Grande “surgiu do boi”. Era um centro de compra de gado magro da Vacaria levado para


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Uberaba para ser engordado e revendido a São Paulo. Assim sendo, começou a atrair fazendeiros que aqui se instalavam formando fazendas por perto que serviam como “depósitos de gado”. Ao mesmo tempo em que aqui encontravam a boiada pronta, eles vendiam as mercadorias que traziam, aproveitando a viagem (Ibidem, 2004).

Dessa maneira, a atividade pecuária teve papel fundamental na formação de pequenos estabelecimentos comerciais na vila de Santo Antônio de Campo Grande, já que muitos dos boiadeiros ficavam dias no local para as transações comerciais. Esses estabelecimentos comerciais localizavam-se na popular Rua Velha, atual Rua 26 de Agosto (em alusão a data da emancipação do município), a primeira rua a ser formada na vila. No dia 26 de agosto de 1899, a vila foi elevada a condição de município por meio de decreto3 assinado pelo presidente do Estado de Mato Grosso, coronel Antônio Pedro Alves de Barros. Por meio desta lei, Campo Grande se emancipava do município de Nioaque, mas ainda permaneceria como comarca deste. O primeiro administrador da cidade foi Francisco Mestre, nomeado interventor-geral interino, exercendo o cargo de 1899 a 1902, ano em que se realizou a primeira eleição, onde foram escolhidos intendente-geral Bernardo Franco Baís e Francisco Mestre. No entanto, como Bernardo Baís não quis assumir a função, Mestre continuou governando até 1º de novembro de 1904 (Cf. Joaquim Sebastião Pereira, p. 274)4. Nesse período uma série de mudanças começaram a ocorrer naquela pequena cidade, as primeiras escolas começaram a ser construídas, estradas boiadeiras e carreteiras começaram a ser abertas, como foi o caso do trecho que ligava Campo Grande a Porto XV de Novembro aberta por iniciativa do sertanista Manuel da Costa Lima. Contudo, uma grande transformação viria ocorrer naquela cidade com a chegada da ferrovia da Companhia Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB), a partir de 1907.

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Cf. Decreto nº 225 de 26 de agosto de 1899, In: Campo Grande: 100 anos de construção. 4

Campo Grande: 100 anos de construção.


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2. A NOB, O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E A REVOLUÇÃO DE 1932 Entre as décadas de 1910 e 1920 a cidade passou a ser destacada e disputar espaço no cenário estadual com a capital Cuiabá, por diversos motivos. É o que relata Bittar: “A futura capital fora beneficiada pela chegada da locomotiva em 1914 e, depois, pela 9º Região Militar do setor Oeste, que ali se instalou em 1921” (BITTAR, 1999, pág. 98). A chegada da Ferrovia Noroeste do Brasil a Campo Grande é de valorosa importância para o desenvolvimento dessa cidade. Sobre isso, Paulo Cimó Queiroz relata: Em Campo Grande concentrou-se também, entre os anos 1920 e 1950, expressiva parcela dos estabelecimentos rurais com menos de 100 há existentes na “área da NOB” [...]. Foi igualmente destacado o processo geral de valorização das terras no município de Campo Grande” (QUEIROZ, 2004, p. 450).

Com isso Campo Grande substitui as cidades de Corumbá e Nioaque no que se refere a importância política. Em 1932 eclodiu em São Paulo a Revolução Constitucionalista contra o governo de Getúlio Vargas5, e Campo Grande posicionou-se a favor dos paulistas, enquanto Cuiabá se manteve leal ao governo federal. No caso de Campo Grande ocorreu que lideranças militares, entre eles o general Bertoldo Klinger, instalaram-se nesta cidade e de lá prometeram enviar uma tropa composta de cinco

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Com base nos escritos de Boris Fausto (2006), entre os motivos da Revolução paulista de 1932 destaca-se o fim da hegemonia política deste Estado a partir do momento em que o ex-governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, tornouse presidente da República por meio de um Golpe de Estado, em 1930. Ao assumir o governo federal Vargas impôs uma série de medidas centralizadoras, como a nomeação de interventores federais nos estados no lugar dos governadores. Além disso, o governo revogou a Constituição Federal de 1891 e prometeu uma nova Carta Magna. Foi com a justificativa de lutar por uma Constituição que as elites paulistas resolveram pegar em armas para lutar contra as tropas federais. O movimento durou cerca de três meses e foi derrotado pelo Exército Brasileiro. (Cf. FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006).


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mil “soldados”. Contudo, essa tropa não chegou e ficou apenas na promessa. No entanto, conforme Bittar, “isso não significa que [o sul de] Mato Grosso tenha se ausentado da luta: contingentes de revolucionários deixaram Campo Grande e seguiram em auxílio aos paulistas” (BITTAR, 2009, p. 163). 3. A DIVISÃO DE MATO GROSSO E A CRIAÇÃO DE MATO GROSSO DO SUL A ideia de divisão de Mato Grosso segundo Bittar começa a ganhar destaque após o levante de 1932. É o que descreve a autora: Foi depois da derrota que estudantes mato-grossenses criaram, no Rio de Janeiro, a Liga Sul-Mato-Grossense, que expressou pela primeira vez em documento, a intenção de dividir Mato Grosso. Por isso, a partir de 1934, pode-se dizer que a causa divisionista transformou-se em movimento divisionista (BITTAR, 1999, p. 100). Contudo, essa ideia não foi resolvida pelos governos da época, como relata Bittar: “[...] Não coube a ditadura Vargas solucionar a questão separatista do sul de Mato Grosso: a tarefa seria adiada para outra ditadura [...]” (Idem, p. 104).

E foi o que ocorreu, a divisão de Mato Grosso ocorreu no dia 11 de outubro de 1977, no contexto da ditadura militar implantada em 1964, no governo Ernesto Geisel (1975-1979). O governo deste presidente se mostrou interessado pela divisão já que isto fazia parte da geopolítica militar6. Além disso, como defende Amarílio Ferreira Junior, um dos fatores geradores da separação do estado estava relacionado a ampliação da base governista no Congresso Nacional, tendo em vista o crescimento do MDB nas eleições parlamentares de 1974, com objetivo de auxiliar o governo no período da abertura político iniciada timidamente nesta gestão.

6 Em consonância com Bittar (1999), esta geopolítica fora desenvolvida pelo Ministro Chefe do Gabinete Civil Golbery do Couto e Silva, na obra Geopolítica do Brasil (1967), onde consta que uma das estratégias de defesa interna fosse a ocupação “a tempo” dos “espaços vazios” (BITTAR, 1999, p. 104).


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Os interesses político-partidários representam uma relevante importância, visto que o novo estado teria direito a 8 vagas na Câmara Federal e 3 no Senado. Seria formada uma nova Assembleia Legislativa e o governador do Estado seria indicado dentro dos quadros da ARENA estadual. Apesar de nascer sob a ótica da ditadura, a divisão de Mato Grosso e criação de Mato Grosso do Sul foi um ato apoiado por políticos oriundos do latifúndio e contrários a ditadura, enraizados em Campo Grande, como é o caso dos irmãos Plínio Barbosa Martins e Wilson Barbosa Martins7, como relata a historiadora Marisa Bittar ao citar a entrevista de Plínio: É preciso levar em conta a minha posição política. Na época eu era frontalmente contra os governos da revolução. Eu discordava da maioria esmagadora de todos os atos administrativos e especialmente dos políticos. Mas sou uma pessoa que reconhece que esse presidente favoreceu muito a divisão do estado, que era almejada por todos os sulistas [...] (Entrevista de Plínio Barbosa Martins concedida à Marisa Bittar, no dia 9 de janeiro de 1995).

No entanto, a autora demonstra que a bandeira do divisionismo não era defendida pelo partido político do qual os irmãos eram filiados, o MDB, pois segundo ela “a luta pela democratização da sociedade bra-

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Wilson fora prefeito de Campo Grande nos anos de 1950 pela UDN e depois se elegeu deputado federal nos anos 1960, tendo seu mandato cassado pela ditadura em 1969, quando era do MDB. Plínio, seu irmão mais novo, elegeu-se vereador em Campo Grande no ano de 1961, também pela UDN. Foi prefeito da mesma cidade entre 1967 e 1970, agora como integrante do MDB, além de ter sido candidato a senador por duas ocasiões (1970 e 1978), derrotado por Filinto Müller e Rachid Derzi, na primeira ocasião, e por Pedro Pedrossian, na segunda tentativa. Segundo o professor Paulo Cimó em uma de suas aulas do Programa de PósGraduação em História da UFGD, Plínio obteve destaque também como advogado ao defender diversos presos políticos do regime. Ambos são sobrinhos-netos de Vespasiano Barbosa Martins, indicado líder dos rebeldes do sul de Mato Grosso no movimento rebelde de 1932.


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sileira na década de 1970 era mais importante para a oposição; já a causa divisionista, pela sua natureza, não fez parte dessa agenda” (BITTAR, 2009, pág. 345). É possível afirmar dessa maneira que o fato de Wilson e Plínio ficarem satisfeitos com a divisão aprovada por Geisel está ligado a trajetória familiar, já que eram sobrinhos-netos de Vespasiano Barbosa Martins, um dos líderes que defendeu a divisão de Mato Grosso a partir de meados dos anos de 1930. Apesar da sanção da Lei Complementar nº 31 ter sido elogiado pela maior parte da classe política estadual, esse ato se constituiu de modo arbitrário, já que a população da antiga Unidade da Federação não foi consultada a respeito da cisão daquele que era o segundo maior estado brasileiro em extensão territorial. Sobre isso Marisa Bittar afirma: O estado-sonho tornava-se enfim, estado-realidade. Provavelmente, porém, o sonho não era de todos. A população, privada da participação, mostrou, com o seu silêncio, um misto de indiferença e aprovação. Uma parte, de fato, favorável à divisão do estado, mas isso nunca foi mensurado. O que os jornais registraram foi a “passeata monstro”, em Campo Grande, para comemorar o acontecimento. Embora tenha ocorrido a manifestação, ela foi única e, assim mesmo, depois do ato consumado. Em todo processo, não houve participação popular. A maioria nem sequer soube do envio do projeto de lei ao Congresso Nacional e da sua aprovação em setembro, só vindo a saber do ato consumado em outubro. A surpresa foi quase geral (Ibidem, p. 316).

Dividido, os estados ficaram assim: [...] Mato Grosso ficou constituído de 38 municípios, totalizando sua superfície 881 quilômetros quadrados, permanecendo como terceiro estado da federação em tamanho, atrás de Amazonas e Pará. A população [...] segundo o censo de 1970, alcançava 601.000 habitantes [...] Mato Grosso do Sul integrou-se por 55 municípios, totalizando 350.549 quilômetros quadrados. Esses municípios possuíam, em 1970, um milhão de habitantes [...] (Ibidem, p. 351-352).


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Em 1978, realizaram-se as primeiras eleições com vistas à formação do primeiro grupo de deputados estaduais, federais e senadores da nova unidade federativa8 Na votação à Câmara dos Deputados, 6 deputados federais foram eleitos. Tanto a ARENA, quanto o MDB elegeram três parlamentares. Já para a Assembleia Legislativa, foram sufragados 18 representantes, sendo que a sigla governista alcançou 11 cadeiras e a oposição 7. Os primeiros deputados estaduais tiveram um papel relevante no novo estado, pois ficaram responsáveis por elaborar a primeira Constituição Estadual, aprovada em meados de 1979. Ao Senado Federal, a disputa pela única vaga aberta naquele pleito foi acirrada. 4 nomes concorreram ao cargo, sendo que despontaram o ex-governador de Mato Grosso uno, Pedro Pedrossian (ARENA) e o vereador por Campo Grande, Plínio Barbosa Martins (MDB). Numa apertada disputa Pedrossian se elegeu com 134.338 votos, enquanto Plínio levou 130.652 votos. A partir dessa conjuntura, com a vitória de Pedrossian ao Senado, e a obtenção da maioria arenista na Assembleia Constituinte, o governo demonstrou uma relativa força política nesse território recém criado. Todavia, é necessário ressaltar que os grupos oposicionistas ao regime de militar, alcançavam cada vez mais adeptos e espaços, o que de certa maneira deixava os articuladores políticos do regime apreensivos. Sobre isso, Bittar relata: Apesar do conservadorismo político que predominava, o MDB crescia em decorrência de dois fatores conjugados entre si: 1º) a reorganização da sociedade brasileira, que se intensificou no final da década de 1970, e que, em Mato Grosso do Sul, a tendência oposicionista se fortalecia por meio de movimentos das camadas médias urbanas, como professores da rede pública estadual, representados pela Federação de Professores de Mato Grosso do Sul; estudantes; advogados, organizados na OAB, como também de trabalhadores do campo, organizados na Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAGRI);

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A esse respeito ver o livro Mato Grosso do Sul, a construção de um estado: poder político e elites dirigentes sul-mato-grossenses, de Marisa Bittar, publicado em 2009, pela editora da UFMS.


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2º) a instabilidade política desencadeada pela ARENA a partir da divisão de Mato Grosso (Ibidem, p. 155).

Sob essas condições, é que se deu, devido à falta de consenso entre os líderes arenistas sul-mato-grossenses, a indicação do primeiro governador, o engenheiro e diretor do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), oriundo do estado do Rio Grande do Sul, Harry Amorim Costa. Nesse governo, o estado enfim iniciava sua trajetória em busca da consolidação da tese do estado modelo, idéia defendida por aqueles que ergueram a bandeira divisionista e que acreditavam ser Mato Grosso do Sul uma referência para o Brasil naquele momento.

4. ENTRE CRISES E ESTABILIDADE POLÍTICA, A SITUAÇÃO DE CAMPO GRANDE COMO CAPITAL NOS ANOS DE 1977 A 1985 Conforme descreve Bittar e Filho, a elevação dessa cidade à condição de capital do Estado trouxe significativas transformações. Quais seriam elas? No que se refere ao número de habitantes, constata-se um aumento: “O censo de 1970 aponta 140.233 habitantes em Campo Grande (...). Já o de 1980, mostra que a população mais que duplicou: são 291.777 habitantes”. (BITTAR e FILHO, 2004). Como capital de Estado, Campo Grande passa agora a ser sede de um governo estadual. As conseqüências disso referem-se à formulação de uma infra-estrutura que possibilite abrigar diversas repartições ligadas aos poderes executivo, legislativo e judiciário. Quando a cidade recebeu esse status era administrada pelo engenheiro Marcelo Miranda Soares, eleito pela ARENA em 1976, num embate com Sérgio Cruz (MDB), tendo o apoio do ex-governador Pedro Pedrossian e do então prefeito Levy Dias (ARENA). Na gestão do governador Harry Amorim, Marcelo continuou como prefeito, porém até junho de 1979, quando foi escolhido para assumir o governo do Estado, devido a queda do primeiro chefe do Executivo. A gestão Harry enfrentou diversas pressões a frente do cargo, na maioria dos casos, pressões vindas de políticos locais que não viam com bons olhos um forasteiro para administrá-lo. Sobre o governo Harry, Bittar


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destaca o que descreve Amarílio Ferreira Júnior: O governo de Harry durou apenas enquanto a Assembleia Constituinte elaborava a primeira Carta de MS, entre janeiro e junho de 1979. A curta história do primeiro governo de Mato Grosso do Sul se explica pela falta de governabilidade de que padecia. Das três facções da ARENA, apenas a dos “Renovadores” lhe conferia apoio, mas era uma base de sustentação residual [...]. Além disso, no início de 1979, havia assumido a presidência da República o general Figueiredo, em substituição ao general Geisel que, visando a sua própria sucessão passou a apoiar a facção majoritária do partido que dava sustentação para a ditadura militar: o grupo liderado pelo senador Pedro Pedrossian. Assim, depois de junho de 1979, quando o Executivo necessitaria de maioria na Assembleia Legislativa para governar, a administração de Harry chegou ao fim, pois o apoio no parlamento estadual lhe era negado principalmente pela tendência majoritária da ARENA (apud BITTAR, 2009, p. 175).

Com a destituição do primeiro governador em menos de 6 meses do início, e na falta da figura do vice-governador, o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Londres Machado (ARENA), respondeu pelo governo até o dia 29 de junho de 1979. Nesse intervalo, Marcelo Miranda foi escolhido como o nome de consenso para chefia o Estado. Com isso, Miranda renunciou ao posto de prefeito de Campo Grande para exercer o governo do Estado. Com Marcelo fora da prefeitura, e sem a existência do vice-prefei9 to , o presidente da Câmara Municipal, vereador Albino Coimbra, assumiu a vaga, iniciando assim a fase de uma série de prefeitos indicados. Sua gestão se estendeu por pouco mais de um ano, até novembro de 1980. Um segundo momento de instabilidade político-administrativa veio acontecer no Estado com a deposição de Marcelo Miranda. Mais uma vez, o senador Pedrossian estava por trás das articulações, contudo, ago-

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O vice era Alberto Cubel Brull, que devido a sua eleição em 1978 para deputado estadual constituinte, precisou renunciar ao cargo.


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ra o parlamentar tinha uma força política maior no Palácio do Planalto, o presidente João Figueiredo, amigo pessoal e que acreditava ser Pedro o melhor nome para o fortalecimento do Partido Democrático Social (PDS)10 para levar o governo a vitória nas eleições de 1982. Com Pedrossian no poder, encerram-se as fases dos governadores nomeados pelo governo central no Estado. A nomeação deste já era cogitada logo após a divisão de Mato Grosso, no entanto, devido a uma série de disputas políticas dentro de seu partido por meio de líderes políticos opositores a Pedro, essa nomeação tardou. Apesar disso, o então senador não desistiu das tentativas até conseguir a nomeação para o cargo. Ao tomar posse Pedro exonera Albino e nomeia, com intuito de reatar alianças políticas, o deputado federal Levy Dias11. Enquanto Levy aguardava a análise de seu nome pela Assembleia Legislativa, e estando Coimbra fora do comando do município, o prefeito interino fora outro representante do Legislativo, o vereador Leon Denizart Conte. Com base nas pesquisas feitas em Atas do Legislativo estadual, a nomeação de Levy causou discussões acaloradas no plenário da Assembleia entre deputados governistas e oposicionistas. Um dos motivos estava relacionado ao fato de Dias ter aceito a prefeitura das mãos do governador Pedrossian, já que a menos de dois anos antes, este condenara a posição dos três senadores (Pedrossian, Rachid Saldanha Derzi e Antônio Mendes Canale) e de dois deputados federais (Rubén Figueiró e João Leite Schmidt) por terem sido os principais articuladores que levou a queda do governador Amorim Costa. Em discurso como membro do PMDB, o deputado Ramez Tebet, que outrora pertencia a ARENA, chegando inclusive a ser nomeado prefeito biônico do município de Três Lagoas, destaca:

10 Com o pluripartidarismo em 1980, nasceram novos partidos no Brasil. A ARENA deu lugar ao PDS, e o MDB acrescentou a letra “P” ao nome, passando a se chamar PMDB. 11 Conforme Bittar (2009), com a ascensão de Harry Amorim ao governo, Levy Dias rompeu relações com Pedrossian e passou a dar intenso apoio a Harry, inclusive indicando nomes para a composição do governo estadual.


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[...] Este era o Levy Dias de ontem, mas não é o Levy Dias de hoje, proposto por Sua Excelência, o Governador do Estado, para gerir os destinos da Capital. Levy Dias de ontem dizia, por ocasião da queda do Governador Harry Amorim Costa, que em nenhum momento foi discutido os interesses do Estado, que em nenhum instante foi ouvido, nisso tudo, o seu povo. E nós perguntamos aos senhores Deputados, se nesta oportunidade o povo foi ouvido, se o povo não continua sendo esbulhado, se o povo não continua sendo ignorado, se o povo não continua sendo maltratado por aqueles que estão defendendo unicamente seus interesses pessoais, e entre os quais se inclue o próprio indicado para prefeito de Campo Grande.12

A gestão de Levy, pela segunda vez a frente da prefeitura de Campo Grande, durou apenas 2 anos, quando o governador Pedrossian resolveu demiti-lo em 6 de abril de 1982. A motivação para tal ato estava ligada ao estilo independente e desafiador de Levy, principalmente por ele ter, enquanto chefe do município, iniciado suas articulações para concorrer a governador pelo PDS nas eleições de 1982. Ocorre que Pedrossian e seu grupo vinham, desde fevereiro daquele ano, defendendo o nome de Paulo Fagundes, engenheiro e presidente da ENERSUL, como candidato a sucessor de Pedro. As atitudes de Dias eram entendidas por aliados do governador como conspiratórias. A manchete do jornal Diário da Serra, de 7 de abril era enfática ao explicar os motivos desta demissão: “Levy Dias sai da Prefeitura, Pedrossian o exonera para preservar PDS”13. Com mais uma demissão de prefeito, coube ao presidente do Legislativo campo-grandense, o vereador Valdir Cardoso (PDS)14, considerado um dos homens mais fiel a Pedrossian, comandar a Capital até que viesse a nomeação de outro.

12

TEBET, Ramez. Discurso. In: Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Ata nº 137, fl. 10, da primeira legislatura da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, 19 nov. 1980.

13

LEVY Dias sai da Prefeitura, Pedrossian o exonera para preservar PDS.

Diário da Serra. Campo Grande, 7 abr. 1982, p. 05. 14

FIEL a Pedro, Valdir assume. Diário da Serra. Campo Grande, 8 abr. 1982, p. 05.


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Em maio do mesmo ano foi aprovada a nomeação do engenheiro e diretor do DERSUL (Departamento de Estradas de Rodagem de Mato Grosso do Sul), Heráclito de Figueiredo15, figura que chegou a ser cogitado pelo governador como seu possível sucessor no pleito de 1982. O ano de 1982 foi marcante na história política nacional, pois após 16 anos sem eleição direta para os governos estaduais, o governo militar aprovou, com inúmeras determinações casuísticas, que objetivavam dar maior força ao PDS, o retorno dos pleitos diretos. Em 10 Unidades da Federação a oposição sagrou-se vitoriosa, sendo Mato Grosso do Sul um deles, por meio da vitória da dupla Wilson Barbosa Martins e Ramez Tebet16, ambos do PMDB, ao derrotar o candidato pedrossianista, José Elias Moreira (PDS). Desta vez, com o governo do Estado sob o comando do PMDB17 a partir de março de 1983, a prefeitura de Campo Grande passou a ser ocupada pelo partido, e pela primeira vez por uma mulher, Nelly Elias Bacha18, que exercia a Presidência da Câmara. Nelly foi a primeira mulher em todo Brasil a comandar uma Capital, e exerceu a função até a nomeação de Lúdio Martins Coelho. Personalidade de destaque no meio rural do antigo Sul de Mato Grosso, oriundo da tradicional família Coelho, Lúdio iniciou sua trajetória política na UDN, optando, na ditadura, pela ARENA, até 1979. Nesse meio seu maior destaque foi a candidatura a governador de Mato Grosso em 1965, sendo, contudo, saiu derrotado pelo jovem engenheiro Pedro

15

HERÁCLITO indicado para prefeito. Diário da Serra. Campo Grande, 13 abr. 1982, p. 05.

16

Ramez Tebet não era um autêntico no PMDB, era recente sua filiação a essa legenda. Antes de compor a oposição a ditadura, Tebet fora um dos principais nomes da ARENA, chegando a ser nomeador prefeito de Três Lagoas, pelo governador Garcia Neto. 17

Apesar do PMDB ter saído vitorioso ao governo e ao Senado, com Marcelo Miranda Soares, na maioria dos municípios do Estado (32) deu PDS, e em 18 deu PMDB. É válido lembrar que existiam 13 municípios sob a condição de Área de Segurança Nacional, cujos gestores eram escolhidos pelo governador. (Cf. BITTAR, 2009, p. 235). 18

NELLY assume prefeitura amanhã. Diário da Serra. Campo Grande, 13 mar. 1983, p. 07.


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Pedrossian (PSD). Conforme Bittar, desde aquela derrota Coelho não exercia nenhuma cargo político, vivendo um “certo ostracismo”. Foi com as eleições de 1982 que ele resolveu ingressar no PMDB ao lado de Wilson Martins. A nomeação de Lúdio teve resistências de algumas alas da legenda, devido a sua origem política. Conforme os autores Eronildo Barbosa e Tito Carlos, em obra sobre os 40 anos do PMDB estadual, Wilson Martins havia oferecido o cargo a Marcelo Miranda, que não o aceitou já que havia sido eleito senador e pretendia cumprir o mandato. Um grupo liderado por Juarez Marques tentou, por meio de aliança com lideranças comunitárias indicar um nome. Por outro lado, membros oriundos do antigo Partido Popular apresentaram o nome de Antônio Mendes Canale, candidato ao Senado na sublegenda do PMDB em 1982. Por fim Wilson optou pelo nome de Coelho, pois segundo os autores “surgiu como uma forma de contemplar os ruralistas, que estavam desconfiados com o perfil de centro-esquerda do novo governo” (SILVA & OLIVEIRA, 2006, p. 86). Além disso, contribuiu para tal o apoio dado por Lúdio a candidatura de Wilson Martins. Ainda de acordo com Bittar: “[...] Lúdio normalizou a vida institucional de Campo Grande, desacreditada da opinião pública e desorganizada pelas sucessivas imposições do Executivo com a divisão de Mato Grosso [...]” (BITTAR, 2009, p. 248). Outro fato interessante diz respeito a participação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em algumas secretarias e nos programas municipais de obras e de ajuda as classes sociais menos favorecida da cidade. Isso deu grande popularidade ao prefeito que em 1988 retornou eleito, desta vez pelo PTB, partido ao qual Pedro Pedrossian e boa parte de seu grupo havia se filiado em 1986. Em 1985, com o País sob a égide de um presidente civil, José Sarney (PMDB)19, e de novas legendas partidárias, os pleitos para escolher os prefeitos da capitais e dos municípios tidos como Área de Segurança

19

Em janeiro de 1985 ocorreu a última eleição indireta a Presidência da República, onde o candidato do PMDB, Tancredo Neves venceu o governista Paulo Maluf (PDS). A eleição de Tancredo representou o fim do regime autoritário implantado em 1964. Contudo, no dia da posse do novo presidente, este foi internado com problemas cardíacos, vindo a falecer em abril. José Sarney na condição de vicepresidente assumiu a função.


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Nacional voltaram a ser diretos. Em Campo Grande os candidatos foram: Juvêncio César da Fonseca (PMDB), Levy Dias (PFL), Sérgio Cruz (PDT), Euclides de Oliveira (PCB), Jandir de Oliveira (PT) e Wilson Hokama (PTB)20. No início daquele ano as pesquisas indicavam a liderança do candidato Sérgio Cruz, deputado federal que saíra do PMDB para poder ser candidato a prefeito. Popular pela sua profissão de radialista e por seu estilo radical no combate a ditadura, o “Pau na mula”, como também era conhecido, acabou ficando em terceiro lugar. Com mais de 60 mil votos Juvêncio se elegeu, e em segunda colocação ficou o ex-prefeito Levy. Quadro 1 Prefeitos de Campo Grande de 1977 a 1985 PREFEITO

PARTIDO

MANDATO

Marcelo Miranda Soares Albino Coimbra Filho Leon Denizart Conte Levy Dias Valdir Cardoso Heráclito Diniz de Figueiredo Nelly Elias Bacha Lúdio Martins Coelho

ARENA ARENA ARENA PDS PDS PDS PMDB PMDB

31/jan./1977 - 29/jun./1979 29/jun./1979 - 07/nov./1980 07/nov./1980 - 19/nov./1980 19/nov./1980 - 06/abr./1982 06/abr./1982 - 12/maio/1982 12/maio/1982 - 14/mar./1983 14/mar./1983 - 20/maio/1983 20/maio/1983 - 31/dez./1985

Fon te: elab orado com in fo rmações d o livro Camp o Grande: 100 an os d e cons trução, s ite: http :// pt.wikiped ia.org/wiki/An exo:Lis ta_ de_ pref eitos_ de_ Camp o_ Gran de_ (Mato_ Gross o_ do_ Sul) e jorn ais Co rreio d o Es tado e Diári o da Ser ra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo buscou apresentar um contexto histórico que ainda se encontra pouco estudado, relacionado a aspectos políticos do estado de Mato Grosso do Sul e de sua Capital. Neste breve ensaio foi possível perceber que as tramas políticas advindas das disputas por poder, logo após a divisão de Mato Grosso, tendo como personagem central Pedro

20

cf. o site http://www.marcoeusebio.com.br/coluna/eleicoes-de-1985—o-anoem-que-sergio-cruz—e-quot-caiu-na-onda-e-quot-do-radio/21360. Acessado dia 16 jan. 2013.


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Pedrossian, levaram Campo Grande a enfrentar um de seus momentos históricos mais complicados, visto que uma cidade sem normalidades institucionais não corresponde aos anseios de seus moradores, gerando assim uma situação de insegurança entre seus cidadãos. Por meio dessa síntese ficou visível que em muitos casos os interesses políticos se encontram distantes dos interesses da coletividade. Por fim, acredito que muitas informações precisam ser levantadas, para que se possa melhor compreender esse período da história política de Campo Grande e de Mato Grosso do Sul. A cidade que praticamente decide todas as eleições para governadores do Estado necessita ter seu processo histórico avaliado com maior cuidado, para que se possa desconstruir mitos personificados em alguns líderes ou fatos, e permitir a suas novas gerações um conhecimento do passado em que eles possam entender que também fazem parte dessa construção e devem se interferir na vida pública de seu município.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BITTAR, Marisa & FILHO, Dante. Dos campo grandes à capital dos ipês. Campo Grande: Gráfica Editora Alvorada, 2004. _____________. Mato Grosso do Sul a construção de um estado: regionalismo e divisionismo no sul de Mato Grosso. 1º vol. Campo Grande: UFMS, 2009. _____________. Sonho e realidade: vinte e um anos da divisão de Mato Grosso. Multitemas. Periódico das Comunidades Departamentais da UCDB, Campo Grande, n. 15, p. 93-124, out. 1999. CORREA, Afonso N. S e DEQUECHI, Lira (org). Campo Grande: 100 anos de construção. In: CABRAL, Paulo Eduardo. Formação étnica e demográfica. Campo Grande. Matriz, 1999. _____________. In: PEREIRA, Joaquim Sebastião. A evolução político-administrativa de Campo Grande. Campo Grande. Matriz, 1999. FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Compa-


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nhia das Letras, 2006. SCHMITT, Rogério. Partidos políticos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. QUEIROZ, Paulo R. C. Uma ferrovia entre dois mundos: a E. F. Noroeste do Brasil na 1º metade do século XX, Bauru: EDUSC; Campo Grande: Ed. UFMS, 2004. 526 p. SILVA, Eronildo Barbosa da & OLIVEIRA, Tito Carlos Machado de. Do MDB ao PMDB: quarenta anos de Mato Grosso do Sul. Campo Grande: Oeste, 2006. FONTES CONSULTADAS LEVY Dias sai da Prefeitura, Pedrossian o exonera para preservar PDS. Diário da Serra. Campo Grande, 7 abr. 1982, p. 05. FIEL a Pedro, Valdir assume. Diário da Serra. Campo Grande, 8 abr. 1982, p. 05. HERÁCLITO indicado para prefeito. Diário da Serra. Campo Grande, 13 abr. 1982, p. 05. NELLY assume prefeitura amanhã. Diário da Serra. Campo Grande, 13 mar. 1983, p. 07. TEBET, Ramez. Discurso. In: Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Ata nº 137, fl. 10, da primeira legislatura da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul. Campo Grande, 19 nov. 1980.


FICÇÃO

Dia dos pais Debora Pereira SIMÕES1

O

telefone não toca. A televisão desligada. O silêncio do bichano que apenas repousa na almofada. Silêncio roubado, vez por outra, pelo vendedor de sorvetes, pelas crianças que brincam na calçada oposta ou por um gorjeio sorrateiro para comemorar o magnífico dia de sol além da janela. “Um dia perfeito” já fora dito pela manhã. Mas nada há que motive sua mente a pensar em idílios, em flores ou riachos com águas cantantes. Existe a noite anterior e é só. Noite de ares frios, cães a ladrar, e a incômoda intuição que algo soturno se avizinha. Olhos vermelhos, ainda úmidos, negras olheiras, maquiagem escorrida, olhar perdido entre as fotografias do álbum e soluços a custo trancados para não acordar ninguém da casa. Aos dezessete, fugira de casa, levara consigo fotografias roubadas dos arquivos da família. Recomeçaria à distância, mas suas raízes, fincadas às pedras da serra em que crescera, queria em dias de solidão, que sabia serem certos no futuro, regar, ainda que a gotas de suor e lágrimas. Nunca entendera os olhares alongados pela silhueta de menina, ou as carícias nos cabelos — mais freqüentes nela que na própria mãe. Sabia apenas que jamais estivera em paz a sós com o pai, mesmo antes da morte da mãe. Aos dezessete, que afirmava serem dezoito, contava aos novos amigos da lanchonete em que conseguira trabalho ser órfã, sem irmãos ou parentes para lhe oferecerem guarida. “Vida dura a dessa moça”, todos pensavam. Em função dessa compaixão, permaneceu empregada mes-

1

Mestre em Literatura e Práticas Culturais pela UFGD. Publicou o livro de poemas Sobre meninas e borboletas (2011).


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mo quando a faculdade lhe tirava noites de sono e a eficiência no trabalho. Em função dela, também não tinha muitas perguntas a responder, afinal, “Deve doer falar sobre o assunto”. Estudos concluídos, graças a uma bolsa “para a pobre órfã”. Sempre esse remorso a lhe assombrar. Casamento simples, sem a pompa de entrar levada pela mão ao altar. Outros longos anos de trabalho quase exaustivo. Quem precisava de tempo para relembrar os mortos que inventara? Os filhos, mais apegados ao esposo que a ela. Gostava de pensar que isso era uma compensação do destino. Eles teriam o que lhe fora negado e que ela própria renunciara aos dezessete. Mas, na noite de ares frios, fora cumprir seu plantão. A incômoda sensação a rondar por todas as esquinas do caminho. Jaleco vestido, brancamente impecável. Caminhava pelos corredores como se nenhuma porta se abrisse para sua passagem. Uma enfermeira surge a gritar seu nome e a arremessar seus tristes pensamentos de volta ao trabalho. Mais uma vida em suas mãos. Mais um desconhecido a precisar de auxílio médico. O vigésimo ferido do engavetamento monstro daquela noite de ares soturnos. Nenhum dos subordinados compreende o tremor de suas mãos, sempre firmes e ágeis. “O que será que está acontecendo? Ela não é assim...”. Mesmo assim, ninguém a culpou quando os aparelhos indicaram que o coração não mais batia e a hora da morte fora anotada no prontuário. Eram ferimentos demais e a hemorragia interna não estancava, não havia muito a ser feito. Após todos terem se retirado da sala, ela começa a derramar grossas gotas de dor. Quanta crueldade do destino! Como podia ela ter uma sina tão amarga? Em suas mãos a vida do homem de quem há dezessete anos fugira. E, atroz pena, o primeiro de seus pacientes da emergência que se perdia em quase quatro anos de atividade médica. Acidentalmente ela repousa a mão na perna do pai que evitava lembrar possuir e sente um pequeno volume. Quase instintivamente ela retira do bolso do morto algo que julgava ter-se perdido quando em criança. Cuidadosamente dobrada, amarelada pelo tempo e esgarçada, uma fralda com um gatinho a usar um guizo preso numa coleira vermelha que ela usava para ajudar a conciliar o sono até os seis anos de idade. Por entre as lágrimas, ela atenta para um detalhe que nunca lhe parecera importante. No rebordo do tecido, com letras quase apagadas,


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a maior de todas as ironias de sua vida: “Orfanato Madre Amélia da Cruz”. E, como num clarão, via sua grande mentira transformar-se em contundente verdade numa noite de ares soturnos e maus presságios. Não se recorda como chegou a casa. Tudo que conseguia era remoer a noite anterior. Houve, porém, uma mão pequenina de criança que a puxou de volta ao mundo dos vivos. Era a pequena Laís, sua ruivinha de cachinhos dançantes e olhos contagiantes. E, naquele dia dos pais, mais emblemáticos que nunca. “Vem, mamãe! Está um dia lindo lá fora! Papai está esperando para o nosso passeio de dia dos pais! Viva!”



Uma prosa douradense Poemas de Carlos Magno Mieres Amarilha

Cada poema recria de alguma forma o “viver” cotidiano dos moradores da cidade, a sua estória, a sua gente, já que os poemas aqui são tentativas de apresentar o “tipo”, o “jeito de ser” douradense. A Prefeitura Municipal de Dourados apresenta:


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