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Ano 17
o-Setembro-O • Nº 65 • Agost
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• Literatura
I SSN 1415 - 482X
9 771415 482002
nicanorcoelho@gmail.com
Dourados-MS Ano 17 โ ข No 65 Pรกgs. 1-44 Agosto-Setembro-Outubro/2013
[ CARO LEITOR
A
temática predominante nesta edição da Revista Arandu é a fronteira BrasilParaguai, no que ela tem de mais belo e rico: sua gente, seus costumes, seus idiomas — enfim, sua cultura. A professora doutora Alexandra Santos Pinheiro, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), nos apresenta à escritora paraguaia Susana Gertopán, cuja obra premiada aborda a população judaica que vive em Assunção, capital do Paraguai. A entrevista lança luz sobre a trajetória de vida, escrita e leituras da autora e é parte de esforços empreendidos por Santos Pinheiro a fim de que a obra de Gertopán seja conhecida e, posteriormente, traduzida no Brasil. Por sua vez, Céllia Fernanda Pietramale Ebling, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD, no artigo “Uma breve análise sobre a transculturalidade, transglossia e territorialidade dos moradores das cidades fronteiriças gêmeas de Bela Vista Norte e Capitan Bado (PY)”, investiga “até que ponto a língua e a cultura dos dois países se entrelaçam a ponto de parecerem ser uma só”. Fechando a edição, o artigo “A tradição do ‘Banho de São João’ de Corumbá - MS: Configurações semióticas e dramáticas”, da professora doutora Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi e do acadêmico de Artes Cênicas Wilson Leguizamon Baruki, ambos também da UFGD, discorre sobre uma das mais tradicionais festas do Estado de Mato Grosso do Sul. A Revista Arandu espera, assim, contribuir para a reflexão a cerca do que nos diferencia e nos une nessas fronteiras latino-americanas. Boa leitura! Nicanor Coelho, editor
Ano 17 • No 65 • Ago.-Set.-Out./2013 ISSN 1415-482X
Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico ANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, CÉLIA REGINA DELÁCIO FERNANDES, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO, PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS e ROGÉRIO SILVA PEREIRA Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO
EDITADO POR
Rua Mato Grosso, 1831, 10 Andar, Sala 01 Centro • Dourados • MS CEP 79810-110 Telefones: (67) 3423-0020 e 9238-0022 Site: www.nicanorcoelho.com.br CNPJ 06.115.732/0001-03
Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - Ano 17 N o 65 (Agosto-Setembro-Outubro/2013). Dourados (MS): Nicanor Coelho Editor, 2013. Trimestral ISSN 1415-482X 1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu.
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[ SUMÁRIO
ENTREVISTA Susana Gertopán: Vozes judias na literatura do Paraguai ................................ 5 Alexandra Santos Pinheiro ARTIGOS Uma breve análise sobre a transculturalidade, transglossia e territorialidade dos moradores das cidades fronteiriças gêmeas de Bela Vista Norte e Capitan Bado (PY) ........................... 15 Céllia Fernanda Pietramale Ebling A tradição do “Banho de São João” de Corumbá - MS: Configurações semióticas e dramáticas ............................. 23 Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi Wilson Leguizamon Baruki
Capa: Susana Gertopán na Casa de América, em Madri, Espanha (2010) Disponível em: http://www.flickr.com/photos/casamerica/5121380522/
INDEXAÇÃO •
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ENTREVISTA
SUSANA GERTOPÁN: Vozes judias na literatura do Paraguai Por Alexandra Santos PINHEIRO (UFGD)
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usana Gertopán é uma escritora jovem, nasceu em 1956, em Assunção-Paraguai. Descendente de judeus que fugiram da Europa durante a Segunda Guerra Mundial, a autora recria, em suas sete narrativas1, imagens do holocausto. Gertopán nasceu e cresceu em um bairro palestino em Assunção, e faz questão de afirmar que suas obras, de alguma maneira, trazem as histórias que ouviu de seus avôs, de seus pais e vizinhos. Stefan Zweig corrobora com a ideia de que ficção e história se alternam na obra de Susana Gertopán. Para ele, é um equívoco pensar que o escritor apenas inventa seus enredos. Ou seja, os enredos também nascem da interpretação que o artista faz da realidade que o cerca: La verdad es que en vez de hallar e inventar sólo tiene que dejarse hallar por figuras y acaecimientos que sin interrupción lo buscan para que vuelva a contarlos, siempre que haya conservado la capacidade superior de la visión y de ela atención. Aquel que se há esforzado a menudo en interpretar algunos destinos, recibirá de muchos el testimonio de su sino (ZWEIG apud GERTOPÁN, 2005, p. 07).
A entrevista a seguir foi realizada no dia 29 de junho de 2012, na casa da escritora, em Assunção-Paraguai. Na ocasião, Susana Gertopan falou de sua vida, de suas obras e de suas leituras preferidas.
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A escritora paraguaia Susana Gertopán escreveu, até o ano de 2012, sete narrativas intituladas por ela de novela: Barrio Palestina (1998); El nombre prestado (2000); El retorno de Eva (2004); El otro exilio (2007); El equilibrista (2009); El callejón oscuro (2010) e El guardían de los recuerdos (2012).
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ALEXANDRA — Hoy es día 29 de junio de 2012, estamos en Asunción, en la casa de la escritora Susana Gertopán que nos va a hablar un poco de su vida y de su obra. ¿Susana, puede usted comenzar contándonos un poco sobre su familia, el origen de su familia, de dónde vinieron, por qué vinieron al Paraguay, cuáles son las profesiones que sus descendientes ejercieron en Paraguay? SUSANA — Mi familia paterna y mi familia materna es la primera generación que queda viva después del holocausto; mis abuelos maternos, con quienes yo me crié y viví, y de quienes recibí muchísima influencia judaica en cuanto a las tradiciones y también sobre la historia del holocausto, esa parte triste que ocurrió en Europa del Este. Mi abuela materna era de Varsovia y mi abuelo era de Lituania; ellos llegaron acá, a Asunción, alrededor de los años 28, 30, 35. Se conocieron en Varsovia y se casaron en Asunción, ambos perdieron parte de su familia en Europa, si bien mi abuelo tenía hermanos en Paraguay. Acá mis abuelos fueron comerciantes, vendían su género por la calle. Vivían en barrio “Palestina”, en una habitación de un conventillo. Luego, mis abuelos maternos se mudaron a otro barrio, uno más comercial en donde tuvieron un negocio en el que vendían género. Era como un pequeño gueto igual al barrio “Palestina” donde vivían todos juntos. En ese barrio, llamado “Petirossi”, existe una avenida, a un lado de ella están todas las tiendas de los judíos y del otro lado está el mercado “cuatro”. Esos dos mundos: el mundo del holocausto (de la tristeza, del devenir de la sobrevivencia, del exilio judío) está separado del otro, que es el folclórico, por una calle. El mercado es donde hay luz, donde hay color, donde hay vida, donde se hablan otros idiomas, el castellano, el guaraní, el maká y es también donde aparece el indígena, la sobrevivencia de uno es diferente a la sobrevivencia del otro. En ese ambiente en el que yo viví; viviendo en él me inspiro para escribir El callejón oscuro. ALEXANDRA — ¿Su nacimiento, lugar, fecha y filiación? ¿Quiénes son tus padres? SUSANA — Yo nací en Asunción en 1956, viví siempre en esta ciudad. Mis padres son paraguayos también, hijo de emigrantes de quienes les hablé, mi papá comerciante, mi mamá ama de casa. Mi vínculo con ellos es un poco distante, puesto que yo me crié con mis abuelos por una cuestión de circunstancias. Entonces mi pensamiento, mi herencia, tiene
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mucho que ver con la europea de esa zona de esa época más que con la paraguaya, yo tendría que ser mucho más abierta en cierta postura pero conmigo se saltó una generación; por esa razón yo manejo el idioma yiddish, ya mi generación no habla yiddish, no se entiende yiddish ya desde la generación anterior. Conmigo no se cortó la cadena, yo cocino muy bien comida judía, estoy muy enraizada en la costumbre, en la tradición judaica. En algún momento pensé que me perjudicaría en el ánimo o sea en mi afecto porque viví con abuelos a una edad en que no viví el proceso que tiene un adolescente o una adolescente y que eso me perjudicaría, pero no, al contrario me enriqueció.
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A professora ALEXANDRA SANTOS PINHEIRO e a escritora SUSANA GERTOPÁN, em Assunção.
“La parte de poder indagar en mis pensamientos y pensar sobre todo eso, yo se lo debo a la literatura y la literatura es un arte solitaria” SUSANA GERTOPÁN
ALEXANDRA — ¿Y su infancia?, ¿qué juegos frecuentó en la escuela?, ¿cómo era la relación con la familia, que recuerdos positivos tiene, que recuerdos negativos?, ¿alguien le contaba historia en su infancia? por último, hable de su infancia. SUSANA — Yo nací en barrio Palestina, en ese pequeño ghetto. Me fui a una escuela del estado, una escuela que tenía a pocas cuadras de mi casa, iba caminando y volvía caminando, eran ocho cuadras; y prefería los días de lluvia porque entonces yo podría andar por los raudales. Fui una niña tímida. Fui a un colegio privado, muy reconocido en este país.
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Desde muy chica siempre frecuentaba la casa de mis abuelos, hasta que me mudé a vivir con ellos y temporalmente iba a la casa de mis padres; así, justo lo que se haría con la casa de mis abuelos, yo lo hacía con mis padres. Mis abuelos vivían detrás de una tienda, fue una época en que yo no entendía qué pasaba porque no era lo habitual para una niña, pero me sentía muy protegida y a la vez muy asustada porque eso era un pequeño espacio europeo en Asunción. Yo no entendía cierta costumbre de ellos que no tenía nada que ver con el resto, su comida, su manera de hablar, su manera de encarar la vida, y sobretodo mucha tristeza, a pesar de que ellos no eran tristes, no eran personas depresivas, pero en ese ambiente había una melancolía increíble, se escuchaban músicas solamente de ayer, músicas muy melancólicas, se hablaba de antes. Nunca se hablaba de qué vamos hacer mañana, cómo vamos a proyectar el mañana, y siempre me cuidaban en exceso por una cuestión de vida, y yo no lo entendía. Yo pensaba que ellos no me protegían. Los amigos de mis abuelos eran todos europeos y todos hablaban sólo yiddish y algunos de ellos eran ya sobrevivientes del holocausto. Ellos traían una silleta, una silla pequeña, me sentabas a mí mientras todos hablaban de Europa, lo que pasaron en la guerra, cómo se salvaron algunos. Si no era entre ellos no querían hablar de eso, solamente entre ellos encapsularon, encapsularon el dolor, hablaban de ello. Ese registro es el que yo denuncio con esas historias. Y es ahí, en esa habitación con mis abuelos, cuando yo me vuelvo escritora porque habían fotos, todo era muerte, pero había vida también, era como una mezcla entre lo presente y lo pasado, el dolor y la alegría, no había un proyecto de nada, y yo empezaba a vivir la historia de esa gente, y era una manera de invadirme. Siempre yo digo que el arte salva por transmitir de alguna manera diferente ciertos dolores, ciertas angustias. No se queda uno con esa cosa que finalmente tendría esa palabra sin luz. ALEXANDRA — ¿Y tiene un recuerdo triste de su infancia? SUSANA — Sí tengo, tengo recuerdos que tienen mucho que ver con la represión, mucho que ver con la represión. Durante mi infancia viví durante la dictadura de Stroessner. A mí no me gusta comparar nada, ni la dictadura, porque toda América estaba en dictadura. Cada dictadura tiene su característica de derecha de izquierda, pero la dictadura de Stroessner fue terrible. Yo era muy chiquita y escuchaba “no mires, no
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Gloria Giménez Guanes e José M. Pérez González anunciam SUSANA GERTOPÁN como ganhadora do Premio de Novela Inédita Lidia Guanes, pelo livro “El callejón oscuro”, em outubro de 2010.
hables, cuidado que no te miren, no digas”, siempre escuchaba eso y, por otro lado, estaba siempre la represión en mi ambiente familiar. Mi abuelo pensaba que iba a venir otra vez la guerra, la Segunda Guerra Mundial y nos iba a llevar a todos, entonces eran los cuidados: “no digas, no hagas, no cruces la calle después de pasar” y ahí tienen episodios de mi infancia así que no fueron buenos. ALEXANDRA — ¿Y si vamos a su adolescencia, cómo cambió la relación con la familia, con los amigos, cuáles son los conflictos con que tuvo que enfrentarse en la adolescencia? SUSANA — En mi adolescencia el peor conflicto fue el de una vida dura debido a la dictadura. También el darme cuenta de que había una clase social económica altísima y que tenía que ver con lo político. Si se era amigo de un militar o de alguien que tenía una influencia del gobierno, tenía que cerrar los ojos y celebrar, así se llenara de oro o se tuviera un poder económico maravilloso. La gente que opinaba, la que hablaba, la gente que denunciaba, era siempre perseguida. Hay personas que incluso ahora dicen que en Asunción, en la época de la dictadura se podían dejar las puertas abiertas, que no había robos, que no había asaltos. Pero
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se asaltaba la condición humana: el pensamiento. No robaban coches, ni celulares, ni computadoras y no asaltaban en las calles, nos asaltaban el celebro, el pensamiento que es mucho peor. Yo ahí empecé a sentir y quise colaborar con un grupo de gente que estaba en la oposición. Mi familia opinaba que yo no debería pensar así o sea como desmereciendo mi pensamiento, como si fuese algo feo pensar en la libertad o pensar en que el ser humano debe tener libertad. Mis padres vivían cerca de un cuartel y yo escuchaba por la mañana temprano un soldado correr por la calle como entrenamiento y cantando “Patria querida”, una canción muy emblemática. Ahora yo la escucho y lloro porque es muy fuerte. Yo decía ¿por qué, por qué esto, por qué tenía que pasar esto, por qué desaparece gente, por qué pasar frente a una calle y tener que dirigir la mirada hacia otra dirección, por qué no se podía pasar frente a esa comisaría, que pasaba en esa comisaría?. ALEXANDRA — ¿En su adolescencia, tenía muchos amigos? SUSANA — No, no tenía muchos amigos, estaba muy rodeada siempre de cuidados, tenía amigos, amigas pero no como hubiese querido. ALEXANDRA — Hable un poco de la escuela. ¿Con cuántos años entró en la escuela, con cuantos años fue alfabetizada, cómo era su rendimiento en las clases de producción de texto, algún profesor incentivó sus producciones, cuántos idiomas habla? SUSANA — Sólo hablo español, lamentablemente, es muy importante leer a algunos autores en su propia lengua. Hablo el yiddish probablemente ahora mucho menos porque ya es un idioma que ya está casi desaparecido. Fui alfabetizada a los seis años, siete años primer grado. No fui nunca buena alumna, nunca me gustó estudiar, pero sí leer. Nadie incentivó en mí la escritura, ningún profesor. Lamentable en mi infancia, o sea la primaria y la secundaria, todo el transcurso de mi estudio en el colegio y en la escuela fue durante la dictadura, entonces estaba prohibido pensar, estaba prohibido escribir, estaba prohibido todo lo que sea arte, libertad; entonces el profesor no te incentivaba la escritura. ALEXANDRA — ¿Qué lecturas le marcaron? SUSANA — Isaac B. Singer, ese escritor me marcó. Desde entonces,
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en parte, soy una estudiosa de su literatura. Es un escritor judío premio Nobel en literatura. Lo bueno es que este escritor no sólo me enseñó a escribir, a pensar, sino a entender que no hay que confundir al escritor con la persona, son dos personas diferentes, uno es escritor, el que piensa, inventa y el otro, un ser común, a veces malo; él mismo en sus reportajes se declara así. Singer por ello me enseñó a creer en el escritor, en su escritura, pero a no mezclar con su vida particular; uno es el hombre y otro es el creador y su literatura; no me interesa la persona. También me marcó el escritor Samuel Premiado em 2010 com o Premio Lidia Guanes, “El callejón oscuro” Becket. Aprendí a leer y a estudiar a Clarice despertou interesse sobre demais Lispector, tengo todas sus novelas. obras de Susana Gertopán. Lamentablemente no puedo leer en la lengua portuguesa, no saber otra lengua tiene un precio, de cualquier manera hay traducciones maravillosas, pero Clarice Lispector escribe la miseria humana, despierta a mí lo mismo que Samuel Becket. ALEXANDRA — ¿Y su religión? SUSANA — Yo heredé una tradición, yo nací en una familia judía, abuelos judíos, padres judíos, yo heredé la cultura judía, también la religión judía. Estudié muchísimo sobre la religión judía, participé en eventos religiosos judíos y mis hijos son judíos porque yo me casé también con un judío, pero la fe la tengo apartada, yo me considero agnóstica. No me interesa de dónde venimos ni a dónde vamos, no sé de dónde procedemos ni a dónde nos dirigimos. No porque generalmente las personas creen que uno ha llegado a una conclusión por esto hay que analizar ciertas cosas; lo mío está muy bien analizado, me siento muy bien, porque este estado a mí me da paz. Creo que me siento muy libre, yo particularmente, creo que la religión ata y cuanto más cadena tengo más oprimida estoy dentro de un círculo. Tengo que liberarme para hacer más auténtica mi literatura que es lo que a mí me interesa. Entonces yo sí soy de la tradición judía, soy de costumbres judías, pero yo no tengo religión.
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Particularmente considero que el judaísmo es una identidad y no es ninguna nacionalidad, si un judío paraguayo, brasileño, francés, canadiense se unen en un mismo punto del planeta, tienen el mismo comportamiento, pero diferentes nacionalidades. ALEXANDRA — ¿Cómo es su trayectoria profesional? SUSANA — Empecé muy joven a escribir, con los 8-9 años, siempre fue la narrativa larga o sea la novela. Después escribí poemas, en la adolescencia, y luego continué con otros cuentos en total he escrito cuatro o cinco cuentos, y ya no abandoné la novela. ALEXANDRA — ¿En qué momento percibe que es una escritora? SUSANA — Hasta ahora no lo he percibo. Lo único que sé es que yo necesito escribir, yo necesito contar, necesito expresar, yo no podría más vivir sin escribir. ALEXANDRA — ¿Y en cuanto a su familia? SUSANA — Mis hijos se sienten muy orgullosos, están muy contentos. Ahora mi nieto Rafael, que es mayor, las otras dos Victoria y Leonor son pequeñas; Leonor tiene un año y medio y Victoria va a cumplir tres en septiembre, todavía no son consientes. Victoria ya dice “mi abuela hace libros” y Leonor es muy chiquitita, y esta última novela está dedicada a ella y los otros están dedicados a Rafael y Victoria. Rafael sí, Rafael ya entiende y está muy orgulloso de su abuela. Él vive en los Estados Unidos, en Florida, y me invitó a ir a su clase para que yo hablara de mis novelas o sea él ya entiende lo que es ser escritora y ahí va mi proyección. No solamente hacia mi familia, también hacia aquél lector anónimo, y a otros que de pronto me encuentran por la calle y me dicen “¿señora, usted es escritora, usted es la que escribió…”, bueno eso a mí me pone muy contenta, más que cualquier premio, más que cualquier conocimiento, el reconocimiento del lector anónimo, aquel que yo no sabía que existía. ALEXANDRA — ¿Y es posible sobrevivir como escritora? SUSANA — Yo no sobrevivo, pero hay un pequeño beneficio económico: la editora, la venta, pero yo no puedo escribir pensando en eso.
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Excluida la parte económica, los beneficios de ser escritora son maravillosos, poder contar la historia, crear la historia de alguien, inventar una historia dentro del inconsciente de uno y dentro del inconsciente del otro, leyendo en la profundidad del otro, eso es para mí maravilloso. Estoy feliz, muy pocas veces yo utilizo la palabra feliz, muy pocas veces, creo que nunca, solamente para esto porque la palabra felicidad no tiene dimensión y este tema de la creación tampoco tiene dimensión. ALEXANDRA — ¿Y en cuanto a los puntos negativos? SUSANA — No hay; bueno no hay en ese aspecto, hay en que me duele los hombros de estar tanto tiempo ante el ordenador, del tiempo que me roba a la misma vida o sea a tus seres queridos, a tu entorno. Hay veces en que estoy escribiendo ocho u doce horas y me aparto de todo. Quien no lo entiende lo puede tomar como un egoísmo, como que el escritor es egoísta. De negativo, sería solamente eso para mí. ALEXANDRA — ¿Y qué es lo que lee Susana Gertopán? SUSANA — Yo leo filosofía, poca historia y muchas novelas. Soy adicta a la literatura final del siglo pasado y principio de siglo; me gusta mucho el escritor ruso de 1890 y 1900, me encanta la literatura francesa de 1930 y 1940, y la literatura latino-americana, la paraguaya y leo mucho. ALEXANDRA — ¿Qué escritores considera muy representativos para la literatura en Paraguay? SUSANA — Leo a muchos escritores paraguayos, por supuesto a Augusto Roa Bastos, Gabriel Casaccia, Chiquita Barreto, Jacobo Rauskyn, Osvaldo González Real, Nila López, René Ferre, Luis María Martínez, en fin, leo a casi todos. ALEXANDRA — ¿Cómo es vivir en Paraguay, cómo fue la relación de sus descendientes con Paraguay? SUSANA — La relación de ellos con Paraguay era ambivalente: por un lado ellos recibieron de ese país todos los beneficios que un país pueda dar. El paraguayo es un pueblo tan bueno, tan generoso… Pero, por otro lado, estaba el tema de que no eligieron Paraguay, era la alternativa que tenían. Entonces, como sufrían del exilio, porque el exiliado no elige. El exiliado tiene que salir por guerra, por política, le sacan de su
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país, entonces ellos nunca se enraizaron acá por ese motivo. Ellos querían volver a su país, ese país que ya no existía, pero igual en la cabeza era síndrome del desamparo territorial. Hasta que yo fui creciendo y me di cuenta de que se este país me daba lo que yo necesitaba, es igual que cualquier otro. Muchas veces pensé en volver a empezar en otro lugar, en ver cómo sería un lugar donde hubiese más apertura literaria — yo hablo de 20 años atrás, un poco por su condición geográfica, es un país muy chico. Pero nunca me fui y ahora no me arrepiento estoy muy bien. Mis personajes son melancólicos y yo también soy melancólica, sólo que analizo mi melancolía. Mis personajes constantemente se encuentran en una habitación, solos, pensando, analizando. Yo soy extrovertida y soy sociable, pero soy solitaria. El curso de mi vida indica eso. Para ser adulta es preciso tener coherencia entre lo que se dice, se piensa y se hace. Yo elegí vivir sola, a mí me gusta mi soledad física. A mí me sensibiliza un niño perdido, el abuso a la clase baja, ahí se nota la miseria humana y a mí me decepciona la miseria humana. Para mí no puede ser que un niño nazca de una madre enferma, sin recursos y de otro lado haya un niño que nazca con recursos, que nazca feliz. Las reglas impuestas por el hombre me parecen absurdas y eso me angustia. La parte de poder indagar en mis pensamientos y pensar sobre todo eso, yo se lo debo a la literatura y la literatura es un arte solitaria. Cada vez que una persona procura analizarse, procura profundar en temas humanos, cada vez se torna más solitario. Es más fácil disfrazar que profundizar. Hoy la tendencia de la literatura de auto-ayuda, lleva al ser humano a transitar sobre la superficie y a no entrar en la profundidad de las cuestiones humanas. (A entrevista completa está no livro A trilogia de Susana Gertopán: Identidades em (des)construção, escrito pela profª Dra. Alexandra Santos Pinheiro, e em negociação para ser publicado pela editora Servilibro, no Paraguai).
Conheça as obras de Susana Gertopán no site: <http://www.portalguarani.com/648_susana_gertopan.html>
Uma breve análise sobre a transculturalidade, transglossia e territorialidade dos moradores das cidades fronteiriças gêmeas de Bela Vista Norte e Capitan Bado (PY)1 Céllia Fernanda Pietramale EBLING2
RESUMO A fronteira do Brasil com o Paraguai, como em muitas outras fronteiras internacionais, resulta em cidades próximas e até mesmo gêmeas. Estas cidades são poços relações complexas, abarcando línguas, cultura e identidade. As cidades de Bela Vista Norte3 e Capitan Bado4 não seriam diferente. Estas possuem marcas tanto da colonização espanhola quando da Guerra da Tríplice Aliança, que estão presentes até hoje no dia a dia dos moradores desta região.Sendo assim, foram retirados trechos de entrevistas5, com moradores destas duas cidades, a fim de discutir a transculturalidade, transglossia e territorialidade destes informantes, e até que ponto a língua e a cultura dos dois países se entrelaçam a ponto de parecerem ser uma só. Para que isso pudesse ser analisado, o trabalho foi fundamentado, no âmbito de transglossia e transculturalidade,
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Texto final para a Disciplina Estudos de Linguagem e Transculturalidade, ministrada pelos professores doutores Rinaldo Vitor da Costa e Maria Ceres Pereira, do Mestrado em Letras/Linguistica e Transculturalidade, da UFGD
2 Mestranda em Letras/Linguistica da Universidade Federal da Grande Dourados. Orientada pela ProfªDrª Maria Ceres Pereira. 3
Cidade gêmea de Bela Vista, Mato Grosso do Sul, Brasil.
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Cidade próxima de Coronel Sapucaia, Mato Grosso do Sul, Brasil.
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Corpus de entrevistas retirado do projeto Plurivocidade em Narrativas Da Fronteira, realizado no ano de 2010 e coordenado pela Prof. Ms. Elma Luzia Correa Scarabelli (UEMS).
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Cox & Assis-Peterson (2007), nas questões culturais, Gomes (2008), territorialidades, Haesbaert (2002) e por fim, nas questões fronteiriças e histórias do Paraguai, Fernandez (2002) e Navarro (2004). Palavras-chave: Transculturalidade; transglossia; territorialidade; fronteira. ABSTRACT The frontier between Brazil and Paraguay, as in many other international borders, result in nearby cities and even twins. These cities are complex relationships wells, covering languages, culture and identity. The cities of Bella Vista do Norte and Capitan Bado wouldn’t be different. These brands have both Spanish colonization when the “Guerra da Tríplice Aliança”, which are present today in the daily lives of residents of this region. So were removed excerpts of interviews with people of these two cities, in order to discuss the transculturality transglossia and territoriality of these informants, and to what extent the language and culture of the two countries intertwine putting seem to be one. For it could be analyzed, the paper was based, within transglossia and transcultural, Cox & AssisPeterson (2007), cultural issues, Gomes (2008), territoriality, Haesbaert (2002) and finally, the border issues and stories of Paraguay, Fernandez (2002) and Navarro (2004). Keywords: Transculturality; transglossia; territoriality; frontier.
O
estado de Mato Grosso do Sul é um dos estados brasileiros que faz fronteira com o Paraguai. Dessa maneira, existem regiões com contextos sociolinguisticamente complexos, em que cidades carregam, diariamente, a questão fronteiriça. Essas cidades são caracterizadas pela fronteira direta internacional, ou seja, cidades gêmeas, ou próximas ao outro país, em que a distância facilita o deslocamento Brasil<>Paraguai, interferindo nas relações econômicas, lingüísticas e culturais. Há uma troca constante, não só cultural como também econômica que influencia diretamente na formação da sociedade que ali se instaura, seja ela majoritária ou minoritária. Além do que, o comércio de importados que movimenta a economia paraguaia é altamente frequentado não só habitantes do estado do Mato Grosso do Sul e moradores da fronteira, como, também, pessoas do Brasil inteiro que viajam quilôme-
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tros para poderem comprar produtos mais baratos. Este trânsito de pessoas, acarreta uma troca cultural, pois estes sujeitos, ao entrarem em contato com a região, acabam trazendo consigo marcas de seus lugares, permeados por costumes, ideologias, língua que acabam por caracterizar sua cultura. Esta cultura, baseada como os hábitos e os costumes que representam e identificam um modo de ser de um povo. Em geral esses costumes são reconhecidos como singulares e específicos [...] Cultura seria o todo comportamental, incluindo o emocional e o intelectual, de um povo ou, em menor escala, de uma coletividade.[...] cultura é a identidade de um povo ou de uma coletividade, que se forma em torno de elementos simbólicos compartilhados. (GOMES, 2008, 34-35)
E este contato com pessoas de diferentes culturas e países refletem no comportamento dos moradores daquela região. A região de fronteira entre o Brasil e Paraguai sofre esta complexidade de culturas e línguas desde antes da Guerra da Tríplice Aliança. No inicio da colonização do país vizinho, os colonizadores ao se relacionarem com indígenas, na sua maioria falantes do guarani, inseriam, em seus filhos, uma cultura já não europeizada. Os Guarani ofereciam suas filhas aos espanhóis, como prova de amizade, e estes, que vieram inicialmente sem mulheres da Espanha, tomaram várias esposas cada um. Assim nasceram os mestiços, produtos da linhagem cruzada. Cada um destes mestiços aprendia o guarani de sua mãe e o espanhol de seu pai. Desta maneira, a língua guarani começou a ter importância, para desespero dos conquistadores. (FERNANDEZ, 2002, Online)
No decorrer da história, a língua indígena foi prestigiada em alguns momentos e desprezada em outros, sendo que após a derrota na Guerra da Tríplice Aliança a língua guarani foi perseguida. Fernandez (2002) registra que terminada a guerra, o Paraguai ficou sob o domínio econômico da Argentina, do Brasil e da Inglaterra, e estes países encarregaram o argentino Domingo F. Sarmiento para que reformulasse o programa escolar, de modo que retirasse a “língua selvagem” do currículo e manti-
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vesse somente o espanhol. Por outro lado, é sabido que muitos povos acreditam que é a língua que mantém a cultura viva, sendo assim, o guarani sendo o único recurso identitário, que os caracterizavam como paraguaios, continuou, marginalmente, sendo usado por aqueles que sobreviveram. Em 1967, a Constituição Nacional paraguaia reconhece a existência do guarani, mas só na década de noventa, segundo Navarro (2004), o guarani eleva-se à condição de língua oficial, ao lado do castelhano, sendo inserido consequentemente no ensino fundamental. Nesta fronteira acha-se três línguas faladas, português, espanhol e guarani, uma em conjunto com a outra, transitando juntas, sem causar a glotofagia. Os falantes permeiam por estas três línguas como se fossem uma só. Eles sabem que elas estão ali, mas muitas vezes pensam que elas andam paralelas, sem influencia uma na outra. Há dois casos presentes nas entrevistas. O primeiro caso se relaciona a brasileiros que foram morar no Paraguai e tiveram que aprender espanhol e guarani. B. nóis agora fala guarani junto, purquetodumundu ia (passanu) e casaru cum paraguai e cum paraguaia né A. nói num:: sabia nem fala u guarani tamém B. nôi num falava em guarani. A minha mãe que:: A. purque... em casa era soportugue B. custôpa:: falá A. aí depois::cumeçô a fala, purquetodu mundo falava né... jácumeçô nasce ermão aqui no Paraguai qui falava:: ((já falando né?)) aí foi falando casteliano e guarani:: B. guarani i castelianopurque (falando junto) A. aí: a genti é: ... a família também virô: paraguaia e:: em muitas partes né, noi são brasilero.. Diálogo entre os irmãos A. Juan GonçalesB. TerezaGonçales — Cidade CapitanBado
O segundo caso são paraguaios que aprendem, de alguma maneira, o portugués. E: Aqui em Bella Vista o pessoal fala castelhano? Castelhano, guarani e português e:: assim qui nem eu mal falado o
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português... mais fala né se entende mais ou menos (( se entende muito bem))... o guarani é:: nativo ((nativo)) é o idioma que todu mundo fala desde criança e o casteliano.... o casteliano era idioma oficial, único até faz uns... até mil novecentos e setenta mais ou menos..aí:: por decreto do poder executivo du pressidente da republica foi também conhecido como idioma oficial u guarani:: ((ah! Que legal)) agora é:: ... inclusive se ensina nas escolas ((antes ensinavam só o castelhano)) agora o guarani também faz parte da:: de uma assignatura dos colégios... escola primária e colégios... mas normalmente se fala guarani, casteliano e português aqui. Entrevista feita com Ruben Garcete — Cidade de Bella Vista Norte
Tanto no primeiro caso quanto no segundo se lê a menção das três línguas como as que são faladas nesta região. No primeiro caso, há o relato de que para se inserirem em tal contexto, brasileiros no Paraguai, os irmãos tiveram que não só aprender o espanhol, como também o guarani, como adaptação do meio, interferindo na construção de identidade dos informantes. No segundo caso, mesmo o informante relatando que o “português é mal falado”, ele acentua sua presença. Percebe-se que ele também registra que o guarani é nativo e o espanhol é oficial, marcando que uma é, de certa maneira, autóctone e a outra é do colonizador. A presença das marcas da língua portuguesa faz-se resultante pós-Guerra, pois firmaram-se territórios, e muitos destes originaram cidades gêmeas sendo uma do lado brasileiro e a outra do lado paraguaio. Para Cox & Peterson (2007), este fenômeno se chama transglossia. Seriam “língua em seu estado líquido e não como solido [...] línguas em contato como línguas que vazam uma na outra” (p.42), ou seja, elas transitam uma entre a outra sem que os valores destas sejam diminuídos,. Todo este contato direto, não influencia somente na língua(gem), como também a cultura e a identidade territorial destas pessoas. O que acaba por acarretar cidades diferentes, regida por países diferentes, com línguas oficiais diferentes, moedas diferentes, porém, transculturais. O termo transculturalidade nos remete a transculturação, cunhado pelo cubano Fernando Ortiz (1983), na década de 1940, para descrever o processo de transição de uma cultura para outra.[...] A transculturação envolve dois movimentos: um de desculturação
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(desenraizamento parcial de uma cultura anterior) e outro de neoculturação (criação de novos fenômenos culturais) (COX & ASSIS PETERSON, 2007, p.35)
Este ir e vir de pessoas, paraguaios que estudam/residem/trabalham no Brasil e brasileiros que estudam/residem/trabalham no Paraguai, não se faz marcante só economicamente. Há uma influencia na linguagem e na cultura desta região fronteiriça. Ao entrevistar moradores das cidades Bella Vista Norte e Capitan Bado, percebe-se a influencia da língua e da cultura nesta região. A.[aí: a genti é: ... a família também virô: paraguaia e:: em muitas partes né, noi são brasilero.. êlemai eu tenho minhas erma lá em Cida’Leste ... são paraguaia ((conheço lá, Cidade del Leste)) B. [já são paraguaia... i eu tenho minha filha que morava em Foz, mas êla/ eu nunca registrei êla i êla (istudo) no Paraguai depois por via consulado no adevogado ela fez imigração...só quiêla/eu num posso registra êlapurque é imigrante né... A.[ intão... êles já nasceram no Paraguai ( ) istudaram no Paraguai i:: são formadu aqui no Paraguai já eu tenhu filha tamém — minha filha já é Paraguai tamém — (i é ) formada em medicina i o otro já vai forma esse ano... forma tamém, odontologia aí eles doi já são Paraguai tamém... intão é ua mistura que: B. [ agora a mulher dÊle... êla é brassilera... só que (papel) aqui ninguém fais a identidade, ninguemqué faze a identidade pa ninguém ((mas, por que?)) purque falam qui os paraguaios virarobrasilero que identidade já num vale. Diálogo entre os irmãos A. Juan GonçalesB. TerezaGonçales — Cidade CapitanBado
Na entrevista feita em CapitanBado com os irmãos Gonçales, notase a transição dos informantes e membros de suas famílias, entre os países. Percebe-se, também, no relato a dificuldade em se identificar como brasileiro ou paraguaio no trecho “êla é brassilera, só que (papel) aqui ninguém fais, a identidade, ninguém que faze a identidade pa ninguém, purque falam qui os paraguaios virarobrassilero, que identidade já num vale”. As proximidade direta das cidades faz com que os moradores, de
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ambas, utilizem tanto a área de escolas, comércio e saúde das duas cidades. Ou seja, muitas vezes nascem no Paraguai filhos de brasileiros, como ao contrário, dificultando, muitas vezes, o registro. Pode-se dizer que as culturas se intercruzaram, que há momentos que nota-se aspectos paraguaios no comportamento do indivíduo, como aspectos da cultura brasileira (sul-mato-grossense). A transculturalidade é aqui entendida como tradução, no sentido que lhe é atribuído por Hall (2011). Para ele, não há perda ou assimilação, mas negociação e mudança cultural. As pessoas não apagam seus vínculos quando se deslocam, mas também nunca viveram ou viverão num continente culturalmente unificado. De acordo com Hall, as pessoas estão irrevogavelmente traduzidas.[...] Quer dizer, não há o original, e, por mais que se afunde na história, é sempre p misturado que se reencontra.( COX & ASSIS PETERSON, 2007, p.36)
No mesmo trecho, nota-se que os informantes, que nasceram no Brasil (no estado do MS) moram no Paraguai e constituíram família no país vizinho, porém, filhos, primos, irmãos, moram em ambos países. Como há grande quantidade de cidades próximas à fronteira, incluindo cidades gêmeas, é comum que tanto os brasileiros quanto os paraguaios estude, trabalhem e morem no país vizinho. Cada um procurando o seu lugar como sujeito participante de uma sociedade maior. De acordo com Haesbaert (2002) não seria uma busca de territorialização, e sim uma desterritorialização e reterritorialização, mais do que o desaparecimento dos territórios, o que estamos presenciando é a consolidação de novas formas de organização territorial. E uma das características centrais dessas novas territorialidades é a sua imbricação com processos múltiplos, diferenciados, complexos, de identificação social, ou seja, tão importante quanto os processos econômico-políticos de desterritorialização é a dinâmica simbólicocultural que ajuda a moldar as territorialidades emergentes. (HAESBART, 2002, p.31).
Este ir e vir de pessoas, muitas vezes sem perceber, a procura de seu
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lugar no mundo, seu espaço como sujeito, interfere nos territórios subjetivos, não marcados geograficamente, pois tanto a língua quanto a cultura não podem ser enclausurados, e mantidos restritos, como um sistema fechado, dentro de uma sociedade. A língua é viva e dinâmica, e além de tudo, é por ela que a relação sujeito x sujeito é feita. Existem várias vozes, e estas aparecem nas entrevistas pelo fato destes habitantes serem oriundos de uma região colonizada pelos espanhóis; serem sobreviventes das guerras; terem sofrido a imposição da língua espanhola e a marginalização da língua guarani; a proximidade geográfica dos dois países e o contato direto com a língua portuguesa. Sendo assim, as vozes dialogam entre si num jogo de interesses políticos, econômicos e sociais. O habitante da região é um ser híbrido. Nele estão conjugadas as interferências decorrentes das lutas travadas ao logo da história. O presente é a média das histórias vividas e narradas, de forma que os limites territoriais não determinam a identidade do povo, a cultura identitária transcende os limites geográficos. REFERÊNCIAS COX, M. I e ASSIS-PETERSON, A. A. - Transculturalidade e Transglossia: Para compreender o fenômeno das fricções linguístico-culturais em sociedades contemporâneas sem nostalgia. In CAVALCANTI, M.C. e BORTONI-RICARDO, S.M. - Transculturalidade, Linguagem e Educação. Mercado de Letras. Campinas. SP. 2007 (pp. 23-44) GOMES, M. P. 2008. Antropologia: Ciência do Homem e Filosofia da Cultura. São Paulo: contexto. FERNANDEZ, M. Breve História. 2002. Disponível em <http:// www.datamex.com.py/guarani/marandeko/breve_historia.html>. Acesso 14 de jul.2010. NAVARRO, E. 2004. O domínio da língua castelhana sobre o guarani paraguaio. Revista Philologus. Ano 10 n° 29. HAESBAERT, R. 2002. Fim dos territórios ou novas terrirorialidades?. In MOITA LOPES, L.P & BASTOS, L.C. 2002. Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas-SP. Mercado de Letras.
A tradição do “Banho de São João” de Corumbá - MS: Configurações semióticas e dramáticas Gicelma da Fonseca CHACAROSQUI TORCHI1 Wilson LEGUIZAMON BARUKI2
RESUMO O trabalho “Análise semiótica das configurações dramáticas da tradição popular do ‘Banho de São João’ de Corumbá-MS” apresenta um estudo que perquiriu semioticamente as características mestiças que constituem as práticas culturais próprias de Corumbá, no Estado de Mato Grosso do Sul, com ênfase particular na festa junina de “São João”. Dentre os elementos que configuram essa festividade buscamos aspectos dramáticos e históricos do ritual “O Banho de São João”, analisando a semântica da composição bem como a instrumental, refletindo nos momentos específicos da procissão, em que os aspectos dramáticos e performáticos da tradição ficam evidentes. Nossa pesquisa de cunho semiótico distingue na constituição do texto cultural a presença de um corpus de elementos mestiços e interculturais. O referencial de “mestiçagem” e “semiótica” alicerça-se nos trabalhos de LAPLANTINE e NOUSS, s/d, de CANCLINI, 2006, e PINHEIRO, 2009 e do semioticista russo LOTMAN, 1981. Particularmente as reflexões sobre “dramaturgia”, música e performance provém de, PINTO, 2001 e CARLSON, 2009. No intuito de documentar tudo que foi analisado e vistos durante as pesquisas em campo, no valemos de uma metodologia descritiva. Palavras-chave: Dramáticos; semioticamente; Banho de São João.
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Professora Doutora da Faculdade de Comunicação, Artes e Letras-FACALE da Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD. E-mail: giondas@hotmail.com; gicelmatorchi@ufgd.edu.br
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Bolsista PIBIC/UFGD durante os anos de 2011/2012. E-mail: willbaruki@hotmail.com.
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ABSTRACT The paper “Analysis of semiotics dramatic settings of popular tradition of ‘Bath St. John’ Corumbá-MS” presents a study that perquiriu semiotically features crossbred cultural practices that constitute own Corumbá, State of Mato Grosso do Sul, with Jerk particular emphasis on the “St. John”. Among the elements that make up this festival we look dramatic and historical aspects of the ritual “The Bath of St John”, analyzing the semantics of the composition as well as instrumental, reflecting specific moments in the procession, in which the dramatic and performative aspects of tradition are evident . Our research distinguishes semiotic nature of the constitution of the cultural text the presence of a corpus of mestizos and intercultural elements. The reference of “mestizaje” and “semiotics” is founded on the work of Laplantine and NOUSS, s/d, Canclini, 2006, and Pinheiro, 2009 and the Russian semiotician Lotman, 1981. Particularly reflections on “drama” comes from music and performance, PINTO, 2001 and CARLSON, 2009. In order to document everything that was discussed and seen during field research in a descriptive methodology are worth. Keywords: Dramatic, semiotically, Bath St. John
INTRODUÇÃO Corumbá, município da Região Centro-Oeste do Brasil, situado no estado de Mato Grosso do Sul, é um dos locus heptafronteiriços3 do Brasil, pois está localizado na fronteira do Brasil com a Bolívia, que, em 1778, foi fundado para a marcação territorial das colônias portuguesas. Com o término da guerra do Paraguai, o governo do Império, na tentativa de valorizar e contribuir para o desenvolvimento da região, decide enviar e deixar algumas colônias de militares. O crescimento econômico era previsto para cidade, por ter uma posição privilegiada à margem direita
3 Locus heptafronteiriço, em Mato Grosso do Sul, refere-se aos sete limites territoriais geográficos que hoje são característicos do estado: duas fronteiras internacionais de Mato Grosso do Sul; Paraguai e Bolívia e, as cinco fronteiras nacionais-estaduais que o estado mantém com estados vizinhos — Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso, Paraná e Goiás.
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do rio Paraguai permitindo o pleno transporte fluvial, bem como a ligação da província com o coração político e administrativo do país. Essa possibilidade de desenvolvimento econômico era notória, porque naquela época o único meio de transporte de grandes cargas que ligava o litoral do Rio de Janeiro com o sul do Mato Grosso era o fluvial: [...] conhecida como a ‘Capital do Pantanal’ não por acaso, foi, desde o século XVIII, o grande porto das embarcações fluviais. Lugar onde aportaram os soldados invasores de Solano Lopes em 1865, durante a Guerra com o Paraguai, cujo resultado foi a destruição da cidade, o saque, o abandono, a miséria, as epidemias. Mas também foi o grande porto da navegação da Bacia do Prata. Esta serviu, a partir de 1857 até o início do século XX, de canal comunicador entre os moradores do pantanal e o mundo (SIGRIST, 2008, p. 63).
Após a Guerra do Paraguai, com a abertura do porto e do livre trânsito de embarcações brasileiras e estrangeiras, a região tornou-se um grande centro econômico. O comércio com Uruguai, Argentina e alguns países europeus fizeram com que o Porto Geral4 de Corumbá fosse o terceiro maior da América latina. As grandes embarcações vinham trazendo o cimento inglês, o vinho português e os refinados tecidos franceses, além dos imigrantes. Na volta levavam produtos de exportação, como borracha, couro, charque, cal e a erva mate. Nessa época funcionavam em Corumbá 25 bancos internacionais como o City Bank e a moeda corrente era a esterlina. O comércio que se formava na região, além de contribuir com o crescimento econômico, também servia como atrativo para a vinda de comerciantes e trabalhadores estrangeiros. Essa vinda excessiva de estrangeiros propiciou várias mudanças sociais e culturais na cidade. Em
olr etaú nrr4e O oeu m PG c o n j u n t o d e c o n s t r u ç õ e s h i s t ó r i c a s l o c a l i z a d a s n a região portuária da cidade brasileira de Corumbá, em Mato Grosso do Sul. Situado no bairro Beira Rio, onde o sossego do lugar e o ar puro que vem do Pantanal atenua o forte calor, não condiz com o movimento comercial do passado. O casario que embeleza a Rua Manoel Cavassa, sua principal rua, é o ponto de referência histórica da cidade. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Porto_Geral . Acesso em: 22.março.2012.
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certa época o número de estrangeiros chegou a ser maior do que a população brasileira. Nesse período, pós-guerra, 1870, a cidade se dividia em dois blocos, na região superior que ficava sobre a elevação calcária concentrava-se o comércio e, na região inferior, que ficava na altura do rio, o Porto de Geral com os galpões de importadores e exportadores com seus importantes edifícios públicos e comerciais de até três andares. O Porto de Corumbá foi fator decisivo para a chegada de estrangeiros, do desenvolvimento e da cultura no Mato Grosso, principalmente vindos da Europa e do Rio de Janeiro5. Em 1853, por decreto imperial, o Porto local foi habilitado para o comércio, sendo dotado de Mesa de Rendas. Em 1856 estabeleceu-se o trânsito livre de barcos nacionais e estrangeiros no rio Paraguai e o porto, com sua importante posição geográfica, começou a se tornar um centro econômico de destaque no continente. Através dessas características — alto desenvolvimento econômico, posição geográfica privilegiada e elevada influência estrangeira — a cidade tornou-se um espaço propício para a vinda e mistura de culturas distintas. Essa conclusão fica mais clara quando lemos a obra Mestiçagem, em que os autores (LAPLANTINE & NOUSS, s/d) citam as cidades mediterrâneas que apresentam aspectos de mercado e centro urbano como espaços favoráveis para o encontro e mistura de povos distintos: É nomeadamente, a partir dos mercados e das praças públicas, por excelência os lugares onde se efetuam as trocas, lugares da aceitação ou da recusa, que, não apenas os povos se cruzam, mas se encontram e misturam. A mestiçagem é sobretudo urbana e as grandes cidades mediterrâneas exerceram, cada uma à sua maneira, o papel de mediadoras entre horizontes culturais extremamente diversificados (LAPLANTINE & NOUSS, s/d, p. 17).
CONTEXTO HISTÓRICO DO BANHO DE SÃO JOÃO Foi num contexto histórico muito semelhante como este citado por LAPLANTINE & NOUSS (s/d) que, no final do século XIX, o manifesto do
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Disponível em: http://www.clerioborges.com.br/corumba00.html. Acesso em: 17.maio.2012.
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“Banho de São João” teve início na cidade de Corumbá. Porém, para que a nova cultura fosse efetivamente agregada à região pantaneira, ocorreram algumas adaptações no ritual europeu, pois o espaço e a estrutura sociocultural eram totalmente distintos da Europa. A festividade originou-se da comemoração do ‘solstício de verão’, que acontece no hemisfério norte, época do ano em que o dia dura mais que a noite e é comemorada a chegada do verão, durante esse fenômeno vários povos realizavam os rituais de fertilidade quando o sol se eleva, marcando o solstício de verão do hemisfério Norte. Na Bolívia, país de fronteira com Corumbá, índios aimará celebraram seu ano novo, que coincide com o solstício de inverno do hemisfério Sul. Esse aspecto renovador e festivo enquadrouse perfeitamente ao período junino brasileiro que culmina com o período de vazante6 do rio Paraguai, e como o transporte fluvial é de grande importância para população corumbaense, os períodos de cheia assemelham-se com o ‘solstício’ que acontece no hemisfério norte. É notório que o “Banho de São João” realizado na cidade de Corumbá-MS apresenta características e significados singulares equiparados ao costume europeu. E isso está relacionado ao meio onde a tradição é perpetuada. Em relação à influência de estrangeiros, PINHEIRO descreve: É também necessário entender que as migrações de forma ou as configurações de sentido que se auto-organizam na cultura não se transferem de modo direto ou transparente para os sistemas já organizados e codificados, como os jornais, rádios, cinema, etc. O passado da cultura, através de coágulos e desvios, que se vão lentamente condensando, reorganizam e atualizam os modos de produção do futuro. (PINHEIRO, 2009, p. 22).
Essa manifestação já apresentava em seus primeiros parâmetros o aspecto mestiço, pois a louvação do São João Batista no dia 24 de junho
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ndecahea Apósgrandeplero íado itnonsro isadoP período no qual os leitos dos rios baixam e começam a se formar “corixos” ou baías que retêm grande quantidade de peixes, fenômeno conhecido pelo nome de “lufada”, que servem de banquete às aves aquáticas concentradas na região. Disponível em: http://www.pantanalecoturismo.tur.br/NOTICIA-PANTANAL-1723.htm. Acesso em: 14.março.2012.
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foi a única maneira com a qual a Igreja católica pôde contornar uma festividade de caráter profana que já existia na cultura europeia. Tal mistura — do profano e sagrado —, que a Igreja adequou naquela época, nos permite concluir que essa festividade junina está intrinsecamente ligada às características mestiças. E como se deu essa mistura do profano e do sagrado? Analisando as duas vertentes, notamos a semelhança de conceitos e de características que se complementam na medida em que são equiparadas. A festividade que acontecia antes mesmo da intervenção da Igreja católica estava relacionada à estação do ano, chamada de ‘solstício’, sendo o início do verão no mês de junho no hemisfério norte. Como a primavera precede o verão, é no mês de junho que acontecem as colheitas na Europa. Para comemorar essa época de fertilidade e colheita, eram realizadas várias festas e rituais nos povoados que viviam do trabalho agrário. [...] no hemisfério norte, era a época do ano em que diversos povos — celtas, bretões, bascos, sardenhos, egípcios, persas, sírios, sumérios — faziam rituais de invocação de fertilidade para estimular o crescimento da vegetação, promover a fartura nas colheitas e trazer chuvas. (RANGEL, 2008, p. 15)
No calendário católico, durante o mês de junho é comemorado o dia de três santos: Santo Antônio, São João Batista e São Pedro, respectivamente nos dias 13, 24 e 29. E como o ‘solstício’ começa entre os dias 21 e 24 de junho, o São João foi escolhido pela Igreja como o santo representativo desse período. Segundo RANGEL (2008), foram vários os motivos que contribuíram para que isso fosse possível, um deles é a data de seu nascimento (dia 24 de junho) que coincide com o início do ‘solstício’, o outro é a sua importância na história cristã, pois, de acordo com estudos bíblicos, João é filho de Isabel que é prima de Maria, mãe de Jesus. Como João nasceu antes que Jesus, ele foi delegado na função de preparar os fieis para chegada de Jesus Cristo. Essa ideia fica clara, pois segundo o que está escrito no livro das palavras do profeta Isaías, que diz: “Voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor; endireitai as suas veredas” (LUCAS, 3:4), João Batista, para cumprir com que foi designado por Deus, começa a realizar o batismo, purificando aqueles que eram pecadores confessos. E dentre essas pessoas Jesus Cristo também
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foi batizado por João no rio Jordão. E como a Igreja temia a disseminação dos rituais profanos na Europa, buscou as semelhanças entre a história de São João Batista e a simbologia dos rituais profanos de fertilidade, e fez por bem mesclar essas duas vertentes dualistas. O símbolo da água carrega vários sentidos no decorrer da história humana. Mas nessa festividade em específico a água tem como função o batismo. A imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no mundo indiferenciado da pré-existência, equivale a uma dissolução das formas. “O contato com a água comporta sempre uma regeneração: por um lado porque a dissolução é seguida de um ‘novo nascimento’, por outro lado porque a imersão fertiliza o potencial da vida.”(ELIADE, s/d, p.147). Tal caráter renovador da água culmina muito bem com os rituais de fertilidade realizados nos antigos povos ibéricos. [...] a origem da vida e o elemento da regeneração corporal e espiritual, o símbolo da fertilidade, da pureza, da sabedoria, da graça e da virtude. Fluida, sua tendência é a dissolução; mas, homogênea também, ela é igualmente o símbolo da coesão, da coagulação. (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1988, p. 15).
Em Corumbá, a tradição de banhar o santo teve início na segunda metade do século XIX, período em que as grandes embarcações vindas da Europa traziam imigrantes e especiarias de luxo. O ritual da lavagem foi implantado pelos árabes que acreditavam na crença de renovação agregada ao Santo. Havia tantas procissões e andores do santo, quantos fossem os festeiros. Tratava-se de pessoas que cumpriam promessas. Todas as procissões acabavam se encontrando na ladeira central, de acesso ao porto e ao rio Paraguai, pois a cidade situa-se numa barranca, aproximadamente trinta metros acima do nível do rio. O banho do santo constitui-se numa das particularidades dos festejos de São João em Corumbá. Conforme Frederico A. G. Fernandes, essa prática veio da tradição dos árabes: “O santo é lavado no Rio Paraguai, no intuito de renovar suas forças e abençoar tudo o que se relaciona com as águas e com o homem” (SOUZA, 2004, p. 333).
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Ainda segundo SOUZA (2004), o “ Banho de São João” teve um desenvolvimento muito rápido na cidade. Como era um período próspero economicamente, e grande parte da população era formada por italianos, portugueses, bolivianos, paraguaios e sírio-libaneses, os quais, em nossa análise, contribuíram para a formação da cultura mestiça da região. O acréscimo e a criação de novas tradições não sofreram muitas barreiras conservadoras, visto que a identidade local já era indeterminada antes mesmo da sua origem, devido à sua formação fronteiriça. Sobre essa característica, PINHEIRO (2009) afirma: O caráter multiplicante, ramificante e fragmentário da cultura se dá aqui por uma proliferação dos processos civilizatórios fronteiriços junto a um grande enfraquecimento das noções binárias de centro e periferia (o que nos obriga a uma revisão e reconfiguração lógicoconceptual), não por uma glorificação da velocidade a partir do paradigma eurocêntrico de modernidade levado a cabo pelas tecnociências. (PINHEIRO, 2009, p. 15).
Esse caráter multiplicante é evidente na tradição do “Banho de São João”, pois são vistos vários signos culturais que não são próprios da região e, assim, “Por extensão, é possível pensar que o popular é constituído por processos híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações” (CANCLINI, 2003, p. 220). A tradição popular bem como a cultura no seu todo não apresenta uma limitação nítida, pois é natural que um costume no processo de adaptação englobe características de outras culturas. E isso é possível devido à troca e contato de etnias distintas no mesmo espaço. Portanto, fica claro o processo de mestiçagem, ou seja: A mestiçagem é uma invenção nascida da viagem e do encontro [...] Muitas vezes a multiplicidade de populações reunidas numa mesma cidade não cria nada que se lhe assemelhe. O processo de mestiçagem só começa quando o facto de pertencer a essas cidades-mundo (Cosmópolis) serve melhor a definição de identidade do que a nacionalidade em si (LAPLANTINE & NOUSS, s/d, p. 18).
Além dos comerciantes europeus, Corumbá-MS recebeu vários
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migrantes brasileiros que em sua maioria eram militares transferidos, “Efetivos do Exército e da Marinha também contribuíram para a formação de sua população” (SOUZA, 2004, p. 332) os quais traziam a cultura e os costumes da cidade de origem, bem como se ajuntavam aos rituais corumbaenses. Tal aspecto confirma o processo mestiço na região. Porque, ao praticarem o ritual de lavagem do santo, acrescentavam elementos de sua cultura de origem na tentativa de uma reafirmação de identidade de raiz. O interessante é que tal prática, ao ser repetida nos anos seguintes, ganhava espaço e importância na cultura, ou seja: “O objeto mestiço é um mosaico móvel que surge a partir da mobilização das diferenças, mas elas se anulam. Nesse encontro nada é perdido e as características dos elementos são transformadas” (PINHEIRO, 2009, p. 35). CARACTERÍSTICAS DRAMÁTICAS E MESTIÇAS DO RITUAL Dentre as várias características do “Banho de São João”, a alegria é um fator fortemente presente. Por mais que a tradição seja de caráter sacroprofano, pois a sua origem se dá nos rituais7 profanos de fertilidade, assim o aspecto profano tende a ser mais evidente na festividade. Prova disso são as vestimentas coloridas, o ritmo acelerado, os movimentos alegres, a decoração do Porto Geral com diversas cores e a promessa de um futuro casamento, características que realçam o caráter profano da festividade. Observa CANCLINI (2008) que: O popular não é vivido pelos sujeitos populares como complacência melancólica para com as tradições. Muitas práticas rituais subalternos, aparentemente consagradas a ordem tradicional, transgridemna humoristicamente. Talvez uma antologia da documentação dispersa sobre humor ritual na América Latina tornasse evidente que os povos recorrem ao riso para ter um trato menos angustiante com seu passado (CANCLINI, 2008, p. 221).
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Concorda-se em colocar na origem do teatro, uma cerimônia religiosa que reúne um grupo humano celebrando um rito agrário ou de fertilidade, inventando roteiros nos quais um deus morreria para melhor viver, um prisioneiro é condenado à morte, uma procissão, uma orgia ou um carnaval eram organizados (PAVIS, 2008, p. 345).
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O ritual do “Banho de São João” é dividido em etapas, em que o contraste do profano e o sagrado ficam bem nítidos. No dia 23 de junho é levantado o mastro com a imagem do Santo juntamente com a reza. Durante o dia são finalizados os preparativos para a noite do Festejo. “Os festeiros8 contratam músicos que formam o conjunto para acompanhar o cortejo [...] as casas são decoradas segundo as possibilidades financeiras do grupo e, muitas vezes, usam vestimentas próprias para ocasião, popularmente chamadas de roupa caipira.” (SIGRIST, 2008, p. 52). LEVANTAMENTO DO MASTRO E OS BANQUETES No dia 23, no período da manhã, é realizada a procissão até a igreja, onde é feita a missa em louvação a São João Batista. Ao término da missa, todos retornam em procissão até a casa do Festeiro, onde será levantado o mastro e servido o café da manhã. O levantamento do mastro9 muitas vezes é realizado durante a noite, pós lavagem do Santo, todavia existem festeiros que levantam o mastro logo após a missa da manhã. De acordo com o festeiro Alfredo Ferraz, o mastro erguido em frente à casa não só representa simbolicamente o nascimento de São João Batista, mas também comunica a todos que nessa casa reside uma família de festeiros.
Fig. 1: Andor e Mastro.
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Festeiros são os responsáveis pela organização da festividade e do banho do santo. 2 No topo do mastro, que deve ter mais ou menos 5 a 6 metros de altura, fica a bandeira do santo padroeiro da festa, símbolo da sua presença durante a festividade (RANGEL, 2008, p. 73).
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Antes da descida da ladeira Cunha e Cruz10 é feita uma reunião na casa dos festeiros, onde é servido um banquete11. Dentre os pratos principais desse momento, temos o chamado “sarravulho” ou “sarrabulho”, que é uma comida extremamente típica da região, feita à base de miúdos do boi e vinho, o prato apresenta uma aparência muito semelhante à nossa famosa feijoada, segundo Tasso: É um prato a base de miúdos, original da região do Douro, em Portugal. Lá ele é denominado de Sarrabulho. No entanto, em Corumbá (MS) ganhou mais ingredientes e teve pequenas mudanças na receita, sem contar que nesse processo de adaptação de Portugal para a fronteira noroeste de Mato Grosso do Sul, consolidou-se uma grafia com V, tornando-se por aqui Sarravulho (TASSO, 2009).
Muitos que praticam o ritual do “Banho de São João” vêem a lavagem do santo como uma espécie de renovação de energias, bem como para comemorar o nascimento de São João Batista. E esse aspecto é reforçado na função do banquete na festividade, pois notamos que esse momento é caracterizado pela comemoração em conjunto, onde as pessoas ficam reunidas no mesmo espaço com música, dança e muita alegria. “O triunfo do banquete é universal, é o triunfo da vida sobre a morte [...] é equivalente da concepção e do nascimento. O corpo vitorioso absorve o corpo vencido e se renova” (BAKHTIN, 1999, p. 247). A MUSICALIDADE A linguagem musical desde as manifestações rituais mais primitivas é utilizada para ilustrar a manifestação de crenças, para a construção
10 A ladeira Cunha e Cruz é um dos principais acessos para o Porto Geral e ao rio Paraguai. 11 Como se sabe, o Banquete exprime um rito comunial e, mais precisamente, o da Eucaristia. Por extensão, é o símbolo da Comunhão dos Santos, ou seja, da beatitude celeste através da partilha da mesma graça e da mesma vida. De modo geral, é um símbolo de participação numa sociedade, num projeto, numa festa (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1988, p.120).
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de identidades, sendo considerada um produto de atividade humana universal, inquestionável é a sua existência e importância em qualquer sociedade; é ao mesmo tempo diversificada e de tradução difícil, quando interpretada fora de seu contexto ou de seu meio cultural. A música no contexto da manifestação folclórica do “Banho de São João” é um importante catalisador de ideias e de elemento delineador de configurações dramáticas representadas na prática por um grupo de instrumentos tal qual uma fanfarra. A visão da antropologia (PINTO, 2001) aponta que a presença da música nas diversas atividades sociais e os significados múltiplos que decorrem desta interação constitui importante plano de análise. Pois, sendo assim, a Música não seria compreendida apenas pelos seus elementos estéticos, mas como uma forma de comunicação semelhante a qualquer tipo de linguagem possuindo sua própria significação. Ao analisarmos a música no contexto do “Banho de São João”, entendemos que ela não apenas impulsiona, mas determina diversos aspectos dessa manifestação popular. Pode-se observar claramente esse fato ao identificarmos as modificações em seu andamento, em um primeiro momento musical um instrumento de sopro nos apresenta uma melodia monótona em compasso ternário, valsando tal qual uma cantiga de ninar ou ainda, como quem embala uma criança: Deus te salve São João Batista sagrado O seu nascimento Nós temos que alegrar (2x) O instrumento de sopro é acompanhado por uma batida de percussão também de caráter monótono e sem grandes efeitos percussivos. Após diversos compassos, nesse mesmo motivo melódico e rítmico de caráter circular e monótono, pode-se observar a ruptura brusca do instrumento de sopro apresentando um novo tema musical incisivo e alegre. Esse novo tema apresentado não guarda semelhança alguma com o tema musical anterior, ao contrário, nos dá a sensação de um começo de folia de carnaval, numa alusão clara da existência de uma dicotomia rítmica e melódica que ilustra dois aspectos diferentes do “Banho de São João”. O seu caráter de manifestação sacra, representado na música monótona em compasso ternário, nos remeteria a uma lembrança da
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santíssima trindade e o profano, por sua vez, é alegre motivo musical apresentado em compasso binário, popularmente utilizado nas músicas compostas para as tradicionais fanfarras e bandas escolares. Assim durante toda procissão, os dois momentos, sagrado e profano, são repetidos. No interlúdio do sagrado, é o momento em que as pessoas cantam trechos da vida de São João Batista, juntamente com o instrumental de caráter monótono. (Momento Sacro) Deus te salve São João Batista sagrado O seu nascimento Nós temos que alegrar (2x) Confesso Momento profano, só instrumental de caráter carnavalesco. 12
(Momento Sacro) Se São João soubesse Que hoje era seu dia Descia do céu à terra Com prazer e alegria (2x)
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Disponível em <http://www.diarionline.com.br/index.php?s=noticia&id=2232> Acessão em: 27.março.2012.
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Momento profano, só instrumental de caráter carnavalesco. 13
(Momento Sacro) João batiza Cristos Cristo batiza João Ambos foram batizados No Rio de Jordão (2x) Momento profano, só instrumental de caráter carnavalesco. 14
13 Disponível em: <http://www.campograndenews.com.br/entretenimento/cultura/ tradicional-banho-de-sao-joao-comeca-hoje-em-corumba> Acesso em: 27 março 2012. 14
Disponível em: <http://www.diarionline.com.br/index.php?s=galeria&id=487> Acesso em: 27 março 2012.
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No intervalo de cada trecho ocorre o momento profano, que é a folia carnavalesca. Conclui-se que o elemento musical dessa manifestação popular é de importância singular, pois é através da estrutura rítmica e melódica das canções apresentadas no cortejo que o público presente vivencia o sagrado e o profano representados simbolicamente pela divisão musical dos compassos ternário (sacro) e o compasso binário (profano). Este centro descentrado de variação é um acontecimento singular, afinal, como afirmam Laplantine e Nouss, a colagem, a variação a música e a identidade cultural é um movimento de interação constante, “resultado de misturas e cruzamentos, feito de memórias e cruzamentos, mas sobretudo de esquecimentos” (s/d, p. 77), por sua vez mestiço. A TEATRALIDADE E A PARTE PERFORMÁTICA Tudo começa na casa dos festeiros, as rezas, ornamentação do andor e o encontro da comunidade do bairro. A maioria dos que participam contribuem de alguma forma, seja com dinheiro, com comidas, bebidas ou mão de obra. A iniciativa de união do bairro para os serviços voluntários em benefício aos preparativos da festa é extremamente forte. Assim percebemos que o sentido comunal é essencial na tradição, pois a crença, a celebração, a confraternização de uma comunidade, são motivos que fortalecem a união e a perpetuação do ritual. Esse conceito fica claro na obra de Carlson (2009), que afirma: Huizinga, ao considerar as funções culturais do jogo, mostra-se como sendo primeiramente conservadoras, fornecendo, por meio do aprofundamento da experiência comunal e da exibição lúdica dos valores e das crenças comunais, um fortalecimento máximo das suposições culturais. De fato, Huizinga considera, como uma característica básica do jogo, o desenvolvimento e o reforço de um Espírito ou uma Consciência de comunidade, e sugere que seus efeitos sempre continuam para além da experiência momentânea do jogo. (CARLSON, 2009, p. 38)
Após a reunião na casa do festeiro, a procissão é organizada. O andor do Santo é carregado na frente por quatro pessoas, estas que ao decorrer da procissão são periodicamente substituídas, em uma espécie
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de revezamento. Essa troca é muito importante, pois alguns grupos caminham até 6 km. durante o cortejo. Além da distância, muitos que estão na procissão querem carregar o santo no intuito de fazerem promessas ou louvação. Alguns festeiros contratam bandas particulares para o acompanhamento de todo trajeto. Como são mais de cem andores que descem a ladeira Cunha e Cruz, e a maioria não possui uma banda particular, em pontos estratégicos permanecem as bandas contratadas pela Prefeitura, que ficam em cima de pequenos palanques, para acompanhar a descida dos andores. Quando uma procissão se aproxima, a banda começa a tocar a melodia monótona, caracterizando o momento sacro da procissão. Depois da primeira estrofe, a banda intercala com a batida rápida e carnavalesca: “Os participantes cantam, pulam animadamente durante o trecho de marcha carnavalesca e vão caminhando durante o trecho do hino sacro, repetindose indefinidamente essas alternâncias”(SIGRIST, 2008, p. 53). Na ladeira, normalmente acontece o encontro de dois andores, pois os primeiros que descem, sobem pelo mesmo caminho. E quando isso ocorre, os condutores flexionam os joelhes três vezes, numa espécie de cumprimento, em seguida, os mesmos bradam “viva São João!”. A ladeira fica toda iluminada com centenas de velas, existem até algumas procissões que as pessoas carregam pequenas lanternas que simulam velas à longa distância. A letra da música, a alternância de batida e movimento, o encontro de andores, o espaço que vai da casa do festeiro até o porto geral, as centenas de velas, são elementos que configuram e definem essa tradição como performática. A letra da ladainha contada serve como roteiro, texto; o instrumental, a melodia, como trilha sonora, que marca os momentos específicos da performance; o encontro de andores, pequena alternância que acontece fora da partitura da música; o público que assiste das calçadas, e os que acabam entrando na procissão; as velas como iluminação, as vestimentas feitas com retalhos como figurino; e o caráter pós-dramático presente na utilização de recursos tecnológicos são características que confirmam a dramaticidade do ritual. Todavia, mesmo que não houvesse tais elementos, o ritual já se configura como uma prática dramática do homem, pois, Pode-se considerar a teatralidade algo intrínseco ao ser humano na
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medida em que o teatro tem origem em rituais como danças tribais, ritos religiosos ou cerimônias públicas ou ainda na tendência humana particularmente infantil, de experimentar o mundo por meio do jogo, do lúdico (PASCOLATI apud BONNICI & ZOLIN, 2009, p. 94).
Notamos também que a performance que se dá no “Banho de São João” é uma prática lúdica que permite o fortalecimento dos valores e crenças. E durante a descida da ladeira Cunha e Cruz percebemos vários jogos — cada jogo envolve uma crendice —, como, por exemplo: passar de baixo do andor sete vezes no intuito de conseguir futuro casamento; andar sem calçado carregando o andor para atrair dinheiro; mulheres descalças descem, como promessa para engravidarem, etc. São várias as crenças e simpatias que envolvem o ritual. O jogo aqui é também elemento dramático fundamental na perpetuação da tradição, haja vista que: Joga-se até que se chegue a um fim. Enquanto está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação. E há, diretamente ligado a sua limitação no tempo, uma outra característica interessante do jogo, a de se fixar imediatamente como fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim permanece como uma criação nova do espírito, um tesouro a ser conservado pela memória. É transmitido, torna-se tradição (HUIZINGA, 1971, p. 11).
Durante a procissão, todos os integrantes do ritual assumem postura diferenciada do cotidiano, prova disto são as vestimentas coloridas e ações que são quase que incomuns na sociedade. Para que isso seja possível, é feito um acordo comum entre todos os que participam da festividade, no qual é determinado um espaço e tempo definidos para cada momento específico da procissão. Assim, ao iniciar o trajeto nesse espaço e tempo isolados — até mesmo limitado — todos os que acompanham ou assistem tornam-se performers, representando em tempo real ações que são previamente marcadas, mas que são fadadas a constantes alterações.
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CONSIDERAÇÕES EM METAMORFOSE De acordo com PINHEIROS (2009), as culturas que se fundamentam apenas com textos criados por elas próprias, em sua maioria se caracterizam por um desenvolvimento gradual e retardatário; ao contrário, as que são saturadas periodicamente por textos provenientes de outras tradições tendem a um desenvolvimento acelerado. É importante salientar que todo sistema cultural é aberto, sendo capaz de trocar informações com o ambiente, negociar e transformar. Tais aspectos são essenciais na tradição do “Banho de São João”, pois a perpetuação da tradição só é possível devido à troca, à adaptação de novas tendências de cada período histórico. O Jogo dramático que perpassa toda a manifestação do Banho de São João é circunscrito pela música, ora profana, ora religiosa. É a música que dá o tom da manifestação por excelência, “embriaguez dionisíaca é, na sua essência tecida por metamorfoses contínuas nas e pelas quais as individualidades podem encontra-se e ultrapassar-se” (LAPLANTINE E NOUSS, s/d, p. 95). O elemento musical dessa manifestação popular é de importância singular, pois é através da estrutura rítmica e melódica das canções apresentadas no cortejo que o público presente vivencia o sagrado e o profano representados simbolicamente pela divisão musical do compasso temário (sacro) e o compasso binário (profano). Conclui-se, portanto, que o “Banho de São João” é um ritual dramático, devido ao deslocamento dos corpos em um espaço e tempo previamente definidos, onde o homem assume a forma de elemento performático, pois a “arte performance considera a materialidade do corpo, dos objetos, dos conceitos e transita para a teatralização, assumindo uma potência dramática, dionisíaca e cênica”. (PAVIS, 1947, p. 240) É importante salientar que o “Banho de São João” tem importância singular na cultura sul-mato-grossense, visto que é carregado de elementos que são próprios desta e de outras regiões. Assim concluímos que é irrefutável a sua característica mestiça, pois além dos elementos que foram agregados em Corumbá, a sua origem já apresentava o caráter mestiço devido à intervenção do sagrado pela Igreja Católica nos rituais profanos de fertilidade dos camponeses. Cabe salienta ainda que o “Banho de São João” é uma manifestação singular, única, como esta não existe outra no mundo, e como afirmam Laplantine e Nouss (2009) toda
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mestiçagem é única, particular e traça seu próprio futuro. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de frança Rabelais. 4.ed. São Paulo: Hucitec, Brasília: Ed. UnB, 1999. BÍBLIA SAGRADA. O evangelho de Lucas. Português. Bíblia sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida, São Paulo: Ed. Sociedade Bíblica do Brasil, s/d. Cap. 3, vers. 3 e 4. CANCLINI, N. G. Culturas híbridas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. MARVIN, C. Performance : uma introdução crítica. Trad. Thais Flores Nogueira Diniz, Maria Antonieta Pereira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1988. ELIADE. M. Imagens e símbolos, ensaio sobre os símbolos mágico-religioso. Coleção Artes e Letras. Lisboa: Editora Arcária, 1979. FERRAGINI. B. Pantanal- Tem início período de vazante nos rios pantaneiros. 2010. Disponível em: Pantanal Ecoturismo URL: http:// www.pantanalecoturismo.tur.br/NOTICIA-PANTANAL-1723-.htm>. Acesso em: 14 março 2012. HUIZINGA, J. Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. LAPLANTINE, F; NOUSS, A. A Mestiçagem. Trad. Ana Cristina Leonardo. isboa: Biblioteca Básica de Ciências e Cultura - Instituto Piaget, s.d. LOTMAN, I.; B. USPENSKI, B. Sobre o mecanismo Semiótico da Cultura. Ensaios de Semiótica Soviética. Lisboa: Livros Horizonte,1981.
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