Revistas Arandu # 59

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SN 1415-482X -Abril/2012 • IS ço ar M oir re • Feve tura Ano 15 • Nº 59 Ciência • Litera

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nicanorcoelho@gmail.com

Dourados-MS

Ano 15 โ ข No 59

Pรกgs. 1-44 Fevereiro-Marรงo-Abril/2012


[ CARO LEITOR Revista AranduLEITOR traz nesta edição esCARO

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tudos voltados à temática indígena e patrimônio cultural sul-mato-grossense. Dinaci Vieira Marques Ranzi, Silvio Ortiz e Célia Maria Flores Santos são autores do artigo Superação, humanização e desenvolvimento local: Programa de Acolhimento no atendimento hospitalar aos Indígenas de Dourados-MS Dourados-MS, que aborda o trabalho de tradutor nos atendimentos à comunidade indígena no Hospital Universitário de Dourados. Em Discurso(s) Indígena(s): A escola diferenciada em questão questão, as professoras pesquisadoras Santa Cariaga Portolan e Rita de Cássia Pacheco Limberti fazem uma análise do discurso indígena nas atas de reuniões pedagógicas da Escola Indígena Tengatuí Marangatu-Polo, na Reserva Indígena de Dourados. O historiador Carlos Magno Mieres Amarilha, no artigo A conquista do Brasil na fronteira guarani: o Território Federal de Ponta Porã Porã, faz “um breve relato de vida de um imigrante português, Albano José de Almeida (1904-1974), chegando à região de Dourados na época da criação do Território Federal de Ponta Porã nos idos dos anos de 1940. No segundo momento como são tratados os "paraguaios e índios" na construção da memória realizadas em parte pelos merialistas da região sul de Mato Grosso do Sul”. Boa leitura! Nicanor Coelho Editor

Ano 15 • No 59 • Fevereiro-Março-Abril/2012 ISSN 1415-482X

Editor NICANOR COELHO nicanorcoelho@gmail.com Conselho Editorial Consultivo ÉLVIO LOPES, GICELMA DA FONSECA CHACAROSQUI e LUIZ CARLOS LUCIANO Conselho Científico ANDRÉ MARTINS BARBOSA, CARLOS MAGNO MIERES AMARILHA, CÉLIA REGINA DELÁCIO FERNANDES, LUCIANO SERAFIM, MARIA JOSÉ MARTINELLI SILVA CALIXTO, MARIO VITO COMAR, NICANOR COELHO , PAULO SÉRGIO NOLASCO DOS SANTOS e ROGÉRIO SILVA PEREIRA Editor de Arte LUCIANO SERAFIM PUBLICAÇÃO DO

EDITADO POR

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Revista Arandu: Informação, Arte, Ciência, Literatura / Grupo Literário Arandu - Ano 15 No 59 (Fevereiro-Março-Abril/2012). Dourados: Nicanor Coelho Editor, 2011. Trimestral ISSN 1415-482X 1. Informação - Periódicos; 2. Arte - Periódicos; 3. Ciência - Periódicos; 4. Literatura Periódicos; 5. Grupo Literário Arandu.


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[ SUMÁRIO

Superação volvimento local: Superação,, humanização e desen desenv Programa de Acolhimento no atendimento hospitalar aos Indígenas de Dourados-MS ............................... 5 Dinaci Vieira Marques Ranzi Silvio Ortiz Célia Maria Flores Santos Discurso(s) Indígena(s): A escola diferenciada em questão ............................ 16 Santa Cariaga Portolan Rita de Cássia Pacheco Limberti A conquista do Brasil na fronteira guarani: o Território Federal de Ponta Porã ........................... 30 Carlos Magno Mieres Amarilha

Capa: Silvio Ortiz, tradutor indígena no Hospital Universitário de Dourados Cortesia UFGD

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SUPERAÇÃO, HUMANIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO LOCAL: Programa de Acolhimento no atendimento hospitalar aos Indígenas de Dourados-MS Dinaci Vieira Marques RANZI1 Silvio ORTIZ2 Célia Maria Flores SANTOS3 RESUMO Dourados, cidade do estado de Mato Grosso do Sul, possui a segunda maior população indígena do Brasil. Este estudo tem por objetivo relatar o processo de implantação do Programa de Humanização do Hospital Universitário de Dourados referente à população indígena — período de 2004 a 2008. Também faz uma reflexão sobre a superação do preconceito em relação aos povos indígenas no atendimento hospitalar e como as ações de acolhimento contribuem para o desenvolvimento local, haja vista que, “o cuidar” é uma forma de expressão, de ser, de viver, de se relacionar com o outro e com o mundo. No cuidar humanizado, ele reflete a concepção de qualidade, onde o cuidador é capaz de acolher, refletir, reconhecer e desempenhar, com competência e sensibilidade, uma assistência de acordo com as necessidades do receptor de cuidados. Hoje o Hospital Universitário de Dourados, administrado pela Fundação Universidade Federal da Grande Dourados, é referência na assistência à Saúde em média e alta complexida-

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Graduada em História; acadêmica do curso de Pós-graduação stricto sensu em Desenvolvimento Local, da Universidade Católica Dom Bosco – Mato Grosso do Sul. 2 Graduado em Enfermagem e Especialização em Saúde Publica pela UNIGRAN; índio sul-matogrossesnse da etnia Kaiowa. 3 Mestre em História, pela Universidade Federal da Grande Dourados - Mato Grosso do Sul.


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de e, através de parceria com a FUNASA, o atendimento direcionado à população indígena. Pretende-se, com este trabalho, socializar os avanços e os desafios do Programa de Humanização que busca garantir assistência de qualidade às pessoas indígenas, em respeito à diversidade étnica. O projeto “Acolhimento da Porta de Entrada” conta com um Enfermeiro indígena que trabalha também como interprete resolvendo assim, nesta instituição, a dificuldade de comunicação entre os profissionais de saúde e os usuários indígenas. Palavras-chave: humanização, etnia, saúde, desenvolvimento local.

ABSTRACT Dourados, a city of the state of Mato Grosso do Sul, the second largest indigenous population of Brazil. This study aims at reporting the process of implementation of the Program for the Humanization of the University Hospital of Golden on the indigenous population — from 2004 to 2008. It also reflects on the overcoming of prejudice against the indigenous peoples in the hospital and how the actions of host contribute to local development, given that “caring” is a form of expression, being, living in relate to each other and the world. In humanized care, it reflects the concept of quality, where the caregiver is able to accommodate, reflect, recognize and play with skill and sensitivity, one assistance in accordance with the needs of the care receiver. Today the University Hospital of Dourados, administered by the Federal University of Grande Dourados, is a benchmark in health care in middle and high complexity and, in partnership with FUNASA, care directed to the indigenous population. It is intended with this work, socialize advances and challenges of the Humanization Program which seeks to ensure quality assistance to indigenous people, out of respect for ethnic diversity. The “Home Port of Entry” has an Indian nurse who also works as an interpreter thus solving in this institution, the difficulty of communication between health professionals and indigenous users. Key words: humanization, ethnicity, health, local development.

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ntre os séculos XVI e XVIII, espanhóis, jesuítas e bandeirantes paulistas forjaram uma organização de expansão na Bacia Platina iniciando um processo de conquista e de colonização, onde apenas alguns grupos indíge-


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nas conseguiram sobreviver. Essa expansão, fruto do movimento capitalista, ocorrido na passagem do século XIX para o XX, provocou vários problemas para as populações indígenas que habitavam as regiões brasileiras, sobretudo os conflitos fundiários devido aos processos de colonização do território (JUNIOR, 2010). Os conflitos fundiários provocados pela expansão territorial, em virtude das concessões de terras que abrigariam empresas de exploração de produtos nativos — principalmente a Companhia Erva Mate Laranjeira, desde o fim do século XIX, no antigo sul de Mato Grosso — atingiram violentamente as terras indígenas. Isso provocou atitudes do Governo, no sentido de “resolver” esses conflitos. A opção encontrada foi o “confinamento”, através da criação de Reservas com o objetivo de sanar as disputas territoriais e “supostamente” dar proteção à população indígena levando-os a viver em terras demarcadas. Essas demarcações não respeitavam a posse natural da terra, nem as diversas culturas das diversas etnias, colocando-os todos juntos no espaço determinado pelo Governo, provocando, consequentemente, conflitos interétnicos (JUNIOR, 2010). Foi criada então, a Reserva Francisco Horta Barbosa, em 1917. Em 20 de dezembro de 1935, com áreas desmembradas do município de Ponta Porã, através do Decreto nº 30, do então Governador do Estado, Sr. Mário Corrêa da Costa foi criado o município de Dourados, que surgiu em função do projeto geopolítico do presidente Getúlio Vargas para ocupação da fronteira, através da colonização. Atualmente, com aproximadamente 200 mil habitantes, Dourados é a segunda mais importante cidade do estado de Mato Grosso do Sul, que se desenvolveu e expandiu sobre a terra indígena. Hoje a realidade vivida pelos índios é símbolo dessa contradição brutal decorrente do processo de expansão econômica e política sobre os povos: Kaiowá, Ñandeva e Terena, cuja presença dos descendentes é marcante até os dias atuais constituindo uma das maiores populações indígenas do Brasil. Dourados tem a Reserva Indígena Francisco Horta Barbosa, que compreende as aldeias Bororó e Jaguapiru que totaliza uma área de 3.539 hectares, com uma população estimada em 2007, pela FUNASA, superior a 12 mil indígenas distribuídos nas duas aldeias. Essa concentração demográfica, de confinamento, favoreceu o surgimento de acampamentos indígenas (Passo Piraju), nas regiões periféricas do município ocasionando a constante


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reivindicação por ampliação e demarcação de novas áreas. Na área da saúde, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos indígenas tem como objetivo garantir-lhes o acesso integral, criando os serviços de atenção básica desenvolvidos pelo Ministério da Saúde, através da Secretaria Especial de Saúde Indígena - SESAI, executado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI/Pólo Base de Saúde Indígena. O Pólo Base de Dourados gerencia 5 equipes de saúde indígena, além da estreita relação com a Secretaria Municipal de Saúde que atende a atenção básica e, de forma articulada, a alta e média complexidade, através das Unidades de Saúde, próprias e ou conveniadas. (Diagnóstico PMD, 2011). Um dos estabelecimentos de saúde que atende essa população é o Hospital Universitário de Dourados - HU, que foi inaugurado em outubro de 2002, administrado pela Fundação Municipal de Saúde e Administração Hospitalar de Dourados, autorizada pela Lei 2.592, de 18 de Julho de 2003 e instituída pelo Decreto 2.212, de 13 de Outubro de 2003. A implantação e o funcionamento do Hospital Universitário, a partir do ano 2003, sob a responsabilidade da Prefeitura de Dourados, sempre teve como pressuposto lógico a sua transferência, inicialmente, à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e, posteriormente, à Universidade Federal da Grande Dourados, após sua criação em 2005 (RANZI, 2009). Quando foi inaugurado, oferecia à população apenas atendimento médico ambulatorial e procedimentos cirúrgicos de pequeno porte. E com todas as dificuldades, inerentes ao processo de funcionamento, o HU foi se transformado em Hospital de referência para a região da Grande Dourados, com a incumbência de atender, a princípio, 34 municípios, estimando-se uma população referenciada de 800 mil habitantes, aproximadamente. A partir desse momento, o HU foi transformado em uma das mais importantes instituições de atendimento à saúde do Estado de Mato Grosso do Sul, sendo o único Hospital de Dourados e um dos poucos deste Estado, credenciado com 100% de atendimento no SUS e com o compromisso de desenvolver ações de ensino e pesquisa, como unidade da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD (RANZI, 2009) O hospital também abriu suas portas, com o desafio principal de fazer frente à alta taxa de mortalidade infantil indígena que a região registrava na época: 141 óbitos para cada mil nascidos — bem acima da média nacional de 24 por mil. O número de pacientes indígenas internados no período de 2004 a 2008 foram de 858 internações, onde 61,9% eram crianças


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e 38,1% adultos. Tal resultado indicou a necessidade de programar ações de saúde para esta população, através das estratégias de humanização hospitalar. Com o programa de humanização e todos os atendimentos das complexidades hospitalares, do HU e FUNASA, o número de internações para a população infantil, em toda região do cone sul, atualmente mantém a mesma media de 61,9%, entretanto, os números da mortalidade infantil foram reduzidos dos 141 óbitos para cada mil nascidos, até 2008, para 47, em 2010 (FUNASA, 2010). Apesar dos avanços, no que se refere a redução da mortalidade aos princípios norteadores e a descentralização da atenção e da gestão, o Sistema Único de Saúde - SUS, ainda enfrenta a fragmentação do processo de trabalho e das relações entre os diferentes profissionais, além da precária interação nas equipes e despreparo para lidar com a dimensão que envolve todo processo de humanização nas práticas de atenção a saúde. Certamente, este processo se dá pelo baixo investimento na qualificação dos trabalhadores, especialmente no que se refere à gestão participativa e do trabalho em equipe diminuindo a possibilidade de um processo crítico e comprometido com as práticas de saúde e com os usuários, em suas diferentes necessidades. (RANZI, 2009) Pensando na qualificação dos profissionais e no atendimento aos usuários dos serviços de saúde publica, o Ministério da Saúde implanta a Política de Humanização da Atenção e da Gestão (PNH). Uma iniciativa inovadora no SUS. Criada em 2003, a PNH tem por objetivo qualificar práticas de gestão e de atenção em saúde (HUMANIZASUS, 2010). A Humanização corresponde forjar novas atitudes por parte de trabalhadores, gestores e usuários, de práticas mais éticas no campo do trabalho, incluindo a gestão e as práticas de saúde superando problemas e desafios do cotidiano do trabalho. Os problemas mais corriqueiros a serem superados são as filas; a insensibilidade dos trabalhadores frente ao sofrimento das pessoas; os tratamentos desrespeitosos; o isolamento das pessoas de suas redes sócio-familiares nos procedimentos de consultas e internações; as práticas de gestão autoritária; as deficiências nas condições concretas de trabalho, incluindo a degradação nos ambientes e das relações de trabalho (HUMANIZASUS, 2010). Foi exatamente pensando em promover novas atitudes nas práticas de saúde que Hospital Universitário, no momento em que abre suas portas


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trabalhou a gestão como um elo da Humanização, a partir da construção de uma estrutura organizacional mais horizontalizada e participativa. Foi uma aposta que possibilitou a participação de todos os profissionais no cotidiano da Instituição fomentando o exercício das ações e decisões em conjunto incluindo o controle social, como princípio fundamental para o sucesso do Sistema Único de Saúde. Paralelamente à implantação da Gestão Participativa e Descentralizada, no HU, vários outros projetos voltados exclusivamente para a humanização do atendimento foram desenvolvidos visando a melhoria das relações humanas, o acolhimento dos usuários e seus familiares, a garantia do repasse das informações de saúde aos usuários, com a clareza e o detalhamento necessário à facilitação do acesso, do diálogo, e do respeito à diversidade de opiniões e solidariedade, deverão estar garantidos através da prática dos profissionais, dos gestores e dos cidadãos no sentido mais amplo. O Programa de Humanização do HU — “Aqui você será bem cuidado” — foi constituído por um Grupo de Trabalho de Humanização do Hospital, composto por representantes das diversas unidades e categorias profissionais da Unidade Hospitalar e por representantes da sociedade civil, igrejas: católica e evangélica, associações de bairro e Conselho Municipal de Saúde, dentre outros. A iniciativa em convidar a comunidade a participar do Grupo de Humanização é a proposta de fortalecimento do SUS, pois cumpre um de seus pressupostos: a participação e o controle social. Segundo Benevides A Política Nacional de Humanização da atenção e gestão do SUS HumanizaSUS (2003) considera que sujeitos sociais, atores concretos e engajados em práticas locais, quando mobilizados, são capazes de, coletivamente, transformar realidades, transformando-se a si próprios neste mesmo processo (BENEVIDES; PASSOS, 2005).

O Programa de Humanização desenvolvido no H.U constou dos seguintes projetos: “Acolhimento da Porta de Entrada”, “Avaliação da Satisfação do Usuário”, “Humanização da Linha de Cuidado Assistencial” e “Ouvidoria Hospitalar”. Para o quadro funcional foram organizadas algumas atividades vinculadas à Política de Recursos Humanos, cujo objetivo era buscar a adesão dos profissionais para o Modelo de Gestão Humanizada, Participativa e Descentralizada (RANZI, 2009).


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Nesses projetos, como preconiza o SUS — o acesso às ações e serviços garantidos a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, renda, ocupação, ou outras características sociais ou pessoais e; justiça social que garante a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie — o HU, com o “Projeto Acolhimento da Porta de Entrada”, em respeito à diversidade étnica contava com um enfermeiro indígena que, além da sua função oriunda da profissão, trabalhava também como interprete — cedido pela FUNASA — em consultas ambulatoriais, exames e nas Unidades de Internação resolvendo assim, nesta instituição, a dificuldade de comunicação entre os profissionais de saúde e os usuários indígenas. Essa foi uma parceria realizada entre FUNASA e HU disponibilizando profissionais que cuidavam especificamente desses pacientes, tais como: médicos, auxiliares de enfermagem e nutricionistas. Este último fazia adaptações do cardápio, com intuito de tornar o tempo de internação menos traumático e mais humano. Além dessas ações constam ainda as festas comemorativas com comidas típicas, folhetos e cartazes escritos em guarani. Apy nde nhante porã. Incompreensível para quem não domina o idioma Guarani, a frase afixada na entrada principal do Hospital Universitário de Dourados deixava claro qual era o real objetivo do projeto de humanização para aqueles que iam utilizar a unidade de saúde: “Aqui você será bem cuidado”. Dentre essas práticas inovadoras acrescenta-se um olhar singular para a saúde indígena, não mais de protecionismo, mas de garantia de direito e de participação coletiva atendendo ao princípio da equidade. Sugestões simples para a organização da assistência hospitalar apontadas na Comissão de Humanização, sobre a complexidade da singularidade de cada sujeito promoveu discussão junto a outros órgãos responsáveis por este segmento forjando um projeto para ações humanizadoras: “Respeito à Cultura Indígena” considerando os aspectos culturais relevantes para essa população e primando por um dos bens maiores da sociedade, ou seja, a possibilidade de comunicação entre os pares. A diferença na alimentação, a distância da família e dos curandeiros, as mudanças de ambiente e o fato de estarem internados prejudicavam as particularidades de cada etnia e comprometia o sucesso do tratamento médico. Em Dourados, muitas crianças em estado grave de desnutrição interromperam seu tratamento por causa dos familiares que, inseguros, tiravam as crianças dos hospitais, o que resultou em morte (ORTIZ, 2007).


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Para Silvio Ortiz: O índio entende que quando a criança adquire uma doença grave, espírito da morte já veio buscar ela, então não vale a pena trazer criança do hospital para casa. Para reverter isso e convencer o índio cuidar da criança, eu tenho que usar esse conhecimento da minha cultura (Entrevista, 2011).

O projeto, Acolhimento da Porta de Entrada tinha o objetivo de estimular e facilitar o contato entre a equipe de saúde e familiares organizando e agilizando o atendimento do Ambulatório de Especialidades e as informações dos usuários internados. Tinha ainda como meta auxiliar na identificação dos pontos de conflito; ouvir as demandas das famílias e dos usuários; procurando minimizar a ansiedade pela doença e pela permanência/internação no hospital. Era um trabalho desenvolvido por três funcionários, devidamente identificados e treinados, que recebiam os usuários esclarecendo dúvidas quanto ao atendimento e direcionando o usuário ao setor que ele seria atendido. O respeito à população indígena também era demonstrado através do acompanhamento e evolução nutricional específicos, respeitando sua cultura e efetivando a integralidade do cuidado dentro dos preceitos da humanização. Os projetos do Programa de Humanização representaram um marco na melhora da qualidade do atendimento e acolhimento à saúde da criança e à saúde do índio, além de respeitar a cidadania de todos (RANZI, 2009). É evidente o desafio para estruturar esse modelo, pela dificuldade em quebrar os velhos paradigmas e conceitos interiorizados nas organizações, mas é notório e evidente que só teremos uma organização de saúde com excelência, se houver comprometimento e envolvimento de todos os profissionais e usuários forjando um novo modelo de gestão, centrado na humanização e no compromisso com o usuário, pois a essência do ser humano, no mundo capitalista, foi substituída pela necessidade de cura de doenças e com isso a valorização dos meios para alcançá-la: a tecnologia (RANZI, 2004). A tecnologia e a humanização deverão ser combinadas, interligadas, no desafio de atender as necessidades dos usuários, como ponto de partida para qualquer intervenção hospitalar: promovendo o acolhimento do paci-


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ente e a humanização do atendimento; valorizando a alta do paciente, contra o referenciado; fazê-lo ver a importância da sua unidade de saúde e inserindo-o ao seio familiar, como elo para a sua recuperação, quebrando assim os vários modelos de atendimento, costumeiramente encontrados por quem utiliza o SUS como, a exemplo, médicos que se restringem à rotina de trabalho e o acesso aos colegas de profissão estabelecendo um distanciamento hierárquico, em relação aos demais profissionais, onde os interesses individuais são prioridades em detrimento aos interesses coletivos (RANZI, 2004). No caso da população indígena, em Dourados, há uma história de superação de preconceitos. Ao dizer “Achava que nunca iria superar o que passei quando criança, pois meus colegas diziam que índio é burro”, Silvio Ortiz, enfermeiro, atualmente pós-graduado em Saúde Pública demonstra claramente que há um longo caminho a ser percorrido. Ao tornar-se interlocutor entre médicos, enfermeiros e pacientes indígenas, no programa de Humanização do Hospital Universitário, observa-se também a necessidade de uma mudança de mentalidade e de sensibilidade dos gestores e profissionais da saúde publica, pois não percebem que o progresso humano somente será efetivado quando houver respeito pelas diferenças, pela diversidade cultural e étnica existente em nosso País e, principalmente, pelo aperfeiçoamento dos instrumentos que garantem os direitos individuais e coletivos. Os serviços de saúde devem se organizar centrados no usuário, isto permitirá também a compreensão da proposta do adequado fluxo e do acesso aos usuários facilitado por um pacto interno de gestão tratando-se, pois, de um processo de construção de uma política já constituída, centrada na formação e na discussão de novas posturas e propostas de trabalho. A mudança de atitude é real, entretanto difícil, pois a sociedade resiste quando se trata de algo diferente a ser produzido e organizado e o ser humano sempre tem medo do novo. Mudar rotina de trabalho partindo do pressuposto que o “outro” também “sou eu” é um exercício continuo de humanidade. Também é preciso desconstruir a cultura da doença que programa o ser humano para a morte. A humanização em saúde eleva seus profissionais e usuários a criar uma cultura para a vida, em toda sua plenitude, que é também um dispositivo para a liberdade.


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DISCURSO(S) INDÍGENA(S): A ESCOLA DIFERENCIADA EM QUESTÃO Santa Cariaga PORTOLAN1 Rita de Cássia Pacheco LIMBERTI2 RESUMO Este artigo encontra-se ancorado na abordagem da Análise de Discurso. O corpus é constituído de Atas de reuniões pedagógica da Escola Indígena Tengatui Marangatu-Polo, Reserva Indígena de Dourados, Mato Grosso do Sul, entre os anos de 1999 e 2002. Essa Reserva comporta um espaço de 3.539 hectares de terra, nela convivem índios de etnia Guarani-Kaiowá, Ñandeva, Terena, e não-índios, o que a caracteriza como uma comunidade multiétnica, multicultural e multilinguística. Na referida escola revelamse constantes conflitos e dissonantes discursos. O objetivo é compreender o fenômeno ideológico materializado nas Atas, a fim de saber como esses fenômenos interferiram no processo de educação na Aldeia. Como dispositivo de análise, vai-se em busca da formulação, lugar do dito (interdiscurso) e do não-dito (silenciado). O resultado da pesquisa mostrou que o funcionamento discursivo na escola citada se revela dentro de um movimento cujo discurso é de natureza polêmica e autoritária. Palavras-chaves Palavras-chaves: Ideologia; Discurso pedagógico; Sujeitos étnicos.

ABSTRACT This article is anchored in the approach to discourse analysis. The corpus consisting of Minutes of the meetings of the School teaching Indigenous Tengatui Marangatu-Polo, Indian Reservation of Dourados, Mato

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Mestre da Universidade Federal da Grande Dourados (FACALE/UFGD), Área Linguística e Transculturalidade, 2011. 2 Profª. Dra. Docente da Universidade Federal da Grande Dourados (FACALE/UFGD).


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Grosso do Sul between 1999 and 2002. This reserve comprises an area of 3,539 hectares of land, the ethnic Indians live there Guarani-Kaiowá, Ñandeva-Guarani, Terena, and non-Indians, who characterizes it as a multiethnic community, multicultural and multilingual. At school turn out to be constant conflicts and dissonant discourses. The goal is to understand the ideological phenomenon embodied in the Minutes, in order to know how these phenomena interfere with the process of education in the village. As analysis device, will be looking to the formulation of that place (interdiscourse) and the unsaid (muted). The search result showed that the functioning of discourse in that school is revealed in a movement whose speech is controversial and authoritarian. Keywords Keywords: Ideology; Pedagogic discourse; Ethnic subjects.

INTRODUÇÃO Este artigo é o resultado de uma pesquisa stricto sensu, realizada no Curso de Pós-Graduação da UFGD, e tem como objeto de pesquisa o discurso pedagógico de educadores Indígenas. O locus de pesquisa foi a Escola Tengatui Marangatu-Polo, localizada na Reserva Indígena de Dourados. O corpus constitui-se de Atas das reuniões pedagógicas da referida escola e compreende os anos de 1999 e 2002. Trata-se do período da implantação e implementação de uma política educacional específica aos índios de etnia Guarani. Por isso, as Atas são vistas como sendo a forma material constituída na/pela linguagem dos sujeitos inscritos pelo Locutor 1 (relator da Ata). Do ponto de vista da Análise do Discurso, o locutor não apenas registrou, mas inscreveu os efeitos da articulação língua/história/sujeito. As Atas trazem em si vários discursos que dialogam no interior da escola Tengatui, na medida em que discutem e colocam em prática um novo modelo de educação aos índios. Portanto, tratam de uma ruptura epistemológica, política e pedagógica na escola indígena de Dourados. A escola é vista como um lugar de investimentos sociais, históricos e ideológicos, no qual “tanto o sujeito como o sentido do discurso não são dados a priori, mas são constituídos no interior das formações discursivas”, conforme enuncia Orlandi (2001: 46). Para discorrer sobre a relação linguagem e mundo na qual o índio se


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encontra, este estudo determinou como seu lugar teórico o dispositivo ideológico de interpretação do sujeito étnico, um gesto de interpretação em que a leitura incide no efeito ideológico e “valoriza-se o interdiscurso (no dizível) para que o que se propõe a pesquisar faça sentido” (ORLANDI, 2007: 115). Para explicitar o processo de análise discursiva, de forma a interrogar os sentidos estabelecidos, a materialidade discursiva terá como foco o jogo que há entre a formulação e a constituição constituição, responsáveis pelo processo de significação do discurso, o “que implica uma relação (um batimento) entre o dizer e o não dizer” (ORLANDI, 2005: 128), conforme registrado nas Atas. Para classificação dos discursos presentes nas Atas, adotou-se a tipologia proposta por Orlandi (1996) para saber se determinado discurso é lúdico, polêmico ou autoritário, tendo em vista o funcionamento discursivo na escola Tengatui.

A ORIENTAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO DE LINHA FRANCESA Este trabalho encontra-se amparado na perspectiva da Teoria do Discurso iniciada por Michel Pêcheux (1988). Os estudos da linguagem iniciados por Pêcheux mostram que a linguagem não funciona como um sistema fechado: ela apresenta “brechas” por onde a ideologia, presente no discurso e o próprio discurso, entram no campo de estudo do sujeito, não sendo mais possível estudar o homem sem considerar a influência de seu contexto de produção. Nessa nova abordagem discursiva, o sujeito da linguagem existe socialmente, sendo ele interpelado pela ideologia. Esse sujeito se constitui na interação com o outro, ou seja, na presença do Outro no discurso. A noção de discurso permite a compreensão da “relação entre a língua e a ideologia” (ORLANDI, 2005: 82). A ideologia em AD não é uma ocultação, mas funcionamento estruturado; ela tem um modo de existência implicada na relação língua-sujeito-história. Procura-se mostrar que há um real da língua e um real da história, considerando-se que a ideologia é uma prática significativa, por isso não se pode deixá-la à margem de uma interpretação da linguagem humana. Para Orlandi (1993) o discurso é visto como lugar de contato entre língua e ideologia. Um lugar em que os dizeres são vistos como efeitos de


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sentidos. E, o modo como se diz deixa vestígio das relações de poder, e enfatiza que assim se pode conhecer como a língua se materializa no corpo do texto, por meio do gesto de interpretação. Explica que sob o viés discursivo “não se trabalha com o texto enquanto uma unidade significativa, mas na ordem da língua, enquanto sistema significante” (ORLANDI, 2007: 57). Neste estudo trabalha-se com os conceitos de formação discursiva discursiva, como “o lugar da constituição do sentido e da identificação do sujeito” (ORLANDI, 2008: 58); com o conceito de interdiscurso (como o lugar da memória), visto como cada uma das instâncias discursivas materializadas em Atas. Para efeito de análise, quer dizer que algo significa antes, em outro lugar e de forma independente. Orlandi inclui o conceito do interdiscurso ao campo da memória e do saber discursivo. Outra noção fundamental são as condições de produção produção, que em sentido amplo, se aplica ao contexto sócio-histórico-ideológico (ORLANDI, 1989), neste estudo essa noção diz respeito à situação histórica e ideológica dos índios que residem na Reserva Indígena de Dourados.

IDEOLOGIA, DISCURSO E IDENTIDADE Seguindo a concepção de ideologia de filiação discursiva de Michel Pêcheux, pretende-se chegar condições ideológicas de reprodução/transformação da luta de classes que o estudioso designa como sendo o contraditório. A expressão luta de classes se utilizada neste estudo para designar a oposição historicamente verificada entre os índios das três etnias — Guarani, Kaiowá e Terena — que convivem juntas no interior da Reserva Indígena. Procurando mostrar que se trata de uma luta que se dá tanto na esfera econômica quanto na de ordem social, gera todo tipo de conflitos na Reserva Jaguapiru. Esse fato chama atenção para o caráter contraditório que se manifesta entre os índios, motivo pelo qual se procura compreender o seu funcionamento em classes, isto é, o “princípio” é a luta de classe, em que sujeitos étnicos tomam uma posição e defendem uma educação pautada na modalidade diferenciada no interior da Escola Indígena Tengatui. Essa preocupação pode ser entendida como uma luta política e ideológica, de constituição do sujeito e dos sentidos. Em outras palavras, uma luta que se apresenta como um lugar onde se pode entender o conceito de ideologia em um sentido muito mais amplo, visto que o mesmo deixou de ser visto como uma


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“colocação de extremos” para ser entendido numa relação que transcende o indivíduo em si. Diante de uma perspectiva discursiva, o fenômeno ideológico é pensada como uma prática social que “se constitui num sistema de valores, pleno de representações, de imagens — modo de ver o mundo, modo de ver a sociedade, modo que o homem se vê a si e aos outros” (BACCEGA, 2007: 34). As ideologias, portanto, não são “ideias”, mas práticas, conforme ressalta Pêcheux (1988). Procura-se seguir a opinião de Orlandi, para quem a noção de discurso é o lugar em que se permite a compreensão e onde se “pode observar a relação entre língua e ideologia” (ORLANDI, 2005: 81), tomada, não sob o ângulo da ocultação, mas do funcionamento estruturado. Ela lembra que ideologia, em AD, vem responder a questões complexas e considera a interpretação como constitutiva do “sujeito e do sentido” (ORLANDI, 2007: 83). E afirma ainda que não há sentido sem interpretação, pois a língua se inscreve na história para significar e é aí que ela propõe apreender a questão da ideologia e a questão do sujeito, pois, ao se interpretar, dá-se visibilidade ao mecanismo de funcionamento da ideologia e do sujeito. Neste trabalho aborda-se o conceito de ideologia deslocando-o para o campo da formulação (ORLANDI, 2005: 10) do enunciado, uma relação com a linguagem, lugar em que o sujeito representa-se na origem do que diz, por isso é vista como sendo um espaço de significação específica. A identidade se define neste estudo como “constituída de representações imaginárias”, conforme acepção de Coracini (2007: 9), em que só se pode “falar de identidade como tendo sua existência no imaginário do sujeito que se constrói nos e pelos discursos imbricados que vão constituindo os discursos” (2007: 61). E, é dentro do sentido de imbricamento da relação de produção de discurso que este trabalho aborda a identidade indígena. Trata-se de um percurso de estudo em que a identidade do sujeito é construída no interior da história e da memória, lugares de significado de grupos sociais. Todo processo de construção do sujeito, no caso da Ata passa por um “Locutor (L1), que pode experimentar as representações de seu interlocutor e vice-versa” (ORLANDI, 2006: 126). É importante mencionar que os sujeitos, dentro de uma abordagem discursiva, não comportam uma identidade homogênea (de sujeito empírico), mas identidades sociais, eles são heterogêneos por natureza. Neste estudo procura-se observa os sujeitos indígenas segundo seus


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projetos culturais, e seus percursos históricos, em que cada etnia apresenta diferenças culturais específicas. Nesse sentido, a “linguagem passa a ser a chave do conhecimento no sentido de um sistema de signos constituídor do significado da experiência humana e do modo como o real é apresentado” (MARCONDES, 2000: 142). Para a AD, nos significamos no que dizemos. Dito de outra forma, o dizer deixa vestígios, pelos quais os sujeitos se significam. Entendemos a escola indígena como formadora de identidade, mas é também lugar de exclusão do discurso do Outro. E, a cultura é entendida assim como “um sistema simbólico, um sistema de significados que deve ser interpretada” (MARCONDES, 2000: 141). Sob o ponto de vista da interpretação, a Escola Tengatui constitui-se como um lugar marcado pelo conflito ideológico, lugar de reprodução simbólica e de heterogeneidade.

A RESERVA INDÍGENA DE DOURADOS E A ESCOLA A Reserva Indígena de Dourados é formada por três aldeias: Jaguapiru, Bororó e Panambizinho, essas aldeias se encontram localizadas no município de Dourados, MS. No cenário nacional, Dourados ficou conhecida por abrigar aproximadamente 13 mil índios em um espaço de 3.539 hectares de terra, desde sua criação, em 03 de setembro de 1917. Sua clientela compreende índios de três grupos étnicos: os Guarani-Kaiowá, os GuaraniÑandeva, os Terena e, não-índios. Trata-se, portanto, de uma comunidade de características heterogêneas, tanto linguísticas como culturais, fato que impede os sujeitos de manterem suas identidades, dada essa diversidade étnica no interior da Reserva. A aldeia representa um lugar de confronto e de conflitos desde sua constituição, o que desencadeou problemas com consequências irreparáveis para os sujeitos no interior dessa Reserva. Mas apesar de todos os problemas sociais, econômicos e políticos na referida área, é clara a luta desses povos para manter sua cultura e resgatar seus valores. Este trabalho vem mostrar que a Escola Tengatui Mar Marangatu angatu encontra-se no foco de problemas sociais e étnicos na Reserva. A Escola Municipal de Primeiro Grau Tengatui Marangatu-Polo, encontra-se localizada na Aldeia Jaguapiru, na Reserva Indígena de Dourados. A escola polo compreende cinco extensões: a Extensão Araporã, a 5 km da sede; a Extensão Agostinho, a 6 km; a Extensão Francisco Hibiapina, a 300


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m; a Extensão Y’ Verá, a 4 km e a Extensão Panambizinho, a aproximadamente 28 km da sede, que atendem juntas a clientela da Reserva Indígena que é diversificada. Foi para atender a clientela dessas escolas que, no ano de 1999, a Escola Indígena Polo de Dourados implantou seu Projeto Pedagógico denominado Yvyra-Gua’a, uma parceria da Secretaria Municipal de Educação (SEME). Para a efetivação desse Projeto Novo de Educação, a Educação Diferenciada, a escola Tengatui contou como órgão mantenedor a Secretaria Municipal de Dourados, com convênios com instituições públicas e privadas, como a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), campus de Dourados e a Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), que prestaram acompanhamento pedagógico aos professores. Para se compreender o sentido de uma Educação Diferenciada enquanto um processo gradual e simultâneo é importante nos atermos às discussões compreendidas entre os anos 1997 e 1998, espaço temporal em que se inicia o percurso que viria a concretizar-se na Proposta Pedagógica da Escola Tengatui e extensões, no ano de 1999. Na época, os discursos estavam em torno de problemas sociais e pedagógicos que refletiam na educação das crianças indígenas. O problema advinha da diversidade linguística e cultural dos alunos que se comunicavam em sua língua materna fora da sala de aula, enquanto o ensino era ministrado em Língua Portuguesa, portanto, distante da realidade da Aldeia. Era preciso, então, considerar que a área indígena de Dourados, diferentemente de outras aldeias, comportava três grupos indígenas (Terena, Guarani e Kaiowá). A questão da educação indígena, neste trabalho, é vista a partir de uma perspectiva intercultural, e encontra-se demarcada entre os anos de 1999 e 2002, ano em que a educação na Reserva de Dourados passa ser conduzida por procedimentos próprios de aprendizagem nas séries iniciais, cujo processo seria construído dentro de uma relação tensa e intensa entre diferentes sujeitos, de contextos culturais múltiplos. Dentro dessa perspectiva de estudo, “a linguagem deve ser entendida, sobretudo, como prática social concreta, como um sistema de atos simbólicos realizados em determinado contexto social com objetivo preciso e produzindo efeitos” (MARCONDES, 2000: 37). A princípio, é importante considerar que a situação em que se encontram os índios na Reserva de Dourados não difere de outras comunidades


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indígenas, principalmente no que concerne à intensa presença e atuação de influências outras no interior das aldeias. Contudo, é no interior da escola que se pode observar, por meio da ação dos sujeitos, a forma como é exercida a atividade educacional.

METODOLOGIA Nos procedimentos de análise das Atas, adotaram-se os conceitos de locutor/enunciador para designar o porta-voz do grupo. Atribuiu-se o estatuto de interlocutores (ORLANDI, 1996) às outras instâncias enunciativas inscritas pelo Locutor 1 da Ata. Com base nesses conceitos, o discurso passou a ser compreendido como efeitos de sentido entre interlocutores (ORLANDI, 1996: 26). A situação, o contexto histórico-social e as condições de produção constituíram o espaço de representação do discurso — que é constitutivo da significação discursiva —, são constitutivos e não secundários das significações de um texto. Deve-se considerar que, embora tendo o texto em sua base metodológica de análise, não se interessa em simplesmente interpretá-los (o conteúdo), mas procurar neles o processo de formulação do discurso (funcionamento). O princípio norteador é de que em cada Ata que será analisada há vestígios da forma pela qual a política do dizer se inscreveu (memória do saber discursivo) na sua formulação; acredita-se que cada texto, no caso cada Ata, constitui um conjunto de formulações que pode movimentar tanto o dizer quanto o silêncio. A AD as palavras não significam por si, mas na relação com a exterioridade, o que inclui os sujeitos que as falam. Deve-se ressaltar ainda, que não há um método pronto em AD: tudo é construído, assim como o sujeito. De acordo com o dispositivo de análise, trabalha-se na instância da interpretação. Para a AD os gestos de interpretação são carregados de uma relação da língua com/sobre a língua, entendendo que interpretar é dizer o dito. O dito e o não dito dito, entrecruzados no interdiscurso. O não dito dito, nesse caso, significa por referência ao que foi dito, deixando claro que o silêncio não precisa ser discursivizado para significar. A ideia central do dispositivo teórico de análise é de que: “Todo enunciado, toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível” (ORLANDI, 2005: 24). Isso quer dizer que cada Ata, ao ser textualizada, apresenta, em sua formulação, características específicas do dizer que dei-


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xam marcas, que servem igualmente como mecanismos dos processos de significação no sentido de poder mostrar, em seus efeitos de sentido, suas possibilidades de leitura. Nesse tipo de dispositivo analítico mudam-se (deslocam-se) as posições do(s) sujeito(s) para estudar as funções enunciativas (ORLANDI, 2008: 77). No percurso analítico, observa-se “a forma” de contato estabelecida no interior da Aldeia; o “modo” de posicionamento dos sujeitos e a “posição” que estes sujeitos ocupam na enunciação, conforme registrado em Ata, visto que esses elementos auxiliam na compreensão do funcionamento da linguagem, o que se acredita levar à compreensão do processo de construção identitária e da posição ideológica desses mesmos sujeitos. É importante lembrar que em AD, os sujeitos não são vistos como sujeitos empíricos. Como procedimento de análise, adotou-se a identificação [A2]; os recortes3 identificados como: [a]; [b]; [c] e assim por diante. Os recortes (ORLANDI, 1996: 140) seguem as regras da formulação de enunciado de valor expressivo, ou seja, fragmentos carregados de valor semântico específico. Recuperando o conceito de polissemia, procurando passar da noção sentido, indicando que nada está de sentido literal literal, para a do efeito de sentido completo, todo sentido vem de outros discursos, do efeito da memória, em outras palavras, do interdiscurso. O princípio norteador deste trabalho é de que em cada Ata inscrita pelo Locutor 1 deixou-se vestígios da forma pela qual a política do dizer se inscreveu (memória do saber discursivo) na sua formulação; acredita-se que cada texto, no caso de cada Ata, constitui um conjunto de formulações que pode movimentar tanto o dizer e quanto o silêncio. É importante mencionar que no decorrer da análise (das vinte Atas), procurou-se manter fidelidade à maneira como foram escritas, de modo a conservar a originalidade dos registros.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS Para exemplificar que na materialidade discursiva é possível encontrar pistas que podem ser interpretadas como a marca do processo ideológi-

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A ideia de recorte remete à noção de polissemia e não à de informação. Os recortes são feitos na (e pela) situação de interlocução, aí compreendido um espaço menos imediato, mas também, de interlocução, que é o da ideologia.


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co dos sujeitos representados toma-se a ATA DE Nº. 02/1999, conforme inscrita pelo Locutor 1. Lembrando que o documento é inscrito já dentro de um contexto em que se busca romper com o modelo tradicional de ensino na Reserva Indígena de Dourados/MS. [A2] Aos quinze dias do mês de março de hum mil novecentos e nove o diretor João Machado, reuniu-se com os supervisores, Jeremias Pereira Luna, Francelina da Silva Souza e Edina Silva de Souza, com o objetivo de esclarecer as normas administrativas inseridas no Regimento Escolar, ou seja determinou o diretor que a partir desta data fica expressamente proibido aos professores atendimentos aos pais sem que primeiro passe pela direção da Escola. Quanto ao diálogo dos professores na porta das salas, fora do horário do recreio somente em extrema necessidade assuntos inerentes à escola. Quanto ao recreio o diretor pediu pontualidade após o sinal por parte dos professores. Caso contrário, autorizou os supervisores tomar as devidas providências. Lembrou também aos supervisores que vistam os planos de aula pelo menos duas vezes por semana fazendo observância dos conteúdos a serem trabalhados. Por ser verdade eu Francelina da Silva Souza lavrei esta ata que vai assinada por mim e demais pessoas presentes nesta reunião.

Nessa Ata o Locutor 1 enuncia que a reunião pedagógica será realizada com a presença do supervisor e dos coordenadores, que assumem a função de interlocutores. A reunião inicia-se com a instauração dos sujeitos, o diretor da Escola Indígena de Dourados, João Machado e os supervisores: [a] Aos quinze dias do mês de março de hum mil novecentos e nove o diretor João Machado, reuniu-se com os supervisores, Jeremias Pereira Luna, Francelina da Silva Souza e Edina Silva de Souza Souza. Em seguida, o Locutor 1 anuncia que o objetivo da reunião: [b] esclarecer as normas administratiEscolar. Chama atenção, no entanto, a forma vas inseridas no Regimento Escolar como esse Locutor articula a fala do seu enunciador: [c] ou seja determinou o diretor que a partir desta data fica expressamente proibido aos professores [...]. Nesse recorte, o que se observa é como o Locutor instaura a fala do seu interlocutor, levando-nos a inferir um dos efeitos disciplinares; lembrando que o poder disciplinar está intrinsecamente relacionado ao


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projeto de “civilização” dos índios, conforme afirmação de Lourenço (2008: 186). De acordo com a AD, trata-se de um equívoco, referindo-se à história, em que os sujeitos estão na ordem do simbólico e a língua funciona ideologicamente, ou seja, ela tem sua materialidade discursiva específica. De forma direta o diretor também passa o recado aos demais interlocutores ali presentes, que são o supervisor e as coordenadoras. São a esses que o enunciador (diretor) se dirige, esclarecendo acerca de suas as decisões. Decisões estas que deveriam ser repassadas aos demais professores da escola Tengatui e das extensões. Assim, pensar a língua pelo viés da AD significa pensar a sua textualidade e o seu funcionamento; lembrando que não se busca o “sentido verdadeiro”, mas o real do sentido, presente em sua materialidade linguística e histórica (ORLANDI, 2005: 59). Logo, pode-se dizer que o discurso do enunciador da [A2] pode ser compreendido como construído num espaço de regularização, um espaço polêmico, heterogêneo. A memória (interdiscurso) pode ser marcada com um fato social, no qual todo saber relacionado a uma prática escolar diferenciada (já dito) se apresenta como o lugar da constituição do sujeito: é o Outro no Eu. Nessa direção, os sujeitos, aqueles que são enunciados e os que são instituídos, constituem-se no entrecruzamento do dizer, que é flagrante na materialidade reclamando sentidos. Nesse aspecto, pode-se observar em [c] ou seja determinou o diretor que a partir desta data fica expressamente proibido aos professores [...] e também em [d] Caso contrário, autorizou os supervisores tomar as devidas providências providências, que o discurso é tecido ideologicamente, atravessado pela memória do dizer (interdiscurso), sendo que sua materialidade discursiva evidencia um discurso administrativo de poder e de autoridade. Em [d] Caso contrário, autorizou os supervisores tomar as deviprovidências, vemos que há um discurso de poder e de opressão das providências sobre o outro, isto é, um discurso autoritário, de coerção. Trata-se de uma posição ideologicamente marcada pela posição ocupada pelo diretor, uma formação discursiva administrativa que se materializa em uma formação ideológica, revelando a reprodução de uma ideologia dominante. Mostrase dessa forma que a escola é um lugar de reprodução concreta — lembrando Althusser. O discurso, quando materializado em formações ideológicas, gera todo um complexo heterogêneo, no qual comporta posições de classes, um movimento marcado pelo “discurso da contradição” (De


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NARDI, 2006: 160). Um lugar do discurso da reprodução da desigualdade e da subordinação. Na prática, em [A2] vimos que esse tipo de discurso está incoerente com o que determina o Projeto Pedagógico Diferenciado conforme escrito no Projeto Pedagógico YVYRA-GUA’A, que por se tratar de uma educação diferenciada, que atenda a demanda da educação indígena, é preciso que o discurso se estenda para além das fronteiras administrativas, para que se possa dar condições para que os sujeitos indígenas se tornem sujeitos históricos. Dito de outra forma, é preciso que os professores indígenas tenham um pouco mais de abertura para que encontrem espaços para se transformar e possam mudar o seu meio social por meio de um novo modelo de educação . Nesse caso, relação da escola com a educação e com os sujeitos envolvidos no processo educacional na Escola Tengatui e extensões precisa ser mais bem observado pelos órgãos mantenedores e, pela comunidade indígena. Isso porque o que se vê em [A2] é um tipo de funcionamento discursivo de resistência às mudanças no interior da própria escola. Por tudo isso que se diz que a leitura de [A2] constitui o fio discursivo do confronto confronto, que pode ser explicitado através de marcas linguísticas ao longo da narrativa do Locutor 1: [e] fica expressamente proibido proibido; somente em extrema necessidade e assuntos inerentes à escola escola; pediu pontualidade alidade; Caso contrário, autorizou os supervisores tomar as devidas providências vidências. Vê-se, pois, que o Locutor 1 constrói o discurso de seu enunciatário demarcando um terreno entre o dominante e o autoritário, lembrando o que diz Althusser, que a escola é um Aparelho Ideológico do Estado (AIE), cuja relação de poder está muito presente. Revela-se, assim, que a ideologia não é algo imposto a um sujeito, mas é algo que faz parte do cotidiano, por isso ela é alimentada diariamente, neste caso, por uma formação discursiva administrativa, que provém de uma formação discursiva ideológica. É importante deixar claro que em AD, o sujeito é uma função do discurso e não semelhante à figura empírica (do indivíduo), isso quer dizer que se trata do discurso de uma entidade social que é construída no discurso, enquanto mantém a ilusão de ser a fonte dos sentidos. Na [A2] pode-se conferir que se estando diante de uma materialidade discursiva autoritária, inexiste uma hipótese de interação entre os interlocutores. Vê-se, pois, que a polissemia foi contida por um agente que se apresenta como único, ocultando assim, o seu referente, ou seja, os demais sujeitos do discurso.


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CONSIDERAÇÕES FINAIS O que se observou na [A2] e nas demais Atas (num total de vinte) analisadas é de que os discursos, para ganhar legitimidade, precisam ser sólidos. Ao institucionalizar-se historicamente, contudo, os sujeitos da Reserva Indígena de Dourados — etnicamente diferenciados —, foram e continuam sendo silenciados pelo discurso opressor. Percebeu-se no decorrer das análises houve pouca interação entre os sujeitos inscritos na materialidade discursiva em estudo. Isso quer dizer que na prática não houve uma total reversibilidade4·nos momentos de reuniões pedagógicas na Escola Tengatui entre os anos de 1999 e 2002, e a escola manteve-se sob a cultura dominante. É importante destacar que sob o ponto de vista da tipologia criada por Orlandi (1996), a noção de reversibilidade nos remete ao tipo de funcionamento do processo discursivo. O que nos permitiu comprovar que na [A2], a pesquisa comprovou que o discurso autoritário se sobrepôs ao discurso pedagógico. O que evidencia que esse tipo de discurso prevaleceu não apenas no discurso pedagógico dos professores, mas também em seu fazer pedagógico. Pode-se dizer que do ponto de vista do funcionamento discursivo os sujeitos — indígenas ou não-indígenas —, não existem sem uma ideologia. O que a AD quer mostrar é de que não há discursos ou modelos estáticos, pois eles são decorrentes do processo de interação dos interlocutores, nos quais a ideologia sempre faz presente.

REFERÊNCIAS BACCEGA, M. A. (2007). Palavra e discurso: história e literatura. São Paulo: Ática. CORACINI, M. J. (2007). A celebração do outro: arquivo, memória e identidade: línguas (maternas e estrangeiras), plurilinguismo e tradução. Campinas/SP: Mercado de Letras. DE NARDI.(2005). Identidade, memória e os modos de subjetivação. In: Indursky, Freda. & Ferreira, Maria C. L. (Orgs.). Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar 157-166. São Carlos: Claraluz.

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Por reversibilidade entenda-se como “troca de papéis na interação que constitui o discurso e que o discurso constitui” (ORLANDI, 2005, p, 239). Portanto, é a condição do discurso (grifo da autora).


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LIMBERTI, R. C. P. (2009). Discurso indígena: Aculturação e polifonia. Dourados/MS: UFGD. LOURENÇO, R. (2008). A política indigenista do Estado Republicano junto aos índios da Reserva de Dourados e Panambizinho na área da educação escolar (1929 a 1968). Dourados/MS: UEMS. MARCONDES. D. (2000). Filosofia, linguagem e comunicação. São Paulo: Cortez. ORLANDI E. P. (1993). As formas do silêncio: No movimento dos sentidos. Campinas/SP: Editora da UNICAMP. _____. (1996). A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas/SP: Pontes Editores. _____.(2001). Análise do discurso: Princípios e procedimentos. Campinas/SP: Pontes Editores. _____. (2008). Discurso e leitura. São Paulo: Cortez. _____. (2003). Discurso fundador. Campinas/SP: Pontes Editores. _____.(2005). Discurso e texto: Formulação e Circulação dos sentidos. Campinas/SP: Pontes Editores. _____. (2007). Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas/SP: Pontes Editores. _____. (1989). Vozes e Contrastes: discurso na cidade e no campo. São Paulo: Cortez. PÊCHEUX, M. (1988). Semântica e Discurso: Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni Orlandi et al. Campinas: Editora da UNICAMP. _____. O Discurso: Estrutura ou acontecimento. Trad. de Eni Orlandi. Campinas/SP: Pontes Editores, 2006. Prefeitura de Dourados. (1999). Secretaria Municipal de Educação. Escola Tengatui Marangatu. Projeto Pedagógico YVYRA-GUA’A. Reserva Indígena de Dourados.


A CONQUISTA DO BRASIL NA FRONTEIRA GUARANI: O TERRITÓRIO FEDERAL DE PONTA PORÃ Carlos Magno Mieres AMARILHA1 RESUMO Neste artigo, faço um breve relato de vida de um imigrante português, Albano José de Almeida (1904-1974), chegando à região de Dourados na época da criação do Território Federal de Ponta Porã nos idos dos anos de 1940. No segundo momento como são tratados os “paraguaios e índios” na construção da memória realizadas em parte pelos merialistas da região sul de Mato Grosso do Sul. Questiono como são apresentados e reapresentados nas memórias oficiais e não oficiais os “índios e os paraguaios”? Os pontos e os contrapontos. Faço breves considerações sobre a fronteira seca brasileira com o Paraguai na época da implantação do Território Federal de Ponta Porã e da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) como fatores preponderantes para a efetivação de novas cidades na fronteira sul do antigo Mato Grosso e atualmente sul de Mato Grosso do Sul. Palavras-chave. Fronteira. Imigração. Identidade. Memórias.

SUMMARY In this article, do a brief account of the life of a Portuguese immigrant, José Albano de Almeida (1904-1974), reaching the region of Gold at the time

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Presidente de Grupo Literário Arandu. Professor de Historiografia Brasileira e Estagio Supervisionado no Curso de História Unidade de Amambai e História da Cultura no Curso de Turismo da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Membro do GT de Ensino da ANPUH-MS, Membro da comissão do II FORO DE HISTÓRIA DEL PARAGUAI. 400 annales: Homenaje a Ruiz Días de Guzman. Representación Histórica, Análisis Regional y Fronteiras.


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of the creation of the Federal Territory of Ponta Pora in the late 1940s. In the second stage are treated “and Paraguayan Indians” in the construction of memory held in part by merialistas of southern Mato Grosso do Sul I question how they are presented and restated in official and unofficial memories “Indians and the Paraguayans”? The points and counterpoints. I make some brief remarks on the Brazilian border with Paraguay dry at the time of implementation of the Federal Territory of Ponta Pora and the National Agricultural Colony Gold (CAND) as important factors for the realization of new towns on the southern border of the old southern Mato Grosso and currently Mato Grosso do Sul. Key words ords: Border. Immigration. Identity. Memories.

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ão abundantes as interrogações apresentadas para o profissional de história do tempo presente: Como trazer o morto ao presente? Como dar vida aos mortos? Como analisar as fontes, por intermédio de suas marcas e da sua representação? Como refletir, interpretar e decifrar os mananciais de objetividades e subjetividades das fontes? Como redigir um texto escrito? Qual é o lugar de quem escreve? Qual é o campo de legitimação? (no campo acadêmico ou no campo do grande público). Tantas perguntas? Tantas questões? Múltiplas também são as respostas, atualmente tenho a consciência de que não lido com o passado, mas com as fontes. Tenho cuidados para não cair na armadilha, da história como mestre da vida, um guia para o futuro, para a revolução utópica; ou outras funções dadas para a história como fundamental no cotidiano das pessoas; ou ainda para garantir o futuro do cidadão, da cidade, do estado, do país e salvar a humanidade do caos. Coisas do tipo: “O estudo do passado nos prepara para o futuro”. Por isso, a necessidade consecutivamente em repensar os aportes teóricos e metodológicos, já que a teoria não é receita, mas lhe dá a sustentação para entender determinados fenômenos, capacidade de lidar com a contradição, com os obstáculos, com o diferente, com o estranho, igualmente com a forma de escrita, de reescrever, de reelaborar conceitos. Alguns questionamentos consecutivamente vão se aflorando sobre o trabalho do profissional de história, como “interprete do pretérito”. A pergunta “o que estou fazendo quando escrevo história?”, formulada por Michel de Certeau; a interrogação de Jean Chesneaux sobre “se devemos fazer tá-


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bua rasa do passado?” e Remo Bodei faz a pergunta bastante enfática: “se a história tem um sentido?”. Entendo que não existe tempo bom ou tempo mal o tempo todo, a sociedade é complexa. O lugar do profissional de história contemporâneo é a prática de analisar fontes e transformar em texto, o dito e o não tido, não apenas dar “voz” ao “passado”, mas explicar porque estava em silêncio. Neste artigo, faço um breve relato de vida de um imigrante português, Albano José de Almeida (1904-1974), chegando à região de Dourados na época da criação do Território Federal de Ponta Porã nos idos dos anos de 1940 na época do governo de Getúlio Vargas, conhecido como “Estado Novo” (Ditadura). No segundo momento como são tratados os “paraguaios e índios” na construção da memória realizadas em parte pelos merialistas da região sul de Mato Grosso do Sul. Questiono como são apresentados e reapresentados nas memórias oficiais e não oficiais os “índios e os paraguaios”? Os pontos e os contrapontos. Faço breves considerações sobre a fronteira seca brasileira com o Paraguai na época da implantação do Território Federal de Ponta Porã e da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) como fatores preponderantes para a efetivação de novas cidades na fronteira sul do antigo Mato Grosso e atualmente sul de Mato Grosso do Sul.

O IMIGRANTE EUROPEU CHEGA EM DOURADOS Albano José de Almeida, nasceu no dia 07 de janeiro de 1904, na Vila Nova de Monssarros, Província de Aveiro, Portugal, cursou o primário completo e aos 19 anos veio para o Brasil. Fixou-se em Campo Grande. Ao bisbilhotar sobre as redondezas ficou sabendo das terras férteis de Dourados e resolveu mudar-se no inicio dos anos de 1940. Fez a viagem de bicicleta que duraram 23 dias. Almeida observou naquela época, que na região de Dourados, as pessoas não usavam temperos na comida, organizou uma lavoura e plantou diversas hortaliças (principalmente de alho e cebola) e tentou fazer negócios com as vendas de sua plantação. Não deu certo. Os moradores não estavam habituados a consumir este tipo de condimento, resultado, faliu. Não prosperou seu negócio. Toda a plantação foi para os porcos. João da Câmara, outro português residente na cidade, sabendo do acontecido, convidou Albano José de Almeida para trabalhar na construção da estrada de Dourados à Itahum para comandar uma equipe de trabalhadores.


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Albano argumentou não ter conhecimento sobre o assunto, mas João da Câmara insistiu. Começou então, abrindo picadas, fazendo os cálculos e comandando os índios e paraguaios que trabalhavam na obra. Era uma espécie de ‘engenheiro’ da estrada. Para comprar os suprimentos necessários aos trabalhadores acampados no trajeto, Albano ia à fazenda de Horácio Marques de Matos, na picadinha, a uns 18 quilômetros de Dourados. Lá conheceu Nohemia, 23 anos, em 1943. Escreveu uma carta ao pai da moça pedindo licença para almoçar na residência aos domingos. O namoro durou uns dois anos, boa parte alimentada pelas bem escritas cartas de Albano à namorada. Em setembro de 1945 saiu o casamento, na Igreja Imaculada Conceição. (DAL BOSCO, 1995, p. 44).

Logo que casaram Albano e Nohemia vieram para Dourados morar na casa cedida pelo sogro do qual manteve um pequeno comércio. Em 1951, compraram uma área de terras e montaram um comércio em Picadinha. Vendiam tecidos, secos e molhados, mantinham também uma pequena farmácia. Enquanto comerciante na Picadinha, Albano José de Almeida era “um pouco de tudo”, segundo sua filha Helena, conciliava as brigas, tratava os doentes, aconselhava os moradores. “Tinha um pequeno caminhão, muito usado no transporte de emergência, especialmente nas brigas, para trazer os feridos para Dourados. Meu pai gostava de política, sempre ligado à direita”. (DAL BOSCO, 1995, p. 45, grifos meus). Em 1962 manteve comércio em Itaporã e não vingou. De volta a Dourados em 1963, montou o Bar e Restaurante o Saci, na Avenida Marcelino Pires. Albano José de Almeida sempre gostou de escrever, publicava crônicas para o jornal A Voz de Portugal, de São Paulo, dirigida para os imigrantes portugueses e também em jornais de Dourados. Em 1966, torna-se redator-chefe do jornal O Progresso. Em uma de suas crônicas, “Bode Branco”, que relata as peripécias de um carro Ford 19, verde, que caiu na fossa de sua casa, o carro atolou quase por inteiro na fossa, ficando só com os para-choques de fora, no outro dia ao retirá-lo, foi lavada por crianças com prendedor de roupas no nariz, a Ford mandou publicar no The New York Times e ainda Albano José de Almeida recebeu um dinheiro pela crônica. Depois de muitas aventuras e desventuras Albano morreu em 1974 e Nohemia em 1987. O casal teve seis filhos. Neste breve relato de vida de Albano José de Almeida, resultados de uma série de reportagens publicadas no jornal, O Progresso, de março à


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novembro de 1995, num total de 41 artigos, que originou o livro, “Os Pioneiros – Viajantes da ilusão”, organizado pela jornalista Maria Goretti Dal Bosco, editado no mesmo ano. O artigo aqui narrado teve como título, “Os Almeida, uma casa portuguesa com certeza”. (DAL BOSCO, 1995. p. 44-47). Ao ponderar as fontes que tratam sobre a criação do Território Federal de Ponta Porã o que me chamou bastante atenção foi do depoimento de vida do português Albano José de Almeida, sobretudo quando foi contratado sem experiência nenhuma pelo patrício João da Câmara para comandar os “índios e paraguaios” na construção da estrada de Dourados até Itahum.

OS PARAGUAIOS NO BRASIL: DOURADOS E REGIÃO Armando da Silva Carmello, autor do hino de Dourados, publicou em 1973, o livro “Dourados, terra prometida”, que segundo Betoni para “os padrões então vigentes” a obra foi escrita por uma pessoa credenciada “que contasse a história de Dourados” (BETONI, 2002, p. 31), a primeira parte do livro foi escrita em forma de peça teatral. Na cena VII do livro, Carmello apresenta “um baile” e o cenário é uma casa de madeira, com quatro cômodos, cercada de balaústre e coberta de tabuinha, sendo o personagem principal um gaúcho: Januário Pereira de Araújo, o chefe da casa, estava de chapéu largo, bombacha, lenço no pescoço e um bom 38 na cintura; as moças são descritas de vestido simples, saia rodada, de lenço no pescoço e fita no cabelo, “tipo da cabocla” que são “alegres” e de “modo respeitoso” para com os convidados. Um Baile: A casa iluminada com candeeiros nos quatro cantos, quando um acordeón riscava as notas sonoras que iam perder-se pelas matas distantes, acompanhada por dois violões que não só acompanhavam a música como ponteavam maravilhosamente. Ia animado o baile, e, lá pela tantas da noite, quando o luar batia de cheio na casa que quase se escondia à sombra dos arvoredos, um transeunte, bem montado à cavalo, pra, observar o baile que ia animado, e resolve entrar. Era... Um paraguaio: Com botas, calças largas, chapéu desabado, esporas reluzentes, vai penetrando em meio aos que estavam na casa, a estas horas alegres e contentes com o acontecimento. Esse desconhecido pisa o salão,


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tira uma dama e começa a dançar. Dança a primeira peça, dança outra e não quer que a música pare, ordena ao músico que continue a tocar. Este não obedece a intimação do desconhecido. Pára a música e o desconhecido desafia os presentes, nada mais restava senão tirar o intruso da casa e acabar o baile. Efetivamente, as luzes se apagaram, o homem saiu, não sabemos dizer por qual porta, e, momento após, longe, muito distante um cavalo em disparada punha fim a esta aventura de um transeunte e desconhecido... Lá ia o homem com o lombo ardendo de uma grande surra que levara... (CARMELLO, 1973, p. 14).

É importante refletir como Carmello manifesta em seu livro a representação do paraguaio como: encrenqueiro, bagunceiro, incivilizado, ignorante, indisciplinado; o “desconhecido” não tem “educação”, entra no baile sem ser convidado. Por isso, mereceu apanhar, levar dos brasileiros uma grande surra e do qual saiu com o “lombo ardendo”. O livro de Carmello “teve caráter oficial”, já que foi financiado pela Prefeitura e pela Câmara Municipal de Vereadores (cf. Betoni, 2002). Já o livro “História, fatos e coisas douradenses” (1995), de João Augusto Capilé Júnior, Júlio Capilé e Maria de Lourdes da Cruz e Souza, ao relatarem sobre a fundação do atual município de Juty descrevem: “seus primeiros habitantes foram os Claro, Antônio Guri e uma porção de Paraguaios, inclusive muitas mulheres, sob o comando da Lupa”. (CAPILÉ JUNIOR e outros, 1995, p. 136, grifos meus). Este ponto é o questionamento: “e uma porção de paraguaios”, os autores tratam os paraguaios como que se não existissem na história, são apenas o “outro”; nesta crônica os paraguaios são apresentados como seres inferiores, servem apenas como ajudantes por isso, não merecem entrar na história dos “verdadeiros” fundadores da cidade. Mesmo que, havendo evidência que naquela época, os paraguaios eram a maioria, mas não são considerados por parte dos memorialistas e silenciado este ponto na historia do sul de Mato Grosso do Sul. Os paraguaios continuamente são representados como inferior, insignificante, ignorante, atrasado. Lembro que há exceções. Que tratarei mais adiante. E “inclusive muitas mulheres”, significa “prostitutas paraguaias”, que estariam em “comando da Lupa”. Sobre esta questão das mulheres paraguaias articulo mais adiante em detalhes de como pretendo ponderar este tema. Para finalizar este primeiro ponto que levantei do texto de Albano José de Almeida sobre os trabalhadores da região daquela época, a questão


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indígena. Um exemplo, a cena III do livro “Dourados, terra prometida”, de Carmello, em que apresenta os personagens João Vicente Ferreira, Dona Elizena Muzzi Ferreira e “alguns índios da região”. Índio fala com João Vicente Ferreira: — Patrão, índio quer roupa. Caiuá quer comida e fumo. João Vicente Ferreira — Muito bem. Você vai trabalhar comigo traga mais companheiros darei tudo a vocês, ouviu? Esta vendo aquela roça? Alí tem de tudo, depende só de você cuidar, não precisa você levar nada sem minha licença ouviu? (...) Vou lhe dar arma para a caçada. Traga-me caça, sempre que puder. Gosto de carne de caça. (CARMELLO, 1973, p. 10).

Neste exemplo especifico sobre a cena dos indígenas, merece uma reflexão, os índios são apresentados como “pedinte” de “roupa e fumo”, mas o “bom coração” de João Vicente Ferreira oferece “oportunidade” aos índios de poderem também “desfrutar” de sua roça, desde que tenha que trabalhar, em “troca” recebiam “roupa e fumo”. O discurso sofre uma transmutação, do explorador para o bonzinho (do bom homem, que só quer ajudar, do bonachão). João Vicente Ferreira na cena passa de vilão para o herói, aparece como o empreendedor, que “dava” o que tinha na roça e até podia chamar mais índios que não tinha problema nenhum, “traga mais companheiros darei tudo a vocês”; mas o dono da roça avisa, “não precisa você levar nada sem minha licença ouviu?”, Ou seja, fica evidente o discurso do dominador, “ouviu?”, se por um acaso o índio levar alguma coisa da roça sem avisar? Tudo leva a entender que seria uma punição severa, pelo “ouviu?” soa como uma ameaça mesmo, discurso do senhor soberano. “Traga-me caça”. Continua Carmello: “Os índios, nas horas de folga se aproximavam da casa de João Vicente Ferreira e deste recebiam presentes”. (CARMELLO, 1973, p. 10, grifos meus). Assim, percebese que os indígenas trabalhavam demasiadamente e “nas horas de folgas” recebem como “presente... o fumo...”. A ascendente de paraguaios, Eunice Benites Ortiz, em seu depoimento, no livro Vozes Guarany (ORTIZ, 2010, p. 73-85), conta que nos anos cinquenta em Dourados havia “separações de raça”. Ortiz afirma que em baile dos brasileiros não entravam paraguaios e no baile dos paraguaios não podia entrar brasileiros. Com alguma ressalva aos bailes dos brasileiros que convidavam só as paraguaias para irem ao baile, “porque as moças paraguaias eram muito lindas, cabelos pretos, longos, na altura da cintura, bonitos de se admirar” (ORTIZ, 2010, p. 80). A afirmação de Eunice Benites Ortiz, sobre


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“separações de raça”, merece estudos mais profundos, com aportes teóricos que possa questionar e ponderar este tema complexo por sim mesmo? Mas o próprio Carmello nos anos setenta do século XX, representou em sua cena no livro um paraguaio como intruso, transeunte, desconhecido, um intrometido no baile da casa de um brasileiro. Este ponto merece muita atenção. É uma separação ou meia separação? Porque só as paraguaias podiam entrar no baile? Até que ponto existe a separação de raça? De acordo com Eunice Benites Ortiz, os bailes eram aos sábados, na casa de um vizinho ou de parentes, muitas vezes, ficavam léguas e léguas2. Íamos mais ou menos de trinta a quarenta cavalos todos juntos, os cavalos dos homens eram bem arrumados, com arreios e argolas, e a peiteira era de prata e ouro. As mulheres iam montadas de lado em seu cavalo, usando uma manta muito bonita, com vestido comprido que cobria a anca do cavalo; seus cabelos compridos soltos usando uma fita com um laço. Digo as solteiras, enquanto que as casadas usavam um lenço. Essa era a diferenciação. (ORTIZ, 2010, 78).

Eunice Benites Ortiz conta que na sua juventude quando era convidada para algum baile no sábado, naquela semana trabalhava com muita disposição e alegria, porque sabiam que a diversão estava garantida. Recorda que era os pais que levavam as moças para os bailes e elas só poderiam dançar quando completassem quinze anos. Essa data era muito importante para as “debutantes” e para as famílias: Era costume se fazer um baile, convidar os amigos e lá pelas altas horas da noite, o pai vinha de braços dados com sua filha, que trajava um longo vestido branco e rosa, todo bordado, com uma tiara igual à de uma princesa nos cabelos, que eram compridos. Antigamente as mulheres não podiam cortar os cabelos, nem solteira, nem casada. O pai, vestido com seu melhor terno, apresentava a sua filha para as pessoas presentes no salão, todos batiam palmas e os músicos tocavam uma valsa. O primeiro a dançar com ela era seu pai. Na segunda música, o pai a levava para um pretendente, se tivesse; se não, oferecia ela para dançar a um cavalheiro que ele respeitasse e aí todos os convidados podiam dançar. Depois

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Cada légua, 6.600 metros aproximadamente.


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de terminada a dança, a moça se sentava ao lado de sua mãe e começava o baile novamente. Somente a partir desse dia, a moça estaria liberada para dançar nos outros bailes. (ORTIZ, 2010, p. 74).

O local da dança nas fazendas era uma área feita com ramada e de chão batido, havia espaço para os músicos e uns bancos bem compridos, onde sentavam as moças e as mães. Os rapazes só começariam a dançar no baile quando completasse 21 anos de idade, só aí poderia também usar calça comprida, bombacha, colete, camisa com manga cumprida, guaiaca, bota e chapéu; antes dessa idade suas vestes era uma bermuda até aos joelhos, camisa e suspensório. (cf. ORTIZ, 2010). Os filhos homens viveriam sobre as ordens dos pais e dos irmãos mais velhos, trabalha-se para ajuda no sustento de casa, o dinheiro ganho, era o pai que administrava, “o irmão mais velho era considerado e respeitado com a mesma obediência do pai, poderia corrigir e até tomar atitudes na ausência do pai, os irmãos mais novos pediam benção”. (ORTIZ, 2010, 77). Quando o filho completava a maioridade, “o pai o levava para conhecer um cabaré, para ficar com as mulheres, mostrar o que é a vida”. Depois deste “teste”, ele estaria pronto para a vida e para arrumar uma moça de boa família para se casar, ou sair de casa se quisesse, porque “a obrigação do pai já havia sido cumprida”. (id, 77). Nota-se a rigidez de uma família de ascendentes paraguaios que viviam em Dourados na época da implantação do Território Federal de Ponta Porã. Interessante depoimento para analises de entendimento deste momento histórico. Segundo Eunice Benites Ortiz, para as famílias paraguaias, o sexo só no casamento, antes se descoberto pela família era a “pior” coisa que acontecia, pois o pai chegava a entregar para a polícia e a fichar como prostituta. Mulheres separadas eram muito mal-vistas e mal-faladas, as famílias não aceitavam; elas não podiam ficar perto de mulheres casadas e solteiras. Pior acontecia com as ‘perdidas’, moças que ‘pecavam’ antes do casamento. Muitas delas ninguém nem conhecia, porque quando isso acontecia o pai levava até uma delegacia, que era a máxima autoridade, tiravam sua foto, ficava fichada na polícia como prostituta. O inspetor ou delegado as encaminhavam para a zona ou cabaré, como chamavam na época as casas de prostituição, entregando-as para as cafetinas donas dos bordéis. De lá nem saíam mais; suas


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chefas, as cafetinas compravam suas necessidades como roupas, calçados, maquiagens, etc. Sua moradia e comida eram cobradas mensalmente, iguais a um aluguel. A cada prostituição, a chefe tinha uma porcentagem que era manipulada por elas. Se acontecesse de elas saírem, só acompanhadas de sua cafetina. Quando isso acontecia, iam de charrete. Ao chegarem à cidade, todos corriam para nem sequer cumprimentá-las e as olhavam como se elas tivessem alguma doença contagiosa, ou fossem um ser de outro planeta. Mulheres de família não podiam passar em frente aos cabarés, não que elas proibissem, mas pelo fato de serem o que eram.

As mulheres “perdidas”, pelo depoimento de Ortiz, são as flagradas fazendo sexo antes do casamento, ou seja, a educação paraguaia era tão rígida assim, ao ponto do pai entregar a filha para a prostituição? De não aceitá-la mais na família? Ou a “severidade” do pai é só para os “nossos olhos” do tempo presente? Ponto este, que merece uma reflexão do historiador. Para Elpídio Reis os paraguaios da fronteira soube conquistar a amizade dos brasileiros graças às suas harpas, aos seus violões e as mulheres, morenas e bonitas. Reis afirma que apesar de sua mãe ser brasileira, quando era bebê ao colocá-lo no berço para dormir as músicas de ninar eram músicas paraguaias. Na fazenda de seu pai, o capataz chamado Vilhalba, tocava inúmeros instrumentos entre eles o violão, cavaquinho e a sanfona e por isso, lembra que em sua casa, volta e meia se enchia de música paraguaia. Em qualquer lugar que eu fosse, nas outras fazendas, por exemplo, paraguaios ou brasileiros, só tocavam polcas. Com dez anos fui para Ponta Porã, estudar. Na cidade, continuei ouvindo música paraguaia. Quando me decidi aprender a dançar, aprendi primeiro as polcas... Era natural. Aos dezesseis anos fui para Campo Grande. Ali, as duas principais sorveterias da época, a Bom Gosto e a Bom Jardim, uma a vinte metros da outra, na Rua 14, disputavam a preferência do público, procurando apresentar, cada uma delas, o melhor sorvete e, sobretudo, os últimos discos de polcas paraguaias. (REIS, 1981, p. 62).

Além das cidades da fronteira e de Campo Grande, Elpídio Reis garante que 95% das músicas que se ouvia nos municípios de Maracaju, Aquidauana, Dourados, Miranda eram as polcas paraguaias. Para o trabalho nos ervais, ninguém melhor que o trabalhador


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paraguaio. O paraguaio é fisicamente forte e sóbrio em alimentação. É obediente e desambicioso e têm a altivez e o bom humor de seus ancestrais, os primitivos guaranis. Gerações inteiras, avós, pais e filhos aqui viveram e aqui morreram dentro dos caatins e a eles, inegavelmente, devemos a situação econômica que desfrutamos no período ervateiro. (REIS, 1981, p. 102-103).

O trabalhador paraguaio é homenageado por ser “obediente e desambicioso” e no trabalho pesado ainda consegue manter o “bom humor”. Elpídio Reis assegura que o peão paraguaio quando de boa cepa, “era amigo incondicional do patrão, e companheiro para o que desse e viesse. Aguentava os revezes do trabalho bruto e quase desumano em que se alicerçava a economia da região fronteiriça”. (REIS, 1981, p. 105). Dos quais chamam os fazendeiros, comerciantes e chefes, carinhosamente de “chê patron” (meu patrão). A fronteira Brasil/Paraguai desde a cabeceira do Apa até o fim da fronteira Sul, fica o divisor das águas subterrâneas, na época era conhecido como “espigão seco”. O espigão sempre foi campo limpo e como tal não sofria influência proibitória da Empresa Mate Laranjeira. Havia fazendeiros com criação de gado e camponeses trabalhando na terra com pequenas roças. Portanto, o que derrubavam era pequena parte de mata ciliar e parte de cerrado. Júlio Capilé conta que o fronteiriço naquela época era normalmente trilíngue, pois se falava o português, o castelhano e o guarani. “Português mal falado, Castelhano campesino e Guarani del Pueblo”. (CAPILÉ, 2004, p. 94). Aconteciam diversas coisas na “fronteira-seca”, “entre os lugares” dos dois países, que era totalmente “diferente” de outros pontos do Brasil e até mesmo do Paraguai, tomados por fazendeiros e camponeses que “ocupam” as terras (em que a Empresa Mate Laranjeira não interessa), todos vão se adaptando com o “falar” da fronteira. O espigão seco, por pertencer a linha da fronteira, muitas vezes não sabia se estava no Brasil ou no Paraguai. Uma das preocupações de Melo e Silva em 1939, era sobre o “falar” da fronteira pelos próprios brasileiros que moravam na fronteira, considerava um péssimo exemplo para os filhos. É lastimável que nós, os brasileiros, nos mostremos pouco ciosos pelo emprego regular de nossa língua em toda extensão daquelas


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fronteiras e em nosso trato com os paraguaios. Não vemos como justificar essa insistência de um grande número utilizando vocábulos castelhanos em um criminoso esforço para o afeamento do idioma nacional. Não condenamos que se aprenda e fale a doce língua de Cervantes. Profligamos essa mistura, desnecessária e prejudicial à cultura dos dois idiomas. É vulgar entre brasileiros a saudação Buenos dias, buenas, tarde, buenas noche, adiós e outras, em uma ostentarão singularíssima, e até ridícula. Conhecemos inúmeros brasileiros, não-mestiços (porque esses em geral se identificam aos paraguaios), que empregam impieçar, enfermar, aquilar, cambiar, acostar, enojar, serventa, marchante, sobrero, etc – em vez de começar, adoecer, alugar, mudar ou trocar, deitar, enraivecer, criado, freguês e chapéu, sem perceber que, além de tudo, dão péssimo exemplo aos filhos, que por sua vez vão crescendo nessa indiferença pelo pureza da língua (MELO E SILVA, 2003, p. 82).

Para Melo e Silva na cidade de Bela Vista era o “principal império da ociosidade”, observou que os comerciantes vendiam, “em menos de três anos cerca de quatrocentos violões, ao passo que no mesmo espaço de tempo não conseguiram vender uma só enxada ou machado”. (MELO E SILVA, 2003, p. 84). Nesse sentido, o autor relata que ao contrário do que acontece com os brasileiros, especialmente o paulista e do nordestino, “que só em casos excepcionais se afastam do trabalho em dias úteis”, já em Bela Vista encontra-se em qualquer parte, a todo instante, “homens e mulheres, ordinariamente a cavalo. Agrupam-se em qualquer parte, cantando e bebendo. É comum ficarem horas a fio nas casas de negócio, cantando e tocando sanfonas, violões e violinos, a pretexto de experimentarem estes instrumentos cujos estoques são sempre vultosos”. (Ibid., 2003, p. 84). O autor defende a ideia que seriam outras as condições da fronteira, “se machados, foices e enxadas tivessem a aceitação na razão de um décimo das sanfonas, violões, violinos e bandolins que lá se vendem” (Ibid., 2003, p. 84). O espaço da fronteira sempre foi preocupação do governo federal em “ocupar os espaços vazios” na região de fronteira. Estudos realizados por Jerry Roberto Marin aponta que muitos intelectuais naquela época apresentavam a fronteira do Brasil com o Paraguai como um Brasil “desnacionalizado”, isolado geograficamente, atrasado economicamente, desguarnecido militarmente, constituída de uma população bárbara e avessa a ordem e às leis nacionais. Na visão de uma parte desses intelectuais


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analisados por Marin a fronteira do Brasil com o Paraguai era um espaço não incorporado ao Brasil e que distanciava da modernidade dos centros mais dinâmicos da economia nacional. A posição geográfica, a extensa fronteira e a economia regional acentuavam sua “desnacionalização”. Ou seja, era preciso “nacionalizar” os espaços brasileiros. Tanto Mato Grosso como Mato Grosso do Sul, Paulo Roberto Cimó Queiroz considera “um dos mais fascinantes casos de fronteiras” da história brasileira. A fronteira como lugar do “temor” e da “esperança”, como lugar de encontro e conflitos de alteridades, dispu-ta entre Portugal e Espanha e depois entre os Estados independentes, Brasil, Paraguai, Bolívia. As regiões fronteiriças são representadas muitas vezes como paraíso e outras vezes como inferno. As fronteiras sempre como lugar de passagem, de trânsito, de idas e vindas. Mas a fronteira também é lugar do contrabando, da contravenção e do refúgio de bandidos.

INSTITUIÇÃO DO TERRITÓRIO FEDERAL DE PONTA PORÃ O governo federal ao criar Territórios, pode intervir diretamente aos interesses nacionais nas regiões de fronteiras, principalmente nas questões de arrendamento de terras, que pela Lei brasileira quem “legalizava” as terras naquela época era o “Estado”. É no período da Segunda Guerra Mundial que foi (1943-1946), aos quais passaram a compor os seguintes municípios: Ponta Porã (capital), Maracaju, Porto Murtinho, Nioaque, Bonito, Bela Vista, Dourados e Miranda. Uma faixa de terras que abrangia parte do sul de Mato Grosso, fazendo fronteira com o Paraguai cuja superfície foi calculada em 99.141 km. Júlio Capilé em suas crônicas: “Antigamente era Assim”, lembra que a cidade de Ponta Porã dos anos quarenta. O Brasil entrou na guerra em 1942. Houve a convocação de reservista em setembro. Apresentei-me em primeiro de outubro e vivi uma temporada em uma das cidades mais gostosas de se morar. Ponta Porã com a leva de bombachudos (nós os convocados da fazenda), aumentou seu movimento. No primeiro mês nem tanto porque estávamos arranchados, mas depois os movimentos de bares, pensões e do comércio em geral, aumentou. Nós não dependíamos dos vinte e um cruzeiros (moeda recém-criada), vencimento de recruta para nos movimentarmos. Mesmo Punta Porã, isto é, do lado do Paraguai


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recebeu um impulso com movimentação. Nesse tempo era Ponta Porã do lado Brasil e lado do Paraguai. (CAPILÉ, 2004, p. 91).

Em 1943, Ponta Porã, era uma das cidades mais importante do Estado de Mato Grosso, com uma abrangência econômica considerável, aliadas a uma pecuária e uma lavoura crescente, além da pujante erva-mate. Como capital Ponta Porã, era uma efervescência, vida intensa, alegria plena, segundo Capilé, chegavam de todos os municípios moços e moças para cursarem pedagogia e levarem o ensino para suas cidades e lugarejos. Foi criada a Guarda Territorial que aumentou o contingente humano na capital. Havia emprego para todo mundo. Com o aumento do efetivo tanto do 11º R.C.I. na capital (Ponta Porã), como em Bela Vista o 10.º R.C.I. Para Júlio Capilé, “a fronteira ficou bem vigiada e em paz”. (id, 91). De acordo com Almiro Pinto Sobrinho em seu livro “Amambai: Memórias e Histórias de Nossa Gente”, publicado em 2009 (309 páginas), um ponto muito importante para a fronteira foi à criação do Território Federal de Ponta Porã. Criado com a finalidade de abrasileirar nossa fronteira com o Paraguai, o Território procurou executar um programa para desenvolver todos os municípios, que estavam na jurisdição da Cia. Matte Laranjeira, com abertura de estradas, de pontes, de escolas e de segurança, tudo o que faltava para criar uma unidade nacional na fronteira. Foi o que o território fez nos três anos de sua vigência. (SOBRINHO, 2009, p. 86, grifo meu).

O primeiro governador do Território Federal de Ponta Porã foi coronel Ramiro Noronha nomeado por Getúlio Vargas, administrou de 1943 a 1945, segundo Rosa, em sua gestão foram construídas inúmeras pontes, criou colônias agrícolas em Dourados, Caarapã e Itaporã. Criou uma escola normal e uma biblioteca pública em Ponta Porã, além de vários cursos noturnos em diferentes pontos do território, concedeu também os primeiros títulos de terras aos lavradores, na área devoluta ocupada até então pela Empresa Mate Laranjeira. O coronel Ramiro Noronha deixou a chefia do Território Federal de Ponta Porã, em novembro de 1945, devido à deposição de Getúlio Vargas. Noronha exonerou-se em data de 17 de novembro de 1945, passando


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o cargo ao professor Leônidas Horta, diretor da educação e cultura, e seguiu para o Rio de Janeiro. Foi nomeado para substituí-lo o major José Guiomar dos Santos, que assumiu o cargo a 24 de novembro, exercendo o mandato durante dois meses apenas, seguindo para ocupar a governança do Território do Acre, em virtude de posterior nomeação. Por designação do presidente da República, general Eurico Gaspar Dutra, assumiu então o cargo de governador o dr. José Alves de Albuquerque, cuja administração teve curta duração, em vista da extinção do Território. O governador dr. Albuquerque teve como seus auxiliares os seguintes serventuários: secretário-geral, dr. Valério Caldas de Magalhães; diretor de saúde, dr. Sílvio Granjeiro Ferreira de Almeida; diretor de administração, dr. João da Silva Ramos; diretor de engenharia, dr. Otávio Mendonça de Vasconcelos; consultor jurídico, dr. Mário Vasconcelos Cavalcanti; e diretor de segurança e guarda, o dr. Joaquim Diógenes (ROSA, 2004, p.65/66).

Com a extinção do Território Federal de Ponta Porã estabeleceu-se que os municípios voltassem a integrar o Estado a que pertenciam. Esse ato gerou um clima de insatisfação nos municípios que integravam o Território. A “população” reagiu nas cidades e distritos pela restauração do Território. Pedro Ângelo da Rosa menciona que nesta época Fundou-se a Liga PróRestauração do Território, sendo enviado à capital da República o “Dr. João Portela Freire, que muito trabalhou junto aos representantes da Câmara, a fim de serem atendidas as suas reivindicações, porém nada mais foi conseguido e o caso ficou definitivamente encerrado” (ROSA, 2004, P. 67). Para Almiro Pinto Sobrinho a região de Amambai era uma das que vinha recebendo muitos benefícios do Território, a mudança inesperada trouxe sérios problemas em todos os setores. Em Amambai houve uma manifestação pública com um discurso inflamado do Sr. Gualter Belacho, morador da cidade, pela volta do Território. Essa bandeira continuou sendo defendida, por um bom tempo, pelos getulistas. A história não é tão simples assim, exclusiva, apenas dos grandes vultos e homenagens aos governadores nomeados e dos cargos de primeiro escalão. A história não é determinista, linear, absoluta. Entendo que a história não é feita apenas de grandes vitórias ou derrotas, mas de sujeitos que construíram as cidades, vilas, distritos, fazendas, sítios, chácaras estradas, ruas, praças e avenidas, com força, suor, lágrimas e risos. Que formam as múltiplas culturas das populações das fronteiras da porção sul


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de Mato Grosso do Sul. As fontes até aqui pesquisadas apontam a passagem do Território Federal de Ponta Porã como um componente importante para o “abrasileiramento” da região sul de Mato Grosso do Sul. Já que até os meados dos anos 40 do século XX a região de fronteira era considerada mais “castelhana” ou “guarani” do que “brasileira” propriamente dita. Para os memorialistas estudados até o momento, a criação do Território Federal de Ponta Porã foi uma coisa muito boa que aconteceu na região, principalmente para os municípios e distritos contemplados na linha da fronteira seca entre o Brasil e o Paraguai que receberam obras de infraestrutura. Se há consenso de bom, de positivo, quais são os pontos negativos. O que está subentendido com o discurso do “progresso” e do “desenvolvimento”? O tema aqui proposto por ser um “território”, digamos que vasto, e por isso mesmo, complexo, contraditório e extremamente dinâmico, o que impede que se possa ter uma representação, consensual, homogênea, estável, linear. Não há resposta única, para esta questão. A função do historiador não é inventar alguma coisa, mas descobrir alguma coisa. Por isso, a importância deste projeto para proporcionar detalhes aparentemente marginais e irrelevantes, para esclarecimentos de pontos relevantes e de forma sistemática. Considero o tema pouco explorado pela historiografia sul-matogrossense, em minhas observações o Território Federal de Ponta Porã é reapresentado como um ícone efêmero, passageiro, temporário, tímido e esparsamente publicado em artigos de jornais, crônicas, textos acadêmicos, livros de memórias e didáticos. Daí a necessidade de estudos mais profundos com aportes metodológicos para analisar os depoimentos aqui elencados: O testemunho de Eunice Benites Ortiz de que em Dourados havia nos bailes, “separações de raça”, esta afirmação merece uma reflexão, ainda mais porque o próprio representante da “intelectualidade” douradense, Armando da Silva Carmello, nos anos setenta do século XX, representou em seu livro, a cena de um paraguaio como intruso, transeunte, desconhecido, um intrometido no baile na casa de um brasileiro. Até que ponto existe a separação de raça? É só no baile? Ou como foi o caso de Albano José de Almeida sem experiência nenhuma em construir estradas, foi comandar índios e paraguaios? Carmello dá uma “surra merecida” no paraguaio intruso? Quantos mais apanharam? Inclusive muitas mulheres? Qual o papel da mulher neste período? Principalmente oriundas das famílias paraguaias. As mu-


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lheres “perdidas”, pelo depoimento de Ortiz são as flagradas fazendo sexo antes do casamento? Ou as que ficaram grávidas? Com quem fica o filho? A educação paraguaia era tão rígida assim, ao ponto do pai entregar a filha para a prostituição? De não aceitá-la mais na família? Ou a “severidade” do pai é só para os “nossos olhos” do tempo presente? O mesmo pai que leva os filhos homens na “zona” para “mostrar o que é a vida”, leva a filha para ser fichada na polícia como prostituta? Andar sem “arma de fogo”, naquele tempo “era o mesmo que estar desnudado”, para os autores, João Augusto Capilé Júnior, Júlio Capilé e Maria de Lourdes da Cruz e Souza, os fuzis pertencentes ao exército brasileiro, eram considerados como uma coisa “comum” na região e nas propriedades de fazendeiros. Mesmo sendo 50 fuzis em porte de um só fazendeiro? Só os paraguaios são os bandidos? Ninguém mais? Qual a diferença de vida social de Almeida com Ortiz? Afinal, quem paga as contas? Quem ficou rico após a criação do Território e das colônias agrícolas? Por que os paraguaios que já moravam aqui não foram assentados nas terras devolutas da Empresa Mate Laranjeira? Por que os paraguaios são incluídos nos trabalhos e excluídos da posse de terras? O território foi extinto e pronto? Não, em Amambai muitas obras de infraestrutura permaneceram, por exemplo, a casa que funcionava o escritório do território ficou sendo a sede da futura Prefeitura de Amambai, 1948. O que mais ficou? Os tratores? As serrarias? As olarias? Os maquinários? Ficou com quem? Para quem? A conquista do Brasil na fronteira guarani não foi nada pacifica, não foi apenas um “pacote” governamental e pronto? Foi construída aos longos dos anos. Não são um ou dois casos, são inúmeros os fatores que contribuíram para a homogeneização brasileira na fronteira. Onde se cantava e se falava, buenos dias, buenas, tarde, buenas noche, adiós, vai sendo ocupado por costumes do arroz-com-feijão, do carnaval, do forró, do desfile de 7 de setembro comemorado nos distritos, vilas e cidades. Tudo indica, que a partir da criação do Estado de Mato Grosso do Sul (1977), a “cultura paraguaia” é “resgatada” como “pertencimento” da identidade sul-mato-grossense. Um exemplo, o tereré torna-se um discurso de uma bebida agradável, deliciosa, saborosa, para beber com os amigos, “fazer a roda”, já que possibilita a conversa, o diálogo e a amizade. Além de “matar a sede”. Lembro que as memórias publicadas anteriores a 1977 o “tereré” era divulgado como costumes de paraguaios no sentido pejorativo, “enrolação no serviço”. O meu tema é mostrar o lado do peão paraguaio (não só dos ervais, mas do cotidiano das fazendas e das cidades).


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As ponderações realizadas até aqui, sobre a importância do Território Federal de Ponta Porã em possibilitar “caminhos” para as “fronteiras agrícolas”, com fundação de novas cidades, principalmente na região do sul de Mato Grosso do Sul, atualmente cerca de 40 municípios, considerada uma área que há mais municípios brasileiros em faixa de fronteira. Com a instituição de cursos de graduação em História nas cidades de Dourados, Ponta Porã e Amambai e as muitas perguntas da criação e da efetivação do Território Federal de Ponta Porã; a falta de material sistematizado sobre esta temática, daí vem à relevância de estudar mais sobre a criação do Território Ferderal de Ponta porã.

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