Revista Valer Cultural n 2

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Ano I n.º 2 agosto/2012 R$ 9,90

uma biblioteca na floresta Em 1890, o caixeiro-viajante português José Francisco Monteiro fundou Humaitá (AM), cuja história se destacou entre as demais cidades da Amazônia, em especial pela construção de uma biblioteca no conjunto de prédios reservados à prefeitura, à câmara, à igreja e à delegacia de polícia. O acesso à leitura ajudou a formar gerações seguidas de profissionais liberais, políticos e intelectuais. 14-23

Oriente Médio além da visão ocidental 24-31

Tite arma time com escritores 50-53

Drummond, o poeta sempre necessário 62-69

Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Fotografia | Música | Artes plásticas




editorial

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avia alguns anos que persistíamos no propósito de concretizar este projeto. Não seriam as dificuldades que, por sinal não cessaram, a adiá-lo constantemente. Pesou, sobremaneira, a necessidade de amadurecimento da primeira ideia. Valeu esperar. Os dias longos de inquietação geraram acúmulo de experiência e aprimoramento para realização de uma REVISTA que almeja se consolidar no mercado por meio da qualidade editorial e gráfica. Unem-se, nas suas páginas, jornalismo de profundidade, ético e coerente, e design arrojado e arejado. Trata-se de publicação feita em Manaus, porém ousada na proposta de ter o mundo como conteúdo. Jornalistas, colaboradores das mais diversas áreas do conhecimento, designers e artistas gráficos estão imbuídos de um só propósito: traduzir a realidade que se apresenta ou que se esconde na mídia ligeira do cotidiano. A cultura, na sua mais ampla compreensão humana, é a pauta permanente desta VALER CULTURAL. Assim, deita-se em perspectiva o desafio da imersão na sociodiversidade e na biodiversidade como fenômenos culturais, cuja dimensão extrapola o entendimento ortodoxo da separação entre o local e o global. Sabe-se hoje, mais do que ontem, que o mundo sobrevive em ecossistemas – entre os quais o da comunicação – interdependentes. Uma solução local, por exemplo, pode ser uma solução global. Não há fronteira que trave a convivência humana em larga escala, ainda que sujeita a controvérsias. Esta publicação quer contribuir com o aprimoramento da convivência humana por meio do estímulo ao conhecimento. Os que se perfilam nesse propósito certamente se sentirão satisfeitos em ler a VALER CULTURAL. Isaac Maciel Diretor executivo

Diretor Executivo Isaac Maciel

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Conselho Editorial Márcio Souza Renan Freitas Pinto Ivânia Vieira Tenório Telles

Design e Direção de Arte Heitor Costa

Diretor de redação Wilson Nogueira MTB/AM 365

Revisão Núcleo de Editoração Valer

Ilustração da capa Bruno Raphael

Instituto Nacional Valer de Cultura Av. Joaquim Nabuco, 1.605 – Centro CEP 69020-03 Manaus-AM Tel. 92.3234-9830

Editora executiva Suelen Reis MTB/AM 235 Assistente de Edição Maria do Rosário R. Nogueira MTB/AM 148

Assinatura e publicidade Darliane Michele – comercial@valercultural.com.br Colaboradores desta edição: Ana Cláudia Leocádio, Daniela de Tofol, Marcos Frederico Krüger, Ivânia Vieira, Leandro Curi, Liège Albuquerque, Márcia Costa Rosa, Marcus Stoyanovith, Maurília Gomes, Michelle Portela,Neiza Teixeira e Tenório Telles.


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Oriente a céu aberto

Viagem aos sertões de bárbaros

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Do romance às telas

50 Tite, o conselheiro literário

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O anjo cético e o sentimento do mundo

54 Legítimo dizer do caboclo

14 Uma biblioteca no meio da selva 32 Boi-bumbá espetacular 38 Editais no centro do debate 58 A antiepopeia dos Muras

70 Temaki, um prato multicultural

74 Quando as àguas [sobem] 78 UEA afina Sinfônica 82 Agenda cheia de eventos literários 84 Reflexões sobre a arte de Maria Bonomi


entrevista | Auxiliomar Ugarte

Viagem aos sertões de bárbaros

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Fotos: Heitor Costa

utor de Sertões de bárbaros, Auxiliomar Ugarte revelou, em entrevista à VALER CULTURAL, que decidiu pesquisar os cronistas ibéricos dos séculos 16 e 17 para pôr mais luz na história da Amazônia desse período. A obra, de 601 páginas, tem origem na tese de Doutorado em História Social da Universidade de São Paulo (USP) defendida em 2004. “O livro permanece fiel à maior parte dos dados e argumentos da tese”, explica Ugarte. O autor disse que, desde a graduação, esteve instigado por uma afirmação do professor e historiador José Ribamar Bessa Freire: a de que os cronistas ibéricos retrataram uma Amazônia referenciada nos valores europeus e, por isso, não poderiam compreendê-la. Com rigor e cuidado, Ugarte mergulha, criticamente, no estudo das versões dos cronistas para fazer emergir novas possibilidades de se compreender as amazônias do passado e do presente. Para ele, o melhor entendimento da história, cujo desdobramento se prolonga no tempo e espaço, poderia reduzir o desconhecimento que se tem da Amazônia na própria região, no Brasil e no exterior. Mas, ainda segundo Ugarte, a produção bibliográfica não alcança a dimensão do esclarecimento. “E o pior: o nosso próprio sistema de ensino não tem minorado essa ignorância”. Confira trechos da entrevista a Wilson Nogueira, Neiza Teixeira e Suelen Reis:

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Wilson Nogueira – Como o senhor aplica o conceito de bárbaro no seu livro, já que há também referência a novos bárbaros? Se existem os novos bárbaros, é porque existiram bárbaros anteriores. Gostaria que o senhor explicasse as visões a respeito desse conceito e das barbáries. Auxiliomar Ugarte – Sim, antes de tudo, o termo/conceito bárbaro nasce no ambiente helênico, passa pelo mundo romano e finalmente é adotado pelo cristianismo. Do não falante, do grego inicialmente. Depois do não falante do grego e do latim. Com o cristianismo veio uma nova conotação: a de povos que não adotavam o próprio cristianismo. E essa noção atravessou os séculos medievais e ganhou uma nova força com a expansão dos europeus sobre as outras partes do mundo. E foi um termo bastante utilizado não apenas por esses cronistas [estudados em Sertões de bárbaros] que trabalhei, mas por todos aqueles que entraram em contato com povos diferentes. Na época não existia o conceito de barbárie, que nasceu no século 19 e que até hoje está em vigência. Derivado de bárbaro em latim veio de barbarismo, ou seja, aquele que tinha um modo de vida incivil, não policiado de acordo com as normas da herança greco-romana e judaico-cristã. Mesmo os islâmicos mais civilizados eram bárbaros, na ótica do cristianismo. Tanto é que eles recebiam até um termo a mais: o de infiéis. Interessante que – só para reforçar o que eu estou falando – num trecho da dedicatória que o historiador Francisco Lopes de Roma fez ao Imperador Carlos V, ele disse o seguinte: “Terminada a conquista dos mouros, começou a conquista dos índios. Para que sempre os espanhóis combatessem 8

os infiéis”. Essa expressão guarda muita relação com o que aconteceu também na Amazônia como em outras regiões do continente americano. Os nossos cronistas também partilhavam a ideia da conquista espiritual.

Os índios da Amazônia faziam parte desse mundo do barbarismo, das idilidades, e eles eram novos bárbaros”

WN – Daí então a ideia de novos bárbaros? AU – Justamente. Os índios da Amazônia faziam parte desse mundo do barbarismo, das idilidades, e eles eram novos bárbaros diante desse conhecimento que ia se travando aos poucos. Agora, por que Sertões de bárbaros? O título do livro nasceu de uma expressão do cronista Maurício de Heriarte. Sertão é um termo lusitano para terra íngreme, para terra afastada do litoral, ou seja, terra não percorrida por civilizados. Então ele diz o seguinte: “Nestes sertões povoados de bárbaros”. Daí nasceu o título da obra; em resumo, o que seria o mundo natural amazônico, e o que seriam os habitantes dos antigos dessa região aos olhos destes conquistadores-cronistas.

WN – Para fecharmos as visões desse conceito, qual é o desdobramento da ideia de barbárie para a Amazônia contemporânea? AU – Bem, como eu disse, o conceito de barbárie nasceu no século 19, mas ele recebeu contribuições diferentes também ao longo do próprio século 20. Hoje nós podemos dizer que existe uma barbárie dentro da própria civilização, que é própria da civilização. Quando nos reportamos à devastação da floresta, à poluição dos nossos rios e a outras tantas formas de degradação do ser humano e do ambiente, aplicamos esse termo sem muito pensar nas suas origens, porque é o que está dentro da nossa civilização atual. Diz respeito à barbárie promovida pela própria civilização que massacra minorias, como os povos indígenas. Hoje há toda uma política em discurso oficial de aceitação, de incorporação de alguns elementos dos próprios valores dos antes vistos como bárbaros. Esse discurso enfoca os índios como os ecologicamente corretos. Aconteceu a idilização. É uma nova idilização dos povos indígenas. Assim como ocorreu lá no próprio século 16, com padre Las Casas, Montaigne etc. Neiza Teixeira – O senhor acredita então que, no caso da Amazônia, estamos vivendo o retorno a Rosseau, com a teoria do bom selvagem? AU – Sim, sim. Sem se falar nesses nomes. Mas acontece, sim, uma idilização dos povos indígenas – nem vou mais falar de povos, porque hoje estão novas formações socioculturais. Nesse discurso não se leva em conta uma série de problemas que ocorrem com esses grupos. valercultural


NT – Vimos nos cronistas, na própria carta de Caminha, quando há uma reminiscência de um Éden. É a mesma perspectiva dos viajantes que buscavam esse paraíso perdido que se deslocava por lugares distintos, no século 16. Havia, nesse caso, a teoria que esse paraíso estaria situado na América... AU – Veja só: a visão paradisíaca de alguns sábios europeus é uma coisa. Nem sempre aqueles que estiveram numa região tiveram essa perspectiva. Se Carvajal projetou colher trigo em determinada área da Amazônia, isso não significa uma perspectiva paradisíaca. É um utilitarismo, não é? Eu digo claramente que, de forma explícita, quem [replica] essa imagem paradisíaca da Amazônia e um cronista que nunca esteve aqui, o padre Alonso de Rojas. valercultural

Suelen Reis – Mas então a visão dos cronistas foi mais infernal?

um conjunto de árvores trouxe-lhe alento, trouxe-lhe conforto.

AU – Não. Ela, digamos, é uma visão paradisíaca e infernal. Ela se equilibra. Por quê? Parte da vivência. Se num momento ele experimenta uma coisa ruim, como uma praga de mosquitos, num outro momento ele tem um descanso para os olhos, um conforto. Se ele enxerga um carvalhal em um ambiente que nunca existiu carvalho, é porque aquela formação florestal deu a ele um alento, inclusive até de esperança.

NT – Essa questão do paraíso, da procura do paraíso perdido me chama muito atenção. Sempre ouvimos falar que o objetivo do Colombo tornou-se mais utilitarista. Todavia, quando lemos seus diários, vimos ali que, na verdade, o navegador buscava de fato o paraíso. Vimos que a busca do ouro, aquela ansiedade por encontrar o ouro, na verdade foi um argumento que ele utilizou para manter a paciência, o incentivo e o investimento dos reis de Espanha.

WN – Dá a ele a ideia de que não estava num mundo não tão diferente do que imaginava... AU – Não. Estava tão diferente, mas, na similitude, ele achou um conforto naquilo. Num ambiente de hostilidade etc, uma simples árvore,

AU – Também. É uma dimensão. Mas não podemos reduzir, digamos assim, partindo de Colombo. Não podemos reduzir o comportamento e a visão desses navegadores e conquistadores, posteriormente, a um 9


aspecto unicamente. Não. Colombo queria ouro para financiar uma nova cruzada. Uma ideia que os reis católicos haviam abandonado há um bom tempo. Ele queria reconquistar Jerusalém. Veja só! Então o ouro que se busca não é o ouro para ele enriquecer pessoalmente. Ele queria o ouro para enriquecer, mas não era só isso. E o paraíso, essa ideia do paraíso, nasce de uma expectativa que vai ocorrendo na medida em que ele percorre aquelas ilhas. Colombo só tocou o continente, de fato, na última viagem, quase se perdeu lá na boca do Orenoco. E é claro que a conquista não se deu assim, a passos rápidos como se queira imaginar num esquema. Tudo foi muito lento, muito trabalhoso. Agora, alimentado por essa visão do enriquecimento, da honra – isso era um comportamento ibérico – e algo que hoje nos parece até hipócrita, que era buscar a glória da igreja, a glória de Deus. Levar a palavra de Deus a esses povos incultos. WN – Só para pegar essa carona da conquista num processo lento. No livro, o senhor se refere ao tempo da conquista dos impérios astecas (México) e incas (Andes) como relativamente curto em relação ao despendido na Amazônia. Por quê da Amazônia demorou tanto? 10

AU – O desconhecimento. Até 1513, não se sabia do alargamento da América do Sul. Por quê? Vasco Núñez de Balboa atravessou o que é hoje o Panamá em seis dias. Então, ninguém imaginava que, no Sul do Panamá, a América do Sul fazia isso [o autor usa os braços para indicar a abertura, alargamento]. Não se sabia de fato as dimensões geográficas da América do Sul. Outra coisa: a Confederação Asteca foi derrotada, no que é hoje o México, porque lá havia unidades políticas e culturais, guardadas as proporções, muito próximas ao nível político europeu, das centralizações, dos grandes senhorios; e as alianças levaram a vitória não apenas dos espanhóis sobre a Confederação Asteca. Mas levaram a vitória de quem? Dos povos astecas totonacas, que se tornaram tão senhores da nova Espanha quanto os espanhóis. Ou seja, uma nova elite indígena emergiu com a conquista da Confederação Asteca.

devemos ver única e exclusivamente uma conquista europeia. Um rol de alianças, interesses, levou esses povos – ou linhagens ou grupos – a se aliarem a esses invasores, porque sem essa aliança seria impossível um punhadinho de europeus conquistar um império.

NT – Algo que foi tentado no Brasil, mas que não deu certo.

WN – Diferentemente de quem esteve só de passagem.

AU – Não deu certo em razão das diferenças fantásticas. Como aconteceu com muitas linhagens incaicas que estavam excluídas do poder e que, com a chegada dos espanhóis, emergiram. Então, não

AU – E outra: é uma perspectiva de memória. O homem do porte dele, um intelectual, numa prisão, se lembrando do que ele passou aqui. Aquele gigantesco escrito hoje, publicado em dois volumes, nasceu

WN – Voltando aos cronistas da Amazônia. O padre João Daniel sugere que compreendia a Amazônia de modo mais próximo do que ela seria realmente. Ele chega a recomendar aos europeus, por exemplo, que suas roupas não seriam necessárias na Amazônia em razão do clima. AU – Agora, por que ele se expressou desse jeito? A vivência, a experiência. Ele viveu aqui muito tempo. Tanto é que ele fala de pragas. Ele não idealiza essa Amazônia. Ele fala das potencialidades, mas ele não diz que é paraíso, de modo algum.

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na prisão. Falar que João Daniel já tinha projeto para a Amazônia, isso é bobagem. O projeto era do governo português, que faliu. Ele tinha ideias, sugestões a dar, caso alguém desse os ouvidos a ele. Então, João Daniel é este homem que parte da experiência, sem esquecer o quadro conceitual, que é o lógico filosófico e filológico, suporte necessário para pensar a realidade na qual viveu. Quando ele diz que, para impor respeito aos indígenas, havia necessidade de surrá-los, é sinal de que essa era a vivência dos jesuítas nos aldeamentos. Quando ele diz assim: “Pai, quando os índios estiverem bebendo, não se meta, porque você corre o risco de morte”. Agora, tudo o que ele escreveu só fomos conhecer no século 19, porque o escrito dele permaneceu letra morta durante muito tempo. NT – Esse comportamento europeu não era singular. A Europa também agia assim. A surra, o castigo fazia parte da vivência deles, da educação europeia. AU – Agora, aqui era mais acentuado porque não havia pecado. NT – Na Europa, se tens uma boa formação, conheces os filmes Aguirre, a cólera dos deuses, e Fitzcarvalercultural

raldo, com Klaus Kinski. Aliás, Klaus Kinski ficou famoso em razão desses filmes. O que o senhor pensa dessa forma de difusão da Amazônia, porque nesses filmes mostra-se o processo de construção ou de invenção da Amazônia para o europeu. Todo o europeu bem informado conhece esses filmes. AU – Vou falar mais do primeiro, porque o segundo não assisti. Mas o outro já assisti muitas vezes, já fiz análises. Numa perspectiva cinematográfica mesmo, é fantástico; é um filme surreal. Agora, se ele pretende traduzir uma realidade histórica, porque é um filme lento, tem um grau de sisudez forte, passa ideias equivocadíssimas sobre a Amazônia. Primeiro, mistura personagens de diferentes momentos que nunca tiveram contato. Mistura situações que nunca ocorreram aqui na região, pelo que sabemos. Por exemplo, se vocês bem prestarem atenção no filme, o rio Amazonas começa barrento e termina num lago de águas pretas. A última parte do filme (Aguirre, a cólera dos deuses) mostra Lope de Aguirre sozinho, com aquela macacada toda, num rio de água preta ou num lago de água preta. Onde é que o rio Amazonas tem um lago de água preta, se é um rio corrente? Se vocês bem

Vejo que a realidade amazônica é ampla, hipercomplexa (...). A produção bibliográfica não alcança a dimensão de esclarecer”

prestarem atenção, as balsas em que eles (os personagens do filme) estão descendo está cheia de coco. Se vocês bem prestarem atenção, lá o personagem Fernando de Guzman levanta chupando um cítrico, que não é laranja, mas parece uma cidra qualquer. Então são aspectos da fotografia do filme que pecam e passam uma ideia errada para quem não conhece essa realidade. Coloca lá o Frei Gaspar de Carvajal numa expedição na qual ele nunca esteve. Coloca o Pizarro. Nessa época, o Pizarro já estava morto. WN – De outro lado, o que ficou conhecido, no geral, são versões de mão única porque a comunicação 11


Na realidade houve monólogos e não diálogos. Índios e espanhóis não se compreendiam”

entre o conquistador/invasor e os autóctones era praticamente impossível, no primeiro momento. AU – Na Península de Yucatan, Frei Diego Duran mostrou que não havia essa comunicação. Os índios não entendiam o que os espanhóis fala12

vam e eles da mesma forma. Os índios apontavam lugares, mas como compreender? Na realidade houve monólogos e não diálogos. Eles não se compreendiam. NT – Fica aquela imagem do índio apontando para o colar de ouro de Cabral e eles interpretando que, para aquele lado, existia ouro. WN – O que fica desse contato, que dura até agora, para a reflexão contemporânea. Qual a compreensão da Amazônia hoje? Compreensão de passado, presente e futuro... AU – Vejo que a realidade amazônica é ampla, hipercomplexa (não é só

no Brasil, é preciso acabar com essa ideia). Vejo que continua uma ignorância sobre a nossa região não só pelas pessoas de fora, mas também interna. A produção bibliográfica não alcança a dimensão de esclarecer. E pior: o nosso sistema de ensino não tem minorado essa ignorância. Vou dar exemplos concretos: Quantos de nossos jovens conhecem Iranduba, Manacapuru, Rio Preto da Eva, Presidente Figueiredo? Muitos conhecem Parintins, a festa do boi-bumbá. Mas nem sequer prestam atenção no rio que os leva até lá (se é que eles vão de barco). É uma ignorância gigantesca, tão grande como a própria Amazônia.

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continua dominante. O Brasil se reduz ao Centro-Sul. Há essa colonização interna. Foi minorado com a regionalização, mas hoje tem uma pressão para esse conhecimento vindo do Centro-Sul. Outro problema seríssimo foi a retirada da disciplina Fundamentos da História do Amazonas da grade curricular. Nós, os historiadores – só para citar, além de mim, a professora Etelvina Braga, entre outros – conclamamos pela volta da disciplina, mas esse apelo não foi atendido em nome de um conhecimento do Brasil, que é a história do Centro–Sul e, quando muito, do Nordeste açucareiro. A Amazônia é centro de preocupação, mais nunca é centro de decisão. Quem ocupa o poder de fato? Não posso dizer que o Alfredo Nascimento [Senador do PR-AM e ex-ministro dos Transportes] foi uma representatividade. Ele não representou nada, não fez nada para a região. Outro problema é que, apesar de toda a veiculação,

temos uma mídia que não trata da ciência. Biólogos, historiadores, filósofos são vistos como pessoas de outro mundo... WN – A História tem hoje estudos arqueológicos que estão se aprimorando. Qual a contribuição para a História? Estão se fazendo revisões? AU – A Arqueologia tem feito descobertas, tem conhecimento amplo do período anterior à descoberta. Nomes como Eduardo Neves e Helena Lima estão se destacando. E a História recebe de bom grado esta contribuição das outras ciências. Por exemplo, para fazer esse livro, aprendi muita coisa sobre mosquitos, de botânica, zoologia. Tudo isso para compreender as representações dos cronistas. Por que eles chamavam de pavão o mutum? Qual era a semelhança? A história, com sua problemática, filtra os conhecimentos e dá sua visão.

NT – Então, o senhor não reconhece trabalhos significativos sobre a Amazônia? AU – Com certeza, reconheço. As produções científicas e literárias são grandes, mas não alcançam um público leitor. NT – Mas isso não está ligado ao planejamento que começa lá atrás (relação com o Velho Mundo). Já está na história do Brasil. AU – O ensino não se reduz ao ensino universitário. O nosso ensino é falho. Para piorar, ainda tem a imposição do Enem. Todas as questões são elaboradas pelo Centro-Sul que valercultural

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capa

Uma biblio meio da se

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oteca no selva Em 1890, um caixeiro-viajante português construiu um templo de livros no lugarejo que deu origem a Humaitá, de onde saíram quatro governadores, profissionais e intelectuais

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Marcus Stoyanovith | jornalista enviado a Humaitá

frenética corrida pelo látex das seringueiras da floresta do Amazonas, entre 1890 e 1912, gerou suor, sangue, lágrimas e fortunas. Antes habitada por indígenas, a selva sentiu o ritmo de ocupação do seu solo por homens brancos. A cada espaço dominado de terra e água, consolidava-se a cultura colonizadora e exploratória em detrimento da cultura ecologizada e socializada. E, como por ironia da história, já no período de catequese dos sobreviventes, ergue-se um templo que valercultural

Humaitá

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guardaria essa e outras histórias mil, ou mesmo qualquer uma que suas estantes pudessem alcançar: uma biblioteca. Esse fato aconteceu na Vila das Freguesias de Humaitá, onde, anos depois, a própria biblioteca seria uma sobrevivente. A ideia para a construção da biblioteca, o templo do saber e do conhecimento, como definiam os mais ilustres moradores da antiga vila, não surgiu da mente de nenhum intelectual ou aristocrata. O empreendimento ergueu-se da vontade de um ex-caixeiro-viajante, semialfabetizado, que depois de chegar ao Brasil, ainda menino, sem eira nem beira, se transformou num rico comerciante. Trata-se do português José Francisco Monteiro, que em 1873 deixou Belém-PA para se instalar, definitivamente, no sítio do Pasto Grande, de onde prosperou mais ainda e fundou Humaitá, construindo, entre outras obras, a capela e a biblioteca da cidade, que já fora considerada a quarta mais importante do Brasil. A história é contada pelo humaitaense Almino Affonso, neto de Monteiro, em seu livro Comendador Monteiro: tronco e ramagens.

Esta obra é um testemunho de Almino Affonso sobre a vida de seu avô, Comendador Monteiro, nos beiradões amazônicos

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Caracterização etnográfica de índio da etnia Mura

Os habitantes do Cayari Bem antes da entrada do homem branco na exploração das riquezas da selva, na região de Humaitá, já moravam nela os Torá, os Pamá, os Arara, os Mura e os Parintintin – esses últimos habitavam as margens do Cayari, rio Grande, para os espanhóis, ou rio Madeira, como é conhecido atualmente. Num trecho do seu curso de mais de cinco mil quilômetros, entre os afluentes Ji-Paraná e Aripuanã, essas populações transitavam livremente. Relatos colhidos pelo então padre Vitor Hugo, em sua obra Os Desbravadores, dão conta de que, destacadamente, os Parintintin eram responsáveis por uma organizada e extensa lavoura de batata-doce, macaxeira e banana; plantavam árvores frutíferas e ervas medicinais; secavam o peixe para armazenar ou trocar com outras aldeias; construíam cestos, abanos, arcos e flechas, canoas e flautas para dançar, cantar e guerrear.

Índios Parintintin

Ainda nos relatos obtidos por Vitor Hugo, que abandonou a batina para casar-se com uma freira, no conflito dos rifles contra os arcos e as flechas, o resultado foi a quase extinção de todas as etnias. Dos quase mil índios em conflito conseguiram fugir e sobreviver ao menos 70. Os que ficaram para trás foram catequizados na fé judaica-cristã, como relembra o aposentado e his-

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toriador autodidata Juca Mota, 66, filho de Humaitá. No livro Humaitá, editado pela Secretaria de Educação do Amazonas, em 1993, há a versão de que depois de dominarem o Peru, bem antes do domínio dos seringalistas brasileiros, os espanhóis se embrenharam Amazônia adentro atrás de árvores de canela e outras especiarias. Foi nessa época, por volta dos anos 1600, que eles navegaram o rio Madeira. Juca Mota afirma: “Não fosse a resistência dos Mura, na região do município de Manicoré, os espanhóis teriam dominado o Madeira e, provavelmente, a Vila da Freguesia de Humaitá não teria existido”.

A chegada do fundador Num ambiente onde a região já estava dominada pelo homem branco, embora alguns conflitos com os índios ainda resultassem em mortes, como no caso da Cha-

Comendador Monteiro

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cina do Been, cujas vítimas foram dezenas de seringueiros, doenças como bexiga, sarampo e malária também mataram muita gente. Foi nesse clima que aportou o futuro fundador de Humaitá e construtor da biblioteca pública, José Francisco Monteiro, um homem de poucas letras, mas visionário nos negócios, como escreve o seu neto Almino Affonso. E de fato, seu avô prosperou a tal ponto com o negócio da borracha e da madeira que acabou se fixando no lugar, ao contrário de outros barões da borracha que preferiam cidades prontas e semelhantes às europeias. Em razão de sua permanência, em 1890, a antiga freguesia de Manicoré passa a ser chamada de Vila das Freguesias de Humaitá. Com o poder de traçar o próprio destino, garantido pelas ranhuras nas seringueiras, por onde escorria o látex, e pelo senso administrativo do Comendador José Francisco Monteiro, começava a nascer uma das mais prósperas cidades do rico Amazonas, no já formado ciclo da borracha.

O volume de dinheiro na cidade era tamanho que, segundo Almino Affonso, a prosperidade se prolongou após a debacle: “Mesmo depois do declínio do ciclo da borracha, em 1910, Humaitá ainda nadava em dinheiro, permanecendo assim até 1935 [...} A produção da borracha no Amazonas competia com a produção do café como as maiores exportações do Brasil”. Indo mais além na cronologia, Juca Mota diz que, até 1955, “ainda se podia ver, na cidade, as damas e cavalheiros vestidos e comportados como se estivessem na França”. Mas além do luxo, algo bem mais durável estava para nascer na cidade.

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Biblioteca Ferreira de Castro em Humaitá

O batismo e a obra A Vila da Freguesia de Humaitá foi o nome sugerido pelo comendador José Francisco Monteiro, em homenagem à vitória da tríplice aliança Brasil, Argentina e Uruguai, contra o Paraguai, na ocasião da conquista da fortaleza de Humaitá. E, ainda na condição de Vila, a cidade ganha a Capela de Nossa Senhora da Virgem Santíssima e de Santo Antônio de Pádua, com terreno doado pelo comendador. Pouco tempo depois, ele monta uma biblioteca, num espaço generoso, do gigantesco prédio, onde funcionava a Prefeitura da cidade. Almino Affonso descreve em seu livro que não se tratava de um quarto para guardar livros. “Era um prédio admirável, edificado com esse fim explícito, onde se instalou uma biblioteca com dois mil livros”. A cidade foi crescendo devagarzinho, no início do século passado, ao redor da biblioteca que já guardava

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em si o universo inteiro, em razão do rico acervo de livros que pulsavam em suas estantes talhadas bem à moda da arte portuguesa. Mesmo depois do falecimento de José Francisco Monteiro, em 1917, o acervo era visitado pelos jovens da cidade e até por turistas, como lembra Juca Mota. A Biblioteca de Humaitá chegou a ser a segunda mais equipada do Amazonas, depois da Biblioteca pública de Manaus, de acordo com Juca Mota. Indo mais além, o advogado, político e filho da cidade Terrinha Palmeira de Souza, 60, diz que a biblioteca chegou a ser a quarta do Brasil. A biblioteca era alimentada com doações dos governos de Santa Catarina, Rio de Janeiro e São Paulo, na sua primeira fase, até meados os anos de 1950. Nesse período, o acervo já havia contribuido para a formação de nomes que fizeram história no Amazonas e fora dele. Terrinha lembra que Humaitá gerou quatro governadores para o

Amazonas: Álvaro Botelho Maia, Plínio Ramos Coelho, e, interinamente, Anfremon Monteiro e Lino Chíxaro. E ainda, Almino Affonso, que foi ministro no governo de João Goulart, vice-governador de São Paulo, no governo Orestes Quércia, conselheiro atual da República. Todos foram beneficiados pela biblioteca pública da cidade. A grande produção intelectual de Humaitá tem suas razões na biblioteca, explica Terrinha.

Álvaro Maia

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A biblioteca e a escola

Grupo escolar Oswaldo Cruz

pública. Juca Mota lembra que existe um grande número de médicos, advogados e engenheiros, filhos de Humaitá, espalhados em Manaus e em outras capitais do Brasil. Uma das atrações que ajudou a formar tantos cidadãos e cidadãs humaitaenses foi o acervo da biblioteca que sempre acrescentava informação às aulas e provocava a curiosidade pela pesquisas nos seus visitantes, alunos, profissionais e pessoas apenas interessadas na leitura dos livros que os levavam a uma viagem além-mar.

Existe um grande número de médicos, advogados e engenheiros, filhos de Humaitá, espalhados em Manaus e em outras capitais do Brasil” Almino Affonso, neto do Comendador Monteiro, e detalhe de obras do acervo original

Foto: Divulgação

No grupo Escolar Oswaldo Cruz, construído também pelo comendador em homenagem ao reconhecido sanitarista, que fez uma breve passagem por Humaitá e lá deixou ensinamentos para produção das pílulas azuis para tratar a malária, estudou o senhor Omar de Souza, 82, conhecido como seu Toti. Ele lembra que, nos anos de 1930, a população da cidade não chegava a mil habitantes, mas o nível da educação era muito bom, mesmo indo até a 5.ª série. Souza não é frequentador assíduo da biblioteca, “em razão de trabalho”, mas reconhece que ela fez a diferença na formação dos filhos da cidade. A escola Oswaldo Cruz, que mantinha forte elo com a biblioteca pública, foi responsável pela formação de mais de 90% dos professores filhos de Humaitá. Isso ainda nos anos de 1950. Um orgulho para Souza, ex-aluno e colega de sala de Almino Affonso, no final da década de 1930. Mas a biblioteca não esteve presente apenas na formação dos homens que se destacaram na vida

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A condenação Mesmo com toda a sua importância para vida cultural, histórica e intelectual da cidade, em 1950, a biblioteca foi fechada e seu acervo abandonado no porão da antiga prefeitura. Sobre esse fato não há registros nem nas atas ou tombamentos oficiais. As únicas informações são aquelas que permanecem na memória dos moradores mais dedicados aos estudos. Restou apenas uma estante original com alguns livros, segundo a professora Etelvina Viana, responsável pelo tombamento do antigo do acero da biblioteca, realizado entre 1990 e 2000. Só 45 anos depois, em 1995, é que a biblioteca volta a funcionar no prédio número 18, na rua Marechal Deodoro, agora batizada com o nome de Ferreira de Castro, justa homenagem ao poeta e escritor José Maria Ferreira de Castro, autor do romance A Selva. A reforma foi realizada na administração do prefeito Írio Guerra. Apenas duas estantes originais fazem parte da atual biblioteca. As demais foram, habilidosamente, copiadas para completar o total de sete estantes.

Últimos livros que sobraram do acervo da Biblioteca de Humaitá

Ferreira de Castro

Prédios históricos e pontos turísticos de Humaitá

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Fotos: Marcus Stoyanovith

O que restou Do acervo que deu à biblioteca de Humaitá o reconhecimento de quarta mais importante do Brasil sobraram algumas obras e peças raras, entre elas, a cópia da escritura de compra e venda do escravo Victor, datada de 24 de outubro de 1879, pelo valor de oitocentos mil-réis, pagos em moeda. Victor tinha 22 anos, e era registrado como mulato. João Gusmão da Silva o vendeu a Lúcio Anthunes Maciel. A escritura original pertence ao acervo particu-

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lar de Dom Miguel D’Aversa, bispo diocesano, segundo o poeta e escritor Raimundo das Neves de Almeida, filho de Humaitá, em seu livro Retalhos históricos e geográficos de Humaitá: documento público de 1869 a 1970. Outras obras que ainda fazem parte das raridades são a enciclopédia Nouveau Larouse Illustré, assinada por Claude Auge, o Dicionário Universal, assinado por Maximiano Lemos, e a enciclopédia The New

Brazil, obras do início e meados do século passado, mais edições do jornal Alto Madeira, de Porto Velho (RO), que circulava na cidade desde os primeiros anos do século passado. Obras dos anos de 1950 a 1960, não raras, mas de grande valor cultural ainda se mantêm nas estantes. São de escritores do nível de: Machado de Assis, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Érico Veríssimo, Darcy Ribeiro e Márcio Souza.

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O destino do acervo Para onde foi o acervo cultural da Biblioteca de Humaitá? Não é segredo o destino da maioria desses livros. De acordo com a professora Etelvina, ”eles foram levados, por coordenadores do Projeto Rondon, e nunca mais foram devolvidos”. A versão é confirmada pelo historiador autodidata Juca Mota: “Os livros do acervo estão em Araraquara, Botucatu, Avaré e Marília”. Indignado,

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ele diz que não compreende por que as autoridades do município não reclamam a devolução dos livros. Terrinha afirma que outra parte dos livros foi levada para Porto Velho-RO, pelo diretor do jornal Alto Madeira, Euro Tourinho. Além do seu acervo extraviado, e depois de tanto tempo de livros jogados num porão, os últimos tombamentos do acervo da Biblioteca Pública Ferreira de Castro, feitos em 1995, 1997 e 2009, registram 6.019 títulos. Uma soma que não bate com o volume em exposição,

perto de dois mil livros, segundo a professora Etelvina. Mesmo assim, a biblioteca sobrevive e mantém uma frequência regular de alunos que agora contam, também, com equipamentos modernos. É que no porão da biblioteca, onde escravos eram acorrentados, no século 19, agora é ocupado por computadores que ajudam as crianças em suas pesquisas. A professora Ivana Ferreira Reis explica que as pesquisas na internet são complementares àquelas feitas nos livros.

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Fotos: Marcus Stoyanovith

A sobrevivência Para a professora Etelvina Viana, a biblioteca “tem a sua importância além da vida escolar do aluno, porque ajuda na sua formação como pessoa”. Ela afirma: “É aqui, na biblioteca Ferreira de Castro, que ainda é possível conhecer todos os poetas e escritores filhos de Humaitá”. E lembra: “Os alunos devem ser estimulados no início, depois eles mesmos sentem a necessidade de frequentar a biblioteca”. E é com muita teimosia que a Biblioteca Pública de Humaitá mantém-se viva há mais de cem anos. Hoje recebe, em média, 300 alunos por semana. A maioria pesquisando para trabalhos de aula. Assim como faziam, no início do século, os habitantes fundadores da cidade; em meados do mesmo século, os membros da famosa Confraria São Vicente de Paula, na qual o pai do ex-governador Plínio Ramos Coelho era um deles, entre os anos 1952 e 1956, e como fazem hoje os alunos como Gustavo Pereira, 12, estudante da escola Tancredo Neves, que frequenta a biblioteca porque é um lugar onde ele encontra respostas para suas perguntas.

A biblioteca tem a sua importância além da vida escolar do aluno, porque ajuda na sua formação como pessoa”

Etelvina Viana: dez anos dedicados à proteção do acervo da Biblioteca de Humaitá

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Foto: Vitaly Titov & Maria Sidelnikova

diรกrio de viagem

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Visitas a museus e lugares históricos do Oriente Médio garantem revisão de aulas de história geral Ana Cláudia Leocádio | jornalista

Q

uando meu marido chegou em casa, em Brasília, em agosto de 2010, perguntando o que eu preferia: morar em Ancara ou Damasco, confesso que tomei um susto. Estava mais hesitante pela minha ignorância, pois, até então, não fazia ideia de que Ancara era a capital da Turquia. Sempre achei que fosse Istambul. No receio, descartei Damasco, capital da Síria, país que está passando por sérios problemas políticos.

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Fotos: Ana Cláudia Leocádio

Passado um ano, cá estamos nós morando em Ancara, localizada na Anatólia Central, a 400 quilômetros de Istambul, a antiga capital nascida no lado europeu, cidade que por séculos foi Constantinopla, a capital dos impérios Romano e Bizantino, uma segunda Roma, como dizem os historiadores. Por mais de mil anos, Istambul foi uma grande fortaleza dos impérios cristãos no Oriente, construída entre o Estreito de Bósforo e o Chifre de Ouro, e protegida pelas imensas muralhas, que só foram abaixo em 1453, quando os otomanos, vindos do leste, a conquistaram, colocando fim ao domínio bizantino e cristão na região. Após séculos sob o regime do sultanato, em 1923, o país tornou-se uma república e passou por um processo de europeização que mu26

Turco é turco, não é árabe, libanês ou sírio, assim como iraniano é persa e egípcio é egípcio”

dou significativamente o modo de viver turco sem, contudo, alterar o espírito nacionalista e a fortaleza cultural dessa nação. Talvez por essas diferenças o sonho turco de ingressar na União Europeia até hoje não se concretizou.

A Turquia tem quase 80 milhões de habitantes, onde 99% da população são mulçumanos. Istambul segue como a maior cidade, com cerca de 14 milhões de pessoas vivendo em um verdadeiro museu a céu aberto. A pacata Ancara, a segunda maior cidade, tem aproximadamente 5 milhões de pessoas.

Lições As lições de se viver nessa parte do mundo, num país mulçumano, principalmente para uma brasileira e cristã, são muitas. A primeira é o respeito à identidade de cada um. Turco é turco, não é árabe, libanês ou sírio, assim como iraniano é persa e egípcio é egípcio. Isso precisa ser dito, pois, não são poucas as vezes em que nos vemos dizendo que “tudo é a mesma coisa”. Não valercultural


é, e isso faz toda a diferença. A ninguém é dado o direito de tirar a identidade de um povo. A segunda lição é sobre a religião mulçumana, algo que ainda estou aprendendo, buscando entender esse modo de viver que segue as revelações de Maomé, que para eles foi o último e mais importante profeta, quase sete séculos depois de Jesus Cristo. Mais importante, ainda, é esquecer os estereótipos que ligam uma religião tão pacífica ao terrorismo. Violência urbana é algo raro por aqui, tal qual conhecemos no Brasil. Pode-se andar tranquilamente altas horas pela cidade, que um bandido não vai te importunar. Senti isso também no Egito, Irã e Líbano. Outra lição importante é sobre a língua. Os turcos vieram da Ásia Central. Sua língua, segundo um professor português que conheço, só se aproxima do coreano, o que aumenta ainda mais a dificuldade de aprendizado. O problema é que os turcos são tão solícitos, que fica muito fácil se comunicar com eles por gestos, usando bem o dedo indicador. Eles farão de tudo para te entender e te ajudar. Mas para não contar sempre com essa generosidade, preferi dar uns passinhos à frente e aprender um pouco do idioma, até em respeito a eles. E está dando certo. É gratificante ver a satisfação deles, quando você chega pedindo algo em turco e não mais por gestos.

jogador de futebol que atua nos times locais. O ex-jogador da Seleção Brasileira Alex de Souza é uma verdadeira autoridade na Turquia, a ponto de ser homenageado pelo governo, que o concedeu a cidadania turca. Líder de um dos maiores times de futebol do país, o Fenerbahçe, Alex é respeitado inclusive pelos jogadores e torcedores dos times rivais. Para quem torce o nariz ao fato de carnaval e futebol serem sempre as primeiras palavras que um estrangeiro lembra ao encontrar um brasileiro, é preciso agradecer a esses “trabalhadores da bola” cada sorriso que eles ajudam a abrir para a gente, no exterior. Como eu adoro futebol, não perco a oportunidade de fazer novos amigos pegando carona nos nossos jogadores. Mas as novelas também são outro chamariz. As mulheres são curiosas e questionam de tudo sobre as novelas, principalmente sobre a sensualidade da brasileira. Bonitas, as

Brasileiros O fato de ser brasileiro também ajuda muito. Eles adoram os brasileiros, têm sempre na ponta da língua o nome de algum valercultural

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turcas são bem mais recatadas que nós obviamente. O gosto pela novela é tanto que os canais locais de televisão têm novela em todos os horários. A última e mais assistida é uma novela sobre um dos maiores sultões da Turquia, responsável pela ampliação da ocupação otomana, Suleiman, e que só passa às quartas-feiras. A Globo está de olho nisso, tanto que, ano passado, a autora Glória Perez esteve mais de um mês na Turquia fazendo pesquisas. A próxima novela da emissora, Salve Jorge, será gravada no país.

De mente aberta

O crescimento turco é similar ao brasileiro, mas quando se olha o preparo do país em infraestrutura, as semelhanças acabam aí”

to negro, que só deixa os olhos à mostra. Mas esse modo de se vestir não é predominante, pois a maior parte da população segue a moda europeia, com roupas vendidas pelas grandes marcas da Inglaterra, Espanha, Itália e da própria Turquia, sem, contudo, mostrar-se muito. Os mantos otomanos são, atualmente, peças de museu e decoração. O

lenço só é obrigatório para quem deseja entrar numa mesquita. É um sinal de respeito e reverência. Até hoje ainda não entendi o motivo de ter que cobrir a cabeça em razão da religião. À primeira vista, sempre me pareceu falta de respeito à individualidade da mulher, pois aos homens nenhuma obrigação desse tipo é imposta, mas agora prefiro pensar que é uma opção de cada um e isso precisa ser respeitado também. Se repararmos, freiras e mulheres de outras religiões também usam véus sobre a cabeça.

Turcos e brasileiros Na tentativa de buscar algo que aproxime o turco do brasileiro, para mim, a aparência é um ponto em comum. Mas isso não significa que o turco parece com o brasileiro; pelo contrário, como ambos não têm uma aparência homogênea, isso faz com que eles possam ter qualquer nacionalidade. Senti isso ao chegar ao aeroporto de Istambul, ano passado. Quando olhei ao redor, com exceção das mulheres com véus, cheguei a imaginar que estivesse

dia Leocádio

Foto: Ana Cláu

Aos desatentos, um aviso: melhor esquecer os estereótipos e preconceitos quando quiser visitar a Turquia ou outros países dessa parte do globo. Chegue com a mente aberta. Essa parte do planeta já foi casa de muitos impérios (hititas, persas, gregos, romanos, bizantinos e otomanos), é um caldeirão cultural. Foi também onde muitos apóstolos de Jesus Cristo abriram caminho para o Cristianismo, onde Maria passou seus últimos dias (há controvérsias sobre isso), e onde muitos deles morreram devido a essa nova religião, segundo os historiadores. Esse itinerário religioso, com visita aos locais históricos, é também um dos grandes atrativos turísticos do país, que em 2011 atraiu em torno de 30 milhões de visitantes. Mulçumano desde o século 15, a atual Constituição turca diz que o Estado é laico, ou seja, separado de religião. Isso faz com que, em muitos aspectos, a vida na Turquia seja bem diferente de países mulçumanos vizinhos. Na costa do Egeu e no Mediterrâneo, as diferenças são ain-

da maiores, em relação aos Estados do leste. Nas grandes cidades, é comum no dia a dia ver mulheres usando véus coloridos na cabeça, com roupas bem-comportadas, longas e largas, algumas usando até o man-

Lugar onde Maria, a mãe de Jesus, teria vivido seus últimos dias

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Foto: Vitaly Titov & Maria Sidelnikova

em algum aeroporto brasileiro, tamanha a multiplicidade de rostos. No plano econômico, o crescimento turco é similar ao brasileiro, mas quando se olha o preparo do país em infraestrutura, as semelhanças acabam aí. Sétimo país mais visitado do mundo, a Turquia se prepara para receber bem os turistas, com excelentes estradas, portos e aeroportos e rede hoteleira, isso sem falar do jeito amistoso de receber. Aos poucos, do susto passei ao estranhamento e o espanto inicial

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de ter de mudar de cidade para um país que só vi pelos livros, agora dá lugar a mais curiosidade, à vontade de aprender mais e mais sobre esse mundo diferente, mas que tem raízes sólidas na história. De um país que liga o continente asiático à Europa, mas que não consegue entrar nesse grupo seleto do euro. Chego a bendizer a minha inquietação, que agora me abre portas a um conhecimento negligenciado nas aulas de história da escola.

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Foto: Mikael Damkier

A cidade vista do Bósforo O Estreito de Bósforo tem 30 quilômetros de extensão e separa a Ásia Menor da Europa, ligando o Mar Negro ao Mar de Mármara, pelo qual se chega aos mares Egeu e Mediterrâneo. Pelo estreito, acordos internacionais permitem que milhares de navios cargueiros acessem diariamente esses mares tão estratégicos para o comércio. Por ele, diariamente, milhares de turistas têm o prazer de contemplar os prédios deixados pelos impérios romano, bizantino e otomano. Uma

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O legado histórico está em cada canto da cidade”

aula de história ao ar livre, com monumentos que testemunham como o poder é passageiro. Testemunha de muitas batalhas pela tomada do poder na região, o Bósforo protegeu por séculos as fortificações de Constantinopla e, assim, manteve as ameaças longe da Europa, até a chegada dos otomanos, em 1453. A partir dali, Constantinopla passou a se chamar Istambul, cidade que hoje preserva as ruínas de um áureo período. O legado histórico está em cada canto da cidade. Impossível não tentar imaginar como foram as celebrações na Basílica de Santa Sofia (Sagrada Sabedoria), construída pelo imperador Justiniano, no século VI d.C, com mosaicos de ouro, com a maior doma do mundo, com toda aquela imponência. Mais parece um pedido de perdão do imperador por ter massacrado 30 mil pessoas no Hipódromo, local de entretenimento

durante o Império. Com a conquista otomana, a igreja foi transformada em mesquita e teve suas obras de arte encobertas por pinturas e textos do Alcorão. Atualmente, parte dos mosaicos da era bizantina está descoberta e pode ser admirada, em Istambul. As mesquitas são outra atração à parte. Do Bósforo, é possível avistá-las com seus imensos minaretes rumo ao céu, seja do lado europeu ou asiático. A mais famosa delas, a Mesquita Azul, é um deleite aos olhos. Única a ostentar seis minaretes, foi construída de frente para a Basílica Santa Sofia, no século 17, e atrai diariamente milhares de pessoas para contemplar, de dentro, suas extraordinárias domas e imenso lustre. Não menos importante e próximo a esses monumentos, está o Palácio de Topkapı, com seus imensos jardins e salas, a casa do sultão. valercultural


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ia Leocádio

A culinária turca é uma história à parte. Eles são a excelência nos mesês, ou entradinhas, como os designamos no Brasil. São tantos os tipos, que se não tomar cuidado, come-se apenas as entradas e não sobra espaço para o prato principal, que pode ser um kebab, um skender ou um cordeiro assado. Há restaurantes que não cobram pelas entradas, o que torna o exagero ainda mais tentador. Azeitonas, berinjelas, grão-de-bico, lentilhas, cebola assada e, principalmente, os pimentões, enchem primeiro os olhos. Um ingrediente que jamais pode faltar na refeição turca é o iogurte; é como a farinha para o amazonense. Eles gostam tanto de iogurte, que há uma bebida chamada airam à base desse derivado do leite, que

vende mais que refrigerante, de tão popular. Mas país mulçumano tem seus inconvenientes também na comida. Nada sério. Eles não comem carne de porco e, por isso, é preciso ter um canal próprio de pedidos em Istambul para poder comer carne de porco ou algum produto derivado; por exemplo, presunto e salsicha. Outro produto difícil de encontrar por aqui é o bacalhau, mas em compensação os peixes são uma delícia. Trazidos principalmente do Mar Negro, o levrek e çipura (se pronuncia tchipura) são os meus preferidos. Outra coisa: encontrar leite condensado é um desafio. Uma amiga me explicou que a base da sobremesa turca é o açúcar e por isso eles usam pouco leite nas sobre-

Foto: Ana Clá ud

Culinária de encher os olhos

mesas, que, por sinal, são deliciosas. A baklava com pistache e os famosos docinhos à base de açúcar, conhecidos em inglês como turkish delights, são sucesso absoluto. Isso sem falar nos folhados, entre eles o börek (que parece uma lasanha sem molho) e o gözleme (um pão aberto com recheio).

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Foto: Heitor Costa

literatura e folclore

Em Parintins, uma brincadeira de terreiro se transformou em espetรกculo midiรกtico Wilson Nogueira | jornalista

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O

primeiro registro da presença do boi-bumbá no Brasil é um violento e preconceituoso ataque ao folguedo. “Eu não conheço um tão tolo, tão estúpido e destituído de graça como o, aliás, bem conhecido bumba-meu-boi. Em tal brinco não se encontra um enredo nem verossimilhança: é um agregado de disparates”, escreveu o padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, no jornal O Carapuceiro, editado em Recife (PE), em 1840. No Amazonas, a notícia mais antiga da brincadeira, em Manaus, foi registrada no ano de 1859. O

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te do historiador Mário Ypiranga Monteiro: “Uma alegoria industrial é o funesto tipo, que está tomando vulto na Amazônia, apelidado erroneamente de festival folclórico, oficializado pelo governo estadual e municipal, e pela imprensa, em franco desrespeito ao condicionamento científico”. Em Parintins, desenvolveu-se, a partir de 1965, com a realização da primeira competição entre grupos folclóricos, um boi-bumbá que, com o decorrer dos anos, passou a combinar manifestações artísticas tradicionais e contemporâneas. Mantém-se, na brincadeira, o fundamento da morte e ressurreição do boi mais querido da fazenda, morto pelo peão Pai Francisco, comovido pelos apelos da sua mulher, a Mãe Catirina, gestante e desejosa da carne do animal. Assim, a tragi-

Foto: Andreas Valentin

viajante alemão Robert Avé-Lallamant, no seu livro Viagem pelo rio Amazonas, compara o cortejo a um arcabouço de boi (o simulacro do boi animal) a entrechos do carnaval parisiense, cujo desfile é visto das janelas pelas famílias da alta sociedade. O interesse do religioso e do viajante sugere que o boi-bumbá inquieta os intelectuais há muito tempo. Os primeiros estudiosos do folclore nacional o têm como uma das festas enraizadas na folgança do povo brasileiro. O folclore, nesse caso, caracteriza-se pela persistência dos valores tradicionais de uma comunidade e distanciamento da erudição. Logo, as mudanças no modo de se apresentar e se relacionar com o mercado, a partir da década de 1980, viriam a incomodar intelectuais ortodoxos do por-

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comédia veio a se transformar, por meio do ânimo criativo dos parintinenses, principalmente a partir dos anos de 1980, em um espetáculo lítero-cênico-musical de exaltação das culturas amazônicas.

Espetáculo

da logística da festa não impedem que uma multidão se acotovele nos barcos, nos aviões, nos bares e restaurantes, nos hotéis e no bumbódromo para assistir às três noites de espetáculo. Garantido e Caprichoso competem, com seus espetáculos, ao título de campeão do ano, conferido por um corpo de jurados formado por especialistas em culturas e artes de Estados escolhidos em acordo entre os dirigentes das duas agremiações. Os bois-bumbás desenvolvem temas por meio de

Foto: Wilson NOgueira

Foto: Wilson NOgueira

Os protagonistas da versão espetacular do bumba-meu-boi nordestino são Garantido e Caprichoso, que se apresentam, no bumbódromo, no último fim de semana de junho. Estima-se que, em média, Parintins, com 104 mil habitantes, receba nos três dias de festival ao menos 50 mil pessoas. A cidade, localizada numa das ilhas do arquipélago Tupinambarana, na margem direita do rio Amazonas, na região do Baixo Amazonas, só tem ligação com outras cidades por meio de barcos ou aviões. Os percalços

O boi-bumbá desperta pesquisa em diversas áreas”

performance teatral, com toada (letra e música), danças coletiva e individual, cenários e efeitos de iluminação e sonorização. Não faltam ideias para conceituar a conjunção de tantos gêneros artísticos num só espetáculo: carnaval amazônico, ópera popular, ópera cabocla, teatro de arena, teatro de revista amazônico etc. O certo é que as experiências heterodoxas do folclore parintinense, em desacordo ao folclorismo, gerou o boi-bumbá de Parintins, fenômeno sociocultural originário da ilha Tupinambarana. O boi-bumbá em sua versão parintinense-amazônica tem despertado o interesse de intelectuais e pesquisadores dos mais variados campos artísticos e acadêmicos, tais como da literatura, artes plásticas e visuais, antropologia, sociologia, história, economia etc. Seminários, monografias, dissertações, teses e

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ensaios, muitos dos quais disponíveis na forma de livros (confira relação na página ao lado), têm como tema de análise o boi-bumbá de Parintins. Guardadas as devidas proporções, o Festival de Parintins desperta tanto interesse dos pesquisadores quanto o carnaval carioca na sua modalidade escola de samba.

Há, em Parintins, uma festa de boi articulada com o mercado”

o boi-bumbá de Parintins foi absorvido por um processo criativo que o deslocou do folclore para fenômeno da cultura popular contemporânea. “Como espetáculo é algo mostrado para ser visto. Motiva, portanto, um olhar participante”. Um olhar cativado por aquilo que assinala o autor. O doutor em antropologia do Departamento de Antropologia da Ufam, Sérgio Ivan Gil Braga, no seu livro-tese O boi-bumbá de Parintins, acentua que os bumbás parintinenses reencenam o temas das três raças formadoras, da guerra justa e da morte e ressurreição, nos quais permeiam os signos de identidade. “A versão desse mito de origem (das

três raças) se utiliza da imagem do índio e da Amazônia, para promover a imagem do caboclo como signo de identidade regional amazônica. De Parintins ela se projeta para outras localidades, sobretudo Manaus, que se identifica regionalmente com a festa, mas também para outros Estados e quem sabe para o mundo...”, escreve o antropólogo. Para a pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Maria Laura de Castro Viveiros Cavalcanti, autora de Festa na floresta – o boi-bumbá de Parintins, o folguedo parintinense apresenta um novo indianismo, caracterizado pela valorização dos indígenas por

Em 2000, a Universidade Federal do Amazonas – Ufam, sob a coordenação da antropóloga Selda Vale, realizou, em Manaus, o seminário O boi-bumbá na Universidade. Naquela época, foram catalogados três teses de doutorado, três dissertações, 14 monografias, quatro projetos de pesquisa e cinco livros publicados. Certamente a lista hoje é bem maior e está acrescida de estudos realizados em universidades de outros Estados. Os intelectuais e pesquisadores apresentam o boi-bumbá de Parintins por vozes múltiplas e polêmicas. Compreendê-lo na sua forma multifacetada tornou-se um desafio para os estudiosos das culturas contemporâneas. Há, em Parintins, uma festa de boi articulada com o mercado, porém com um pé no folguedo do passado. O professor doutor de Estética e História da Universidade Federal do Pará (UFPA) João de Jesus Paes Loureiro, no seu livro Culturas Amazônicas – uma poética do imaginário, entende que 36

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intermédio da contextualização das suas culturas no mundo contemporâneo. Os saberes e o imaginário das etnias amazônicas antes desprezados e ridicularizados ganham importância no cenário de desafios das urgências ecológicas e multiculturais. Destacam-se no espetáculo, por exemplo, as danças ritualísticas e personagens do imaginário indígena protetoras das florestas e dos rios. Por entender que a Amazônia foi inventada para estar ligada ao mercado internacional, o escritor e ensaísta Márcio Souza acentua que os parintinenses desenvolveram um espetáculo mais relacionado com a indústria cultural do que com

a cultura tradicional ou rústica. Mas salienta o escritor, em um dos capítulos do livro História da Amazônia: “O Festival de Parintins, mesmo com sua vocação para o gigantismo operístico, tem seu caráter tradicional e folclórico ressaltado pelo fato de que cada uma das versões anuais é concebida nos parâmetros do boi-bumbá típico, mas com uma releitura distinta, fiel apenas ao desejo de cada um dos bumbás envolvidos de surpreender o outro e arrancar-lhe a primazia da surpresa”. Como bem sintetizou Sérgio Ivan, em título de artigo publicado na revista Somanlu, o boi-bumbá de Parintins “é bom para pensar”.

Doze livros sobre o tema

1. Boi-bumbá: festas, andanças, luz e pajelanças/ Funarte, 1995

Autor: Simão Assayag

2. Cultura Amazônica: uma poética do imaginário/ Cejup, 1995

Autor: João de Jesus Paes Loureiro

3. Um pessoal garantido / Ponto de Vista, 1998

Autores: Andreas Valentin e Paulo José Cunha

4. Caprichoso: a terra é azul / Ponto de Vista, 1999

Autores: Andreas Valentin e Paulo José Cunha

Fotos: Wilson Nogueira

5. Festival na floresta: o boi-bumbá de Parintins / Funarte, 2000

Autora: Maria Laura de Castro Viveiros Cavalcanti

6. O boi-bumbá de Parintins/ Edua, 2001

Autor: Sérgio Ivan Gil Braga

7. A revelação histórica do folclore parintinense / Ed. do Autor, 2005

Autor: Raimundinho Dutra

8. Contrários: a celebração da rivalidade nos bois-bumbás de Parintins / Ponto de Vista, 2005

Autor: Andreas Valentin

9. Boi-bumbá: evolução/ Valer, 2007

Autor: Allan Rodrigues

10. Festas Amazônicas: boi-bumbá, ciranda e sairé/ Valer, 2008

Autor: Wilson Nogueira

11. Na ilha do boi de pano: uma reportagem para além do dogma da objetividade do jornalismo /2009, www.teses.usp.br/

Autora: Patrícia Sales Patrício

12. História da Amazônia / Valer, 2009

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Autor: Márcio Souza

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política pública

Método que distribui recursos públicos a ações culturais fortalece a diversidade artística no país Maurília Gomes | jornalista

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Foto: Aline Fidelix

Espetáculo Aniquilar a la Niña de Rodrigo Gomes e Florencia Gleize na Segunda Mostra Internacional de Videodança da Amazônia contemplada no prêmio Petrobras Cultural

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esde que o Brasil incluiu a cultura em seu macroplanejamento, com a criação do Ministério da Educação e Cultura, em 1953, as políticas culturais transitam entre entendimento de que Estado é agente financiador ou mediador para o mercado. Nos últimos dez anos, no entanto, prevaleceu o investimento estatal em projetos por meio de seleção pública. Essa prática suscita preocupações acerca de certo paternalismo. Os editais representam uma forma democrática de distribuição de recursos públicos a ações culturais no país, porque, por meio de regras claras e critérios objetivos, permitem maior transparência ao uso do dinheiro público. A medida contribui para o reconhecimento e fortalecimento da diversidade cultural do país. O jornalista e artista visual Sávio Stoco afirma que as políticas cul-

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turais implementadas pelo Governo Federal atendem às diferenças regionais. “Além de regionalizar, elas têm criado iniciativas de projetos com recursos mais modestos e mais adequados à realidade de produtores culturais em início de carreira ou, até mesmo, àqueles que não necessitam de grandes aportes”, destaca. Outro fator importante é a ampliação do acesso à cultura em diferentes campos sociais e o auxílio aos produtores e grupos culturais. “Os editais proporcionaram ganhos quanto à distribuição por setores, o profissionalismo de quem apresenta seus projetos, pois saímos um pouco da política do ‘pires na mão’. Porém, ainda temos muito para avançar”, avalia João Fernandes, diretor do grupo de teatro e dança Cia. de Idéias, que atua em Manaus desde 2007. Contudo, os editais têm gerado uma dependência no mercado

Saímos um pouco da política do pires na mão mas ainda temos muito para avançar”

cultural. Além disso, a ausência de um calendário fixo para a publicação dos editais e os atrasos nos pagamentos aos selecionados dificultam a atuação no setor. De acordo com Stoco, é complicado esperar apenas por verbas de editais, pois há muita instabilidade. Assim, a busca por investimento fora da esfera pública continua sendo uma alternativa bastante utilizada pelos artistas e produtores. Resultados que não saem como o espera39


Foto: Sandro Marandueira

Foto: Aline Fidelix

João Fernandes e Sávio Stoco

do, verbas que atrasam, orçamentos que não saem como o planejado, entre outros problemas. “Acho necessário que os artistas pensem em outras formas para se manterem; pelo menos é isso que estou buscando via acadêmica (mas, claro que há outras)”, ressalta. Essa também é a opinião de Fernandes, que considera impossível sobreviver no mercado cultural apenas com verbas destinadas em editais públicos e destaca a importância da busca de outras formas de financiamento. “Na Cia. de Idéias, por não termos essa certeza das publicações nem dos prazos de pagamentos, que muitas vezes atrasam, buscamos outras fontes de capital de giro para realizarmos as atividades sem prejuízo para o público e o andamento da companhia”, explica o diretor.

Alternativas Assim, os agentes culturais têm procurado agregar valor aos seus produtos, a fim de facilitar a obtenção de outras fontes de finan40

ciamento, participando e criando espaços alternativos de produção cultural. Esses agentes precisam ainda buscar visibilidade e reconhecimento do público e, também, do empresariado, que tem sido outra importante fonte de recursos para o setor. Para Michelle Andrews, gestora da Casa Fora do Eixo Amazônia, os agentes culturais precisam buscar outros mecanismos para a sustentabilidade a curto prazo, a fim de custear o financiamento das atividades e evitar cair na política paternalista dos editais governamentais. Essa também tem sido uma das alternativas adotadas pela Cia. de Idéias. “Precisamos ser vistos pela população, empresários e governantes. Por isso, a cada dia procuramos criar novos produtos, como a criação da revista Casarão de Idéias, o Mova-se festival, e dialogar com outros Estados do Brasil, para potencializar nossas ações”, enfatizou. Se os editais não são suficientes para atender à demanda do setor, qual seria, então, o caminho a ser adotado pela política cultural no Brasil para os próximos anos? A intensificação do uso de editais ou a diversificação dos incentivos, como a renúncia fiscal, investimento direto, entre outros modelos discutidos pelo Sistema Nacional de Cultura?

Espetáculo Cor-poregr@fico de Odacy de Oliveira no Miva

A opinião geral entre os agentes culturais é a de que não se trata de uma ou de outra, mas da diversificação das opções, porque eles partem da perspectiva de que aumentando o investimento também se ampliam as condições de produzir e potencializar a economia da cultura. “Acho importante o empenho em fazer com que a participação em editais seja ampliada. Suspeito que essa prática ainda não faça parte da rotina de muitos produtores”, opina Stoco. valercultural


Caminho das pedras

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Foto: Luana Záu

Michelle Andrews, gestora da Casa Fora do Eixo Amazônia e fundadora do Coletivo Difusão, explica que não existe uma fórmula que possa garantir uma seleção nos editais, mas táticas que podem facilitá-la. “É muito importante ficar sempre atento às instituições que trabalham com frequência seus editais, tanto as governamentais, como Funarte, MinC, Biblioteca Nacional, quanto as privadas, como Petrobras, Vivo, Natura, Vale etc. Além disso, é importante o investimento em qualificação: domínio das principais ferramentas do setor, como Salic e Sincov [programas de cadastro

de projetos do Governo Federal] e buscar informações on-line etc. Um bom portifólio, a prática e os estudos são a principal garantia de uma projeto. É muito importante entender que ter os editais como fonte de financiamento faz parte de estratégias de longo prazo por conta dos percalços e contratempos que surgem ao longo do processo. Com o tempo, a instituição vai dominar tão bem o processo que poderá elaborar os próprios editais, como estamos fazendo dentro do Fora do Eixo”, conclui.

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cinema

Do romance A Selva de Ferreira de Castro nas versões cinematográficas de Márcio Souza e Leonel Vieira Marcus Stoyanovith | jornalista

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às telas N

ão é de hoje que obras literárias são adaptadas para o cinema e acabam provocando outra maneira de contar a mesma história. Esse fascínio da transformação de uma história contada em livro para o cinema, ou teatro, sempre contagiou autores,

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diretores e leitores/expectadores. Esse é o caso de A Selva, de José Maria Ferreira de Castro, romance publicado em 1930, que inspirou a produções homônimas. Dois filmes de um livro que rendeu uma leitura bem própria de cada diretor, cujas épocas, técnicas e orçamentos são bem distintos.

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O romance pode até ser ficção, mas a vida que motivou a sua existência, não. O português se inspirou no que vivenciou na selva amazônica, na área do rio Madeira, desde a ascensão até o início do declínio do ciclo da borracha. Um período de conflitos entre índios e seringalistas, coronéis da borracha, que escravi-

zavam caboclos e nordestinos na extração do látex e os mantinham como prisioneiros de uma dívida impagável. Desse ambiente nasceu a inspiração para o romance, ou como quis descrevê-lo o seu autor, um diário de um inferno verde. Um português monarca, expulso pelo poder republicano, é socorrido por um tio pobre em Belém-PA, que paga a um capataz para levá-lo ao Seringal Paraíso, onde deveria arrumar a própria sobrevivência. O contraste de monarca para seringueiro é tão feroz quanto o ambiente da selva. Mas ele não perde a sensibilidade e guarda toda a nova experiência para vencer na selva. Lá, se apai-

xona pela dona YaYá, esposa do guarda-livros do Coronel, assassinado por um escravo que ateou fogo em sua casa. O livro foi traduzido para vários idiomas e transformou José Maria Ferreira de Castro num dos escritores portugueses mais lidos em todo o mundo. A Amazônia, cenário da trama, também passou a ser comentada em todos os continentes. E A Selva ainda motivaria outros artistas que, de alguma forma, têm em seu DNA registrado na história: Márcio Souza é amazonense e diretor do primeiro filme inspirado no romance, em 1970, quarenta anos depois do seu lançamento; e Leonel Vieira é português e diretor do segundo filme, finalizado em 2002, setenta e dois anos depois do livro rodar o mundo.

O romance pode até ser ficção, mas a vida que motivou a sua existência, não”

Cenas da produção de Márcio Souza. Primeiro filme inspirado no romance

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Fotos: Divulgação

Ferreira de Castro, Márcio Souza e Leonel Vieira e suas versões de A Selva

As adaptações Na Selva, filme roteirizado e dirigido por Márcio Souza, deve-se considerar as dificuldades orçamentárias, técnicas e de produção para

a realização desse ou de qualquer filme no Amazonas, naquela época. Evidencia-se, em razão desse quadro, a ousadia de se traduzir um romance que foi tratado de forma paralela no próprio livro que tem como foco principal a aventura de um monarca destituído de todos os seus valores sociais e financeiros, restando-lhe apenas a dignidade, enfrentando e vivenciando uma selva hostil e bárbara na visão civilizada; um lugar onde a lei era a do Coronel do seringal e a satisfação dos prazeres, muitas vezes, ficava a cargo de uma égua.

Esse aspecto o filme deixa claro. Ao encerrá-lo, Márcio Souza justifica o assassinato do Coronel pelo escravo Estica, sempre humilhado, com a interpretação do próprio escravo, cujas falas surgem apenas no final: “A gente mata quem não gosta de liberdade” – um final mensageiro, provavelmente, em razão do clima dos anos de 1970. Na Selva, filme dirigido por Leonel Vieira, com uma produção bem mais sofisticada, e uma linguagem fotográfica mais apurada, o roteiro mostra, de cara, um ataque de índios a um seringueiro, buscando

Imagens da versão de Leonel Vieira, finalizada em 2002

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no ambiente selvagem o foco para a história. Um ambiente com fatos bem mais detalhados do que no primeiro filme, principalmente, nas passagens que justificam o mundo selvagem, como: o assassinato cometido pelo personagem de José Dumunt e, na sequência, o próprio assassinato pelos capatazes do Coronel, atribuída aos índios pelo seringueiro mais experiente na lida, encarnado por Chico Diaz. Outras passagens, mais detalhadas no segundo filme, foram: a extração do látex na seringueira, deixando claro que deveria haver alguma habilidade para tal, e na formação da própria pela (a borracha embalada em forma oval) quando a fumaça intoxicava o seringueiro; o piano na casa do Coronel, um contraste com os rifles sempre às mãos e o chicote à disposição; a fuga e o resgate dos seringueiros pelos capatazes; a tortura e, por fim, o detalhamento do próprio subnúcleo da trama romanceada, o amor entre o já então contador, não mais seringueiro, Alberto e a dona Yayá, esposa do guarda-livros (contador) Guerreiro, vivido por Paulo Gracindo Jr. Mesmo sendo fiel ao livro que ressalta mais o amor platônico entre Alberto e YaYá, é provável que a censura dos anos de 1970 tenha inibido o diretor Márcio Souza a estabelecer, como o fez Leonel Vieira, a diferença entre uma paixão platônica e um amor consumado, rodando uma cena de sexo entre os aman-

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A selva nunca mais saiu do meu coração”

Detalhes do set de filmagem do longametragem de Leonel Vieira, transformado em museu

tes. Numa outra sequência fica marcada a diferença de leitura entre os diretores. Na comemoração de São João, o romance descreve a brincadeira do boi-bumbá, muito bem detalhado por Márcio Souza. Mas o diretor português prefere o forró como representação. No final do seu filme, logo após o incêndio criminoso que matou o coronel Juca Tristão, o diretor Leonel trabalha como ponto de finalização

não a fala do escravo Estica, que apesar de querer não chegou a ser apenado por seu crime, mas, sim com a fala da narrativa em off (apenas uma voz por trás da imagem) que está presente em todo o roteiro, numa alusão a um diário, como classificou o livro o próprio Ferreira de Castro. Na narrativa é dito que: “A selva nunca mais saiu do meu coração”, pensamento do Alberto, o personagem central do romance. valercultural


Fotos: Heitor Costa

Detalhes

Fotos: Stephane Bidouze

Mas, afora o jeito de contar a história de cada diretor, a partir da condição financeira, profissional e tecnológica para as produções de cada filme, sem falar da distância entre as épocas em que foram

rodados, os roteiros seguiram a mesma estrutura, fiel às principais passagens da história, mas sem aprofundamento nos detalhes expostos no próprio desenvolvimento narrativo do livro. Ambos deixaram de lado alguns detalhes importantes, como o

aprendizado do ex-monarca com o comportamento da vida da própria selva. Ele observa que as orquídeas são parasitárias que vivem da seiva de outras árvores que alcançam o sol para alimentá-las; espanta-se, também, com a exuberância da fauna e da flora, com o clima quente úmido, com presença das onças, jacarés e com os ataques dos mosquitos. Essa riqueza de detalhes se deve, segundo analistas, porque A selva é uma autobiografia do Ferreira de Castro, daí a admiração e a luta pela sobrevivência da personagem Alberto, no romance. Uma vez que o livro continua despertando curiosidades, é bem provável que um dia algum pesquisador descubra que o coronel Juca Tristão existiu de fato e tenha morado bem naquelas bandas onde Ferreira de Castro escolheu para escrever seu famoso livro, à luz de candeeiro. Mas isso é para outro filme.

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“O filme de Márcio Souza vai mais a fundo nas questões postas pelo romance. Ainda que careça de alguns elementos de ordem estética, o filme dirigido por Márcio Souza propõe uma leitura mais autêntica e menos leviana sobre o ciclo da borracha. O de Leonel se prende a um exotismo que se estende do texto para os planos sequência, uma tentativa de sobrepor as lentes sobre a trama, a fotografia desfocada da realidade narrativa”.

Márcio Braz, ator, diretor e membro do Núcleo de Antropologia Visual (Navi) da Ufam.

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As obras literárias sempre atraíram cineastas do mundo inteiro e de várias correntes do neorrealismo italiano à novelle vougue francesa, até Hollywood se rendeu aos livros, produzindo, entre outros, clássicos como Ben Hur (Lewis Wallace). No Brasil, O Primo Basílio (Eça de Queirós), Macunaíma (Mário de Andrade), a A Dama do Lotação (Nelson Rodrigues); Elite da Tropa (Rodrigo Pimentel, Luiz Eduardo Soares e André Baptista) que nos cinemas ficou Tropa de Elite; O que é Isso, companheiro (Fernando Gabeira), Memórias póstumas de Brás Cuba (Machado de Assis), Cidade de Deus (Paulo Lins) todos foram transformados em filme de bom gosto, tecnicamente corretos e de algum sucesso de bilheteria.

O historiador Abrahim Baze lançou, em 2012, pela Valer Editora, a terceira edição de Ferreira de Castro – Um imigrante português na Amazônia. O livro, sobre a vida e a obra do autor de A Selva, além de revista e ampliada, conta com um DVD do longa-metragem dirigido por Márcio Souza em 1972. A cópia foi restaurada a partir de originais em película 35mm.

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literatura e esporte

Tite,

o conselheiro literário Campeão da Libertadores 2012, técnico do Corinthians costuma indicar livros aos jogadores Leandro Curi | jornalista

O

s suspenses da inglesa Agatha Cristie nortearam sua adolescência e despertaram a paixão pela leitura. Mas foram as autobiografias e os livros sobre (ou de) grandes esportistas que conquistaram os olhos de Tite. Campeão da Copa Libertadores da América de 2012 com o Corinthians, o técnico foge do senso comum entre os colegas de profissão. E com a mesma intensidade que comanda um treinamento, ele se dedica a esse hábito.Em uma era cada vez mais ligada à tecnologia e à facilidade das redes sociais, Tite foge dos 140 caracteres do Twitter e mergulha em páginas e mais páginas de livros. Costuma ler um atrás do outro. Sem pausa. Na contramão

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da superficialidade, muitas vezes inerente ao futebol, o técnico gosta de se aprofundar mais nos pensamentos. Afinal, desde os tempos de escola ele é provocado a isso. “Desde adolescente tenho o hábito de leitura. Fui incentivado na escola, fascinado pela leitura dos livros de Agatha Cristie e impressionado também pela capacidade que um professor meu tinha de argumentação e convencimento. Um dos livros que mais gostei nessa época foi ‘Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas’, do Dale Carnegie”, explica o comandante corintiano.

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Fotos: Marcos Ribolli

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Perfil

Fotos: Marcos Ribolli

Gaúcho de Caxias do Sul, Tite nasceu no dia 25 de maio de 1961. Aos 51 anos, o atual técnico do Corinthians acumula em seu currículo muitas vitórias. São nove títulos como técnico. Os principais deles foram a Libertadores de 2012, com o Corinthians, o Brasileirão do ano passado, também pelo Timão, a Copa Sul-Americana de 2008, pelo Internacional, e a Copa do Brasil de 2001, no comando do Grêmio. Como jogador, Tite foi volante. Jogou de 1978 a 1989. Sua carreira foi curta em razão de um problema no joelho. Em sua carreira de atleta, ele passou por clubes como Caxias, Esportivo-RS, Portuguesa e Guarani, onde foi vice-campeão brasileiro de 1986, perdendo a final para o São Paulo. Há mais de 20 anos atuando como técnico, Tite passou pelos seguintes clubes: Guarany de Garibaldi, Caxias, Veranópolis, Ypiranga de Erechim, Juventude, Grêmio, São Caetano, Atlético-MG, Palmeiras, Internacional, Corinthians e Al-Ain e Al-Wahda, ambos dos Emirados Árabes Unidos.

Fazer amigos e influenciar pessoas, realmente, tem muito a ver com a profissão de Tite, que foi jogador de futebol de 1978 a 1989. Logo que encerrou a carreira, precocemente por conta de um problema no joelho, ele enveredou na carreira de treinador. Fez, sim, muitos amigos. E, claro, influenciou jogadores. Do contrário, não teria chegado tão longe nesses mais de 20 anos. Prática comum no estilo Tite de treinar, as indicações de leitura aos jogadores ficaram ainda mais evidentes quando ele aceitou dirigir novamente o Corinthians, segundo clube mais popular do Brasil. Seja em momentos decisivos ou mais delicados, o treinador sempre tem uma sugestão motivadora retirada de um livro. “Presenteá-los com um livro ou fazer alguma citação de experiências semelhantes são, por mim, bastante utilizados. Esta prática vem desde o início da carreira”. “Nunca Deixe de Tentar”, de Michael Jordan, ex-jogador de basquete norte-americano, é um dos livros de cabeceira de Tite. Principalmente quando ele quer tirar algum ensinamento ou conselho para os seus jogadores. Embora acredite que esse hábito é muito importante dentro dos grupos que comanda, o treinador não tem a pretensão de fazer com que os atletas leiam mais.

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“O hábito da leitura é muito individual. Mas os livros falando de esporte, em uma linguagem clara, direta, são mais aceitos”, acrescenta o técnico do Corinthians. Dono de um estilo bem diversificado de leitura (aceita sugestões até mesmo da filha Gabriele, ainda adolescente), Tite não acredita que a era da internet tenha afastado o hábito de leitura dos brasileiros. Por outro lado, o técnico do Corinthians aposta na evolução da educação como melhor caminho para convencer as crianças e os jovens a tomarem o gosto por ler. “A melhoria da educação do país, de forma geral, vai naturalmente aumentar o nível cultural, já com a leitura inserida nesse contexto”, afirma Tite. Nada mais natural do que um fã de livros como o técnico querer escrever um livro. A ideia ainda passa por um processo de amadurecimento na cabeça de Tite. O tema, no entanto, é certo: futebol. Quer mais detalhes? Ele não dá! “Vou escrever, sim, mas terei dificuldades com a minha verdade”, finaliza o técnico, mostrando que gosta mesmo dos suspenses de Agatha Cristie.

Seleção de Tite • Cestas Sagradas, de Phil Jackson

Mourinho, a Descoberta Guiada, de Luís Lourenço

Valdano, Sueños de Futbol, de Carmelo Martin

A Linguagem das Emoções, de Paul Ekman

O Enigma da Preparação Física de Futebol, de Elio Carraveta

Hablemos de Futbol, de Roberto Perfumo

Nunca Deixe de Tentar, de Michael Jordan

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TÍTULOS COMO TÉCNICO Copa Libertadores da América 2012, Campeonato Brasileiro de 2011, Copa SulAmericana de 2008, Copa Suruga Bank de 2009, Campeonato Gaúcho da Segunda Divisão em 1993, Campeonato Gaúcho de 2000, 2001 e 2009 e Copa do Brasil de 2001.

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regionalismo

Legítimo dizer do caboclo O segredo do sucesso de Amazonês – expressões e termos usados no Amazonas –, o livro mais vendido na 1.ª Bienal do Livro do Amazonas

Liége Albuquerque | jornalista

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H

á definições tão hilárias no Amazonês – expressões e termos usados no Amazonas, do professor Sérgio Freire (Editora Valer), que você esquece que está consultando uma palavra e desanda a ler tudo como se estivesse com um bom livro de comédia. A obra é feito para consulta, ou seja, um dicionário para entender o que significam algumas expressões curiosas e enraizadas no dizer do legítimo caboclo amazonense. A consulta era “embiocar”, daí encontra-se o “e olhe olhe” e o indefectível “égua” e não dá para deixar o livro de lado. O verbete “égua” vem com uma explicação bastante esclarecedora, já que quem convive com típicos amazônidas ouve a expressão para tudo quanto é coisa. “Égua pode ser usado em várias situações. Tomou um susto: ‘égua!’. Alguém faz algo que você não entendeu: ‘égua...’. Uma situação estapafúrdia? ‘Éééééguaa, ma-

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ninho...’. A entonação faz parte do sentido”. Não à toa foi o mais vendido na 1.ª Bienal do Livro do Amazonas, que ocorreu em Manaus, em abril deste ano. “Comprei para levar para meus amigos em São Paulo, onde estudo, que adoram minhas regionalidades no falar”, disse a estudante de Design Larissa da Mata Souza. “Nossas diferenças no falar, pelo menos entre meus amigos, não é motivo de gozação, embora a gente

Comprei para levar para meus amigos em São Paulo, onde estudo, que adoram minhas regionalidades no falar” 55


Fotos: Heitor Costa

dê muita risada, mas o sentimento é de curiosidade mesmo”. O livro surgiu de um trabalho que Sérgio Freire fez no doutorado, na disciplina Sociolinguística, e o artigo que deu origem a ele está na primeira parte do livro. Em sua introdução, o professor destaca que, por tantas diferenças, alguns linguistas já ousam chamar o português de língua brasileira. “São línguas com materialidades tão distintas que, ao instalar um programa no computador, por exemplo, há a opção para ambos os idiomas como se fossem dois, porque de fato o são”, diz. E essas fronteiras linguísticas são muito tênuas e móveis: o amazonês se mistura ao falar paraense, ao gauchês, ao baianês. Mesmo assim, não impediu que o autor recebesse reclamações de gente de outros Estados requisitando a paternidade dos verbetes. “É bobagem reclamar a naturalidade dos termos. Recebi até um e-mail meio agressivo, como se eu houvesse roubado uma coisa sua, de um paraense. Ele não deixa de ter razão. Também era linguagem dele, além de minha”, destaca. “O dicionário não é para dizer que isso é nosso, mas que é significativo aqui”.

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É bobagem reclamar a naturalidade dos termos”

Coleta Para compor o dicionário, o autor coletou dados nas seis zonas geográficas de Manaus. O interior foi parcialmente coberto com ajuda

CURIOSIDADE

O autor usa o nome de amigos e familiares em vários verbetes. Como na palavra “a própria”, onde brinca com o nome da irmã, Ana Paula Freire. “A Ana Paula comprou um perfume francês e chegou aqui se sentindo a própria”. Em tempo: a própria significa, em amazonês, a tal, a boa, a melhor.

de amigos ou parentes que moram nos municípios, em e-mails. O autor já estuda uma segunda edição, certamente mais rica, com expressões do interior, já que a caixa de e-mail do autor está sempre cheia de colaboradores anônimos. Há exemplos de como se chama o “sacolé” dos paulistas no Amazonas: em Parintins é “flau”, mas em Manaus é “din-dim”. Há ainda a possibilidade de a segunda edição ser trabalhado um dicionário etimo-

EM NÚMEROS

2.000 O dicionário tem em torno de dois mil verbetes, distribuídos em 109 páginas.

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lógico. “Mas é algo que demanda uma equipe, provavelmente nosso grupo de pesquisa na Universidade Federal do Amazonas (Ufam) assumirá essa tarefa”. Na pesquisa, o professor detectou que a predominância da linguagem do amazonês na capital é mais percebida nas áreas de menor poder aquisitivo e de menor acesso aos bens sociais. Curiosamente, a identificação positiva aparece muito mais nos falantes de uma faixa econômica mais privilegiada e, a negativa, mais comuns entre os falantes nas zonas mais pobres. “Apesar de fazer uso da linguagem local com mais frequência, ser identificado como ‘caboco’ traz imediatamente uma sensação de negação identitária, como se essa identidade ‘ruim’ devesse se apagada ou dissociada de si”. O recado na linguagem padrão é: “Não é bom falar como eu falo porque isso lembra que eu sou o que eu sou,

morador da periferia sem acesso aos aparelhos sociais”. Sérgio levanta ainda a necessidade de a história das raízes do falar caboclo precisar ser preservada e ensinada em sala de aula para não morrer. “Ao aluno deve ser propor-

cionado o acesso à língua padrão e cabe à escola essa experiência. É pela língua padrão que ele acessa bens culturais que ampliam seu espaço de cidadania. A escola não deve se furtar a tal tarefa sob pena de ser uma escola excludente”.

Sérgio Freire, um sociolinguista interessado no amazonês

FICHA TÉCNICA

Título: Amazonês – expressões e termos usados no Amazonas – 2.ª ed. Autor: Sérgio Freire Editora: Valer Gênero: Dicionário Sinopse: O livro traz expressões populares no linguajar tradicional do caboclo, trazido para a capital e difundido pelo país. Tem termos enriquecidos com frases de exemplos bastante elucidativos e

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engraçados, como no verbete “Ficar de bubuia: ficar sem fazer nada, ficar flutuando na água. ‘E aí, Zé, nadando um pouco?. Não. Tô só aqui de bubuia um pouquinho”.

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literatura

A antiepopeia Marcos Frederico Krüger | professor e escritor

E

scrito na cidade de Ega (atual Tefé), pelo militar português Henrique João Wilkens, em 1785, o poema épico Muraida não apenas inaugura a literatura que, a partir de então, se produziu no Amazonas, como também apresenta e defende a atuação do colonialismo contra as populações indígenas. Trata-se, na verdade, de um poema épico, não de uma epopeia, posto o texto de Wilkens não trabalhar motivos enraizados na memória popular nem tratar de um herói excepcional, que se destaque por suas quali-

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dos dades nos combates ou pela nobreza de caráter. De que trata, afinal, o poema do militar luso? Trata, segundo o que ali se expressa, da pacificação e cristianização dos índios muras, que povoavam, originalmente, o rio Madeira, mas que, perseguidos pelos colonizadores, buscaram refúgio no Solimões. Podemos, no entanto, traduzir essa “verdade” em outras palavras: a Muraida trata da aculturação e escravização dessa etnia. Durante a colonização, os portugueses enfrentaram sérias resistências da população autóctone. O exemplo mais significativo foi a revolta de Ajuricaba, herói dos manaus, ocupantes do rio Negro, na primeira metade dos anos 1700. Já os muras não davam trégua aos brancos em outras partes do território. Como característica marcante da obra de Wilkens, salientamos o fato de ela ser um poema camoniano, como o foram outros poemas épicos pertencentes ao cânone da literatura brasileira: Prosopopeia, de Bento Teixeira, datado de 1601, e valercultural

Caramuru, do frei José de Santa Rita Durão, de 1781. Ser camoniano significa, inicialmente, obedecer à estrutura do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões. As estrofes possuem oito versos e as rimas se dispõem segundo o esquema abababcc (a chamada oitava rima). A medida dos versos também é padronizada: são decassílabos, quase sempre heroicos. Quanto ao desenvolvimento do enredo, a Muraida é quase fiel ao texto “original”. Assim, começa com uma Proposição, contida na primeira estrofe (Camões faz a sua nas três estrofes iniciais). Depois, vem a Invocação (estrofes 2 e 3). Se o poeta do Renascimento invoca as

Tágides, musas do rio Tejo, Wilkens é bem menos criativo, pedindo o favor da inspiração a Deus (ou ao Espírito Santo): Mandai raio da Luz, que comunica A entendimento, acerto verdadeiro, Espírito da Paz! Em seguida, começa a Narração propriamente dita. Falta ao poema amazônico o oferecimento, que no texto de Camões, vindo antes da parte narrativa, se situa entre as estrofes 6 e 18, do Canto I. Na Muraida, o Oferecimento está fora

Vista da cidade de Tefé retratada por Edouard Riou para a edição Le Tour du Monde, Paris, 1867

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Capa da edição de 1993

do texto, constando do que podemos definir como uma extensão do título. Portanto, logo após a Invocação, o poema de Wilkens começa a narração, que prossegue até o Epílogo, o qual pode ser situado apenas na última estrofe (em Camões, consta das estrofes 145 a 156 do Canto X). Outra quebra – além da falta do Oferecimento – em relação às diretrizes “impostas” por Os Lusíadas se verifica numa estrofe que precede cada um dos seis cantos, à qual o autor chama de argumento. Trata-se de uma espécie de resumo do que será desenvolvido naquele canto. A falta da matéria épica fez o texto sobre os muras ser bastante reduzido: Os Lusíadas compõem-se de 1.102 estrofes e 8.816 versos; a Muraida, de 134 estrofes e 1.072 versos. Wilkens foi também buscar na fonte camoniana a inspiração para alguns episódios de sua narrativa. Assim, o Anjo que desce à Terra, a fim de pregar o cristianismo entre os índios, assume a forma de um mura. Para melhor convencer o índio a quem aparece, ele se transmuda em um rapaz que fora vítima fatal do ataque de um jacaré: Despojo reputado, que do injusto Fado, alimento estava destinado, Dum Crocodilo enorme, e devorado. 60

Em Os Lusíadas acontece episódio semelhante: quando os portugueses estão na costa africana, o deus Baco assume a forma “dum Mouro, em Moçambique conhecido” (Canto I, est. 77). Com tal disfarce, influenciou o régulo, com o objetivo de que ele destruísse os navegantes. Na epopeia do Gama, quando os nautas estão prestes a se fazer ao mar, aparece o Velho do Restelo, que impreca contra os descobridores. Camões representa, nesse episódio, as forças conservadoras, aquelas que se mantinham presas a um passado que a descoberta do caminho marítimo para as Índias iria definitivamente sepultar (Canto IV, est. 94-104). Algo similar acontece na Muraida, quando o evangelho está sendo pregado aos índios: um ancião, preso aos costumes ancestrais da tribo, se levanta e protesta contra as palavras do orador (Canto Terceiro, estrofes 16 a 21): Mas entre os Anciões, um Velho encosta A ressecada mão, com gesto raro, Na negra face adusta, e enrugada, Estremado responde, em Voz irada. Embora calcado em Camões, a leitura desse episódio permite estabelecer uma diferença significativa entre Os Lusíadas e a Muraida. Na epopeia lusitana, os Mouros são sempre vistos como os infiéis, os impuros, aqueles a quem é necessário exterminar por não seguirem a verdadeira religião, o cristianismo. No poema épico de Wilkens, no episódio do ancião da tribo, os vencidos (os muras) têm voz, pois o velho índio relata todas as atrocidades cometidas contra os de sua raça: Grilhões, Ferros, Algemas, Gargalheira, Açoutes, Fomes, Desamparo e Morte, Da ingratidão foi sempre a derradeira Retribuição, que teve a nossa sorte. Essa passagem do texto constitui-se em exceção, pois a ideologia que permeia a Muraida é, como já afirmamos, a de proclamar a excelência do colonialismo, estorvada pelos ataques dos bárbaros destituídos da verdade divina. valercultural


O conflito principal, aquele que gera a narrativa, não é, como se pode pensar, entre os índios e os brancos, mas entre Deus e o Demônio. Por desígnios insondáveis, Deus resolve que os muras se tornariam cristãos e, em consequência, estariam aptos a ganhar o reino dos céus. Contra isso se revolta Satanás, que não admite que esses índios, que estavam sob seu poder, tivessem a possibilidade da redenção. As razões do Demônio são as de que os índios não eram gente e, como tal, não poderiam ocupar o lugar que já fora dele nas moradas celestiais, de onde fora expulso. Diz ele aos seus asseclas (Canto Sexto, estrofe 6): Os olhos levantai, vede essas Feras, (Pois serem racionais, só a forma indica) Já quase a substituir-nos nas Esferas Celestes destinadas. O final da luta é previsível: vence o Bem: os índios aceitaram o cristianismo. Significativamente, o poema termina com o batizado de “vinte infantes” muras, simbologia do que os colonizadores consideraram uma vitória daquele povo.

Manuscrito Composto em 1785, o texto foi enviado a Portugal, posto não haver imprensa na região. Foi publicado em 1819, 34 anos após a escritura. No frontispício, havia indicações que tornaram ambígua a autoria. Ali se lia que a transcrição portuguesa havia sido feita pelo padre Cypriano Pereira Alho. Tal fato gerou interpretações equívocas, como as de que o poema teria sido escrito, originalmente, em língua mura ou nheengatu, a língua geral. Além disso, a má impressão, que misturou estrofes de cantos diversos, comprometeu o entendimento do poema. Somente a descoberta dos manuscritos, no início dos anos 90 do século passado, tornou possível estabelecer a verdade sobre a primeira obra literária do Amazonas. Não só se pôde ordenar os cantos e as estrofes tal como os compusera Wilkens, como saber que ela fora escrita em português. Deduz-se, envalercultural

tão, que o padre Alho usara de subterfúgio para se apropriar da autoria da Muraida, pois traduzir é recriar, ainda mais quando se trata de poesia. Alguns bons momentos de lirismo, considerando-se a época em que foi escrito, se observam no texto de Wilkens, principalmente nas comparações, como a que se lê no excerto abaixo (Canto Primeiro, estrofe 7): Entre os frondosos Ramos, que bordando As altas margens vão, de esmalte raro, Servindo estão mil rios, tributando Correntes argentinas, que no avaro Seio recolhe o Amazonas. A Ilíada, de Homero, é a epopeia cujo título se refere (ironicamente?) aos derrotados: Ilíada vem de Ílion (ou Troia), a cidade invadida e destroçada pelos gregos. Tal como a epopeia homérica, a Muraida “homenageia” no título os derrotados, aqueles que foram destituídos de sua cultura. Mas esse é o nosso ponto de vista, não o do autor da obra, que certamente julgou vencedores aqueles que passaram a enxergar a luz da “verdadeira religião”. Daí o subtítulo (ou complemento do título) do poema: “O Triunfo da Fé”.

À edição inicial de 1819, seguiu-se a de 1993, levada a cabo pela Biblioteca Nacional, Universidade Federal do Amazonas e Governo do Estado, por iniciativa do escritor Márcio Souza. Nela, foi reproduzido o manuscrito de Wilkens, além da edição feita sob a responsabilidade de Cypriano Alho. A terceira é esta, da Editora Valer, em seu admirável propósito de documentar e divulgar as obras significativas de nossa cultura, já que a Muraida possui um valor histórico inestimável.

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documento

e o se Drummond de Andrade, um dos poetas mais conhecidos do Brasil, morto em 1987, recebe homenagens em todo o país pela passagem dos seus 110 anos de nascimento. Nada mais justo, porque sua poesia ecoa ensinamentos, às vezes de forma dura como a realidade, sobre os enigmas da condição humana. 62

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entimento do mundo Tenório Telles | escritor

M

ineiro de Itabira, Carlos Drummond de Andrade nasceu em 1902. Fez praticamente a travessia do século que se encerra, morrendo, em 1987, no Rio de Janeiro. Passou a infância na cidade natal, partindo mais tarde para Belo Horizonte, onde se iniciou no jornalismo, ao mesmo tempo em que participava da vida intelectual, ligando-se ao grupo modernista e publicando seus primeiros poemas. Formado em Farmácia, o escritor dedicou-se à literatura. Durante anos colaborou em diversos jornais de Minas e do Rio de Janeiro. Sem poder sobreviver de sua arte, ingressou no funcionalismo público, atividade em que se aposentou. Sua estreia aconteceu em 1930, com o livro Alguma poesia. Foi um dos fundadores, em 1925, do principal órgão modernista de Belo Horizonte, A Revista. Em 1928, ao publicar, na Revista de Antropofagia, seu célebre poevalercultural

ma No meio do caminho provocou escândalo e acirrada discussão. O texto é expressivo do caráter irreverente que caracterizou a fase heroica do modernismo. Mais do que uma provocação, o poema é ilustrativo de uma das temáticas recorrentes na obra de Drummond – os obstáculos da vida. No seu caminhar, o ser humano encontra muitas pedras: No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. 63


2 Ao refletirmos sobre os descaminhos das civilizações contemporâneas, não há como ignorar essa obsessão pelo imediato, pelo fugaz em que tudo parece e nada é. Essa percepção da inconstância da vida, do desencontro, do agônico e do próprio absurdo da existência não escaparam à sensibilidade poética de Carlos Drummond de Andrade, como se depreende da leitura do Soneto da perdida esperança: Perdi o bonde e a esperança. Volto pálido para casa. A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre meu corpo. Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e da flora. Não sei se estou sofrendo ou se é alguém que se diverte por que não? na noite escassa com um insolúvel flautim. Entretanto há muito tempo nós gritamos: sim! ao eterno. 3 Sintonizado com os dramas, angústias e esperanças vividas pelo homem contemporâneo, Drummond constrói uma poesia articulada com seu tempo. Apesar de suas dúvidas e ceticismo, do tom melancólico e contido de seus versos, é evidente em sua obra o compromisso com a vida, com a condição do ser humano no mundo. O poema “Mãos dadas” é expressivo da obstinação do poeta diante da realidade, seu enfrentamento solitário do absurdo, desesperança e solidão que corroem a alma do homem. O texto é uma afirmação de seu inconformismo e generosidade: Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mão dadas. (...)

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Foto: Divulgação

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O tempo é a minha matéria, o [tempo presente, os homens presentes, a vida presente. A produção poética de Drummond tem como fundamento o humano, perpassada por intensa densidade existencial e profundo conteúdo filosófico. Soube traduzir poeticamente as inquietações de seu tempo, os dilemas de uma época marcada pela intolerância, pelo vazio, ameaçadora para a vida. 4 A poesia de Carlos Drummond de Andrade está identificada com o espírito modernista. O autor é o mais destacado representante da geração que surgiu nos anos 30, da qual fazem parte Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Drummond testemunhou os grandes acontecimentos que marcaram o século XX. Viveu as agita-

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ções que marcaram a década de 20, em particular a crise que se seguiu à quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929, e que culminou no fim da República Velha. Sua obra teve como pano de fundo as movimentações políticas que resultaram na implantação do Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria. Nos anos de 1960, assistiu ao triunfo da intolerância política com o golpe militar de 1964. Como não se passa impunemente pela vida, o poeta não ficou indiferente a esses acontecimentos. A indignação e a consciência da necessidade de resistir à banalização da maldade e ao triunfo da barbárie impulsionaram Drummond a um posicionamento crítico diante da realidade. O escritor aderiu à causa socialista, colocando sua arte a serviço da vida, da luta contra tudo que ultraje o ser humano. O poema “Nosso tempo”, do livro A rosa do povo, publicado em 1945, é uma evidência do seu comprometimento social:

Este é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida [esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. [Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não [nascem da lei. Meu nome é túmulo, e [escreve-se na pedra. (...) O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, [símbolos e outras armas promete ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma [floresta, um verme. Diferente dos autores do primeiro momento modernista, mais ligados a uma postura irreverente e experimental, os poetas da segunda geração, que se firmam na década de 30, farão uma poesia de componente reflexivo. Suas obras refletem uma profunda preocupação com o sentido da existência humana, o confronto do homem com a realidade, expressivo de seu estar-no-mundo. Esse modo de perceber a vida explica o conteúdo existencial que perpassa a poesia dessa geração: Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores. / Por isso gosto tanto de me contar.

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Fotos: Divulgação

O menino Carlos Drummond, em Itabira, e com a família em 1915

5 A poesia de Carlos Drummond é um testemunho vívido e humano sobre a vida e sua época. A leitura de suas obras deixa evidente sua inquietude e irresignação diante da realidade. Suas posições em face dos problemas que marcaram seu tempo. Há escritores que não se lê impunemente. Drummond é um desses autores. Seus poemas são prenhes de questões, nos fazem pensar sobre o sentido de nossas vidas. Dentro de uma perspectiva didática, é possível determinar certas margens de sua produção poética. Os temas mais constantes em sua obra.

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O desajustamento do indivíduo é uma marca fundamental de sua poesia. O poeta se sente um ser à margem, deslocado de seu tempo, um gauche, alguém que está à esquerda, isolado, como se depreende dos versos do “Poema de sete faces”: Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida. (...) O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. (...) Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco.

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Esse sentimento de fragilidade e impotência diante de seu próprio existir-no-mundo, perpassado por um tom melancólico, é característico de seu discurso poético. Em alguns poemas, como “Confidência do itabirano”, é expresso de forma nostálgica, em que recompõe por meio da memória a infância, a família, o pai, a cidade. O passado projeta-se, de forma dolorosa, no presente: Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida [é porosidade e comunicação.

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A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, [sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. (...) Tive ouro, tive gado, tive fazenda. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! 6 A poesia de Drummond afirma-se pela riqueza temática. Sua obra é como um caleidoscópio em que o rosto estilhaçado do tempo se reflete, a vida em seu escoar contínuo. Captura no cotidiano a matéria com que compõe as malhas de seu canto. Nada escapou ao seu olhar gauche, nem mesmo o fazer poético. É recorrente em seus textos a reflexão sobre a poesia, a linguagem, a magia de transformar o silêncio em canto, desnudando a face das palavras. A metalinguagem é um traço marcante de sua arte. O poema “Procura da poesia” é ilustrativo de sua alquimia poética: Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, Há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. (...) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma Tem mil faces secretas sob a face neutra E te pergunta, sem interesse pela resposta, Pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Percebe-se assim que o fazer poético não é o exercício da inocência, do transbordamento de desordenadas emoções. A poesia é o espelho estilhaçado em que se reflete o mundo, a vida. Ao contemplá-lo, o poeta captura os fios evanescentes com que tece as malhas de seu canto. É um diálogo com o ser, com a alma fraturada dos homens. Como dizia o filósofo Martin Heidegger, em seu belo estudo sobre a poesia de Hölderlin: A linguagem

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originária, porém, é a poesia na sua qualidade de instituição do ser. 7 Drummond decifrou o enigma: a vida é uma miragem, um fio partido entre o silêncio e o abismo. Rio que caminha para o vasto mar da memória. É inevitável em seu fluir corrosivo e nada escapa à voracidade do tempo. Tudo sucumbe ao destilar contínuo de suas águas. Resistir é o que nos resta – dizer não à vulgaridade, à morte da esperança, ao poder e à mentira. Defender a vida do lobo que a espreita avidamente. Ou como diz o poeta: Alguns, achando bárbaro o [espetáculo, Prefeririam (os delicados) [morrer. Chegou um tempo em que não [adianta morrer. Chegou um tempo em que a [vida é uma ordem. A vida apenas sem [mistificação.

Foto: Divulgação

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gastronomia

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um prato multicultural É como a Yosakoi Soran, a dança japonesa para todas as idades, e está disponível em vários sabores, diferentes lugares, na forma tradicional do Oriente e reinventado no Ocidente. O temaki pede passsagem para unir culturas. Ivânia Vieira | jornalista

Foto: Shutterstock

T

ípico da culinária japonesa, o temaki invadiu o mundo. Entrou mansamente para tornar-se, na atualidade, um dos alimentos mais festejados nas diferentes regiões da Terra – dos Estados Unidos a Manaus (AM). A grande viagem faz percursos parecidos a de outras iguarias de tantos povos que, por diferentes motivações, deixaram sua terra natal para viver em outros lugares. São receitas escritas ou decoradas, recriadas. Ora viajam nas mãos de seus donos, em pedacinhos de papéis colocados nos bolsos, entre as páginas dos livros ou entre os documentos mais pessoais; ora são reveladas no reavivamento do acervo escondido nas memórias dos viajantes. Essas receitas são identidades ou fragmentos delas refirmando culturas, resistências, aproximando-as, revelando-as, reinventando-as como resultado da simbiose da existência humana.

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É assim com o temaki, um alimento feito literalmente à mão, como manda a tradição japonesa. Aliás, é isso que a expressão, na tradução mais geral, significa: Te = mão; maki = enrolado. É um sushi em forma de cone, parecido, apenas na forma, com os cascalinhos de sorvete, também amado por milhares de consumidores. Em Manaus, as temakerias são um termômetro do interesse, principalmente, por parte dos jovens, por essa iguaria. São espaços elevados à categoria de point (o ponto) e, como um bom negócio, os donos dessas casas diversificam o serviço para ganhar mais clientes. É possível, na cidade, saborear um temaki em ambientes agradáveis, frutos de composições das culturas oriental e ocidental e, se não há tempo de ir até eles, o consumidor pode pedir. O delivery (entrega) cresce junto com o sucesso do alimento.

com tinta monocromática à base de carvão e água), língua japonesa... É recorrente encontrar o sushi (no modo tradicional feito de arroz com vinagre levemente doce) com frutas, entre elas, manga, afirma Sandra Nagase, assistente administrativa do Setor Cultural do Consulado do Japão em Manaus. O sushi está de volta para o Japão, levado pelos japoneses que moram ou moravam nos Estados Unidos, mas com um jeito americano e, no Japão, muitas pessoas gostam desse novo arranjo, exemplifica Nagase. Dados do Consulado mostram que há um interesse crescente, em Manaus, pela culinária japonesa, com participação expressiva de homens. Também despontam entre os cursos mais procurados os de artesanato, esse bastante demandado pelas mulheres. Sandra Nagase lembra que a oferta de cursos sobre a culinária japonesa é uma orientação do Governo japonês desde os anos de 1980. Neste século, os cursos oferecidos pelo Consulado reúnem turmas de 25 pessoas, e o perfil tem sido o de homens, donos de restaurantes de comida a quilo.

A arte da recriação Do temaki tradicional do Japão ao temaki mundializado há diferenças importantes. Para uma parcela de japoneses, o que se comercializa em vários países ocidentais como temaki não é temaki. O tradicional é feito apenas com alga, arroz, verdura e sashimi (filé muito fino de peixes crus), explica o vice-cônsul-geral do Japão em Manaus, Hiroaki Aizawa. A americanização da iguaria está envolta no processo de migração. Aizawa afirma que tanto os japoneses que se deslocaram para outros lugares, como os EUA, quanto os estrangeiros que foram para o Japão reconstruíram o temaki a partir daquilo que era disponível para eles, do hábito alimentar e do desejo de reinventar que move a humanidade. Hoje, o temaki mundializado tem hambúrguer com molho adocicado, queijo, filé de frango. E é esse modelo multicultural que a geração mais jovem do lado ocidental aprecia. Com ele crescem as rodadas de conversas em torno da cultura japonesa e muitos jovens se descobrem motivados a saber sobre Mangá (quadrinho japonês de grande sucesso), Sumiê (pintura japonesa

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Foto: Divulgação

Ler e comer

Carlos Eduardo Oshiro é um jovem empresário e consultor de empresas em Manaus (AM), onde mora desde 1995. Formado em Administração com especialização em Marketing, viveu, durante três meses, no Japão, como

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Foto: Divulgação

A temakeria Yoi Roll’s & Temaki (bom, em português) é a pioneira nesse nicho de mercado gastronômico japonês, e, de acordo com o dono do negócio, Bruno Joffeti Tinoco, 29, é a única a ser franqueada

para vender o tradicional temaki. A Yoi está em Manaus há três anos e meio, funciona diariamente, a partir das 12h, e, aos domingos, das 18h. As temakarias ou temakerias (as duas formas são aceitas) no Su-

dekassegui. A VALER CULTURAL conversou com Oshiro sobre literatura e culinária. A seguir a entrevista: A literatura japonesa incentiva a expansão e a diversificação da culinária japonesa? Oshiro: Acredito que seja ao contrário. Ao provar a culinária japonesa, os jovens passam a se interessar pela cultura e buscam aprofundamento no tema por meio de livros e de outras informações. Qual é o bom negócio nessa mistura (literatura e culinária)? Tem exemplos? Oshiro: A culinária no Japão é aliada à leitura. Muitos restaurantes e bares disponibilizam revistas e livros em seus locais para que as pessoas possam se entreter.

deste do país são hoje um lugar-referência de encontro de jovens, afirma Bruno. Em Manaus, o empresário percebe um público eclético (jovens e adultos) frequentando o espaço que ele comanda. Trata-se de um público de classe média e alta, aponta. O preço médio do temaki é de R$ 12,50. A média de gasto por cliente – um temaki e uma bebida – é de R$ 30. Na loja de Tinoco, os produtos são importados do Japão, inclusive o arroz. Nesse lugar, o temaki é o carro chefe, mas os clientes também podem encontrar outras iguarias da culinária japonesa como sushi, sashimi, e também saladas e hot house. A maioria dos frequentadores desse espaço é de brasileiros. A ligação cultural é feita pelo temaki.

Oshiro: Em Manaus, as temakerias têm atraído os jovens, mas não tenho conhecimento de locais que possuam literatura unido a isso. Desconheço essa mobilização. Mangá e culinária têm uma estrada longa e boa nesse mundo globalizado? Oshiro: O Mangá tem um público específico que curte esse tipo de leitura. Mas ainda é muito restrito no Brasil. Como situa o papel das temakerias na atualidade? Oshiro: As temakerias sofreram um boom em nossa região e se tornaram mais uma opção de alimentação para o brasileiro. Em consequência elas ajudam a divulgar a culinária japonesa, apesar de o temaki ser uma adaptação para a culinária brasileira.

O senhor tem um indicador de que os jovens estão buscando mais esses espaços como ambiente de encontro?

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ensaio | Raphael Alves

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Daniela de Tofol | jornalista

O

interesse pelo ser humano parece ter despertado em Raphael Alves bem antes que a própria paixão pela fotografia. Ainda criança gostava de observar as pessoas e ver como interagiam com seu meio, como se comportavam no trabalho, na rua. Sabendo disso, não fica difícil entender o que há nas entrelinhas das imagens do ensaio “Quando as águas...”, de autoria do fotógrafo, nascido em Manaus-AM. Com fortes traços de antropologia visual, o ensaio traz as impressões pessoais de Raphael Alves sobre o ser humano que precisa se adaptar ao ciclo das águas dos rios da bacia amazônica. Trata também da necessidade daqueles que precisam driblar problemas como a falta de saneamento básico e de estrutura em moradia. Mais que isso, abre ainda debate sobre uma capital e uma pretensa região metropolitana que agoniza em termos de organização. O projeto, que traz até agora fotos da cheia que já atingiu a marca recorde de todos os tempos no Amazonas, vai se estender também pelo período de vazante dos rios.

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Outra característica do ensaio é a constante procura do fotógrafo – característica marcante em toda sua obra – por criar laços com o assunto, deixando de ser mero observador para ocupar a posição de parte no processo de reportagem-fotográfica. A imagem da criança com os pés dentro d’água na rua Frei José dos Inocentes que observa curiosamente e quase de ponta-cabeça o trabalho de Raphael, ou olhar natural da senhora que segura uma imagem de Jesus Cristo em frente à sua casa alagada na vila do Cacau Pirêra, são indícios de como o fotógrafo cativa o observador a participar das suas fo-

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tografias, refletindo sobre a vida de cada personagem após disparar o obturador de sua Leica analógica. Para obter imagens como essas, Raphael optou por lentes curtas (35mm e 50mm), conforme o próprio Raphael Alves explica. “O tipo de trabalho que almejo fazer – não somente neste ensaio – requer que eu interaja com as pessoas. Gosto de trabalhar com distâncias focais curtas porque me aproximam do meu assunto. Se pudesse gravar tudo no olho, o faria. Mas como a câmera e lentes são ferramentas necessárias, gosto que ambas sejam compactas. Sobre a escolha pelo analógico, gosto do filme por me fazer pensar mais antes de fazer uma imagem. No digital, se eu ficar insatisfeito com uma imagem, basta apagá-la. No filme, preciso pensar mais, do contrário perco um quadro a cada imagem mal executada”, diz.

Com a maior parte dessas características – que ultrapassam o campo das escolhas, justamente por sua naturalidade – é quase inevitável questionar Raphael sobre a mensagem que almeja levar. Para o fotógrafo, muito mais que a apresentação de uma opinião pessoal, fotografar é levantar debates. “Ficaria satisfeito se soubesse que meu trabalho está ao menos gerando debate. Não quero empurrar uma opinião pronta. Procuro, em vez disso, uma mensagem inacabada, que não seja uma receita pronta para o espectador do meu trabalho. Se eu tivesse a pretensão de produzir uma mensagem fechada, sem frestas ou arestas a aparar, automaticamente excluiria o observador do debate. E eu quero sempre ter o espectador como parte fundamental deste diálogo”, encerra.

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acordes

UEA afina Profissionais da música formados pela Universidade do Amazonas têm mercado no Brasil e no exterior

Márcia Costa Rosa | jornalista

P

ara músicos profissionais e estudantes da Universidade do Estado do Amazonas, a UEA Sinfônica é a realização de um sonho antigo de professores e alunos da Escola Superior de Artes e Turismo (Esat/UEA), que já formou 75 músicos “preparados para o mercado de trabalho no Brasil e no exterior”, explica o reitor José Aldemir de Oliveira, para quem “a sinfônica cria oportunidades para os jovens conhecerem, de fato, a rotina de um músico profissional, muito diferente da imagem glamourosa que se divulga”, enfatiza o professor. O maestro Zacarias Fernandes afirma que a rotina de exercícios diários, a exigência de disciplina e o contato permanente com regras de postura profissional serão decisivos na formação pedagógica dos estudantes.

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Foto: Viorel Sima/Shutterstock


Fotos: Divulgação UEA

Arte por natureza “A sinfônica significa, para nossos alunos, a integração de técnica, postura e exercício, e isso fará a diferença na formação desses meninos”, explica o maestro, decidido a manter a harmonia entre o clássico e o popular na preparação do repertório das apresentações que, desde a estreia, arrancam aplausos demorados de plateias lotadas. Durante a sua existência, foram apenas três concertos, em dois meses de atividades, em 2011. Porém, tempo suficiente para que a UEA Sinfônica mostrasse a força de seus acordes para diferentes públicos, que, em termos de aprovação, igualaram-se na aprovação da Sinfônica formada por professores e estudantes, e criada com a função de ser um instrumento a mais na formação acadêmica dos alunos do Curso de Música que comemorou os dez anos de criação da UEA, no ano passado. 80

Para Margarita Chtereva, maestrina e professora de Violino da UEA, a criação da Sinfônica representa muito mais do que a realização de um sonho. “É impressionante como aqui a arte está em todo lugar. O povo amazonense é artista por natureza e vocação. Nunca vi isso em lugar algum do mundo. E a criação da sinfônica vai proporcionar um futuro brilhante para a vida profissional dos nossos alunos, porque é um momento no qual eles estão aprendendo muito em termos de técnica, repertório e até de comportamento artístico”, comentou. Chtereva, natural da Bulgária, está há 14 anos em Manaus, dez dos quais “vividos dentro da UEA”. Ela também atuou em outros países da Europa, nos Estados Unidos e na China. O estudante do oitavo período de Licenciatura em Clarinete, Emanuel Vasconcelos, concorda com a professora Margarita. Aos 22 anos, o

Margarita Chtereva, maestrina e professora de Violino da UEA

jovem aluno de Música da UEA já é um experiente profissional no mercado. “Há seis anos a música é um instrumento de trabalho para mim; é um estilo de vida e de superação. Estudar em uma universidade com a credibilidade da UEA nos prepara valercultural


tecnicamente para enfrentar qualquer desafio na nossa área, em condições de igualdade. Além disso, contribui para a formação cultural dessa nova geração que precisa saber ouvir música, não apenas música clássica, mas também as belíssimas canções da nossa região. É uma forma de resgatar e manter viva a nossa própria cultura”, afirma. O curso superior de Música abriu, para ele, as portas do mercado de trabalho “porque garante um valor extra para o nosso desempenho profissional”. Segundo o reitor, a Sinfônica chega à universidade como mais um instrumento de valorização do curso de Música, criado há dez anos. “Com a Sinfônica, temos uma preocupação pedagógica. A gente não pensa que o aluno de música vem aqui para aprender música. Ele já traz um conhecimento musical e precisa de aprimoramento e condições para desenvolver a técnica, e aí, sim, sair qualificado para o mercado de trabalho, que é muito exigente”, explica o professor. Ele atesta que o aluno “graduado no curso de Música da UEA está apto a fazer, por exemplo, um concurso ou exercer sua profissão em qualquer lugar do mundo”.

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São 54 músicos sob a regência da batuta de Zacarias Fernandes, para quem “a agenda rigorosa de ensaios deve ser a mesma para professores e alunos. Na UEA Sinfônica, todos são músicos e, como tal, devem manter a mesma postura profissional, com o respeito que os integrantes da orquestra merecem, sejam eles profissionais ou estudantes”, enfatiza o maestro, que coordenou, pessoalmente, a seleção, em audição, dos 38 alunos entre cem candidatos, para a formação da Sinfônica, na Escola Superior de Artes e Turismo, em setembro do ano passado.

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agenda cultural

Agenda cheia de eventos literários 22.ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo | De 9 a 19 de agosto, no o ulgaçã

Pavilhão de Exposições do Anhembi

Div Foto:

Com o tema “Livros transformam o mundo, livros transformam pessoas”, terá três homenageados: Jorge Amado e Nelson Rodrigues que completariam cem anos em 2012 e a Semana de Arte Moderna de 1922, que completa 90 anos. A programação mescla literatura com diversão, negócios, gastronomia e cultura. Feira do Livro de Frankfurt -

Foto: fra

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Alemanha – De 10 a 14 de outubro Nesta edição, a Feira do Livro de Frankfurt homenageará a Nova Zelândia. O país convidado de honra, sob o tema “Enquanto você dormia”, vai levar à Alemanha mais de 60 autores e 100 artistas. E mais: promete traduzir, até o final deste ano, 76 títulos neozelandeses para o alemão. Em 2012, o Brasil participa da feira e começa a se preparar já que será o homenageado em 2013 deste que é o maior evento do mercado editorial do mundo.

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58.ª Feira de Livros de Porto Alegre | De 26 de outubro a 11 de novembro

e+

na Praça da Alfândega, no Centro Histórico de Porto Alegre 8.ª Feira do Livro de Mossoró Entre as atividades já confirmadas

Quando: De 8 a 12 de agosto

está o Seminário “A arte de contar

Onde: Mossoró (RN)

histórias”, que chega à sua 5.ª edição e com novidade: terá a

8.º Festival Literário de Londrina

Mostra Nacional de Contadores de

(Londrix)

Histórias. O tema será “Escrever e

Quando: De 22 a 25 de agosto

contar a literatura infantil e juvenil”.

Onde: Biblioteca Pública Municipal, no Teatro Zaqueu de

Bienal Internacional do Livro do

Mello, na Vila Cultural Cemitério

Ceará | De 8 a 18 de novembro, no

de Automóveis em Londrina (PR)

Centro de Eventos do Ceará Feira do Livro de Brasília. Na sua décima edição, com o

Quando: De 5 a 9 de setembro

tema “Padaria Espiritual – o pão do

Onde: Brasília (DF)

espírito para o mundo”, resgatará a história deste movimento

16.ª Feira Pan-Amazônica

artístico cearense e homenageará a

do Livro

Semana de Arte Moderna de 1922,

Quando: De 21 a 30 de setembro

os centenários de Luiz Gonzaga,

Onde: Hangar Centro de

Jorge Amado e Nelson Rodrigues

Convenções e Feiras da Amazônia,

e do cantador e violeiro Joaquim

em Belém (PA).

Batista de Sena. No exterior 8.ª Festa Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto) | De 15 a 18

Festival Literário de Maputo -

de novembro, no Pátio do Carmo,

Moçambique

em Olinda (PE)

Quando: de 21 a 25 de agosto Onde: Centro Cultural Brasil-

Com o tema “A vida é um

Moçambique

espetáculo”, homenageará Nelson Rodrigues. A partir das obras do

Feira Internacional do Livro de

dramaturgo, lançará um debate

Guadalajara – México

sobre literatura e teatro. Entre

De 24 de novembro a 2 de

os convidados estão Ruy Castro,

dezembro.

que escreveu a biografia O Anjo

Informações: www.fil.com.mx

Pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues, o biógrafo britânico, Barry Miles e Ariano Suassuna.

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Foto: Julia Moraes/Folhapress

arte

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Neiza Teixeira | filósofa e escritora

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aria Bonomi é, hoje, reconhecidamente, uma das maiores artistas brasileiras e que tem a receptividade da crítica, das galerias e dos museus nacionais e internacionais. Sua obra é concebida, sobretudo, em esculturas de madeira. Estas chamam a atenção pela sua dimensão e pela apropriação das cores de uma forma que não é vulgar. Mas, como todo artista contemporâneo, a obra não se prende apenas a um suporte: ela tanto se expõe na madeira como no metal, nas instalações, na xilografia etc. O percurso de Maria Bonomi não se inicia no Brasil. Ela é italiana. Nasceu em Meina, aldeia localizada nas margens do lago Maggiore, nas proximidades de Milão, em julho de 1935, de mãe brasileira, Georgina Martinelli Bonomi, e pai italiano, Ambrógio Bonomi.

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Maria veio para o Brasil empurrada pela Segunda Grande Guerra Mundial. Seu pai era engenheiro militar e esteve nos campos de batalha. Em 1942, sua casa foi invadia pelo exército alemão e foi, então, transformada em centro de operações. A condição de sua mãe permitiu que ela partisse com sua família para o Brasil. Assim, com seis anos de idade, chega ao nosso país aquela que seria a artista plástica Maria Bonomi, cujo talento vem, há mais de cinquenta anos, merecendo reconhecimento. Apenas como reflexão sobre a condição do ser artista, chamo a atenção para alguns elementos que se vão instalar na estrutura mental e intelectual de Maria Bonomi. Em primeiro lugar, ela foi assaltada, durante a infância, pelos temores da guerra. Em segundo lugar, a condição material de sua família, ainda que como ex-

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Fotos: Divulgação

patriada, e também com uma parte dela que já gozava de prestígio e de fortuna no Brasil, favoreceu uma formação que lhe permitiria desenvolver todas as suas possibilidades intelectuais, cognitivas e sensitivas. Em terceiro lugar, também como oferecimento da sua família, ela teve a convivência, desde a infância, com artistas, intelectuais e fez uma formação artística que se iniciou no Brasil e se prolongou na Itália, França, Estados Unidos. Com isso, não quero dizer que é necessário ser “bem-nascido” para ser artista, mas quero dizer que o potencial de uma criança pode atingir a plenitude quando o ambiente lhe é favorável, como também a mente de um artista se forja nos acontecimentos que lhe abrem perspectivas, como se se tratasse de um choque ou da imersão do extraordinário na sua consciência, para ter uma percepção mais aguda da realidade. Não poderia, aqui, esquecer de mencionar o nome de Romero Britto, artista brasileiro de origem humilde, que hoje tem seu nome referendado e reconhecido por qualificadas revistas de arte e é presença nos grandes museus mundiais. Seria num outro contexto uma análise digna de ser feita. Outra discussão que hoje é comum nos meios da crítica de arte

O potencial de uma criança pode atingir a plenitude quando o ambiente lhe é favorável”

é a contemporaneidade ou não de uma peça. Quanto a isso, é interessante referir Lyotard quando afirma que os artistas na conjuntura atual – a da Pós-Modernidade – trabalham como os filósofos, pois eles estão em processo de reflexão para reconhecer os critérios da arte. Por essa via, o que se verifica é que os critérios da Modernidade, que orientavam, em todos os sentidos, o nosso ver e o nosso pensar não são suficientes ou não dão conta da realidade que se estende a nossa frente. Em suma, os processos de reconhecimento da grandeza ou não de uma obra de arte não são facilmente reconhecíveis, restando, todavia, os julgamentos que assistimos por meio dos veículos de comunicação de massa, a presença das peças nas galerias e museus mais reconhecidos do mundo, o interesse dos colecionadores, a re-

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Foto: Divulgação romerobritto.com

Acima, as peças Terceiro Milênio e Metempsicose de Maria Bonomi. Ao lado, Romero Britto com uma de suas criações

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Foto: Fernando Moraes/Folhapress

ferência nos livros de arte são algumas das motivações que nos levam a olhar para uma obra. Mas ainda gostaria de referir que alguns critérios estabelecidos pela Modernidade, e aqui se entende que a Pós-Modernidade não pretende negar tudo o que foi construído, mas principalmente reconhecer e dialogar com o que de grande foi feito, permanecem. Por exemplo, não se pode negar o que não se conhece, e assim é um chamativo trilhar o caminho do filósofo Derrida, o da desconstrução. No que diz respeito ao meu julgamento, espero sempre que uma obra se pronuncie e que anuncie o que ela tem para dizer. Então, espero ansiosamente que ela seja um caminho de compreensão do homem e do tempo, que ela seja, além de uma leitura, um documento, no sentido em que possa exprimir facetas ou uma faceta da nossa passagem pelo mundo e da nossa compreensão deste. Esse registro faz-se em todos os sentidos: no social, no econômico, no tecnológico, no lúdico, no científico, no filosófico etc.

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Além do uso da técnica, da capacidade de fazer com que a obra revele o que a ela cabe revelar, pode se entender a receptividade concedida ao trabalho de Maria Bonomi. Esta artista, quando menina, em plena fuga para o Brasil, fez os seus primeiros desenhos conhecidos para o livro Cobra Norato, de Raul Bopp. Aí já mostrava as suas potencialidades para as artes plásticas. As gravuras ocupam um grande espaço na sua criação, principalmente, como já foi referido, em madeira. É nesse âmbito que a obra de Bonomi chama muito a atenção, pois ela utiliza-se de uma técnica antiquíssima, provavelmente de origem chinesa, para expressar o seu posicionamento, o seu olhar sobre o mundo, o seu engajamento na sociedade e no seu tempo. Trata-se da xilogravura, por meio da qual tem recebido inúmeros prêmios.

Xilogravura Trasfiguração da pomba na Broadway

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caso, considerando as cores, o vermelho, uma cor quente, e o preto, que é a ausência de luz, portanto, que não tem cor alguma, caindo no abismo do nada, mostra a excitação e o que finaliza a Balada do terror. É ainda de se considerar que o vermelho é a base de sustentação da peça, o que significa que a emoção é um sentimento, produzido do exterior, que somente é compatível em um ser-no-mundo. Quanto ao preto, que, em forma de espiral enrosca-se na peça, contudo deixando que o vermelho seja mantido como base, pois ele não impede o percurso deste, se faz presente enquanto estado passageiro, mas que gira em volta de cada ser humano, como a própria morte. A última consideração que se poderia fazer em relação a esta peça é quanto à sua dimensão. Bonomi, até mesmo acompanhando os seguimentos da arte contempo-

Fotos: André Deak para o Arte fora do museu

Fotos: Felipe Lavignatti para o Arte fora do museu

Abaixo, Etnias do primeiro e sempre Brasil, no Memorial da América Latina e Estação de Metrô Jardim São Paulo.

A obra ao lado, datada de 1970, é uma xilogravura, cujo realce vai para a dimensão e para as cores. Aqui, a composição preto/vermelho que se poderia dizer vulgar, todavia, é justamente esta que dá vida e originalidade à peça. A contraposição preto/vermelho, a julgar pelo título, é, nela, necessária: Balada do terror. O preto, como é sabido, é o representante, na nossa cultura, do luto, da perda, da ausência, da dificuldade. Alguém poderia refutar que é, também, a cor da elegância, mas não se trata, quando ele se apresenta como o vemos, dessa compreensão. Por seu lado, o vermelho é o significante do sangue, da guerra, da emoção intensa, da explosão, do fogo. E, quando nos remetemos ao título, vê-se que a Balada, que significa música, dança, movimento, agitação, ou algo que tem uma sequência ritmada, portanto, uma duração. No presente

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Foto: Marisa Cauduro/Fotosite/Valor

rânea, busca nas grandes dimensões mais um elemento de exposição. Do mesmo modo, poderíamos citar Serra e suas monumentais esculturas de metais, bem como o hiper-realismo, que abusam da dimensão para criar efeitos que são “igarapés” para as nossas análises. Também não poderia deixar de pontuar que a obra desta consagrada artista é uma obra nascida no/do cenário urbano. Em qualquer metrópole há sempre lugar para o trabalho de Bonomi. Para qualquer homem que se entenda como contemporâneo, há um reflexo dele na obra da artista. É neste cenário que se identifica e se faz presente a sua obra. E para encerrar, ela é também muralista, autora de monumentos artísticos como Etnias do primeiro e sempre Brasil, no Memorial da América Latina, em argila, bronze e alumínio, onde traça a construção do homem brasileiro e do Brasil desde a chegada do europeu. E não se poderia esquecer a Estação de metrô Jardim São Paulo. E assim conhecemos nossos artistas.

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