Valer cultural

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A Editora Valer incentiva a produção de livros para crianças e jovens. São dezenas de obras com ambientação regional – que retratam os mitos, as lendas, a história e a vida na Amazônia.


www.editoravaler.com.br Av. Ramos Ferreira, 1195 Tel.: (92) 3635-1324 Manaus/AM


editorial

A

promoção do livro e da leitura está na pauta das atividades da iniciativa privada. Há, no Brasil afora, bienais e feiras de livros que, em parceria com o Poder Público, se incorporaram ao calendário dos encontros obrigatórios de editores, autores e leitores em nível mundial. É louvável que o Governo do Estado, neste momento, venha a realizar a 1.ª Bienal do Livro do Amazonas, uma ação que, acima de tudo, reconhece a produção pulsante dos autores e editores amazonenses. A bienal possibilita o encontro, o debate e a reflexão crítica entre os diversos segmentos de pessoas animados pelo livro. Quem participa de um evento dessa natureza renova as suas energias e esperanças na força que nutre a criação literária. Nossa compreensão é a de que o Governo está empenhado em fortalecer a sua política educacional por meio do estimulo à leitura. Esse também é o desejo dos escritores, editores e educadores. Há uma produção intelectual pujante de estudos sobre a Amazônia que precisa chegar às bibliotecas do País e às mãos dos leitores. Em Manaus, somente a editora Valer possui mais de 700 títulos, a maioria relacionada a temas amazônicos. Autores como Márcio Souza, Marilene Corrêa, Renan Freitas Pinto, Marcos Frederico Krüger, Samuel Benchimol, Mário Ypiranga Monteiro, Thiago de Mello, Elson Farias, Neide Gondim e Luiz Bacellar se destacam entre os mais importantes intelectuais brasileiros em suas áreas. Por fim, quero desejar a todos uma boa leitura e uma edificante Bienal.

Isaac Maciel Editor

Copyright © INVC, 2012 cultural

INVC Instituto Nacional Valer de Cultura Av. Joaquim Nabuco, 1.605 – Centro 69020-030 – Manaus – AM Fone: (92) 3234-9830

Editor responsável Wilson Nogueira – MTb/AM 365 Design e direção de arte Heitor Costa Ilustração Bruno Raphael Assistente de edição Maria do Rosário R. Nogueira – MTb/AM 148 Revisão Núcleo de Editoração Valer


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6 Dez dias de livro e leitura

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16 Simá, um romance amazônico

A história da Amazônia segundo Márcio Souza

24 Imersão no Paiz do Amazonas

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Celebração à Frauta de barro

Elson Farias, o narrador da floresta 28 32 36 40 44 50 56 62

Intérprete das pegadas das ideias Primeiro, a imaginação Festas para pensar Manaus, meu sonho Celebração à Frauta de barro Tudo pelos clássicos Dom Quixote por Vargas Llosa Elson Farias, o narrador da floresta

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Thiago de Mello, amigo das águas Aliados em defesa do planeta De família em família Escrevendo histórias para crianças Um menino cuirão Simplesmente acontece Cabeça bem-feita Novo jeito de aprender


capa

dez dias de livro e leitura

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Bienal do

Amazonas Evento reunirá 60 expositores e 40 autores do Brasil e do exterior, para um encontro com mais de 200 mil leitores

Jony Clay | jornalista

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ãs de aventuras, romances, fantasia e todo tipo de história já podem ir se preparando: no período de 27 de abril a 6 de maio, Manaus será a capital brasileira da literatura. Ao longo desses dez dias, a cidade vai sediar a 1.ª Bienal do Livro do Amazonas, um dois maiores encontros do cenário literário e editorial do país, reunindo palestras e bate-papos com escritores do Brasil e do mundo, exposições de livros, contação de histórias e diversas outras atividades artísticas e culturais envolvendo autores, editoras, livreiros e leitores. A Bienal do Livro do Amazonas deverá reunir nada menos que 60 expositores e 50 autores no Studio 5 Centro de Convenções (avenida Rodrigo Otávio, 3.555, Distrito Industrial). E pelo menos 50 mil estudantes e 200 mil visitantes devem passar pela Bienal, segundo a expectativa da Fagga|GL Exhibitions, que organiza o evento com o patrocínio da Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas (SEC), apoio institucional do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e apoio cultural da Secretaria de Estado de Educação do Amazonas (Seduc). Para isso, o evento conta com uma programação cultural que promete não deixar ninguém parado – na leitura, claro. As atividades serão divididas em quatro grandes eixos: o Tacacá Literário, que vai promover encontros entre escritores para discutir os mais diversos temas do universo Literário; o Livro Encenado, em que atores renomados fazem leituras de obras importantes da literatura amazonense e brasileira; a Floresta de Livros, espaço para o público infanto-juvenil, com acesso a livros para leitura e contação de histórias; e o Território Livre, que busca promover o intercâmbio de ideias e experiências entre o público jovem, com a participação de autores e personalidades da cena local, nacional e internacional.

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Caldo Literário Versão amazônica do Café Literário de outras bienais do livro no Brasil, o Tacacá Literário vai promover 20 encontros, cada qual com a participação de dois escritores e um mediador daqui mesmo da cena cultural de Manaus. A proposta da atração é promover uma troca de ideias entre representantes da literatura de diferentes gêneros – ficção, poesia, crônica e outros – e oriundos de diferentes lugares do Brasil. “Dentre os 40 escritores que irão participar dos encontros, há autores de renome nacional e de relevância inquestionável, e também os bons autores da literatura amazonense. A ideia é a de que a Bienal seja um importante intercâmbio entre esses autores da Amazônia e de fora”, destaca o paranaense Rogério Pereira, jornalista e curador do Tacacá Literário, responsável pela seleção de autores, jornalistas, críticos e agentes culturais participantes dos encontros. A partir da diversidade de olhares, origens e vertentes literárias dos convidados, acrescenta Rogério, a proposta do Tacacá Literário é discutir também uma vasta gama de temas ligados ao ato de ler e ao fazer literário. “Queremos trazer temas os mais diversos, como tecnologia na leitura, o poder do leitor, a importância da leitura, a literatura indígena, a força da poesia amazonense, biografias, ou por que a crônica permanece forte nos nossos dias”, enumera. Cada encontro do Tacacá Literário terá duração aproximada de 90 minutos e começa com os convidados respondendo a questões levantadas pelo mediador a partir da temática escolhida. Mais tarde, a discussão é aberta ao público, que poderá fazer perguntas e trocar ideias com os participantes, numa interação entre escritores e leitores. Em alguns eventos, haverá espaço para lançamentos de livros e sessões de autógrafos após o debate. Os encontros, aponta Rogério, serão uma oportunidade fantástica para os leitores de Manaus travarem contato com os autores de suas obras prediletas, uma relação que poucas vezes passa das páginas para o mundo real. “Muitas vezes, o leitor acha que o seu autor predileto é alguém inacessível, e num evento como a bienal, ele percebe que essa distância com o autor é mais física”, avalia o curador. Essa quebra de barreira entre o leitor e o escritor, pondera ele, “é importante no sentido de fortalecer o hábito da leitura e dessacralizar a imagem do livro”. O curador do Tacacá Literário destaca, ainda, que haverá atrações para leitores de todas as idades e amantes dos mais variados estilos e vertentes literárias. “É uma programação bem diversificada e consistente para quem gosta do livro e da leitura, reunindo autores significativos da cena brasileira e do Amazonas. Vai ser divertido, lúdico, com mesas

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de quadrinhos e de literatura infanto-juvenil. Vai ser para todo mundo”, resume. Até o fechamento desta edição, a lista completa dos participantes da Bienal do Amazonas ainda não havia sido divulgada. Dos autores do Amazonas, confirmaram presença: Luiz Bacellar, Márcio Souza, Milton Hatoum e Thiago de Mello. Entre os nomes anunciados com antecedência – confira alguns deles no final da matéria, em destaque – está o do gaúcho Fabrício Carpinejar, poeta, jornalista e apresentador de TV, que já passou por Manaus e por Itacoatiara no Festival Literário Internacional da Floresta, o Flifloresta, em 2008. Ele é um dos convidados do Tacacá Literário. “É uma mesa de poesia, mas vou tentar traficar um pouco de crônica”, brinca o escritor, em entrevista por telefone à reportagem (ler box calor, carinho, curiosidade) O Livro Encenado deverá atrair os olhares não só do público leitor, mas dos fãs do teatro e da televisão. Isso porque a iniciativa vai trazer a Manaus grandes atores para promover leituras dramatizadas de textos clássicos da literatura amazonense e brasileira. Ao todo, serão cinco apresentações em dias alternados da bienal, cada uma com diferentes artistas e dedicada a uma obra particular. “A apresentação será num espaço bem intimista, apenas com um banquinho, um microfone, e possivelmente algum adereço cênico. O Livro Encenado é uma forma de aproximar o jovem leitor do livro e da literatura por meio da leitura de atores: o fato de ver um ator famoso lendo uma obra pode ser uma forma de estimular o interesse do público por aquele livro”, explica Socorro Andrade, conhecida pelo trabalho à frente da Cia. de Teatro Metamorfose e escolhida pelos organizadores da Bienal para ser curadora da atração.

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A lista de artistas participantes do Livro Encenado ainda não estava fechada quando esta reportagem estava sendo escrita, mas as obras escolhidas para serem lidas na atração, sim. São elas: Dom Casmurro, de Machado de Assis; Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum; Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector; Suíte para os habitantes da noite, do saudoso Anibal Beça; e Gente dos seringais, de Álvaro Maia. Antes de cada leitura, haverá uma breve apresentação da vida e obra dos autores de cada título. Assim como a seleção dos atores e a coordenação do espaço, a escolha dos livros a serem encenados ficou a cargo de Socorro, que equilibrou o gosto particular com critérios de relevância e importância para chegar à lista final. “É um trabalho muito prazeroso, pois gosto muito de ler, e essas são obras de que gosto bastante, e que precisam ser mais conhecidas pelo público. Queria aproxi-

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mar a juventude de autores nossos”, destaca a curadora. Por conta de seu trabalho com o projeto Livro vivo, realizado em espaços culturais de Manaus, Socorro já participou de outras duas edições da Bienal do Livro – em São Paulo, em 2000, e no Rio de Janeiro, em 2001. Ela conta ter ficado feliz com o convite da Fagga para ser curadora no evento amazonense, e se mostra entusiasmada com o trabalho no Livro Encenado. “Será um espaço bem concorrido, e para mim tudo é novo, pois estou lidando e entrando em contato com atores famosíssimos, além de escolher as obras a serem lidas. Na hora também vou ter de dirigi-los, de certa forma. Tudo tem sido desafiador”, salienta ela.

Territórios e florestas Os jovens leitores serão privilegiados na Bienal do Livro do Amazonas: duas das quatro principais atividades do evento, o Território Livre e a Floresta de Livros, serão dedicados às crianças e adolescentes. E com razão: afinal, eles poderão vir a se tornar os futuros convidados de bienais do Livro daqui e de outros lugares do país. O Território Livre terá como proposta promover o intercâmbio de ideias e experiências entre o público juvenil, ao longo de dez encontros com

a participação de escritores e personalidades da cena literária brasileira, contemplando também convidados locais. A curadoria da atividade está a cargo da gaúcha Suzana Vargas, poeta, autora de livros infantis, ensaísta, produtora cultural e professora de Literatura. Para ela, a realização da Bienal do Livro no Amazonas é uma oportunidade de difusão da leitura e de estímulo à formação para o público local. “A 1.ª Bienal do Livro Amazonas vem atender às demandas da região por eventos de grande porte e que funcionem como disseminadores da ideia de que ler ainda é o melhor negócio pessoal. Quem lê aposta em si mesmo, em sua formação, informação e em melhores oportunidades”, declarou ela, à assessoria de imprensa do evento. Por sua vez, a Floresta de Livros promete ser um dos ambientes mais movimentados da Bienal do Amazonas. Voltada para as crianças, o espaço vai oferecer aos leitores mirins uma ampla variedade de livros para leitura, e também abrigar espetáculos teatrais com contadores de histórias. Ao todo, quatro esquetes serão apresentadas em 56 sessões pelos artistas da Artcena, companhia de teatro de Manaus. A curadoria do espaço será de Daniele Chindler, autora de livros infantis, produtora cultural e contadora de histórias.

O livro é o protagonista Rogério Pereira, que é diretor da Biblioteca Pública do Paraná e coordena o Sistema Estadual de Bibliotecas Municipais e o Plano Estadual do Livro, Leitura e Literatura em seu Estado, e já trabalhou em festivais literários de diversos lugares do Brasil, aponta que uma Bienal do Livro é uma oportunidade para uma cidade ou Estado fortalecer suas políticas voltadas para o livro e a leitura. “O que precisa ficar claro é que o evento da bienal é muito importante, mas é importante também que haja uma política permanente de livro e leitura. Se você tem isso, a bienal vem agregar e fortalecer. Se não, ela pode ser um ponto de partida para discutir políticas públicas do Estado ou da sociedade. Essa questão não depende exclusivamente dos governos, ainda que em boa parte esteja nas mãos deles, por conta das escolas e bibliotecas. A bienal é importante porque coloca o livro e a

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leitura no centro das atenções durante um período de dez dias. É como se você dissesse: ‘O livro é protagonista, vamos participar’. Isso pode fortalecer um movimento, e cada cidade aproveita esse momento segundo sua vontade de participar, de mobilizar as pessoas e instituições”, afirma o curador. Ele se declara otimista com a realização da primeira bienal no Estado, iniciativa pioneira na Região Norte: “Sempre sou otimista. Acho que será relevante, culturalmente importante, e pode criar uma tradição que já vem sendo consolidada em vários outros Estados”.

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Calor, carinho, curiosidade

Foto: Alexia Santi/Folha imagem

Há anos Carpinejar se desdobra entre a produção de seus livros, trabalhos em jornais, rádio e televisão, e a participação em encontros e festivais literários de Norte a Sul do país. Apesar do sufoco, ele considera tais oportunidades de encontro com os leitores uma etapa essencial no fazer literário. “Sempre que o escritor encontra o seu leitor acontece uma revisão da obra, um enfrentamento, uma provocação, um enriquecimento de detalhes. É uma reprise poética do que foi redigido, e que mostra nossa incrível incompetência para não conseguir repetir lembranças. Também despertam novas crônicas, enquanto você está disposto a ouvir”, diz. A possibilidade de intercâmbio com outros escritores e com a produção literária de outros Estados e regiões é outro aspecto positivo dos festivais literários, de acordo com Carpinejar. “Penso que isso fortalece o respeito aos autores do Estado, pois é uma forma de outros autores conhecerem melhor a produção local, que muitas vezes é publicada por institutos estaduais ou editoras locais”, assinala ele. Chegar a um local como desconhecido, por outro lado, também é instigante: “Sempre festejo quando não conhecem meu trabalho, pois é uma chance de surpreender”. Carpinejar – que adotou esse sobrenome em 1998, contraindo o Carpi Nejar de nascença – se declara admirador de autores amazonenses, como Márcio Souza, Anibal Beça e Tenório Telles. Mais além, também se diz fã do público amazonense. “É o que eu falo: no Amazonas tem essa tríade de carinho, calor e curiosidade. Funciona muito bem aí em Manaus, e sempre é muito bom quando visito a cidade”, confessa.

Sempre que o escritor encontra o seu leitor acontece uma revisão da obra, um enfrentamento, uma provocação, um enriquecimento de detalhes”

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Fotos: Divulgação

Expositores A bienal terá uma grande exposição de livros, com a participação de diversas livrarias, instituições e editoras locais e nacionais. A lista inclui, entre outros, Livraria Lira, Paulinas, Paulus, Cortez Editora, Editora Abril, Senac, Editora Saraiva, Sur Livros em Espanhol, Editora Três, Ibama, Editora Vozes e Editora e Livraria Valer. A Valer, principal editora do Amazonas, terá um estande exclusivo para expor e vender as suas mais de 700 obras publicadas nos últimos quinze anos. Para não deixar a 1.ª Bienal do Livro do Amazonas passar em branco, fique atento ao calendário: o evento acontece de 27 de abril a 6 de maio, com visitação do meio-dia às 22h (dia 27), e de 10 às 22h (demais dias). Não perca!

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Ação pública A depender do Governo do Estado, a 1.ª Bienal do Livro do Amazonas será só a primeira de uma série de ações voltadas para o segmento de livro e leitura em Manaus e em municípios do interior. Isso porque o grande encontro literário será o ponto de partida do programa estadual Mania de ler, que tem como meta desenvolver outras 47 iniciativas para disseminação do livro e estímulo à leitura entre o público amazonense. “A Bienal do Livro será a mola de impulsão de mais 47 projetos de estímulo ao livro e à leitura, que integram o programa Mania de Ler, no qual a bienal se insere. Ela abre oportunidades aos novos escritores, reconhece e proclama os autores que já alcançaram projeção dentro e fora do Amazonas e do país, e deverá ser um vetor de grande estímulo às editoras e livrarias locais. Além disso, abre o Amazonas como um mercado para o livro”, afirma Robério Braga, secretário estadual de Cultura. A Bienal do Livro do Amazonas é um sonho antigo dos profissionais do segmento livreiro do Estado e a efetivação de um compromisso do Governador Omar Aziz com os editores e livreiros amazonenses.

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Convidados da Bienal

Fotos: Divulgação

Seguindo a linha das demais bienais realizadas no país, a Bienal do Livro do Amazonas vai reunir em Manaus talentos literários do cenário nacional e internacional. Entre os nomes internacionais confirmados com antecedência para o evento estão os do angolano valter hugo mãe (as minúsculas do nome são propositais), da chilena Carola Saavedra e do argentino Andrés Neuman

Fundador, em Portugal, da Quase Edições, pela qual publicou obras de Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e Ferreira Gullar, valter hugo mãe atingiu o reconhecimento público ao receber o Prêmio Literário José Saramago, em 2007. A premiação foi entregue pelo próprio Saramago, que na ocasião declarou sua admiração pelo livro “o remorso de baltazar serapião” (2006), de mãe, que considerou um “tsunami literário”.

Uma das integrantes da mesa O poder da escritura, na programaçao do Tacacá Literário, será Carola Saavedra. Embora nascida no Chile e tendo morado por muitos anos na Europa, a autora fez despertar seu talento literário aqui mesmo no Brasil, tendo publicado quatro livros: Do lado de fora (2005), Toda terça (2007), Flores azuis (2008, finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura, além de vencedor da Copa Brasileira de Literatura) e Paisagem com dromedário (2010).

Confira a programação no site www.bienaldolivroamazonas.com.br

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Com 35 anos de idade, 20 livros na bagagem e o reconhecimento de autores célebres como Roberto Bolaño, Andrés Neuman é uma das estrelas internacionais da Bienal do Livro do Amazonas. Curiosamente, ele foi professor de futebol e vendedor de sorvetes antes de despontar como um dos mais importantes autores em língua espanhola. Um de seus livros mais conhecidos é Viajante do século, traduzido para 11 línguas e ganhador de prêmios importantes na Espanha.

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Anibal Beça, Arthur Reis, Álvaro Maia

Personalidades das letras

Programas e iniciativas futuras à parte, a 1.ª Bienal do Livro do Amazonas será também um momento de resgate da riqueza literária amazonense, com a homenagem a cinco grandes nomes do passado que deram sua contribuição às letras do Estado. Um dos escritores a ser homenageado é o ex-governador Arthur Cézar Ferreira Reis (19061993), autor de obras como História do Amazonas (1931), O processo histórico da economia amazonense (1944) e A Amazônia que os portugueses revelaram ao mundo (1957). Outro ex-governador do Estado, Álvaro Botelho Maia (1893-1969), também receberá home-

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nagem na bienal do Amazonas, além de ter seu livro Gente dos seringais incluído entre as leituras dramatizadas do Livro Encenado. Da cena literária mais contemporânea, um dos homenageados é Anibal Beça (1946-2009). Poeta, tradutor, compositor, teatrólogo e jornalista amazonense, ele tem entre suas obras poéticas Convite frugal (1966) e Filhos da várzea (1984). Seu livro Suíte para os habitantes da noite (1995), também incluído no Livro Encenado da bienal, foi ganhador do 6.º Prêmio Nacional Nestlé de Literatura.

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Fotos: Heitor Costa

Flifloresta

A Bienal do Livro do Amazonas é, juntamente com o Festival Literário Internacional da Florestal (Flifloresta), a mais significativa das iniciativas dedicadas ao livro e à leitura no Estado. Entre 2008 e 2010, o Flifloresta, realizado pela sociedade civil em parceria com o grupo Valer, apoiado pelo Governo Federal, Sebrae e Governo do Amazonas, promoveu encontros com escritores e atividades em Manaus e em municípios como Careiro da Várzea, Maués e Parintins. Os organizadores estimam que ao menos 500 mil pessoas participaram das atividades do Flifloresta: lançamentos, conversas com escritores, debates e conferências ecológicas. O Flifloresta/Manaus reuniu sessenta escritores do Brasil e do exterior. Foram recepcionados autores de Angola, Cuba, Nicarágua, Uruguai e Venezuela. Os escritores indígenas, por sua vez, apresentaram sua produção literária e discutiram temas relativos a essa atividade em estande oferecido pelo evento. Nos municípios, o Flifloresta celebrou o livro em encontros de leitores e escritores amazonenses. Em Parintins, o encontro ocorreu num centro de convenções, em Maués, Itacoatiara e Careiro da Várzea, na praça pública. valercultural

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Foto: Heitor Costa

pensamento amaz么nico

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Simá,

um romance amazônico

Tenório Telles | escritor e editor

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m dos livros mais contundentes da literatura brasileira, o romance Simá – romance histórico do Alto Amazonas é contemporâneo do ciclo das narrativas indianistas do Romantismo brasileiro. Seu autor, Lourenço Amazonas, publicou-o em 1857, mesmo ano em que O Guarani veio a público. O livro de Lourenço se vincula, pelo tema, a Iracema, clássico de José de Alencar, embora seja anterior ao texto do romancista cearense, que só foi publicado em 1865. Ouso afirmar que o precursor dessa reflexão sobre a questão da construção da identidade nacional, expresso no encontro do valercultural

mundo europeu e o primitivo, não é Alencar, mas Lourenço Amazonas, militar baiano que passou parte da sua vida na Amazônia, convivendo com os indígenas e com o processo de colonização da região. Simá, do ponto de vista temático e histórico, tem mais relevância que Iracema, embora faltasse a Lourenço Amazonas o talento literário de Alencar. A percepção do autor de Simá em relação à presença europeia na Amazônia é crítica e pessimista, o que o difere do autor de Iracema, que é complacente e tenta justificar o processo civilizatório empreendido pelos europeus no Brasil e no continente americano. A postura de Lourenço é radical, sem condescendência com a violência e oportunismo de Régis, português que simboliza o colonizador: acolhido na casa de Marcos, um tuxaua Manau destribalizado, violenta a filha do indígena, Delfina, e a engravida. Para alcançar o seu intento, Régis usa o mesmo artifício que Alencar usará em Iracema: oferece vinho com ópio a Marcos e sua filha, que se embebedam, tornando-se presas fáceis dos intentos do português, que, aproveitando-se da situação, estupra Delfina. Em Alencar, a personagem indígena, Iracema, seduz Martim, o português, sendo, assim, responsabilizada pelo nascimento de Moacir, fruto dessa relação espúria. A perspectiva de Lourenço Amazonas é outra: o encontro do civilizado, representado por Régis, com o primitivo, Delfina, foi traumático e violento, como a ilustrar o comportamento da 17


Simá, do ponto de vista temático e histórico, tem mais relevância que Iracema”

Vila da Barra do Rio Negro (1848)

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civilização europeia em relação aos povos autóctones da Amazônia e da América. Após a tragédia vivida pela filha, Marcos deixa a região do Solimões, onde morava, e volta para o rio Negro, numa tentativa de reconciliação com suas origens. Com esse gesto, pretendia esquecer o passado, o que fica evidente na sua decisão de mudar de nome. Passa a se chamar Severo. Após conceber sua filha, Simá, que em língua geral quer dizer luz, Delfina morre de tristeza. O avô de Simá a cria dentro dos costumes do povo Manau. Torna-se uma moça bonita e é prometida a Domingos de Dari, jovem de sua etnia. Régis chega ao rio Negro e se encanta com a beleza de Simá, usando de artifícios para conquistá-la, como já fizera com sua mãe. Não suspeitava que a personagem era sua filha, fato que só vai ser esclarecido na cena mais dramática do romance, em que ocorre a morte de Simá e Régis reconhece o colar que estava em seu pescoço, o mesmo que ele pusera em Delfina na noite em que a estuprara. É o momento em que se estabelece o diálogo com o pai da heroína e tudo se revela: “Eu sou Marcos lá de Coari’’. Régis entra em desespero porque descobre que Simá, a quem acabara de causar a própria ruína, era na verdade sua filha. Em desespero, pede para morrer e grita pela filha: “– Simá, minha filha!!!”. Simá, antes de seu último suspiro, dirige-se a Régis: “– Meu pai!!! Eu lhe perdoo”. Dessa forma trágica termina esse romance maravilhoso, que na verdade é uma reflexão sobre a presença europeia na Amazônia, sobre o encontro de dois mundos que se chocam e, ao mesmo tempo, atraem-se pelo fascínio ao desconhecido. O romance de Lourenço Amazonas é mais que uma denúncia, é uma metáfora da tragédia vivida pelos povos nativos da Amazônia.

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Ideal para qualquer ocasião 15,5 x 23 cm 196 páginas ISBN 978-85-220-1350-0 R$ 34,90

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Os livros da Nova Fronteira, Agir e Thomas Nelson você encontra na Livraria Valer


A obra apresenta uma ampla visão da formação histórica da Amazônia, com ênfase nos aspectos políticos, sociais e culturais das lutas das suas populações tradicionais diante das forças colonizadoras.


pensamento amazônico

A história da Amazônia segundo

Márcio Souza A obra foi escrita para ser um farol e lançar luzes sobre as sombras que pairam sobre o tempo e a memória desse vasto e imenso mundo verde e aquoso – e quem sabe ajudar a “superar os erros e até sarar as feridas”. Tenório Telles

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história é um espelho em que se refletem os dramas, as lutas e as esperanças dos seres humanos e civilizações. Contemplá-lo permanentemente é condição imperativa para não cairmos nas repetições e armadilhas que o destino nos impõe. Fruto desse entendimento, o filósofo italiano Benedetto Croce concebia o fenômeno histórico como elemento vivificador da consciência: “A cultura histórica tem o objetivo de manter viva a consciência que a sociedade humana tem do próprio passado, ou melhor, do seu presente, ou melhor, de si mesma”.

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O escritor Márcio Souza, cioso da importância da memória histórica no processo de construção da nacionalidade e de formação da subjetividade dos indivíduos, elabora uma obra que tem como um de seus fundamentos a consciência histórica. Sua produção ficcional, ensaística e dramática reflete essa preocupação e, sobretudo, sua profunda identificação com a resistência dos homens e mulheres da Amazônia – em luta permanente contra as investidas dos projetos colonialistas e interesses alienígenas que ameaçam a região. Ao escrever História da Amazônia, Márcio Souza elabora um testemunho contundente sobre a história do subcontinente amazônico e faz a denúncia do processo de destribalização e massacre perpetrado historicamente contra suas populações. Considera que o “processo histórico da

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Imagens extraídas do livro “História da Amazônia”

Amazônia... tem sido como o instinto animal livre que defende o seu território, que delimita o seu domicílio e repele as investidas da desinformação e do preconceito. Cada momento da história, ao correr o risco de cair no esquecimento ou sofrer uma explicação mistificadora, deve ser como uma prova do ato coletivo de existir, como um marco da presença afirmada ao longo do tempo. Por isso, há livros de História com o mesmo prestígio de uma vitória bélica. E são essas obras que acompanham a construção da personalidade de um povo, como um testemunho de potência, de seu desejo afirmativo”. História da Amazônia possui esses atributos. É um livro escrito para dizer não ao esquecimento, lançar luzes sobre o passado, denunciar os criminosos e resgatar do limbo os oprimidos e mas-

A presença indígena no processo histórico regional é um fator de afirmação cultural

Aquarela retratando o Rio Içana

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É um livro escrito para dialogar com o presente, com os jovens, com os professores, com os homens e mulheres que se preocupam com o presente e o futuro da Amazônia”

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Foto: Divulgação

sacrados. É um livro escrito para dialogar com o presente, com os jovens, com os professores, com os homens e mulheres que se preocupam com o presente e o futuro da Amazônia. Este livro é um chamamento à consciência – libelo contra a perda da memória, para que tenhamos sempre a memória de nossos erros e, assim, possamos trabalhar pela construção de um futuro histórico que não seja a expressão de nossa derrota, mas da vitória do ser humano sobre a opressão e a destruição de nossos rios, florestas, bichos, valores culturais, saberes milenares e dos seres encantados das matas. De nossa identidade, que, como nos alerta o autor, é “um corpo formado pelos rios enormes, pelas selvas brutalmente dilaceradas, pelos povos indígenas dizimados, pela saga de homens na conquista da natureza.

Mas ao mesmo tempo não deixa de estar perenemente voltada para Meca, que é a própria Amazônia, um espaço tão vasto quanto a crença, capaz de fazer a geografia confluir para a pedra negra que dentro de nós indica que somos da Amazônia, filhos da mata, filhos das águas”. O objeto do livro não é apenas a Amazônia brasileira, “mas também aquelas que falam espanhol, inglês e holandês”, e especialmente a que é berço das populações nativas que forjaram sua identidade e história antes da chegada dos conquistadores. A obra foi escrita para ser um farol e lançar luzes sobre as sombras que pairam sobre o tempo e a memória desse vasto e imenso mundo verde e aquoso – e quem sabe ajudar a “superar os erros e até sarar as feridas”.

Márcio Souza nasceu em Manaus, em 1946. Estudou Ciências Sociais, é escritor, crítico de cinema e dramaturgo. Estreou com O Mostrador de Sombras, em 1967, mas ganhou fama com o romance Galvez, Imperador do Acre, lançado em 1976. Entre outros, publicou também A Resistível Ascensão do Boto Tucuxi (1982), O Palco Verde (1984) e A Caligrafia de Deus (1994) e História da Amazônia (2009).

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Vista da cidade de Belém do Pará após chuva

Índia da etnia Munduruku com seu filho no colo

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Imersão no

Paiz do Amazonas Obra de Marilene Corrêa torna possível uma compreensão atualizada dos processos socioculturais da formação da Amazônia brasileira

Neiza Teixeira | filósofa e escritora

N

a apresentação da obra O paiz do Amazonas, a autora, Marilene Corrêa, afirma que se trata de um estudo sobre o modo pelo qual a Amazônia foi criada

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e os processos que cercam a sua integração na Nação brasileira. De início, a obra chama a atenção desde o título, no qual é registrado Paiz com Z e não com S e sem o acento agudo no I, o que já indica tratar-se de uma leitura do Amazonas visualizando o processo de sua formação: desde as origens até a sua constituição como uma unidade da Federação Brasileira. Apesar de existirem muitas obras que têm como temática a Amazônia ou, especificamente, um dos estados que a compõe, o Amazonas, nem todas apresentam elementos que possam ajudar-nos a compreendê-los melhor. Algumas são dignas de interesse e merecem estar no rol dos clássicos. A esse respeito, não se pode dizer a priori que uma obra nasce pronta ou que ela cumpre a função de revelar tudo sobre um determinado tema, mas pode-se dizer, após o julgamento do outro, o que não se faz sem o distanciamento histórico ou sem a avaliação dos pares, que uma ou algumas são mais consistentes teoricamente e que os seus

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pensamento amaz么nico

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autores têm a inspiração necessária para produzir a matéria imprescindível ao conhecimento do homem. O julgamento referido não é fácil, principalmente porque hoje é razoavelmente grande a produção de teses, especulações sobre os mais variados assuntos, o que dificulta que se possa ver com acuidade, dentre elas, ensaios, romances, poesias, filmes etc. as que encerram novidades. Assim, é necessário que os autores sejam incentivados a produzir obras; a fazer pesquisas sérias e acompanhadas; que os editores sejam recompensados pelo seu trabalho; que as crianças, os jovens e os adultos sejam incentivados a ler e a fazerem os seus julgamentos. Quanto maior o número de autores; quanto maior o número de leitores; quanto maior e mais embasada a leitura, mais oportunidades nós teremos de nomear e de consagrar os que merecem destacar-se como conhecedores e de reconhecer as obras que merecem a classificação de imprescindíveis.

A Amazônia desde sempre é tida como um mistério”

É, apesar da economia de palavras e do tempo necessário para um estudo mais aprofundado, com a determinação de que é urgente que se faça separações, indicações, nomeações e classificações que se inicia a leitura da obra já referida. Poderia ser fácil fazer o que se propõe, tendo em vista que Marilene Corrêa é reconhecida pelo seu trabalho como professora universitária e como autora de obras referenciadas pelos estudiosos da área, por exemplo, a que está em questão; todavia, toda obra é obra somente quando ela permite a abertura para leituras sempre novas. Por outras palavras, uma obra, quando verdadeiramente se pode assim classificar, deve exalar, a cada movimento através das suas páginas, o cheiro da novidade ou do renovo; ela deve provocar inquietações, o que até poderia levar a outras produções, ou suspiros de alegria naquele que, nela, pretende encontrar respostas ou amparo para as suas indagações. É com esse entendimento que se faz a leitura em pauta. A Amazônia desde sempre é tida como um “mistério”. Neide Gondim, na obra A invenção da Amazônia, bem como Paes Loureiro, na obra Cultura amazônica – uma poética do imaginário, fizeram leituras que nos incentivam a conhecer melhor a Amazônia, como também evidenciam que ela é um mistério desde que os primeiros europeus co26

Representação e construção

A

autora identifica a Amazônia, no decorrer do seu processo de construção, em três representações: A Amazônia Portuguesa – aqui a autora diz que essa nasce perseguida por vários dilemas. Reforma e revolução, mercantilismo e capitalismo, absolutismo e república, trabalho escravo e trabalho livre; a Amazônia indígena – como diz a autora, a Amazônia Indígena antecede e atravessa a Amazônia Lusitana. É resultado de uma ocupação humana pré-colonial, de organizações societárias diferentes da civilização ocidental e dos processos de colonização portuguesa e de constituição da sociedade brasileira; a Amazônia brasileira – esta, conforme Corrêa, é continuidade e ruptura com a Amazônia portuguesa. Aqui, o Vice-Reino do Grão-Pará e do rio Negro é superado pela perspectiva da Amazônia brasileira, de brasileiros natos, unidos pelo mesmo solo, pela mesma língua, pelas mesmas leis, tradições, experiências comuns etc.

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meçaram a, sobre ela, fazer as primeiras especulações, a dar as primeiras explicações. Por conta de obras como essas, não nos é mais desconhecida a invenção da Amazônia, bem como não podemos ignorar o imaginário que dela se acerca, melhor dizendo, que a envolve, como a maloca do Universo, uma das exposições sobre o nascimento do mundo amazônico. Aqui, porém, Marilene Corrêa ampara-se no conhecimento científico, que não deixa de considerar poéticas do imaginário; na mitologia dos povos que, desde que se têm notícias de uma terra incógnita, habitavam a região; nos registros dos viajantes, estes, povoados de todos os possíveis emergidos de uma Idade Média eivada de medos e de entrega ao desconhecido ou ao deus distante, para sustentar de maneira segura e reconhecível pela razão uma região que abriga variedades de povos, de culturas que extrapolam os conhecimentos e os sentimentos dos nativos e se misturam com outros povos, com outras culturas e constroem cosmovisões singulares, pertencentes a um espaço que explicita o enfrentamento constante entre razão e desrazão. Não é o intento da autora revelar o conflito referido; todavia, ela conduz-nos a pensar sobre ele. Pela via do conhecimento sistematizado, ela tenta domesticar o conflito atávico que acomete cada um de nós. Para satisfazer o seu intento, o objetivo ao qual se propôs, como seguidora e ouvinte da razão, a autora subsidiou-se da História, da Sociologia, da

Antropologia e da Literatura, todas, com indicações femininas, todas, evidenciando a fertilidade própria desse gênero: a capacidade de abrigar o futuro nascente. Assim, e com a fertilidade própria, mas incapazes de determinar o fim de cada uma, todas se apresentam como estradas sem final, como vias que seguem agoniadamente o seu caminho, ora esbarrando-se, ora furtando algo uma da outra, ora confundindo-se e ora sem saber, de fato, qual o seu caminho. A metáfora serviu, apenas, para dizer algo sobre os caminhos confusos que se desenham com a pós-modernidade e que, todavia, precisam, necessariamente, redefinir-se. A Amazônia brasileira é paralela à constituição da Nação brasileira, à unidade nacional. Assim, identifica-se a Amazônia como uma região peculiar, que carrega consigo as suas aspirações que explodiram em forma de revoluções, como por exemplo, a Cabanagem. Em O paiz do Amazonas, a autora declara a impossibilidade de um conhecimento único expressar algo consistente sobre um objeto. Ela demonstra que não mais é possível que nos contentemos com as leituras isoladas; que não mais é tempo e há tempo para estabelecer hierarquias. Não é muito fácil estar na Terra após o século 20, assim como não é fácil assegurar que se criou um saber que será aconselhável para o outro. Sem a Verdade, sobram as Verdades; sem a História, sobram as Histórias; sem o Homem, sobram os Homens. É assim que se constrói O paiz do Amazonas.

A constituição da Amazônia foi resultado do encontro de dois mundos diversos: o europeu e os povos que habitavam a região

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pensamento amazônico

Intérpre

das pe Renan Freitas Pinto acentua, em ensaio, que o pensamento colonizador desconsidera até hoje o conhecimento dos povos indígenas da Amazônia Wilson Nogueira | escritor e sociólogo

O

professor e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Renan Freitas Pinto conquistou, por meio da sua produção intelectual, a posição de importante pensador das questões amazônicas. Em Viagem das Ideias (Valer, 2007), o autor revisita, criticamente, as pegadas que forjaram uma história e uma tradição de pensar, um imaginário e uma narrativa que comunicaram, para o mundo colonizador, a existência da Amazônia. Trata-se, também, de um instigante roteiro de sugestões de pesquisas para a compreensão da formação do pensamento social amazônico.

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prete

pegadas

das ideias O doutor em Geografia Humana José Aldemir de Oliveira apresenta a obra em quatro seções de ensaios. Na primeira, Pinto discute temas universais articulados à interpretação do Novo Mundo, do Ocidente versus Oriente, do eurocentrismo, tendo como base de análise autores como Montaigne, Buffon, Montesquieu e Hegel. Na segunda, recupera os relatos de Acuña, La Condamine, Avé-Lallemant, Alfred Wallace, Louis e Elizabeth Agassiz. Na terceira, analisa as obras de Samuel Fritz, João Daniel, Alexandre Rodrigues Ferreira, Euclides da Cunha, Theodor Koch-Grünberg – uma cartografia precisa do azimute da origem da interpretação da Amazônia. A quarta parte é dedicada aos autores que nasceram ou viveram na Amazônia, como Araújo Lima, Eduardo Galvão, Djalma Batista, Arthur Reis, mas que a interpretaram sem se libertar do olhar do colonizador. Para Pinto, as ideias “possuem a capacidade de se impor como sistema de pensamento dominante”. Esse modo de pensar e agir dominante, entretanto, não deu conta – e não dá sinais de que dará – de superar problemas como colonialismo, preconceito, intolerância e injustiça, todos engendrados desde a colonização da região, no século 16. O principal problema em questão refere-se ao impasse entre a lógica do modo capitalista de produção, orientada pela produção e consumo em larga escala, e a do modo de viver das populações que habitavam o Novo Mundo. valercultural

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Compreende-se, com a Viagem das ideias, que antes da colonização, feita por meio de sucessivas invasões, o chamado Novo Mundo era formado por civilizações que pensavam, agiam e significavam suas existências de modos distintos aos dos invasores. As populações amazônicas passaram – e ainda passam – por esse processo de banimento das suas ideias e práticas em acordo com a natureza. Trata-se de uma das mais significativas contribuições ao debate contemporâneo em torno de uma possível compreensão da Amazônia que considere a importância dos bens material e intelectual das suas populações tradicionais, principalmente os das sociedades indígenas. Nos ensaios Florestas culturais propõem novos paradigmas e O lugar das etnociências, Renan apresenta uma inovadora interpretação do tempo presente da Amazônia, com a qual pretende responder às demandas socioambientais não somente da região, mas do planeta. Sua abordagem tem força de reflexão e ação porque não perde de vista a experiência das populações ancestrais e contemporâneas da região. Leva em conta ideias eclipsadas, uma revisão profunda dos conceitos sobre os quais se tem pensado a resolução dos problemas da Amazônia, e os saberes das populações tradicionais amazônicas. A nova postura decorre da mudança na forma de pensar e interpretar a relação entre diversidade natural e diversidade cultural. Ainda hoje, argumenta o sociólogo, prevalecem os paradigmas

Viagem das Ideias possui a força da memória e da imaginação, ingredientes indispensáveis a uma narrativa consistente”

de que os sistemas florestais amazônicos são homogêneos e hostis às civilizações modernas e ao progresso humano. Do mesmo modo, mantêm-se presentes as ideias da debilidade da natureza e dos índios para produzir tecnologias e se organizar social e politicamente. Nesse tipo de postura se encontram as pegadas de Aristóteles, Montesquieu, Buffon, Hegel, Alexandre Ferreira Rodrigues e outros, conforme sustenta a Viagem das ideias em sua extensão. Renan propõe que a Amazônia seja pensada por meio do conceito de floresta cultural, que inverterá a lógica que domina hoje o pensamento social amazônico. Isso implica reconhecer as interações entre as populações indígenas e o meio natural em seu sentido mais efetivo. “[...] ao admitirmos que os diferentes sistemas florestais existentes na Amazônia teriam se desenvolvido através de diferentes formas de intervenção humana que explicariam, não apenas a presença e a


Foto: Divulgação

ou mesmo se protegiam dos inimigos cercando seus territórios com gigantescas valas. Outro exemplo do legado ancestral indígena se refere às plantas medicinais, cujo direito à propriedade intelectual das comunidades tradicionais é negado pelo Estado. Renan faz emergir conhecimentos que não se encontram nos quadros dos sistemas das ideias preponderantes, porque haviam sido menosprezados em favor de certo racionalismo. De outro lado, há saberes que se perderam com o fim dos grupos humanos que os desenvolveram, como parece ser o caso das civilizações pré-colombianas. Essas ideias e conhecimentos não foram derrotados nem eclipsadas, porque, provavelmente, antes mesmo da invenção do Novo Mundo elas só

distribuição de determinadas espécies em territórios ocupados no passado e no presente por populações humanas, mas que devem ser recuperados de modo sistemáticos [...] os grandes e diversificados acervos de conhecimento de etnobotânica, etnozoologia, etnofarmacologia e etno-história, que correspondem ao patrimônio cultural dos povos indígenas. Reconhecer esse patrimônio implica numa mudança radical nas relações da sociedade nacional com os povos indígenas no sentido de reconhecê-los como fundamentais para a garantia da pluralidade cultural que está no destino da Amazônia, assim como através de seus conhecimentos. Esse parece ser o caminho que só aos poucos está sendo revelado de forma exaustiva e sistemática. Esse parece ser o caminho para encontrarmos os meios necessários para propormos novos modos de relação entre a diversidade social e cultural e as características intrínsecas das biodiversidades que essas etnociências estão ajudando a conhecer”, acentua na página 239. As perspectivas de Renan se assentam nas pesquisas reveladoras de que as sociedades indígenas, desde a era pré-colombiana, dominavam tecnologias de manejo da natureza e possuíam organizações sociais complexas. Incluem-se nesse rol de descobertas o fato de se considerar hoje que ao menos 60% da floresta amazônica foram manejados por civilizações pré-colombianas. De igual modo, descobre-se que esses povos construíam aquadutos para se abastecer e irrigar plantações valercultural

Renan Freitas Pinto é pesquisador e professor de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Mestre em Sociologia, pela UFRGS, e Doutor em Sociologia, pela PUC de São Paulo. Conquistou posição de destaque entres os pensadores que se dedicam aos estudos da formação socioeconômica da Amazônia. Viagem das ideias é uma síntese de suas reflexões sobre o processo cultural da Amazônia e a forma como ocorreu sua constituição e seus vínculos aos acontecimentos globais desde as origens.

existiam em vestígios ainda não decifrados. Essa opinião se sustenta na premissa de que Renan aborda narrativas escritas de intelectuais que pensaram a Amazônia baseada em documentos ou informações de toda ordem e obtidas em condições limitadas pelas técnicas de cada época. Viagem das Ideias possui a força da pesquisa e da imaginação, ingredientes indispensáveis a uma narrativa consistente. O autor deixa evidente que, além da Amazônia construída pelo imaginário europeu, existem outras por serem descobertas e compreendidas, como a Amazônia pré-colombiana, provavelmente habitada por civilizações que deixaram um inestimável legado para a humanidade. Legado que se esvaía na medida da destruição do solo, dos rios, da floresta e das populações tradicionais. É também sobre esse tema que Renan nos chama a atenção. 31


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Primeiro, aa

imaginação Livro de Neide Gondim sustenta a tese de que a Amazônia foi inventada, pelos europeus, antes mesmo de ser descoberta Wilson Nogueira

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livro A invenção da Amazônia (Valer, 2007) contribui com uma interpretação inovadora sobre a Amazônia, porque defende a ideia de que o imaginário amazônico se forma no entremeio da visão que o europeu passou a ter do Oriente em suas experiências expansionistas também para as Américas. “Contrariamente ao que se possa supor, a Amazô-

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Américo Vespúcio, Von Martius, Johann Baptiste von Spix, Alexander von Humboldt , Wallace, Conan Doyle, Jules Verne e Tzvetan Todorov: autores e personagens que contribuíram com a formação do imaginário sobre o Novo Mundo em diferentes épocas.

nia não foi descoberta, sequer foi construída, a invenção da Amazônia se dá a partir da construção da Índia, fabricada pela historiografia greco-romana, pelo relato dos peregrinos, viajantes e comerciantes”, acentua Gondim logo no começo da obra. A autora, por meio de minuciosa prospecção documental e intelectual, propõe que a Amazônia, como periferia exótica da Europa, é uma invenção baseada na noção que seus exploradores criaram em relação aos chamados povos bárbaros desde os primeiros contatos com os povos do Oriente. Essa é a visão que, em tese, influenciará toda a literatura ficcional e de contato que se produzirá sobre a Amazônia desde os anos de 1500 para circulação e consumo a partir da Europa. A explicação da natureza amazônica, na qual se incluem os índios, terá como espelho as monstruosidades, os absurdos e o exótico do mundo bárbaro. A cultura amazônica, tal como é interpretada por Neide Gondim, seria fruto de uma invenção concebida até mesmo antes da sua descoberta: primeiro, a imaginação, depois a constatação moldada ao mundo imaginado. As preconcep-

Foto: Heitor Costa

Neide Gondim nasceu em Manaus. É Doutora em Comunicação e Semiótica, na área de Teoria Literária, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também publicou Simá, Beiradão e Galvez, o imperador do Acre: ficção e história. Destacou-se por conta da sua atuação como professora e pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), como uma das mais importantes intelectuais da sua geração.

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ções a respeito da região, no entanto, mudam de acordo com as ideias de mundos que se tecem na Europa sob a influência dos rumos da ciência, da religião e das artes. As cenas e cenários se movimentam sempre no confronto entre as culturas (europeia) e as dificuldades de civilização oferecidas pela natureza indomável. Os índios, quando não admitidos como elementos da natureza, são considerados seres humanos em fase de evolução civilizatória. A leitura da Invenção da Amazônia oferece novas possibilidades de entendimento da civilização amazônica e aniquilamento da grande maioria das suas populações autóctones. Gondim, na sua profunda prospecção intelectual, apresenta a civilização como barbárie, cuja ideologia tem como suporte a literatura nos seus diversos gêneros e épocas. A civilização traz em seu âmago uma visão de mundo intolerante a outros mundos estabelecidos ou possíveis. O escritor e ensaísta Márcio Souza, que apresenta o livro, enfatiza: “É claro que a invenção de todo um território, como foi o caso da Amazônia engendrada pelos europeus, era algo peculiar à cultura do Velho Mundo, mas no fundo, em sua raiz, era fruto de um choque mais profundo, entre o pragmatismo dos conquistadores e as assustadoramente igualitárias sociedades americanas”. Souza também assegura que a obra de Gondim pode ser lida de diversos ângulos: como teoria literária, como critica de ideologias e filosofia da literatura. Joãosinho Trinta, por exemplo, se inspirou em A invenção da Amazônia para realizar o carnaval Unidos do Viradouro, na virada do século. valercultural

A leitura da Invenção da Amazônia oferece novas possibilidades de entendimento da civilização amazônica e aniquilamento da grande maioria das suas populações autóctones”

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Fotos: reproduzidas do livro “Festas amazônicas”

Livro apresenta uma seleção de 16 fotografias dos espetáculos do boi-bumbá, da ciranda e do sairé, para que o leitor também participe da viagem criativa dos seus artistas

Festas para pensar

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Em Festas Amazônicas, Wilson Nogueira mergulha no imaginário regional para compreender a Amazônia das festas populares Marilene Corrêa da Silva | professora e escritora [Trechos do prefácio à obra]

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Amazônia é pauta obrigatória de interesses contemporâneos. Aqueles que circundam a interlocução acadêmica, no entanto, têm o privilégio de apreender de modo mais claro as representações científicas que explicam, compreendem e narram suas manifestações sociais. Wilson Nogueira escolheu olhar a Amazônia por meio de suas festas populares. Em seus interesses profissionais e acadêmicos de pesquisador, as festas na floresta foram classificadas segundo uma categorização de distanciamento, em processo de integração, e integradas aos momentos de desenvolvimento do capitalismo nos espaços interioranos, os mais representativos da Amazônia profunda. A eleição do tema e do modo de conduzir a narrativa não faz questão de afastar a “amazonidade” de origem do autor. Ribeirinho do município de Parintins, Wilson, desde valercultural

criança, já experimentava uma curiosidade que está na raiz de quem tem o privilégio de conviver com a exuberância dos rios e da floresta. Perguntava-se, ele, ao ver sua imagem refletida no rio desaparecer quando o remo impulsionava o movimento da canoa na qual era passageiro, para onde o rio levaria a sua 37


As provas que Wilson Nogueira apresenta da integração das festas ao mercado são contundentes”

imagem refletida na água! Essa é uma recorrência significante, entre outras, do desenvolvimento de sua argúcia que foi aprimorada no exercício da sua condição intelectual de jornalista, editor, escritor e sociólogo. Wilson Nogueira é um bom exemplo de um modo de ser e de sentir as vivências amazônicas. Nele, como em muitos, tudo parece fluir com facilidade: os ritos de passagem entre a vida interiorana e urbana, entre a simplicidade e a complexidade do pensamento e da ação. Tanto está bem na beira do rio como no comando de complicadas ilhas de edição do jornalismo contemporâneo. Daí que as aquisições intelectuais nunca pesam como

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sacrifícios maiores do que a grandiosidade de sobreviver nas localidades isoladas da Amazônia. Aliás, quem passa por desafio desse porte, e pode, um dia, avaliar essa experiência de vida com distanciamento calculado, desenvolve uma vacina que previne de fracassos da vida material, física e psíquica. Nada de super-homens/mulheres, apenas pessoas sem romantismo e sem ressentimentos, à moda do fluxo natural da vida. Wilson Nogueira autor é sensibilidade e criticidade. Ao identificar-me com ele não abro mão do orgulho de ter dirigido questões que podem tê-lo auxiliado na consolidação de um ponto de vista sem temor dos interlocutores mais cáusticos. Aliás, é deles mesmos que Wilson retira sua fluência narrativa que se esmera na mesma medida em que esgrima o direito ao contraditório. A inquietação jornalística e a imaginação científica não lhe confundem os juízos. Por trás do homem sereno, de uma sinceridade que espelha a simplicidade interiorana (dele, minha, nossa) está um intelectual decidido, forjado na busca da existência cidadã plena.

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Fruição e determinação As festas populares da Amazônia nos exemplos do Boi Bumbá de Parintins, do Sairé de Santarém e da Ciranda de Manacapuru são apreendidas, compreendidas e explicadas com o mesmo rigor analítico de sua estrutura material e simbólica. As festas organizam-se como negócio turístico, como espetacularização movida pela necessidade de agradar, determinada pela linguagem midiática que pontua produtores, vendedores e consumidores de suas atrações. As provas que Wilson Nogueira apresenta da integração das festas ao mercado são contundentes. Sem recusar instrumentos da criticidade mais profunda, o livro traz momentos fascinantes de descrição, interpretação e conceptualização. Signos, alegorias, nada escapam ao arcabouço teórico que a pesquisa de campo confirma. A apresentação da complexidade das festas na floresta exige um artesanato intelectual denso, além de manipulação precisa de múltiplos fatos e problemas que se mostram nas bases da organização e no topo da circulação dos investimentos. valercultural

Cada festa tem o contexto fantástico das relações entre sociedades e culturas amazônicas. Este, segundo o autor, é o maior valor agregado aos produtos culturais. A força étnica fetichizada pela aceleração do transporte dos bens simbólicos na linguagem da televisão, e seus mecanismos derivados, alteram profundamente todos os aspectos das festas, suas tradições, seus sujeitos e atores. Novas funções, novas linguagens e novos desafios emergem dos ambientes e contextos das festas, a indústria cultural cria e recria sua espacialização própria. Expressões culturais, mesmo as mais específicas, são utópicas e ideológicas enquanto representações do ethos de coletividades. Encantamento e utopia fazem parte deste nível de realização. O fator que integra e solda as motivações é o ambiente interno. Ele é o gerador do habitus, de costumes que traçam o permanente e o variável nas identidades, e de onde emanam as disposições coletivas que marcam as ações humanas, os modos pelos quais os grupos ultrapassam, integram e se opõem às esferas objetivas e subjetivas da vida social. A percepção dos momentos de apropriação da festa popular pela fetichização da cultura faz o autor percorrer todos os nexos que ligam o passado e o presente da invenção das tradições das festas estudadas. Reside, nesse trabalho meticuloso, a maior contribuição que Wilson Nogueira dá aos futuros pesquisadores deste tema. Inclusive porque o resultado de sua pesquisa abre novas e sugestivas indagações.

Wilson Nogueira é jornalista, sociólogo e mestre em sociedade e cultura na Amazônia

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memória

O livro Manaus, meu sonho, de Joaquim Marinho, reúne textos e fotografias que relatam e expõem as transformações da cidade nas últimas décadas Lúcia Carla Gama | jornalista

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poeta Aldísio Filgueiras tem razão: Existe uma cidade em nós. “Uma cidade tão singular, que se realiza apenas no plural: Manaos Manaus”. É a cidade que abrigou bondes, cedeu espaço para o roadway, manteve-se bela em suas praças, foi diversão nos cinemas, marcou época em outros tempos. Joaquim Marinho, como bom manauara que é, conhece tudo isso. Daí porque colocou na rua seu Manaus, meu sonho, livro de crônicas e recordações sobre uma cidade que já foi, ainda é e está em construção – como o tempo que não para. O livro editado pela Valer traz escritos memoráveis, conta histórias especiais vividas nestas bandas debaixo da linha do Equador e mostra belas imagens, num misto de gravuras e cartões postais todos pertencentes ao organizador da obra. Histórias como a de David Pennington que fez sua própria guitarra com um plástico verde da porta do congelador de uma geladeira velha. O som se espalhou, a notícia correu e surgiu a banda The Beats. valercultural

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Manaus, meu sonho trata da cidade que ganhou ares de modernidade sem perder seu traço um tanto rural de ser”

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Ou recordações como as contadas por Ulisses de Azevedo Filho que lembra da avenida Eduardo Ribeiro de muitos anos atrás. Depois da leitura, fica-se tentado a fechar os olhos e imaginar uma via com paralelepípedos, bondes, postes com lampiões e bares pelas calçadas onde o bate-papo corria solto pelas madrugadas boêmias, sem hora para acabar. Tudo sob o testemunho do Instituto de Educação do Amazonas, imponente em sua construção ao final da rua. Foi nos limites da avenida Eduardo Ribeiro que nasceu o tradicional Leite de Colônia, feito por Carlos Stuart e levado ao Rio de Janeiro pelos filhos deste para ser transformado em produto nacional. Aquela que já foi a mais importante avenida de Manaus tinha início ou fim, dependendo do ponto de vista no Roadway, construção inglesa, definido com beleza e suavidade pelo peta Luiz Ruas: posto que, sendo porto,/ sempre foste caminho de partida/ ou barco de ferro e pinho/ que os ingleses ancoraram/ nas margens do rio Negro (...) Foste roadway e ródo (...)/ Passarela de dor e sofrimento!/ passarela de luxo, amor e sonho!/ no teu ritmo binário que acompanha/ o ritmo binário deste rio/ que todo ano sempre sobe e desce (...)/ Aqui fica este adeus de quem te viu, menino/ e por ti, uma vez, partiu sonhando/ os mais belos sonhos que sonhar eu pude (...)/ Mas, em mim, como te vi, hás de ficar:/ dourado pelos raios do sol quente/ ou banhado pelas pratas do luar. A visão do porto de Manaus também mexeu com o antropólogo alemão Theodor Koch-Grunberg, que em seu Do Roraima ao Orenoco descreve: o porto está irreconhecível. A Companhia Manáos Harbor o modernizara inteiramente. Por todas as partes erguem-se grandes armazéns. Os transatlânticos atracam imediatamente em suas plavalercultural


taformas flutuantes, pelas quais se desembarca facilmente. A cidade que sobe suavemente por entre agradáveis encostas, perdeu por certo muito do seu panorama, antes tão encantador. (...) Quanto ao resto, a vida é tão trabalhosa, mas ao mesmo tempo tão leviana e aventureira. O trecho foi reproduzido por Renan Freitas Pinto, que no Manaus, meu sonho trata da cidade que ganhou ares de modernidade sem perder seu traço um tanto rural de ser. A voz mais dura da publicação vem de Márcio Souza ao tratar da cidade puta, que destruiu sua arquitetura e se deixou reconstruir por edificações feias, com tijolos à mostra; a cidade enganada, usurpada, que abriga quem vem de longe sem ter o que oferecer, cidade mal-amada. São tantas Manaus numa só, que mais uma vez é preciso reconhecer que Aldísio Filgueiras sabe o que diz: Manaos-Manaus: uma questão M_meu sonho_2 ed:Layout 1 3/10/2011 02:44 PM Page de sentido. Sentido único, singular e geral como o trazido à mente pelos cinemas que a tantos encantaram. Ah, o cinema! Havia o cinema! O cinema dos anos quarenta e cinquenta. Os melhores anos do cinema, suspira Edney Azancoth, lembrando de um tempo que não vivemos: O Cine Guarany, o Cine Avenida, o Cine Odeon, onde Johnny Weissmuller foi Tarzã, saltando de galho em

galho e onde Errol Flynn combateu os japoneses em Um punhado de bravos. Trícia Cabral não assistiu as fitas de outros tempos, mas registrou no Manaus, meu sonho que, como eu, esteve nos cinemas do Joaquim Marinho, no Centro, durante muitos anos as únicas opções da minha geração oitenta para estar frente a frente com a sétima arte. Não importava o horário, todo mundo se encontrava por uma daquelas salas, fosse no Grande Otelo, no Carmem Miranda, no Renato Aragão... sempre uma homenagem aos prováveis ídolos do Joaquim. Foi no Chaplin, na Joaquim Nabuco, que vi Brooke Shields e Christopher Atkins em sua mais memorável história de amor, A lagoa azul; e me emocionei com ET, o extraterrestre, de Steven Spilberg. Isso sem falar no primeiro filme em terceira dimensão, com os óculos para assegurar o efeito especial. Tubarão E se uma cidade vive de histórias e memórias é impossível deixar de ler esta reunião de escritos organizada por Joaquim Marinho. E igualmente impossível é não se ater às gravuras. É Manaus em prosa, versos e imagens – pronta para ser dissecada em suas entranhas, nos mais variados ângulos. Ah, Manaus antiga de coisas lembradas/ de amigos que outros rumos tomaram/ uns para o mundo, outros, eternidade/ reminiscências livres e tantas saudades (Ornan Bugalho).

Ilustração de Mateluna

75 43 ManauS

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meu sonho


poesia

O

livro de estreia do poeta membro do Clube da Madrugada, Frauta de barro chega aos 53 anos da conquista do Prêmio Olavo Bilac da Prefeitura do Rio de Janeiro, um dos mais importantes do país, com fôlego das grandes obras da literatura brasileira. Em 1963, foi publicada a primeira edição. No ano passado, Frauta de barro ganhou uma publicação comemorativa da Editora Valer, em sua nona edição. O tempo, definido por sucessivas edições, marca a primeira obra de Bacellar como um dos expressivos clássicos da literatura amazonense.

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O livro, que é uma balada, revela, simbólica e poeticamente, a vida em Manaus nos primeiros anos de 1950, quando o mundo vivia o pós-guerra e a capital amazonense respirava os conflitos sociais da humanidade, motivados pelo crescimento da indústria e da urbanização. Em Manaus, surgiam novos bairros, novas formas de trabalho, novas habilidades técnicas, novos amores e pecados. Mais do que qualquer outro aspecto, salta aos olhos a leitura do poeta sobre experiências vividas no bairro dos Tocos, o bairro de Aparecida, como atualmente é denominado. Para muitos especialistas, na obra de Luiz Bacellar essa presença se consolidou com um tributo épico ao lugar. “Eu me reportei aos aspectos mais humanísticos da comunidade, os apelidos que os moradores davam aos recém-

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Celebração à

Frauta de barro

A Editora Valer publica edição comemorativa de Frauta de barro, de Luiz Bacellar, um dos clássicos da literatura amazonense Michelle Portela | jornalista

-chegados, os nomes dos becos que acabavam sendo adotados por todos no bairro”, diz Luiz Bacellar. Bacellar nasceu em Manaus no dia 4 de setembro de 1928, na rua Saldanha Marinho, na casa dos avós maternos. Passou a infância em Manaus e concluiu o colegial em São Paulo. Mais tarde, no Rio, foi bolsista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa, no Curso de Aperfeiçoamento de Pesquisador Social, na área de Antropologia Cultural, no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, sob a orientação do professor Darcy Ribeiro. De volta a Manaus, exerceu a função de jornalista, foi portuário, comerciário, professor de Literatura e Língua Portuguesa no Colégio Estadual Pedro II e professor de História da Música no Conservatório Joaquim Franco, da Universidade do Amazonas. Envolvido com o movimento cultural, sua atividade literária se intensificou. Em 1954, juntou-se a um grupo de jovens militantes que viria a se autodenominar Clube da Madrugada, lançando-se à carreira literária com Frauta de barro. Em 1959, sua namorada o inscreveu no Prêmio Olavo Bilac, conferido pela Prefeitura do antigo Distrito Federal valercultural

(Rio de Janeiro). Pelas mãos do júri formado por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, Luiz Bacellar recebeu um dos prêmios mais relevantes do país. “Não que eu fosse moleque de rua, mas o que me chamou a atenção foi o aspecto tragicômico da obra. Caiu no gosto”, avalia Bacellar.

Ilustração de Pietro Lazzari que compõe o livro de Bacellar

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Foto: Hamilton Salgado


Assim como Frauta de barro, editada oito vezes e uma nona será publicada pela Editora Valer, o segundo livro do poeta, Sol de feira, que tem inúmeras edições, alcançou notável sucesso, inclusive, recebendo o Prêmio de Poesia do Estado do Amazonas, em 1968. O poeta é um dos estudiosos do patrimônio artístico e cultural da cidade de Manaus, onde vive e trabalha, também com grande interesse pelas artes. Luiz Bacellar também é autor de Quatro movimentos (Manaus, 1975), O Crisântemo de cem pétalas (em parceria com Roberto Evangelista, Manaus, 1985), Quarteto (Manaus, Valer, 1998) e Satori (Manaus, Valer, 2000). Em Satori, o escritor Tenório Telles define assim a obra do poeta amazonense: “Luiz Bacellar faz parte de uma linhagem de poetas comprometidos com a revelação dos mistérios do mundo, com a essencialidade das coisas e dos seres. Tendo na musicalidade uma de suas marcas definidoras, sua poesia é prenhe de imagens, de ressonâncias filosóficas e espirituais. A acuidade no tratamento dos temas e o apuro da linguagem são expressivos da excelência de seu fazer poético”.

Ser Bacellar é ser um artesão da palavra”

Há que se questionar, então, porque obras de tamanha importância, como as de Bacellar, não alcançam a almejada popularidade dos best-sellers. De onde vem o gosto pela leitura? Haveria prazer no ato de ler? De qual prazer se fala, quando se fala no prazer da leitura? Ler é o ato que precisa de outro para reconhecer e legitimar sua inauguração, tanto de alunos quanto de mestres. Certamente não existem respostas – nem existirão – à medida de cada um desses e de outros questionamentos. Mas é certo que o professor, em sala de aula, pode atiçar os alunos a tentar respondê-las de modo persistente, a partir de fatos e histórias mais próximos do ambiente em que vivem. Assim, ele estimulará o conhecimento pela pesquisa e contextualização da sua realidade. No caso da poesia, mais do que usá-la somente para trabalhar os conteúdos da série, o professor pode introduzir palavras novas e completar o aprendizado da leitura e escrita. Os poemas de Luiz Bacellar também apontam para essa possibilidade. A professora de Literatura Brasileira, Francisca de Lourdes, relata a sua experiência com alunos do 6.º ano do Ensino Fundamental com a obra de Luiz Bacellar, especialmente com Frauta de barro e Sol de feira.

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Ilustração de Óscar Ramos – na edição original de Frauta de barro

Inicialmente, ela explora a leitura silenciosa e oral do poema, depois destaca os recursos sonoros e as rimas. “Em Frauta de barro, o poeta é pura sinfonia. Há uma carga poética que sobrevém dos elementos sonoros que impregna o texto poético. Nesse livro, a lírica de Bacellar se expressa como um canto de saudade da infância que exala por toda obra. Temos, no entanto, poemas com muita malícia, como “Soneto do isqueiro” e “Soneto da caixa de fósforos”, e por aí vai... É preciso, portanto, entender o jogo de ideias que o texto oferece ao leitor; se ingênuo, cai na armadilha; se esperto, logo entende. É uma descoberta da sedução erótica que transpira pela palavra evocada, isso é literatura. Subterfúgio”, explica.

Capa da primeira edição do livro de estreia de Luiz Bacellar

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Atuação do professor O alunos do sexto período da professora Francisca de Lourdes analisam um escritor e três obras do autor. O resultado é quase sempre de superação da barreira da estética. “Isso me surpreende, pois, ao final, ouço-os dizer que valeu a pena. Isso faz o diferencial com nossos alunos. Sei que não é muito, mas esse pouco representa bastante para quem poderia chegar à universidade sem conhecer quase nada”, afirma a professora. Ela ressalta, entretanto, que o professor precisa se empenhar para conhecer as obras dos escritores locais e assim levá-los para a sala de aula. “Muitos professores relutam em usar obras de autores amazonenses em aulas de Literatura por desconhecê-las. Por isso, nossos autores não são lidos. Os professores teriam menos trabalho se antes de indicar aos alunos uma obra fossem eles mesmos os leitores para poder dialogar com o texto e com os alunos”, sugere. Quanto à estratégia a ser adotada em sala de aula no ensino da Literatura, Francisca assegura que cabe ao educador sempre se questionar se sua atuação é eficiente e orientada, se está estimulando o aluno para que ele sinta prazer em ler um clássico da literatura.

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Segue-se à exploração inicial, uma conversa com as crianças acerca do autor, para demonstrar que essas informações se articulam com as de outras disciplinas, como História e Geografia, sem perder o sentido estético e o ritmo das baladas. De quebra, Francisca aguça a autoestima e a memória afetiva dos alunos, quase sempre massacradas por informações alheias ao cotidiano deles.

“O grande autor é aquele que também publica aqui e fala dos problemas daqui, transgride com lucidez o dia a dia. Ser Bacellar é ser um artesão da palavra com muito rigor e apuro formal”, avalia Francisca de Lourdes.

Um caminho sem volta Lúcia Carla Gama Eu era pouco mais que uma menina que seguia a pé do bairro Aparecida para o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, peito em ebulição pela passagem da infância para a adolescência, quando fui apresentada à poesia de Luiz Bacellar. Foi a professora de Literatura Brasileira Vânia Pimentel que deu a mão a mim e a minha turma e nos conduziu num passeio sem volta pelos caminhos do autor de Frauta de barro. Num primeiro olhar, é verdade, entendi pouco o escrito daquelas páginas, tendo descoberto, graças ao livro, que não há erro de grafia no título e frauta nada mais é do que a variação da palavra flauta, substantivo feminino. Mas assim que a leitura seguiu atenta, houve encantamento com os escritos tecidos com simplicidade pelo poeta amazonense que nos apresenta o cotidiano, a cidade, os costumes e a si mesmo. Na obra, Bacellar, como afirma a poetisa e acadêmica Astrid Cabral, assume nominalmente a importância da música na gestação de sua poesia. Já no prólogo opta pela simplicidade, quando alude ao fato de ter achado em menino ‘um frio tubo de argila e ao se pôr a soprá-lo rude e doce melodia ‘jorrou límpida e tranquila/ como água por um gargalo’. Astrid continua: o autor refere-se também ao tom faceto e gaiato e a saudade dos longes da infância. Tudo volta do monturo/ da memória em rebuliço/ Mas tudo volta tão puro!... E o poeta fala da Manaus dos seus primeiros anos e dos objetos de todos os dias, com suas funções específicas, como em “Soneto do relógio de bolso”, lembram-me célebres vultos/ teus ponteiros nessa dança:/ Dom Quixote o dos minutos/ e o das horas Sancho Pança. Aliás, ao falar dos pequenos objeto diá-

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rios, Bacellar consegue a incrível façanha de escrever uma espécie de crônica em dois quartetos e dois tercetos, a métrica do soneto, produzindo textos deliciosos como no “Soneto do chaveiro”: Nessa argola de segredos,/ nesse aro de seguranças,/ o balé das minhas chaves/ dança niqueladas danças. Bacellar, aliás, segundo Astrid Cabral, cheio de argúcia, simplifica o soneto, reduzindo-o à métrica da redondilha, redimensionando-o, portanto. Também expõe curiosas e intrigantes histórias que formam a população e os costumes da cidade onde ajudou a fundar o revolucionário Clube da Madrugada movimento de reforma cultural de 1954. O poeta trata de um crime passional em “Romance do Esquartejado”: Depois, com a ponta da arma/ lhe espetando nas costelas/ o marido a obrigou/ que cortasse com o terçado/ braços, pernas e a cabeça/ do tronco do Alferes nu; registra em versos a história de Etelvina, a santa baré, estuprada e morta que, acreditam, teve a virgindade recuperada por milagre: Dizem (suave mistério!)/ que o corpo ao ser enterrado, / recompôs-se dos sinais/ daquela violação; conta da cidade que ficou lá atrás e que continua tão igual em “Torneio de papagaios”: flechadas colhidas/ bruscas descaídas/ brandas empinadas/ quedas embiocadas/ escudos rompidos/ dos famões vencidos/ desta imponderável/ ágil livre frágil/ heráldica aérea. Lendo Frauta de barro, uma quase menina, depois mais adulta e hoje perto dos quarenta, descobri que a maravilha deste poeta, que ainda anda pelas ruas de Manaus com uma bengala nas mãos, está na simplicidade da escrita; no olhar sobre o cotidiano que nos simples detalhes forma a vida.

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leitura

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Tudo pelos

clássicos Professores elaboram estratégia para encaminhar novos leitores aos clássicos brasileiros Mário Freire | jornalista

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estudante José Braz, 17, aluno do 2.º ano do ensino médio numa escola de Manaus, não foi além da sexta página de Macunaína, clássico do modernismo brasileiro que ele pegou na biblioteca da escola por recomendação da professora. Em compensação, leu com prazer A Cabana, que pediu emprestado de um colega. A professora de Braz, que não conseguiu fazê-lo se encantar com as peripécias do “herói sem caráter”, de Mário de Andrade, aprovou a leitura do best-seller: é melhor que nada. Essa ficção baseada em fatos reflete uma situação muito comum hoje nas

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escolas brasileiras. Professores de literatura têm cada vez mais dificuldades de furar o bloqueio do desinteresse pela leitura e, mais ainda, pelos clássicos, entre os jovens que chegam ao ensino médio tanto na rede pública quanto na particular. “A verdade é que a maioria dos alunos não gosta de ler, ou, quando lê, é com muito sacrifício”, atesta o professor Osimiro Souza Leite, 56, que ensina atualmente para turmas do 1.º, 2.º e 3.º anos da Escola Alice Sarmento, no Parque 10 de Novembro, Zona Centro-Sul. Para vencer o bloqueio, o professor lança mão de recursos que vão além da leitura, como a teatralização da obra e a exibição de filmes. No vale-tudo, entram seminários, painéis, letra de música e poesia. Há 25 anos no magistério, lecionando exclusivamente literatura, Osimiro conta uma experiência bem-sucedida

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nesse campo: a adaptação do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para teatro, que fez com uma turma do 3.º ano. Na montagem, algumas passagens do livro resultaram em cenas cômicas que acabaram fixando na memória da turma, segundo o professor, o universo sofrido do homem no sertão nordestino. Paralelo ao teatro, o livro de Graciliano foi dividido para ser estudado nas 13 aulas do bimestre. “Não se pode simplesmente mandar o aluno ler um livro para fazer uma prova”, diz Osimiro, que é contra apresentar aos alunos obras desse porte de forma resumida. Em outra escola, o tradicional Colégio D. Pedro II, no Centro, o professor Cornélio Araújo da Veiga, 41, também vem recorrendo ao teatro para tornar os clássicos da literatura brasileira mais palatáveis ao gosto dos alunos. Na mais recente montagem de As Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, a turma se empenhou tanto que

apareceu com um caixão para dar mais veracidade às cenas com o defunto. “Essa é uma forma de fazer com que o aluno não veja a matéria de forma fechada”, diz o professor. Há 22 anos na cadeira de literatura do Colégio Estadual, Cor-

Não se pode simplesmente mandar o aluno ler um livro para fazer uma prova”

nélio dá aulas para seis turmas do ensino médio e diz que, se pelo menos 50% dos seus alunos leem alguma coisa, é porque ele, professor, facilita ao máximo o acesso a livros que adquire em sebos, em bancas de revistas, emprestados ou doados.

Com os alunos do 3.º ano, Cornélio trabalhou em 2010 livros de cinco autores – Jorge Amado Mar Morto, Dionélio Machado Os Ratos, Clarice Lispector A Hora da Estrela, Graciliano Ramos Vidas Secas, Graça Aranha Canaã. “A princípio, existe muita resistência em relação à leitura que é preciso ser vencida. Então, eu vou situando a obra na época, no gênero literário. Em pouco tempo, a maioria está pedindo sugestões de títulos para ler”. O professor diz que não descarta os best-sellers, como Harry Potter, muito apreciado pelos alunos, mas como não leu nenhum dos sete livros da série, prefere não usá-los em sala de aula. “Eu só consigo trabalhar em sala de aula com o que eu conheço”, diz.

Grade básica Em geral, escolas públicas e privadas seguem a mesma grade básica para literatura, com variações que dependem da capacidade de improviso do

Formação de leitores é desafio para escola e sociedade

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Fotos: Divulgação/Seduc

Empolgação

professor. Por ano, cada turma é “obrigada” a ler até quatro títulos de diferentes escolas literárias. O professor Osimiro Leite cita de memória os livros que passou para seus alunos das três séries em 2010: O Seminarista (Bernardo Guimarães), Senhora (José de Alencar), A Moreninha (Joaquim Manoel de Macedo), O Cortiço (Aluísio Azevedo), entre outros. Ele diz que não estimula, mas também não condena a leitura de best-sellers pelos alunos. Quando a turma demonstrou muito interesse por O Código DaVinci, o professor também procurou ler o livro para se atualizar em relação aos alunos. Para ele, o professor tem de ter pelo menos a capacidade de mostrar a diferença entre as estruturas narrativas do clássico e do best-seller. Para o sociólogo Renan Freitas Pinto, é na escola que devemos valorizar as obras pelo seu valor intrínseco, sem nos deixarmos envolver pelas regras de mercado da indústria cultural. “Sabemos que o best-seller é marcado pelo efêmero que, às vezes, dura apenas uma semavalercultural

na, o que é totalmente oposto à permanência e à vitalidade que marcam as obras cujo destino é se tornarem permanentes e transformadoras dos padrões dominantes, ou seja, se tornarem obras clássicas”. Na avaliação do professor-doutor Marcos Frederico Krüger, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o ensino de um modo geral sofreu uma redução paulatina de qualidade, o que, segundo ele, significa que os professores atuais talvez não tenham nível cultural para propor e debater “os grandes temas” da literatura. “As consequências começam a aparecer: alunos que não sabem interpretar um texto, que são guiados pela televisão. Enfim, aquilo que George Orwell mostrou em 1984, romance que se passa num país governado por um ser, não por mera coincidência, chamado Big Brother”. Para Krüger, um professor com formação mediana não vai entender o fenômeno literário e, em consequência, não poderá entender os clássicos, quanto mais estimular a sua leitura.

A professora Erismar Nunes de Oliveira, 42, há dez anos na cadeira de literatura da Escola Petrônio Portela, no bairro Alvorada, Zona Centro-Oeste, concorda que o problema, no ensino específico da literatura, está no professor, sim, na sua incapacidade de atrair o aluno para o prazer da leitura. “Não adianta dizer que o problema vem lá do ensino fundamental. O professor é que tem que furar o bloqueio. Quando o professor não consegue empolgar a turma, nenhuma disciplina se salva. Os meninos, em geral, têm mais resistência do que as meninas, mas percebendo que ali tem algo novo e que esse novo tem a ver com a realidade deles, o interesse pela leitura surge. O problema está no professor”, assegura. Segundo Erismar, o papel do professor de literatura é formar novos leitores e também outros professores de literatura. Ela diz que optou pela literatura por influência do professor que teve no ensino médio. Esse professor

o papel do professor de literatura é formar novos leitores e também outros professores de literatura” 53


fez com que ela se “apaixonasse” pela matéria. “Tento me impregnar desse mesmo espírito quando estou em sala de aula”, diz. A professora conta como conseguiu empolgar os alunos ao apresentar a eles o romance A Carne, de Júlio Ribeiro, e que deixou a maior parte da turma motivada para ir atrás do livro e conhecê-lo na íntegra. Apesar dessa capacidade, em alguns momentos a professora Erismar tem que se render às evidências e fazer algumas adaptações à grade curricular. Quando os alunos reclamam que a linguagem de um Machado de Assis (1839-1908) ou José de Alencar (1829-1877) é muito difícil; ela não vê mal algum em substituí-los por autores contemporâneos, como Fernando Sabino ou Jorge Amado. “Obras pequenas, como A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água são mais fáceis de trabalhar em sala de aula”, reconhece. Segundo a professora, infelizmente a leitura tem de concorrer com atrativos aparentemente mais sedutores que a sociedade moderna oferece aos jovens. 54

“É difícil fazer o jovem se isolar e se concentrar na leitura se a televisão e a internet oferecem tanta coisa de mão beijada”, resume.

Produto novo Não é só na escola que a professora Erismar de Oliveira esbarra nessa relação desigual. Mãe de dois filhos, um de 12 e outro de 13 anos, ela luta também em casa contra o desinteresse pela leitura. “Como todo adolescente, meus filhos têm resistência. É preciso buscar alternativas para estimulá-los a deixar de lado a TV para se concentrar num livro”, conta. Sempre que se depara com um produto “novo”, como a edição em quadrinhos dos livros do norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849), vendida em banca, a professora trata de adquirir para os filhos. Clássico brasileiro absoluto, Machado também está no epicentro de uma outra tendência que chega ao Brasil, os mashups literários, adaptações que misturam obras consagradas e histórias de terror e ficção científica.

Dos quatro títulos que o selo Lua de Papel, da editora LeYa lançou, na coleção Clássicos Fantásticos, dois vêm de obras-primas machadianas: Dom Casmurro, que virou Dom Casmurro e os Discos Voadores, e O Alienista, que surge como O Alienista Caçador de Mutantes. Os outros títulos são Escrava Isaura e o Vampiro (adaptado de Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães) e Senhora, a Bruxa (de Senhora, de José de Alencar). Outra editora, a Tarja Editorial, lança uma continuação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, com o título Memórias Desmortas de Brás Cubas. Questionado se as adaptações e versões resumidas dos clássicos podem ter um efeito nefasto na formação dos jovens, o sociólogo Renan Freitas Pinto diz não ver nada grave nessas iniciativas. “Às vezes, essas versões, mesmo em quadrinhos, em desenhos para televisão ou em filmes, funciona como pontos de partida para o despertar de novos leitores. Além de que demonstram que certas narrativas são tão fortes que podem ser apresentadas por meio de várias linguagens”. valercultural


Leitura para a Juventude Está provado que a falta de interesse dos jovens estudantes não é apenas pela leitura, mas pelos estudos em geral. Pesquisa da Fundação Getulio Vargas, cruzando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2006 e 2007, apontou o desinteresse como principal motivo da grande escolar registrada no Brasil, entre jovens de 15 a 17 anos. Nas justificativas dadas pelos jovens para abandonarem a escola, a falta de interesse aparece em primeiro lugar (40,3%), contra os 27% que alegaram necessidade de trabalhar para ajudar a família. Pode estar aí um dos motivos da resistência que torna o ensino da literatura um desafio. Existem outros. Os professores Cornélio da Veiga, Osimiro Leite e Erismar de Oliveira apresentam dois outros fatores: o baixo poder aquisitivo da maioria dos alunos da escola pública e a falta de bibliotecas nas escolas. Combinados, esses fatores dificultam ainda mais o acesso dos alunos aos livros de qualidade. “A escola não pode obrigar o aluno a comprar um livro”, diz Erismar. Em julho de 2010, o Governo do Amazonas lançou um projeto que oferece uma solução pelo menos imediata para essa dupla deficiência. É o Leitura para a juventude, que efetivou a distribuição de kits de livros para professores e alunos da rede estadual de ensino. A proposta é facilitar o acesso e incentivar a leitura dos clássicos da literatura brasileira. O projeto, que tem verba federal e é realizado em parceria com a Editora Travessia, colocou 60 títulos, a cada ano, compreendendo livros de todas as escolas literárias. Nas escolas Petrônio Portela e Alice Salerno, a distribuição dos livros para os alunos já começou a surtir efeito. Por enquanto, apenas entre os professores. “Com esse projeto podemos restaurar o prazer de ensinar literatura”, diz otimista o professor Osimiro Leite.

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literatura universal

A literatura universal deve em muito sua afirmação ao escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra (1547- 1616), autor de Dom Quixote de La Mancha, a história de dois personagens tão diferentes: Dom Quixote de La Mancha, magro, alto e a cavalo; e Sancho Pança, gordo, baixo e montado num jumento. Os dois são personagens contraditórias que se completam em sucessivas aventuras que satirizam os livros de cavalaria. Miguel de Cervantes, com essa genial obra, cria um novo paradigma na arte de narrar, legado que deve ser reverenciado por todos que têm o livro e a leitura como alimento do corpo e da alma. Do discurso pronunciado ao receber o Prêmio Cervantes, em abril de 2005, ano em que a obra completou seus joviais 400 anos, o romancista Vargas Llosa analisa o romance cervantino à luz da própria definição de Literatura.

Dom Quixote por VARGAS LLOSA Foto: Folhapress

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Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura

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vertiginosa bibliografia e o culto oficial de que é objeto petrificaram-no, de certa forma, como a Homero, Dante ou Shakespeare, esses autores que com ele passaram a ser símbolos de uma língua e de uma cultura, fazendo-nos esquecer, com frequência, que o ícone semi-divinizado pelo respeito e as vênias das gerações foi uma criatura de carne e osso confrontada, como as demais, às emboscadas de um destino incerto e que sua obra não resultou do milagre nem da sorte, senão da vontade, do trabalho, da carpintaria e da paciência. Em nenhum outro desses criadores é tão visível este alento de humanidade identificável pelo homem comum, como na vida acidentada que se iniciou nesta cidade, algum dia do outono de 1547, de Miguel, o filho de Rodrigo Cervantes, barbeiro e cirurgião modesto, que viveu acossado por litígios e fugindo da má sorte. Esta foi a única herança

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Dom Quixote sob o olhar de Gustav DorĂŠ

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que legou a seu filho, ao que parece: os infortúnios – julgamentos, excomunhões, fugas, insucessos – de uma existência que, apesar do assédio dos historiadores, conserva grandes zonas de sombra e, como a de Shakespeare, temos em boa parte que adivinhar. Porém, sabemos com certeza que a vida de Cervantes foi a de um cidadão sem títulos nem fortuna, que viveu na mediania, embora os dois tiros de arcabuz que recebeu em Lepanto e a mão esquerda que lhe ficou anquilosada hajam induzido os hagiógrafos a içá-lo ao pedestal dos heróis. Não o foi, pelo menos no sentido épico da expressão, somente nesse outro, discreto, que é o heroísmo das gentes anônimas, por haver resistido sem desfalecer a tantos revezes e embates.

SOBRE A FICÇÃO Uma ficção é um entretenimento somente em segunda ou terceira instância, embora, com certeza, se também não o é, ela não é nada. Uma ficção é, primeiro, um ato de rebeldia contra a vida

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real e, segundo, um desagravo a quem o viver na prisão de um único destino desassossegado, aqueles a quem espicaça essa “tentação do impossível” que, segundo Lamartine, fez possível a criação de Os Miseráveis de Victor Hugo, e que querem sair de suas vidas e protagonizar outras mais ricas ou mais sórdidas, mais puras ou mais terríveis, que as que lhes tocou. Esta maneira de explicar a ficção pode parecer truculenta, tratando-se do que à primeira vista não é mais que o benigno passatempo de um senhor que, à noite, antes que lhes venham os bocejos, perpetra o crime de Raskolnikov e adormece, ou da virtuosa senhora que toma o chá das cinco cometendo as travessuras das damas de Bocaccio, sem que seu marido saiba. Porém, mostra-nos Alonso Quijano, a ficção é algo mais complexo que uma maneira de não se entediar: o transitório alívio de uma insatisfação existencial, um sucedâneo para essa fome de algo distinto ao que já somos ou já temos, que, paradoxalmente, a ficção aplaca ao mesmo tempo em que exacerba. Porque essas vidas emprestadas que são nossas

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[...] sabemos com certeza que a vida de Cervantes foi a de um cidadão sem títulos nem fortuna, que viveu na mediania, embora os dois tiros de arcabuz que recebeu em Lepanto e a mão esquerda que lhe ficou anquilosada hajam induzido os hagiógrafos a içá-lo ao pedestal dos heróis”

graças à ficção, em vez de curar-nos dos nossos desejos, aumentam-nos e nos fazem mais conscientes do pouco que somos, comparados com esses seres extraordinários maquinados pelo fantasiador escondido em nosso ser.

SOBRE D. QUIXOTE Combater a realidade com a fantasia, que é o que fazemos todos, quando contamos ou fabricamos histórias, é um jogo jogado enquanto nos mantemos lúcidos sobre as fronteiras inquebrantáveis entre ficção e realidade. Quando essa fronteira se eclipsa e ambas as ordens se confundem, como ocorre na mente de Dom Quixote, o jogo cede o lugar à loucura e pode tornar-se tragédia. Embora seja evidente que o temerário manchego comete uma infinidade de disparates, pois atua com uma percepção do real essencialmente falsa, ou melhor, falseada pela ficção cavaleiresca, suas excentricidades não merecem nunca o desprezo dos leitores. Pelo contrário, inclusive para seus contemporâneos, que leram esse livro rindo às gargalhadas, e viram nele apenas uma novela engraçada, o mirrado manchego que arremete contra moinhos de vento, crendo-os gigantes, toma a valercultural

bacia de um barbeiro pelo elmo de Mambrino e vê castelos e palácios nas vendas do caminho, apareceu como um ser moralmente superior, empenhado em uma aventura nobre e idealista, embora, por causa de sua desbocada fantasia que enevoa a razão, tudo lhe saia ao revés. Desde o princípio, os leitores se identificam com Dom Quixote, que sucumbiu à tentação do impossível tratando de viver a ficção, e tomam uma distância complacente do bom Sancho Pança, a quem, por seu senso comum, por viver enclausurado dentro do possível, se converteu na encarnação de uma desprezível forma de humanidade, a do homem em que a matéria sufoca o espírito e cujo horizonte vital é mesquinho de tanto pragmatismo. 59



SOBRE SANCHO Julgando, friamente, há uma grande injustiça nessa desigual valoração da célebre dupla, ao menos se a perspectiva do julgamento se desloca do individual para o social. Pois, o certo é que a rejeição do mundo, tal como é, por Dom Quixote, provoca múltiplas loucuras, tropelias e até catástrofes: destrói bens alheios, põe em liberdade perigosos criminosos, dizima rebanhos, aterroriza ou açoita humildes aldeãos. As empreitadas de Dom Quixote só são simpáticas aos seus leitores, de maneira alguma a esses pobres diabos que sua fantasia converte em encantadores, encantados ou cavaleiros andantes a quem, com frequência, trata de varar com sua lança. Se houvesse prevalecido o pragmatismo de Sancho, sua compreensão cabal das coisas deste mundo, Dom Quixote teria, ao final da história, o lombo menos surrado e sua boca, mais dentes. Mas, então, não haveria romance – ou ele seria tediosíssimo – e a língua e a literatura espanholas seriam menos fecundas do que são. O que quer dizer, pelo menos, duas coisas. A primeira, que no Quixote não admiramos a um personagem real, mas um fantasma, um ser de ficção, e que o que nos distancia de Sancho é que, diferentemente de seu amo, não se diferencia demasiadamente de nós próprios, e por isso sua maneira de atuar e ver as coisas não nos parece a de um ser novelesco, mas sim de um mero mortal. E isso me leva à segunda conclusão: que a razão de ser da ficção não é representar a realidade, mas negá-la, metamorfoseando-a em uma irrealidade que, quando o romancista domina a arte da prestidigitação verbal como Cervantes, parece-nos a realidade autêntica, quando em verdade é sua antítese.

QUESTÃO INSOLÚVEL É verdade que a empresa quixotesca – sair da realidade própria para viver a fantasia – tem dado tipos humanos excepcionais, cujas temeridades fizeram o mundo progredir no domínio do conhecimento e que sem eles a vida seria muito mais cinza do que é. O progresso científico, social, econômico, cultural, se deve a sonhadores assim: sem eles não se teria descoberto ainda a América, nem a imprensa, nem os direitos humanos valercultural

e seguiríamos sapateando na terra para que caísse a chuva sobre as lavouras. Porém, também é certo que o chamado do irreal, ao aguilhoar nos homens e mulheres o apetite pelo que não têm nem terão, tem aumentado, consideravelmente, sua infelicidade. Trata-se de um problema insolúvel, pois não há uma maneira realista de que aquilo que intenta o Quixote seja possível e cheguemos a viver, simultaneamente, na vida objetiva da História e na subjetiva da ficção.

JOGO DA MENTIRA Porém, sim, há uma maneira figurada, e é a que pactuam Cervantes e seus leitores. Desse contrato subconsciente que firmam o romancista e seu público para fazer o jogo da mentira depende o romance, gênero nascido para completar as incompletas vidas dos mortais com aquelas rações de heroísmo ou de paixão, de inteligência ou de terror, que as anseiam porque ou não as têm – ou não as têm nas doses que exige sua imaginação, esse combustível da dissidência vital. É verdade que a ficção é um paliativo fugaz para o desassossego que surge da consciência de nosso limite, a impossibilidade em que nos achamos de ser ou fazer tudo o que nossa fantasia reclama. Porém, ainda assim, graças a ela nossas vidas se multiplicam em um universo de sombras que, embora frágeis e amalgamadas de uma leve matéria, se incorporam a nossas vidas, influem em nossos destinos e nos ajudam a solucionar o conflito que resulta dessa estranha condição nossa de ter um corpo condenado a uma só vida e uns apetites que nos exigem outras mil. A maneira como a Literatura influi na vida é misteriosa e tudo o que se diga a respeito deve tomar-se com cautela. Fez a ficção mais desditado ou mais feliz a dom Alonso Quijano? De um lado, colocou-o em contradição com o mundo, fê-lo despedaçar-se contra a dura realidade e perder todas as batalhas. De outro, não viveu assim mais plenamente que os demais?

(Excerto do discurso de Mario Vargas Llosa – Tradução de Homero Fonseca/ Continental Cultural. Ano V, n.º 49 / Janeiro, 2005).

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entrevista

Elson Fa

Foto: Heitor Costa

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Sávio Stoco | jornalista

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uma varanda no alto de um prédio, no início da orla da Ponta Negra, para onde se mudou havia poucas semanas, o escritor Elson Farias, 75, faz questão de explicar o que mais atrai sua atenção. O movimento dos carros na avenida Coronel Jorge Teixeira se destaca na paisagem, assim como os prédios de Manaus um pouco mais ao longe; não são esses os elementos que merecem o comentário do autor, mas sim a mata de árvores altas, que ainda se mantêm em pé, diretamente vizinha ao prédio moderno, com elevador panorâmico. “Vejo araras, macacos e cutias passando”, diz, apontando para baixo. O apartamento substituiu uma espaçosa chácara, onde Elson morou por perto de três décadas na área urbana de Manaus, num bairro pouco afastado do Centro. Dois roubos foram suficientes para confirmar a ideia da mudança. Em uma biblioteca apertada instalada valercultural


Farias o narrador da floresta

no alto do edifício, ele continua escrevendo as histórias infanto-juvenis, atividade que iniciou aos 60 anos e pela qual é hoje bastante conhecido. Histórias que lidam diretamente com os espaços, os seres, as narrativas, o imaginário das comunidades tradicionais da Amazônia. No que o senhor pensa primeiro antes de escrever um livro infanto-juvenil? Para produzir um bom texto, você tem de dispor de um tema e de uma inspiração ou talvez uma disposição para escrever. A partir daí, você define a forma que vai adotar. É a prosa ou o valercultural

verso? Muitas vezes, o tema surge de uma imagem que a gente concebe e expressa por meio do raciocínio. E, às vezes, é produto de um fato que acontece e o emociona. Dependendo disso, realizo a prosa ou a poesia. Quando trabalho com a razão, é a prosa; quando é a emoção, é a poesia. Na poesia, a gente busca o verso. O verso é a palavra medida, com métrica, rimas etc. E a prosa é o texto corrido, sem preocupação de métrica, rima. Mas, claro, com a preocupação de produzir alguma coisa bonita, boa, agradável de se ler.

Para produzir um bom texto, você tem de dispor de um tema e de uma inspiração ou talvez uma disposição para escrever”

E o que acontece com a literatura infanto-juvenil? Escrevo na mesma linha: na correção gramatical, com produção do texto bem elaborado. Claro que com um vocabulário acessível à criança e ao jovem. Geralmente realizo um pequeno laboratório com crianças, converso. Elas perguntam – “essa palavra, como é, tio?” Ao invés de explicar, pergunto que palavra ela acha que poderia ser. Aí eu pego e uso a palavra que é mais corrente entre as crianças. Eu acho muito maçante querer ensinar a palavra: é assim, assado. Eu também uso muitos termos do neologismo amazônico. Minha temática toda é amazônica. Eu nasci na Amazônia e é o que eu conheço: a Amazônia. Então, nos livros infanto-juvenis, eu também uso essas palavras, às vezes palavras que eu vi, porque eu nasci na beira do rio, eu vivi lá. Eram palavras correntes e que as crianças hoje aqui da cidade talvez nem conheçam. Mas eu aplico essas palavras no texto exatamente com o sentido de fazer com que as crianças perguntem: “O que quer dizer isso?”. O que é “canarana”? O que é “bubuia”? Canarana é uma erva 63


que nasce na beira do rio; é uma cana. “Rana” quer dizer “não verdadeira”. “Bubuia” é aquilo que vem boiando. E assim por diante... Então, aí a criança aprende um pouco. O meu texto também tem a preocupação de conscientizar sobre a realidade amazônica. Sobre a cidadania. Por meio de uma palavra, às vezes, você acende uma luz na imaginação da criança para ela entender o que há em torno de si. Quando o senhor cria, imagina uma criança de que idade? Eu não tenho muito essa preocupação com idade. O que acho é que nós todos vivemos no mundo do jogo. E a obra de arte tem muito do jogo: o teatro, a dança, a música, a poesia. E a criança vive muito mais o jogo do que nós. Ela joga todo o tempo, com os pais, com os avós, com os tios, com os professores e outros que a cercam. Consciente disso, procuro trabalhar no mundo do jogo também.

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Quanto mais sintético o texto, mais problemático é de ser realizado. Toda miniatura é difícil, como o haicai, que é uma forma de poesia japonesa”

E qual a relação com a criação visual do livro? Eu não sou ilustrador. Existem ilustradores que a própria Editora Valer contrata e outros que convidei, no caso dos dois últimos livros, O Som das Letras e As Travessuras de Urubus. Acho que a gente não deve interferir. O autor tem de deixar o ilustrador criar. É muito mais rico do que você chegar e dizer “é assim, assado, que eu quero”. Aí perde a graça, acho. Tem de deixar isso para o artista, deixar sua imaginação funcionar, seu poder criador. Isso enriquece o livro. Além do laboratório, quais outros contatos que o senhor tem com seus leitores? Sou muito requisitado para conversar com as crianças, tenho ido muito às escolas. Tanto escolas particulares como públicas. Principalmente as municipais de Ensino Fundamental. Eu não me furto a conversar e eu gosto muito porque as crianças são muito espontâneas. A gente aprende muito com elas. Eu estreei com literatura há muito tempo, aos 25 anos, com o livro de poemas Barro verde e depois publivalercultural


quei muitos livros para adultos. Para crianças, eu comecei a escrever com 60 anos. Então, o meu esforço foi como me libertar daquela linguagem solene da literatura chamada séria, adulta, para uma linguagem mais coloquial para as crianças. Isso sem perder a magia da poesia, que a própria literatura exige. O contato com as crianças me ajuda a produzir esses textos.

Quais suas principais referências? Eu lia muito os contos de Andersen, os contos da Carochinha (Histórias da Carochinha), que é de um livro volumoso de um autor brasileiro (Figueiredo Pimentel), a literatura do Monteiro Lobato. Li muito O Pequeno Príncipe, do Saint-Exupéry, O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon. Tem também as histórias sagradas da Bíblia, que não era o texto direto da Bíblia, mas

Foto: Divulgação

É errado pensar que um texto infanto-juvenil é mais fácil de se fazer? Quanto mais sintético o texto, mais problemático é de ser realizado. Toda miniatura é difícil,

como o haicai, que é uma forma de poesia japonesa. São três versinhos, mas para produzir aquilo ali dá um trabalho danado. Um soneto são quatorze versos só. Tudo isso é coisa difícil de fazer. A literatura infanto-juvenil também. Não pode ser muito prolixo, tem de ser sintético, sem perder a magia. Isso acaba complicando um pouco.

Elson Farias com seu filho, Zezé, inspiração para sua coleção de livros infantis de mesmo nome.

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Tenho muitos textos inéditos. Como foi seu início na produção literária inA Editora Valer está lançando fanto-juvenil? Eu sempre tive vontade de fazer literatura incinco livrinhos. Tem mais coisas fanto-juvenil e sempre tive contato com professores de literatura. Um dia, um deles me disse: que eu estou trabalhando e “Elson, por que você não escreve algumas coisas para crianças? Porque a gente recebe na sempre preocupado em fazer escola material que vem de fora que falam da uma literatura que fale da Amazônia. Às vezes, até de escritores internacionais traduzidos, de autores que conhecem a nossa vida” Amazônia só por pesquisa literária”. Havia uma histórias que os religiosos escrevem baseadas na Bíblia. Nas histórias sagradas há muito do mistério, da magia, do transcendente. Acho que a literatura tem de ser transcendente. O texto não pode ser muito raso, tem de dar um tom de mistério, mesmo para a criança – principalmente para criança. Temos de incluir o maravilhoso. Sempre me agradou o maravilhoso.

E sobre os temas, o que o senhor pensa? São Amazônia mesmo. Porque eu nasci aqui, na beira do rio e vim para Manaus com 18 anos. Vi muito a vida na beira do rio, da floresta, das histórias da vida dos animais, do homem do rio. É interessante a visão do homem do rio, da beira da floresta, é uma visão diferente da cidade. Eu tinha um tio, o Luís, que não conhecia relógio. Ele via a hora de acordo com a posição do sol e das estrelas. Então, claro, o homem do rio tem uma outra humanidade, outro humanismo. A minha temática é essa. A temática da Amazônia é a natureza, as florestas, os rios, os animais. Também o imaginário que é uma beleza, as lendas, os mitos.

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precariedade de texto juvenil. Havia aqui um grande dramaturgo, o Alfredo Fernandes, que escreveu muito teatro infanto-juvenil. Ele tem uma peça chamada Lágrimas de um Brinquedo. Isso há muitos anos. E ninguém pegou esse segmento, desprezaram, que eu saiba. Mas recentemente têm surgido muitos autores. Eu sempre tentei fazer. Como assim “tentou fazer”? Eu sempre tentei escrever histórias, mas nunca realizava. Não concluía, guardava. Não gostava, achava que aquilo não ia atingir o objetivo, que não ia chegar a se realizar como literatura. Eu acho que não tive “aquele momento”. Tudo depende do “momento”, aquele que a gente faz e acontece. Não tinha acontecido. Aconteceu com o “As aventuras do Zezé”, o primeiro livro. Como foi sua trajetória a partir do primeiro livro infanto-juvenil? A partir do primeiro houve muita aceitação. Começaram a ler muito e me convidaram para

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conversar. Houve muito estímulo. Hoje, eu produzo muito. Vivo aqui na biblioteca, toda hora que posso estou aqui trabalhando. E agora com o computador, isso facilita muito o trabalho. Tenho muitos textos inéditos. A Editora Valer está lançando cinco livrinhos. Tem mais coisas que eu estou trabalhando e sempre preocupado em fazer uma literatura que fale da nossa vida. São histórias sempre voltadas para o meio ambiente, falar sobre o ar, a água, a terra, o fogo, sobre a proteção da natureza. E os personagens são sempre animais. O folclore do Amazonas é muito cheio disso, de animais que falam, dançam, cantam. Como o senhor avalia as políticas públicas de incentivo à leitura? Acho que é preciso investir mais em bibliotecas. Cada cidade deveria ter uma biblioteca, no mínimo. Se possível em todos os colégios. Se todo colégio tivesse uma biblioteca, a situação seria outra. Isso seria uma divulgação enorme para a literatura e uma ajuda para melhorar o ambiente da comunidade, da sociedade.

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A leitura é um instrumento muito positivo de melhoria da qualidade de vida. Já fui secretário de Cultura e procurei fazer isso com bibliotecas volantes. Tínhamos quatro bibliotecas desse tipo trabalhando na cidade de Manaus. Mas hoje acho que se cada escola municipal e estadual tivesse uma biblioteca com bom acervo, bibliotecários capacitados para preparar o livro e fazer chegar esse livro à mão do leitor, seria espetacular. Iria melhorar muito a visão de mundo das pessoas, a cidadania inclusive. Os governos têm políticas de aquisição de livros. “As aventuras do Zezé”, por exemplo, está em todas as bibliotecas. Eu acho que existe uma política, mas ainda está engatinhando, está em processo. É uma política recente? Muito recente. Porque aqui, inclusive, não tínhamos editora. Os livros tinham de vir de fora. Os autores amazonenses, para publicar, pagavam uma gráfica ou então iam buscar um amigo, buscar o governo para publicar seu livro. Iam embora daqui para morar em São Paulo e Rio de Janeiro para publicar seus livros. Eu me lembro que havia uma época em que os estudantes da universidade, para estudar os nossos textos, copiavam na xerox os exemplares porque não os tinha disponível. Hoje, tem os livros da Editora Valer, da Edua (Editora da Universidade do Amazonas) e outras.

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Foto: Marcicley Rego

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Thiago de Mello

amigo das águas No conto, Thiago de Mello narra um naufrágio que por um bom tempo entristeceu uma comunidade do paraná do Urucará

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poeta de Faz escuro, mas eu canto, de Amazonas – do coração encantado da floresta,, que redigiu o Estatuto do homem e ensinou a muitos caboclinhos como empinar papagaio, está de volta. É que a Livraria Valer escalou o, também, contista Thiago de Mello para fazer parte da série Florescer da leitura. Thiago, amazonense de Barreirinha, topou e os leitores vão poder apreciar mais um dos seus trabalhos: o conto O menino Irmão das águas, um causo singelo, singular, amazônico. Editado pela Valer, o livro O menino irmão das águas é um conto de vinte páginas, edição de 2011. A ilustração é de Gilmal, design de Heitor Costa e tem a supervisão de Tenório Telles, também coordenador do projeto Florescer da leitura. “A lei do rio não cessa nunca de impor-se sobre a vida dos homens. É o império da água”, frase do próprio Thiago

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Essa é uma história de persistência, mas acima de tudo, de fé, como observou Thiago de Melo”

de Mello, resgatada pelo professor José Almerindo Alencar da Rosa que escreve a apresentação do livro. É certo que já somos mesmo quase metade homem metade peixe, isso se levarmos em consideração o nosso clima que aponta para uma umidade relativa do ar em índices que chegam a 98%, fazendo-nos respirar água, praticamente. Analogia à parte, o fato é que a relação do homem amazônico com a água vai além da vital necessidade humana. Por aqui as águas correm para provocar fantasias e realidades, ao mesmo tempo, com a desenvoltura de serem as formadoras do maior rio do mundo: o Amazonas. E, é num pedaço bravio dessas águas, no veloz paraná de Urucará, que sucede um causo verdadeiro. Uma história que Thiago de Mello conta depois que ouviu do pai de Pedro, um menino de sete anos, quando estava em viagem pelo município de Urucará. É que Pedro, o menino, cai n’água e desaparece, no rio que é fundo, durante um forte temporal. Tudo parecia normal, pois Pedro e seu pai já perderam as contas de quantas vezes enfrentaram as furiosas águas do paraná do Urucará, sempre vencedores faziam festa quando atracavam o pequeno barco na comunidade. Mas, de repente, tudo mudou e restou a fé e a participação da comunidade para encontrar Pedro, ou pelo menos seu corpo, uma cuia com uma vela acesa deveria dizer onde ele se afogara. Mas o que aconteceu com esse menino, de apenas sete anos, nas turbulentas águas daquele paraná? Essa é uma história de persistência, mas acima de tudo, de fé, como observou Thiago de Mello.

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Aliados em

defesa do Planeta As crianças já podem contar com a ajuda de mais alguns amiguinhos para saber como tratar do lixo que produzimos no cotidiano

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om os adultos ainda dando um mau exemplo quando o assunto é o cuidado com o meio ambiente, fica para as crianças a tarefa de não repetirem o mesmo erro, possibilitando assim uma chance de sobrevivência a si mesmo e ao planeta onde vivem. E para que esse mundo infantil esteja muito bem preparado, acaba de chegar mais um aliado, o melhor deles: o livro Lixo, lixinho, lixão, uma aula colorida e muito divertida para mostrar aos pequeninos leitores a boa ação de separar os vários tipos de lixos produzidos nas suas casas, nas ruas, na sua cidade. O livro é uma alegria só, nem parece uma aula sobre lixo. Com colagens de desenhos multicoloridos, o autor do texto e da ilustração, Abdiel Moreno, vai mostrando o que são os vários tipos de lixo que se produz no dia a dia em casa, na rua, no bairro, na cidade. Abdiel mostra que os adultos


Minhoca

Moca

Camundongo

Dongo

Barata

Bara

ainda não dão destino certo ao lixo que produzem; e também quanto tempo alguns produtos levam para se decompor na natureza. Além da preciosa orientação sobre o que fazer com cada tipo de lixo produzido, o livro já informa aos pequeninos leitores sobre termos da Educação Ambiental. São nomes que eles devem se familiarizar porque vão usar muito em suas vidas adultas: reciclagem; resíduos sólidos; resíduos líquidos; lixos orgânico, inorgânico, são algumas das expressões que estão no livro e que já colocam a criançada na rota da preservação ambiental. E para transitar com mais alegria ainda pelo mundo infantil, Abdiel Moreno usa como mensageiros profundos conhecedores dos lixos: a minhoca Moca, o camundongo Dongo e a barata Bara.

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Moca e Dongo dão uma verdadeira aula do que fazer com os lixos, mais a dona Bara, essa não tem jeito, gosta de ser barata mesmo. Depois de descobrirem como cuidar dos lixos e de passearem com a Moca e o Dongo por paisagens coloridas, a criançada ainda tem a oportunidade de mostrar, ela mesma, como vai fazer com lixo daí para frente. É que o autor reservou uma página inteira para que cada leitor faça seu desenho. É o leitor que encerra o livro, que tem 24 páginas, foi confeccionado com papel que voltou do lixo, reciclado, portanto. Editado pela Valer, Lixo, Lixinho, Lixão, para a criançada ler e para dar um descanso a vovó que nunca poupou esforços para ensinar a maneira certa de fazer as coisas, entre elas, cuidar do lixo.

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A cada página um pop-up bem colorido e divertido, com textos rimados e instigantes 19,2 x 18 cm 10 páginas ISBN 978-85-209-2687-1 R$ 24,90

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Os livros da Nova Fronteira, Agir e Thomas Nelson você encontra na Livraria Valer


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De família em família José Almerindo Alencar da Rosa | professor e escritor

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– Sem esse alicerce a família desmorona como num castelo de areia. Mesmo quando não se tem vontade de dar carinho e quando não se compreende nada do que acontece, é preciso um esforço extra... Só assim pais, filhos e irmãos se entendem... Zemaria Pinto

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rês ideias nos marcam e ficam traquinando em nossa mente após a leitura de Urubu albino. Estas ideias que nos fazem pensar são o brincar com a liberdade, a fascinação e o medo que o desconhecido nos oferece e o jeito discriminante de ser de cada ser. Brincar, ser um ser livre é desejo do bicho homem; sendo humano, é nosso objetivo alcançá-lo. O encantamento pelo desconhecido e o inevitável medo também são componentes das buscas deste ser tão contraditório e sujeito da história, porém o homem lança-se no desconhecido e impõe-se ao elemento que o apavora. Já o nosso jeito de ser, mesmo pretendendo não sermos todos iguais, sempre reparamos no diferente e a tendência é ignorá-los, desprezá-los, criticá-los. Por que nos acompanham tais ideias? Será que a família não nos alerta para os valores e os limites da liberdade; para o pensar e o agir diante do desconhecido e do medo; para o respeito às diferenças. Sabe-se que aos pais conscientes cabe a competência de dar os bons conselhos e indicar os caminhos que devem ser trilhados, todavia a formação do caráter de uma pessoa, de um ser pensante, está nas mãos deste. Quem leu o Diário de Anne Frank, certamente, aprendeu muitas destas lições. Lendo-se a obra Urubu albino, série Florescer da Leitura, Editora Valer, deparamo-nos com estas interrogações. Zemaria Pinto já nos ensinou, em O texto nu, que Ler nos leva ao Compreender, este nos conduz ao Interpretar e este verbo nos induz ao Conhecer. Partindo-se do conhecimento, quan-

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do nosso cérebro apreende a ideia, atingimos o ápice da pirâmide, o Pensar. Estes verbos acompanham a realização de qualquer leitura, seja do mundo que nos cerca ou das palavras que cercam o mundo. De palavra em palavra cada leitor, jovem ou adulto, vai construindo o seu jeito de ser, o seu caráter, com liberdade perante os fascínios e os temores que o mundo nos oferece. Bico Claro, o urubu albino, é mais um animal disposto a servir de exemplo aos animais racionais, que somos nós, nos apresentando: a amizade, o respeito, os limites, o ouvir os mais experientes. Urubu albino é a terceira produção de Zemaria Pinto, o poeta do Fingidor. O poeta é aquele que busca, nas entrelinhas da vida, descobrir uma nova maneira de dizer aquilo que outros já disseram ou que outros até já perceberam, mas não souberam dizer. Zemaria é o poeta que fragmentou o silêncio e compôs melodias para os surdos. Em haicais cantou a beleza feminina e participou de dabacuris. Agora, nada com os peixes, em A cidade perdida dos meninos-peixes e nos dá uma lição do que é a família e seus valores. Também nos convida a não nos acomodarmos, a não nos instalarmos e dizermos que não tem jeito, que nada muda. O pequeno Beijinho, personagem de O beija-flor e o Gavião, convence a acomodada e desajeitada Grandona a assumir o seu verdadeiro perfil, fugindo da mesmice e da falta de perspectivas. Convence-a a voar em busca da liberdade para não se deixar prear pelo ambiente e a opinião dos outros. Cecília Meireles escreveu que a literatura não é passatempo, é alimento. O conceito da poeta

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continua pleno de significado. Ler bons livros nos ajuda a alimentar o espírito para que possamos enfrentar as agruras do dia a dia. Os livros, sejam infantis, infanto-juvenis ou adultos, quando bem escritos, marcam-nos e nos acompanham ao longo da caminhada. Nestas três obras infanto-juvenis, o autor destaca, de maneira natural, os valores da convivência, seja na família, seja nos grupos sociais. De família em família, a mensagem vai perfurando e penetrando na mente dos jovens leitores. Estas mensagens não nos arrancam lágrimas, nem suspiros; nos fazem construir pensamentos. É bom que os leitores observem e pensem acerca da felicidade dos urubus diante dos “dois ovos azulados” assim como o reencontro com o filhote albino desaparecido. São animais irracionais que não maltratam nem abandonam os filhos como os humanos, conhecidos como racionais. Temos ainda muito a aprender e crescer. Aprendamos com os animais estas lições de vida, de vida em família, em comunidades, em sociedade. Aprender para melhorar é missão de todos que pretendem viver e conviver com os demais. Não é demais lembrar o que escreveu Zemaria: Ao descer das águas a várzea rejuvenesce – tempo de plantar. Sempre é tempo de plantar ideias em nossa mente para que este corpo, firmado sobre os pés, percorra o caminho que Deus nos indicou.

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escrevendo histórias para Leyla Leong | jornalista e escritora

“E se as histórias para crianças passassem a ser leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender o que tanto tentam ensinar?”

Fotos: Heitor Costa

José Saramago

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oda vez que tenho que me identificar como autora, me incomoda dizer que faço literatura infantil. Atualmente tenho preferido dizer que escrevo para crianças. No entanto, percebo que existe um certo preconceito que paira sobre o trabalho feito pelos escritores que escrevem livros para crianças, gênero literário considerado menor em relação a outros, como os romances, novelas e ensaios, dirigidos aos leitores adultos. Se considerarmos a quantidade de linhas, palavras, páginas e pesquisas, até pode-se acreditar que realmente a literatura adulta representa uma quantidade de tempo maior de uso do cérebro. Mas isso não desvaloriza o trabalho daqueles que escrevem para crianças. É muito difícil conseguir sintetizar em poucas palavras ideias inteligentes e atraentes ao mesmo tempo, para a conquista definitiva dos leitores que mais tarde consumirão obras mais densas e volumosas. Para seduzir esse leitor iniciante, quem escreve para crianças deve desenvolver uma capacidade especial de simplicidade; saber identificar qual a área de interesse do seu público e aquilo que representa a atualidade para as crianças. Serão ainda as fadas, os duendes e os reis em seus castelos, ou serão os assuntos reais do agora? Quem escreve para crianças tem que fazê-lo vendo o texto representado em imagens, pois as ilustrações são fundamentais para estabelecer a aproximação com os pequeninos. Ainda não me atrevi a fazê-lo, mas tenho pensado muito em escrever um texto sobre um navio pirata que há alguns anos sequestrou crianças africanas e depois as abandonou à deriva no mar. Seria essa história mais cruel do que a de Rapunzel, prisioneira de uma bruxa na torre de um castelo? Ou a de João e Maria, abandonados pelo pai no meio de uma floresta, à mercê das feras e do medo? Talvez seja mais aterrorizante se pensarmos que o fato é real e está acontecendo, com variações em quase todos os lugares do mundo.

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Desafio O autor de histórias para crianças tem de pensar também que a iniciação delas nos prazeres da leitura não se dá espontaneamente: gostar ou não de ler vai depender dos pais e dos professores. Portanto, eis aí mais uma pedreira que o autor tem de atravessar. Recentemente encomendei um anel a um joalheiro famoso. Pedi que criasse uma peça simples, em prata, com a inscrição “tudo passa”, para que não me esqueça da impermanência das coisas desta vida. Um anel filosófico, portanto. Disse-lhe que era escritora e que escrevia para crianças. Prontamente ele respondeu o meu e-mail, informando o preço e a forma de pagamento, dizendo-se

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muito entusiasmado em produzir uma joia para uma escritora. Lá no final do texto do e-mail ele pede, como se fosse um elogio, que eu mande meus livros para ele ler para o filho. Só esqueceu de perguntar o preço. Tenho certeza que o tempo e o talento que ele vai utilizar, para criar e produzir o meu anel, não será menor do que a minha dedicação e esforço para escrever os meus livros.

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Um menino

cuirão

Essa obra é parte do esforço do autor de encaminhar os leitores a uma viagem pelo mundo mágico das palavras

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ilho de interioranos, o jornalista Neuton Corrêa guarda na lembrança fatos, lendas e episódios de sua infância ribeirinha. Seu livro Sonhos de cuirão, expressivo dessas vivências, é composto com recortes de histórias que ouviu e foram incorporadas ao seu imaginário. A obra se estrutura como uma narrativa de beira de rio, a exemplo dos causos e contos fantásticos que são tecidos pelos caboclos para divertir as

crianças e também os adultos nas rodas. Sonhos de cuirão é um pequeno conto infantil que ilustra esse tipo de narrativa do interior da Amazônia, em que as histórias são narradas a partir de temas do cotidiano, incorporando seres e pessoas como protagonistas. A ambientação é regional e retrata preocupações características do viver amazônico e as lições que os habitantes desse mundo, feito de água, floresta e magia, aprendem ao observar a natureza.


Cuirão é o personagem da história. Seu nome deriva de “cuíra”, expressão típica da Amazônia, atribuída a pessoa irrequieta, “que não para”. A verdade é que Cuirão, protagonista dessa história cheia de ensinamentos, é uma pessoa curiosa, que gosta de aprender. Por isso, vive observando a natureza para colher lições que possa aplicar na criação de seus filhos. Na sua busca, aprendeu muito com os bichos, com os peixes, em especial com o pirarucu, que o ensinou a cuidar bem dos seus filhos. O livro de Neuton Corrêa é uma lição de vida, que nos ensina o valor da família e a importância de aprendermos com as lições da natureza. Cuirão é personagem que esbanja simpatia por onde passa: seja na escola municipal da Vila Amazônia, nos arredores de Parintins, ou nas bibliotecas de Manaus. Pode-se dizer que esse menino serelepe tem algo em comum com a criançada que não economiza imaginação para inventar mundos maravilhosos. Suas peripécias desconcertam o universo das impossibilidades. Cuirão viaja no tempo e no espaço sem dar bola aos limites das coisas invisíveis e visíveis. É um curumim curioso, perspicaz e corajoso, assim como os seus amiguinhos que inundam os beiradões da Amazônia.

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Cuirão é o personagem da história. Seu nome deriva de “cuíra”, expressão típica da Amazônia, atribuída a pessoa irrequieta, “que não pára”

Crônicas Neuton Corrêa também é autor do livro de crônicas Entre Linhas, também publicado pela Valer, cujo repertório de temas foi coletado nas idas e vindas do autor entre as paradas de ônibus da cidade. Os textos transbordam e vozes e sentidos, por isso guia o leitor pelos corredores dos ônibus e da cidade. Seus personagens são figuras que transitam, conversam, opinam e revelam as suas idiossincrasias.

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sociedade

Foto: Divulgação

Simpl acont

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mplesmente ntece

Minha Alma é Mulher... é um livro que compreende a alma humana como lugar do amor à vida e da tolerância às diferenças

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um ambiente rural, onde o tempo demora a passar e as mudanças muito mais a chegar; onde as transfusões de valores de vida são rígidas e se dão, quase simultaneamente, através de avós, pais, irmãos, primos, tias, e por aí vai; onde a dureza do trabalho alimenta a masculinidade até do ser feminino, e a macheza já vem de berço, nasce um belo jovem com alma de mulher. Um paradoxo moral para a família dele que ignora as suas tendências femininas. Uma exigência, sorrateira e sufocante, para que ele seja um homem de verdade. Ele não aceita esconder sua alma e segue a vida em busca do direito de amar. Muros não faltarão até que ele alcance o grande amor de toda a sua vida. Essa é a trama vivida pelo jovem Marcos que se descobre homossexual e busca viver seu grande amor Rafael, personagens idealizadas pela escritora paulista, Maria da Glória Cardia de Castro, e que fazem parte da inquietante história do livro Minha Alma é Mulher. Editado pela Cortez, com 131 páginas, e ilustração da mineira Mirella Spinelli. O livro está em lançamento. A autora abre seu coração e amplifica seus ouvidos para ouvir uma história registrada num pedaço de diário amarelado e reescrevê-la em forma

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de livro, nos seus mínimos detalhes. Uma história de amor incomum, inadmissível, intolerante, para a maioria da sociedade, embora de forma velada. Os sentimentos são levados ao extremo por se tratar de um amor homossexual entre dois rapazes, amigos desde a adolescência que, além das barreiras morais, ainda enfrentam desencontros pela vida que, como disse o poeta, é a arte do encontro. Marcos sempre se imaginou mulher, apesar da anatomia do seu corpo masculino. Desde as brincadeiras com irmãs, primos e amigos ao primeiro contato sexual com o primo, ele sempre se revelou, confortavelmente, feminino. Mas como enfrentar o mundo inteiro para ser quem se é de verdade? Como enfrentar uma família, amavelmente, normal e uma sociedade com o, camuflado, dom da homofobia? Marcos, personagem central, da polêmica trama de amor captada por Maria da Glória, responde a essas perguntas sem a proteção da pintura no rosto de Madame Burthefly, sem dublagens de voz de Priscila, a rainha do deserto, sem a montanha de Brokeback para revelar seu segredo. Marcos caminha, de tez limpa, buscando afirmar-se, para fazer valer sua alma de mulher, e com ela ter ao seu lado um grande amor. Tudo isso simplesmente acontece.

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educação

Cabeça bemMarcus Stoyanovith | jornalista

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Foto: Divulgação

ocê mal abre os olhos e já se depara com um turbilhão de informações. A pressa, combustível poluente da sobrevivência, nos dias de hoje, lhe afasta de qualquer chance de organizar sua cabeça; afasta-o de perguntas que gostaria de fazer a si mesmo. No lugar delas, milhares de informações sobre o mundo inteiro, via internet, bem na ponta dos seus dedos e, de repente, uma interrogação: “Por que sei de tudo, mas não compreendo nada?”. Sua cabeça está cheia. Foi para que você supere essa condição que um dos maiores pensadores da atualidade escreveu um livro: A cabeça feita. Nele, o meio básico para essa mudança está numa reforma da Educação e do pensamento, e vice-versa. No livro há pistas para você sair da passiva existência de uma confusa cabeça cheia para o mundo do conhecimento organizado da cabeça feita. O pensador é o sociólogo Edgar Morin, 91 anos, nascido em Paris, um defensor histórico da integração de diversas áreas do saber e considerado um dos mais capazes sobre a teoria da complexidade. Ele passou dez anos coletando uma linha de ideias para escrever esse livro. Ele é atualmente doutor emérito do Centre National de La Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisas Científicas), com atividades em outras instituições. A cabeça feita. Repensar a Reforma. Reformar o pensamento foi escrito em 1999, impresso no Brasil em 2003, e está em sua oitava edição. Editado pela Bertrand Brasil, com capa de Simone Villas 82

Morin defende que só uma reforma na educação poderá desenvolver um novo ser humano

Boas e tradução de Eloá Jacobina. Morin diz que o livro é para todos, mas faz uma dedicação especial aos alunos e professores em geral. Isso porque Morin reflete que só reformando o pensamento é que se reforma a Educação e só com a Educação é possível reformar o pensamento. “Educação é a utilização de meios que permitam assegurar a formação e o desenvolvimento de um Ser humano”, cita o livro. Ele expõe também um conceito sobre o ensino: “A missão do ensino não é transmitir o mero saber, mas uma valercultural


Foto: Antônio Gaudério/Folhapress

m-feita

cultura que permita compreender nossa condição humana e nos ajude a viver, favorecendo, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre”. Para organizar o pensamento e ter a cabeça feita, é preciso um sistema adequado para a Educação e ele seria feito com a interação de vários saberes agrupados, como Filosofia, Psicologia, Sociologia, Literatura, Poesia, Cinema, Música, entre outros. Sim, sacar onde é o ponto de encontro das fronteiras desses saberes, por exemplo, gerando um novo contexto, é dar a chance de se produzir um conhecimento mais profundo, uma visão mais valercultural

longa das realidades que nos cerca. “Uma coisa não é apenas uma coisa, mas um sistema que constitui uma unidade, a qual engloba diferentes partes”, diz um trecho do livro. Ao contrário dessa percepção, se produz um aprendizado que não estimula a ligação dos saberes, mas investe na hiperespecialização, fragmentando o conhecimento. Esse modelo de pensamento recortado impede de ver o global (que ele fragmenta em parcelas) e o essencial (que ele dilui). Na linha das ideias, Morin exemplifica: “Um economista não pode ser um bom economista se 83


Foto: Margarida Neide/Ag. A Tarde/Folha Imagem

“

O cabeça feita seria beneficiado por um programa interrogativo que partisse do humanoâ€?

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só entender de economia”. Não se pode ter um conhecimento fragmentado. É como ver uma parte de uma imagem num caco de espelho, você não vai conhecer aquela imagem, a não ser que a veja num todo. Para Morin, a verdadeira reforma na Educação, entre outros fundamentos, deve ter um ensinamento que motive, provoque a sua intuição, o seu autodidatismo para que você vá além do mero saber. Há de se imaginar, no entanto, que a Educação que não valoriza e estimula a criatividade, além do que está posto como saber científico, e que só oferece e estimula especialidades, não eleva o espírito e não permite enxergar a essência das coisas que estão à sua volta. Um bom exemplo está nas artes: “Uma única obra literária pode conter um infinito cultural que engloba Ciência, História, Religião, Ética, só para citar”, escreve Morin. E o que deve ser buscado é o conhecimento contextualizado para se ter uma boa formação e um bom desenvolvimento (material e espiritual). “Você conhece bem a história da sua comunidade, as pessoas que moram nela, como se comportam, o que elas desejam, quais são as suas necessidade, os itens de urbanização que nela existem, entre outras coisas. Nesse processo são aplicados conhecimentos de História, Sociologia, Antropologia, Engenharia e Filosofia, por exemplo. Essa é uma contextualização. Uma visão local que precisa ser inserida numa contextualização global para se ter uma visão mais ampla e profunda da

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realidade. Aí você está contextualizando o contexto, numa condição planetária. Para se ter uma ideia bem básica de um sistema educacional proposto por Morin, os três Graus teriam o seguinte conteúdo: Primário, não deve destruir e sim estimular a curiosidade das primeiras interrogações: O que é o ser humano? A vida? A sociedade? O mundo? A verdade? “A finalidade da Cabeça Feita seria

Um economista que só entende de economia, não pode ser um bom economista”

beneficiada por um programa interrogativo que partisse do ser humano”. No secundário, você teria a verdadeira cultura, aquela que estabelece o diálogo entre a cultura das humanidades e a cultura científica. A História deve ser o carro-chefe dessa fase, da sua Nação à sua realidade. Você também discutiria sobre o Universo, a Terra, o Humano. E o Terceiro Grau, a Universidade teria o papel de memorizar, integrar, ritualizar uma herança de saberes, valores e ideias. A Universidade, enfim, teria como missão conservar, gerar e regenerar conhecimentos. Há três desafios a serem observados para um sistema Edu-

cacional que forme a cabeça feita, de acordo com Morin: Cultural – A cultura humanista, que tem a Filosofia como berço, e a científica, que tem admiráveis descobertas e teorias geniais, mas não tem uma reflexão sobre o destino humano, nem dela própria; Sociológico, para a qual: A informação é a matéria-prima que o conhecimento deve dominar e integrar. O conhecimento deve ser, permanentemente, revisitado e revisado pelo pensamento. O pensamento é, mais do que nunca, o capital mais precioso para o indivíduo e para a sociedade. E o desafio cívico, onde se vê o enfraquecimento do senso de responsabilidade e de solidariedade, pois cada um tende a ser responsável apenas por uma tarefa especializada. Ninguém mais preserva o seu elo orgânico com a cidade e com os seus cocidadãos. Os grandes avanços da humanidade têm partido da ligação de vários conhecimentos que forjaram descobertas que produzem vários benefícios, inclusive a ler eventos naturais e suas ocorrências. Entre esses conhecimentos, estão: a Ecologia (as mudanças climáticas na evolução humana); a Genética (as mutações sucessivas ao longo do tempo); Anatomia (o elo entre a bipedização e a manualização, a postura ereta do corpo e a modificação do crânio); as ciências neurológicas (crescimento e reorganização do cérebro) e a Sociologia (transformação de uma sociedade de primatas em uma sociedade humana). Esses são alguns, entre muitos, exemplos.

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educação

aprender Bárbara Lima | jornalista

Foto: Divulgação

Novo jeito de

Livro Ensinar e aprender com pesquisa no Ensino Médio auxilia professores e alunos com postura investigativa na escola

E

squeçam as fórmulas decorativas e os métodos obsoletos aplicados aos estudantes em anos escolares que antecedem o vestibular. O livro Ensinar e Aprender com pesquisa no Ensino Médio, de Antônio Joaquim Severino e Estêvão Santos Severino, que chega às livrarias neste mês, apresenta metodologias que ultrapassam o tripé básico tomado de apontamentos – leitura – redação e fornece um roteiro de atividades práticas para professores e alunos que transformam o momento do estudo em fonte de conhecimento e prazer. Para Antônio Severino, professor titular de Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP, um Ensino Médio bem aproveitado é importante para o ingresso do jovem no Ensino Superior, para a inserção dele na vida profissional e, sobretudo, na formação cultural e amadurecimento pessoal. “O livro pretende propiciar a esses estudantes um instrumento para otimizar o aproveitamento de seus estudos. Pretende fornecer, de maneira bem concreta e acessível, uma iniciação ao trabalho escolar com mais organização e sistematicidade”, explica o autor na apresentação do livro. A obra leva em consideração que o Ensino Médio é uma fase crucial para o adolescente, quando ele se depara com uma encruzilhada de decisões inadiáveis, incertezas e dúvidas, tudo isso em meio ao processo de transição da infância à idade adulta. “Não se trata de um receituário inflexível, mas tão somente de um instrumento que ajuda a aplainar os caminhos, quando necessário. Com seu uso, os alunos vão adquirindo familia-

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ridade com essas práticas e acabam por incorporá-las, tornando suas tarefas escolares mais produtivas e, até mesmo, mais agradáveis e, consequentemente, mais adequadas a sua futura vida científica e profissional”, comenta Severino. Os recursos da internet também são apontados como aliados do ensino pelo designer gráfico Estêvão Severino, que desenvolve atividades sobre o uso positivo e correto da web. Em entrevista à Valer Cultural, o professor Antônio falou, entre outras coisas, sobre a postura ideal de alunos, pais e professores no processo de aprendizagem, as mudanças impostas pela informática e internet e como ele enxerga o sistema de aprendizagem adotado atualmente no Brasil. Como é a obra? Qual o seu objetivo? Antônio Severino É baseada em orientações bem práticas, que oferecem ao estudante um roteiro de trabalho e ainda ajuda os professores a terem uma referência de atividade sistemática. A intenção é de criar novos hábitos para o estudo e desenvolver as atividades de pesquisa no processo de construção do conhecimento. valercultural

A ideia dessas diretrizes é de ajudar o aluno a desenvolver o seu trabalho com mais autonomia. Não escrevemos um livro de receitas de técnicas prontas, disponibilizamos subsídios para que o aluno não dependa apenas do processo escolar e mostramos como estudar. Qual a expectativa em relação à leitura do livro? É uma aposta que a gente faz. Essa é a retomada de uma versão anterior que havia escrito, um reflexo para o Ensino Superior que teve uma boa acolhida, mas que não era adaptado para as expectativa do Ensino Médio. Meu desejo é que os jovens no estágio de escolaridade média encontrem o prazer em conhecer. O ato

Não se trata de um receituário inflexível, mas tão somente de um instrumento que ajuda a aplainar os caminhos, quando necessário” 87


Foto: Divulgação

de estudar não pode ser visto como uma tarefa de escravo, e sim um hábito gratificante e prazeroso. Como o senhor avalia o sistema de aprendizagem usado nas escolas brasileiras? Eu acredito que a educação no Brasil é deficiente. A educação está abandonada nesse sentido, não estão sabendo encontrar o caminho certo para esse tipo de trabalho. A sensação é de que a gente deixou um método tradicional de ensino e não consegue substituí-lo. Antes, tínhamos um método baseado na pedagogia conservadora, autoritária e mecânica, dirigida a poucas pessoas. De repente, temos uma transformação muito grande nos processos culturais e no volume de pessoas. Estamos despreparados. Explique os porquês desse despreparo? É um processo complexo de muitas causas. Existe um problema cultural, que não permite que se enfrente essas mudanças rápidas e profundas que aconteceram no plano da tecnologia e da própria cultura. É evidente que a responsabilidade imediata é mesmo do processo escolar, que deve saber lidar com essas coisas. Qual a dificuldade em lidar com a transformação que o adolescente enfrenta na fase do Ensino Médio? É uma mudança abrupta e profunda, que envolve decisões. Nós temos mesmo dificuldade em acompanhar as mudanças e então a coisa se torna ainda mais complexa. Qual a forma ideal para estudar? É preciso a aprender a construir a informação. A atitude básica que está por trás de todo tipo de trabalho é justamente a perspectiva da investigação concreta. Só se aprende bem quando se aborda determinado projeto de forma investigativa. Qual deve ser a postura do aluno? Adotar uma postura investigativa é fundamental. Não estou falando que o aluno precisa se tornar um investigador no sentido técnico, mas que deve ter a mesma atitude que impele o pesquisador, da curiosidade e busca por conhecimento. É preciso deixar de aprender a partir de decoração, reproduzindo o que já foi dito e feito. É necessário procurar enten-

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O livro pretende propiciar a esses estudantes um instrumento para otimizar o aproveitamento de seus estudos. Pretende fornecer, de maneira bem concreta e acessível, uma iniciação ao trabalho escolar com mais organização e sistematicidade”

der esse processo e se apropriar dele. Não tem jeito de se fazer isso mecanicamente. Dê-nos um exemplo. Se o aluno estuda sobre a Revolução Francesa ou Independência do Brasil, ele não deve apenas reter as informações a respeito desse assunto, mas também valercultural


ir atrás de todas as motivações e causas que produziram determinado fenômeno. É na produção dele que vou conseguir entendê-lo, como se faz nos laboratórios de química e física. Qual o papel da família no processo de aprendizagem? Se a família puder disponibilizar materiais e até participar das atividades, é fundamental porque esse é um processo interativo. Nesse campo, a família complementa um trabalho mais técnico da escola. Como a internet mudou a forma de ensinar e aprender? A internet e a informática surgiram como demonstração das mudanças que se operaram na nossa cultura e na nossa sociedade. Essa dupla está trazendo modificações profundas, sobretudo no plano das linguagens. Isso faz parte do futuro. Hoje em dia, computador é o mesmo que régua e compasso. É uma ferramenta que veio para ficar e fazer parte do nosso arsenal de ensino. Não tem como a educação ignorar ou dispensar tudo isso. Se não conseguirmos domesticar todas essas linguagens e nos apropriarmos delas no processo pedagógico, vamos perder o trem da história.

Da sala de aula à intenet Dividido em oito capítulos, o livro de Antônio e Estêvão Severino aborda desde a participação na sala de aula até o uso da rede mundial de computadores como ferramenta de aprendizagem, passando pela pesquisa, leitura e trabalho em grupo. Segundo os autores, a aula tem um papel fundamental, visto que é uma etapa de balanço e um novo ponto de partida, quando professor e alunos se encontram para acertarem seus esforços de estudo e de investimentos intelectuais. Após a aula, o estudo investigativo ganha destaque. O segundo capítulo mostra que a familiaridade com as fontes de investigação é imprescindível para que possamos nos habilitar para a construção do conhecimento e apresenta fontes de estudo e pesquisa que estão ao alcance do estudante do Ensino Médio para que ele possa preparar sua participação nas aulas, complementando-a com novos elementos de conhecimento. A leitura, recurso fundamental para a aprendizagem significativa, é objeto do terceiro e quarto capítulos. Antônio Severino orienta como o estudante deve proceder para retirar das fontes documentais elementos que precisam ser destacados e preservados como mediações do conhecimento que os cabe construir. Além disso, trata da leitura analítica, na qual se busca explicitar e apreender a mensagem que o autor do texto quer passar. Os leitores também vão aprender a obter resultados eficazes a partir de trabalhos em grupo e elaborar trabalhos escritos com diretrizes técnicas, lógicas e redacionais. Nos dois últimos capítulos, estão em pauta as contribuições que os programas computacionais podem levar para professores e alunos, bem como as condições para a exploração mais inteligente e enriquecedora da internet.

Ficha Técnica Título: Ensinar e Aprender com Pesquisa no Ensino Médio Autores: Antônio Joaquim Severino e Estêvão Santos Severino Editora: Cortez Editora Páginas: 144 ISBN 978-85-249-1893-3

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