Yahi Puíro Ki’ti – A origem da Constelação da Garça

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Jaime Diakara

Yahi Puíro Ki’ti A origem da Constelação da Garça

Ilustração Thalles Alexandre



Jaime Diakara

Yahi Puíro Ki’ti A origem da Constelação da Garça

Ilustração Thalles Alexandre


Copyright © Jaime Diakara, 2011 Editor Isaac Maciel Coordenação editorial Tenório Telles Design e direção de arte Heitor Costa Ilustração Thalles Alexandre Revisão Núcleo de Editoração Valer Normalização Ycaro Verçosa

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Diakara, Jaime.

Yahi Puíro Ki’ti – A origem da Constelação da Garça. / Jaime Diakara. – Manaus: Editora Valer, 2011.

16 p. (Série Nheengatu, 2)

ISBN 978-85-7512-513-7­­

1. Literatura brasileira – narrativa infanto-juvenil 2. Narrativa indígena 3. Thalles Alexandre – ilustrador I. Título.

CDD 028.5 22 Ed.

2011 Editora Valer Av. Ramos Ferreira, 1.195 – Centro 69010-120, Manaus – AM Fone: (92) 3635-1324 www.editoravaler.com.br


Uma história mágica

Meu caro leitor, embarque nesta canoa. Estamos com mais um livro da coleção Nheengatu, Yahi Puíro Ki’ti (a origem da Constelação da Garça), de Jaime Diakara. O mito, que nos é contada e que você deverá ler ou ouvir através da voz de alguém, percorre há muito tempo a mente dos Dessana e é transportada na canoa ancestral. Canoa esta que não percorre só os caminhos de rio, mas os caminhos do tempo. Nós sempre fomos acostumados a ler ou ouvir histórias ou estórias dos povos que para cá vieram. Agora temos oportunidade de também termos contos contados pelos povos desta terra dominada pelas águas. Já viajaram nesta canoa João Barbosa Rodrigues e Antônio Brandão de Amorim, os quais andaram à procura e recolheram bastante desses mitos e lendas. O antropólogo Nunes Pereira, outro viajante, conviveu com os indígenas e mais costumes e lendas pesquisou. Pe. Casemiro Beckstá, não só pilotou a canoa, mas conviveu fraternalmente com os indígenas e bem orientou Márcio Souza e Aldisio Filgueiras na feitura de Dessana, Dessana. Mais recentemente tivemos o Antes o mundo não existia, de Luís e Firmiano Lana, filho e pai, respectivamente. Conforme os Dessana, o nome do segundo autor é Feleciano Lana. Portanto, os leitores do século XXI possuem mais possibilidades de melhor conhecer os conteúdos que a ancestral embarcação dos povos da floresta conduz em si. A canoa, ao longo dos anos, aproximando-se das margens de rios e de igarapés, vai recolhendo a sabedoria desses povos que convivem harmonicamente com os habitantes e as entidades da mata. Dessa ação de busca, de colheita, tivemos a sorte de observarmos a brancura da garça destacando-se no verde amazônico e o brilho das estrelas no céu de verão cortado pelo Equador. Isso nos levou a pesquisar a origem da palavra garça. Segundo Aurélio, o dicionarista, a palavra é de origem controversa e deve ter chegado a nós através do termo castelhano “garza”. Mas Houaiss, o outro, nos indica como origens prováveis, a língua latina GARTIA ou ARDEA, AE, ou ainda, origem pré-romana, dos celtas ou pré-celtas, KARKIA. Para os habitantes da imensa floresta, o nome garça é o sonoro Yahí. Prossegue a igara pelos igarapés, os caminhos de água. Somos informados que PUÍRO é enchente e KI’TI é história, conto. Também ficamos sabendo que Pamuri, com o u cortado, de som nasal, e Masá significam gente de transformação.

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Digo, comigo mesmo, agora entendi aquelas frases do início da narrativa: “canoa de transformação” e “a chegada da gente de transformação”. Também aprendemos que “capiwaya” é dança regional dos Tukano e Dessana. Finalmente nos informaram que Dessana, wiró-masã, significa gente do vento. Entendemos por que nossa ancestral canoa parecia flutuar e o vento era constante. Não bastavam os remos, o povo do vento nos ajudava. E a lenda? Hão de perguntar? A lenda está à espera dos leitores. Penetrem nela como os peixes nas águas e as garças no ar. Saibam que a garça, o Rei das Garças era de abiu. Abiu ou abio é fruta nossa que surge no verão amazônico, no quente agosto. “Isso sempre acontece no mês de agosto”, diz a lenda. Tempo também do amadurecimento das frutas. Neste tempo, é esperada a enchente da garça. Você, leitor, deve ficar, na terra, de olho no rio e de olho no céu. No rio, os peixes; no céu, a constelação. O sangue da branca garça é transformado em chuva para que a primeira morte de ser vivo seja relembrada. Ouvíamos a explicação e nos alimentávamos de manivaras ou maniwaras, conforme falam os indígenas. Aliás, manivaras são as conhecidas tanajuras. Nossa viagem prossegue através dos rios do tempo que penetram no verde. Viajar, no tempo ou no espaço, é sempre instrutivo. A curiosidade, a sadia curiosidade, nos orienta a irmos em busca de descobertas, de novas fronteiras. A isso se propõe a já citada coleção Nheengatu, narrativas indígenas, a qual já nos deu o volume Çaiçú’indé, de Roni Wasiry Guará. A coleção traz da oralidade para a escrita a sabedoria dos primitivos habitantes desta floresta. Assim como nos encantamos com as lendas e os contos europeus, também nos deixemos envolver pelas narrativas ameríndias. Nossa canoa prossegue singrando as águas, ora sombreadas, ora sob a brandura ou a quentura dos raios solares. Embarque você também nesta que atravessa o tempo e os ares. Ela não tem furos, está bem calafetada pelo breu da imaginação. Se existem brechas, nós as tapamos com chumaços de pensamentos, de ideias. É assim que se conta e assim foi e será a origem de nossas narrativas. Nossos dicionaristas, Aurélio e Houaiss, não registram o termo DESSANA, registram DESANA, apenas. Para Márcio Souza e Aldisio Filgueiras, criadores do espetáculo Dessana, Dessana (1975), o termo segue a pronúncia do duplo “s”. Observe que o termo Pamuri Masá, embora grafado com apenas um s, é pronunciado pelos povos do vento como /massá/. Segundo Márcio, os Dessana são wirá (vento) ou wirá-poná (filhos do alto). E a canoa ancestral de transformação, carregada de gente de transformação, há de prosseguir transformando os ainda não admiradores da leitura em devotados discípulos do ato de ler. José Almerindo Alencar da Rosa é professor e autor de Redação – fundamentos e práxis e Leitura – conceito, prática e literatura 6


Yahi Puíro Ki’ti A origem da Constelação da Garça


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s Dessana-Wahari Diputiro Porã acompanham as estações do ano através das constelações e do tempo de amadurecimento das frutas. De acordo com esse povo, o ano começa com uma enchente, chamada em dessana yahí puíro (enchente da Garça). É também o aniversário da chegada da canoa de transformação na cachoeira de Ipanoré. E assim, nesse tempo, chegam e encostam em Ipanoré todos os tipos de peixes: mandi, aracu, surubim, etc., representando a chegada dos Pamuri Masá, gente de transformação, seres humanos que se originaram dos peixes e outros animais.

Esses peixes simbolizam a chegada da gente de transformação nessa cachoeira. Chegando lá, cada grupo de peixe dirige-se para um rio ou um igarapé determinado, como fizeram os Pamurĩ Masá. Isso sempre acontece no mês de agosto. 8


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A Constelação da Garça foi criada pelos Pamurĩ Masá nos primeiros dias de sua vida. Eles estavam fabricando os enfeites de danças que são usadas nos capiwaya, dança ritual tradicional, quando se deram conta de que as penas de pássaros eram os melhores enfeites para esse tipo de dança porque elas demoram para estragar. Um dia, eles agarraram uma garça e a mataram para depená-la.

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Depois de terem arrancado as suas penas, eles a lançaram no espaço. Em seguida, estenderam as penas próximo ao lugar onde as tinham arrancado, para secarem. A garça que eles mataram era a garça de Abiu, a mais bonita de todas, considerada como o Rei das Garças. 12


Por isso, chorando pelo que fizeram com ela, seus irmãos decidiram que ela não desapareceria como qualquer um; transformaram o seu sangue numa chuva para relembrar a primeira morte dos seres vivos depois da criação do mundo, fazendo também o corpo dela ficar bem no centro do universo para recordar o fato de que era o Rei das Garças.

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Hoje em dia, essa Constelação é a primeira do ano para os dessana. Enquanto os Pamurĩ Masá fabricavam os enfeites, eles não podiam comer carne pesada, somente manivaras (tanajuras) e saúvas.

Isso era para não atrair os insetos, senão eles iriam comer e estragar as penas. É por isso que hoje em dia as rainhas das manivaras e as saúvas da noite voam sempre depois da chuva da garça. E também nessa época as garças sempre voam por cima da maloca ou ficam ao redor da maloca ou sítios. Foi assim a origem da Constelação da Garça.

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Nota biográfica

Jaime Diakara nasceu no dia 25 de agosto de 1974, no igarapé Cucura, no rio Tiquié, Pari-Cachoeira, no Rio Negro, município de São Gabriel da Cachoeira. Seu nome em português é Jaime Moura Fernandes. É casado e tem 1 filha, Wuahó Diputiro Porõ, chamada em português de Maria Sandyely. Descende da etnia Dessana – Wahari Diputiro Porã. Atualmente, vive em Manaus, onde faz graduação em Pedagogia de Licenciatura Intercultural Indígena – Universidade do Estado do Amazonas e se dedica à pesquisa etnoastronômica do povo Dessana. É autor do Calendário Dessana.

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Este livro foi impresso em São Paulo/SP, em novembro de 2011. A família tipográfica utilizada na composição do texto foi “Calibri”. O projeto gráfico (miolo e capa), foi feito pela Valer Editora.



O encantamento é parte de nossa vida e está presente nos mitos, na poesia e nas histórias lendárias dos povos. Este livro tem como fundamento o conteúdo mágico – trata-se de uma narrativa originária do imaginário do povo Dessana, habitante do alto rio Negro. É um texto escrito de forma simples e delicada, que versa sobre aspectos do cotidiano desse grupo étnico e sua relação com a natureza, bem como suas crenças e vínculos com o plano celeste. Segundo a tradição Dessana, o autor explica como se originou a Constelação da Garça. Tenório Telles

coleção narrativas indígenas


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