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e o se Drummond de Andrade, um dos poetas mais conhecidos do Brasil, morto em 1987, recebe homenagens em todo o paĂs pela passagem dos seus 110 anos de nascimento. Nada mais justo, porque sua poesia ecoa ensinamentos, Ă s vezes de forma dura como a realidade, sobre os enigmas da condição humana. 62
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entimento do mundo Tenório Telles | escritor
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ineiro de Itabira, Carlos Drummond de Andrade nasceu em 1902. Fez praticamente a travessia do século que se encerra, morrendo, em 1987, no Rio de Janeiro. Passou a infância na cidade natal, partindo mais tarde para Belo Horizonte, onde se iniciou no jornalismo, ao mesmo tempo em que participava da vida intelectual, ligando-se ao grupo modernista e publicando seus primeiros poemas. Formado em Farmácia, o escritor dedicou-se à literatura. Durante anos colaborou em diversos jornais de Minas e do Rio de Janeiro. Sem poder sobreviver de sua arte, ingressou no funcionalismo público, atividade em que se aposentou. Sua estreia aconteceu em 1930, com o livro Alguma poesia. Foi um dos fundadores, em 1925, do principal órgão modernista de Belo Horizonte, A Revista. Em 1928, ao publicar, na Revista de Antropofagia, seu célebre poevalercultural
ma No meio do caminho provocou escândalo e acirrada discussão. O texto é expressivo do caráter irreverente que caracterizou a fase heroica do modernismo. Mais do que uma provocação, o poema é ilustrativo de uma das temáticas recorrentes na obra de Drummond – os obstáculos da vida. No seu caminhar, o ser humano encontra muitas pedras: No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra. 63
2 Ao refletirmos sobre os descaminhos das civilizações contemporâneas, não há como ignorar essa obsessão pelo imediato, pelo fugaz em que tudo parece e nada é. Essa percepção da inconstância da vida, do desencontro, do agônico e do próprio absurdo da existência não escaparam à sensibilidade poética de Carlos Drummond de Andrade, como se depreende da leitura do Soneto da perdida esperança: Perdi o bonde e a esperança. Volto pálido para casa. A rua é inútil e nenhum auto passaria sobre meu corpo. Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e da flora. Não sei se estou sofrendo ou se é alguém que se diverte por que não? na noite escassa com um insolúvel flautim. Entretanto há muito tempo nós gritamos: sim! ao eterno. 3 Sintonizado com os dramas, angústias e esperanças vividas pelo homem contemporâneo, Drummond constrói uma poesia articulada com seu tempo. Apesar de suas dúvidas e ceticismo, do tom melancólico e contido de seus versos, é evidente em sua obra o compromisso com a vida, com a condição do ser humano no mundo. O poema “Mãos dadas” é expressivo da obstinação do poeta diante da realidade, seu enfrentamento solitário do absurdo, desesperança e solidão que corroem a alma do homem. O texto é uma afirmação de seu inconformismo e generosidade: Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mão dadas. (...)
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O tempo é a minha matéria, o [tempo presente, os homens presentes, a vida presente. A produção poética de Drummond tem como fundamento o humano, perpassada por intensa densidade existencial e profundo conteúdo filosófico. Soube traduzir poeticamente as inquietações de seu tempo, os dilemas de uma época marcada pela intolerância, pelo vazio, ameaçadora para a vida. 4 A poesia de Carlos Drummond de Andrade está identificada com o espírito modernista. O autor é o mais destacado representante da geração que surgiu nos anos 30, da qual fazem parte Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes e Cecília Meireles. Drummond testemunhou os grandes acontecimentos que marcaram o século XX. Viveu as agita-
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ções que marcaram a década de 20, em particular a crise que se seguiu à quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929, e que culminou no fim da República Velha. Sua obra teve como pano de fundo as movimentações políticas que resultaram na implantação do Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria. Nos anos de 1960, assistiu ao triunfo da intolerância política com o golpe militar de 1964. Como não se passa impunemente pela vida, o poeta não ficou indiferente a esses acontecimentos. A indignação e a consciência da necessidade de resistir à banalização da maldade e ao triunfo da barbárie impulsionaram Drummond a um posicionamento crítico diante da realidade. O escritor aderiu à causa socialista, colocando sua arte a serviço da vida, da luta contra tudo que ultraje o ser humano. O poema “Nosso tempo”, do livro A rosa do povo, publicado em 1945, é uma evidência do seu comprometimento social:
Este é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida [esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. [Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não [nascem da lei. Meu nome é túmulo, e [escreve-se na pedra. (...) O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, [símbolos e outras armas promete ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma [floresta, um verme. Diferente dos autores do primeiro momento modernista, mais ligados a uma postura irreverente e experimental, os poetas da segunda geração, que se firmam na década de 30, farão uma poesia de componente reflexivo. Suas obras refletem uma profunda preocupação com o sentido da existência humana, o confronto do homem com a realidade, expressivo de seu estar-no-mundo. Esse modo de perceber a vida explica o conteúdo existencial que perpassa a poesia dessa geração: Não, meu coração não é maior que o mundo. / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores. / Por isso gosto tanto de me contar.
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Fotos: Divulgação
O menino Carlos Drummond, em Itabira, e com a família em 1915
5 A poesia de Carlos Drummond é um testemunho vívido e humano sobre a vida e sua época. A leitura de suas obras deixa evidente sua inquietude e irresignação diante da realidade. Suas posições em face dos problemas que marcaram seu tempo. Há escritores que não se lê impunemente. Drummond é um desses autores. Seus poemas são prenhes de questões, nos fazem pensar sobre o sentido de nossas vidas. Dentro de uma perspectiva didática, é possível determinar certas margens de sua produção poética. Os temas mais constantes em sua obra.
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O desajustamento do indivíduo é uma marca fundamental de sua poesia. O poeta se sente um ser à margem, deslocado de seu tempo, um gauche, alguém que está à esquerda, isolado, como se depreende dos versos do “Poema de sete faces”: Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser ‘gauche’ na vida. (...) O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. (...) Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco.
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Esse sentimento de fragilidade e impotência diante de seu próprio existir-no-mundo, perpassado por um tom melancólico, é característico de seu discurso poético. Em alguns poemas, como “Confidência do itabirano”, é expresso de forma nostálgica, em que recompõe por meio da memória a infância, a família, o pai, a cidade. O passado projeta-se, de forma dolorosa, no presente: Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida [é porosidade e comunicação.
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A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, [sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. (...) Tive ouro, tive gado, tive fazenda. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! 6 A poesia de Drummond afirma-se pela riqueza temática. Sua obra é como um caleidoscópio em que o rosto estilhaçado do tempo se reflete, a vida em seu escoar contínuo. Captura no cotidiano a matéria com que compõe as malhas de seu canto. Nada escapou ao seu olhar gauche, nem mesmo o fazer poético. É recorrente em seus textos a reflexão sobre a poesia, a linguagem, a magia de transformar o silêncio em canto, desnudando a face das palavras. A metalinguagem é um traço marcante de sua arte. O poema “Procura da poesia” é ilustrativo de sua alquimia poética: Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, Há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. (...) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma Tem mil faces secretas sob a face neutra E te pergunta, sem interesse pela resposta, Pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? Percebe-se assim que o fazer poético não é o exercício da inocência, do transbordamento de desordenadas emoções. A poesia é o espelho estilhaçado em que se reflete o mundo, a vida. Ao contemplá-lo, o poeta captura os fios evanescentes com que tece as malhas de seu canto. É um diálogo com o ser, com a alma fraturada dos homens. Como dizia o filósofo Martin Heidegger, em seu belo estudo sobre a poesia de Hölderlin: A linguagem
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originária, porém, é a poesia na sua qualidade de instituição do ser. 7 Drummond decifrou o enigma: a vida é uma miragem, um fio partido entre o silêncio e o abismo. Rio que caminha para o vasto mar da memória. É inevitável em seu fluir corrosivo e nada escapa à voracidade do tempo. Tudo sucumbe ao destilar contínuo de suas águas. Resistir é o que nos resta – dizer não à vulgaridade, à morte da esperança, ao poder e à mentira. Defender a vida do lobo que a espreita avidamente. Ou como diz o poeta: Alguns, achando bárbaro o [espetáculo, Prefeririam (os delicados) [morrer. Chegou um tempo em que não [adianta morrer. Chegou um tempo em que a [vida é uma ordem. A vida apenas sem [mistificação.
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