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cultural

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Ano I n.º 3 dezembro/2012 R$ 9,90

Amazônia exige nova geografia Bertha Becker

A trajetória das artes plásticas no Amazonas 18-35

Diário de viagem entre a China e a Alemanha 56-63

Índios do rio Negro em ação interétnica 72-81

Entrevistas | Reportagens | Livros | Cinema | Gastronomia | Artes plásticas | Viagem




editorial

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unca a Amazônia mobilizou tantas preocupações como atualmente. Não poderia ser diferente. Não se trata mais de um país ou de um grupo de países a querer tê-la sob seu controle para, por meio do usufruto dos seus recursos naturais, resolver problemas econômicos cíclicos. O mundo vive hoje uma crise ambiental planetária, cuja persistência poderá até levar a terra a um colapso total. O mais preocupante é que essa “ameaça de morte” vem dos seres humanos. Com enorme diversidade biológica e social, a Amazônia energiza os debates sobre os rumos do planeta. Razão, paixão, imaginação, criatividade e experiência de vida se chocam e se imbricam no emaranhado de vozes que dão vazão aos desejos de dominá-la, libertá-la ou tê-la em simbiose com as necessidades do sistema-vida. Afinal, a Amazônia é um mundo entremeado de outros mundos socioambientais: florestas, rios, minerais, bichos, lugarejos, aldeias, cidades e metrópoles. Mundos que precisam ser compreendidos em suas particularidades e universalidades, para que o fio da esperança se engrosse e impeça as ações que tendem a transformá-las num deserto.

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Isaac Maciel Diretor-executivo

Diretor Executivo Isaac Maciel

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Diretor de redação Wilson Nogueira MTB/AM 365

Revisão Núcleo de Editoração Valer

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Do alto dos seus mais de quarenta anos de pesquisa, dedicados à Amazônia, a doutora em Geografia Bertha Becker, 82, acredita que é possível, sim, transformar recursos naturais em riqueza sem, necessariamente, destruir suas reservas. Mas nada se fará nessa direção, segundo ela, sem medidas que se orientem pela associação do conhecimento científico com os saberes tradicionais da região. E muito menos sem o devido respeito ao patrimônio cultural e material dos povos indígenas, como reclamam as etnias do alto rio Negro, cujos minérios, florestas, peixes, caças e terras continuam sendo subtraídos pelo poder econômico. Cidades e aldeias se entrechocam e se complementam ao mesmo tempo na busca de soluções para os seus dilemas: seja na reivindicação de um posto de saúde, com médico ou remédio alopático, seja nos chás do curador ou na reza ao santo de devoção. É assim a Amazônia. É assim que ela permeia estas páginas. Boa leitura.

Editora executiva Suelen Reis MTB/AM 235 Assistente de Edição Maria do Rosário R. Nogueira MTB/AM 148

Foto da capa Wilson Nogueira

Assinatura e publicidade Darliane Michele – comercial@valercultural.com.br Colaboradores desta edição: Alfredo Cordiviola, Ana Goreth Antony, Antonio Lima, Barbara Nascimento, Emiliana Teirxeira, Jony Clay Borges, Lane Lima, Leandro Curi, Marcus Stoyanovith, Mário Geraldo Fonseca, Neiza Teixeira, Renata Paula, Thaís Brianezi.


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A medicina que vem da floresta

Uma história de arte no Amazonas

56 De Xangai a Berlim, de perto nada é normal

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Esporte: o novo alvo do mercado literário

Índios em movimento

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Karl Marx em memória

7 Amazônia segundo Bertha Becker 46 Vera Cruz é aqui! 84 Banquete gelado

Frauta de barro – Uma rapsódia da memória

94 Um filme de autor ou um autor de filmes 100 Quixote ou as virtudes da ambiguidade


entrevista | Bertha Becker

A Amazônia segundo Bertha Becker Wilson Nogueira e Suelen Reis | jornalistas enviados ao Rio de Janeiro

Fotos: Wilson Nogueira

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a avenida Atlântica, em Copacabana, mora uma senhora cientista que, desde a década de 1970, enfrenta sol e chuva para acompanhar, por meio de investigação científica, a expansão das frentes econômicas sobre a Amazônia. Ela é Bertha Becker, 82, doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seus livros e estudos geram reflexões e sugestões em favor do uso sustentável da Amazônia. Ela defende que é possível transformar recursos naturais em riqueza sem os destruir, basta, segundo ela, que o poder público defina o manejo dos vários ecossistemas amazônicos com base em marcos regulatórios compartilhados por princípios sociais, ambientais e econômicos. [...] “Ninguém pode conhecer tudo da Amazônia, mas tenho uma visão de conjunto muito maior”, assinala a pesquisadora, para responder aos que lhe criticam pelo fato de não morar na Amazônia. Bertha Becker atuou, como consultora para a Amazônia, no então Ministério de Assuntos Estratégicos do Governo

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Lula, dirigido pelo polêmico cientista Mangabeira Unger. Antes, ela foi professora do Instituto Rio Branco e formando diplomatas desenvolveu a convicção de que geografia é, também, ciência política. Ela revelou que pretende fazer um levantamento quantitativo da aplicação das suas propostas. “Muitas das minhas propostas foram realizadas, mas não me foram dado crédito”, reclama. Entre as propostas que ela gostaria de ver sair do papel estão a da transformação de Manaus em cidade mundial de serviços. Uma ideia, por sinal, que lhe custa caro, porque não agrada aos políticos nem aos pesquisadores dos demais Estados amazônicos. Confira a entrevista que ela concedeu à VC, na manhã do dia 22 de agosto, quando Copacabana vestia-se de uma névoa cinzenta e o Atlântico se insinuava marrento para os surfistas. SUELEN – Qual seria o maior desafio do país para implantar uma política de preservação? BERTHA – Não acho que a gente deva sair por meio da preservação. Com a preservação não mexeria em nada. A gente não pode ficar nesse luxo de não usar, mas tem que ser um uso mais consciente. Aí que está a [necessidade] de inovação. Temos muita coisa para inovar. Como utilizar sem destruir. Esse é o nosso desafio. Para mim, o grande desafio da Amazônia é esse: inovar.

vieram, introduziram na Amazônia – e muito depressa, inclusive – uma nova forma moderna de fazer pesquisa. Isso se chocou com a investigação tradicional que se fazia. Museu Goeldi e Inpa faziam pesquisa classificatória – a pesquisa de conhecer todos aqueles elementos da floresta e classificar os vegetais, os animais. NOGUEIRA – Agora essa pesquisa de larga escala tem um comando. Veio de fora para dentro... BERTHA – Veio de fora pra dentro? Bom, o Goeldi? NOGUEIRA – Digo, essas novas...

avançada, pesquisa de classificação. O pessoal muitas vezes olha com desprezo [para a pesquisa tradicional], que era a pesquisa que dominava na Amazônia. Não era a classificatória que dominava. Aí chegaram os grandes projetos trazendo a pesquisa avançada. Não chega ser P & D, mas avançada. Os projetos do LBA, projeto Geoma, PPG7, quando

BERTHA – Ah, certamente! Aliás, na Amazônia quase tudo veio de fora, não é? A não ser os índios e os recursos naturais. O resto veio tudo de fora (risos). Então, no livro que estou fazendo agora, sigo uma teoria de Jane Jacobs que diz que as cidades comandam as expansões econômicas. Não são as economias nacionais, não. São as cidades. E para que elas se dinamizem e di-

SUELEN – Aí dependeria de quê? De pesquisa, incentivo do Governo... BERTHA – De muita pesquisa, inclusive do conhecimento tradicional. Para mim, pesquisa tem que envolver todos os tipos de saberes: conhecimento tradicional, pesquisa 8

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Foto: Divulgação

Pesquisadora afirma que a caça aos índios deu origem aos primeiros núcleos da Amazônia

namizem a economia têm que ter trabalho novo. É a inovação no trabalho. Mas o trabalho novo se fundamenta nos parentes antigos, no trabalho velho. Aí fiquei: meu Deus do céu! Quando começaram a fazer núcleos na Amazônia, onde estava o trabalho velho? Núcleos! Só vieram os portugueses, franceses, ingleses, holandeses. Todo mundo querendo tomar conta do pedaço. E qual era o trabalho velho sobre o qual o trabalho novo pudesse se sedimentar? Era o trabalho dos índios. NOGUEIRA – Os índios sequer tiveram a oportunidade de apresentar suas experiências... BERTHA – Mas eles [os colonizadores] se apropriaram do trabalho velho. O que o pessoal fez? O trabalho novo foi fundamental em que sentido? No conhecimento que os índios tinham dos produtos, dos recursos naturais; no conhecimento que os índios tinham das trilhas, dos caminhos pra chegar às espécies e ao uso delas. Usavam o cacau como “moeda de troca”, eles usavam a borracha, os utensílios domésticos valercultural

Na Amazônia quase tudo veio de fora, não é? A não ser os índios e os recursos naturais”

de borracha. Utilizaram o trabalho velho dos índios. Isso é interessante. Foi isso que deu origem aos primeiros núcleos na Amazônia: a caça ao índio e domínio de território. Os índios é que deram para eles... NOGUEIRA – Falando em território, a senhora defende uma ideia de que a Amazônia é um território contido de vários outros territórios. BERTHA – Ela não é homogênea, ela não é igualzinha. NOGUEIRA – Como é que estão esses territórios agora? Pela sua tese, eles se constroem, se reinventam...

SUELEN – A senhora podia falar sobre as diferenças entre eles e sobre o conjunto... NOGUEIRA – Com o tempo, décadas de 1970, 1980, 1990, e passado o milênio – e a senhora também escreve sobre o novo milênio –, como é que se encontram esses territórios? BERTHA – Nossa senhora! Vou falar o atual. O que fiz mais recente, mais atual, porque pensando no desenvolvimento da Amazônia Legal... Estou pensando, por que ela tem tantas ligações hoje que fica difícil separar, né? Então, fiz três grandes unidades diferenciadas dentro da Amazônia. E as unidades são baseadas em quê? Na vegetação e no modo pelo qual essa vegetação, esse território foi utilizado, foi apropriado e utilizado. Por que eu cheguei a essa visão de três grandes unidades? Por causa de uma coisa extremamente importante. Estávamos vendo a questão do desmatamento e cheguei à conclusão que chamo de “coração florestal”, que ainda está bastante conservado. A mata densa. Isso tem 9


Todo mundo fala de agroindústria do cerrado. Aquilo não é agroindústria, é agronegócio”

que considerar uma estratégia específica pra gente salvar a Amazônia. Foi por isso que vi agora essas unidades diferenciadas, três delas. A primeira, de baixo pra cima, do Sul para o Norte seria o cerrado. O cerrado é uma unidade muito característica pela vegetação e pela forma como foi apropriada. Não fico pensando só no passado: o que foi. Fico pensando o que pode se fazer ali. O que seria bom fazer no cerrado? Como é que se pode salvar? Então, acho que no cerrado se deve fazer um reflorestamento de muitas áreas, porque ele já foi 40% devastado. Teria que fazer uma coisa que falo e ninguém gosta muito, não: teria que fazer a industrialização daquele complexo produtor de soja, algodão e milho, porque todo mundo fala agroindústria do cerrado. Não há agroindústria nenhuma, aquilo não é agroindústria, é agronegócio. Não tem indústria nenhuma. Tá entendendo? Então eles teriam que avançar e fazer a agroindústria daquela área. Não é acabar com aquilo não, porque afinal de contas aquilo é uma coisa que foi constru-

ída, é uma riqueza. Mas é isso para avançar, para trazer emprego. Tem que beneficiar. Agregar valor. Acho que isso é fundamental. O Governo devia ir em cima para aquele agronegócio se transformar efetivamente numa agroindústria. Reflorestamento e criação de áreas. Mudar a reforma agrária é uma das coisas fundamentais – para mim – que tem que acontecer na Amazônia. Aquilo que se faz lá não é uma reforma agrária. Então, tem que criar núcleos: cinquenta colonos mais ou menos, próximos a estradas e próximos a cidades, para que eles tenham mercado. Não adianta jogar a turma no meio da mata sem estradas, sem cidades, porque os colonos não têm nem como escoar a produção, nem mercado para comprá-la. NOGUEIRA – Vai abrir para a exploração de madeira, não é? Como tem acontecido. BERTHA – Exatamente. Então o que eles fazem? Exploram a madeira. Em vez de soltar a turma na mata,

Foto: Guentermanaus

Moradores podem contribuir para o desenvolvimento da região

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Velho, agora aquilo está virando um polo logístico para a América do Sul, depois tem o Norte do Mato Grosso, um pedaço; tem um pedaço do Pará. Essa mata que já foi derrubada e que tem madeiras boas e tem estradas e cidades e gente. Já tá meio caminho andado. Então tinha que fazer uma exploração da madeira decente, que é ridículo a Amazônia, aquela floresta toda não ter uma economia madeireira. Então, economia madeireira decente, digna. Inclusive, podendo até levar a fazer derivados. Tem-se usado a madeira (conglomerados já é café pequeno), tecnologias novas, inclusive etanol de segunda geração. Já estão fazendo de terceira em outros lugares e

no meio da vegetação do cerrado, sem aceso à estrada e à cidade, tem que colocar núcleos de uns cinquenta colonos perto de estradas e de uma cidade que seja mercado. Aí eles podem fazer uma produção em escala. Cada um teria seu lote, mas seria uma produção, todo mundo fazendo a mesma produção, digamos assim... E aí você tem uma produção em escala maior. NOGUEIRA – Mais competitiva...

manejada e controlada. Reflorestada, manejada, porque sou contra as concessões na mata densa, aquela que vem lá de cima. Acho que isso tudo das concessões devia se concentrar na mata aberta, que já está derrubada em 50%, que tem madeiras ótimas, tem gente pra manejar, tem estradas. Tem estradas porque a mata aberta tem as grandes capitais: Rio Branco, Porto

É ridículo na Amazônia aquela floresta toda não ter uma economia madeireira”

Bertha afirma que a mata aberta é área privilegiada para o manejo controlado de madeira e critica a agroindústria do cerrado

Fotos: Jose As Reyes

BERTHA – Mais competitiva e inclusive com frutos, com legumes para abastecer as cidades. É o que está precisando na Amazônia. Depois do cerrado, indo pro Norte, você tem o que se chama a mata aberta, floresta ombrófila, aberta. Essa floresta já foi derrubada em 50%. O cerrado em 40%, a ombrófila em 50%. E realmente você vai de avião em direção ao Acre, passa por Rondônia já quase sem mata. Coisa horrível. Então o que fazer na mata aberta derrubada? Reflorestamento, também. Acho que a mata aberta é a área privilegiada para madeira. Madeira

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Foto: Divulgação

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Vejo o desenvolvimento tecnológico para o aproveitamento da biodiversidade. Produzir fármacos aproveitando a biodiversidade fantástica da Amazônia”

aqui nem se aproveita madeira ainda, nem faz os aglomerados. E, finalmente, ao Norte desta mata aberta tem a mata densa. Floresta andrófila densa. Aí com árvores milenares, grossas, antigas. E onde as cidades são cidades paradas no tempo, onde não tem estradas. As estradas, num modo geral, pararam no contato entre a mata aberta e a mata densa. Agora é que estão avançando pra cima da mata densa com aquela rodovia, a BR-319, que querem fazer de Porto Velho pra Manaus. Aquela vai ser em cima da mata densa, mas até agora, mesmo a Transamazônica, está no contato da mata aberta com a densa. E por que esse contato? Aí nesse contato é a linha de cachoeiras, das corredeiras. Onde acaba a rocha dura e começa a planície amazônica, a planície sedimentar da Amazônia. Há cachoeira com energia até para aproveitamento. A partir daí, há navegação fluvial disponível. Isso tudo é a mata densa. Muita madeira, muita navegação fluvial, e ainda

uma economia ribeirinha e extrativista, na beira do rio, cidades fantasmas, e Manaus como o grande centro da mata densa. Acho que aí tem que inovar muito nessa mata densa. Vejo aí o aproveitamento do desenvolvimento tecnológico para o aproveitamento da biodiversidade. Por exemplo: fármacos. Produzir fármacos, produzir aproveitando essa biodiversidade fantástica da Amazônia. Daí o pessoal diz: “Ah!, a gente não pode competir com os laboratórios internacionais”. Mas nós podemos sim, porque podemos fazer isso para consumo interno. Temos uma população enorme que carece de remédios, com problemas de saúde terríveis. E a gente pode fazer isso voltado para o mercado doméstico. Não tem que fazer para a exportação e ficar competindo com os estrangeiros. Existem algumas empresas, como o laboratório Aché, que faz produtos com plantas daqui, para o mercado interno. Você já imaginou se usasse isso para fazer fármacos... Ia atender à saúde da população brasileira utilizando a biodiversidade da mata fechada! NOGUEIRA – A sua voz tem sido ouvida no Governo? Como a senhora se sente? BERTHA – Boa pergunta a sua. Sabe que acabei de pedir um projeto do CNPq para fazer esse levantamento. Engraçado! Se a minha voz tem sido ouvida? Acho que até tem, em algumas coisas. Às vezes, escuto no discurso de alguns umas ideias, algumas coisas que são minhas, que já falei antes e que eles usam. Mas isso só não resolve. O negócio é ver o que é que se faz. Eu vejo, por exemplo, uma coisa que sei que aconteceu. Eu havia sugerido valercultural


cadeias da biodiversidade. Criaram uma lei. A lei de formar cadeias da sociobiodiversidade. SUELEN – E a senhora foi ouvida nesse momento? BERTHA – Não. Ninguém veio me perguntar, mas eu tinha feito um trabalho para o Ministério da Ciência e Tecnologia sugerindo isso. E foi criado. Alguém ouviu e criou. Sei que o MCT ouviu.

A minha voz, às vezes, é ouvida, mas é muito mais absorvida no discurso do que na prática”

SUELEN – Sem dar o crédito, mas...

Fotos: Heitor Costa

BERTHA – Pois é, não deram o crédito. Se dessem o crédito era fácil de fazer esse levantamento. Mas ninguém dá crédito não, minha filha. A lei foi feita, mas se você disser que ela funciona muito, a ação não é consolidada de acordo. Então, às vezes é ouvido, mas fica mais no discurso que na prática. Diria isso: sim, a minha voz, às vezes, é ouvida, mas é muito mais absorvida no discurso do que na prática.

SUELEN – E sobre as cidades mundiais? A senhora fala que Manaus seria a única no mundo com potencial para ser uma cidade mundial.. BERTHA – Mas falo isso para completar a mata densa. O que poderia ser feito? Fármacos seria uma coisa ótima. Pode organizar o mercado não só de carbono, porque acho isso perigosíssimo, sou contra o tal do RED [Diretivas de Energias Renováveis], mas sou a favor do mercado de serviços ambientais. Se for

bem organizado, sem corrupção, a coisa digna, aí seria o caso de fazer isso na mata densa. Para conservar. O que quero na mata densa é que ela seja defendida não por meio de ficar isolada e parada sem nada. A defesa seja por meio de uma produção adequada. É isso que se deve fazer. Não é ficar sem nada, é fazer sem destruir. Dentro da mata densa, outra possibilidade é exatamente essa. Transformar Manaus numa cidade mundial. Existem algumas cidades mundiais hoje. Acho que Londres é maior que Nova York, depois vem Nova York, depois vem Hong Kong. Não pensem que é Berlim ou Paris porque não é, é Hong Kong. Talvez agora Xangai já seja a quarta, porque a coisa na Ásia não está de brincadeira. Mas não se trata do tamanho da cidade. A cidade mundial é aquela que tem na concentração de serviços de alto valor e únicos. Concentração de serviços altamente valorizados. Esses serviços passam a ter escritórios em outras cidades do mundo.

Bertha afirma que Manaus é a única capital brasileira com possibilidade de ser uma cidade mundial

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Elas têm as matrizes dos serviços mais avançados e aí elas controlam a economia mundial. Serviços financeiros, serviços de pesquisa, serviços de marketing, propaganda, uma bolada de serviços. Financeiro é fundamental, marketing é fundamental, security (seguridade). Pesquisa nem se fala. Todos esses serviços importantes é que dominam hoje a economia. E quando se concentram em algumas cidades, essas cidades passam a controlar a economia mundial. Manaus poderia se transformar numa cidade mundial a partir da prestação de serviços ambientais, que nenhuma outra cidade do mundo possui. Estou considerando serviços ambientais como serviços de valores altíssimos, que não estão à disposição em outras cidades do mundo. Elas têm serviços financeiros, mas ambientais não têm. E por que Manaus? Porque o pessoal de Belém (insinua um ciúme da capital paraense, em relação a Manaus). Porque Manaus tem uma posição estratégica em relação a toda a Amazônia. Tudo isso que estou falando está na mata aberta e na mata densa. É a borda da grande floresta amazônica sul-americana. É a borda daqui que termina lá no Amapá, no Norte de Goiás. Aquela faixa de floresta. Ela está em uma

posição de frente para esta floresta amazônica sul-americana. Onde não tem uma cidade no nível de Manaus. Aí no meio da floresta não tem. É ela. E ela tem uma posição estratégica também em relação à drenagem da Amazônia porque passa toda a drenagem lá do Acre, dos afluentes da margem sul e da margem norte por Manaus. E tem ainda essa presença da grande floresta não destruída. Então, Manaus está nessa posição que lhe dá condição de poder prestar serviços ambientais. Para que isso aconteça, ela tem que se planejar. Ela teria que ter muito mais pesquisa adequada para isso, teria que ter um mercado. Sugeri, inclusive, uma bolsa de valores. Teria que desenvolver como valorizar o carbono, a biodiversidade, a água, porque tudo isso são, na verdade, serviços que a natureza presta, serviços ambientais. Esse é o grande desafio. NOGUEIRA – A senhora já falava também, em um dos seus textos, que Manaus não tem mais aquela característica de economia de enclave. Que ela também já expande as suas especialidades. BERTHA – É. Não, ela já tem conexão com outras cidades. Ela pode

Foto: Divulgação

Manaus poderia se transformar numa cidade mundial a partir da prestação de serviços ambientais que nenhuma outra cidade do mundo possui”

Apesar de vários projetos de pesquisa, para ser cidade mundial, Belém teria que fazer um planejamento mais específico

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montar uma rede envolta dela, mas logo depois não existe nada. Muito pouco, Itacoatiara. Mas é que a cidade só se desenvolve quando ela consegue formar a sua região. Através da rede. Se conectar com outras cidades e há, inclusive, complementaridade. E o grande problema na Amazônia é que os núcleos cresceram. Às vezes, tiveram surtos e declinaram, não fizeram regiões à sua volta. Não organizaram regiões ao seu entorno. Então, Manaus e Belém, de acordo com a teoria, seriam, talvez, as únicas cidades, com esse nome de cidade na Amazônia. São lugares centrais.

como especialista em programas de computador...

SUELEN – Aí entra aquela eterna briga entre as duas capitais...

NOGUEIRA – Em relação ao novo código florestal, qual é a sua opinião.

BERTHA – Exato. Há briga. Quando falei que Manaus era a única (com potencial para ser cidade mundial), eles perguntaram: “Por que não Belém?”. Por causa disso, porque ela tem essa posição privilegiada. Então acho que é ela. E ela já tem uma base de pesquisa inicial, projetos, se bem que da parte de pesquisa Belém tem mais. Mas teria que fazer um planejamento se quisesse se transformar. Acho que isso é muito importante. Por quê? Porque hoje em dia é possível promover desenvolvimento através de indústria criativa. Coisas excepcionais que ficam num lugar, aproveitando determinadas condições, e que são completamente diferentes. Essas até não têm redes, não têm tantas redes, não criam tantas regiões. Elas são assim. Emergem alí como uma coisa especial, que é feita naquela região.

BERTHA – Não tenho grandes opiniões. Acho, pelo que os meus colegas dizem, foi muito ruim. Fizeram um negócio que eu já até cheguei a falar numa entrevista e num artigo que é mais um código da agricultura que florestal. Regulando, dando muito mais margem pra agricultura e limitando a floresta. A preocupação não foi mais com a floresta, a preocupação foi limitar a floresta. No momento o que acho é isso: não posso ir mais fundo porque estou entusiasmada com minhas cidades.

NOGUEIRA – A senhora estaria falando, por exemplo, de Nova Déli

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BERTHA – Estou falando de Hollywood. Indústria de cinema na Ásia. Houve um filme aí, no Globo Repórter, mostrou a Eslovênia e, no meio da floresta, uma fabricação de queijos tão especiais caríssimos que, para lá, vai gente do mundo inteiro comprar os queijos. Uma coisa nucleada no meio da floresta, mas de alto valor. Então, no caso, o que estou falando de Manaus é um pouco isso. Ela ser uma cidade que presta serviços ambientais no meio da mata.

NOGUEIRA – A senhora sempre fala em seus livros em relação às fontes de energia, no caso, as energias renováveis na Amazônia. As hidrelétricas. Esse é um problema também que mexe com as cidades, com as populações.

(O novo código florestal) é mais da agricultura que florestal. Regulando, dando muito mais margem para a agricultura e limitando a floresta”

BERTHA – Acho que nós vamos ter que fazer uma ou outra hidrelétrica. Não pode jogar fora esse potencial enorme de energia, essa linha de cachoeiras, que falei para vocês, 15


Até agora o que a história mostrou é que essas cidades pontuais da Amazônia não destruíram a floresta”

a passagem do cristalino para sedimentado, um volume de água enorme que a gente não pode dispensar. Uma fonte de energia que é limpa. A não ser quando se faz sem planejamento, que tem uma migração horrível, com reflorestamento. Aí ela deixa de ser limpa. Mas a fonte em si é limpa. A água. A Europa está querendo mudar alternativas e uma das coisas que ela está fazendo é hidrelétrica. Porque antes era tudo na base do carvão nuclear. Então, para ela, a energia hidrelétrica é limpa e para nós não é? Qual é, cara-pálida? Acho que a energia hidrelétrica para nós é extremamente importante. Contando que ela seja planejada para não deixar vir aquele monte de população, gente se apropriando da terra, desmatando. Isso é que não pode. Um descontrole total. NOGUEIRA – A senhora está trabalhando com cidades. Já ouvi pesquisadores da área da geografia

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preocupados com a expansão das cidades da Amazônia, porque elas seriam responsáveis pelo desmatamento. Como a senhora observa a expansão das cidades na Amazônia? BERTHA – Acho que quando elas crescem sem emprego, sem serviço adequado elas ficam inchadas, como em qualquer lugar, não só na Amazônia. Em qualquer lugar, se a cidade cresce, há o êxodo rural, mas se não tem o serviço, não tem a habitação, não tem nada, não fica inchada? Isso ocorre em qualquer lugar... Não é só na Amazônia. Mas acho que a cidade, ela é que pode dinamizar a Amazônia, a economia da Amazônia, sem derrubar a mata, inclusive, como falei, até hoje, são cidades sem região. Não quero que elas continuem assim. Quero que elas organizem o território, mas de uma maneira que não seja destrutiva. Isso é uma coisa que ainda vou ter que pensar. Como? Não sei. Até agora o que a história

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mostrou é que essas cidades pontuais da Amazônia não destruíram a floresta historicamente. Não fizeram regiões, não desbravaram. Elas são pontuais. Mas por quê? Porque permaneceram como cidades centrais. Inclusive, algumas sedes de municípios, sustentadas pelo Estado. Não têm economia nenhuma. Quem mantém esses municípios? É a transferência de renda do Estado. NOGUEIRA – Rondônia por muito tempo, Roraima, Amapá...

volverem. A rede seria articulada por telecomunicação. Computador, por satélite. E que base econômica? Penso nos serviços ambientais e nos fármacos porque eles são coisas que se podem fazer sem derrubar a floresta. NOGUEIRA – E replantando às vezes... BERTHA – Isso, replantando. Isso é mais ou menos minha cabeça. Minhas ideias a respeito.

BERTHA – Muitos municípios por aí na Amazônia. O próprio Pará. E, provavelmente, no Amazonas. Quer dizer, por um lado foi ruim porque não houve economia, mas por outro lado foi bom porque são cidades que se instalaram na floresta, mas não derrubaram a floresta. Então o grande desafio é saber como é que podemos manter isso, essas cidades pontuais se relacionando entre si, porque muitas não se relacionam, criando uma economia que não destrua a floresta. Esse é o grande desafio. Por isso que acho que seriam os serviços ambientais. Essas cidades estariam ligadas a Manaus como grande cidade mundial, através de comunicação, telecomunicação, que se tem tecnologia da comunicação, organizando uma base econômica com base nos serviços ambientais, que não necessitaria...

SUELEN – Além da valorização do local, das pessoas que têm o conhecimento...

SUELEN – Faria um polo?

BERTHA – É isso que perguntei. Como vai ser? O que vocês vão fazer com esse CBA? Ninguém sabe. Mas tinha que resolver. Se for fazer esse plano de levar a questão da biodiversidade avante, tudo isso, tem que resolver a questão do CBA. Um elefante branco.

BERTHA – Pequenos polos articulados pelos TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação), não por estradas. Que a estrada arrebenta a mata. Articulação, porque tem que ter a rede para as cidades se desen-

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BERTHA – Sem dúvida. Quando falo em pesquisa, inclui tudo. Classificação, conhecimento tradicional. SUELEN – A gente sabe que já existem as de cosméticos. Por exemplo, a Natura... BERTHA – Muito pouca coisa. Mas tem que ser muito maior. Eles usam muito pequena quantidade. De qualquer maneira, já acho que é uma iniciativa legal da Natura. Se ela puder fortalecer, isso é legal. Vai fazer uma fábrica, um polo industrial. NOGUEIRA – Seria um ponto para o CBA, não é?

Livros de Bertha Becker Amazônia Autora: Bertha Becker Editora: Ática Ano: 1998

Geografia e meio ambiente no Brasil Autores: Bertha Becker, F Davidovich e Antonio Christofoletti Editora: Hucitec Editora Ano: 2002 Território, territórios Organizadores: Bertha Becker e Milton Santos Editora: DP&A Editora Ano: 2006

Dimensões humanas da biodiversidade – O desafio de novas relações sociais Autores: Bertha Becker e Irene Garay Editora: Vozes Ano: 2006 Dimensões humanas da biosfera-atmosfera Organizadores: Bertha Becker, Diógenes Salas Alves e Wanderley Messias da Costa Editora: EDUSP Ano: 2007 Dilemas e desafios do desenvolvimento sustentável Autores: Bertha Becker, Cristovam Buarque e Ignacy Sachs Editora: Garamond Ano: 2007 Amazônia – Geopolítica na virada do III Milênio Autora: Bertha Becker Editora: Garamond Ano: 2007

Um futuro para a Amazônia Autores: Bertha Becker e Claudio Stenner Editora: Oficina de textos Ano: 2008

Brasil – Uma nova potência regional na economia – Mundo Autores: Bertha Becker e A.G. Cláudio Egler Editora: Bertrand Brasil Ano: 2010

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Jony Clay Borges | jornalista

e março a maio deste ano, o público de Manaus teve acesso a um interessante panorama das artes plásticas no Estado por meio da exposição “Dos lápis de Di ao festim das barrancas”, eixo central da Pré-Bienal de Artes do Amazonas. A mostra foi, de certa forma, uma oportunidade de conhecer um pouco da história recente das artes locais, reunindo obras de mais de 20 artistas do cenário amazonense, desde telas famosas do homenageado Hahnemann Bacelar (1948-1971) até criações inéditas – pinturas, ambientes, instalações e processos – assinadas por nomes em atividade nos dias atuais, novatos e artistas de extenso currículo lado a lado. Mas a trajetória das artes plásticas – como as conhecemos hoje – no Amazonas remonta a um período bem

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anterior àquele em que Hahnemann criou suas obras, e revela um percurso com altos e baixos. As primeiras expressões artísticas visuais produzidas no Estado surgiram entre meados e final do século 19, coincidindo com as enormes transformações culturais e sociais advindas da riqueza da borracha, e segue desde lá alternando períodos de pouca agitação ou novidade com outros de grande efervescência.

Primórdios A próspera classe social que se transferiu para Manaus por conta da exploração da borracha, formada por seringalistas, banqueiros e outros, trouxe também para cá seu modo de vida, sua cultura e também um pouco

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Imagens: Reproduções dos livros Artes plásticas no Amazonas de Luciane Páscoa e Teatro Amazonas de Mário Ypiranga Monteiro / Editora Valer


Primeira acima “Encontro das águas” de Crispim Amaral; segunda “Quarta-feira de cinzas” de Antônio Parreiras; Abaixo “O 1.º voo de Santos Dumont“ de Fernandes Machado; “Imortalidade“ de Branco e Silva.

de suas paisagens. A partir do final do século 19, a capital ganhou ruas de traçado geométrico, ladeadas por edifícios imponentes e palacetes, com bondes e luzes elétricas desenhando o cenário de uma metrópole. Novos espaços como o Teatro Amazonas ou a Biblioteca Pública exigiam ornamentos à altura e, para dar conta dessa necessidade, foram recrutados vários artistas, brasileiros e estrangeiros. A lista inclui nomes como os italianos Domenico De Angelis e seu assistente Giovanni Capranesi que, depois de remodelar a Catedral de Belém, foram chamados para dar conta de projetos similares em Manaus. No final da década de 1880, o ateliê dos artistas na cidade estava encarregado de trabalhar na Igreja de São Sebastião, ao lado do arquiteto e conterrâneo Silvio Centofanti. 20

Na década seguinte, foi a vez do Teatro Amazonas, onde os artistas deixaram seu maior legado, incluindo a “Glorificação das Bellas-Artes no Amazonas”, assinada por De Angelis no teto do Salão Nobre, e vários painéis monumentais de cunho naturalista – um deles inspirado na ópera “O Guarany”, de Carlos Gomes. Outros nomes que deixaram sua marca por aqui ainda no século 19 foram o pernambucano Crispim do Amaral, que retratou o encontro das águas dos rios Negro e Solimões no pano de boca do Teatro Amazonas; e Enrico Quatrini, a quem são atribuídas esculturas em gesso presentes na casa de espetáculos. E há ainda Arturo Luciani, que na mesma época trabalhou na pintura e decoração de outras casas e prédios de Manaus.

Na transição para o século 20, a capital amazonense já conta com um cenário cultural razoavelmente movimentado. Artistas de passagem para produzir obras sob encomenda também aproveitam para realizar exposições de sua arte. Um exemplo é Aurélio de Figueiredo, irmão do célebre pintor Pedro Américo: autor da “Redenção do Amazonas”, pintura de quase 8 metros que adorna a Biblioteca Pública. Ele expôs em Manaus em 1888, 1907 e 1909. Também estiveram por aqui o niteroiense Antônio Parreiras e o carioca Fernandes Machado, que deixaram obras como “Quarta-feira de Cinzas” (1904) e “O primeiro voo de Santos Dumont” (1906), respectivamente. Um inventário do período registraria, na cidade, obras de estilos que passavam pelo barroco,

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neoclassicismo, romantismo e naturalismo. Por essa época, o primeiro pintor amazonense a ser reconhecido no cenário nacional iniciava seus estudos de desenho e pintura. Manoel Santiago nasceu em Manaus em 1897, e viveu por alguns anos na cidade antes de se mudar para Belém do Pará e, depois, Rio de Janeiro. Décadas após, ele voltaria à terra natal e legaria ao Estado diversas obras com temática regional, entre elas representações de lendas amazônicas e de cenas da natureza. Os temas regionais, aliás, predominavam na pintura da nascente metrópole da borracha, dos painéis do Salão Nobre do Teatro Amazonas às obras de Santiago e àquelas de outros artistas que viriam mais tarde. “Os primeiros artistas a produzir aqui são os italianos, e é interessante observar que eles têm uma técnica específica, mas já tratam dos elementos de nossa região, de nossas

mitologias”, aponta o artista plástico e curador Cristóvão Coutinho.

Formação Os artistas que passaram por Manaus também deram sua contribuição às artes plásticas locais cumprindo um papel de formação, principalmente na Academia Amazonense de Belas-Artes, que já existia desde o final do século 19. Luciani, Centofanti e, possivelmente, Aurélio de Figueiredo foram alguns dos que lecionaram no local. “Eles ficavam meses fazendo obras, e acabavam se envolvendo na vida cultural da cidade”, comenta Luciane Páscoa, pesquisadora e professora de História da Arte da Universidade do Estado do Amazonas. A academia, ela acresce, foi importante. “Ela reunia também música, literatura. Havia aulas de Filosofia da Arte. Era um modelo de academia diferente do que entendemos hoje”.

Eles ficavam meses fazendo obras, e acabavam se envolvendo na vida cultural da cidade”

“O Curupira“ de Manoel Santiago.

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Contratempos

“O Nu“, Moacir Andrade.

Sem título, Anísio Melo.

Detalhe da III Feira de Artes Plásticas, acervo de Aluísio Sampaio, 1966.

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Entre os anos 1910 e 1920, Manaus e outras prósperas cidades construídas com a riqueza da borracha sofreram um duro revés com o fim do monopólio amazônico do produto, situação agravada pelo desinteresse do Governo Imperial em resolver o impasse e pelo início da Primeira Guerra Mundial. Isso se reflete no fato de que quase não há notícias da movimentação cultural na cidade até por volta dos anos 1930 e 1940 – o que Luciane credita não à ausência de agitação, mas à pura falta de registros. “Uma cidade que viveu o furor da época da borracha, mesmo ficando pobre, não perderia de todo sua movimentação cultural”, opina. O primeiro nome a emergir desse lamentável vazio é Branco e Silva. Nascido em Manaus em 1896, ele estudou no Liceu de Artes e Ofícios de Lisboa e herdou dali uma pintura de caráter acadêmico, ao qual ele acrescentou, na visão de Luciane, notas de “realismo mágico”. “É um academicismo que flerta com o surrealismo. Ele tem um

desejo de estabelecer uma relação vanguardista, mas é algo bem tênue”, destaca a pesquisadora. O autodidata Moacir Andrade teria mais sorte em fazer a transição. Despontando na cena local em 1941, com uma exposição no Liceu Industrial, ele irá transitar do naturalismo a experimentações mais abstratas ao longo das décadas seguintes, mas sem deixar de lado o caráter figurativo e sempre ligado a temáticas regionais. O talento do pintor autodidata logo o levaria a alçar longos voos: considerado o grande nome do Amazonas nas artes plásticas, ele irá representar o Estado em exibições no Brasil (começando com individuais em Brasília e São Paulo em 1958) e internacional (série de individuais em cidades dos Estados Unidos em 1968). Também nos anos 1940 surge Anísio Mello, que desenvolveu sua arte com incentivo da mãe, Esther. (Bem depois, em 1985, ele a homenageou fundando um Liceu de Artes com seu nome). Tanto Moacir quanto Anísio viriam a se tornar

Membros do Clube da Madrugada na praça da Polícia, acervo fotográfico de Van Pereira.

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A arte amazonense é uma arte bastante engajada com as questões sociais, especialmente nos anos 1960. Uma coisa que une esses artistas é uma preocupação social: pensar a cidade em questões urbanas,Anísio a Melo vida na Amazônia”

figuras de destaque no movimento que balançou o cenário cultural de Manaus a partir dos anos 1950: o Clube da Madrugada.

Literatura e muito mais Resultado de uma agitação artística que vinha se consolidando algum tempo antes em reuniões de intelectuais, o Clube da Madrugada foi fundado oficialmente em 1954 com a proposta de levar as artes do Amazonas um passo à frente, buscando uma renovação principalmente na Literatura, mas que também se estendia a outros segmentos. “Todos os movimentos modernos têm um viés literário no século 20. Dá para perceber isso no Clube: além da linguagem da Literatura, eles também buscavam uma renovação nas Artes Visuais, em relação à edição de periódicos a cinema”, afirma Luciane, que é autora do

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livro “As Artes Plásticas no Amazonas – O Clube da Madrugada”, lançado há um ano. “Primeiro eles se reuniam para ler obras e mostrar uns aos outros poemas e contos. E começaram a chegar aqueles que vinham mostrar seus quadros. E quando eles fundaram, em 1961, o suplemento ‘Madrugada’ no jornal, começou a se ter uma colaboração frequente em gravura e ilustração”. Além de Moacir e Anísio, o Madrugada também tinha como integrante Afrânio de Castro, que Cristóvão Coutinho aponta como o artista mais ousado em sua época. “Ele não vai ter preocupação específica com a paisagem regional; pelo contrário, ele é experimental. Já nos anos 1950/60, ele agrega esponja a uma pintura, numa fuga da bidimensionalidade, o que era uma noção incomum mesmo naquele tempo”, avalia o curador.

Luciane Páscoa

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Eles não estavam preocupados em atender a expectativas do que se discutia no Rio, São Paulo. Estavam preocupados em se expressar”

1. “Cabocla“, Manuel Borges; 2. “Cafuné”, Hahnemann Bacelar; 3. “Paisagem com palafita“, Álvaro Páscoa; 4. “Macumba”, Moacir Andrade; 5. Foto da série “Amazônia erótica“, Normandy Litaiff; 6. “O reflexo“, Anísio Mello

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Abrindo portas e plantando sementes Entre os anos 1950 e 1960, o Clube do Madrugada revela uma verdadeira geração de novos artistas. Nesse período, o movimento promove exposições individuais e coletivas de Afrânio, Álvaro Páscoa, Horácio Elena, Getúlio Alho, Moacir, Marcos Vila, Gualter Batista, Óscar Ramos, Paulo D’Astuto, Jair Jacqmont, José Maciel, Marianne Overbeck e Paolo Ricci, segundo informa um estudo de Luciane. Na pintura desse período, é possível reconhecer tendências que incluem não só uma tradição mais acadêmica (caso do retratista Manoel Borges ou de Anísio Mello), como também o expressionismo (Getúlio Alho, Álvaro Páscoa e algo de Moacir), o fauvismo (Gualter Batista) e o abstrato (algo de Afrânio). Ampliando o campo para as artes visuais, encontram-se novas experiências com o cinema, de nomes como o fotógrafo Normandy Litaiff, diretor de “Carniça” (1966), dentre outros que seguem os passos do pioneiro Silvino Santos. Enquanto abriam as portas para os artistas emergentes, integrantes do Clube da Madrugada começaram a investir na formação de futuros talentos. Em 1965, por sugestão de Moacir Andrade, o governador Arthur Cézar Ferreira Reis criou a Pinacoteca do Estado, numa ala do prédio da Biblioteca Pública do Estado. Ali, o artista plástico começou a dar aulas de pintura, acompanhado ainda de Álvaro Páscoa (xilogravura) e Manoel Borges (desenho). Dentre aqueles que participaram dos cursos oferecidos na Pinacoteca sairiam alguns talentos que até hoje sobressaem no cenário das

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Obra de Otoni Mesquita

artes visuais no Amazonas. Aí se incluem, entre outros, Jair Jacqmont, Zéca Nazaré, Otoni Mesquita, Van Pereira e Thyrso Muñoz, além do saudoso Hahnemann Bacelar.

Nós e os outros As aulas na Biblioteca Pública incentivaram um iniciante Otoni, por exemplo, a diversificar sua paleta temática no desenho, a partir de 1975. “O Borges nos fazia reproduzir desenhos, pinturas, e foi o grande estímulo para eu sair de algo que chamo de ‘síndrome de caras e bocas’: eu fazia muito rosto feminino, muito cabelo, cara pintada, com cabelo arrepiado ou sem... Enfim, todas as maneiras de ver uma modelo”, comenta o artista, que dizia ter uma tendência marginal para o psicodélico, manifestada “nas beiradas dos cadernos”. “Com a valorização do Borges, pude colocar no centro do papel o que era beirada”, diz. Jair Jacqmont lembra que as paisagens e questões regionais eram enfatizadas nas aulas promovidas

por Moacir e os demais professores da Pinacoteca. “Eles tinham o conceito do amazônida, do amazonense. Na literatura era a mesma coisa. Isso é bom, porque é um conceito moderno, o de retratar a nossa aldeia”, avalia. “O Moacir nos levava para o São Raimundo e nos dizia, ‘Vamos desenhar aqui’”, recorda ele. Talvez por valorizar a identidade amazônica, os artistas do Clube da Madrugada viraram um tanto as costas para as mudanças no cenário das artes no resto do país, em especial nos anos 1950. “Não vamos ter uma preocupação, por parte dos artistas, com o movimento contemporâneo. ‘Ah, o que está se fazendo no Rio de Janeiro, em São Paulo?’. Não. Temos uma obra predominantemente figurativa”, afirma Luciane. A pesquisadora menciona o movimento concretista, que iniciou no Sudeste pouco antes da fundação do Clube, mas não teve influência alguma no cenário local. Movimentos e propostas à parte, o fato é que os artistas daqui estavam mais interessados em demarcar uma posição própria do que em procurar um lugar na cena nacional. “Eles não estavam preocupados em atender a expectativas do que se discutia no Rio, São Paulo. Estavam preocupados em se expressar. É algo que deixa o Amazonas numa posição particular”, opina Luciane.

Busca pelo contemporâneo É a partir dos anos 1970 que se verifica uma mudança de sensibilidade nas artes plásticas do Amazonas, numa transição do moderno para o contemporâneo. Se antes a preocupação principal estava nos aspectos temático e acadêmico,

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Fotos: Antonio Lima

Otoni Mesquita

buscando consolidar uma identidade amazônica, o foco dos artistas nesse período começa a se voltar ao aspecto formal da arte, no sentido de se explorar novas possibilidades e desenvolver linguagens particulares. Entre alguns representantes dessa nova sensibilidade estavam egressos da Pinacoteca, como Jair Jacqmont e Otoni Mesquita, e também outros nomes como Auxiliadora Zuazo, Arnaldo Garcez, Sergio Cardoso, Bernadete Andrade, Rita Loureiro e Roberto Evangelista, cada qual trazendo diferentes bagagens e diferentes propostas artísticas. Jacqmont, que fez cursos no Museu de Arte Moderna (MAM) e no Parque Lage, no Rio de Janeiro, deu novo enfoque a sua representação da natureza. Zuazo, que estudou na Escola Nacional de Belas-Artes,

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também no Rio, utilizou técnicas de xilogravura, litogravura e outras como expressão. Otoni, que passou por Belas-Artes, MAM e Parque Lage, viria mais tarde a investir na instalação, entre outras expressões. Rita levou as temáticas indígena e amazônica ao se mudar para o Rio, onde começou a trabalhar em pinturas de viés naïf. Sergio Cardoso, autodidata, inspira-se no espaço e na geografia em telas que propõem jogos visuais. Garcez, a partir do final dos anos 1970, vai explorar técnicas e materiais antes de se dedicar ao expressionismo. Evangelista, que começou no Teatro antes de enveredar pelas Artes Visuais, começa a explorar as possibilidades da arte conceitual ainda no final dos anos 1960. Com o vídeo experimental “Mater Dolorosa In Memoriam II – Da criação e

sobrevivência das formas” (1972), conquistou projeção nacional para seu trabalho. Tal como ele, entre os anos 1970 e 1980 muitos artistas cruzariam as fronteiras do Amazonas com sua arte e ganharam destaque na cena brasileira.

Acontecendo lá fora Além de viajar para estudar nos grandes centros da produção visual brasileira à época, o Rio de Janeiro principalmente, os artistas locais começam a se fazer notar em mostras e exposições de arte nesses locais. “Começamos a acontecer em exposições nacionais”, comenta Otoni Mesquita, evocando um cenário que remonta aos primeiros anos da década de 1980. “O Evangelista já frequentava o Salão Nacional, em 1984 já estavam lá o Sergio, o Jair

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É preciso se atualizar, mas não pode acontecer um processo de substituição, e sim de acúmulo, acréscimo. Isso acontece na História da Arte (...) Sonhos, história, memória, são parte de nossa produção. Ideal seria mesclar o nostálgico e o contemporâneo. Mas isso vem naturalmente, não há como forçar”

Japão ao longo dos anos 1990, sendo o artista amazonense com maior penetração no circuito internacional de arte contemporânea. Ainda nos anos 1980, Cardoso, Jacqmont e Otoni também participaram de outros eventos de destaque no país, como o Salão Nacional de Arte Contemporânea de Belo Horizonte – caso de Cardoso, em 1982, e de Jacqmont, em 1984 – ou a Panorama da Arte Atual Brasileira de São Paulo – Jacqmont e Otoni, no mesmo ano. Ainda em 1984, Jacqmont integrou a histórica “Como vai você, Geração 80?”, no Parque Lage. “Foi a mais importante do período, o grande start da transição do final do Modernismo e o início do Contemporâneo”, destaca ele. Enquanto isso, havia mostras de artistas amazonenses e participações em exposições em diversos outros cenários, como Brasília, Recife e Fortaleza, além de Belém – com a qual se chegou a forjar certa conexão, com artistas amazonenses expondo lá e paraenses expondo aqui – e nomes de peso dos segmentos crítico e curatorial passavam por Manaus. “Os curadores iam atrás da gente. O (Paulo) Herkenhoff e outros nomes importantes no cenário da arte iam bater na porta do meu quarto para ver trabalhos”, lembra Otoni.

Nova efervescência e eu, em 1985 também. Participei do Arte Pará em 1985 e 1986, e nos dois anos ganhei prêmios aquisição”, enumera Otoni. Os primeiros a se destacarem foram Óscar Ramos e Roberto Evangelista. O primeiro, que desde meados dos anos 1960 estava radicado no Rio de Janeiro, estudando com nomes como Ivan Serpa, participou

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da Bienal Internacional de São Paulo em 1969 e 1971. Mais tarde, graças ao reconhecimento obtido em premiações, continuaria sua formação na Espanha. Evangelista também participou de uma Bienal nacional, em 1976, e duas internacionais, a primeira em 1977. De lá, veio a participar de exposições na Inglaterra, Estados Unidos, Áustria, Espanha e

Esse cenário de intensa circulação e intercâmbio da arte no Brasil, incluindo aí o Amazonas, era resultado de um momento de efervescência das artes no país, e que possivelmente tinha a ver com o otimismo de uma nação que saía de uma ditadura militar e iniciava um processo de democratização.

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Tal efervescência também coloriu a paisagem das artes visuais em Manaus, com o surgimento de novos artistas e o estímulo à exploração de novos conceitos e linguagens em exposições de cunho temático. O centro desse cenário fervilhante era inicialmente a Galeria Afrânio de Castro, no prédio da atual Academia Amazonense de Letras, e mais tarde a Pinacoteca do Estado. Sob a direção de Jacqmont, que voltara há pouco do Rio de Janeiro, a Galeria passou a promover exibições com temas que incitavam a especulação de novos territórios e questões artísticas. “Fazíamos uma movimentação com exposições coletivas e temáticas. Fizemos, entre outros, exposições com temas como ‘Madeira’, depois ‘Terra’, ‘Fogo’, ‘Ar’, ‘Paisagem’”, recorda o diretor, lembrando que os artistas de teatro também tinham seu papel na agita-

Cristóvão Coutinho

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ção cultural. ‘Eles entravam nas galerias fazendo performances”. “Foi lá (na Galeria) que aconteceram as primeiras exposições de instalações. Fizemos várias só de instalações, com temáticas específicas. Havia desenhos, pinturas, várias pequenas coisas. Era algo pequeno considerando o contexto brasileiro, mas no local era significativo”, afirma Otoni, que resume o espírito geral da época: “Nunca tivemos outro período tão animado de circulação, muita produção alternativa, muita experimentação”. Dessas águas agitadas emergiu um grupo de artistas decididos a explorar novos terrenos nas artes visuais, representado por nomes como Turenko Beça, Helen Rossy, Buy Chaves, Jáder Resende, Mário de Paula, Sebastião Alves e Cristóvão Coutinho. “É uma geração capitaneada pelo Jair”, sintetiza este último. “Ele percebeu que havia novas pes-

Sempre houve uma preocupação de falar do lugar, da paisagem e dos elementos de nossa cultura. Vai talvez de sermos uma sociedade nova, como civilização, como cidade. Por sermos um lugar distante, a ser visto, nossa preocupação em nos firmarmos como povo se manifestou muito na expressão dos artistas amazonenses”

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Quadros de Jair Jacmont

soas trabalhando não só com a tela, saindo da parede, fazendo objetos, instalação, ambientes, e com outro discurso da própria obra”. Coutinho lembra ainda que não havia espaços formais de educação nas artes, mas um grande desejo de criação por parte dos artistas de então. “Não havia formação universitária em Artes. O que vai determinar a produção é o imaginário de cada um, as informações de seu ambiente, seu inconsciente. Começa-se a fazer instalação, mais objetos, e a pintura fica encarregada do aspecto desconstrutivo. E a maneira de apresentar questões regionais não é mais tão formal. A questão estética não é mais a do belo, terá outros elementos constitutivos”, analisa. Falando de espaços, vale citar ainda o Projeto Hahnemann, que de 1979 a 1982 abriu o hall do Teatro Amazonas para artistas consagrados e iniciantes. “Foi um espaço aglutinador de plateias e público. Nesse

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período houve ali mais de 50 exposições, praticamente uma por mês”, lembra Sergio Cardoso, curador da iniciativa, mantida pela antiga Secretaria de Estado de Educação e Cultura e pela Superintendência de Teatros do Amazonas. Entre outros, houve ali exposições de Otoni Mesquita (“Fruto proibido” e outras) e Rita (“Macunaíma”), além de coletivas como “Iché cunhã (Eu mulher)”, com obras de artistas femininas do Estado. Ainda em meio ao furor do período acontece a fundação da Associação Amazonense de Artistas Plásticos (Amap), em 1981. A partir daí – e até os dias de hoje – a entidade de classe passaria a agregar outros artistas, autodidatas ou egressos de liceus e outros cursos, não tanto interessados na investigação das questões contemporâneas, mas em produzir arte – em grande parte, adeptos da pintura, marcada pela figuração com elementos amazônicos e/ou pela filiação a estilos e

técnicas modernas, como o impressionismo e o abstrato. Em torno da Amap, que também cumpria um papel de difusão com a realização de eventos, como o Salão Curupira, viriam a gravitar nomes de associados como Francimar Barbosa, Homero Amazonas, Nonato Cruz, Ivana de Lima, José Stenio, Paulo Cesar, Raimundo Noleto, Lígia Barros e Elizabeth Grubinger, para mencionar alguns. Longe da Galeria, da Pinacoteca ou da Amap, outros nomes seguirão um caminho autônomo, sem compromisso com movimentos ou filiação a grupos. O principal exemplo é Rui Machado, que realizou sua primeira mostra individual em 1982, também no Projeto Hahnemann.

Depois da tempestade Como se os ventos que agitaram a cena artística nos anos 1980 começassem a perder a força, a

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efervescência anterior dará lugar a um cenário de perigosa calmaria nos anos 1990. Com o passar da década, a participação dos artistas amazonenses no cenário da arte brasileira vai diminuindo. Laços estabelecidos antes com críticos e curadores dos centros nacionais vão se enfraquecendo. “Vivemos retirados”, reconhece Jacqmont. Sintomaticamente, poucos talentos novos viriam a se manifestar nesse período. Entre os poucos que se pode destacar estão Manaus (hoje conhecido como Manausmacaco), cujas criações dialogam com a comunicação de massa da publicidade e dos quadrinhos; Sérgio Andrade, que chega a expor objetos de arte no Palácio Rio Negro, então tornado centro cultural, antes de enveredar pelo caminho do audiovisual; e Adroaldo Pereira, que explora relações visuais a partir de colagem, fotografia, videoarte e, mais tarde, moda. Aos poucos, as conquistas da década anterior pa-

recem se perder num movimento geral de retração, talvez reflexo de um momento econômico e social de mudanças. O que aconteceu? Otoni aponta algumas pistas: “Nos anos 1990 não diminuiu a produção artística, mas os espaços de exposição, o interesse do público. Foi algo nacional, houve uma retração. Artistas da gravura deixaram de viver. E a questão da massificação se intensificou, a animação artística caiu. Outros segmentos até resistiram. Aqui, a Secretaria de Cultura investiu muito na música, com a criação de orquestras. Mas não houve um investimento bom nas Artes Plásticas”.

Ventania e vácuo Apesar do escasso investimento mencionado por Otoni, destacam-se na segunda metade da década duas iniciativas promovidas pelo poder público. Uma delas foi a criação do Centro Cultural Claudio Santoro, em

Jair Jacqmont foi diretor da Galeria Afrânio de Castro que funcionou no prédio da atual Academia Amazonense de Letras

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Pinacoteca do Estado do Amazonas

Galeria do Largo – Centro de Artes Visuais

Centro Cultural Palácio da Justiça

Obras de nomes importantes das Artes Plásticas no Amazonas do século 20 compõem o grosso do acervo do espaço, que desde 2009 tem como lar o Palacete Provincial, na praça Heliodoro Balbi (praça da Polícia), no centro de Manaus.

Situada no largo de São Sebastião, é o principal espaço de referência da arte contemporânea mantido pela Secretaria de Cultura. Cumpre papel de valorização e resgate das artes visuais, promovendo exposições de artistas que representam a memória das artes no Amazonas.

Tornado espaço cultural em 2006, abriga exposições permanentes e temporárias nos salões que já foram sede principal do Judiciário no Amazonas. Fica na avenida Eduardo Ribeiro, 833, Centro.

Museu da Imagem e do Som do Amazonas

Galeria do Caua

Casa das Artes

Localizado no Centro de Artes Hahnemann Bacelar da Universidade Federal do Amazonas (Caua/ Ufam), na esquina das ruas Monsenhor Coutinho e Tapajós, no Centro, promove exposições temáticas e mostras de acervo de caráter temporário.

Também no largo de São Sebastião, oferece em algumas de suas salas exposições temáticas e temporárias.

Apesar da relevância, o evento não teve continuidade nos anos seguintes, sem motivos aparentes, deixando um lamentável vácuo no lugar do que poderia ter sido um enorme avanço no segmento das artes plásticas no Estado. É o que aponta Cristóvão Coutinho: “Foi um erro o Salão Plástica ter sido descontinuado. Isso que vimos agora na Pré-Bienal, poderíamos estar vendo em outro patamar”. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Estado de Cultura (SEC) não respondeu que motivo levou à descontinuidade do evento.

tística nos anos 1990 – em termos de mercado, público, interesse e outros – estendeu o quadro de crise também aos primeiros anos do século 21. Se o cenário não ficou de todo estagnado, isso se deve em boa medida à iniciativa de Cristóvão Coutinho: como curador da Galeria do Centro de Artes Hahnemann Bacelar da Universidade Federal do Amazonas (Caua/Ufam), de 2003 a 2011, ele cumpriu um necessário papel de estimular a cultura e a criação de artes visuais dentro das questões contemporâneas. Nesse período, a Galeria do Caua promoveu algumas dezenas de exposições – individuais, coletivas e internacionais –, com apoio financeiro (limitado) do banco privado Unibanco e um insistente trabalho de curadoria calcado em

Reúne um acervo de imagens, áudio e vídeo relativos à Amazônia, com cerca de 245 mil peças. Criado em 2000, hoje está instalado no Palacete Provincial.

1997, que funciona hoje como Liceu de Artes e Ofícios. Outra foi o Salão Plástica Amazônia, que teve duas edições, em 1997 e 1998, respectivamente na Usina Chaminé e no Palácio Rio Negro. Reunindo criações de artistas do Amazonas, do Pará e de outros Estados, sob curadoria de uma equipe formada por Jacqmont e convidados nacionais, as duas mostras foram um sopro de vida num cenário sem muitas perspectivas. “A última exposição foi muito bonita. O Evangelista fez a ‘Sala dos clamores’, enchendo uma sala só com garrafas vazias. O Buy fez um altar de isopor”, recorda Jacqmont. “Foram dois salões importantíssimos, a meu ver, embora sem a repercussão necessária na memória. Eles mobilizaram muitos artistas jovens”, comenta Cardoso.

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Pedra na lagoa A combinação da falta de um programa sério de estímulo com a tendência de retração da cena ar-

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“Mulheres”, Hahnneman Bacelar

“diálogos com os artistas, discussão da obra e ocupação do espaço de uma maneira consciente para aproximações com o sistema de arte contemporânea no mundo vigente” – como Coutinho explica no texto de seu “Memorial de Artes Visuais 2003/2011”, balanço de seu trabalho à frente do espaço. Entre as exibições promovidas pela galeria estavam desde trabalhos inéditos de nomes como Roberto Evangelista (“Leituras escatológicas”, 2005) e Óscar Ramos (“comoemitacoatiara”, 2010) até exercícios de alunos de Artes Plásticas (“Pin-

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tura/Exercícios”, 2004) e coletivas com talentos promissores (“Transposições”, 2007, e outras). Alguns eventos do espaço foram pioneiros em explorar novos temas e terrenos, como a arte urbana – caso de “Pixo” (2006), que pela primeira vez na cidade levou o grafite das ruas para as paredes de uma galeria de arte (apenas em 2011 a Galeria do Largo realizaria uma operação similar, com sua “Volts”). Retrospectivas e panoramas também passaram pela Galeria do Caua, sendo digna de nota a “Reserva de Artes” de 2005. Talvez a mais abrangente mostra da produção contemporânea e moderna do Amazonas fora da Pinacoteca e antes da Pré-Bienal, a exibição compilou 40 anos de artes no Estado em 30 obras. A lista trazia, entre outros, Moacir, Bernadete, Zuazo, Óscar, Hahnemann, Jandr, Cardoso, Otoni, Evangelista, Rui, Jacqmont, Manaus, Adroaldo e Helen Rossy, além de incluir a fotografia de nomes como Andreia Mayumi. Nas exposições da Galeria do Caua foram revelados e destacados nomes como Paulo Trindade, Priscila Pinto, Naia Arruda, Pollyana D’Avila, Marcos Romano, Denise Rodrigues, Monik Ventilari, Sandro Marandueira e Olivença, para citar apenas alguns. Em conjunto, eles desenvolveram uma obra que abrange diferentes técnicas e suportes – da tradicional pintura à instalação e ao audiovisual –, investindo na linguagem conceitual e buscando estabelecer um discurso artístico permeado pelos questionamentos contemporâneos.

Ainda a crise Exceto por alguns que deixaram o cenário local, os nomes citados

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“Paisagem”, Van Pereira

anteriormente podem ser arregimentados como representantes de uma atual geração das Artes Visuais no Amazonas. E, todavia, é uma geração que ainda enfrenta dificuldades em se firmar à frente do cenário. Além de contar, até pouco tempo atrás e ainda um tanto hoje, com pouco ou nenhum incentivo das esferas municipal, estadual ou federal, sua produção pode ser considerada irregular e de volume reduzido. “Nos anos 2000, poucos artistas apareceram. E frutos da Universidade, quem são? Paulo Trindade, Naia Arruda, Pollyana D’Avila... São poucos. Da Universidade deveria haver muito mais frutos. E produz-se pouco – houve exposições no Claudio Santoro, no Icbeu. Mas o pouco estímulo, a pouca informação, isso tudo contribui para estarmos ainda patinando nas Artes Visuais”, afirma Coutinho. Ele aponta ainda um ‘silêncio’ das gerações anteriores que teria privado os nomes da geração atual de um contato com o que se fizera até então. Aqui, ele cita uma análise feita pelo curador Paulo Herkenhoff

no catálogo da exposição “Amazônia, a arte” (2010): “O Paulo afirma que, após uma aproximação com o resto do país nos anos 1980, alguns artistas foram trabalhar no Estado, e de uma forma ou outra impediram outras gerações de tomar conhecimento (de até onde se havia chegado)”. Evangelista observa que os artistas de sua geração até hoje ocupam o centro da paisagem das Artes Visuais no Amazonas. “Minha geração continua tendo papel predominante, o que é lamentável”, afirma ele, apontando a ausência de “uma política cultural mais ousada, com promoção de intercâmbio de artistas, encontros, oficinas” pela estagnação da cena e pela decorrente pequena expressão dos artistas da geração atual. “Em alguns momentos tivemos vislumbres do que poderia acontecer se se levasse mais adiante a coisa, mas empacou na ausência de uma vontade política. As artes no Amazonas estão mais em torno de festivais, mas menos em torno de Artes Plásticas. É algo mais voltado

para o que considero ‘festivo’. Não temos até hoje, não sei se existe uma faculdade que promova tão somente as artes. Continuamos defasados”, lamenta. Coutinho observa também que o atual cenário decorre de um sistema de arte “capenga” no Estado. “Ainda não foi estabilizado o processo de construção de um circuito – com escolas, galerias de arte, o Estado participando de maneira consciente, a iniciativa privada cooperando. O Estado trabalha politicamente, a iniciativa privada não acredita em quem não aparece. E há uma escola de arte com grade atrasada, aquém, acadêmica, formal”, critica ele. Para Otoni, a falta de espaços de formação não justifica o relativo vazio geracional (“Isso não foi problema nos anos 1970/80”), mas acredita que ele pode refletir o contexto de uma sociedade que se volta mais e mais ao mundo virtual enquanto dá menos valor à educação. “Não é preciso mais ir à galeria: o contato das mídias preenche

“Meninos com pipa”, Afrânio de Castro

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temporariamente o indivíduo (...) As pessoas produzem e leem cada vez menos, estão cada vez mais esvaziadas. É como se fosse uma barbárie”, conclui.

Novas perspectivas É em meio a esse estado de coisas que acontece a Pré-Bienal de Artes do Amazonas. O evento, que pareceu responder às queixas dos artistas locais quanto ao relativo “abandono” do segmento pelo poder público, chamou a atenção da sociedade para o cenário das Artes Visuais no Estado e abriu uma perspectiva de mudança, com a expectativa de maiores investimentos para a área, de valorização da arte e dos artistas e de abertura de um canal de diálogo com a cena artística nacional e internacional com a futura 1.ª Bienal de Artes do Amazonas. Realizada no Centro Cultural Povos da Amazônia, a exposição “Dos lápis de Di ao festim das barrancas” reuniu mais de 200 criações de artistas locais, além de prestar homenagem a Di Cavalcanti (1897-1976), um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, ao pintor e

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paisagista Burle Marx (1909-1994) e a Hahnemann Bacelar. Faziam parte da lista de artistas locais na mostra Arnaldo Garcez, Turenko Beça, Buy Chaves, Manausmacaco, Cristóvão Coutinho, Eli Bacelar, Evanil Maciel, Francimar Barbosa, Helen Rossy, Jair Jacqmont, Jandr Reis, Mário de Paula, Moacir Andrade, Nelson Falcão, Noleto, Otoni Mesquita, Rui Machado, Sebastião Alves, Sergio Cardoso, Zeca Nazaré, Lígia Barros, Paulo Cesar, Olivença e Erre Nascimento, além dos grafiteiros Arab, Box, Caos, Isy, Raiz e Áudio. “Temos aqui artistas de Parintins, Coari e São Paulo de Olivença, é um marco para as artes plásticas no Amazonas. Por meio da Pré-Bienal e, posteriormente, da Bienal de Artes Visuais ‘Amazônica 01’, em 2013, promovemos o incentivo à produção e à valorização do segmento”, declarou à imprensa a curadora Cleia Viana, à época da exposição. Otoni, que participou da Pré-Bienal com um “ambiente em processo” – a pintura foi feita ao longo do período da exposição –, considera que o evento “valeu a pena”. “Sobretudo para mim que fiquei pro-

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duzindo um trabalho em constante movimento, transformação, e tive a possibilidade de conversar com as pessoas. Foi enriquecedor em vários pontos”, afirma o artista plástico. “Sempre elogio qualquer iniciativa que exiba o trabalho da gente”. Por outro lado, os artistas locais ainda mantêm certa reserva com relação à futura Bienal, pelo fato de, como ocorreu na Pré-Bienal, não estarem tendo participação na elaboração ou produção do evento. Otoni manifesta preocupação de se ter uma equipe capaz de dar conta de um evento de tal porte: “Um evento como esse requer um aprofundamento de questões, leituras e um conhecimento específico da produção artística (...) Não se trata simplesmente de fazer uma exposição, ter um curador e montar um cenário”. Evangelista soma a essa a preocupação com a continuidade do evento. “Acho interessante que possa perdurar, tendo uma linha volta-

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da para a Amazônia. Mas é preciso ter uma curadoria muito séria e capaz, que separasse a arte clássica, hispânica, contemporânea – enfim, que pudesse estar revelando a vanguarda das artes na América Latina, ou Amazônia, melhor dizendo. Mas temo que essas coisas aconteçam de forma esporádica, dentro de uma conjuntura de ideias e pensamentos, e terminem ali”, declara ele. Jacqmont, por sua vez, espera que a futura mostra abra espaço para a arte local e para o diálogo. “Pode vir a ser muito bom, mas podemos também vir a ficar de fora. Seria preciso ter uma ala para nossos questionamentos, nossa visibilidade. Somos daqui, temos nossa cultura. Somos do Amazonas e queremos ver nossa voz, nosso visual sendo discutido, colocado, analisado. O conceito da Bienal tem de ter isso”, propõe. Coutinho manifesta otimismo, enxergando a possibilidade de Ma-

naus se inserir num circuito de arte nacional, com o restabelecimento do diálogo com outros centros, perdido nos anos 1990. “A Pré-Bienal e a Bienal ajudam no sentido de dar visibilidade aos artistas locais, e da possibilidade de abrirmos relações e termos contatos mais próximos com outros artistas, outras curadorias. Arte contemporânea é isso: uma transitoriedade grande, um trânsito permanente de pessoas e de produção”, assevera ele. Reservas à parte, o secretário de Cultura do Estado, Robério Braga, não hesita em elevar as expectativas no que se refere ao futuro evento de Artes Visuais no Estado: “Será uma grande surpresa, um processo de criação coletiva e um divisor de águas na linguagem de artes visuais que vamos ter antes e depois da Bienal”. Quanto a nós, leitores e espectadores, resta esperar para conferir os novos capítulos dessa história.

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Foto: Constantin-Ciprian

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tradição

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Na Amazônia os praticantes da medicina tradicional têm prestígio e admiração em comunidades rurais e urbanas

Emiliana Teixeira | jornalista

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dom de curar é, também, um conhecimento que se desenvolve desde as primeiras sociedades humanas. Os curadores – ou curandeiros – salvam vidas nos lugares onde as crenças e as experiências tradicionais prevalecem ou se combinam com a medicina científica oficial. Na Amazônia, que abriga a maior floresta tropical do mundo, os praticantes da medicina tradicional gozam de prestígio e admiração em comunidades rurais e urbanas. Quem, nessa região, nunca ouviu falar da fama de um curandeiro? Generalizam-se, nesse personagem, várias especialidades da medicina dos povos da floresta. O curandeiro exerce, nas comunidades tradicionais, papéis análogos aos dos profissionais das ciências da saúde e dos religiosos, porque, além dos males patológicos, também cuida da alma do paciente. “Eles [os curandeiros] são respeitados porque possuem grande sabedoria que ajuda o povo a manter uma relação saudável com a natureza, onde encontram os recursos para solucionar os problemas dos pacientes”, afirma a pesquisadora Fátima Guedes, que atua na revitalização dessas práticas no município de Parintins, no Amazonas. Nas comunidades distantes do acesso às políticas de saúde do governo, a assistência à saúde coletiva depende do trabalho das parteiras, dos pegadores de ossos, dos puxadores de desmentiduras, dos costuradores de rasgaduras, dos curadores, dos

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Eu prefiro não ter conflito com eles (os médicos), sempre que posso, aconselho às mulheres para buscarem um médico”

Foto: Emiliana Teixeira

Tia Leó já perdeu as contas de quantos partos já realizou

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sacacas (pessoa que manifesta o dom de curar ainda no ventre) e das benzedeiras. No geral, são todos excelentes manipulares das ervas medicinais. Há, todavia, uma postura intolerante da Medicina oficial com as curas não reconhecidas pelos laboratórios científicos. Profissionais das ciências da saúde, como médicos, enfermeiros e odontólogos, desqualificam a medicina tradicional e prejudicam a formação de novos curandeiros. A aprendizagem consiste, geralmente, na observação direta da atividade da pessoa experimentada no ofício de curar ou no desenvolvimento de uma dádiva espiritual. No caso da Amazônia, ressalta-se a harmonia das práticas dessa cultura com a natureza e suas forças mágicas. Usa-se a natureza como inspiração ou como recurso para curar doenças e nunca para explorá-la sem quaisquer sentidos que não sejam os da preservação da vida. Algumas terapias utilizam medicação à base de ervas, partes de animais ou minerais, e com frequência a água, a terra, o metal. As plantas medicinais servem para corrigir o mau funcionamento de algum órgão do corpo. A bênção juntamente com o remédio visa salvar o doente como um todo. É o caso da oração sobre uma rasgadura (hérnia) com o auxílio de uma erva medicinal, da semente do mamão dada à criança para prevenir verminoses, do chá de boldo para curar uma dor de estômago, da copaíba como creme para pegador de ossos. Na medicina dos povos da floresta encontram-se chás de raízes, folhas, flores, cascas, sementes; banhos preparados com plantas aromáticas; banhas de jiboia, carneiro, galinha; uso tópico da folha de fumo na barriga contra a dor ou

da metade de uma laranja-da-terra, esquentada na chapa do fogão, para curar caxumba. Trata-se do conhecimento empírico-intuitivo, no qual se aguçam os sentidos em socorro ao bem-estar do corpo e da alma do paciente.

Parteira por acaso Leonilza Gadelha de Souza, 66, a tia Leó, perdeu as contas de quantos partos já realizou em toda sua vida. Em 1970, aos 24 anos, grávida do quinto filho, teve que se cuidar sozinha ao sentir as dores do parto, no meio da madrugada. Seu marido estava doente e os filhos ainda eram muito pequenos. Ela, então, fez o próprio parto. Meses depois, uma jovem senhora lhe pedia ajuda na hora de dar à luz. Com o conhecimento adquirido nos partos dos cinco filhos, ela atendeu ao pedido e, desde então, assumiu o ofício de parteira. Além fazer os partos, ela acompanhava algumas mães no processo de gravidez. Apenas com alguns toques e massagens na barriga da mãe, ela sabia exatamente qual era o sexo e a posição do bebê. Ela se orgulha de sempre ter tido sucesso nos partos que realizou. Nunca me enganei no sexo, nem nunca aconteceu nada de ruim a alguma mãe ou criança que eu colocasse no mundo, sempre ajudei porque me pediam e descobri que era um dom e que eu precisava ajudar as pessoas, não podia me negar”, conta. E continua: “Hoje há muito conflito com os médicos, os profissionais que passam pela universidade para fazer isso, e eu prefiro não ter conflito com eles, sempre que posso, aconselho às mulheres para buscarem um médico”.

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Foto: Renars Jurkovskis

Tia Leó se tornou referência fazendo partos de mulheres em Parintins que ganhou uma homenagem, uma Unidade Básica de Saúde que leva o seu nome, a Policlínica Tia Leó, localizada no bairro Dejard Vieira, onde a parteira mora. Ela acredita que, apesar de todo recurso disponibilizado hoje pela

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medicina moderna, a figura da parteira é fundamental em determinadas comunidades. “Antes existia apenas a parteira, e todos nasciam desse jeito, não havia complicação, era natural, por que então que isso não pode continuar? Tem gente que não tem onde recorrer, ou tem, mas prefere a parteira, então acho que é

preciso sim dar valor a esse trabalho, que é colocar uma pessoa no mundo, é uma coisa mágica, que requer muito amor e muito cuidado”, diz. A atividade de parteira ainda é muito comum nas comunidades rurais da Amazônia, mas, de igual modo, há a compreensão de que a

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Fotos: Emiliana Teixeira

Valdemar Nascimento fez curso de noções sobre o funcionamento do corpo humano. Abaixo, em ação, uma massagem com gel à base de ervas e uma oração

preferência do diagnóstico, assistência e acompanhamento dos pacientes é do médico. Cada vez mais, mães da zona rural se deslocam de suas comunidades para dar à luz seus filhos nas cidades, na maternidade. Viagens que, às vezes, duram horas e põem a mãe e o bebê em risco.

De pai para filho O mecânico Roberto Paulo Malcher chegou à casa do curador Valdemar Nascimento, 58, quase sem poder movimentar os braços e o tronco, andava arqueado, resultado de um acidente. Passou pelo hospital e, apesar de sair de lá com a certeza do médico de que estava tudo bem, ainda sentia dores no lado direito no braço, acima do ombro. Uma massagem no ombro, com um gel à base de ervas, e uma oração silenciosa afastaram-lhe a dor. “Fico muito emocionado. O coração não aguenta de emoção porque isso é um dom de Deus”, disse em meio a lágrimas. O problema de Roberto, segundo Valdemar, era um osso que estava deslocado, o que provocava a dor. Questionado sobre como ele resolveu o problema em menos de um minuto, ele respondeu: “A gente sabe. Parte vem de Deus que deu esse dom, parte é da prática de muitos anos, e parte é dos conhecimentos técnicos que adquiri por aí”. O curador se refere a um curso de noções sobre o funcionamento do corpo humano, feito em Brasília, e de Botânica, feito no Rio de Janeiro. Valdemar disse que, nas suas viagens pelo Brasil, também conheceu e trabalhou com curadores famosos e com o espírita Chico Xavier, com quem teve grandes ensinamen42

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tos espirituais. Plantas medicinais, ornamentais, frutíferas e madeira de lei estão espalhadas no quintal do curador. Pelo trabalho ele não cobra nada nem aceita dinheiro. Assegura que o seu objetivo é apenas promover o bem-estar de quem o procura. Filho de curador, Valdemar, também erveiro, descobriu o dom aos 14 anos, quando deslocou o joelho de um amigo, numa partida de futebol. Com o material que tinha em casa, álcool e algumas ervas, colocou a perna do amigo entre as suas, fez uma massagem, rezou e o joelho voltou para o lugar. Apesar da resistência, aos 17 anos resolveu que iria dar continuidade ao legado do pai, tios e avós, seria curador. Tendo uma vida simples, sem filhos ou esposa, Valdemar diz que sua prática é espiritual e que Deus utiliza-se dele e da natureza para curar as pessoas. A ele chegam situações como quebranto,

rasgadura, desmentidura, deslocamento de osso, frio no corpo, dores e inflamações. “A cura é um dom de Deus, e eu aliei isso aos conhecimentos do corpo humano, das plantas pra poder ajudar ainda mais as pessoas. À noite eu só tenho que agradecer a Deus, Ele que faz tudo, Ele que cura”, diz. O curador divide seu tempo entre o trabalho como jardineiro no Centro de Estudos Superiores de Parintins, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), e o auxílio às pessoas que o procuram para curar um mal, mas teme que essa prática desapareça com o passar do tempo. “Hoje somos poucos e temos que continuar, tem muita gente que tem esse dom e prefere usá-lo para o mal ou para obter dinheiro. Mas isso é um dom, não é um trabalho. Não podemos deixar acabar essa prática de curar e ajudar quem nos procura”, acrescenta.

Revitalização das práticas tradicionais de saúde

Para não deixar essa cultura se perder ao longo do tempo, projetos e mobilizações ainda pequenas, mas significativas, em todo o país tentam resgatar e valorizar esses saberes. A maioria das iniciativas busca um reconhecimento dessas práticas pelo Sistema de Saúde dos Estados e, assim, diminuir a discriminação existente contra esses curadores. O Ministério da Saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), inclui a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. A Portaria n.º 2.866, de 2 de dezembro de 2011, no seu artigo 3.º, inciso V, diz que é preciso “reconhecer e valorizar os saberes e as práticas tradicionais de saúde das populações do campo e da floresvalercultural

ta, respeitando suas especificidades”, porém os praticantes da medicina tradicional – ou popular – ainda são discriminados e desvalorizados. A partir disso, iniciativas municipais e estaduais vêm ocorrendo, visando a incorporação no SUS de práticas das Medicinas Tradicionais, Homeopatia e Práticas de saúde Integrativas ou Complementares. No Estado do Amazonas merece destaque o Movimento pela revitalização dos saberes e práticas tradicionais em saúde, que busca valorizar essas práticas na região do baixo 43


Há muita discriminação desses profissionais da saúde e a gente considera um retrocesso”

Amazonas, onde realiza palestras, rodas de curadores, demonstração de experiências, seminários, troca de informações e exposições de ervas medicinais. Curadores de diversas comunidades rurais do baixo Amazonas estão articulados com outros movimentos sociais. O objetivo é gerar um diálogo maior entre o SUS e esses saberes e práticas, de forma a melhorar a qualidade de vida da população por meio da valorização dos conhecimentos dos mais antigos. Esse trabalho se realiza desde 2008, em Parintins (AM), com apoio da professora e pesquisadora Fátima Guedes.

“Temos consciência que, a partir do momento que esses conhecimentos forem incluídos numa política pública de saúde, a qualidade de vida da população vai melhorar, porque significa o retorno do diálogo entre ser humano e os recursos naturais”, disse a pesquisadora. Os avanços, segundo ela, são mínimos porque o movimento está na contramão dos projetos do Estado que mercantiliza tudo, incluindo a própria vida. “A exclusão desses grupos só não ocorrerá se eles adquirirem consciência da sua importância para a vida humana”, explica Fátima Guedes. Muitas das práticas de saúde tradicionais impulsionaram a ciência a se debruçar sobre os benefícios que elas trazem à saúde, porém alguns desses cuidados não são aceitos pela medicina moderna e por seus profissionais, desconhecedores do trabalho dessas pessoas. Chegam a rechaçar muitas práticas e seus praticantes. Outros, dotados de ignorância, discriminam e subjugam esses saberes, os referenciando como “macumba”, “feitiçaria”, “mandinga”. Por conta disso e pela presença crescente de técnicas de saúde oficiais nas comunidades pe-

quenas, é que muitas dessas práticas estão desparecendo. “Há muita discriminação desses profissionais de saúde e a gente considera isso um retrocesso nesse momento que o mundo clama por vida, por inclusão, por novos olhares em relação à saúde. Dentro das comunidades há um respeito pelos curadores, mas isso tem diminuído por conta dos bombardeios ideológicos que esses povos já sofreram por conta do mercado da saúde que diz que é preciso comprar um remédio X enquanto que na prática essas populações sempre tiveram modos de prevenção às doenças e promoção da saúde”, diz a professora Fátima Guedes.

Saiba mais A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a medicina tradicional como conhecimento técnico e procedimentos baseados nas teorias, crenças e nas experiências de diferentes culturas, sejam ou não explicáveis pela ciência ofi-

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cial. Suas práticas são reconhecidas, em alguns países, como medicina complementar, alternativa (é o caso da acupuntura, por exemplo). No Brasil, porém, só há ainda ensaios de reconhecimento dessas práticas.

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Alfabeto das Plantas O interesse em resgatar os saberes e práticas populares tradicionais de saúde levou uma professora do interior da Gleba Vila Amazônia a motivar seus alunos para a pesquisa em torno das ervas comuns na floresta da região. O resultado foi a criação do Alfabeto das Plantas Medicinais (com uma espécie para cada letra) por alunos das escolas São José do Laguinho e Santa Luzia do Murituba, assentamento Planalto Mamuru, oeste do Pará. A iniciativa da professora Sílvia Valeriano, que assumiu a luta pela inclusão das práticas populares tradicionais de saúde ao sistema oficial, mostra que o compromisso com a realidade dos povos amazônicos provoca transformações e valoriza os saberes e as práticas ancestrais. Motivados pela professora Sílvia, alunos do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos passaram a estudar as ervas medicinais, a conhecer o trabalho realizado pelos antepassados e, a partir disso, criaram o alfabeto das plantas medicinais. “No primeiro momento, eles vieram observar o canteiro, o local, e agora eles já estão produzindo, colocando em prática, procurando saber para que serve cada tipo de planta. Estamos avançando muito, principalmente dentro da sala de aula. Com isso, as plantas medicinais nos dão um grande leque, contextualizando de várias formas em sala de aula”, conta Valeriano, afirmando ainda: “agora, que estamos colocando em público com a proposta do plano de ação da escola, vamos levar para outras escolas vizinhas, porque a proposta é implantar um canteiro de plantas medicinais em cada escola”. O resultado desse trabalho já foi apresentado em eventos oficiais nas comunidades. Iniciativas pequenas, que aos poucos ganham adeptos em toda a região, entre líderes de movimentos sociais, professores, médicos, pesquisadores. O trabalho é difícil, conflita com a discriminação, à falta de apoio político e de reconhecimento nas comunidades. Mas a esperança é que essa realidade mude. “Temos muita vontade e parceiros que nos possibilitam estar em constante avanço. É uma caminhada longa, mas acreditamos que logo teremos muitas vitórias, porque é justo, é merecedor, é digno que essas pessoas e práticas, que fizeram e ainda fazem o bem pra sociedade, sejam reconhecidas e respeitadas”, conclui a professora Fátima Guedes.

Professora Silvia Valeriano lutou pela inclusão das práticas populares tradicionais de saúde ao sistema oficial

Aluno apresenta trabalho sobre ervas medicinais, que resultou no alfabeto das plantas medicinais

Livros sobre o tema

Crenças que promovem a saúde... Autor: Elvira Eliza França Editora Valer

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Medicina & religião... Autor: João Bosco Botelho Editora Valer

Flora médica brasiliense Autor: Alfredo da Matta Editora Valer

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qui vamos falar de uma ilha encantada. Mais uma, entre tantas que, a despeito de todo o desencanto que toma conta do mundo (vide Max Weber), resiste como um lugar onde é possível o homem se relacionar de maneira encantadora com a natureza. Mas é bom que se diga logo, que aqui também se fará um esforço que, a princípio, poderá aparecer em movimento contrário do que se falou anteriormente em relação ao adjetivo “encantado”.

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A indústria do turismo apenas lança mão de um imaginário sobre a região”

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O esforço com duas molduras de fundo. A primeira é de escapar da maneira como a palavra (“encanto”) e suas variantes (“encantador”, “encantado” etc) são usadas, por exemplo, por certa indústria do turismo, que vende uma imagem paradisíaca da Amazônia como uma espécie de remédio para os males da sociedade urbana contemporânea. Mas, sabemos, que a indústria do turismo apenas lança mão de um imaginário sobre a região, que veio se formando no momento em que os europeus aqui chegaram, perfeitamente consolidado e cômodo para a construção de imagens sobre a maior floresta do mundo.

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Por ser assim, podemos formular uma expressão para orientar o que temos chamado de “imaginário amazônico” na sua forma estereotipada, baseado na percepção de que a Amazônia é “só natureza”, como se o uso da palavra “natureza” não acarretasse no fato de que tal expressão é, na verdade, um conceito no qual o seu outro lado suposto – a cultura – não tivesse totalmente implicado. Logo, o encanto do qual aqui se vai tratar nada mais é do que uma maneira particular que possuem alguns homens da Amazônia, na sua faina diária com a natureza, de “fazer cultura”.

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Uma ilha vera Por isso, vamos logo ao lugar que motiva este relato. Chama-se Ilha de Vera Cruz, fica na frente da sede do município de Maués, no interior do Amazonas. Só uma olhadela no nome, já indica a primeira pista que pode nos fazer entender a fama que atribui a este lugar algo que chama a um comportamento como aquele que tomou conta dos primeiros europeus que aqui chegaram, nesta nossa Terra de Santa Cruz, como foram batizadas as terras brasilis pelos homens da frota de Pedro Álvares Cabral. Sim, quem chega à Ilha de Vera Cruz vai também logo se defrontar com uma grande cruz de madeira, diante de uma graciosa igrejinha, por onde a comunidade começou, por isso, teve-se a ideia de batizar o lugar em referência ao símbolo cristão – uma cruz “vera”, autêntica. Mas, ao visitante descuidado, é preciso lembrar que o nome, assim como foi a primeira imagem para os portugueses que chegaram no Brasil, tem que ser encarado apenas como um nome, ou seja, uma construção cultural que, por sinal, não fazia menor esforço para esconder a expectativa que os colonizadores tinham para as terras recém “descobertas”, de que eram uma espécie de página em branco, na qual eles valercultural

poderiam escrever o que quisessem, e assim foram logo batizando um lugar com nomes europeus e cristãos sem ao menos se darem conta de que o autêntico encanto ainda estava por vir. É desse equívoco que estamos tomando o cuidado de dispensar aquele que se aventure em ir à Ilha de Vera Cruz. Como se disse, o lugar tem tudo para ser encarado como algo da ordem do encantamento. É uma comunidade ribeirinha, onde vivem cerca de 100 famílias, muitas das quais com práticas extrativistas, que sabem que precisam cuidar da terra, pois dela é que tiram seu sustento. Na frente das suas casas, na vazante amazônica, descortina-se uma praia de dimensões colossais, banhadas por um rio cristalino, o Maués-Açu, que amanhece azul e

anoitece amarelo, devido ao efeito muito marcante que o nascer e o pôr do sol deixa no seu leito. Isso, porém, que poderia ser encarado somente como uma “dádiva da natureza”, alguma coisa que o espírito cristão poderia apenas atribuir à generosidade do Criador, é também, na verdade, uma construção que nasce da labuta incansável dos moradores de fazerem do lugar algo que é mais do que “só-natureza”: é também cultura. Ou melhor, é um conceito de cultura que só existe em relação com o seu outro lado, como se disse anteriormente. Para esses moradores, cultura é uma atividade particular que nasce da relação deles com o lugar no qual vivem, do qual tiram sustento e sentido para as suas vidas.

Cultura é uma atividade particular que nasce da relação deles com o lugar no qual vivem, do qual tiram sustento e sentido para as suas vidas” 49


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Floresta é cultura

Uma floresta que não é só floresta, ou melhor, não é “só-natureza”, uma floresta que só é floresta porque o homem tornou-se um colaborador fundamental para fazer dela uma floresta”

Assim, tecido o preâmbulo que faz da natureza/cultura um par de relações afetivas, mais do que apenas conceitos para pensar a existência humana em terras ainda desconhecidas (e, portanto, encaradas como misteriosas) como as da Amazônia, podemos ir mais velozmente ao objeto propriamente dito que motivou esta matéria. Falou-se da ilha encantada de Vera Cruz devido a um interessante acontecimento que fez parte das comemorações de 179 anos da cidade de Maués, ocorrida em maio deste ano. Um acontecimento que, por um lado, serve muito bem para mostrar que, ao se falar de encantamento, agora se está em outro marco que não aquele de quem viu a Amazônia como “só-natureza”. Mas, por outro lado, só pelo fato de que, nesta nossa perspectiva, os elementos que formaram a mentalidade encantada daqueles que contribuíram para fazer do imaginário amazônico algo estritamente ligado (ou só estrita-

mente ligado) a um conceito biologizante de natureza, como foi o caso de muitos viajantes que pela região passaram no século 19, não é de todo dispensado. Isso porque existe, sim, um movimento que pode ser visto como passos que marcam a direção de um novo encantamento com a região mais verde do Planeta, mas agora incluindo também a natureza no seu sentido antropológico. Logo, não é descabido falar que o acontecimento do qual se está tratando, a inauguração de uma Eco-Trilha na Ilha de Vera Cruz, se inclui perfeitamente no que alguns estudiosos da Amazônia, chamam de “flo- restas culturais”. Ou seja, uma floresta que não é só floresta, ou melhor, não é “só-natureza”, uma floresta que só é floresta porque o homem tornou-se um colaborador fundamental para fazer dela uma floresta, uma floresta que, para existir, precisou, sim, da ação humana, como defende o sociólogo Renan Freitas Pinto, da Universidade Federal do Amazonas. Ora, tais homens, sabendo que a floresta era mais do que um “meio” para (sobre)viverem, mas a própria vida deles, e que não podiam pensá-la como se ela fosse natureza e eles como fizessem parte do outro lado, a que se pode chamar cultura, começaram a ter mais consciência e a moldar as suas ações pelo que sempre souberam: que a floresta é cultura, ou seja, é eles próprios. Nesse sentido, abundam indícios de que, aquela que o visitante vai ver, ao se interessar em conhecer a Eco-Trilha da Ilha de Vera Cruz, em Maués, são as pegadas do

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homem amazônico na sua relação íntima com aquele elemento que é a sua vida, a floresta. Ali estão, por exemplo, uma barraquinha com uma mesa cheia de objetos que, para quem olha de longe, parece um amontoado de terra amarela, daquelas que se formam nos beiradões da região. Na verdade, são “obras”, como bem lembrou o antropólogo Ademir Ramos, da Universidade Federal do Amazonas, na visita inaugural da trilha, em maio passado. Ele, ao se aproximar ainda mais da mesa com os objetos, viu logo que não só se tratava de uma “obra”, mas também de uma “obra de arte” que, no entanto, exigia um olhar treinado pelos estudos e para sair dos preconceitos contra o que ficou conhecido como “arte primitiva”. Sim, porque o visitante que quisesse aplicar os parâmetros ocidentalizantes, como o do

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belo ideal grego, formas perfeitas e simétricas, iria ficar decepcionado com as “deusas” provavelmente inventadas pelos índios sateré-mawe que habitaram a ilha em tempos remotos. Digo “deusa” porque foi o nome que o antropólogo usou para definir uma figura de mulher, com vastos seios e traseiro ainda mais vasto, não muito diferente do tipo que o mesmo visitante poderia encontrar na própria ilha ou percorrendo qualquer lugar deste imenso Brasil, de modo particular a sua porção amazônica. Mas, dispensando qualquer aproximação apressada entre a deusa indígena e a mulher amazônica/brasileira, o antropólogo foi logo indicando que a abundância no formato, além de uma forma bem precisa do fazer artístico ameríndio, tinha também uma função precisa nesta forma: a de indicar um tipo

Fragmentos de cerâmica revelam presença de civilizações ancestrais

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de sociedade que a arqueologia aos poucos vem comprovando ter existido poderosamente na Amazônia, aquela nas quais eram as mulheres que estavam no seu centro organizativo e político. Eis, então, nas mãos do antropólogo e na vista de quem o acompanhava, um exemplo claro da existência do Matriarcado de Pindorama, para lembrar as palavras proféticas de Oswald de Andrade.

Obra viva Depois da rápida aula de antropologia/arqueologia amazônica, a comitiva de inauguração da trilha entrou no que ela tinha de mais vivo, por estar ali se movimentando diante dos olhos dos passantes, mirando-o, como que dizendo que ao seu olhar, às vezes um tanto perplexo pela exuberância da mata, a

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criatura que ele olhava tinha também a capacidade de devolver-lhe um olhar. E esse olhar das criaturas era de todos os modos. Alguns se manifestavam por meio de palavras, por exemplo. À medida que o visitante entrava na floresta, encontrava indícios claros da cultura letrada, que via aos pés das árvores, indicando que elas, assim como os humanos, também possuíam um nome. A lista, como a própria floresta, era imensa, variada e complexa. Aqui vão alguns nomes: envira, cipó gogó-de-guariba, piquiarana, cupiúba, caju-aço, taxi, abacaba, trento, língua-de-onça, seringa, guaraná, apuí, tarauacá, piquiá-marfim, ingá, muruci, tucumã e outros. Observe-se que, só por uma leitura rápida dos nomes, o cruzamento de olhar que via acontecer diante dos olhos do visitante, já se constituía um dos tantos indicativos

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de que ali não se estava diante de uma floresta “só-natureza”, mas também diante de um encontro entre as coisas da natureza que tinha a cultura (o homem) como mediador. As criaturas da floresta encontravam-se nos nomes que os homens deram para elas próprias, as criaturas. Veja, por exemplo, este: cipó gogó-de-guariba; os reinos vegetal (cipó), humano (gogó) e animal (guariba) estão presentes em um simples nome que podia ser lido muito bem como uma indicação metodológica para treinar um olhar mais vasto sobre a Amazônia: a de que não basta olhar os elementos como se fossem peças isoladas em um imenso tabuleiro, mas vê-los como agentes que vivem uma vida afetiva, que se encontram, que se chocam, que vivem desses

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encontros e choques, que morrem por isso e que renascem para que o encontro volte de novo a acontecer. Uma obra viva, portanto.

Troca de olhares Disse que na trilha haviam olhos tão vivos, espertos e afetivos como aqueles com os quais os humanos se esforçavam para aprender a olhar o que estava se movimentando diante dos seus olhos. Então, eis que, de repente, alguém se espanta com um toque sorrateiro: era o tatu que devolvia o olhar que ele sabia dar, rápido, desconfiado e um tanto quanto temeroso. Mais adiante, outro olhar, também um tanto quanto perplexo, por que apenas se deixava ver por aquilo que não se conseguia ver, porque já havia levan-

Cultura e natureza se entrelaçam nas trilhas que ensinam sobre a vida

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tado voo. “Olha só um ninho”, disse alguém. Era a presença da rolinha que foi reconhecida pelo que dela havia ficado ao olhar: dois ovinhos que, de tão brancos, ficavam quase só luz ao contato com o sol. Bem, o sol, como não podia deixar de ser, foi notado como personagem dos mais criativos que marcou o primeiro percurso oficial da trilha de Vera Cruz. Bastava ver seus fios que, heroicamente, furavam os furos que encontrava na mata. A quem, seguindo o risco, se dirigia o olhar para tentar ver o próprio astro-rei, este só se podia deixar ver, por outras entidades majestosas na trilha, algumas castanheiras

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e samaumeiras. Assim, até chegar à copa, depois de percorrer o fio solar, o visitante via apenas folhas, mas de um tipo bem particular, completamente salpicadas por listas luzentes que podiam muito bem compor uma obra de arte que só o olhar humano, na sua relação afetiva com natureza, é capaz de ver. Depois de cerca de dois quilômetros mata adentro, agora era a vez de entrar no elemento por onde, na verdade, se entrou para começar a percorrer a trilha. Ali estava ele, tão majestoso quanto o sol e a árvores da floresta, o rio que, como o seu nome sustenta, é realmente “açu”. Sabe-se que essa

palavra (“açu”), de origem tupi, é algo que não pode ser traduzido como apenas “grande”, como muitos fazem. Ao terminar a trilha com um banho no rio, aqueles que foram para dar oportunidade ao próprio olhar a uma ampliação condizente com o objeto que ele havia sido chamado a ver, mergulhavam em outra oportunidade para lavar o olhar nas águas açu do rio Maués. Ora, oportunidade de ver que açu, mais do que o tamanho do próprio rio no qual o corpo se banhava, ou das árvores que o visitante havia encontrado na trilha, era perceber e banhar–se em um encontro, palidamente descrito, por exemplo, ao contato da castanheira com o sol, o nome das árvores que havia descoberto no percurso: que ali o açu é o próprio encontro – grandioso – das criaturas com elas mesmas e com essa criatura um tanto quanto especial que se chama “homem”, ao qual o visitante era chamado a se identificar vendo-se através do olhar dos outros seres que ele viu e encontrou na trilha.

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diário de viagem

De Xangai Foto: Zhu Difeng

de perto,

Jornalista relata a inesperada visita a dois continentes, em apenas dez dias Thaís Brianezi | jornalista

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E

eis que estou no aeroporto de Guarulhos, no dia 14 de abril de 2012, rumo a Xangai e a Berlim. Dois continentes, em apenas dez dias de viagem. Como fui parar na China e na Alemanha, de uma só vez? Eu brinco que, por pura sorte, desempenhei com satisfação a missão de substituta de luxo. A fundação alemã Friedrich Ebert Stiftung (FES) convidou o professor Marcos Sorrentino, meu orientador no doutorado em Civalercultural


a Berlim

ência Ambiental na Universidade de São Paulo, a apresentar a perspectiva brasileira sobre a economia verde, em um seminário internacional sobre perspectivas para a Rio+20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. O evento seria em Xangai e ele valercultural

teria que fazer uma apresentação em inglês – idioma no qual não se sente confortável. O Marcos, então, indicou-me para ir em seu lugar e juntos preparamos a apresentação. Berlim entrou nessa história de maneira ainda mais inesperada. Acho que foi obra do elefante

Foto: Heitor Costa

nada é normal

de madeira que fica na estante da minha sala, com o rabo virado para a porta. Dizem que dá sorte, né? Na sexta-feira anterior à viagem, passei o dia sem internet; o servidor estava fora do ar. Já no fim da tarde, perto das 17h30, resolvi ir a uma lan house checar e-mails – e 57


Xangai é conhecida como a cidade mais cosmopolita da China

No Instituto de Xangai para estudos internacionais até para tirar foto oficial os lugares dos palestrantes estavam marcados

Fotos: Arquivo pessoal

encontrei uma mensagem urgente da FES, perguntando se eu toparia ir de Xangai a Berlim, para participar também da MacPlanet.com (uma espécie de Fórum Social Mundial europeu, com foco ambiental). O professor uruguaio que iria falar lá sobre as visões da economia verde na América Latina teve um imprevisto e eu o substituiria. Claro que peguei imediatamente o celular e telefonei para dizer que toparia, sim. E corri para casa para colocar mais umas roupas na mala, que já estava pronta. A China, na verdade, estava em meus planos. Mas no plano do “um dia”: meu marido e eu planejávamos juntar dinheiro e passar umas

férias lá, visitando a avó, tios e primos dele em Cantão, no sul do país. O Paulo é brasileiro, mas tem puro sangue chinês: seus pais migraram ainda crianças para São Paulo, fugindo da pobreza e da fome durante o governo Mao. Minha sogra, In Fan (que aqui virou Silvana), saiu de lá com nove anos, em 1964, e cruzou os oceanos Índico e Atlântico durante 54 dias. No meio do caminho, o navio parou durante uma semana na África no Sul: havia rumores de uma “revolução” no Brasil e eles aguardavam mais notícias para seguir viagem. Meu sogro, Leong, veio dois anos depois, também criança – e aqui as famílias amigas se reencontraram. Desde 2010, tenho sobrenome chinês: Thaís Brianezi Ng. Em can-

tonês, pronuncia-se “huuummm”, ou algo parecido, mas no Brasil ficou “enegê”. Isso mesmo: Ng, “ene maiúsculo e g minúsculo”, como o Paulo me ensinou. Bem que ele me alertou sobre a estranheza que o novo sobrenome causaria nas pessoas. E tive prova dela quando fui renovar meus documentos, depois do casamento: a funcionária da Secretaria de Segurança Pública achou Ng tão engraçado que chamou vários colegas para verem minha carteira de identidade. “Então por que você mudou o sobrenome?”, vocês devem estar

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Foto: Claudio Zaccherini

se perguntando. Eu não iria mudar. Thaís Brianezi, apenas, é como sempre assinei matérias jornalísticas e artigos acadêmicos. E é como continuo assinando ainda hoje. Brianezi, aliás, é a única coisa que permaneceu do pai biológico, que se separou da minha mãe quando eu tinha três anos e nunca mais nos procurou. Além disso, sou feminista: no ano em que casei, caminhei por dez dias de Campinas a São Paulo, com outras duas mil militantes de todo o Brasil. Contando os desvios, percorremos 110 quilômetros, em uma manifestação da Marcha Mundial das Mulheres. Acontece que, apesar de todas essas prerrogativas, a tradição chinesa me conquistou: decidi incorporar o sobrenome do marido quando minha sogra contou que iriam plantar uma árvore em Cantão em meu nome, no jardim da família. valercultural

À primeira vista Conhecer o jardim dos Ng continua no plano do desejo. Xangai, porém, agora faz parte da história vivida. Dizem que a primeira impressão é a que fica. De Xangai, minha primeira lembrança é o trajeto do aeroporto até o hotel, mais de uma hora de puro engarrafamento, em que o motorista conversava comigo em mandarim. Ele sabia que eu não estava entendendo uma só palavra, mas seguia falando sem parar, gesticulando, mostrando-me os pontos turísticos do caminho. E eu, para interagir de alguma forma, a cada prédio, parque ou ponte que ele apontava, sacava a câmera e tirava uma fotografia. Xangai é conhecida como a cidade mais cosmopolita da China. É também a mais populosa, com cerca

No engarrafamento em Xangai, motorista insistia numa “conversa” em mandarim

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Descobri, triste, que o sistema educacional chinês não é a maravilha que os rankings mundiais apontam”

Foto: Arquivo pessoal

Foto: TonyV3112 / Shutterstock.com

Muita coisa em Xangai lembra o Japão: as construções futuristas, as ruas cheias de gente, a convivência entre o moderno e o tradicional

a convivência entre o moderno e o tradicional (maravilhosos jardins do período imperial e templos budistas destoando da agitação urbana). Havia, também, certa formalidade comum: no Instituto de Xangai para Estudos Internacionais, onde aconteceu o seminário sobre a Rio+20, por exemplo, o lugar de cada palestrante estava previamente assinalado até na hora de tirar a foto oficial do evento. Mas em vários outros aspectos, senti os chineses mais parecidos com os brasileiros do que com os japoneses. As pessoas em Xangai pareciam mais despachadas, falantes, principalmente fora do ambiente de trabalho. Tendo me conhecido há poucos minutos, convidaram-me para tomar cerveja, queriam me mostrar a cidade e, principalmente, fazer várias perguntas sobre o Brasil. Nossa economia vai superbem, não é mesmo? Temos mesmo uma democracia sólida, aberta à participação popular? E a Copa do Mundo de 2014? E as Olimpíadas de 2016? E eu, de minha parte, queria saber principalmente como eles vivenciavam tantas mudanças recentes na

de 20 milhões de habitantes. Graças à posição privilegiada na costa leste do país, ela se consolidou como o grande centro financeiro e comercial da China continental. Uma de suas atrações turísticas, o Bund, revela bem essa pujança: de um lado do rio Huangpu está o centro financeiro antigo, com arquitetura inglesa imponente; do outro, o centro novo, repleto de arranha-céus. O colega que me levou lá, à noite, chama-se Tony. Na verdade, ele é Tang Weiqi, mas os chineses costumam adotar um nome ocidental para interagir conosco, sabendo que é inútil tentar nos ensinar a pronúncia correta de seus nomes de batismo. Pois bem, Tang Weiqi Tony desculpou-se porque a vista do Bund não era tão bonita quanto ele se lembrava, já que a política de eficiência energética do governo chinês obrigara os prédios a reduzirem sua iluminação. Tomei um susto: para mim, já estava lindo e superiluminado daquele jeito; eu só havia visto tanto néon assim no Japão. Aliás, muita coisa em Xangai me lembrou o Japão: as construções futuristas, as ruas cheias de gente,

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Foto: Heitor Costa

China e o que pensavam do governo ditatorial. Em geral, essas conversas revelavam quanto a imagem que tínhamos um do outro era baseada em propaganda ou em estereótipos reforçados pelas agências de notícias norte-americanas e europeias. Descobri, triste, que o sistema educacional chinês não é a maravilha que os rankings mundiais de habilidades em leitura e matemática me faziam crer. E eles também se decepcionaram ao saber que a pobreza no Brasil tem diminuído, mas que as desigualdades entre ricos e pobres se mantêm. Claro que nem tudo o que eu havia escutado aqui sobre a China

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era mentira. A navegação na web, de fato, é censurada. Os jovens de lá não podem acessar ao Facebook, por exemplo. Como consolo, o governo criou uma rede social semelhante, só para chineses. Descontadas as 24 horas de avião para chegar a Xangai e as 12 horas até Berlim, passei menos de quatro dias na Ásia. O suficiente para dar uma entrevista, em inglês, para a Rádio Internacional da China, estatal, como quase tudo por lá. Mas não o bastante para matar minha curiosidade sobre o país – ou para conseguir escrever sobre ele algo além dessas impressões tão subjetivas.

, em primeiro A moderna Berlim utsche Bahn em De plano, edifício da tz Pla Potsdamer

Berlim impactante Em Berlim passei quase o mesmo período: pouco mais de quatro dias. A diferença é que lá tive dois dias livres – e aproveitei para conhecer pontos turísticos que dão testemunho dos principais acontecimentos do século 20. O nosso breve e intenso século 20, como diria a historiador Eric Hobsbawn. Está tudo lá, de construções nazistas que nos lembram o horror da Segunda Guerra Mundial aos vestígios do muro que contam a tensão da Guerra Fria.

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Fotos: Arquivo pessoal

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A visita ao que restou do muro de Berlim também foi marcante”

Foto: Heitor Costa

O passeio mais impactante que fiz foi a Sachsenhausen. Se é que se pode chamar de passeio a ida a um antigo campo de concentração. Logo no portão de entrada, os dizeres “Arbeit macht frei”, ou seja, “o trabalho liberta”. Para lá foram enviadas, aproximadamente, 200 mil pessoas perseguidas pelo regime nazista. Oficialmente, elas estavam presas até cumprir a pena de trabalho forçado em uma das fábricas ao redor do campo. Há inclusive uma placa que destaca quem se beneficiou dessa mão de obra escrava, na qual aparecem nomes conhecidos como Siemens, BMW, Daimler-Benz e Volkswagen. Na prática, os prisioneiros trabalhavam até morrer. E o tempo de vida em Sachsenhausen, com frio, fome e outros maus-tratos,

era curto: na fábrica de ladrilhos, a mais pesada, sobrevivia-se, em média, 17 dias. A visita ao que restou do muro de Berlim também foi marcante. A explicação dada pelo guia do porquê o muro foi construído parece ficção, realismo fantástico. Inicialmente uma barreira de arames farpados, depois um obstáculo duplo de tijolos, o muro não dividia a cidade em dois, como eu havia aprendido na escola. Ele simplesmente cercava toda a Berlim ocidental, isolando a República Democrática Alemã (comunista) dessa verdadeira ilha do livre mercado. O objetivo maior

era evitar que os moradores da Alemanha Oriental migrassem para a República Federal Alemã e, de lá, a outros países capitalistas. Da noite para o dia, na madrugada de 13 de agosto de 1961, muitas famílias de Berlim foram simplesmente separadas pelo que os alemães chamavam de “muro da vergonha”. Quando o muro foi derrubado, em 1989, imaginou-se que o ideário liberal havia triunfado para sempre: era o fim da história. Mas a própria Berlim provou que essa teoria estava errada, com o caso emblemático da praça Potsdamer. Outrora uma região central da cidade, durante a valercultural


a homenagem não acabasse virando piada, a solução encontrada foi cobrir esse edifício com uma espécie de papel de parede externo, imitando a fachada de um prédio moderno, cheio de lojas. Se você passa por lá distraído, nem percebe a maquiagem, jura que são lojas de verdade. Mas, de perto, tanto em Berlim quanto em Xangai, as coisas não são tão normais.

Foto: Heitor Costa

Guerra Fria a Postdamer virou um espaço fantasma, comprimido entre as duas paredes do muro de Berlim. Quando a Alemanha foi reunificada, tentou-se fazer da praça um símbolo do capitalismo vencedor e grandes empresas ganharam incentivos para erguer prédios sofisticados, como o Sony Center. Uma construção antiga permaneceu em pé, porém, sem que a prefeitura conseguisse interessados em reformá-la. Então, para que

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literatura

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Bárbara Lima e Leandro Curi | jornalistas

Com a proximidade da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, livros sobre o tema ganham mais espaço e atenção nas editoras

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Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 fizeram o mundo voltar os olhos para o Brasil. Seja a Fifa, o COL, o COI, a imprensa internacional, os turistas, muita gente está de olho neste país emergente que em uma tacada só conseguiu o direito de sediar em um curto espaço de tempo as duas principais competições esportivas do universo. Nessa mesma onda, as editoras de livros estão surfando em busca de novos lançamentos. Futebolísticos ou olímpicos. Não importa. É mais comum, claro, o interesse do leitor por biografias de grandes esportistas. E elas,

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Biografias de craques do esporte que você não pode deixar de ler

Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha Autor: Ruy Castro

Primeiro Tempo – O início da trajetória de Pelé com comentários e depoimentos inéditos

Novos selos

Organização: Luiz Felipe Heide Aranha Moura

Agassi – Autobiografia Autor: Andre Agassi

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de uma maneira geral, não atingem apenas o nicho esportivo. Vão além. Não só porque os atletas dignos de um livro assim são também personalidades do mundo, mas principalmente porque os textos não se limitam apenas ao esporte, mas se aprofundam na vida do protagonista. Vai fundo na história de cada um, desde a infância até o auge, passando por todos os desafios da vida de um vencedor. Só que o desafio agora é outro. Às vésperas da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, as editoras estão em busca de novos lançamentos esportivos. A maioria delas vê agora uma oportunidade de alavancar o segmento no país. Muito embora o esporte seja um dos fatores que mais aproxima o brasileiro da literatura. Para Ruy Castro, autor da bíblia das biografias esportivas, o livro Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha, o boom do tema esporte no mercado editorial começou há pelos menos 15 anos. O livro, lançado em 1995 pela Companhia das Letras, recebeu em 1996 o Prêmio Jabuti na categoria “Livro do Ano de Não Ficção”. “As editoras já não têm mais medo de publicar livros do gênero. Até 1994 ou 1995, eles eram tabu”, afirma o jornalista, colecionador de dezenas de títulos sobre o Flamengo e que acaba de contribuir com mais um deles: a terceira e definitiva edição de O Vermelho e o Negro – Pequena Grande História do Flamengo, publicado pela Companhia das Letras.

Se antes era tabu, hoje o potencial do mercado é enorme devido à proximidade de eventos como Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos nos próximos quatro anos. Por conta disso, várias editoras que não possuem o DNA esportivo estão desenvolvendo novos selos para atender a esse mercado específico. A página principal da loja virtual da Cia. dos Livros, por exemplo, tem dois destaques que levam o usuário diretamente para uma seleção de livros e curiosidades sobre futebol e esportes olímpicos. A editora é responsável por duas das biografias preferidas entre os amantes do esporte: Diamante Negro (que conta a trajetória de Leônidas da Silva) e Fio de Esperança (sobre Telê Santana), ambas escritas por André Ribeiro. Outra editora, a Magma, já tem quatro títulos esportivos em sua bibliografia. Um livro sobre o centenário do Corinthians (100 Anos de Paixão), outro sobre Pelé e dois a respeito do Santos (100 Anos de Futebol Arte e

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Às vésperas da Copa do mundo e das Olimpíadas no Brasil, as editoras estão em busca de novos lançamentos esportivos

Considerado o rei do futebol, Pelé também tem livros sobre sua trajetória

3 x Tri). Outros três títulos estão em produção ou prestes a serem lançados: o Almanaque do Santos Futebol Clubes, Corinthians, Paixão Eterna e a biografia de Marcelinho Carioca. Essa aposta sobre clubes brasileiros ou ídolos que remetam diretamente a algum time, como no caso de Marcelinho Carioca com o Corinthians, é uma espécie de moda nesse mercado. Como a maioria dos “leitores esportivos”

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Diamante Negro (Biografia de Leônidas da Silva) Autor: André Ribeiro

não se interessa por outros gêneros (isso não é regra, mas sim tendência), buscá-lo por meio da paixão pelo esporte é um caminho muitas vezes mais curto. “Os livros com temas esportivos atraem um público que não lê, necessariamente, outros títulos. Os ligados ao futebol, por exemplo, cativam um público com paixão clubística e cada vez mais transformam esses produtos editoriais em coleções históricas”, comenta Marco Piovan, editor da Magma Cultural. Essas coleções históricas, normalmente, vêm seguidas de títulos e têm como base os registros fotográficos das conquistas. Por exemplo, o Corinthians, campeão pela primeira vez da Libertadores em 2012, vai lançar em breve um livro fotográfico com o nome de Libertados. E o Palmeiras, campeão da Copa do Brasil, também prepara algo nessa mesma linha.

Crescimento econômico

Ayrton Senna: Uma Lenda a Toda Velocidade Autor: Christopher Hilton

A Luta de Lance Armstrong Autor: Daniel Coyle Tradução: Selma Ziedas

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De acordo com Piovan, não são apenas as conquistas que alavancam o mercado de livros esportivos no Brasil. Segundo ele, o crescimento econômico do país ajuda (e muito!) no interesse do brasileiro por literatura. Seja ela esportiva, romancista, biográfica... “O crescimento da economia e a ascensão da população base da pirâmide para a Classe C revelam, em parte, o acesso desse público ao mercado editorial”, disse. É evidente, no entanto, que com a proximidade da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Brasil, haja um crescimento maior no nicho esportivo. E se há demanda, nada melhor do que as editoras pensarem em como ofertar. “O crescimento nas vendas dos títulos esportivos, especificamente, se deve à fomentação de novos títulos nessa área. O mercado editorial descobriu esse nicho e com o apoio da mídia especializada conseguiu atingir uma grande parcela da população que consome livros”, finaliza o editor. Ainda restam pouco menos de dois anos para a Copa do Mundo e pouco menos de quatro para as Olimpíadas no Rio de Janeiro. Tempo suficiente para que o mercado de literatura esportiva marque um golaço e conquiste muitas medalhas no Brasil.

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Ufam lança série Educação Física

Também de olho nesse mercado, a Valer Editora acaba de lançar a série Educação Física, em parceria com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam). São 12 obras no total. Algumas já foram lançadas: Handebol – Reflexões didático-pedagógicas e técnicas; Futebol de Campo; Novos olhares no futsal; Natação; Ginástica Rítmica e Voleibol: Fundamentos e Metodologia. Entre as outras modalidades que também ganharão livros estão o atletismo e o tênis de mesa, ambos em processo de finalização. “Esse é o momento do esporte no Brasil. O país vive essa expectativa com a aproximação

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da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016”, comenta Rita Puga, uma das coordenadoras da série de livros esportivos, que garante: “Fomos além da técnica, queremos mostrar o lado mais humanista do esporte”, pontua. A Valer também já publicou outros livros esportivos que são sucesso: Baú Velho, de Carlos Zamith, que resgata a memória dos jogadores e clubes amazonenses, e Pepeta: Páginas de Vida e História, de Carmen Nóvoa e Silva, sobre o ex-jogador amazonense Pepeta.

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Michael Jordan: a História de um Campeão e o Mundo Que Ele Criou Autor: David Halberstam

Entrevista com

Paulo Vinícius Coelho Jornalista desde os 18 anos. Foi repórter da revista PLACAR, repórter, editor e colunista do jornal O Estado de S.Paulo e desde 2000 é comentarista dos canais ESPN. Cobriu as Copas de 1994, 1998, 2006 e 2010.

Fio de Esperança (Biografia de Telê Santana) Autor: André Ribeiro

Transformando Suor em Ouro Autor: Bernardinho

Cite algumas biografias importantes, na sua opinião. Vou dizer cinco grandes livros que têm a ver com grandes personagens: A Luta – Norman Mailer (a histórica vitória de Muhammad Ali sobre George Foreman, no Zaire, em 1974); Estrela Solitária – Ruy Castro (sobre Garrincha); Fio de Esperança – André Ribeiro (sobre Telê Santana); Gracias Vieja (autobiografia de Di Stéfano – não tem no Brasil) e Diamante Negro – André Ribeiro (sobre Leônidas da Silva). Certamente a sua paixão pelo esporte te aproximou da leitura. Quanto ela foi fundamental nesse processo? Todo dia é. Digo isso porque a cada vez que você lê, ou relê, descobre uma história

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Foto: Joel Silva/Folhapress

nova. Agora, por exemplo, estou lendo a biografia do Marcelo Bielsa. É esquisito, porque o cara está vivo, em plena carreira. Chama-se Último Romântico e é ótimo. Conta, por exemplo, as razões pelas quais ele mudou o time inteiro da Argentina (meio time, na verdade), antes do jogo contra a Suécia, responsável pela eliminação na primeira fase da Copa do Mundo de 2002, na primeira fase. Cada dia há mais publicações de livros sobre esporte. Você acha que com a proximidade da Copa e das Olimpíadas no Brasil isso vai aumentar? valercultural

O Brasil não está tão atrás assim. Se você visita livrarias na Itália, percebe isso. Na Inglaterra, é diferente. Tem muita coisa! Muita mesmo. Só que tem livros de clubes aos montes. Tem muita coisa ruim também. A questão é o mercado editorial estar aberto para publicar tudo o que for bom. Está mais disponível, mas não totalmente. Agora, não adianta publicar uma biografia do Neymar aos 20 anos e outra aos 25. Fala um pouco sobre as suas publicações. Quais são até aqui? Pretende lançar outros projetos? Quais?

Tem seis livros: Jornalismo Esportivo, Futebol Passo a Passo (para o Lance!), Os 50 maiores jogos das copas, Os 55 maiores jogadores das Copas, Os 100 maiores jogadores do futebol brasileiro e Bola Fora. Eu gosto mesmo é do Bola Fora. É a história do êxodo do futebol brasileiro e, embora não seja um documento definitivo, conta e desmistifica muita coisa. E devo lançar até o final do ano Marcas de São Marcos – A história do maior goleiro da história do Palmeiras. Mas estou cru, ainda.

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polĂ­tica indigenista

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Um panorama da relação atual das tribos do rio Negro com a Sociedade Nacional Marcus Stoyanovith | jornalista

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Estado. No alto rio Negro, os indígenas passaram a protagonizar, nos últimos 40 anos, a sua própria história e destino na relação com o Estado e com os demais segmentos da sociedade nacional. Por isso, se sentem mais fortes como “índios em movimento” do que como “movimento indígena”. E em movimento está o gigante rio Negro, o maior afluente do rio Amazonas. Suas águas, ao longo do seu curso de 1.700 quilômetros, desenham os contornos das terras que abrigam 100 mil índios de 23 etnias. Cada qual com a sua tradição e maneira de agir, pensar, viver e conviver. Mas, para eles, ser diferente não significa ser fragmentado. A multietnicidade nessa região é considerada uma força coletiva no enfrentamento dos desafios que move a todos, independentemente de serem Tukano, Tariana, Baniwa, Baré, Yanomami, Dessana, Maku ou mesmo povos

Fotos: Marcus Stoyanovith / Wilson Nogueira

icatrizes da violência física e ideológica do passado estão na memória dos indígenas do rio Negro-AM. As lembranças – às vezes pesadelos – transformam-se em exemplos de resistência e compreensão de fatos e acontecimentos que os ajudam nas lutas do presente. Lutas que lhes garantiram, na Constituição de 1988, o direito à terra e de serem tratados como índios e portadores de culturas diferenciadas. Conquistaram também, na Carta Magna, o reconhecimento político das suas instituições reivindicatórias. Assim se movimentam fortalecidos na batalha contra o preconceito de que seriam povos sem alma, sujos, preguiçosos e incapazes. Com apoio da Igreja progressista, setores republicanos do Estado e ONGs, mantêm-se em movimento, para que essas vitórias transbordem do papel para políticas públicas de

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Não é o estar nu e com a cara pintada que define um ser índio ou não. O que nos identifica como índio é a nossa alma, a nossa crença, a nossa cultura”

de outros territórios. Eles se unem na diferença e, em qualquer lugar do mundo, se reconhecem e querem ser reconhecidos como uma grande família, como parentes. E como parentes se movimentam para se manter fortes contra o poder econômico, para avançar na demarcação e regulamentação das suas terras e assegurar participação na sociedade nacional sem negar suas tradições (mitos, ritos, crenças e cultura). Feita conforme o modelo da organização social indígena, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), criada em 1987, com sede em São Gabriel da Cachoeira, abriga 90 associações que se relacionam como mais de 35 mil índios de 23 etnias, a maioria fixada em aldeias, sítios e comunidades. Há aldeias que se localizam até 17 horas, em viagem de voadeira, das cidades de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos. A sobrevivência da Foirn está no arco de parceiras com entidades como a Organização das Nações Unidas (ONU), Coiab, Instituto

Socioambiental (ISA) e instituições governamentais. A federação e as associações funcionam como uma ponte política entre o Estado e instituições não índias com as aldeias, cujas lideranças são os caciques, capitães e pajés. “Somos interlocutores dos líderes das aldeias, sítios e comunidades”, explica o índio Tukano Maximiliano Corrêa Menezes, 51, dirigente da Foirn. Ele sublinha que esse comportamento político é a essência da organização que existe para manter viva a tradição. E essa expressão vem gerando um conflito que está se fortalecendo na medida em que os indígenas avançam em suas organizações. É que para a sociedade branca, ou nacional, o índio é aquele que vive na aldeia, julgando como não índios aqueles que estão na cidade, sem pintura no rosto e vestidos.

Não por serem exóticos “Não é o estar nu e com a cara pintada que define um ser índio ou não. O que nos identifica como ín-

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dio é a nossa alma, a nossa crença, a nossa cultura”, corrige André Baniwa, 43, vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira. Para ele, vê-los por esse lado exótico, fortalece os defensores da tese de que o índio fora da aldeia não precisa de tanta terra. Esse discurso, segundo ele, favorece o projeto de redução dos territórios indígenas, inclusive, os já demarcados. Mas, explica André, a terra é tão sagrada para o índio quanto o cosmos que guia as suas crenças, alimentação e cultura. “Onde o branco vê uma montanha, nós vemos a casa das árvores, das plantas e do iaçá (quelônio da terra); onde ele vê um rio, nós vemos a casa dos peixes. E nós fomos ensinados a cuidar da nossa terra com essa natureza”, explica o Tukano Maximiliano. Ele diz que, ao se utilizar da tecnologia e dos modelos de Eco-

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nomia, Educação e Saúde da Sociedade Nacional, o índio está no seu direito constitucional e não deixa de ser índio por isso. Para ele, essa é uma maneira de conviver com o “branco” e que tal comportamento só fortalece a luta pela tradição, facilitando o acesso à informação e a comunicação entre os mais velhos e os jovens. Aliás, Maximiliano ressalta que os mais velhos são resistentes a essa teoria, ao contrário dos mais jovens. André Baniwa é um pouco mais cauteloso, porém é de acordo que essa forma de vida fortalece a manutenção da tradição. “Mas temos que manter viva a cultura e, isso só é possível, ensinando aos mais jovens, nossas crenças e nossos costumes. Tudo isso, por meio de uma Educação diferenciada que tenha nossa ciência, tecnologia e nossas tradições”, observa André.

Onde o branco vê uma montanha, nós vemos a casa das árvores, das plantas e do iaçá (quelônio da terra); onde ele vê um rio, nós vemos a casa dos peixes. E nós fomos ensinados a cuidar da nossa terra com essa natureza”

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A comunicação via radiofonia A Foirn é a captadora das diferentes demandas das filiadas instaladas em São Gabriel da Cachoeira, alto rio Negro, Santa Isabel e Barcelos, médio rio Negro. Cada cidade, distante mais de 100 quilômetros entre si, onde o transporte preponderante são os barcos e canoas. A comunicação com as mais de 90 Associações se dá em reuniões mensais, semestrais e anuais e no dia a dia, por meio de atendimentos via radiofonia, a única tecnologia de comunicação disponível. Com operadores que falam mais de uma língua indígena, as lideranças das comunidades recebem ou enviam contatos diários para solução de problemas de saúde, de abastecimento de produtos, ou mesmo para agendar encontros.

São 700 comunidades entre os municípios de Barcelos, Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira e nenhuma com menos de doze horas de distância (ida e volta) de suas sedes municipais. “Por meio da radiofonia, são providenciados resgates de índios com picadas de cobra, acometidos de malária, diarreia e tuberculose e são informados os calendários de vacinas”, explica Maximiliano. Se a radiofonia ajuda a salvar centenas de vidas, a rádio de Ondas Médias, operada na sede da Foirn, em São Gabriel da Cachoeira, leva notícias, orientações e cultura para as comunidades. O programa Vozes do rio Negro, comandado pelo índio Baré Nivaldo da Silva Cordeiro, é transmitido às terças-feiras, das 6 às 7h. “Essa é uma forma de nos fazermos mais presentes e atualizados com os acontecimentos”, diz Maximiliano, que registra o envolvimento das comunidades entre si em razão do programa.

Tutela nunca mais Maximiliano diz que os índios não entendiam porque eram considerados incapazes. Não entendiam, reforça Max, porque não sabiam o que o homem branco dizia sobre eles no passado. “Hoje também falamos o português e podemos dizer que não aceitamos esse julgamento. Mas até a Funai ainda hoje nos trata como tutelados”, assegura o Tuka-

no Maximiliano. “A Constituição de 1988 nos garante autonomia e entendemos que o Estado foi criado para proteger todos os seus cidadãos. Então todos deveriam ser tutelados”, questiona André, respondendo que não. “Somos cidadãos. Somos diferentes. Somos brasileiros, e é assim que desejamos ser respeitados”, diz o líder Baré. Gersen dos Santos Luciano Baniwa, em seu estudo sobre O que é preciso saber do índio brasileiro no Brasil de hoje escreve que as crenças, os valores e a tecnologia

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Até a Funai ainda hoje nos trata como tutelados”

provêm de um conhecimento prático e profundo, gerado a partir de milhares de anos de observações e experiências empíricas que sempre foram compartilhadas para garantir um modo de vida específico. E ele afirma que isso descontrói a tese de que os índios são incapazes de gerar sua sobrevivência, precisando dos brancos para ensiná-los a viver. “Se existem índios que passaram a sobreviver sob a tutela do Estado é porque foram empurrados pelos colonizadores para tal condição”, escreve Gersen Baniwa. Quando citou a Fundação Nacional do Índio (Funai), Maximiliano lembrou a origem da instituição com o nome de Serviço de Proteção ao Índio-SPI, forjada para decidir sobre tudo o que dizia respeito aos índios sem que esses tivessem o

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direito “nem de abrir a boca”. Maximiliano afirma que essa atitude foi a responsável pelos movimentos coletivos, a partir dos anos de 1970. A pressão foi tamanha que obrigou o Governo a uma opção camaleônica, transformando o SPI em Funai. Os movimentos continuaram e, atualmente, Maximiliano comemora o esvaziamento da Funai, com a descentralização dos serviços de saúde para a Funasa, educação para o Ministério da Educação e meio ambiente para o Ministério homônimo. Essa conquista possibilitou uma maior participação dos indígenas e um caminho para o fim da tutela. André informa que o caráter de tutelados tira o direito de planejarem

suas próprias vidas, uma contradição com o que determina a Constituição.

Retratos locais Em São Gabriel da Cachoeira, um dos desafios é a Saúde da Mulher Indígena, segundo a professora aposentada e atual dirigente da Associação dos Artesãos Indígenas (Assai), criada em 1999, a índia piratapuia Cecilia Barbosa Albuquerque. “A mulher indígena obteve alguns avanços e hoje já pode viajar sem o marido para os encontros ou seminários; ela é, cada vez mais, consciente de que precisa fazer exames preventivos, mas ainda não conse-

A mulher indígena obteve alguns avanços e hoje já pode viajar sem o marido para os encontros ou seminários; ela é, cada vez mais, consciente de que precisa fazer exames preventivos, mas ainda não consegue planejar a gravidez”

gue planejar a gravidez”, diz Cecília. O assunto deve entrar na pauta de todas as instituições envolvidas, principalmente com programas de orientação para os conselhos locais. “A população pode crescer, mas sem ser ruim para a mulher”, se preocupa a piratapuia. O município foi pioneiro ao eleger duas lideranças indígenas que formaram chapa para a prefeitura, em 2008: Pedro Garcia, da etnia Tariana, prefeito; e André Baniwa, vice-prefeito. No final do mandato da dupla, uma certeza é latente: ainda há muito que amadurecer nessa área da política pública. Mas, a cidade vive um feito inédito em todo o Brasil: em razão da aprovação da Lei Municipal que dá às línguas Tukano, Nheengatu e Baniwa, o status de línguas co-oficiais que, juntas à oficial língua Portuguesa, devem constar no currículo das escolas do município e ser oferecidas em atendimentos de quaisquer serviços públicos. Em Santa Isabel, o amadurecimento político, para o líder Baré Marivelto Rodrigues Barroso, chegou cedo. Desde os 16 anos, no movimento indígena, aos 21 anos,

As lideranças das comunidades de Barcelos estão preocupadas também com o crescente trabalho semiescravo da colheita da piaçava, matéria-prima usada no artesanato indígena da região. Além da exploração da mão de obra indígena, a piaçava já está em falta na cidade, o que torna o trabalho dos artesãos e artesãs cada vez mais difícil.

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Temos terra, temos gente para produzir com potencial para comercialização, mas não temos como escoar nem para quem vender o excedente da produção. O comércio local não compra nossa produção”

já preside a Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN), criada em 1996, com atuação em 13 localidades com as mesmas etnias do alto rio Negro, e conta com a parceria do trabalho do Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya), uma ONG que atua em nove comunidades Yanomami e atende cerca de 500 índios na área de educação e saúde. Marivelto diz que a participação deve se dar com representações na política estadual e nacional, porque, segundo ele, os problemas são locais, mas a solução é externa. Ele cita como exemplo a necessidade de continuidade das soluções para a educação indígena, saúde e agricultura familiar. As pescas comercial, esportiva e ornamental, praticadas de forma

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predatória, são os principais problemas da região. Elas se estendem, cada vez mais, para dentro das comunidades indígenas. Isso afeta a sobrevivência de várias famílias que têm o peixe como alimento principal. “Existem os postos de acesso, mas depois de pagarem uma pequena tarifa, não há mais fiscalização”, informa Marivelto, deixando claro que os indígenas não são contra a pesca esportiva, desde que praticadas com regras que não prejudiquem os índios e demais moradores da região. As lideranças estão em movimento para fazer valer o ordenamento pesqueiro. O objetivo é um controle da pesca, pois as dificuldades de se encontrar peixe estão aumentando e o exemplo é a invasão das comunidades por pescadores de fora da região. O líder indígena

lembra que a agricultura familiar também está na pauta. “Temos terra, temos gente para produzir com potencial para comercialização, mas não temos como escoar nem para quem vender o excedente da produção. O comércio local não compra nossa produção. Estamos esperando uma posição da Caixa Econômica para dar prosseguimento aos projetos de Bases de Serviços de Comercialização (BSC)” . Na área ambiental, um problema grave afeta os três municípios, mas em Santa Isabel se apresenta com maior gravidade. Trata-se da extração de seixo do leito dos rios. Essa atividade é danosa ao meio ambiente porque o seixo serve de produção primária para do fitoplâncton (microrganismos aquáticos que possuem capacidade fotossintéti-

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ca), base alimentar de toda a fauna dos rios. A situação já é do conhecimento dos órgãos dos governos estadual e federal e as lideranças indígenas lutam para que haja um controle ou a suspenção imediata desse tipo de extração. Em Barcelos, as terras indígenas ainda não foram demarcadas, embora os estudos para isso já tenham sido concluídos. São consideradas terras indígenas as dos rios Aracá, Demeni, Padauari, à margem direita do rio Negro, a partir de Barcelos até o rio Jurubaxi, e os rios Kiuini e Kaurés. “Vamos reunir com a Funai e a Foirn, em São Gabriel da Cachoeira, para tratarmos das demarcações”, assegura a presidente da Associação Indígena de Barcelos (Asiba), a índia Baré Dilza Tomas de Melo, 56. Ela explica que as terras para o índio não têm valor de mercado; têm valor espiritual segundo os princípios de cada cultura. Dona Dilza, como é conhecida na cidade, fica feliz com o aumento do número de associados e faz as contas: “Uma média de três ou quatro todos os dias”. O motivo de tanta adesão, segundo dona Dilza, são resultados da organização e benefícios alcançados na área de saúde. Ela destaca que os índios nas aldeias já aceitam o remédio do branco e os doutores brancos já reconhecem o poder de cura das plantas medicinais, utilizadas há séculos pelos parentes. “Mas eles estão se associando e nós estamos com problemas. As mulheres precisam de equipamentos para fazer seus exames; os medicamentos e as vacinas não podem atrasar”, diz a presidente. Com a diminuição da discriminação contra os povos indígenas na sede do município de Barcelos,

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Nossa luta é para que as comunidades recebam escolas e que ensinem a nossa língua, mais o inglês e o espanhol”

renciada é a falta de compreensão da Seduc para esse aspecto. O fato mais grave na ausência de um ensino que esteja voltado aos índios é o esvaziamento das aldeias, sítios e comunidades pelos jovens que se deslocam para as cidades e acabam se envolvendo com drogas e álcool. “Nossa luta é para que as comunidades recebam escolas e que ensinem a nossa língua, mais o inglês e o espanhol”, diz dona Dilza. O ideal, para ela, é que educação diferenciada se implante em toda a região do rio Negro.

Agenda multiétnica o número de jovens estudantes que permanecem nas escolas aumentou nos últimos cinco anos. “A criança ou o jovem negava a sua identidade para evitar a discriminação, mas isso de pouco valia. A ex-prefeita da cidade Alberta Oliveira dizia, na nossa frente, que em Barcelos não existia índio. Hoje é diferente. Eles sentem mais força no movimento indígena que chama a atenção do mundo todo e isso trouxe mais respeito para nós”, reflete dona Dilza. Um dos desafios na área da educação também é a implantação de uma educação diferenciada. A ideia de se ter uma educação diferenciada em todas as etapas do ensino está mais forte porque tem o apoio das lideranças das aldeias, comunidades e sítios. Dona Dilza explica que todos estão bem informados e sabedores dos seus direitos e seus deveres. “Os índios lutam, por exemplo, por uma educação que considere, no seu conteúdo curricular, a crença e os rituais, as formas de pesca e caça, a dança, e música e os modos de como devemos nos relacionar na natureza”, exemplifica. O que dificulta a implantação da educação dife-

A Foirn tem uma agenda multiétnica que já foi acordada entre as lideranças formais (das organizações e associações) e tradicionais (das aldeias, sítios e comunidades). Os tópicos relevantes da agenda são: demarcações e regulamentações das terras indígenas; luta pelo fortalecimento da identidade indígena; programa de sustentabilidade; participação dos conselhos locais; melhorias no atendimento na área da saúde; instalação de escolas nas comunidades; agricultura familiar; universidade indígena com ensino diferenciado. Em seu estudo, Gersen Baniwa escreve que as tradições ainda são valorizadas na educação indígena. Assim, essa afirmação justifica o desejo das lideranças em favor de uma educação diferenciada. E, ela já está respaldada na Constituição Federal, e na Lei de Diretrizes Básicas – LDB, com a resolução n.° 3, de 10, de novembro de 1999, do Conselho Nacional de Educação, que define os elementos básicos para a organização, estrutura e funcionamento da escola Indígena. E

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Coordenadas de cada cidade

SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA Em São Gabriel da Cachoeira, 85% da população de 37.300 habitantes (IBGE-2010) pertencem a uma das 23 etnias indígenas. Mas eles falam em português, e, no mínimo, mais de uma língua, além da sua própria que pode ser o nheengatu, tukano ou baniwa. São Gabriel da Cachoeira é área de Segurança Nacional, pela Lei Federal 5.449, de 1968. Lá estão instaladas a Segunda Brigada de Infantaria de Selva, o Quinto Batalhão

o conselho estabelece a inclusão das estruturas sociais, das práticas socioculturais e religiosas, e das formas de produção do conhecimento e métodos próprios de ensino/ aprendizagem.

Tradição viva Algumas das tradições que ainda são muito fortes e consideradas como conteúdo na educação diferenciada foram recortadas por Gersen Baniwa. Escreve ele: “A família e a comunidade, ou o povo são responsáveis pela educação das crianças; é na família que se aprende a viver bem, sendo um bom caçador, um bom pescador; aprende a fazer uma roça, a plantar, a fazer farinha; a benzer e a curar doenças, a conhecer as plantas medicinais. Vai conhecer a geografia das matas, dos rios e das serras; conhecer a matemática e a geometria para construir a casa, a canoa, o remo”.

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de Infantaria de Selva, a 21.° Companhia de Engenharia e Construção e o Destacamento do Controle do Espaço Aéreo do município. Sua economia é pautada pela agricultura de subsistência (mandioca, banana, bata-doce a abacaxi) e pelos salários dos funcionalismos municipal, estadual e federal. SANTA ISABEL DO RIO NEGRO Distante a 781 km de Manaus-AM, Santa Isabel do Rio Negro é conhecida como o teto do Brasil por abrigar dois

Gersen Baniwa registra também que o método preferencial das ciências indígenas é a visão da totalidade do mundo e assinala: “O indígena deve buscar conhecer o máximo o funcionamento da natureza, não para dominá-la e controlá-la, mas para seguir com sua lógica”. Maximiliano, por sua vez, lembra que as crenças que levam em consideração a leitura do cosmos e os ritos que fazem as passagens das fases da vida também são conteúdos da educação diferenciada, almejada por todas as lideranças, estejam elas à frente das organizações ou nas aldeias, sítios e comunidades.

Em movimento André Baniwa lembra uma citação no meticuloso estudo do parente Gersen Baniwa, feita pelo índio Daniel Mundurucu, que disse preferir a expressão “índios em

picos culminantes do país: o pico da Neblina e o pico 31 de Março. Estatística do IBGE/2010 contabiliza uma população de 18.728 hab. O ano de fundação é datado em 26 de Dezembro de 1957, e o município possui uma área de 63 mil quilômetros quadrados. Santa Isabel também foi território de Barcelos e tem sua economia baseada na agricultura e na pesca. As festas da Padroeira Santa Isabel, em 04 de julho, e de Sant’Ana em 26, do mesmo mês, são as maiores atrações festeiras do lugar.

movimento” no lugar do conhecido “movimento indígena”. Muito mais que uma troca de palavras, a preferência revela uma luta sem tréguas pela afirmação das Identidades. André e Maximiliano, líderes ativistas, dizem que há um processo de amadurecimento e que as bases para as novas conquistas já foram construídas com as organizações locais, estaduais, nacionais e estrangeiras. “Já estamos reconquistando nosso território; o orgulho de ser índio está de volta no jovem que já entende que a sobrevivência está na sua tradição. Estamos reaprendendo nossa língua, sobre nossos mitos e rituais”, diz a líder Dilza Melo. “Eu posso conhecer a sua comida, você pode conhecer a minha. Posso aprender a sua língua e você pode aprender a minha. Mesmo que sejamos diferentes, devemos ser todos parentes”, diz André Baniwa.

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BARCELOS Foi a primeira capital do Amazonas, na época da Província e, com 122.475.728 quilômetros quadrados, é considerado o segundo maior município do Brasil, atrás apenas de Altamira, no Pará. Barcelos está a 405 quilômetros da capital. Foi fundada em 6, de maio, de 1758. Barcelos conta com uma população de 25.835 habitantes, segundo o IBGE/2010. Além do turismo, sua economia se baseia nos cultivos da mandioca, arroz e banana. Apesar de

ser considerada a terra do peixe ornamental, um sucesso mundial, a cidade sofre com a escassez dos peixinhos, em razão da captura predatória. Como atrações turísticas, tem a Festa do Peixe Ornamental (Acará Disco e Cardinal), as visitações aos Parques Nacional do Jaú e Estadual da Serra do Aracá; Cachoeira do El Dourado, com quase 400 metros de altura e o abismo Guy Collet, a caverna mais profunda do Brasil.

RETRATOS DA HISTÓRIA As forças militares da colonização portuguesa e espanhola, entre os séculos 16 e 18, foram responsáveis pelo extermínio de milhares de indígenas no baixo, médio e alto rio Negro. A motivação da colonização era exclusivamente econômica. Na sanha exploratória várias formas de controle foram colocadas em práticas. Mas nenhuma violência foi tão duradoura e, sutilmente, perversa, quanto a da Igreja que usou da humilhação para aniquilar o índio que havia em cada habitante do lugar. Entre os séculos 16 e 20, foram várias as missões civilizatórias, com destaque para as salesianas que, ao longo desse período, assentou-se nos médio e alto rio Negro e deu início à imposição de um novo modelo de vida para os indígenas, baseados no lema: “Uma só religião, uma só língua, uma só bandeira”, escreve a professora Judith Gonçalves Albuquerque da Universidade do Mato Grosso, em um trecho do seu estudo sobre os Indígenas do rio Negro. A professora Valeria Augusta Weigel, da Universidade Federal do Amazonas-Ufam, escreve em seus estudos que O Papa Leão XIII, com receio da propagação das ideias humanitárias comunistas, tratou de ocupar o maior número de espaços e cabeças possíveis. Com apoio do Governo Brasileiro, os experientes salesianos

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expandiram os Internatos e neles instalaram vários jovens índios. Os que fossem pegos falando sua língua eram obrigados a usar uma placa humilhante e eram espancados na própria sala-de-aula. “Fora das aldeias a maioria de nós fala muito baixo e quase não dá prá uma conversa. Isso é um reflexo das discriminações”, diz o indío Tukano Maximiliano, dirigente da FOIRN, ex-interno de Escola Salesiana. Gersen Baniwa escreve que durante os últimos 500 anos, mais de mil línguas foram destruídas. Ele coloca na conta do modelo de educação imposta aos indígenas como causa principal. Ainda, de acordo com trechos do estudo da professora Valéria, só, em 1962, é que o Papa João XXIII, no Concílio 6, passa a determinar uma outra orientação para que trocasse a doutrina da severidade pela da misericórdia. “(...) deseja mostrar-se mãe amorosa de todos; benigna, paciente, cheia de misericórdia e bondosa com os filhos dela separados”, diz um trecho do texto do Papa. Na década de 1980, durante as comemorações pelos 500 anos do descobrimento do Brasil, o Papa João Paulo II, pede perdão aos índios que passariam a ser reconhecidos na suprema Constituição brasileira de 1988.

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gastronomia

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Ban

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nquete Gelado Sorvetes naturais de frutas da região conquistam cada vez mais novos paladares Renata Paula e Lane Lima | jornalista

D

ona de um exclusivo “acervo” de frutas, especiarias e iguarias, a Amazônia tem conquistado cada vez novos paladares. E não é só com seus pratos típicos ou seus peixes de água doce. O sabor regional se destaca também quando misturado à cremosidade dos sorvetes. Estes, aliás, são a pedida certa para enfrentar o calor do verão amazônico. Um conceito que se apurou por mais de 40 anos resultou na união de uma família para resgatar o tradicional ramo da matriarca. O sorvete artesanal. Dos tempos que dona Creuza Braga fazia seus próprios sorvetes onde morava, na avenida Joaquim Nabuco, esquina com Sete de Setembro. Quase meio século depois, o resgate deu origem à sorveteria Zero Grau, localizada na rua Pará, 660, no Vieiralves. Lá, uma dose de refrescância pode ser recebida, por exemplo, com a receita autêntica do sorvete Devalercultural

lícia de Cupuaçu, ou das frutas Bacuri, Buriti, Tucumã e Araçá-boi. Ainda na era da tropicalidade das frutas, a Zero Grau também oferece sorvete de Sorva, que é uma fruta amazônica de coloração esverdeada, passando a castanho quando madura, possui a casca fina e o leite viscoso. Tanto a fruta com o sorvete são facilmente encontrados de novembro a fevereiro. Os irmãos Ana Lúcia e Carlos Braga assumem a direção da sorve-

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Fotos: Caio Luiz / Lane Lima

teria, que oferecem as receitas sem conservantes, com puro extrato da fruta e leite. Além dos sabores, o cliente tem a opção de acrescentar ao sorvete, mousse de cupuaçu ou chocolate e cobertura de açaí.

A fruta gelada Na mesma época em que a vizinhança procurava as delícias de Dona Creuza, surge a sorveteria Glacial, na avenida Getúlio Vargas, esquina com a rua Lauro Cavalcante, loja que até hoje se mantém ativa. Com 50 sabores, sendo 20 regionais (entre eles cupuaçu, tucumã, açaí, graviola, araçá-boi e pitomba), a fábrica já possui 12 lojas, sendo umas em Presidente Figueiredo, Manacapuru, Itacoatiara, Maués e várias em Manaus. Se o requinte permitir, o regionalismo também atravessa as barreiras da culinária e dá vez ao Pettit Gateou Amazônico, que consiste em um bolo de chocolate ao leite, geleia de cupuaçu, calda de chocolate quente e castanha-do-brasil para decoração.

Inovação A autenticidade das fábricas e distribuidoras de sorvete tem dado aos clientes opções exclusivas com

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sorvetes com doces de cupuaçu, castanha-do-brasil, murici, tapioca e até queijo bola. Como é o exemplo da Vaca Lambeu, uma marca local que se aproveita das delícias locais para inovar e transformar o que seria uma simples sobremesa num verdadeiro banquete gelado. Da polpa ao doce da fruta, a fábrica aposta na mistura de sabores e cores para chamar mais a atenção da clientela. Para a sócia da loja, Marina Oliveira, os sabores tradicionais nem sempre têm vez na balança. De acordo com ela, as maiores procuras da loja são de sabores italianos e regionais. A empresa também lançou nomes exclusivos para simbolizar as misturas, como “Paz e Amor”, que surge da mistura dos sorvetes de açaí e tapioca. Ou os coloridos como Caprichoso e Garantido, Paraense, Pavê de Cupuaçu e o Carimbó (sorvete de castanha com doce de cupuaçu). E também o que resultou no nome da fábrica que mistura os sorvetes de queijo bola e doce de cupuaçu. Os produtos da fábrica podem ser encontrados em pontos de vendas disponíveis em toda Manaus, mas a loja oficial fica na rua Jorge Viega, 1, no Conjunto Eldorado, bairro Parque Dez, zona Centro-Sul.

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Delícias do Norte e Nordeste em São Paulo Em São Paulo, a sorveteria Taperebá, na Vila Madalena, região conhecida por seu roteiro gastronômico, oferece um novo conceito aos seus clientes. Há sete anos no mercado paulistano, a loja chama atenção por unir a técnica italiana em produzir sorvetes cremosos com os incomparáveis sabores do Norte e Nordeste do país. Dos convencionais aos exóticos, as iguarias são feitas artesanalmente no local com frutas selecionadas e nativas da Amazônia, do Cerrado e da Mata Atlântica, compradas em um sítio localizado no interior do Estado. Açaí, bacuri, cacau, camu-camu, castanha, cupuaçu, graviola, guaraná, jabuticaba, murici, pitanga, carambola, taperebá, tapioca e umbu são alguns dos sabores do cardápio. Diariamente, cerca de doze sabores revezam-se na vitrine. Difícil é escolher o mais gostoso. David Barkan, fotógrafo, é um dos frequentadores assíduos do local. Seu sorvete preferido é o de taperebá, sabor que tem recebido reconhecimento inquestionável tanto de consumidores como de especialistas em gastronomia. “Mas não deixo de experimentar as novidades”, afirma Barkan que destaca cajá, umbu, cupuaçu e bacuri em sua lista de frutas exóticas.

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Já o paraense Fernando Braga, economista que mora em São Paulo há 40 anos, diz que visita o local para lembrar-se de sua terra natal. “Sempre peço de tapioca ou açaí. Estou há muitos anos aqui, mas não deixo de comer as delícias amazônicas”, afirma. As crianças também solicitam diferentes sorvetes dentre as mais de cem receitas. Júlio Parente, de dez anos, lista suas preferências. “Banana com paçoca, goiabada com queijo e abacaxi com hortelã”. Das frutas nortistas ele é enfático: “Prefiro o bacuri”. Em sua primeira experiência na sorveteria Taperebá, Carolina Ornellas escolheu o cupuaçu. Já o marido Mauro é do Maranhão e já está acostumado com as frutas regionais. “Desta vez escolhi tapioca, estou adorando”, comenta. No colorido que enche os olhos de quem chega, outras frutas como abacaxi, figo, caju, lichia, manga, mamão papaia, acerola e pera completam o time de delícias.

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em Londres

em memória Túmulo do famoso filósofo é o mais visitado no cemitério Highgate Ana Goreth Antony | jornalista

E

m meio ao silêncio, as árvores, as flores, paz e as demais sepulturas. Lá no fim do caminho, onde todos sabem, está o último lugar de descanso de um grande pensador e não apenas pensador, mas um homem de ação também, Karl Marx. Karl Marx foi, com certeza, o mais influente de todos os filósofos políticos, é o mais famoso refugiado que a Inglaterra recebeu e o “hóspede” do mausoléu mais visitado no cemitério de Highgate, no norte de Londres. Na verdade, primeiramente Marx foi enterrado cerca de 150 metros do local onde está hoje o seu memorial. Teve um enterro muito modesto, com cerca de uma dúzia de pessoas como testemunhas. Mas, com o passar do tempo, sua influência intelectual aumentou o

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Ao pé do memorial, o professor universitário Tom Ward e a esposa que incluíram a visita a Marx no roteiro de viagem

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Fotos: Ana Goreth Antony

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Marx em ação

“Quem é dado por morto, vive mais”. O filósofo alemão Robert Kurz (1943-2012) recorria sempre a esse adágio para reafirmar importância do legado intelectual de Karl Marx (1818-1883), para o qual se voltam os que querem compreender o modo de produção capitalista, principalmente em seus ciclos de crise, como o que varre o mundo, atualmente, a partir dos Estados Unidos e da Europa. No ensaio Marx depois do marxismo, publicado em 24 de setembro de 200, no jornal Folha de S. Paulo, Kurz afirma que a razão do vigor do pensamento marxista é simples: “A teoria de Marx só poderá morrer em paz junto com o seu objeto, o modo de produção capitalista”. No mesmo texto, Kurz alerta que a exemplo do que acontece com todo pensamento teórico que ultrapassa a data de validade de um determinado espírito de época, também a obra de Marx carece de uma nova abordagem que lhe descubra novas facetas e descarte velhas interpretações. Novas abordagens à luz das contradições internas do capitalismo – as que geram crises socioeconômicas de magnitude global – só viriam a fortalecer a crítica radical, inaugurada por Marx, a esse modo de produção. A síntese dessas críticas está nos tomos de O Capital, publicado em 1867, em francês. No Brasil, a obra foi publicada em 1960, pela editora Civilização Brasileira O Manifesto comunista (publicado pela primeira vez em 1848), escrito em parceria com Friedrich Engels (18201895), pontificou a internacionalização das ideias de Marx como forças mobilizadoras do proletário em favor de uma nova ordem mundial que devolvesse aos trabalhadores os meios de produção. “Proletário de todos os países, uni-vos”, o brado do manifesto, tornou-se símbolo da corrente marxista do movimento operário. Mais que retórica ou elemento estratégico do socialismo, o manifesto expressa o compromisso do socialismo com a emancipação da humanidade e instauração de um humanismo revolucionário, no qual não haverá lugar para exploração do homem pelo homem. O conhecimento das ideias de Marx é essencial para a formação intelectual e atuação dos profissionais das áreas das ciências sociais e dos que militam em movimentos sociais.

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número de admiradores que vinham visitá-lo cresceu tanto que foi preciso um lugar mais acessível para o grande mestre receber a todos. Em 1956, o conselho da associação do Marx Memorial Library comprou o lugar onde hoje está o memorial esculpido por Laurence Bradshaw, mas as inscrições são originais. As palavras na pedra são a prova viva de que se enterra o corpo, mas não se enterra o homem, suas palavras e seus ideais. No topo, lê-se o convite a todos os trabalhadores do mundo. “Workers of all lands United” – “Trabalhadores de todo mundo unidos”. Logo abaixo, mais palavras de desafio “The Philosophers have only interpreted the world in various ways. The point however is to change it”. – “Os filósofos interpretaram o mundo de várias maneiras. O ponto, entretanto, é tentar mudá-lo”. Do alto de sua lápide, o busto de Marx olha com severidade aos que veem ao seu encontro. Talvez não seja severo para todos, para alguns, ele parece dizer: “Bem que eu avisei”, em tempos em que a Europa enfrenta sua maior crise econômica desde 1930. Pelo menos é assim que Tom Ward, professor de Ciências Sociais da Univalercultural


versidade de New Mexico Highlands, nos Estados Unidos, o encarou. Esta é a primeira vez que Ward e sua esposa visitam o Reino Unido, mas fizeram questão de incluir a visita a Karl Marx no roteiro. O professor está visivelmente emocionado e afirma que o lugar inspira tranquilidade e até mesmo pode sentir o cheiro de Marx. A quem ele descreveu como “um dos mais importantes pensadores sociais de todos os tempos. E que teve muito a dizer sobre Capitalismo”, disse Ward que, antes de partir, ainda recomenda um livro para reflexão, Why Marx was right (Por que Marx estava certo?) de Terry Eagleton. O livro foi escrito depois do começo da crise em 2008 e levantou algumas críticas no Reino Unido. De acordo com elas, o autor fez o possível, mas não mostrou a verdadeira importância pensamento de Marx e porque ele estava certo.

pitalista é vizinho a grandes mansões e comunidades fechadas no norte da capital inglesa. Highgate é uma das mais exclusivas e caras áreas ao norte de Londres. No século passado era apenas um vilarejo, mas com o passar do tempo foi adicionada ao resto da cidade. É uma área muito verde, que reteve parte de sua beleza natural, onde as casas grandes e imponentes existem em perfeita harmonia com as árvores. O lugar todo é um tanto quanto constrante e dormente se comparado com a energia que

transcende da grande cosmopolita Londres. O cemitério de Highgate em si é dos mais tradicionais da cidade, do tempo em que os funerais tinham todo um ritual de homens vestidos em verde-escuro e de cartolas pretas, como nos livros de antigamente. As árvores crescem entre os túmulos, assim a natureza acolhe as lápides. Segundo o aposentado Eric Palker – que visita o lugar há muitos anos semanalmente com a amiga Joice Bell, para cuidar do túmulo dos

O cemitério de Highgate Como numa grande ironia do destino, o lugar de descanso de um dos maiores críticos do sistema cavalercultural

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O cantor Rod Stewart cresceu em Highgate e teve um trabalho temporário como coveiro naquele cemitério

avós de Joice –, o cemitério mudou muito e até mesmo partes que eram apenas jardins tiveram que acolher mais sepulturas, assim como construções antigas foram demolidas a fim de criar mais espaço. Palker se sente tão à vontade no cemitério, conta estórias curiosas como onde estão enterrados os pais do cantor Rod Stewart. “Sabia que o Rod Stewart, antes de ser famoso, trabalhava como coveiro aqui?”. Ele me pergunta e, de acordo com as informações on-line, apesar da minha surpresa, é verdade. O cantor Rod Stewart cresceu em Highgate e teve um trabalho temporário como coveiro naquele cemitério. Joice é ainda mais apaixonada pelo lugar e, segundo ela, existem bons livros que relatam como os fu-

nerais de antigamente eram muito mais bonitos. “Havia a cerimônia na igreja antiga, no lado oeste, e o caixão vinha por uma passagem por debaixo da terra para esse lado”, conta a aposentada que insistiu em não revelar a idade. O cemitério está em funcionamento desde 1860. De tão antigo, tem algumas lápides que começam afundar com o movimento do solo e é preciso ajuda de máquinas para erguê-las novamente. Em 1981, a Associação dos Amigos do Cemitério de Highgate tomou conta da administração, é uma associação sem fins lucrativos. Qualquer pessoa interessada pode fazer parte e custa apenas £12 por ano. De acordo com Dee Linnell, uma aposentada que estava muito animada com a possiblidade de se

A filha de Karl Marx, Eleanor, uma

de que um homem como Karl Marx

cinzas jogadas no Canal da Mancha

das fundadoras da Liga Socialista e

não descansa e vive por gerações

de um lugar chamado Beachy Head

Eric Palker e Joice Bell visitam o cemitério toda semana

CURIOSIDADES

que escreveu muito sobre a ques-

por meio de sua obra e pensa-

no condado inglês de East Sussex.

tão da mulher em política e socie-

mentos, inspirando todo o tipo de

Beachy Head é o mais alto dos

dade teve suas cinzas depositadas

reações.

penhascos britânicos, com 162 me-

no local em 1956.

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tros, também muito conhecido por

E Engels, o companheiro de obras e

ser um lugar popular em suicídios.

Em 1970 o memorial sofreu um

lutas? Engels não foi enterrado, foi

Contudo o lugar é muito bonito, o

atentado a bomba. Mais uma prova

cremado e a seu pedido teve suas

penhasco de encontro ao mar.

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tornar associada, visitar o cemitério de Highgate é uma ótima experiência. “A experiência foi maravilhosa, estou voltando pela segunda vez, serei voluntária no futuro, existem esculturas lindas como o “Sleeping Angel” (Anjo Adormecido)”, diz ao mostrar um postal que acabara de comprar.

Passeio O cemitério é dividido em duas partes: oeste e leste. Para visitar a parte oeste, paga-se £7 libras e é necessário o horário certo porque precisa-se de guia, um outro problema é que nessa parte as fotografias são limitadas a uso pessoal. Mas Marx está no lado leste do cemitério, onde a entrada é apenas £3 libras e se pode ficar quanto tempo quiser e tirar quantas fotografias o turista desejar. Para se chegar ao cemitério de Highgate, usando o transporte público, deve se usar a linha pre-

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Dee Linnell, aposentada

ta conhecida como Nothern Line que corta a cidade de norte a sul, o nome da estação é Archway. A saída é na esquerda e aponta para uma rua Highgate hill que na verdade é uma ladeira. No topo da rua existem duas igrejas e, ao atravessar a rua, um magnífico parque.

O parque Waterlow é vizinho ao lado leste do cemitério e de lá pode se observar algumas das cruzes e lápides que, aos poucos, em meio a alegria enchem o ar de respeito e por si só fazem com que o visitante sinta que está no caminho certo.

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cinema

Um filme de autor ou um autor de filmes

Uma reflexão sobre o filme Kagemuscha: a sombra do Samurai, de Kurosawa, considerado o mais ocidental dos diretores japoneses 94

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Neiza Teixeira | escritora e filósofa

kira Kurosawa é considerado um dos maiores diretores de cinema de todos os tempos. É dele o filme Tagemuscha: a sombra do samurai, o filme que assistimos com calma para sobre ele tecer os comentários que se seguem. A razão da escolha é ser reconhecido como um valercultural


Fotos: Divulgação

dos mais interessantes da obra do diretor, inclusive, este filme marca o ponto de viragem na obra e no ressurgimento de Kurosawa. Especificamente, chama-se a atenção para o caráter autoral da obra e para a linguagem universal que estabeleceu, inclusive garantindo a manutenção e o conhecimento da cultuvalercultural

ra japonesa, e a relação que estabeleceu com a linguagem cinematográfica ocidental. Assim como é perceptível a marca, por meio de uma linguagem musical muito particular de Philip Glass em todas as suas composições, o mesmo se pode dizer de cada um dos filmes de Kurosawa, considerado o mais 95


Kurosawa é detentor de prêmios como o Leão de Ouro e Palma de Ouro

ocidental dos diretores japoneses. Sem querer prolongar a discussão e sem a aprofundar como se deveria, este é um dos motivos que nos fazem classificar os seus filmes como “filmes de autor”. E, como consequência, dizer que este diretor, que contribuiu para a compreensão do “cinema arte” ou como “obra de arte”, como linguagem fundamentada, sempre foi coerente consigo mesmo, com a sua obra e com as pessoas que sempre esperam um cinema de qualidade e um cinema revelador/desvelador. 96

Temas recorrentes Kurosawa é um dos diretores japoneses que teve melhor aceitação e que influenciou o cinema ocidental. Foi com ele que o Ocidente se virou para o Japão para ver e ouvir o que aquele país trazia de novo tanto para a linguagem cinematográfica como para a cultura ocidental, cansada de si e ávida de novidades. Detentor, no seu trajeto, de prêmios de grande envergadura, como o “Leão de Ouro”, “Palma de Ouro” e reconhecido com o “Oscar de Honra” pela sua influência em cineastas do mundo inteiro e pelo bem-estar ou mal-estar que trouxe à humanidade, divertindo-a, inspirando-a, enriquecendo-a, encantando-a, Kurosawa diz, na sua obra, como nos percebe, como nos consegue ver. Se o Japão, nos filmes de Kurosawa, dialoga consigo mesmo, re-

vivendo no cinema o seu passado, detalhando-o, escavando-o, mais uma vez Kagemuscha: a sombra do samurai é uma atitude de reconhecimento de si mesmo e um diálogo com o Ocidente. A estética do filme, que traz uma temática japonesa, expõe o Ocidente na sua linguagem, como também temas que lhes são caros, por exemplo, a tragédia humana, que apresenta a crise de identidade, a incapacidade de sermos o outro e a ambiguidade de uma vida sem sentido: ela pode ser o tudo como pode ser o nada. Para enfatizar, não se pode esquecer Sonhos, onde van Gogh, predecessor do Expressionismo, é um dos meios de revelação. Da mesma forma que van Gogh se faz presente, a tragédia, de forte influência shakespeareana, é o discurso utilizado. Na perspectiva shakespeariana, Kurosawa, um homem nascido no Japão, valercultural


educado no Japão, mas com o olhar de cima, do seu país e do mundo, via o que a todos ou à maioria não cabe ver. Através do meu olhar, sinto que Kurosawa trouxe o máximo possível de olhares para dizer, simplesmente: Vejam: Este é o homem! Pensem nisso!

Kagemuscha: a sombra do samurai A palavra “kagemuscha”, em japonês, refere-se ao “guerreiro das sombras”, um sósia e um impostor. A ideia deste filme chegou quando Kurosawa, por intermédio de um livro de história do Japão feudal, soube da existência de Schigen Takeda (1521-1573), um dos senhores da guerra do Japão feudal, que tinha o hábito de contratar sósias para confundir os adversários. Esta informação levou à criação de uma história que se passa entre os anos de 1572 e 1575, no período que antecede a unificação do Japão. A guerra envolve três clãs, em luta pela detenção do poder. O objetivo da guerra, que se degenerou em guerra civil, era tomar a capital Kioto. O líder do clã Takeda, Schigen, é ferido gravemente por um atirador do clã adversário, quando quis ouvir o tocador de flauta do castelo assediado, que tocava todas as noites, e que impressionava os seus guerreiros. O tiro foi mortal, mas, antes de morrer, ele pediu aos seus generais que não revelassem a sua tragédia durante três anos, o que fez com que um sósia, um ladrão prestes a ser executado, e que foi salvo por seu irmão, um dos seus sósias habituais, assumisse o seu lugar. A não divulgação da sua morte por três anos garantiria a estabilidade do clã por esse período. O sósia, cujo nome ninguém nunca soube valercultural

qual era, assumiu com habilidade e prontidão o lugar do guerreiro, colocando uma questão presente em Raschmon, a verdade. Somente conheciam a verdade sobre Schigen os homens mais próximos, os demais, até mesmo seu neto, estavam convencidos de que o chefe do clã estava vivo, porém, o cavalo de Schigen encarregou-se de destruir a farsa, confirmada pelas concubinas. O velho ladrão foi expulso, sob pedras, do castelo. Todavia, ainda que expulso e apedrejado, ele seguiu com a nova identidade, que se revela, principalmente, nas cenas finais do filme. Os estandartes do exército de Schigen trazem a insígnia do clã: um losango formado por quatro losangos, em referência aos elementos do lema dinástico: “Veloz como o vento, silencioso como a floresta, feroz como o fogo e imóvel como a montanha”; todos os adjetivos concentram-se na figura do chefe do clã. Kagemuscha viu o guerreiro Schigen morto, quando tentava roubar coisas e fugir. A descoberta o deixou apavorado, mas foi convencido a ficar, e o nada-ser permitiu-lhe ser o guerreiro morto, o que se constitui num tema para a psicologia e para a filosofia; por isso, em cenas paradigmáticas revela-se a sua tragédia: ele assiste à derrocada

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Seus filmes tentam compreender o homem, daí a presença marcante de Shakespeare na sua obra do clã Takeda, devido à leviandade do filho de Schigen; dilacera-se com a derrota, visível na cena em que ele descobre o peito no ensejo de mostrar a dor que o lacerava; é acossado pelo dilaceramento que domina a todos que nada são e que descobrem, sem panejamentos, a exiguidade do tempo, a fragilidade de cada um e do todo. É impossível não reconhecer um filme de Kurosawa: pela sua plasticidade, pelo jogo estético, pelo desempenho dos atores, pelos diálogos que instaura, pelo caráter expressionista. Kurosawa, por meio dos seus filmes, inclusive recorrendo à história, tentou compreender o homem, daí a presença marcante de Shakespeare na sua obra. Conforme a sua cinematografia, a vida humana é tragédia. Portanto, a nossa questão é o que fazer depois que sabemos disso. Além disso, evidencia-se a nossa incapacidade de vir-a-ser o outro e, pior que tudo, a nossa perdição quando nos perdemos de nós próprios. Ver Kagemuscha é assistir a uma peça composta por dezesseis quadros, cuidados, um a um, pelo diretor, daí a beleza do figurino, do cenário, da composição. O filme

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que aqui se vê reúne o que qualquer crítico rigoroso considera importante, e o que não pode deixar de ver. Os espaços são clinicamente escolhidos; as tomadas de câmera chegam e se desfazem como as águas da cena final rumo ao infinito/ finito, na hora certa; a lentidão com que as cenas decorrem convida-nos a ver e a pensar. A tragédia é narrada passo a passo até o momento derradeiro. Na cena que nos aproxima do final, o show macabro é proporcionado pelos cavalos agonizantes, em câmera lenta e em vários ângulos, que se misturam com os guerreiros mortos ou em agonia, desfazendo qualquer distanciamento entre ambos. Por fim, Kagemuscha, numa cena quixotesca, corre por cima dos cadáveres, no único momento em que pode guerrear, com uma lança em punho, quando é ferido pelo adversário. O vermelho do seu sangue expande-se pelo seu corpo numa coloração que visa proporcionar um efeito estético, e que nos leva ao teatro japonês, indicando-nos que o que vemos é cinema, é arte. É na água que se misturam o sangue do ser-nada e o estandarte do clã Takeda, que Kagemuscha não consegue apanhar, porque se encontra morto, e porque as águas do mesmo rio, próximas entre si, seguem em caminhos contrários, o que mostra toda Impossibilidade. Afinal, o homem não é mais do que um. E tudo é mera representação. valercultural



literatura

Quixote

ou as virtudes da ambiguidade

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Apreciam-se no Quixote não apenas a divertida sucessão de aventuras, a satírica invectiva contra os livros de cavalaria e a memorável caracterização dos personagens, mas também toda uma série de questionamentos relativos à arte de narrar

Alfredo Cordiviola | professor de literatura da UFPE

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uma rua de mercadores de Toledo, um jovem vende cartapácios e velhos papéis escritos em árabe. Um desses folhetos narra a história de uma tal Dulcineia del Toboso (também, conhecida como Aldonça Lourenço), mulher que tinha uma especial habilidade para salgar a carne dos porcos; era a História de don Quijote de la Mancha, escrita por historiador arábico chamado Cide Hamete Benengeli. Não foi difícil achar no mercado algum mouro versado em línguas que pudesse traduzir a história ao castelhano. O trabalho, feito em troca de passas e trigo, demandou um mês e meio, e tinha sido encomendado por Miguel de Cervantes Saavedra. Este episódio é narrado no capítulo 9 de El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha, escrito em 1605 por Miguel de Cervantes Saavedra. No capítulo 6 dessa mesma obra, um padre e um barbeiro examinam a biblioteca de Don Quijote (também conhecido como Alonso Quijano), em procura das obras que teriam provocado a loucura do ingenioso hidalgo, leitor de abstrusos romances de cavalaria. Na biblioteca encontram as causas do desvario: Amadis de Gaula, Sergas de Esplandián, Florismarte de Hircania, El Caballero Platir, Palmerín de Inglaterra, Don Belianís, entre

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outros títulos que, por prudência e para que não provoquem males maiores, recomendam queimar. Encontram também outras obras, que preferem salvar do fogo, e para as quais reservam, porém, sólidas frases de ironia e escárnio. Uma dessas obras é La Galatea, de Miguel de Cervantes, más versado en desdichas que en versos, segundo a definição do padre. Este, que diz ser muito amigo do autor, afirma que “o livro tem algo de boa invenção; propõe algo, e não conclui nada” e finalmente recomenda guardá-lo, à espera de uma segunda parte anunciada pelo autor, que quiçá possa ser recebida com alguma misericórdia. No capítulo 2 da segunda parte, escrita às pressas por Cervantes em 1615, um ano depois da publicação em Tarragona do Quixote apócrifo do suposto licenciado Alonso de Avellaneda, Don Quixote e Sancho Panza descobrem por intermédio do bacharel Carrasco que a fama das suas vidas e aventuras já corria pelo mundo, divulgada no romance El Ingenioso Hidalgo don Quijote de la Mancha, escrito por Cide Hamete. Depois descobri101


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rão também que existia um outro romance, o de Avellaneda, que continha no prólogo palavras que eram melhor esquecer, e incluía dados errôneos e casos falazes. Assim, nessa trama de ficções superpostas, Cervantes, o autor, é mais um personagem, Cide Hamete, um sonho de Cervantes, é o “verdadeiro” autor, e os dois personagens principais leem suas próprias aventuras em romances apócrifos ou imaginários. Se o ato da leitura postula a relação entre um mundo que está dentro do livro, com suas peripécias e invenções, e outro mundo que está fora (aquele que espreita e ressurge quando o livro é fechado), o Quixote nos lembra permanentemente que entre o mundo do leitor e o mundo do livro há uma continuidade estranha, perturbadora. Como no breve relato de Júlio Cortázar, “Continuidad de los Parques”, em que o leitor se transforma em vítima da história que estava lendo, Cervantes parece querer dizer que em cada livro, como nisso que chamamos o real, há muitos mundos, nem todos reais, nem todos imaginários. Em “Magias Parciais do Quixote”, Jorge Luis Borges se pergunta por que é inquietante que Dom Quixote seja leitor do Quixote (ou Hamlet espectador de Hamlet), e responde com um argumento que poderia ter sido subscrito por Cervantes: “tais inversões sugerem que se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios”.

Clássico universal Talvez tenha sido essa inquietação um dos motivos que provoca-

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ram o sucesso imediato do romance e a sua perduração na fervorosa categoria dos clássicos universais. O Dom Quixote pode ser lido como uma experiência de leitura (Quixote como leitor que substitui a realidade pela Literatura, ou para quem a Literatura é a realidade), como melancólico desengano do mundo, como fábula sobre o ocaso do Império, como canto final do magnífico Século de Ouro das letras espanholas. Pode ser visto também como o fundador de um gênero (o romance moderno) e como um importante elemento na conformação dos discursos de identidade hispânica. Como Shakespeare, como Dante, Cervantes e seu Quixote tiveram a boa ou má sorte de ser considerados fundadores de uma tradição nacional e, ao mesmo tempo, emblemas de universalismo. Leitores situados em épocas e contextos muito diferentes souberam apreciar no Quixote não apenas a divertida sucessão de aventuras, a satírica invectiva contra os livros de cavalaria e a memorável caracterização dos personagens, mas também toda uma série de questionamentos relativos à arte de narrar e aos modos em que a Literatura processa e transgride os estatutos do real. Leitores como Sterne, Diderot e Machado de Assis, que recuperam a lição cervantina de privilegiar o sonho e as ambiguidades da paródia e da imaginação. O ácido humor e a celebração e a crítica da ficção desenham uma peculiar linhagem que deliberadamente une o Quixote, Tristran Shandy, Jac-

Como Shakespeare, como Dante, Cervantes e seu Quixote tiveram a boa ou má sorte de ser considerados fundadores de uma tradição nacional

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ques, o Fatalista e Brás Cubas, em textos que postulam suas gêneses fictícias e proclamam o império da linguagem e do riso implacável. No século 19, em que os romancistas de língua espanhola não conseguem se livrar dos efeitos tantalizantes das convenções realistas e naturalistas, Machado de Assis revive e prolonga uma tradição que transforma o romance em espaço privilegiado para encenar as tensões entre ilusão e realidade, arte e vida, verdade e ficção. De Memórias Póstumas (1881) a O Alienista (1882) e Quincas Borba (1891), essa tradição, esquecida pelas letras latino-americanas, ressurge de maneira excepcional no melancólico destino das personagens machadianas.

Transcedental A fama do Quixote, porém, transcende a leitura pontual, a invenção literária e a exegese apaixonada; mesmo quem nunca leu o romance é capaz de reconhecer toda uma série de significações associadas com a errância do Cavaleiro da Triste Figura e com o conjunto de oposições que o une a seu escudeiro Sancho Pança. Um adjetivo como “quixotesco”, que surge como consequência do romance, mas excede suas páginas, torna-se com o tempo uma palavra comum para designar projetos utópicos ou imaginários que interpelam e entram em direto conflito com as postulações do real. No pensamento ibero-americano, e particularmente a partir do século 19, há toda uma tradição que reivindica o sentido político desse adjetivo. Influenciados pelas interpretações de Miguel de Unamuno, que resgatam o modelo do Quixote como emblema de crítica e transformação social, muitos publicistas e ideólogos espanhóis e latino-americanos fundam revistas que desconfiam dos dogmas e aspiram, por meio de sátira político-social, a mudar a sociedade. Periódicos como Sancho Panza (Madrid, 1863), Don Quijote (La Habana, 1864), Don Quijote (México, 1919) se multiplicam como instrumentos para discutir ideais nacionalistas e reformistas. Nessa linha se inscrevem também duas publicações criadas no Rio de Janeiro, Don Quijote, revista 104

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ilustrada fundada por Ângelo Agostini (1895-1903), e sua homônima, dirigida por Bastos Tigre (19171927), que utilizam o mito quixotesco para questionar as contradições e promessas da nascente República. Para o Quixote de Agostini, a Dulcineia é a pátria brasileira, tão bela e tão forte, pela qual está disposto a lutar contra todos os inimigos em prol do ideal de “mais civilização, mais progresso, mais humanidade”. Mas sabe que no seu caminho há, como em La Mancha, penúrias e desilusões, sintomas de uma época de expectativas frustradas, que dão lugar a um hiato cada vez maior entre as aspirações de transformação e as limitações da precária ordem republicana. Um hiato que encontrará sua máxima expressão em duas grandes epopeias da tristeza: em Lima Barreto, no penoso fim das inúteis iniciativas do funcionário público Policarpo Quaresma (1915), e no José Lins do Rego de Fogo Morto (1943), na sombra do Capitão Vitorino, que cavalga solitário, falando com ninguém, pelas imediações do engenho de Santa Fé. Esse Quixote, que com desvairada obstinação combate inimigos re-

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ais e imaginários, todos impossíveis de vencer, perdura na memória popular, como lembra Câmara Cascudo ao estudar as influências hispânicas no Nordeste, por meio da tradição impressa ou oral de narrativas familiares, provérbios e refrões. Como o pícaro ibérico, que luta pela sua sobrevivência em condições sempre adversas, e o gracioso do teatro barroco espanhol, que ironiza valores e usos com o instrumento da sua lúcida loucura, o escudeiro tosco e prático e o cavaleiro andante e insensato são figuras permanentemente parafraseadas nos folhetos de cordel, nos desafios dos cantadores e nos autos populares. São tipos heroicos e cômicos, provenientes desse mundo ibérico e mediterrâneo que oferecem o substrato e as mitologias que conformam o projeto estético de Ariano Suassuna.

Vitoriosos fracassos O Quixote e Sancho são também tipos melancólicos, como aparecem nos lânguidos desenhos de Portinari comentados pelos versos de Drummond; melancólicos porque sabem que o único recurso possível é continuar andando, mesmo quando parece não haver sentido nem ocasião. São tipos que fracassam, como Pierre Menárd, o inverossímil escritor simbolista francês sonhado por Borges, que pretendia escrever o Quixote para criar não apenas uma cópia, mas algo “infinitamente mais rico”, e mais ambíguo (porque a ambiguidade é uma riqueza, como ensina o próprio Cervantes). Ou como Macedonio Fernández, o escritor argentino que escreve um romance que consta de infinitos prólogos e nunca começa (Museo de la Novela de la Eterna, 1967). Fracassam, mas sabem fazer des-

A fama do Quixote transcende a leitura pontual, a invenção literária

se fracasso uma espécie de vitória que é mais duradoura e real que as agruras da vida. Talvez a grande presença de Cervantes na literatura latino-americana esteja justamente aí, nos vitoriosos fracassos que se revelam nas páginas de um Machado, um Lima Barreto, um Borges, um Macedonio, entre tantos outros. Filhos de La Mancha, segundo afirma Carlos Fuentes em “O Milagre de Assis”, filhos de um mundo manchado, impuro, sincrético, barroco, corrupto, animados pelo desejo de manchar sob a condição de ser, de contagiar sob a condição de assimilar, de que as aparências se multipliquem a fim de multiplicar o sentido das coisas, contra a falsa consolidação de uma leitura única, dogmática, do mundo”. Autores que escrevem com a missão de dilatar os espaços da imaginação, a nossa, individual e coletiva imaginação que, às vezes, em épocas incertas como esta e como todas na América Latina, parece ser a única coisa que ainda nos resta. 105


literatura

Uma rapsódia da memória Tenório Telles | escritor

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poeta é um navegador solitário do vasto mar do tempo e da memória. É alguém que conspira contra o esquecimento, a negação da magia, o obscurecimento da consciência. Não é outra a matéria utilizada por Luiz Bacellar, em Frauta de Barro, para elaborar seu discurso poético. A memória é o repositório de onde recolhe as fraturas com que compõe seu canto. Frauta de Barro, seu livro de estreia, publicado em 1963, é um passeio pelo tempo, um mergulho no passado, de onde recolhe a matéria com que constrói sua poesia. Bacellar é o arqueólogo de uma época subtraída, destroçada pelo destilar corrosivo dos dias, tragada pela voracidade do progresso (compulsório nos trópicos). Seu trabalho poético é o de um rapsodo que preserva, através de seu canto, a memória de um tempo estiolado, desaparecido sob a esteira da modernidade. O mundo de que tenta remontar a face estilhaçada é a província. Ao voltar-se para o passado, o poeta faz a crítica do caráter desagregador, corrosivo do progresso.

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Poesia orgânica

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rude e doce melodia quando me pus a soprá-lo jorrou límpida e tranquila como água por um gargalo. E mesmo que toda a gente fique rindo, duvidando destas estórias que narro, não me importo: vou contente toscamente improvisando na minha frauta de barro. É o tema recomeçado na minha vária canção.

Bacellar (1928-2012): a memória de um tempo estiolado

Foto: Hamilton Salgado

Frauta de Barro é um livro cheio de ressonâncias. Um caleidoscópio de formas poéticas e temas. O livro possui uma arquitetura interior, composta basicamente de sete partes. Os blocos de poemas são constituídos de “sequências de sonetos”, “os romanceiros”, “os noturnos”, “os escorços” e os “poemas dedicados”. O nome da obra já é uma evidência das preocupações temáticas do autor. Frauta de Barro: “Frauta”, forma primitiva de flauta. “De Barro”, a matéria de que é feito o instrumento, afirmação de seu caráter substantivo. Sua poesia é orgânica, plasmada de temas ligados ao cotidiano popular, ao folclore. Afirmação de seu talento poético, Bacellar trabalha igualmente com formas e temas eruditos, compondo textos perpassados por uma densa carga existencial. A recorrência a processos de composição mais formais, a uma dicção poética clássica terá seu momento de afirmação com a obra Quarteto (publicada originalmente com o nome de Quatro Movimentos, em 1975). O rigor e a elaboração da linguagem são as marcas definidoras do livro. Outro traço marcante em sua poesia, é o musical. No primeiro soneto do “prólogo”, que abre Frauta de Barro, o poeta descreve como encontrou na infância seu “frio tubo de argila”, sua frauta de barro, em que vai “toscamente improvisando” as “estórias que” narra. O livro é como se fosse uma sonata, tocada por uma rústica frauta:

Em menino achei um dia bem no fundo de um surrão um frio tubo de argila e fui feliz desde então;

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O texto foi composto num discurso poético fluido, perpassado pela musicalidade. Vertido numa linguagem vigorosa, límpida. Simples, despida de excessos formais. Em Bacellar, a formalidade é antes de tudo uma sutileza. Quanto ao plano de estruturação dos versos, é evidente a opção do autor pela redondilha maior. A leitura do primeiro terceto do soneto de abertura é uma revelação das preocupações temáticas de Bacellar. A matéria de seu canto são “estórias” que improvisará em sua tosca frauta de barro. Para retratar estas “estórias”, nos temas de viés popular e folclórico, o poeta utiliza-se de versos de sete sílabas, usados nas canções populares, remontando às cantigas medievais portuguesas. A despeito de seu caráter popular, a redondilha maior não aparece apenas em criações populares e canções. Camões fez uso dessa forma de verso nas suas “redondilhas”. A análise da estruturação das estrofes do soneto revela uma particularidade dessa forma poética. Compõe-se de cinco estrofes: dois quartetos, dois tercetos e um dístico. Bacellar rompe, nos três textos que compõem o prólogo, com a forma petrarquiana e mais tradicional do soneto, de quatro estrofes. Acrescenta mais dois versos, formando assim uma quinta estrofe, a que se chama esteticamente de estrambote, ou cauda. O soneto que apresenta essa estruturação estrófica, chama-se “soneto de estrambote”, ou de “cauda”. O “estrambote” pode ter de um a três versos. Nos três sonetos que compõem “variações sobre um prólogo”, as estrofes acrescidas são de dois versos, como pode ser observado no soneto de entrada: É o 108

tema recomeçado / na minha vária canção.

Crítica ao tempo fugaz O caráter agônico, elegíaco da poesia de Luiz Bacellar talvez possa ser explicado pelo fato de seu imaginário infantil, sua sensibilidade terem se sedimentado sob a atmosfera perene de um mundo provinciano, em que o tempo era uma dimensão palpável da vida, percebia-se o seu trotar silencioso. Bacellar não é poeta desse equívoco em que se transformou a modernidade. Ao voltar-se para a infância, para as reminiscências, faz a crítica desse nosso tempo fugaz, dessa conspiração contra a memória. O terceiro soneto da série “sobre um prólogo” é uma evidência dessas preocupações do autor: Nos longes da infância paro; há uma inscrição sobre o muro: Frauta clara, arroio escuro, frauta escura, arroio claro. E esse cavalo capenga? E esse espelho espedaçado? E a cabra? E o velho soldado? E essa casa solarenga? Tudo volta do monturo da memória em rebuliço. Mas tudo volta tão puro!... E, mais puro que tudo isso, essa anárquica inscrição feita no muro a carvão. São temas recomeçados na minha vária canção. Observe-se a atmosfera de quase imobilidade que perpassa o texto, os elementos temáticos do poema: “cavalo capenga”, “espelho valercultural


espedaçado”, “cabra”, “o velho soldado”, “casa solarenga”, clara evidência de um mundo provinciano, em tudo diferente do que surgiu com a vida moderna: veloz, barulhento, de edifícios envidraçados, carros, congestionamentos, em que as distâncias se encurtaram, mas o seres humanos estão mais distanciados.

A busca narcísica Bacellar, esse Narciso que busca seu rosto no passado, é um poeta que se mira na superfície líquida da memória. Num esforço de reminiscência recupera os objetos, as formas das coisas, as fachadas das casas, as imagens que guarda das pessoas, da cidade, suas vielas, seus becos, os sons, as estórias que povoaram sua infância. Essas preocupações temáticas são recorrentes em vários textos de Frauta de Barro, como na série dos três sonetos “provincianos”. A infância é uma constante em seu discurso, como se observa nos versos finais do poema “Porta para o quintal”: ...nos varais / a roupa brinca de navio de velas / minha perdida infância reinventando... No soneto “Finis gentis meae”, persistem as preocupações com o passado, a consciência da voracidade do tempo, da brevidade da existência, sendo a memória o leito em que os destroços, as lembranças são depositadas: Súbito chega a Tarde pressentida a roçagar musgosos, carcomidos muros; com a fímbria azul de [seus vestidos restaurando-os na grave [despedida. (...)

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Os textos da série de “Sonetos provincianos”: “Porta para o quintal”, “Lavadeiras” e “Finis gentis meae”, quanto ao aspecto formal, possuem uma estrutura petrarquiana. Quanto à metrificação, a estrutura não é fixa, os três sonetos possuem versos com 10 sílabas poéticas, coincidência de sons fortes na sexta e décima sílabas, sendo, portanto, decassílabos heroicos. A leitura dos “Três noturnos municipais”: “da Praça da Saudade”, “do bairro dos Tocos”, “da rampa do mercado”, atestam a permanência de um discurso poético fundado na subjetividade, plasmado por forte carga existencial. A tecitura poética “do noturno da rampa do mercado” é enfronhada por uma atmosfera de melancolia, nostálgica, como se depreende da leitura dos dois primeiros quartetos: As luzes das barcaças sonham [ventos quando em águas propícias e [serenas no cansado ancorar brilham [pequenas em alvos lucilares cismarentos... O rio e a noite expandem seus [lamentos Os mastros tristes são candeias [plenas de oleosas saudades e de penas sirgando macilentos barlaventos... O poeta descreve as “barcaças” ancoradas à noite na “rampa do mercado”, suas luzes tênues, sonhando “ventos”. O autor cria um cenário triste, elegíaco, dominado pelo rio e pelas trevas como pano de fundo. O noturno é uma “composição musical de caráter melancólico, sim-

ples”. A utilização poética de formas musicais por Bacellar evidencia a importância da música em sua obra. * Frauta de Barro possui uma estrutura e um discurso poético musical. Bacellar cumpre o desafio lançado pelo poeta norte-americano Ezra Pound: reconciliar a poesia com a música. Como na antiga Grécia, em que as composições eram feitas para ser acompanhadas ao som da lira. Compôs uma rapsódia da memória, um cantar elegíaco para um tempo desmoronado. Como os velhos rapsodos gregos, Luiz Bacellar tece seu cantar nostálgico solado pelo som agreste de sua velha frauta de barro. É preciso salvar o passado para não perdermos o futuro. Afinal, é difícil enfrentar o desconhecido, o impalpável sem que se conheça as velhas rotas do tempo. A travessia se cumpre. E a velha frauta, bojuda de tantos cantares, fez-se versos, poesia.

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