PROGRAMAÇÃO ASSOCIAÇÃO “OS FILHOS DE LUMIÈRE” AUDITÓRIO Organização e Produção Cristina Grande Pedro Rocha Ana Conde Colaboração Gisela Diaz Coordenação Técnica e Som Nuno Aragão Luz Rui Barbosa Cinema/Vídeo Carla Pinto
Momento XVIII
CICLO O SABOR DO CINEMA 10 OUT - 07 NOV 2010 Auditório
07 NOV 2010 (DOM), 16H00 LA SUBSTANTIFIQUE APOIO INSTITUCIONAL
COM APOIO
Barbara Spielmann
SERÁ QUE VAI NEVAR NO NATAL?
Sandrine Veysset Informações: 808 200 543 / Reserva Bilhetes: 226 156 584 / Geral: 226 156 584 Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / Portugal / www.serralves.pt / serralves@serralves.pt
Título original: LA SUBSTANTIFIQUE * Realização: Barbara Spielmann Imagem: Sugeeta Fribourg Música: cantos gregorianos, catedral de Milão. FRANÇA 1977 * Da necessidade de chegar à medula, à substância, à essência da substância (la substantifique moëlle, segundo Rabelais). Entrar na caverna de Ali-Babá do matadouro é um pouco como fechar os olhos depois de um contacto prolongado com uma fonte de luz, esfregar as pálpebras ao jeito das crianças à descoberta do corpo em horas de ócio, e vislumbrar a tapeçaria de sangue e ouro que mora virtualmente por detrás dos globos oculares. Toda a gente terá, com maior ou menor insistência e espanto, praticado este jogo inofensivo de esfregar os olhos e é porventura essa a primeira sensação (que é também uma sensação primeira) que este pequeno filme de Barbara Spielmann em nós despoleta. Trata-se pois de ultrapassar, violar, a barreira de pele que nos separa da carne, como a citação da mulher alada e esfolada
de Gauthier d’Agothy (séc. XVIII) claramente sugere. Porém, o jogo de descoberta de uma morada do íntimo não se reduz ao convívio, via imagem em movimento, com os pedaços «fauve» das carnes, gorduras, ossos e tendões expostos, já que, guiados pelo severo erotismo do canto gregoriano, a partilhar um percurso – que se desdobra em abundantes planos de vista – de visitação dos gestos de trabalho e dos instrumentos do esquartejamento. Ternos e precisos, os gestos. Cirúrgicos e brutais, os instrumentos. Entrar no segredo do músculo e do tutano através da retórica de um labor manual que implica uma atenção ao esqueleto e à carne das mãos, eis o que esta curta-metragem (a seu tempo difundida nos circuitos do cinema dito experimental) nos propõe. E a mais evidente qualidade do filme, para além do seu fulgor plástico, é talvez uma permanente tensão entre o mole e o duro que a palavra «ternura», tão densamente ambivalente de sentidos, poderia resumir.
Título original: Y AURA-T-IL DE LA NEIGE À NÖEL? Título em português: SERÁ QUE VAI NEVAR NO NATAL? Réalização: Sandrine Veysset Argumento: Sandrine Veysset e Antoinette de Robien Produção: Humbert Balsam Música: Henri Ancilotti Fotografia: Hélène Louvart Montagem: Nelly Quettier Interpretação: Dominique Reymond, Daniel Duval, Jessica Martinez, Alexandre Roger, Xavier Colonna, Fanny Rochetin, Flavie Chimènes, Jérémy Chaix, Guillaume Mathonnet, Eric Huvard, Loys Capatti, Marcel Guilloux-Delaunay FRANÇA 1996 SERÁ QUE VAI NEVAR NO NATAL? de Sandrine Veysset é um filme também ele servido por uma fotografia devedora de uma estética fauve. Contrastes ferozes, cores fulvas e estafadas de luz, imagens amiúde no limite da sobre-exposição são parte importante (embora sempre humildemente
submetida aos propósitos hiper-realistas da mise en scène) deste filme que QUEIMA OS OLHOS. Estamos no Sul de França, em cenários rurais banhados de claridade onde reina a doçura do clima mediterrânico, mas... estamos muito longe do Éden. Aqui, uma mulher, mãe de uma numerosa prole de «bastardos», não apenas cumpre a sina de porventura parir ininterruptamente na dor como se vê forçada a ganhar a vida à custa de muitos suores e sacrifícios, o menor dos quais não é certamente consentir na escravização dos seus próprios filhos, sob a alçada de um pai dominador e totalmente destituído de escrúpulos. Os protagonistas – mãe, pai e bando de filhos – vivem uma situação familiar (vida assumidamente dupla do patriarca, dividido entre a família legítima e a outra, fruto do adultério) assaz difícil de enquadrar no contexto pretensamente «civilizado» do país dos direitos do homem e dos ideais republicanos. O pai, personagem sinistra de explorador impune, acumula as funções de progenitor, amante e patrão, e esta tríade é obviamente rica de ressonâncias políticas. A mãe, humilhada e ofendida ao ritmo das estações, dos trabalhos e dos dias, trabalhadora incansável e amante solícita, apresenta-se, no entanto, e sobretudo como uma espécie de quintessência da figura materna, sempre pronta a atenuar os sofrimentos das crianças que deu à luz, graças à sua amorável ternura e cumplicidade. Com as matérias que o seu filme manipula, Sandrine Veysset poderia ter realizado tão-só uma interessante incursão ficcional no campo minado do trabalho infantil. Mas faz muito mais do que isso. Ao colocar a sua admirável Mãe, decididamente a milhas das personagens brechtianas, perante uma ausência de alternativas tão violenta quanto cometer um suicídio colectivo para salvar os filhos das garras de um destino demasiado cruel – e essa morte não se cumpre graças ao milagre da neve... –, a realizadora fustiga a boa consciência dos espectadores com a evidência de que o exercício da liberdade de escolha não é apanágio de todos, mesmo no quadro das democracias burguesas mais «avançadas». Ao optar, em última instância, por se «salvar» a si e aos filhos, esta Mãe devolve-nos, infinitamente potenciada, a amargura da esperança.