PROGRAMAÇÃO ASSOCIAÇÃO “OS FILHOS DE LUMIÈRE” AUDITÓRIO Organização e Produção Cristina Grande Pedro Rocha Ana Conde Coordenação Técnica e Som Nuno Aragão Luz Rui Barbosa
PRÓXIMA SESSÃO
06 NOV 2011 HAKOP HOVNATANIAN Sergei Paradjanov 1967, URSS 10’, m/12 SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESCONDIDOS Sergei Paradjanov 1964, URSS 95’, m/12
Cinema/Vídeo Carla Pinto
Momento XX
CICLO O SABOR DO CINEMA OUT - NOV 2011 Auditório
09 OUT 2011 (Dom), 16h00
Apoio Institucional
Apoio
Fundação de Serralves / Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / www.serralves.pt / www.facebook.com/fundacaoserralves Informações: 808 200 543 / Reserva Bilhetes: 226 156 584 / Geral: 226 156 584
DI CAVALCANTI TERRA EM TRANSE Glauber Rocha
Título original: DI CAVALCANTI Realização: Glauber Rocha Textos: Edison Brenner, Frederico Moraes, Vinicius de Moraes, Augusto dos Anjos Narrador: Glauber Rocha Imagem: Mário Carneiro, Nonato Estrela Montagem: Roberto Pires Produção: Ricardo Moreira BRASIL 1977 O primeiro filme desta sessão (pequeno tributo a Glauber Rocha) é um dos derradeiros do realizador. Reza a história que o cineasta terá arrancado as filmagens imediatamente após o anúncio público do falecimento do pintor Di Cavalcanti, cujo velório se iria desenrolar no lobby do Museu de Arte Moderna. Uma parte das imagens são pois rodadas nesse cenário e no cemitério onde o artista foi enterrado – ritual fúnebre que não podia deixar de interessar um «ritualista» como Glauber Rocha – e, desse grupo de imagens, não será de mais destacar as sombras chinesas e os vultos espectrais dos participantes na cerimónia, bem como a bela, brutal e frágil «máscara» de Di Cavalcanti, arreganhando a sua fornecida dentadura por entre um manto de flores vermelhas. É-nos dito que a ingratidão foi companheira inseparável de Di Cavalcanti, até à hora da morte. É-nos dito que o funeral do pintor foi injustamente pouco concorrido. É-nos dito que o filme cumpre, post-mortem, um pedido e uma promessa, pedido anteriormente formulado pelo artista plástico e, por um infeliz concurso de circunstâncias, não atempadamente satisfeito pelo cineasta. Talvez por isso – e não apenas por questões de estilo pessoalíssimo – o filme (narração sonora e imagens) pretenda, disparando em todas as direcções, remediar uma falha impossível de ser cabalmente colmatada. Na verdade, de um intenso frenesi, típico de quem sabe que a morte impõe um abrupto
ponto final ao diálogo entre os vivos, resulta uma faceta extremamente comovente do filme – quem não experimentou, diante da notícia da morte de um ente querido, a sensação incómoda de que muito, quase tudo, ficou por dizer? A narração off, extremamente densa e rica de sentidos, intransigentemente glauberiana no tom e no gosto pela mistura, dá-nos conta de aspectos tão díspares quanto a notícia necrológica, alguns dados biográficos do defunto (como sejam: enraizamento local, viagens, influências, prémios, etc.), a importância da obra no contexto artístico brasileiro, a irrupção da negritude numa prática pictórica de origem «branca», a valorização exponencial das telas do autor logo após o seu falecimento… E tudo isso se conjuga, em jeito de hemorragia, com uma tonalidade hiperbolicamente lírica de elogio fúnebre. O «off» em Glauber, é tão decididamente subjectivo, tão radicalmente dramático, tão assumidamente desgarrado de qualquer regra de género, que por vezes chega a parecer-nos mais «in» do que as imagens, por muito ousadas e inesperadas que elas possam parecer. (A concepção do «off» em Glauber mereceria, por si só e por isto, inesgotável discussão…) Ora, efectivamente, as imagens de Glauber, por seu lado, não obedecem de todo aos critérios e normas habituais nos filmes em que se evoca a pintura como se fosse actividade de gente bem comportada. A montagem ofegante e irregularmente ritmada, que sublinha o carácter de «urgência» deste objecto fílmico artesanal, evidencia não menos a liberdade e a desenvoltura com que Glauber enquadra – de todas as maneiras, quanto mais oblíquas melhor – a fim de dar vida aos quadros que museus e mercado de coleccionadores não tardarão a mumificar. Donde as desfocagens, as esguelhas, as diagonais, os cortes contra-natura, o pulsar sem correcção da câmara à mão, etc. que não apenas fazem jus à matéria pictórica das telas modernistas (a grande sombra-luz do cubismo pairou por ali), como honram propósitos de decomposição e desconstrução. Modos de olhar no ver, se quisermos. Pensa-se, inevitavelmente, na abordagem oliveiriana das PINTURAS DO MEU IRMÃO JÚLIO. Menos formalista e formalmente acabado, DI CAVALCANTI de Glauber aproximanos diversamente do teatro da pintura, pois que pretende fazê-la explodir. É – e como é nobre esse propósito!!! – de devolução à voragem da vida e aos gestos com que nela podemos mexer que aqui se trata. Isto é: de arrancar às garras da mort(ificação) o que nasceu de uma necessidade inequivocamente vital…
«Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entende. Para o europeu é um estranho surrealismo tropical. Para o brasileiro é uma vergonha nacional. Ele não come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os remendos do tecnicolor não escondem mas agravam seus tumores. Assim, somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência.» Glauber Rocha, EZTETYKA DA FOME
Título original: TERRA EM TRANSE Realização e Argumento: Glauber Rocha Fotografia: Luiz Carlos Barreto Câmara: Dib Lufti Som: Aluizio Viana Montagem: Eduardo Escorel Música original: Sérgio Ricardo Maestro: Carlos Monteiro de Sousa Quarteto: Edson Machado Vozes: Maria da Graça (Gal Costa) e Sérgio Ricardo Música adicional: Carlos Gomes (O Guarani), Villa-Lobos (Bachianas n.3 e 6), Verdi (abertura de Otelo), canto negro Aluê do candomblé da Baía, samba de favela do Rio de Janeiro Cenografia e Figurinos: Paulo Gil Soares (trajes de Danuza Leão: Guilherme Guim) Produtor executivo: Zelito Viana Produtores associados: Luiz Carlos Barreto, Carlos Diegues, Raymundo Wanderley, Glauber Rocha Interpretação: Jardel Filho, Paulo Autran, José Lewgoy, Glauce Rocha, Paulo Gracindo, Hugo Carvana, Danuza Leão, Jofre Soares, Modesto de Sousa, Mário Lago, Flávio Migliaccio, Telma Resto, José Marinho, Francisco Milani, Paulo César Pereio, Emanuel Cavalcanti, Zózimo Bulbul, Antonio Câmera… BRASIL 1967 «O cinema é um instrumento de coração do capitalismo. Ou do policialismo. Liberdade, no cinema, sempre foi crime. Rimbaud, para lembrar um nome conhecido, que é ponto pacífico na poesia, se aparecesse fazendo filme como escrevia levava ovo na cara. Idem Cézanne. Até mesmo Van Gogh. E estes são artistas do século passado, nem mais vanguarda são considerados. Por que o cinema tem de ficar seguindo a narrativa de Maupassant?» Glauber Rocha fala-nos de cinema…
Se é pertinente sugerir que a curta-metragem DI CAVALCANTI dispara em todos os sentidos, mais legítimo será considerar que TERRA EM TRANSE dispara principalmente contra o céu. O filme, sacudido por vagas e rajadas como navio no coração da tormenta, narra um processo de derrota generalizada e também individual para desembocar no gesto afirmativo (embora suicidário) e absolutamente singular de um peito que se oferece como impossível barreira-barricada e escudo humano contra o avanço dos inimigos do humano: veja-se e reveja-se a sequência final, de composição quase minimalista e gestualidade parente do butô. Pese embora o facto de Glauber Rocha ter repetidamente afirmado que a cultura brasileira tem a ver com macumba e não com ópera, a dimensão operática (e, por conseguinte, eminentemente polifónica) de TERRA EM TRANSE salta aos olhos e aos ouvidos. A par de uma montagem que nunca se vale de soluções ortodoxas, de um lirismo verbal e compositivo que assumidamente opta pelo parti-pris da histeria, de uma maneira de abordar espaços e corpos paradoxalmente concreta e irrealista, de uma banda sonora e musical descolada de qualquer linearidade mas pronta a hiperbolizar para que o caldo transborde, Glauber dispõe-se a conjugar planos hieráticos com quadros desequilibrados, enquadramentos einsteinianos com bad filming bem avant la lettre, histrionismo e caricatura com verbo monologante. Se filma em planosequência e assim abraça o gosto pela durée e por aquilo que viria a receber o nome de imagem-tempo, é para melhor os interromper, praticando esse e outros crimes de lesa continuidade sobre as imagens que rodou. Esta – ou estas – são as vias tortas pelas quais o cineasta escreve a direito o «transe da consciência» e a impossibilidade do «triunfo da beleza e da justiça», não apenas condição histórica do Brasil, mas de toda uma América Latina neo-colonizada… ou não tivesse o filme um suposto Eldorado como local de acção. TERRA EM TRANSE é também (talvez sobretudo…) uma meditação alvoroçada sobre a eventualidade trágica de recorrer às armas para mudar o mundo que os homens de bem poderão ser obrigados a encarar. Uma vez dramatizada a manipulação do jogo dos políticos, dominado por golpes baixos e alianças infames, o filme não se autoriza a desaguar no inferno politicamente correcto das boas intenções. Ao final didáctico, Glauber Rocha prefere o grito que em si reúne a energia da exclamação e a inquietude da interrogação.