PROGRAMAÇÃO ASSOCIAÇÃO “OS FILHOS DE LUMIÈRE” AUDITÓRIO Organização e Produção Cristina Grande Pedro Rocha Ana Conde Coordenação Técnica e Som Nuno Aragão
PRÓXIMA SESSÃO
18 NOV 2012 EUA The eternal frame, Ant Farm e T.R. Uthco, 23’50, 1975 Ice, Robert Kramer, 130’, 1970
Momento XXII
CICLO O SABOR DO CINEMA 21 OUT-02 DEZ 2012
Luz Rui Barbosa
Auditório
Cinema/Vídeo Carla Pinto
28 OUT 2012 (Dom), 16h00 Apoio Institucional
Apoio
Fundação de Serralves / Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / www.serralves.pt / www.facebook.com/fundacaoserralves Informações: 808 200 543 / Reserva Bilhetes: 226 156 584 / Geral: 226 156 584
URSS Le train en marche, Chris Marker, 32’, 1971 A felicidade, Alexandre Medvedkine, 70’, 1934
e de passar para as mãos dos combatentes contra a exploração capitalista essas «armas» poderosas que permitem construir filmes. Nesta curta-metragem de Marker, Alexandre Medevedkine conta a história do kinopoezd, projecto que o realizador dirigiu de 25 de Janeiro de 1932 a 15 de Janeiro de 1933. Podermos ouvir essa notável aventura de criação artística, educação popular, agit-prop, etc. (tudo misturado) da boca de quem a viveu e lhe deu rumo é objectivamente aquilo que Marker quis colocar no coração do seu filme: após um sem número de deambulações que acompanham e abraçam o percurso do cineasta soviético em cenários de caminho de ferro, a câmara dá-lo a ver em muito grande plano – rosto enrugado e debruado a negro – para que usufruamos longamente de um FACE A FACE com ESSE olhar.
LETRAIN EN MARCHE Realização: Chris Marker Fotografia: A. Bogorov Com: Alexandre Medvedkine, François Périer (voz) FRANÇA 1971
Sabe-se a que ponto a figura e a obra de Alexandre Medvedkine é uma referência importante para Chris Marker. O ciné-comboio serviu não de modelo mas de inspiração para a actividade que, após Maio de 1968, o autor e outros companheiros seus, cineastas de vários domínios de especialização, implementaram e enquadraram em contextos de luta do operariado (Sochaux/Besançon), realizando o sonho de criar uma ponte entre o mundo do cinema e o mundo da fábrica
Significativamente, é sobre o OLHAR e sobre os antecedentes do olhar de Medvedkine que o estruturante comentário off do filme abre: a profecia de Lenine; o olhar impresso; as práticas de Eisenstein, Kaufman e Vertov; o cine-olho, o cinema-verdade e a verdade do que se viu e viveu. Medvedkine vai ser contextualizado na corrente dos homens que fazem história, sem que a sua singularidade seja minimizada. E a montagem de Marker como que se torna cúmplice dessa história: sem renunciar à singularidade jazzística das suas propostas, o autor lança-nos no caldo fervilhante da revolução soviética, através de fragmentos fotográficos e de gestos cinematográficos, adoptando sucessivamente posturas parentes do construtivismo futurista, modos eisensteinianos, maneiras vertovianas. O cinema enquanto diálogo transtemporal entre cineastas é deveras um segundo, discreto, fio condutor deste LE TRAIN EN MARCHE. E, nessa perspectiva, a sequência final sobre os carris, uma vez negadas as incompatibilidades entre vida e cinema, entre realidade e imaginação – graças à prova real de um filme caleidoscopicamente fantasioso mas não falso como A FELICIDADE de Medvedkine – ilustra com brio de solavancos e nós cegos a ideia de que o comboio da história não está parado.
A FELICIDADE Realização e Argumento: Alexandre Medvedkine Fotografia: Gleb Troyanski Música: Aleksei Aigi Cenografia: Aleksei Utkin Com: Pyotr Zinovyev, Yelena Yegorova, Mikhail Gipsi, Lidiya Nenasheva, Nikolai Cherkasov, Viktor Kulakov, V. Lavrentyev, G. Mirgorian, Pyotr Zinovyev, Yelena Yegorava. URSS 1934
Para além daquilo a que poderíamos chamar os tesouros de inspiração que sustentam os achados do filme – da iconografia do conto popular às histórias humorísticas, dos números de saltimbanco à farsa, do ilusionismo à associação surrealizante, mas sobretudo o sólido conhecimento do universo rural adquirido graças à experiência pessoal do kino-trem e colectiva do kino pravda –, esta irresistível obra de Alexandre Medvedkine funciona como uma espécie de lavagem de olhos em que espectador é convidado a participar numa verdadeira experiência de criação imagética, ela mesma alicerçada numa ininterrupta e alegre invenção gramatical: enquadramentos audazes, ângulos extremados, composição interna dos planos avessa a normas, dinâmicas singulares nos jogos de perspectiva e de mise à plat, etc. É certamente esta generosidade na partilha de saberes – e talvez não tanto aquilo que Eisenstein identificava como o «riso bolchevique», aproximando Medvedkine do talento de Chaplin, mas diferenciando-os por o segundo ser «individualista» – que transforma o visionamento de A FELICIDADE num momento de júbilo, fazendo plenamente jus ao título do filme (e ao seu plano final).
Na verdade, mesmo quando fala de miséria material e moral, de cupidez e de obscurantismo, Medvedkine não se poupa a esforços para que nos salte a tampa da tristeza, como se a infelicidade lhe parecesse uma porta aberta para o conformismo e a alegria um primeiro passo para a revolução. Acresce que Medvedkine escolhe para a sua narrativa um anti-herói nos antípodas do valente mujique progressista, pois que ele nem vive bem sob o czarismo, nem engrena logo nas regras de vida do kolkoze – é um sujeito desajeitado, fraco e frágil, desprovido de rasgo, de ambição e de arrojo… Em contrapartida, a sua companheira – e todo o filme é atravessado por um óbvio fôlego feminista –, a quem a «nova lei da terra aos que a trabalham» assenta como uma luva, não apenas dá mostras de ser uma criatura forte, capaz de puxar carroças e arados, perita em guiar as máquinas do futuro, como se confunde, desde o primeiro instante, com a encarnação da própria exigência revolucionária: «Vai procurar a felicidade e não voltes de mãos vazias!» Pese embora o muito que nos separa do mundo que serve de cenário à obra-prima de Medvedkine – e isso vai do regime político ao espaço natural onde a acção decorre –, A FELICIDADE é um filme que nos reconcilia com a esperança, duma maneira tanto mais eficaz quanto não foi concebido para confortar nas suas convicções os espectadores de antemão convencidos.