PROGRAMAÇÃO ASSOCIAÇÃO “OS FILHOS DE LUMIÈRE” AUDITÓRIO Organização e Produção Cristina Grande Pedro Rocha Ana Conde
PRÓXIMA SESSÃO
07 ABR 2013
Filme, Samuel Beckett, 20’, 1965, USA O Meu Caso, Manoel De Oliveira, 92’, 1986, França/PortugaL
Coordenação Técnica e Som Nuno Aragão Luz Rui Barbosa Cinema/Vídeo Carla Pinto
Momento XXIII
CICLO O SABOR DO CINEMA 27 JAN – 21 ABR 2013 Auditório
17 MAR 2013 (Dom), 16h00 Apoio Institucional
Apoio
A IMITAÇÃO Saguenail, 26’, 2003, Portugal NOTAS PARA UMA ORESTEIA AFRICANA Pier Paolo Pasolini, 65’, 1970, Itália Os filmes em língua estrangeira são legendados em português.
Fundação de Serralves / Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / www.serralves.pt / www.facebook.com/fundacaoserralves Informações: 808 200 543 / Reserva Bilhetes: 226 156 584 / Geral: 226 156 584
A IMITAÇÃO Realização: Saguenail Argumento: Regina Guimarães & Saguenail Assistentes de realização: Amarante Abramovici, Tiago Afonso Fotografia: Pedro Pinho Câmara: André Godinho Som e Misturas: Rui Coelho Perche: André Peixoto Música: Fernando Rodrigues, a partir da Paixão Segundo S. Mateus de J. S. Bach / Canto: Ana Deus, Fernando Rodrigues / Piano: Artur Guimarães Tratamento de imagem: Paulo Américo Fotografias (genérico): Jorge Quintela, Salomé Areeira Luz: Rui Ferreira, Miguel Ângelo Carneiro, Jorge Quintela, Salomé Areeira Cenografia: Alberto Péssimo / Adereços: Absinte Abramovici Animação: Abi Feijó Guarda-roupa: Maria Gonzaga Maquilhagem : Claire Vivet assistida por Samuel G. Barbosa e Sofia Barros Figurinos: Manuela Bronze assistida por Catarina Ferreira, Cristiana Lopes, Eunice Mestre Anotação: Absinte Abramovici Produção: Regina Guimarães Direcção de produção: Inês Maia Assistentes de produção: Alexandre Perdigão, André Martins, Pedro Bastos, Samuel G. Barbosa e Ana Moraes, Anita Peixoto, Jorge Rui Martins, Rosinha, Elisabete Piecho, Paloma, Patrick Bernaudeau Interpretação: tantos actores quantos os dias do ano nomeadamente Amadeu Vieira da Silva, Ângelo de Sousa, Isabel Alves Costa, João Paulo Seara Cardoso, Joaquim Maia entretanto falecidos. PORTUGAL 2003
Saguenail costuma contar que no princípio havia o desejo de cruzar a impressão causada pela grande exposição da fotógrafa Nan Goldin em Serralves – verdadeiro ensaio visual sobre a condição humana – com a Paixão de Cristo tal como fixada pelas estações da Via Sacra e tomando como referência o Bom Jesus do Monte aqui tão perto. Outras ideias se foram agregando ao núcleo inicial: fazer um filme sem acção propriamente dita; rodar uma ficção cujo protagonista fosse a humanidade inteira e para tal mudar, a cada plano, os atores que encarnam cada figura (a figura do Cristo, por exemplo, é interpretada por 42 atores); interrogar-se acerca da possibilidade de atingir a abstração através da articulação de elementos concretos; elevar os olhares a papéis principais; filmar, em muito grande angular, numa capela transformada em bar, mas só tardiamente revelar essa reciclagem do lugar de culto em lugar de libação; substituir a cruz pela garrafa de whisky; pensar uma Paixão embriagada (como Malcolm Lowry imaginara uma «Divina Comédia» ébria); privilegiar as mudanças brutais de ângulo e toda uma retórica de reconstrução abrupta e dramática do espaço; fabricar uma curta-metragem inteiramente musical, uma espécie de video-clip expandido sobre uma versão pop/ eletrónica de um fragmento da Paixão Segundo S. Mateus de Bach; etc. Na verdade, este caleidoscópio de ingredientes e intenções acabariam por redundar num filme desconcertante de tão singelo – embora muito densamente habitado, graças a um trabalho ciclópico de produção artesanal! –, já que se trata de desdobrar as pregas do manto da Paixão de modo a formular uma pergunta incómoda: há que deixar-se morrer como Cristo ou que trair cientemente como Pedro? Naquela Páscoa, inesperadamente chuvosa e bisonha de 2003, Saguenail fez questão de voltar a um dos seus espaços mentais obsessivos – o café-bar – para fazer dizer ao texto ancestral algo que só nas entrelinhas é possível ler, convertendo o episódio «lateral» da renegação de Simão Pedro em clímax da Paixão. É sobre um corpo estatelado na calçada e «crucificado» pela palavra mais do que pela bebida que se ergue um espetro de igreja ausente onde todo o «culto» não pode senão glosar fantasmas de traição. Por outro lado, trata-se interrogar o tempo: entre a aceleração de ANTES DE AMANHÃ e o forte afrouxamento de MAU DIA, Saguenail explora a ideia de tempo real fracionado/ decomposto em sucessões de segundos e polarizado em torno de estâncias. Assim, do fabuloso casting, organizado, qual comício, na Fábrica da Rua da Alegria, ao objeto final – ironicamente intitulado A IMITAÇÃO – corre um espaço-tempo às arrecuas que alia o que é ritualizado e o que é irrepetível, ficando o espectador sem saber para que lado se inclina o passado.
APPUNTI PER UN’ORESTIADE AFRICANA NOTAS PARA UMA ORESTEIA AFRICANA Realização e Texto Off: Pier Paolo Pasolini Fotografia: Giorgio Pelloni Assistente de Câmara: Mario Bagnato, Emore Galeassi Som: Federico Savina Música original: Gato Barbieri e Dinald F. Moye Montagem: Cleofe Conversi Produção: Gian Vittorio Baldi Interpretação: Gato Barbieri, Donald F. Moye, Marcello Melis, Yvonne Murray, Archie Savage ITÁLIA 1970 De uma forma geral, os «appunti» pasolinianos são hoje em dia considerados pela crítica cinematográfica como uma forma plenamente assumida pelo malogrado realizador italiano. Na verdade, a primeira observação que apetece formular ao rever, com grande prazer, este não-documentário não-ficção é a que decorre da necessidade de saudar a postura de Pasolini que, coisa rara entre os cineastas, eleva o rascunho e a reflexão sobre o trabalho de criação a formas à part entière, pese embora a sua aparência de esboço e de inacabamento. Trata-se, ao contrário do que poderia parecer, de um indício da maturidade possível da sétima arte que, graças à diversificação e à mistura de géneros, se haverá – oxalá! – de libertar dos muitos padrões que a espartilham. Acontece que estas «notas» – o título transparece modéstia, mas não nos deixemos enganar pela humildade polida de um homem de cultura e de arte tão polivalente quanto passional – se encontram organizadas de uma maneira tão extremamente complexa que, à posteriori, as más línguas poderiam aventar que jamais Pasolini terá desejado dar à sua «Oresteia africana» outra aparência que não esta. Trata-se, desde logo, de uma tripla/quádrupla transposição: transformar a peça teatral esquiliana em peça cinematográfica; transportar o mundo grego arcaico para a África no limiar da modernidade por obra e graça da libertação do jugo colonial; trocar a escolha de atores calejados por não-atores, descobertos por uma sucessão de felizes acasos, que pela primeira vez usariam coturno; devolver a eloquência da dimensão poética ao texto de Ésquilo, através de uma opção de tratamento predominantemente musical, de tipo jazzístico, confiando as palavras do velho mundo às vozes do Novo Mundo (esse onde, nos idos de sessenta, 20% da população era composta por proletários negros, de longínqua origem africana). Adivinha-se que a fúria alquímica de Pasolini não podia ficar por aí: no contexto de uma busca que no filme se plasma por uma constante «deslocação» – a milhas do road movie bem comportado que, aos poucos, se foi conformando ao molde do «género» (mais um!!!) –, o realizador descobre que a melhor figuração das Fúrias/Eríneas são as poderosas árvores africanas fustigadas pelo vento, por exemplo… APPUNTI PER UN’ORESTIADE AFRICANA arranca com um plano de Pasolini refletido num espelho – significativamente, o autor coloca a sua demanda sob o signo da implicação pessoal, da procura do lugar do seu fantasma-voz-vulto no guião trágico – e logo prossegue apresentando-se como uma errância entre Tânziana e Uganda, entre aldeias arcaicas e novas urbes, com vista a um mega-casting. Claro que Pasolini poderia ter-se agarrado a esse sólido fio da sua meada, limitando-se a dar-nos a conhecer rostos e cenários de um continente desconhecido, desarmante, fascinante. Porém, o cineasta desconfia da tentação folclorizante e da antropologia de trazer por casa. Pelo que, a par dessa sua nunca abandonada rota – desencantar caras e locais que conferissem ao texto esquiliano potenciado sentido –, não tarda a abrir brechas no edifício pseudo-documental, de
vários e imaginosos jeitos: interrompendo-se e expondo-se, nas cenas em que submete o seu projeto à apreciação de um grupo de estudantes africanos da Universidade de Roma, sem se coibir de exprimir as suas convicções pessoais; ensaiando a representação de fragmentos da Oresteia em espaços e com atores que agradam ao seu coração (nomeadamente, o início das «Coéforas»); rumando a Nova Iorque e, graças à colaboração de músicos (Gato Barbieri, Donald F. Moye, etc.) e de cantores negros, experimentando uma mise en voix da sequência em que a personagem vidente de Cassandra revela ao coro o crime de Clitemnestra no momento exato em que ele acontece por detrás das paredes do palácio de Argos; fazendo-nos entrever a África pós-neo-colonial das universidades e outras instituições, cujo rápido surgimento se deve à ajuda dos grandes países socialistas, onde porém já se inscreve a submissão à cultura estadunidense; colocando-nos perante o horror da destruição e o pesadelo das execuções sumárias, etc. A voz off de Pasolini serve-nos de guia, por sobre imagens montadas segundo uma lógica de conjugação racional-irracional inspirada no funcionamento do free-jazz, corrente experimental contemporânea da realização do filme (não iria Gato Barbieri ser «revelado» ao mundo pela banda sonora do ÚLTIMO TANGO EM PARIS?). Mas essa voz off narra a sua aventura em simultâneo com uma banda sonora que subtilmente conjuga o som síncrono, sons pós-sincronizados e uma progressão musical que passa da heróica Varsoviana para a dissonância lírica do jazz libertário e desagua em fragmentos de música ritual africana, de matriz tradicional, contudo já atravessada pelos ventos do presente. No fundo, a osmose entre as conceções heróicas que o socialismo pariu, o património cultural local e a importação de outros modos culturais, porventura mais hedonistas, de «estar no mundo» é a «forma» que Pasolini inventa para exprimir a transformação das furiosas Eríneas nas apaziguadoras Euménides. APPUNTI PER UN’ORESTIADE AFRICANA é, sem exageros reverenciais, um puro hino à inteligência do espectador e ao flagrante desejo de futuro das nações africanas recém-libertadas. Se meditarmos um pouco sobre o que tem sido esse futuro do passado, conseguimos medir a justeza trágica do gesto pasoliniano.