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Título original: THE IDLE CLASS Título em português: Charlot amador de golfe Realização, Argumento e Música: Charles Chaplin Fotografia: Roland Totheroh Intérpretes: Charles Chaplin, Edna Purviance, Mark Swain, Henry Bergman, Al Ernest Garcia, John Rand, Rex Storey EUA 1929

PRÓXIMA SESSÃO

01 DEZ 2013

QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO, João César Monteiro, 33’, 1971, Portugal O RIO DO OURO, Paulo Rocha, 103’, 1999, Portugal

Titulo original: L’ARGENT Título em português: O Dinheiro Realização: Robert Bresson Argumento: Robert Bresson, a partir de «A Nota Falsa» de Leon Tolstoi Música: Johann Sebastian Bach Fotografia: Pasqualino De Santis, Emmanuel Machuel Montagem: Jean-François Naudon Guarda-roupa: Monique Dury Produção: Jean-Marc Henchoz, Daniel Toscan du Plantier Interpretação: Christian Patey, Vincent Risterucci, Caroline Lang, Sylvie Van den Elsen, Michel Briguet, Béatrice Tabourin, Didier Baussy, Marc Ernest Fourneau, Bruno Lapeyre, François-Marie Banier, Alain Aptekman, Jeanne Aptekman, Dominique Mullier, Jacques Behr, Gilles Durieux FRANÇA 1983

Momento XXIV

CICLO O SABOR DO CINEMA 03 NOV – 08 DEZ 2013 Auditório

PROGRAMAÇÃO ASSOCIAÇÃO “OS FILHOS DE LUMIÈRE” AUDITÓRIO Organização e Produção: Cristina Grande, Pedro Rocha, Ana Conde Coordenação Técnica e Som: Nuno Aragão Luz: Rui Barbosa Cinema/Vídeo: Carla Pinto

24 NOV 2013 (Dom), 16h00

THE IDLE CLASS (Charlot, amador de golfe), 32’, 1921, EUA L’ARGENT (O Dinheiro) Robert Bresson, 85’, 1983, França Apresentação dos filmes pela Associação “Os Filhos do Lumière”. Apoio Institucional

Apoio

Fundação de Serralves / Rua D. João de Castro, 210 / 4150-417 Porto / www.serralves.pt / www.facebook.com/fundacaoserralves Informações: 808 200 543 / Reserva Bilhetes: 226 156 584 / Geral: 226 156 584


THE IDLE CLASS Comecemos por atentar – uma vez não são vezes – na tão disparatada quanto significativa tradução para português do título desta pequena jóia da cinematografia chaplinesca: a designação THE IDLE CLASS, que significa literalmente «a classe ociosa», converteu-se em «Charlot amador de golfe», operação de travestimento que nos elucida grandemente acerca da mercantil intenção de transformar esta explosão moral do autor-e-ator em apenas mais um inofensivo episódio da vida do simpático vagabundo. Coisa que o acertado pontapé, assente por Charlot no traseiro do papá endinheirado da protagonista, desmente com veemência... A utilização da figura da duplicação, mais de dez anos antes da estreia d’O GRANDE DITADOR, é uma das particularidades deste filme – utilização de resto fértil em sentidos e consequências. Porém, enquanto nada verdadeiramente irmana, à partida, as personagens do barbeiro judeu e do tirano germânico, em THE IDLE CLASS, uma subtil e comum melancolia caracteriza o marido rico e alcoólico e o vagabundo mísero. Não se trata pois unicamente de enfatizar a profunda igualdade entre os homens, a despeito da situação/condição de classe que os separa, mas também de puxar para o terreno da subjectividade – interna e externa à ficção – as vivências nas quais assenta a construção das personagens e das ações. É consabido que Chaplin trouxe para o cinema a condição da pobreza, de que teve pessoal e precoce experiência, ousando elevar o vagabundo Charlot à qualidade de protagonista constantemente solicitado para desdobrar o mundo e denunciar os valores que o regem. Menos explícita é esta atitude – que aqui campeia – de partilhar a sua

experiência de homem abastado e marido rico. A bela Edna Purviance era, na altura, a mais assídua partenaire de Chaplin (em menos de 8 anos, estreou em mais de 30 filmes com ele...) e terá sido, também, sua amante. Ao encenar-se, face a Edna, simultaneamente como marido afortunado e desatento e como enamorado pobre e atencioso, o realizador coloca os seus próprios afetos e fraquezas no fulcro de um filme cujo centro é, precisamente, um baile de máscaras. Atente-se na ideia genial de enfiar o marido burguês dentro de uma armadura medieval que o tolhe e o impede de se exprimir. Atente-se também na escolha do golfe – um desporto de gente distinta que combina pontarias e trajectórias – enquanto cenário da sequência que prepara, multiplicando os quiproquós, o jogo de substituições que constitui o corpus delicti de um filme cujo final, curto e grosso, resume com inequívoca eloquência o sentimento do autor relativamente à classe ociosa...

L’ARGENT Robert Bresson – vulto maior do cinema francês e mundial, autor de referência para inúmeros criadores cinematográficos e não só – realiza o seu derradeiro filme em 1983. Contava então 82 anos. A despeito do reconhecimento crítico que o envolvia e do seu rigor de praticante de um cinema austero, sabe-se que não conseguiu reunir meios para produzir a adaptação da Génese bíblica que teria porventura sido algo como o seu testamento cinematográfico. Talvez não seja descabido relembrar algumas das opções que Bresson tomou para o seu cinema, posto que elas são aqui escrupulosamente respeitadas. A saber: o recurso a «modelos», ou seja a atores não profissionais sem experiência de representação; a atribuição de igual importância ao plano do visual e ao plano do sonoro e correlativa valorização do fora de campo; a multiplicação das tomadas de vista no intuito de atingir um patamar onde o lado oculto dos «modelos» se revela; a estilização das vozes, numa ótica anti-naturalista; uma câmara sóbria ao nível dos movimentos de aparelho, que privilegia os gestos e a gestualidade criadora de elos. Recordemos também que Bresson – que constitui um caso relativamente raro de cineasta com reflexão articulada (e tornada pública) sobre os pressupostos do seu trabalho artístico – amiúde explicitou,

através de declarações de uma limpidez sui generis, a sua postura de fabricante de representações: «Um ator não pode ser natural»; «Não há arte sem surpresa, sem mudança»; «Esforço-me por não pensar, forço-me a ter uma ideia espontânea»; «Acredito muito na beleza, mas a beleza só é beleza se for nova». É impossível olhar o cinema de Bresson escamoteando aquilo que nele transborda: o apego às convicções singulares do catolicismo. Não raro, os críticos realçam a ligação entre a sua obra e o pensamento jansenista. Mantendo em mente as figuras desse quadro de entendimento do mundo e do homem – cujo ponto fulcral é uma antropologia pessimista, que atribui ao pecado original a corrupção da natureza humana, estando o homem fatalmente inclinado para o mal – será porventura menos difícil perceber a vertigem chamada destino que leva o protagonista de L’ARGENT, um homem reto e íntegro, a metamorfosear-se numa espécie de executante dos crimes que o mal lhe dita. Aqui, a esperança de redenção obriga a vítima a ir até às últimas consequências da sua humana condição, isto é, a transformar-se em carrasco. A este título, cite-se o curioso e profético comentário do diretor da prisão aquando do primeiro encarceramento de Yvon: «Frequentemente, aquele que nunca matou ninguém é mais perigoso do que aqueloutro que nos chega após dez homicídios». Se quiséssemos traduzir, de maneira singela e resumida, o que se passa com Yvon é que a experiência, direta e brutal, da injustiça o faz perder a noção do bem e do mal. Por outro lado, a orgânica da «circulação do mal» não é de todo linear, já que os seus instigadores – o adolescente da alta burguesia, por sua mãe protegido, e o empregado da loja de

fotografia, pelos patrões levado a prestar um falso testemunho – não são verdadeiramente obrigados a «pagar» pelos seus atos... Objeto de uma desconcertante pureza de fabrico, toda ela feita de despojamento inteligente, L’ARGENT é um filme que aborda o dinheiro como se ele fosse, literalmente, um veneno que contamina todos quantos o tocam, intoxicando irremediavelmente as relações humanas, visão que parece situar-se nos antípodas da racionalidade e na vizinhança da superstição... Cobardia, cobiça e corrupção são os mais óbvios sintomas da doença que o mal espalha e cada crime não passa de um elo numa infinita cadeia, numa engrenagem implacável. A dureza com que Bresson encara os malefícios do vil metal impele-o para uma montagem abrupta, para enquadramentos e quadros a eles internos onde abundam as formas agudas, as grades e gradeamentos, as barreiras e obstáculos, mas também para a expressão do vazio que marca a profunda solidão das suas personagens, sejam elas o dandy atraído pelo anarquismo pró-ativo ou a praticante da escravidão voluntária que acolhe Yvon, seu futuro assassino, debaixo das suas saias. Em toda a imagética bressoniana, as portas (que ora se abrem para a libertação, ora se fecham sobre a condenação) ocupam um lugar de destaque. Bresson observa a marcha trágica do mal sem nos conceder o refúgio de um caridoso «do mal o menos» e sem nos autorizar a ilusão de que, a fim de o amansar e minimizar, bastaria «dividi-lo pelas aldeias». Arte de escavar e (per)seguir caminhos, o cinematógrafo bressoniano nunca deixou de escolher os mais longos, profundos e paradoxais.


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