CINEMA
Momento XXIV
CICLO O SABOR DO CINEMA 03 NOV – 08 DEZ 2013 Auditório
01 DEZ 2013 (Dom), 16h00
QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO, João César Monteiro, 33’, 1971, Portugal O RIO DO OURO, Paulo Rocha, 103’, 1999, Portugal
O cinema é uma vigarice (Godard) mas essa vigarice pode ser ultrapassada. in QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO, João César Monteiro
Título do filme: QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO MORRE DESCALÇO Realização, Argumento e Produção: João César Monteiro Assistentes de realizaçâo: Solveig Nordlund, Jorge Silva Melo, Óscar Cruz Fotografia: Acácio de Almeida Som: Alexandre Gonçalves Música: José Alberto Gil Direção de produção: Jorge Silva Melo Interpretação: Luís Miguel Cintra, Antónia Brandão, Carlos Porto, Elsa Figueiredo, Helena Gusmão, Manuel Gusmão, Paula Ferreira, Jorge Silva Melo e vozes de João César Monteiro, Nuno Júdice e Helena Gusmão PORTUGAL 1970
Perante este filme errante que o seu autor ousou qualificar de errado, apetece antes de mais dar a palavra – e que palavra!!! – a quem o comete: «Nesse mesmo ano, tentei pôr de pé um projeto de filme em 16 m/m, intitulado «Quem espera por sapatos de defunto morre descalços». Dois dias de filmagens e rabinho entre as pernas. Falta de xis. (...) Estimulado por algumas boas vontades (saudades), resolvi repegar no projeto «Quem espera por sapatos de defunto morre descalço», cujas filmagens se arrastaram ao longo de dois anos. Numa altura em que eu já deitava o filme pelos olhos, a Fundação Gulbenkian concedeu-me (obrigadinho) um subsidio de $$$$$$$$$$$$$$$$... 180 contos, divididos em 3 prestações. Aqui, tive a tentação de dar uma volta. Pedi ao Vasconcelos para filmar dois planos que faltavam ainda ao filme, e fui. Itália e a inevitável Paris. Esgotada a finança, voltei para acabar o filme, receber a última prestação e partir outra vez, ora de comboio, ora à boleia, consoante a inspiração: Barcelona, Marselha, Florença, Milão, Como, Cernobbio, Paris. Entretanto, o filme começou por ser relativamente mal recebido junto do Mecenas (quereriam ópera por 180 contos?), continuou, pateado num festival no Sul de Espanha e foi friamente acolhido pelos críticos presentes em Nice, aquando da chamada Semaine du Jeune Cinéma Portugais. Foi pena, porque me teria dado jeito, sobretudo no que toca à fruição de algumas benesses locais, mas já que não pôde ser, paciência! Tirando isso, aproveitei a estadia niçoise para comprar um lindo fato de banho de duas peças com a nota de 100 francos que o João Bénard me emprestou e ameacei partir uma garrafa de tinto na cabeça do Cunha Teles que, impensadamente, me chamou oportunista. Não sou uma natureza agressiva, antes pelo contrário, mas ser insultado por um manhoso negociante é coisa que me põe fora de mim.» Ou, falando da natureza do seu primeiro projeto, cuja realização foi interrompida pela feitura de uma curta acerca da Sophia: «Filme opaco, secreto como um búzio. Parafraseando Rimbaud, é necessário dizer que le vrai film est ailleurs. O que se pretende filmar não é tanto o filme mas o seu reflexo. Obscuramente, como num espelho.»
Depois de termos tido o privilégio de ver ou rever RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA, cuja configuração traduz a transformação do artista na sua forma, vamos desta feita poder apreciar o tronco frágil donde provém o fruto amadurecido... Quem conhece esse seu outro filme, estará recordado de que na cena do manicómio, João de Deus acaba por receber a proteção de um paciente (interpretado por Luís Miguel Cintra), identificado como Lívio e conotado com uma história de roubo de fundos para realizar um filme. Pois esse tal «demente» envelhecido é, mais de vinte anos antes, o lívido Lívio, protagonista de QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO..., encarnado pelo então muito jovem Luís Miguel Cintra que faz aqui a sua primeira aparição no cinema. Arrancando com uma espécie de falsa partida – alinhamento de bouts d’essai sobre fundo sonoro de lamento pela perda da inocência e da livre circulação num mundo de espelhos («Este país, senhores, é um poço onde se cai, um cu donde não se sai.») – QUEM ESPERA POR SAPATOS DE DEFUNTO... é um filme cheio de queixas, remorsos e promessas («Como então disse ele? E era como se a vergonha lhe sobrevivesse.» Franz Kafka) ou «Serei duro. Serei ocioso e brutal (...) serei maldito» Arthur Rimbaud). Um filme concreta e potencialmente cinéfilo e eivado de leituras, recheado de referências a Godard, mas também ao VERDES ANOS de Paulo Rocha («Ai minha senhora...»), com Luís Vaz de Camões («Um mover de olhos...») e a sombra de Cesário à mistura e por aí fora. Um filme com acentuados contornos meta-cinematográficos, não apenas por exibir, como fratura exposta, mecanismos da sua feitura, como por remeter para fortes referentes da esfera audiovisual: o comboio do cinema, em positivo e sonoro e em negativo e mudo, não entrando na estação como o dos Irmãos Lumière, mas dela abalando, como que indiciando o fim do cinema «clássico»; o espelho-psyché, sugerindo uma espécie de anti-televisão, onde de novo se joga o drama de Orfeu. Etc. Posto isto, mais relevante do que realçar a solidez da formação literária e cinéfila de João César Monteiro (patente em todos os seus filmes) e o seu gosto pela citação (permanente
piscar de olhos ao pai Godard), talvez seja de reparar em aspetos ainda mais marcadamente pessoais e delicados desta segunda obra que haveria de ter sido a primeira. A saber: a delicadeza e o rigor do enquadramento – quando a câmara filma alguém que toca algo ou alguém, a sua postura é da ordem da carícia – contrastando violentamente com a crueza do tom dos diálogos e vozes off («ela (Mónica, estudante de Letras) emprenha pelos ouvidos e aborta pelos olhos») e com os elementos parentes do abjecionismo (a queda da barata no copo de água); os modos líricos da utilização do negro e dos fondus a branco; uma concepção de som nos antípodas do naturalismo, que honra a cultura melómana do autor. Sobre este último ponto, não deixa de ser interessante sublinhar que o fato de Lívio / Luís Miguel Cintra ser dobrado pelo próprio João César Monteiro não apenas adensa a expressão da subjetividade como instala um desfasamento suplementar entre imagem e som. Estamos seguros de que tanto o recuo como os fardos do tempo presente ajudam o espetador a fruir deste filme com acrescida acuidade. E não menos a medir o vigor da trajetória que separa o banco do Príncipe Real onde Lívio experimenta os sapatos do defunto e o mesmo banco onde o João Vuvu de VAI E VEM aguarda e desafia, com ágil serenidade, a morte.
Título do filme: O RIO DO OURO Realização: Paulo Rocha Argumento: Regina Guimarães e Cláudia Tomaz, a partir de uma ideia original de Paulo Rocha Fotografia: Elso Roque Assistente de Imagem: Lorete Roque Assistentes de realização: Paulo Guilherme, Ângela Sequeira, Amarante Abramovici Cenografia: Alberto Péssimo e Jorge Gonçalves Guarda-roupa: Manuela Bronze Música: José Mário Branco Canções: Regina Guimarães e José Mário Branco Som: Nuno Carvalho Montagem: Edgar Feldman, Cláudia Tomaz, Paulo Rocha Efeitos especiais: Vítor Calvo Direção de produção: João da Ponte Produção executiva: João Pedro Bénard Produtora: Suma Filmes Interpretação: Isabel Ruth, Lima Duarte, Joana Bárcia, João Cardoso, José Mário Branco, António Capelo, Filipe Cochofel, António João Rodrigues, Alice Silva, Vitalina Beleza, Absinte Abramovici, Joana Mayer, Saguenail, Maria José Marinho, Marco Fernandes, Pedro Santos, Diana Sá PORTUGAL 1998
Segundo Paulo Rocha, a ideia de voltar ao Norte e ao Porto, para realizar um filme assente na força da paisagem fluvial duriense, partiu de uma memória muito antiga: uma mulher à janela a olhar o rio, com os cabelos em desalinho e um olhar desvairado. A ampliação dessa imagem fundadora começou por ter uma forma de filme compósito – isto é, composto de vários episódios independentes, inspirados em trechos de Agustina e histórias ligadas à vida de Mª Antónia Ferreira, dita a Ferreirinha, por exemplo. Esse primeiro desenho tinha como título «A Balada do Rio do Ouro» e dele faziam já parte sequências que o autor viria efetivamente a filmar, nomeadamente a fabulosa cena em que Mélita é atada a uma cadeira por sua madrinha ensandecida e besuntada de mel para que as abelhas, quais Erínias ancestrais, a venham castigar, seguida de sua salvação pelo «padrasto», do sanguinolento assassínio deste último e da pintura a sangue das paredes do quarto conjugal. É interessante constatar que da balada restam não apenas núcleos de fição, no plano diegético, mas também um gosto assumido pelo fragmentário, assim como uma mise en scène devedora da dança e submetida a critérios de musicalidade. Uma das mais jovens participantes na equipa artística, encarregue de preparar o trabalho de montagem, comentava no final da rodagem que os planossequência de Paulo Rocha – inúmeros, belos e sofisticadíssimos n’O RIO DO OURO – eram concebidos e realizados como filmes fechados sobre si mesmos ou andamentos musicais. Ao saltar de uma hipótese de «balada», cujas «estrofes» seriam formas breves (curtas-metragens), para uma forma longa de caudaloso filme-rio, Paulo Rocha obedecia ao desejo de realizar um grande fresco negro e melodramático, dirigido a um vasto público popular que, no seu entender, estaria melhor do que ele próprio preparado para entender o desespero de uma heroína digna da tragédia grega, bem como a assimilação do ouro ao mel e ao sexo que obscuramente move os protagonistas. E isto porque, ainda segundo o cineasta, o sujeito que cometeu a obra seria «incapaz de fazer mal a uma mosca» mas se encontra literalmente habitado /assombrado por histórias de vingança e morte, ouro e sangue, dignas dos folhetos vendidos pelos ceguinhos na época – errática, é certo – em que a
ação decorre (atente-se nas cenas protagonizadas por José Mário Branco, tocador de acordeão, e nas redondilhas que ele canta na cena da estação de S. Bento e, em off, no genérico final). Dentro de uma perspetiva de visitação do imaginário popular, Paulo Rocha fabricou, neste seu RIO DO OURO, cenas que a história do cinema haveria de reter, nomeadamente os planos do S. João na suposta aldeia da Barquinha que conjugam o espelho da água e os jogos de luz do fogo. Diga-se que o gosto pelas festas populares já dera formosos frutos em MUDAR DE VIDA (S. João no Furadouro) e, a partir da experiência duriense, nunca mais deixará de marcar presença nos filmes rochianos que se seguiram – A RAIZ DO CORAÇÃO, AS SEREIAS, VANITAS, SE EU FOSSE LADRÃO. Porém não podemos deixar de realçar outros momentos inolvidáveis do filme: por um lado, os que têm a ver com a recuperação de memórias pessoais, como sejam as conversas de Lima Duarte (como António, o pai do cineasta fez vida e fortuna no Brasil), ou o tango dançado no exíguo quarto verde do Zé dos Ouros (peça musical cara a Cândida, sua mãe); por outro, as alusões aos «modelos» de cinema que o realizador mais prezava, como sejam a citação de «Francisca» de Manoel de Oliveira (o pequeno rádio da tasca debita a banda sonora da famosa cena do coração, como se de um folhetim se tratasse, perante um auditório que a escuta religiosamente) ou a cena da barca encalhada entre juncos (da qual Paulo Rocha dizia tratar-se de um parêntese «ajaponesado»); por fim, os momentos em que o filme descola para uma estética barroca que não será difícil conetar com o património iconográfico comum a todos os portugueses, como sejam todos trechos que preparam e concretizam o voo da intrépida Carolina/Isabel Ruth. Não podemos deixar de frisar, nestas poucas linhas, dois outros dois aspetos que têm a ver com o tom e a visualidade d’O RIO DO OURO. Primeiramente, algo que Paulo Rocha fazia questão de lembrar quando falava do figurino por ele escolhido para a produção, a saber, o confronto, porventura conflituoso, entre uma equipa lisboeta e uma equipa portuense, a fim de subtrair a rodagem àquilo que ele designava como a «preguiça inteletual e hedonista da capital». Em segundo lugar, a qualidade plástica e volumétrica excepcional da cenografia, assinada pelo pintor
Alberto Péssimo, em colaboração com o arquiteto Jorge Gonçalves, cujas paleta de cores e organização de espaços em convulsão não seria desdenhada pelos mestres do expressionismo; e também a audácia do guarda-roupa, de Manuela Bronze, que, em lugar de se cingir a simulacros de historicidade, se solta rumo ao terreno dos afetos e dos símbolos. Na verdade, o cinema, amiúde escravo do dinheiro ou por ele escravizado, tem, por essa razão, um estatuto peculiar no quadro geral das artes, mas não deixa, no entanto, de ser encarado por uma minoria como terreno de livre criação. Paulo Rocha sabia disso e com isso sofria, não sem a imensa ironia de que era capaz. Não será por acaso que, correndo o risco de se arruinar a cada filme, foi seu próprio produtor. Ora, como alguns – raros – autores (nos quais Pedro Costa se inclui) têm vindo a explicar, a opressão do sistema não impede a vontade de fazer filmes tão livre e ininterruptamente como o escritor escreve ou o pintor pinta. Daí que, se alguma estranheza o espetador sentir face à maneira como Paulo Rocha constrói e desconstrói os seus tempos fílmicos (na rodagem e na montagem) não será inútil lembrar-lhe que, tal como frente a uma tela de Monet ou Cézanne, se encontra diante de um estado da reflexão contínua que o artista desenvolveu acerca do trânsito das presenças entre luz e sombra, passado e futuro, aqui e além. Paulo Rocha, nascido no Porto a 22 de Dezembro de 1935 atravessou para a outra margem há já quase um ano. Desta outra onde nos debatemos com os seus fantasmas, o saudamos com profunda emoção.
PROGRAMAÇÃO ASSOCIAÇÃO “OS FILHOS DE LUMIÈRE”
PRÓXIMA SESSÃO
AUDITÓRIO Organização e Produção: Cristina Grande, Pedro Rocha, Ana Conde Coordenação Técnica e Som: Nuno Aragão Luz: Rui Barbosa Cinema/Vídeo: Carla Pinto
GREED (Aves de Rapina) Eric von Stroheim, 140’, 1924, EUA
Apoio Institucional
08 DEZ 2013
Apoio
Fundação de Serralves / Rua D. João de Castro, 210 . 4150-417 Porto / www.serralves.pt / serralves@serralves.pt / Informações: 808 200 543 PARQUE Entrada pelo Largo D. João III (junto da Escola Francesa)