STEEVE McQUEEN Visita Guiada Do cineasta Steeve Mcqueen (nascido em Londres em 1969), Serralves apresenta-nos quatro obras: ‒ EXODUS ‒ 1992 / 1997 ‒ BEAR ‒ 1993 ‒ CARIB'S LEAP ‒ 2002 ‒ WESTERN DEEP ‒ 2002 devendo a apresentação dos dois primeiros filmes ser entendida como uma contextualização das obras co-produzidas por este Museu e podendo as duas últimas peças ser percebidas como um díptico. Estamos, como se deduz pelas datas, perante um artista que se afirma nos anos noventa, década do advento da imagem digital, com consequente conquista galopante, por parte desta última, do mercado da produção de filmes, primeiro porque a montagem virtual se apresentou como uma alternativa, aparentemente mais barata e mais funcional, às clássicas moviolas, depois porque o suporte digital se oferecia como uma revolucionária possibilidade, para os cineastas, de retomarem um pouco nas mãos o seu destino de artistas, como terá ficada claro para os espectadores do QUARTO DE VANDA de Pedro Costa. É pois interessante sublinhar em Steeve Mcqueen um sólido apego ao suporte película, apego que não desejo considerar simples parente de uma superficial moda retro e correlativo entusiasmo pelo "bad filming", que tem vindo a evitar o definitivo desaparecimento do suporte super 8. Há nessa escolha uma evidente preferência pela brutalidade e pela força matérica do suporte dito "amador", mas existe também, a meu ver, um gesto de voluntário retrocesso no que diz respeito àquilo que a imagem interroga e à forma como o faz. Pois embora a imagem cinematográfica mais não faça do que interrogar e construir formas de ver, essa sua vocação tem vindo a ser subalternizada pela hegemonia da ficção e por um conflito, sempre dissimulado, entre impressão de realidade e impressão de irrealidade. Se atentarmos nas quatro obras proposta à nossa fruição, sem excluirmos pois EXODUS muito embora à partida se trate, segundo percebi, de um trabalho de escola, detectaremos quatro questionamentos "primitivos" da forma de ver que o cinema é, bem como quatro interrogações da nossa maneira de ver enquanto postura "cultural". A identificação desse questionamento é porventura dificultada pela grande pujança plástica de algumas destas obras. Por isso, já que a visita se quer "guiada", proponho-vos esse fio condutor, pedindo-vos que atentem no seguinte: ‒ Em EXODUS, Mcqueen segue, qual caçador furtivo de imagens, duas pessoas, do sexo masculino e pele negra, que transportam, pela rua fora, no meio dos transeuntes, dois vasos com jovens coqueiros, de porte já algo incómodo. As duas personagens, que podemos ligar a uma África-mãe, por muito longínqua que essa ligação seja, transportam também com elas, esse mistério, tão caro ao humor do cinema mudo e a Jacques Tati, do estar-se deslocado no cenário. Contudo, a dado passo, estabelece-se uma cumplicidade entre as personagens, apanhadas pela rede da ficção, e a câmara que as vigia e persegue, tornando-se óbvio para o espectador que toda a realidade fílmica é matéria construída, ainda que possa aparentar displicência e espontaneidade. ‒ Em BEAR, o cineasta entretece dois fios de ficção distintos. O primeiro, tem a ver com a direcção de actores e desenvolve a questão a ambiguidade da relação amorosa, no que ela comporta de aparência agressiva; os dois lutadores de boxe, em confronto de corpos e olhares, evoluem dos "rounds" em a violência domina a produção de sentido (e de sensualidade) para uma dança nupcial. Esbatem-se as
fronteiras entre o combate e a coreografia, numa matéria fímica em que a câmara também dança, luta e ama. O segundo fio prende-se com a exuberante multiplicação de enquadramentos e ângulos, um pouco como se o cineasta reinventasse o cinema e sua complexa gramática, voltando a "levar ao tapete" o desejo de criação dum espaço puramente fílmico, feito de olhares que nos devassam e corpos que nos olham. Essa dimensão torna-se tanto mais pujante quanto a relação do espectador com a imagem que ocupa toda uma parede de assemelha à dum visitante a esbarrar com a quarta parede dum teatro. No seu CHARME DISCRETO DA BURGUESIA, Buñuel ironizava com o facto de ter existido uma utilização comum, pela arte cinematográfica e pela arte dramática, das mesmos espaços físicos, utilização essa que deu origem, entre nós, ao formato "cineteatro". À imagem do que acontece com o grupo de comensais, sentado à mesa dum banal restaurante, quando se descobre em cima dum palco e frente a uma plateia de espectadores, os visitantes de BEAR experimentam a estranha sensação de verem o espaço da sala onde penetram violado pela agitação erótica de dois amantes, como que perdidos numa trajectória virtual, em colisão com o aqui e o agora. Os corpos viris em estado de relação constroem uma ideia de masculinidade que sem dúvida lembra o corpo do urso que a mãe não soube lamber. Um corpo que carrega os humores não eliminados pela higiene, pela toilette "ritual", iniciática, no instante em que o mamífero se vê despejado no mundo. ‒ Em CARIB'S LEAP ‒ O Salto das Caraíbas ‒ o cineasta conjuga um ecrã habitado por uma imagem simbólica, de cariz algo hipnótico, com um quase documentário acerca do ciclo de actividades humanas dos habitantes duma ilha do mar das Caraíbas. Sabe-se que a peça se inspira ‒ e se ilumina ‒ num episódio negro (e contudo brilhante) da história colonial: um grupo de índios da ilha de Granada despenhou-se dum penhasco, preferindo o suicídio colectivo à rendição ao invasor branco. Ou seja: saltando para o não-lugar onde nenhum branco poderia acompanhá-los. Foi na ilha em questão, actualmente habitada por descendentes dos escravos negros para ela há séculos desterrados, que Steve Mcqueen filmou as imagens de "um dia na vida de". Embora se trate dum paraíso turístico, os brancos estão ausentes das imagens propostas, sendo a vida dos autóctones retratada como uma sequência de actividades de melancólica e misteriosa fruição do espaço "natural" e do tempo que, "eternamente" como diria Edouard Glissant, passa. O ecrã que directamente remete para o episódio do "Salto das Caraíbas" encena corpos flutuantes que no enquadramento executam uma caprichosa queda, dotados que parecem da estranha leveza de seres moradores dum limbo. Ao colocar as duas construções ficcionais em relação, o cineasta explora o efeito da montagem paralela duma forma assaz peculiar, posto que elas a priori não aparentam o mesmo estatuto. E o que acontece é uma espécie de contaminação: o quase documentário adquire a dimensão simbólica duma quase cosmogonia, enquanto o ícone alegórico ganha a consistência de lugar "real" de passagem entre o agora, o outrora e o sempre. Ainda que não dispusesse de nenhuma indicação acerca da génese da obra, o espectador ficaria fatalmente marcado pela impressão de luminosidade dominante e pela bizarra tristeza que se insinua nos instantes de vida condenados à felicidade, isto é à decifração quotidiana da morte. E decerto não seria indiferente ao choque de sentidos entre os dois ecrãs, colisão estética que produz um pensamento estético sobre a questão estética, e vivencial, dos habitantes dum território. Entenda-se estética como forma particular, irredutivelmente real e virtual, de o habitar. De o assombrar. Vem-nos à memória a "aldeia das profundezas" de Césaire, simétrica talvez do tecido de céu onde nadam os corpos celestes de Mcqueen. O texto do catálogo sublinha as diferenças que separam este trabalho da abordagem de Rouch e do seu cinéma-vérité, cuja vérité era, por vocação, fruto do cinéma. Apesar de também ter sido imediatamente sensível a tal distância, não consigo deixar de encontrar um certo parentesco entre LES MAÎTRES FOUS e o seu alucinado jogo de espelhos que propõe uma imagem do ser colonizado que é tão inaceitável aos olhos da vítima como do ponto de vista do carrasco e a viagem à imposibilidade das origens perante a qual, de algum modo, esta peça nos situa. Porque Granada é a terra natal dum
antepassado do cineasta. O paraíso perdido e achado torna-se tão só lugar de relação. E o cinema reencontra assim uma primitiva aptidão para aproximar mundos. ‒ WESTERN DEEP está nos antípodas da perturbante luminosidade de CARIB'S LEAP já que se trata duma descida a uma profundíssima mina de ouro na África do Sul. Essa descida aos infernos, oposta das celestiais e mudas quedas de CARIB'S LEAP conduz-nos a um subterrâneo, mas contudo habitado, mundo das trevas. Pode dizer-se que o visitante experimenta, face a esta peça, uma sensação semelhante ao que o espectador da CHEGADA DUM COMBOIO NA GARE DE LA CIOTAT terá vivido. Contase que o filme dos Lumière impressionou as pessoas a ponto de elas se agacharem para se protegerem do monstro mecânico que na sua direcção avançava. Aqui o efeito de envolvimento na acção resulta sobretudo duma banda sonora arrebatadora, cuja violência conjugada com súbitos silêncios nos faz literalmente sair dos eixos. A emoção sonora será tanto mais forte quanto o visitante tiver "respeitado" a ordem cronológica das peças expostas e escolhido WESTERN DEEP como etapa final, posto que nesse caso se verá transitar do universo silencioso das primeiras obras para o "sound and fury" da última. Sentir-se-á catapultado, pois no início de WESTERN DEEP as imagens negam-nos qualquer possibilidade de nos situarmos no espaço. Vamos, somos transportados, o nosso veículo chia e range ferozmente, mas não sabemos para onde vamos. O espaço é sonoro antes de ser plástico e a plasticidade sonora enclausura-nos num lugar que é o do condenado, o do ser acorrentado ao porão dum muito antigo barco negreiro. Assim, neste início do século XXI, o caçador de imagens não nos trouxe imagens das maravilhas desconhecidas do planeta para deleite dos nossos olhos, como faziam, no seu tempo, os repórteres dos irmãos Lumière, mas sim o percurso de descoberta dum universo concentracionário. E a propósito disto não será totalmente inútil lembrar que devemos a noção de "universo concentracionário a Anton Tchekov que a formulou na sequência da sua passagem, como médico, pelo Goulag da ilha de Sakalina, muito antes de Hitler ter aplicado e refinado, no seio da velha Europa, as mais ousadas técnicas de genocídio. Em WESTERN DEEP confrontamonos com o horror quotidiano dos mineiros que conquistam às entranhas da terra o ouro que faz girar o mundo à superfície. Aquartelados num mundo inabitável, os mineiros são submetidos a um tratamento parecido com o que um grande rancheiro dá à sua manada, forçosamente submetido a imperativos de rentabilidade: neste caso, o efectivo deve ser preservado do espectro da doença a fim de poder continuar a fornecer a sua força de trabalho. Se pensarmos que é nesta lógica de exploração da riqueza e da mãode-obra que assenta a prosperidade dos nossos países ricos, tornar-se-nos-á muito evidente o alcance desta obra e a importância daquilo que ela denuncia. Regina Guimarães