saguenail
CHATTERIES APPUYÉES (early mourning chats) haïkus fantaisie
traduits et illustrés par Regina Guimarães J’ai besoin d’un homme (…) qui, s’il lui dégringole un camion de brasserie sur le caillou, puisse croire que c’est une mignonne du French Cancan qui lui fait des chatteries appuyées. Raymond Chandler, (Les pépins c’est mes oignons)
chats Ă fouetter
Enquanto houver uma montanha a arrasar um árvore a abater um mar a secar não será decretado o estado de urgência O motor da história e da economia continua a ser a guerra embora já não haja território a conquistar o massacre prossegue quando a mão militar triunfa prefiro fazer um manguito às pompas e botifarras Para o estrangeiro todos os lugares são equivalentes se há que contemplar uma história composta de massacres e servidões de que vale tentar escapar ao hic et nunc ? Basta pouco para criar uma presença um corpo uma imagem um nome: (embora) havendo diferenças só o amor vale ou falta a vida é secundária É o contexto sobretudo se adverso que fixa o valor é preciso a prisão mesmo que mental para apreciar a liberdade a guerra pelo menos interna para apreciar um instante de paz O canto dos pássaros invisíveis nem apelo nem alerta simples presença alegre De quanta dor e amargura a polpa do pêssego é fruto? as cerejeiras nevam esperanças que acabam em sangue e em metralha (e) a maioria dos sofrimentos não dá flor À natureza imóvel (plantas) o vento bastaria o movimento começou por ser compensado pela efemeridade (borboletas) ou pelo condicionamento (abelhas) o tempo e a liberdade reclamam amor e ilusão O riacho não escolhe nem caudal nem trajecto – nem a melodia do seu canto deixando o céu e a terra – a chuva e a pedra – escolher em seu lugar desvios de meandro saltos de cascata (são) pura e plácida preguiça 4
Tant qu’il restera une montagne à raser un arbre à abattre une mer à assécher on ne décrètera pas l’état d’urgence Le moteur de l’histoire et de l’économie reste la guerre alors qu’il n’y a plus de territoire à conquérir on se massacre encore quand la main militaire triomphe je préfère marcher «à côté» de ses pompes Pour l’étranger tous les lieux se valent à regarder une histoire composée de massacres et servages à quoi bon chercher à échapper au hic et nunc? Il suffit de peu pour créer une présence un corps une image un nom: (même s’) il y a des différences seul vaut ou faut l’amour la vie est secondaire C’est le contexte surtout adverse qui fixe la valeur il faut la taule même mentale pour apprécier la liberté la guerre au moins interne pour savourer un instant de paix Le chant des oiseaux invisibles ni appel ni alerte simple présence allègre De combien de douleur et d’amertume la chair de la pêche est-elle le fruit? les cerisiers neigent les espoirs finissant en sang et mitraille (et) la plupart des souffrances ne donnent pas de fleurs À la nature immobile (plantes) le vent pourrait suffire le mouvement a d’abord été compensé par l’éphémérité (papillons) ou le conditionnement (abeilles) le temps et la liberté réclament l’amour et l’illusion Le ruisseau ne choisit ni son débit ni son trajet – ni l’air de sa chanson laisse ciel et terre – pluie et roc – décider (pour lui) détours méandreux et sauts cascadants (sont) pure paresse indifférente 5
À custa de curvas e de meias voltas o caminho emaranhou-se formando inextricáveis nós mais valia cortá-lo a eito com uma tesourada Todos os caminhos levam à morte não sei por qual deles regressei (e) não compreendo que se possa correr Por muito que fuja para mais longe a terra não pára de girar e a chuva consegue sempre apanhar-me Que uma segunda ou mesmo uma terceira vida me tenha sido concedida não significa que eu tenha alguma missão a cumprir mas simplesmente que há derrapagens na relojoaria cósmica São muitos os dias nomeá-los não basta para os distinguir descrevê-los em pormenor impediria de os viver a única solução seria pois reduzi-los em número O mundo é-me labirinto o amor prisão o crânio é-me gaiola o corpo colete de forças a própria morte se me afigura tampa ou ferrolho Jogando sozinho e contra mim saio sempre vencedor mas também acabo por perder Ao fim de um belo dia (saboreando) o prazer de estar vivo: vento verdura vinho nos copos só me falta um revólver 6
À force de boucles et de retours en arrière le chemin s’est embrouillé en inextricables nœuds mieux vaudrait trancher d’un coup de ciseaux Tous les chemins mènent à la mort je ne sais par lequel j’en suis revenu (et) ne comprends pas qu’on puisse courir Aussi loin que je m’enfuie la terre n’arrête pas de tourner et la pluie sait toujours me rattraper Qu’une seconde voire une troisième vie m’ait été octroyée ne signifie pas que j’aie quelque mission à remplir simplement qu’il y a des ratés dans l’horlogerie cosmique Vue leur quantité nommer chaque jour ne suffirait pas à les distinguer les décrire en détail empêcherait de les vivre la seule solution serait d’en réduire le nombre Le monde m’est un labyrinthe l’amour une prison le crâne m’est une cage le corps une camisole de force la mort même m’apparaît comme un couvercle ou un verrou À jouer seul en me prenant pour adversaire je sors toujours vainqueur mais je finis aussi par perdre À la fin d’une belle journée (savourant le) plaisir d’être vivant: vent verdure vin dans les verres il ne me manque qu’un revolver 7
Uma árvore cercada de betão um éden sitiado por miséria inútil porventura provocadora a esperança resiste Como distinguir vergar e resistir? Onde acaba o viver e começa o sobreviver? Onde vai a marioneta após a terceira pirueta? Irreconhecível: fumo sem fogo lacunar paixão: choque sem faísca negativa paixão minha: dia sem luz De tanto envelhecer tornei-me subreptilmente antediluviano passando de erectus a homo patiens Tendo realizado praticamente (tudo) o que estava em meu poder que me resta (fazer) a não ser engordar? No celeiro do crânio as colecção de lembranças ganham pó selos de cartas que (afinal) não foram escritas borboletas alfinetadas que já não provocam um maremoto Colocamos (e colocamo-nos) as perguntas erradas obcecados pelo objecto a finitude a vaidade que deixaremos nós aos que virão depois? Só concebo dois «pecados capitais» imperdoáveis: apostar na estupidez das pessoas ou abusar da sua bondade ora o poder e a rapacidade assentam nesses dois comportamentos O mais doloroso é sobreviver aos pais aos amigos aos amores às separações a si mesmo à criança a todos quantos cada um foi Os espectros que me assombram são vítimas: (os) que traí magoei abandonei o pior é que eles me perdoam me amam talvez ainda a sua única vingança consiste no prolongamento da minha vida 8
Un arbre cerclé de béton un éden cerné de misère inutile voire provocateur l’espoir résiste Comment distinguer plier et résister? Où finit le vivre et commence le survivre? Où va la marionnette après le troisième tour? Irreconnaissable: fumée sans feu lacunaire passion: choc sans étincelles négative ma passion: jour sans lumière À force de vieillir je suis subreptilement devenu antédiluvien passé d’erectus à homo patiens Ayant accompli à peu près (tout) ce qui était en mon pouvoir que me reste-t-il (à faire) sinon engraisser? Dans le grenier du crâne les collections de souvenirs s’empoussièrent timbres des lettres qu’on n’a (finalement) pas écrites papillons épinglés qui ne provoquent plus de raz de marée Nous posons (et nous posons) les mauvaises questions obnubilés par le sujet la finitude la vanité: que laissons-nous à ceux qui viendront après? Je ne conçois que deux «péchés capitaux» impardonnables: miser sur la stupidité des gens ou profiter de leur bonté or pouvoir et rapacité reposent sur ces comportements Le plus douloureux c’est de survivre aux parents aux amis aux amours aux séparations aux guerres à soi-même à l’enfant à tous ceux qu’on a été Les spectres qui me hantent sont (des) victimes: (ceux) que j’ai trahis blessés abandonnés le pire est qu’ils me pardonnent m’aiment peut-être encore leur seule vengeance tient au prolongement de ma vie 9
O melhor filme caso se prologasse demasiado tornar-se-ia (insuportavelmente) fastidioso «o desejo» (a fome) de um beijo «aumenta quando o efeito» (o fim) «recua» ora a vida é uma estucha Imagens cartesianas: o espírito como «fogão de sala» onde se está só o mundo como floresta onde o homem se perdeu a razão como via arbitrária preferível a andar às voltas
(a S. Freud) Como os patriarcas sempre sacrificaram os filhos de Isaac a Jesus todo o primogénito judeu tem de inventar um pai Há demasiado Isaac em mim para eu respeitar a ideia de sacrifício justificar a mortificação comover até às lágrimas que só sobre si mesmo podem ser vertidas Entre as sagas dos filhos sacrificados ou incestuosos e as dos maridos infiéis e conquistadores nem a rotina nem o sofrimento resignado do meu vizinho encontram reflexos apagamo-nos por falta de mitos Observa a sua mão com suspeição: a pele é lisa não há o menor rasto de cicatriz nenhuma memória de prego ou de sacrifício A reivindicação de um particularismo e de uma tradição – espírito do chauvino parece-me tão discutível ou até perigosa como a generalização simplificadora – gosto pelo chavão 10
Le meilleur film s’il se prolongeait trop deviendrait (insupportablement) ennuyeux «le désir» (la faim) d’un baiser «s’accroît quand l’effet» (la fin) «se recule» or la vie est un navet Images cartésiennes: l’esprit comme «poêle» où s’isoler le monde comme forêt où l’homme s’est égaré la raison comme voie arbitraire plutôt que de tourner en rond
(à S. Freud) Comme les patriarches ont toujours sacrifié leur fils d’Isaac à Jésus tout aîné juif doit s’inventer un père Il y a trop d’Isaac en moi pour respecter l’idée de sacrifice justifier la mortification émouvoir aux larmes qu’on ne verse jamais que sur soi Entre les sagas des fils sacrifiés ou incestueux et celles des maris infidèles et conquérants ni la routine ni la souffrance résignée de mon voisin ne trouvent de reflets nous nous effaçons par manque de mythes Il observe sa main avec suspicion: la peau est lisse pas la moindre trace de cicatrice aucune mémoire de clou ou de sacrifice La revendication d’un particularisme et d’une tradition – esprit de clocher me paraît aussi discutable sinon dangereuse que la généralisation simplificatrice – esprit de cliché 11
(Claro que) estão sempre à procura de comida não há lei mais dura do que as da natureza (mas) o que é que no homem se pode comparar ao voo do pássaro? Não confundir farniente e precariedade dolce vita e viver um dia de cada vez se é fácil viver sem projectos nem actividades é difícil viver sem rotinas Não ignorar o mundo à nossa volta (mas) não se deixar afectar demasiado por ele não há caminho mas nunca se deve recuar O macro está contido no micro e vice-versa cada átomo contém um cosmos e a terra é um grão de areia em que deserto ou em que ampulheta? Uma flor espezinhada é testemunho da passagem de um terrível cavaleiro mas também o caule da erva daninha que se volta a erguer Nem palavras nem ternura conseguem acalmar a minha angústia o sol radioso não passa de uma aberta mas uma borboleta um pássaro ou um sorriso podem distrair-nos O barulho suscita presenças (apenas) um estalar de galhos sob a ramagem cada tronco da floresta esconde um fantasma Um único espectador fantasmático um leitor virtual basta para nos transformarmos em fingidores a verdade é íntima: começa por cavar um poço! A familiaridade mais do que o amor cega oblitera a estranheza ou até a ameaça figurada pelos pais, os governantes, as casas e as cidades Alguma vez se conseguiu pintar a imagem de um paraíso expor um modelo de abastança ou de conforto que não evoque o tédio mortal ou um inferno de fraca intensidade? 12
(Bien sûr) (ils sont) toujours en quête de nourriture (il n’y a) pas de loi plus dure que celles de la nature (mais) qu’est-ce qui chez l’homme peut se comparer au vol de l’oiseau? Ne pas confondre farniente et précarité coincer la bulle et vivre au jour le jour s’il est aisé de vivre sans projets ni activités il est difficile de vivre sans routines Ne pas ignorer le monde alentour (mais) ne pas trop s’en laisser affecter il n’y a pas de chemin mais il ne faut jamais reculer Le macro est contenu dans le micro et vice versa chaque atome recèle un cosmos et la terre est un grain de sable dans quel désert ou quel sablier? Une fleur piétinée témoigne du passage d’un terrifiant cavalier mais aussi la tige du chiendent qui se redresse Ni parole ni tendresse ne sauraient calmer mon angoisse le soleil radieux n’est qu’une embellie mais un papillon un oiseau ou un sourire peuvent nous distraire Le bruit suscite des présences (juste) un craquement de brindilles sous le couvert chaque fût de la forêt cache un fantôme Un seul spectateur fantasmatique un lecteur virtuel suffit à nous transformer en comédien la vérité est intime: commence par creuser un puits! La familiarité plus que l’amour aveugle oblitère l’étrangeté voire la menace que figurent les parents, les gouvernants, les maisons et les villes A-t-on jamais réussi à peindre l’image d’un paradis à exposer un modèle de richesse ou de confort qui n’évoque pas l’ennui mortel ou un enfer de faible intensité? 13
Houve um erro de metempsicose as almas enganaram-se nos corpos: crianças velhas adultos infantis internados no manicómio do mundo e todos sofrem de metapsicose Dias de conversa: as falas ditam o clima entre trocadilhos brilhantes e nebulosas enumerações arco de palavras para esconder o vazio acima das nossas cabeças Pelo sonho abrir uma janela na parede da prisão do visível pelo olho abrir uma fenda no crânio (Talvez) devido aos dourados que lembram os ícones o nascer e pôr do sol é sempre (algo) religioso poderoso ou mesmo esmagador misterioso mas fugitivo comovente e projectivo Os lampiões fazem da terra uma mesa de bilhar uma tacada da sombra precipita-nos (numa) corrida feltrada rumo à carambola Ao desligar as luzes a noite apaga as sombras: ver pelos dedos No meio da floresta em plena noite um pirilampo é um farol Tanto a barrela do nevoeiro como o alcatrão da noite apagam as cores que voltam (como) uma doença solar O arco-íris desfaz-se em voo de borboletas as árvores nevam suas flores entre duas chuvadas eternas A cor trémula do lago é feita de reflexos sobrepostos que a chuva vem apagar 14
Il y a eu erreur de métempsycose les âmes se sont trompées de corps: enfants vieillards adultes infantiles internés dans l’asile du monde souffrant tous de métapsychose Journées conversationnelles: les paroles dictent le climat entre calembours éclatants et nuageuses énumérations arc de mots pour cacher le vide au-dessus de nos têtes Percer par le rêve une fenêtre dans le mur de (la) prison du visible percer par l’œil une fente dans le crâne (Peut-être) à cause des dorures rappelant les icônes le lever et coucher du soleil est toujours (quelque peu) religieux puissant voire écrasant mystérieux mais fugitif émouvant et projectif Les réverbères font de la terre une table de billard un coup de queue de l’ombre nous précipite (en une) course feutrée vers la carambole En éteignant les lumières la nuit efface les ombres: voir par les doigts Au milieu de la forêt en pleine nuit une luciole est un phare La lessive du brouillard comme le goudron de la nuit effacent les couleurs qui reviennent (comme une) maladie solaire L’arc-en-ciel se défait en vol de papillons les arbres neigent leurs fleurs entre deux averses éternelles La couleur frémissante du lac est faite de reflets superposés que la pluie vient gommer 15
Recuar no dia até à fonte dos pássaros fagulhas da forja do céu que se acende pira de sonhos Uma gota de céu um pozinho de pimenta uma tristeza sem causa nem consequência lágrimas inúteis que não engrossam o mar Uma nuvem amarela um sol cinzento uma noite em branco depois de um dia negro as lágrimas diluem as cores Um raio de sol doura a paisagem para dela fazer o motivo solar bordado no lenço que a aurora arvora O céu está em farrapos recortado pelas tesouras das andorinhas remendado pelas agulhas das andorinhas O céu caiu na terra as nuvens são as suas ligaduras as árvores suas muletas quebrou as asas e não mais voará da águia íntima à eglantina (há) uma pálpebra (que) se entreabre um olho (que) desabrocha para (a)colher uma gota de orvalho As árvores são sinais de outro jardim os pássaros hipóteses de seres alados flores e borboletas estilhaços do caleidoscópio do ideal «Eu vi a coruja branca» a desenhar as máscara da noite sob a cabeleira desgrenhada a contrapor um sorriso ao seu sobrolho franzido As flechas não furam o firmamento sob o peso do céu até as aves caem 16
Remonter le jour (jusqu’)à la source des oiseaux escarbilles de la forge du ciel qui s’allume bûcher de rêves Une goutte de ciel une poussière de piment une tristesse sans cause ni conséquence larmes inutiles qui n’engrossent pas la mer Un nuage jaune un soleil gris une nuit blanche après une journée noire les larmes diluent les couleurs Un rayon dore le paysage pour en faire le motif floral brodé sur le foulard qu’arbore l’aurore Le ciel est en lambeaux découpé par les ciseaux des hirondelles recousu par les aiguilles des hirondelles Le ciel est tombé sur la terre les nuages sont ses bandages les arbres ses béquilles il s’est cassé les ailes et ne volera plus De l’aigle intime à l’églantine (il y a) une paupière (qui) s’entrouvre un œil (qui) éclot pour (ac)cueillir une goutte de rosée Les arbres sont les signes d’un autre jardin les oiseaux des hypothèses d’êtres ailés fleurs et papillons des éclats du kaléidoscope de l’idéal «J’ai vu la chouette blanche» dessinant sous la tignasse ébouriffée le masque de la nuit opposant un sourire à son sourcil froncé Les flèches ne percent pas la nue sous le poids du ciel même les oiseaux retombent 17
A consciência do absurdo e do irrisório é tal que não consigo dizer os segundos de amor e de alegria transbordante (as) abertas do dilúvio Nenhuma significação resiste à evidência de que a menor variação das circunstâncias uma nuvem um pássaro teriam levado a escolhas acontecimentos resultados outros Por muito que os modelos naturais respondam a uma economia funcional (ou) que as cópias obedeçam a motivos estéticos os problemas a resolver são sempre de simetria No presente gestos e palavras são (sempre) insanos à nossa escala o sentido é (apenas) hipótese ou ilusão que (só) o tempo poderá corroer derrubar ou sedimentar Tendo em conta a impossibilidade por definição de qualquer solução definitiva as melhores resoluções só podem ser provisórias Não há originalidade nem pode haver apenas reflexos num jogo de espelhos quem julga reconhecer-se engana-se Carecemos de distância para avaliar para compreender temos falta de proximidade só podemos amar ou relativizar Uma bolha seria um refúgio demasiado frágil é preciso um muro à volta pelo menos uma armadura para uma pessoa se proteger da agressão do mundo Como é que o inelutável pode apanhar de surpresa? O nosso esforço consistia em atrasá-lo ou em desviar os olhos? O horizonte está para além do que podes atingir o horizonte não é uma paisagem à qual se segue porventura uma outra atrás do horizonte não há nada Não espero nada de amanhã a não ser o deslumbramento de um poema e o imprevisível 18
La conscience de l’absurde et du dérisoire est telle que je n’arrive pas à dire les secondes d’amour et de joie débordante (les) éclaircies du déluge Aucune signification ne résiste à l’évidence que la moindre nuance de circonstance un nuage un oiseau aurait mené à des choix événements résultats autres Que les modèles naturels répondent à une économie fonctionnelle (ou) que les copies obéissent à des motifs esthétiques les problèmes à résoudre sont toujours de symétrie Au présent gestes et paroles sont (toujours) insensés à notre échelle le sens (n’)est (qu’)hypothèse ou illusion que (seul) le temps pourra éroder faire crouler ou sédimenter Étant donnée l’impossibilité par définition d’une quelconque solution définitive les meilleures résolutions ne sauraient être que provisoires Il n’y a pas d’originalité il ne saurait y en avoir rien que des reflets dans un jeu de miroirs qui croit se reconnaître se trompe Nous manquons de distance pour évaluer pour comprendre nous manquons de proximité nous pouvons seulement aimer ou relativiser Une bulle serait un refuge trop fragile il faut sinon s’emmurer au moins une armure pour se protéger de l’agression du monde Comment l’inéluctable peut-il nous prendre par surprise? Notre effort consistait-il à le retarder ou à détourner les yeux? L’horizon est l’au-delà de ce que tu peux atteindre l’horizon n’est pas un paysage auquel succèderait un autre paysage derrière l’horizon il n’y a plus rien Je n’attends rien de demain si ce n’est l’éblouissement d’un poème et l’imprévisible 19
O poema é busca de forma como um invólucro de cinza cobrindo incubando a fagulha que a provocou Bastarão três versos para colorir o dia justificá-lo como uma flor colhida já não murcha em vão? É a confiança nas palavras e no mundo que faz o poeta eu desconfio do mundo e duvido das palavras a minha escrita mina (e) fissura os pés de argila da criação Das profundezas do coração a escrita (só) traz seixos baços (era) a água viva da tua presença (que) os fazia brilhar Como escrever versos fazer cantar as palavras se não tenho música na cabeça gritos apenas gritos? Quis pensar a árvore ou o pássaro como seres alógenos metáforas antropomórficas ideais apenas o humano reflecti As palavras são pesadas o vento sacode-as desloca-as corrói-as apaga-as (mas) não as leva Cada dia deve ser avaliado como um poema o que é que nele merece ser memorizado? O que é que justifica que tê-lo vivido (tê-lo lido)? A poesia é aérea (mesmo) sem cores o corvo sabe a pena e o voo sapo tenho a palavra reptiliana O dia escreve com uma pena de bruma e luz orvalho trémulo de fadiga e esforço pálida promessa de cor e calor 20
Le poème est recherche de forme comme une enveloppe de cendre couvrant l’étincelle qui l’a provoqué et la couvant Suffit-il de trois vers pour colorer la journée la justifier comme une fleur cueillie ne fane plus en vain? C’est la confiance en les mots et dans le monde qui fait le poète je me méfie du monde et je doute des mots mon écriture sape (et) fissure les pieds d’argile de la création Des profondeurs du cœur l’écriture (ne) ramène (que) des galets ternis (c’était) l’eau vive de ta présence (qui) les faisait briller Comment écrire des vers faire chanter les mots si je n’ai pas de musique dans la tête des cris rien que des cris? J’ai voulu penser l’arbre ou l’oiseau comme êtres allogènes métaphores anthropomorphes idéaux je n’ai réfléchi que l’humain Les mots sont lourds le vent les secoue les déplace les érode les efface (mais) ne les emporte pas Une journée doit être évaluée comme une poésie: qu’est-ce qui en elle mérite de la retenir? Qu’est-ce qui justifie de l’avoir vécue (ou lue)? La poésie est aérienne (même) sans couleurs le corbeau sait la plume et le vol crapaud j’ai la parole reptilienne Le jour écrit avec une plume de brume et lumière rosée frémissante de fatigue et d’effort pâle promesse de couleur et chaleur 21
Matinal pensei nos «Matinais» de Char na ditadura do nome e da origem: em francês «char» transporta o carro do sol e seu charme o ser soletra-se Existe um dever de escrita dever de assistência a um mundo e a um ideal em perigo dever de testemunhar que as coisas poderiam ter corrido de outra maneira Rastos: antes o sulco de baba fosforescente do caracol do que as vísceras ensanguentadas que o leão semeia já sem falar do insistente cheiro da hiena colada aos seus passos Testamento: deixo aos que me sobreviverem as flores e o céu e o resto só levo comigo a raiva e o desespero Poema enquadramento: delimitar via imitação do verbo o universo poema quadrante: fixar formulando-os o fugitivo e a impressão poema quadrilha: através das palavras verter em melodia os males do mundo Transforma em desejo a menor curiosidade suficiente mente para (mesmo metaforicamente) a verbalizar insuficientemente para a impor A evidência exprime uma sensação intuitiva e intraduzível que se revela (quando aprofundada) complexa (e) obscura (a ponto de ser) inesgotável uma evidência verificada é apenas vazio O tempo como areia e pó o tempo como rio sem mar a vida como corrente de ar Os dias de amor e amizade só parecem imóveis ou eternos porque correm à velocidade do próprio tempo da luz através das trevas e parecem retrospectivamente mais sonhados do que vividos Trânsfuga da vida trânsfuga do amor vivi e amei com todas as minhas forças: meteorologicamente chuva entre céu e terra gota entre nuvem e lama 22
Matinal j’ai pensé aux «Matinaux» de Char à la dictature du nom et de l’origine: Char (du soleil) charme marche l’être est fait de lettres Il existe un devoir d’écriture devoir d’assistance à un monde et à un idéal en danger devoir de témoignage que les choses auraient pu aller autrement Traces: plutôt le sillage de bave phosphorescente de l’escargot que les viscères sanguinolents semés par le lion sans compter l’insistante odeur de l’hyène collée à ses pas Testament: je laisse à ceux qui me survivront les fleurs et le ciel et le reste je n’emporte que ma rage et mon désespoir Poème cadrage: délimiter via l’imitation du verbe l’univers poème cadran: fixer en les formulant le fugitif et l’impression poème quadrille: par les mots muer en mélodie les maux du monde Transformer en désir la moindre curiosité suffisamment pour (même métaphoriquement) la verbaliser pas assez pour l’imposer L’évidence exprime une sensation intuitive et intraduisible qui s’avère (si on l’approfondit) complexe (et) obscure (au point d’être) inépuisable une évidence vérifiée n’est que vide Le temps comme sable et poussière le temps comme fleuve sans mer la vie comme courant d’air Les jours d’amour et d’amitié ne semblent immobiles ou éternels que parce qu’ils s’écoulent à la vitesse même du temps de la lumière à travers la ténèbre et paraissent rétrospectivement plus rêvés que vécus Transfuge de la vie transfuge de l’amour j’ai pourtant vécu et aimé de toutes mes forces: météorologiquement pluie entre ciel et terre goutte entre nuage et boue 23
Por todas as coisas te espalhaste afago-te ao encostar-me à parede beijo-te aspirando o ar Candeia de um quadro pintado por La Tour um sorriso (por vezes) ilumina a tua cara irradia e banha o mundo em redor o seu brilho afasta provisoriamente a dúvida e a obscuridade A fonte de juventude é um olhar apaixonado enquanto eu contemplar o teu sono e atrasar o beijo do despertar não envelhecerás Teremos sabido prolongar a nossa boémia alimentarmo-nos de beijos taparmo-nos com farrapos de ternura Esta manhã o sol levantou-se a oeste (percebi que) durante a noite tínhamos atravessado o espelho
24
Tu es répandue en toutes choses je te caresse en m’appuyant au mur je t’embrasse en aspirant l’air Chandelle d’un tableau peint par de La Tour un sourire (parfois) illumine son visage irradie et baigne le monde autour son éclat repousse provisoirement doute et obscurité La fontaine de jouvence est un regard amoureux tant que je contemplerai ton sommeil et retarderai le baiser du réveil tu ne vieilliras pas Nous aurons su prolonger notre bohême nous nourrir de baisers nous couvrir de haillons de tendresse Ce matin le soleil s’est levé à l’ouest (j’ai compris que) pendant la nuit nous avions traversé le miroir
février-mars 2011 25
autres chats Ă fouetter
O tempo era de espera do milagre ou do fim do mundo que no fundo vinham dar ao mesmo O sobrevoo revela as nuvens como bancos de gelo celeste à deriva no oceano atmosférico não se reconhecem os icebergs quando se olham de baixo e das profundezas do ar O tecto do céu escama e estala fissuras que as nuvens não podem colmatar o tédio e o nada por toda a parte se infiltram Frente a uma bela paisagem ou no meio de uma alegre festa uma única certeza: não fazer parte Paisagem preservada natureza afável «Parece que estamos nos paraíso!» Só que eu não ando à procura do paraíso A paisagem ergue-se esplêndida imponente magnífica tanta beleza encanta-me e petrifica-me (mas) deixa sem resposta a pergunta: «Que faço eu aqui?» Eram em plena crise as férias o sol proletário fazia horas extraordinárias Mal o tempo «suspende o seu voo» as nuvens amontoam-se o céu fica de chumbo e a tempestade ganha fôlego Impera o mau tempo: a nuvem pousa-se espalha-se névoa dilui-se morrinha cai chuva aqui os altares chamam-se «impérios»: a viagem como uma procissão tem de fazer paragem a tristeza retoma o seu império: o céu lacrimejante escurece paisagem e futuro Problema de pichelaria meteorológica: quando a banheira do mar deita por fora a água escorre chuva inversa rumo ao céu 28
Le temps était à l’attente du miracle ou de la fin du monde qui au fond revenaient au même Le survol révèle les nuages comme la banquise du ciel à la dérive sur l’océan atmosphérique on ne reconnaît pas les icebergs quand on les regarde de dessous et du fond de l’air Le plafond du ciel s’écaille et se craquelle fissures que les nuages ne savent boucher l’ennui et le néant s’infiltrent de partout Face à un beau paysage ou au milieu d’une fête joyeuse seule certitude: ne pas y appartenir Paysage préservé nature débonnaire «On se croirait au paradis!» Seulement voilà: je ne cherche pas le paradis Le paysage se dresse splendide imposant magnifique tant de beauté me ravit me pétrifie (mais) laisse sans réponse la question: «Qu’est-ce que je fais ici?» C’était en pleine crise les vacances le soleil prolétaire faisait des heures supplémentaires Dès que le temps suspend son vol les nuages s’accumulent le ciel se plombe la tempête retient son souffle La météo empire: le nuage se pose s’étend brouillard se dilue bruine coule pluie les reposoirs ici s’appellent «empires»: le voyage comme une procession doit faire halte la tristesse reprend son empire: le ciel larmoyant noircit paysage et avenir Problème de robinetterie météorologique: quand la baignoire de la mer déborde l’eau s’écoule pluie inverse dans le ciel 29
O tempo insular é demasiado incerto para que a gente se fie em previsões pelo que na ilha a roupa nunca seca Ruído torturante da chuva penetrante e mole último eco enfraquecido das correias sibilantes dum céu armado de chicotes O firmamento enfermeira metafórica: chuva e nuvem como desinfectante e algodão para cauterizar a chaga arquipélica metáfora da minha alma Na nassa do mar saltam cardumes aflitos de peixes de luz O mar polvo escamoso embalando os seus barcos os rochedos cariados do oceano dragão e os rebanhos de hortênsias serpenteando entre os pastos A ilha é o ideal do sedentário – prova disso Crusoé – ora é preciso conceber um prisioneiro nómada se queremos perceber o espírito e a bossa do marinheiro Sob a sua concha de algodão a nuvem molusco agarra-se ao seu pico já não se sabe qual lapa qual água qual nácar Durante uma semana terei contemplado o negativo do Fuji dominando um lago marinho como nunca estive no Japão o monte sempre foi para mim um motivo pictórico a sua presença esmagadora redobra o mistério em vez de o resolver O Fuji é uma chapéu de palha de arroz tapando a paisagem o Pico é uma enorme lapa colada ao oceano toda a imagem (como todo o mito) começa com uma mudança de escala Fantasma surgido das águas entre mar e céu o vulcão ao cair da noite está aceso na ponta do cone por um derradeiro raio de sol aréola desse seio de jovem negra 30
Le temps insulaire est trop incertain pour qu’on se fie aux prévisions si bien qu’en l’île le linge ne sèche jamais Bruit torturant de la pluie perçant et mou dernier écho affaibli des cinglements de lanière du ciel fouettard La nue infirmière métaphorique: pluie et nuage comme désinfectant et coton pour cautériser la plaie archipélique métaphore de mon âme Dans la nasse de la mer sautent par bancs affolés les poissons de lumière La mer poulpe squameux berçant ses bateaux les rochers chicots de l’océan dragon et les troupeaux d’hortensias serpentant parmi les pâtis L’île est l’idéal du sédentaire – preuve par Crusoe – or il faut concevoir un prisonnier nomade si l’on veut saisir l’esprit et le pied marin Sous sa conque de coton le nuage mollusque s’agrippe à son pic on ne sait plus quel est patelle quel eau quel nacre Pendant une semaine j’aurai contemplé le négatif du Fuji dominant un lac marin n’ayant jamais voyagé au Japon le mont restait pour moi un motif pictural sa présence écrasante redouble le mystère plutôt que de le résoudre Le Fuji est un chapeau de paille de riz couvrant le paysage le Pico est une énorme patelle collée à l’océan toute image (comme tout mythe) commence par un changement d’échelle Fantasme surgi des eaux ou flottant entre mer et ciel le volcan au soir est embrasé à la pointe du cône d’un dernier rayon de soleil aréole de ce sein de jeune négresse 31
O sol poente tem tudo do ourives que orna com colares e jóias a paisagem como para uma demonstração ou uma tentação Fim de viagem: o céu puxou pela cortina de nuvens e empardeceu a paisagem como que para nos poupar ao pesar da partida Via um bilhete – um viés – para outras paragens viemos parar aqui (ou ali) o exótico é familiar: o aqui cola aos pés Saboreio cada dia desejando que seja o último o mais difícil é saber a solução ao meu alcance A verdade está no fundo do poço: torre invertida a solidão ergue uma torre: poço invertido a verdade é a solidão Nas escadas estreitas que trazem de regresso à vida cada verso escrito é um degrau galgado sem eu olhar para trás Pobre Apollinaire pobre Cocteau e todos os outros que se julgavam Orfeu reduzidos a cantar pérolas a porcos pessoalmente é de Eurídice que me sinto mais próximo Critério para julgar uma vida demasiado longa: recordar com precisão um tempo em que as frutas tinham mais sabor e o sol mais brilho Vão pesar (pois) o que se vive pode ser insatisfatório (mas) o que se perde só pode ser fantasmático Enquanto é noite escura a despeito da insónia posso tentar readormecer Mesmo pontualmente o tédio de tão intensamente me ser dado vivê-lo passa depressa 32
Le soleil couchant a tout de l’orfèvre qui pare de colliers et bijoux le paysage comme pour une démonstration ou une tentation Fin de voyage: le ciel a tiré le rideau de nuages a tout grisé le paysage histoire de nous épargner les regrets Nous avons pris un billet – un biais – pour ailleurs et nous nous retrouvons ici (ou là) l’exotique est familier: ici colle aux pieds Je savoure chaque journée tout en souhaitant qu’elle soit la dernière le difficile est de savoir la solution à portée La vérité est au fond du puits: tour inversée la solitude bâtit une tour: puits inversé la vérité est la solitude Sur l’étroit escalier qui ramène à la vie chaque vers écrit est une marche franchie sans me retourner Pauvre Apollinaire pauvre Cocteau et tous les autres se prenant pour Orphée réduits à chanter leurs perles aux cochons personnellement c’est d’Eurydice que je me sens proche Critère pour juger une vie trop longue: se souvenir précisément d’un temps où les fruits étaient plus goûteux et «le soleil plus brûlant» Vanité du regret (car) ce qu’on vit peut être insatisfaisant (mais) ce qu’on manque ne peut être que phantasmatique Tant que la nuit est noire en dépit de l’insomnie je peux tenter de me rendormir Même ponctuellement l’ennui tant je le vis intensément passe vite 33
Primeiro um embaraço: saber-me morto entre os vivos depois um mal estar: descobrir que todos fingem esforçadamente por fim o asco: que tenho eu a ver com todos estes fantasmas? A morte criou uma distância não tanto em relação aos outros antes dentro de mim mesmo quando te beijo os meus beijos vêm-me de longe Transe bruscamente interrompido nem o amor nem a criação me fazem já vibrar o álcool ou a dança são míseros ersatz A amizade que era presença silêncio conivência deriva para conversa tagarela e convivial e à medida que o número cresce vai-se diluindo em puro ruído Os intelectuais repetem obedientemente o que leram no jornal da manhã apresentando-se como especialistas aprovando comentando criticando verificação por rebate de boa consciência A burguesia esclarecida é tão simpática! Os intelectuais de esquerda têm tão boa consciência! Fico doente com o meio a que pertenço Há cálculos (mais ou menos exactos consoante a definição do conjunto em causa) há sobretudo (felizmente?) censuras e bloqueios geneticamente herdados pois razão (histórica) só a do mais forte Doravante política é tão-só um trabalho de perversão da linguagem: eles chamam «despesas» ao que metem ao bolso e «crise» ao que vão extorquindo antes de «reajustarem» as leis que infringiram Quando o modelo tem a efemeridade da moda quando a importância é um rótulo de exportação quando a publicidade forma o público as palavras perdem o sentido Sabíamos que o mundo era maior do que o nosso pedaço de terra mas foi custoso aprender que o resto do mundo era também diferente desejávamos pertencer ao mundo: reconstruímos tudo importando o modelo Agamben fala de uma «museificação» do mundo exposição e embalsamamento: percorre-se um catálogo acima de tudo conformidade: todos os lugares doravante se parecem 34
D’abord un embarras: me savoir mort parmi les vivants puis un malaise: découvrir que chacun s’acharne à feindre enfin le dégoût: qu’ai-je à voir avec tous ces fantômes? La mort a créé une distance pas tant vis-à-vis des autres qu’à l’intérieur de moi-même quand je t’embrasse mes baisers me parviennent de loin Transe brusquement interrompue l’amour ni la création ne me font plus vibrer l’alcool ou la danse sont de piètres ersatz L’amitié qui était présence silence connivence dérive en conversation bavarde et conviviale et à mesure que le nombre va croissant se dilue en pur bruit Les intellectuels répètent sagement ce qu’ils ont lu dans le journal du matin se posant en spécialistes approuvant commentant critiquant vérification par acquis de bonne conscience La bourgeoisie éclairée est si sympathique! Les intellectuels de gauche ont tellement bonne conscience! Mon milieu me rend malade Il y a des calculs (plus ou moins exacts selon la définition de l’ensemble considéré) il y a surtout (heureusement?) des censures et des blocages génétiquement hérités car il n’y a de raison (historique) que celle du plus fort La politique n’est plus qu’un travail de perversion du langage: ils appellent «dépenses» ce qu’ils empochent et «crise» ce qu’ils soutirent avant de «réajuster» les lois qu’ils ont enfreintes Quand le modèle a l’éphémérité de la mode quand l’importance est un label d’exportation quand la publicité forme le public les mots perdent leur sens Nous savions bien que le monde était plus grand que notre petit bout de terre mais il a été pénible d’apprendre que le reste du monde était en outre différent nous souhaitions appartenir au monde: nous avons tout rebâti en important le modèle Agamben parle d’une «muséification» du monde exposition et embaumement: on parcourt un catalogue conformité surtout: tous les lieux désormais se ressemblent 35
Só se escrevem versos «de circunstância» (ora) só se lêem (e decoram) versos «imortais» escrever é um trabalho de embalsamador Escrevo (ou falo) e vejo-me escrever (ou ouço-me falar) e não estou certo de qual dos dois sou um tenta convencer-me o outro gostaria de corrigir-me De tanto ser modelado o grito perde agudez maça com máximas sente-se sentenças rebaixa-se a chacha som sem sentido ruído de fundo sem forma nem furor Crrac bing bang o instrumento está desafinado língua serpente poesia maçã Houve povos que preferiam os cauris ao próprio ouro acontece por vezes os vidros coloridos serem confundidos com gemas alguém que me ama lê as minhas frases como poemas A cultura (humana) opõe-se à natureza como o rosa (epidérmico) ao verde (clorofilino) a corola da flor ao caule que a sustenta O homem multiplica os trabalhos levanta quiméricas nuvens de pó como para antecipar aquilo a que no fim sabe ter de regressar O insolúvel problema da origem e da precedência deve ter-se colocado para cada espécie: o ovo ou a avestruz o ovo ou a truta o ovo ou a crocodila Depois dos meandros e dos rápidos do rio da vida a idade faz charco onde filhos de deus chapinhamos armados em patinhos Será que resta algo de natural seja o que for (que não resulte de manipulações enxertos e cruzamentos) Tudo se tornou esfinge e nos interroga sobre a origem A pelada humana é menos erótica do que as peles animais (e) tem como única função apontar obsessivamente para as partes genitais 36
On n’écrit jamais que des vers «de circonstance» (or) on ne lit (et ne retient) que des vers «immortels» écrire est un travail d’embaumement J’écris (ou je parle) et me vois écrire (ou m’entends parler) et ne suis pas certain de quel des deux je suis l’un tente de me convaincre l’autre voudrait me corriger À force de moduler le cri il s’émousse maxime s’entend sentence se banalise bavardage son sans sens bruit de fond sans forme ni fureur Crac couic bang l’instrument est désaccordé langue serpent poésie pomme Il y a eu des peuples pour préférer les cauris à l’or même il arrive qu’on prenne des verroteries pour des gemmes quelqu’un qui m’aime lit mes phrases comme des poèmes La culture (humaine) s’oppose à la nature comme le rose (épidermique) au vert (chlorophyllien) la corolle de la fleur à la tige qui la soutient L’homme multiplie les travaux soulève de chimériques nuées de poussière comme pour anticiper ce à quoi il sait devoir à la fin retourner L’insoluble problème de l’origine et de la précédence a dû se poser pour chaque espèce: l’œuf ou l’autruche l’œuf ou la truite l’œuf ou la crocodile Après les méandres et les rapides du fleuve de la vie l’âge fait mare où l’on patauge en se prenant enfants du bon dieu pour des canards Reste-t-il quoi que ce soit de naturel (qui ne soit pas issu de manipulations greffes et croisements)? Tout s’est fait sphinx et nous interroge quant à l’origine La pelade humaine est moins érotique qu’une fourrure animale (et) n’a d’autre fonction que de pointer obsessivement les parties génitales 37
O corpo humano nunca me pareceu ser o supra-sumo da elegância (quão mais excitantes as parceiras do zoófilo Maldoror!) a sua vulnerabilidade é que é comovente Concebo a necrofilia: que uma pessoa possa apaixonar-se por um cadáver (mas) como imaginar a recíproca seja verdadeira: como pode um morto amar se a sua alma quase não capta a emoção e o seu corpo já não conhece o calafrio? Desconfio mesmo do desejo isso a que o «acaso objectivo» quer que a realidade se vergue da «realidade» o que posso venerar é a sua resistência Um monge realmente não sabe que fazer do seu sexo uma sombra do seu corpo um morto da sua vida Todo o espaço habitado é masmorra ou pelo menos claustro: habitar faz o monge por medo de se ficar fechado cá fora! Mais do que o hábito o monge a aparência faz os parentes permanente e papada das mães calvície fato e gravata dos pais falsos adultos que têm vergonha de serem ainda crianças A meada da história é composta por um inextricável imbróglio de linhagens: filhos bastardos não reconhecidos em vida por maridos desonestos marionetas manipuladas pelos fios invisíveis da inveja Certeza da ilusão da irrisão da maldição: ao olhar-me furtivamente no espelho vi o meu pai A criança fica boquiaberta perante o truque do prestidigitador mais tarde hão-de explicar-lhe que a magia assenta numa ilusão ainda mais tarde compreenderá que tudo é ilusão Não está excluído que aquilo que julgo viver seja só sonhado pois a realidade é inverificável ou até convencional em todo o caso não desejo acordar A realidade é projectiva há crianças que do menor objecto fazem uma arma de qualquer enunciação eu faço um instrumento de tortura 38
Le corps humain ne m’a jamais paru le parangon de l’élégance (combien plus excitantes les partenaires du zoophile Maldoror!) c’est sa vulnérabilité qui est émouvante Je conçois la nécrophilie: qu’on puisse s’éprendre d’un cadavre (mais) comment imaginer la réciproque: comment un mort peut-il aimer si son âme perçoit à peine l’émotion et son corps ne connaît plus le frisson? Je me méfie même du désir à quoi le «hasard objectif» veut que la réalité se plie ce que je peux révérer de la «réalité» c’est sa résistance Un moine vraiment ne sait que faire de son sexe une ombre de son corps un mort de sa vie Tout espace habité est cachot au moins cloître: habiter fait le moine par peur d’être enfermé dehors! Plus que l’habit le moine l’apparence fait les parents mise en plis et embonpoint des mères calvitie cravate costard des pères faux adultes qui ont honte d’être restés gamins L’écheveau de l’histoire est composé d’un inextricable embrouillamini de lignages: fils bâtards non reconnus en vie par des maris malhonnêtes marionnettes manipulées par les fils invisibles de l’envie Certitude de l’illusion de la dérision de la malédiction: en me regardant fugitivement dans le miroir j’ai vu mon père L’enfant bée au tour du prestidigitateur plus tard on lui expliquera que la magie repose sur une illusion encore plus tard il comprendra que tout n’est qu’illusion Il n’est pas exclus que ce que je crois vivre soit seulement rêvé car la réalité est invérifiable voire conventionnelle en tout cas je ne souhaite pas me réveiller La réalité est projective il est des enfants qui du moindre objet font une arme de toute énonciation je fais un instrument de torture 39
A lucidez toda não impede a influência do sonho a razão cede perante o poder do coração a auto-crítica em vão procura vencer os prós do amor próprio Todo o direito é teórico e deve permanecer virtual efectivamente gozado torna-se privilégio que fizeste da tua liberdade? Filosofia francesa: ao mesmo tempo que se sacava a razão da consciência (Descartes) o sentido da sensação (Rimbaud) ou a inteligência da intuição (Bergson) existiram correntes de pensamento avulsas Os saltos do pensamento são forçosamente próprios dos poetas sábios poetas críticos poetas utopistas poetas eruditos poetas condição necessária mas insuficiente: quantos poetas chovem no molhado Podes sem o saber cruzar com o teu destino no cais de uma estação podeis apanhar o mesmo comboio sem contudo vos reconhecerdes nem vos encontrardes Os nossos caminhos tinham de cruzar-se (pois) vinham de direcções contrárias (mas) poderiam ter prosseguido cada qual para seu lado um arrepiou o outro enlaçou-o fechando-se assim o laço A jangada do amor flutua galho leve levado pela inundação dos segundos Antes me tornar (um dia) vegetal sou já (um pouco) de madeira enganas-te quando atribuis algum defeito ou deformação ao teu corpo ao ver-te nadar desejava ser a água onde banhavas De tanto te ter contemplado (e filmado) a dormir é sempre como bela adormecida que te vejo quando não estás Mesmo quando o amor é recíproco e faz bater os dois corações pouco muito é ainda desigual 40
Toute la lucidité n’empêche l’influence du rêve la raison cède à la puissance du cœur l’autocritique s’évertue vainement à vaincre les vertus de l’amour propre Tout droit est théorique et doit rester virtuel la jouissance effective en fait un privilège qu’as-tu fait de ta liberté? Philosophie française: en même temps qu’on tirait la raison de la conscience (Descartes) le sens de la sensation (Rimbaud) ou l’intelligence de l’intuition (Bergson) ont existé des courants de pensée en vrac Les sauts de la pensée sont forcément le fait de poètes savants poètes critiques poètes utopistes poètes érudits poètes condition nécessaire mais insuffisante: combien de poètes piétinent! Tu peux sans le savoir croiser ta destinée sur le quai d’une gare vous pouvez prendre le même train sans portant vous reconnaître ni vous rencontrer Nos chemins devaient se croiser (puisque) ils venaient de directions contraires (mais) auraient pu se poursuivre chacun de son côté l’un s’est rebroussé l’autre l’a noué en bouclant la boucle Le radeau de l’amour surnage brindille portée emportée par l’inondation des secondes Avant d’être (un jour) légume je deviens (un peu) de bois tu te méprends en l’attribuant à quelque défaut ou déformation de ton corps te regardant nager j’avais envie d’être l’eau où tu te baignais Pour t’avoir tant contemplée (et filmée) endormie c’est toujours en belle au bois dormant que je te vois quand tu n’es pas là Même quand l’amour est réciproque qu’il fait battre les deux cœurs passionnément à la folie il reste inégal 41
Não espero de outrem nem mercê nem perdão do mundo nem revelação nem iluminação nem ciência nem embriaguez de mim nenhuma irrisória lucidez: a salvação quotidiana depende só do humor (só do amor) O meu amor é sem razão a minha alegria sem motivo a minha tristeza sem causa abandono a sua causa ao povo a sua razão ao mais forte e reservo o motivo para um lenço bordado Dei comigo a pensar que o amor é raro (e) aterrorizador ou mesmo destrutivo tanto quanto um vulcão em actividade ora ele pertence a um velho fundo lendário tão tranquilo como uma cadeia de antigas crateras É mais fácil definir o amor por aquilo que ele não é nem promessa de felicidade nem desejo de rebentos nem mesmo paz doméstica nem natural nem propriamente humano: aquilo que nos ultrapassa Sei que só o amor pode tornar o mundo mágico ou por outras palavras: habitável O nosso amor foi sempre mais forte do que toda a pressão ou tentação social na verdade nunca desejámos nem honras nem conforto A grande arte humana sempre foi a metamorfose semântica transformar os massacres em glória assimilar uma paixão amorosa a um repouso doméstico Não ignoramos o medo a angústia os suores frios o nó nas tripas (mas) isso não nos faz recuar A trovoada está em ti trovões de temores faíscas de paixão chuva de amor as nuvens que tapam o nosso horizonte não são uma ameaça Tomar como censuras todos os reparos é um meio de impor o teu ritmo e a tua ordem: your way a teu lado eu inexisto 42
Je n’attends d’autrui ni grâce ni pardon du monde ni révélation ni illumination ni science ni ivresse de moi-même aucune dérisoire lucidité: le salut quotidien tient au seul humour (au seul amour) Mon amour est déraison ma joie immotivée ma tristesse sans cause j’abandonne sa cause au peuple sa raison au plus fort et réserve le motif pour un mouchoir brodé J’en suis venu à croire l’amour rare (et) terrifiant voire destructeur autant qu’un volcan en activité il appartient plutôt à un fond de vieilles légendes aussi paisible que la chaîne des puys Il est plus facile de définir l’amour par ce qu’il n’est pas ni promesse de bonheur ni désir de rejetons ni même paix domestique ni naturel ni proprement humain: ce qui nous dépasse Je sais que seul l’amour peut rendre le monde magique autrement dit: habitable Notre amour a toujours été plus fort que toute pression ou tentation sociale vraiment nous n’avons jamais désiré ni le confort ni les honneurs Le grand art humain a toujours été la métamorphose sémantique: transformer des massacres en gloire assimiler une passion amoureuse à un repos domestique Nous n’ignorons pas la peur l’angoisse les sueurs froides les tripes nouées (mais) cela ne nous fait pas reculer L’orage est en toi tonnerre de craintes éclairs de passion pluie d’amour les nuages bouchant notre horizon ne sont pas une menace Prendre toute remarque pour un reproche est un moyen d’imposer ton rythme et ton ordre: your way à tes côtés j’inexiste 43
Aprende a reconhecer o amor que te têm em vez de tentares conjurar uma miséria imaginária asfixiando o mundo com provas de bondade Não és perfeita mas és certamente a melhor pessoa com quem me cruzei por isso admirei poucas pessoas sobretudo nunca invejei ninguém Geralmente a manhã é o tempo dos hábitos: café jornal cigarro mas a madrugada nas ruas desertas e nos jardins públicos é para mim o momento aventuroso do sonho desperto Longos passeios matinais cansar as pernas arejar a cabeça limpar os sonhos apagar o negrume nocturno Dia cinzento: não traz o nevoeiro denso e mágico do Outono em que árvores e vultos surgem espectrais e como sombras desaparecem (mas) a bruma suja após o calor abrasador memória ou profecia de incêndio Há um momento em que as luzes eléctricas que incendiavam a noite já não iluminam mais do que as estrelas distantes a hora azul precedendo o triunfo do dia A cidade virou livro aberto das gaivotas que a lêem rindo a bandeiras despregadas nós não tínhamos noção do nosso talento cómico Há palavras que batem com insistência à porta do pensamento correio portador de alguma mensagem lacrada mas também censura que acorrenta com a correia apertada das suas falsas razões Herança de séculos de servidão o trabalhador pede perdão confessando ter por vezes apanhado do chão umas migalhas de felicidade Férias no café o pai com um grão na asa presenteia o filho com uns tabefes a vermelhidão ardente da pele vale bem um escaldão na praia 44
Apprends à reconnaître l’amour qu’on te voue plutôt que de tenter de conjurer une misère imaginaire en accablant le monde de bontés Tu n’es pas parfaite mais tu es certainement la meilleure personne que j’ai croisée si bien que j’ai admiré peu de gens surtout je n’ai jamais envié personne Alors que généralement le matin est le temps des habitudes: café journal cigarette l’aube dans les rues désertes et les jardins publics est pour moi le moment aventureux du rêve éveillé Longues promenades matinales fatiguer les jambes aérer la tête nettoyer les rêves effacer la noirceur nocturne Jour gris: pas le brouillard dense et magique de l’automne où arbres et silhouettes surgissent spectres et disparaissent ombres (mais) la sale brume après la forte chaleur mémoire ou prophétie d’incendie Il y a un moment où les lumières électriques qui incendiaient la nuit n’éclairent pas plus que les étoiles distantes: l’heure bleue précédant le triomphe du jour La ville est devenue le livre ouvert des mouettes qui la lisent en s’esclaffant nous n’avions pas conscience de nos talents comiques Il y a des mots qui frappent avec insistance à la porte de la pensée facteurs délivrant quelque message cacheté il y a aussi le facteur censure et ses raisons factices Legs de siècles de servage le travailleur s’excuse en avouant avoir parfois ramassé quelques miettes de bonheur Vacances au troquet le père un peu éméché distribue quelques torgnoles à son moutard la rougeur cuisante de la peau vaut bien un coup de soleil 45
Recompensa do mendigo após renhida luta pelo lugar e a esmola: café com leite e pão com manteiga olhar brilhante de gula e cobiça: doçura do tempo reencontrado gente rica, qual dos vossos prazeres poderia ser comparável? Enquanto duram as obras e os andaimes camuflam o betão armado e as janelas cegas do futuro monstro o estaleiro reanima uma antiga beleza: o canto dos pedreiros Não é verdade que só a raiva ou o desespero me inspiram gostaria de (d)escrever pontes pedras e palácios reflectidos que a leitura de um poema fosse um passeio veneziano A maior parte do meu tempo é claramente dedicado à escrita a tinta é paradoxalmente luminosa as palavras são estrelas próximas Tantos «poemas» cometidos! Seria porventura necessário guardar apenas um qual e como escolher? Quanta concentração e esforço para formular três versos! O mundo não fica com isso mais rico mas o meu dia muda
46
Récompense du mendiant après une haute lutte pour la place et l’aumône: pain beurré et café au lait son regard brillant de convoitise et gourmandise: friandise du temps retrouvé riches, quel de vos plaisirs pourrait se comparer? Tant que durent les travaux que l’échafaudage masque le béton armé et les fenêtres aveugles du monstre futur le chantier ranime une antique beauté: le chant des maçons Il n’est pas vrai que seuls la rage ou le désespoir m’inspirent j’aimerais (d)écrire des ponts des pierres et des palais reflétés que la lecture du poème soit une promenade vénitienne Le plus clair de mon temps est consacré à l’écriture l’encre est paradoxalement lumineuse les mots sont des étoiles proches Tant de «poèmes» commis! Sans doute faudrait-il n’en retenir qu’un lequel et comment choisir? Combien de concentration et d’effort pour formuler trois vers! Le monde n’en est pas plus riche mais ma journée en a été changée
avril-mai 2011 47
de quoi fouetter un chat
Temos sempre uma desculpa pelo menos uma justificação estamos convencidos de que agimos depois de termos pensado quando nos limitámos a reagir ou compensar A distinção chinesa entre quem sabe ou não sabe e o sabe ou o ignora ao dividir a humanidade em cretinos cegos adormecidos e sábios não resolve nada visto que o problema está na necessidade de todos se entenderem A coesão do universo pelo menos a sua coerência – o que o torna robusto ou simplesmente palpável – é uma questão de crença só ao morrer uma pessoa se pode dissolver sem acreditar Não é tanto que o passado fosse melhor simplesmente no pormenor era diferente o que apenas prova que o presente poderia ser outro Outrora o presente construía o futuro apoiando-se no passado porventura corrigindo-o hoje em nome do futuro falsifica-se o presente e abole-se o passado Há lugares entrevistos do comboio que surgem como uma resposta caras cruzadas na rua que cativam como um apelo mas a gente ia demasiado depressa e na direcção errada O protótipo da viagem, a de Ulisses, é um regresso quem parte obscuramente é suposto voltar porém à nascença só as idas são distribuídas Não são os espelhos que se revelam infiéis mas sim os olhos que interrogam o reflexo e a comissão de censura da consciência Visto daqui o cosmos parece pacato pelo menos paciente as estrelas esperam placidamente sem tugir nem mugir só o sol não pára quieto Desde a morte dos deuses os espelhos da paisagem foram tapados em sinal de luto e já não reflectem as nossas dores e as esperanças O verbo original devia ser um hapax irrepetível porventura impronunciável um peido do vazio 50
On a toujours une excuse sinon une justification on est convaincu d’agir après avoir pensé alors qu’on ne fait que réagir ou compenser La distinction chinoise entre qui sait ou ne sait pas et le sait ou l’ignore en divisant l’humanité en crétins aveugles endormis et sages ne résout rien le problème tenant à la nécessité que tous s’entendent Sinon sa cohérence la cohésion de l’univers – ce qui le rend solide ou simplement palpable – est question de croyance seulement en mourant on peut se dissoudre sans y croire Ce n’est pas tant que le passé était meilleur simplement que dans le détail il était différent prouvant seulement que le présent pourrait être autre Jadis le présent construisait l’avenir en s’appuyant sur le passé quitte à le corriger aujourd’hui au nom de l’avenir on falsifie le présent et abolit le passé Il y a des lieux entrevus du train qui surgissent comme une réponse des visages croisés dans la rue qui frappent comme un appel mais on allait trop vite et dans la mauvaise direction Le prototype du voyage, celui d’Ulysse, est un retour qui part obscurément est censé revenir pourtant on ne distribue à la naissance que des allers simples Ce ne sont pas les miroirs qui sont infidèles mais les yeux qui interrogent leur reflet et la commission de censure de la conscience Vu d’ici le cosmos semble sinon paisible patient les étoiles attendent sagement sans bruire ni bouger seul le soleil ne tient pas en place Depuis la mort des dieux les miroirs du paysage ont été voilés en signe de deuil et ne reflètent plus nos douleurs ni nos espoirs Le verbe originel devait être un hapax irrépétable voire imprononçable un pet du vide 51
Como a faísca a imagem nasce de um choque um encontro do cérebro contra o mundo do visível com a recordação mas ainda é preciso fazer disso chama O homem encontra raramente os deuses ou as deusas mas antes as potências intermediárias: ninfas ou génios escondidos em árvores em pedras ou numa lufada de de vento Recorre à coragem e mesmo à obstinação mas deixa o anjo ou a divindade em paz se for vã a sua intervenção O anjo não recorreu aos seus poderes preferiu fingir e deixar-se vencer despeitado por não ter sido reconhecido Os deuses armarão esparrelas aos pardais e pumba alcatrão nas penas deitarão fogo ao firmamento com chamas de chapim azul e antes do próximo dilúvio catrapimba hecatombe da pomba Nunca houve deus feito homem no máximo alguns humanos divinizados mas é preciso mesmo muito amor No meio do cafarnaum da nossa casa onde os visitantes só vêm bibelots heteróclitos amontoados estou rodeado de histórias Fizemos do inútil profissão quer se trate de recusa ou de beleza em que unidade devemos medir o valor da improvável vida? O teu amor diviniza-me faz de mim a tua recompensa e o teu castigo das minhas contradições a tua crucifixão Ultrapassas-nos a todos à vista dos teus dons a nossa indignidade não exclui no entanto a reciprocidade Saboreias as coisas fechando os olhos enquanto o meu prazer é redobrado ao ver que o deleite faz brilhar a tua cara 52
Comme l’étincelle l’image jaillit d’un choc d’une rencontre du cerveau contre le monde du visible avec le souvenir il faut encore en tirer une flamme L’homme rencontre rarement les dieux ou les déesses plutôt les puissances intermédiaires: nymphes ou génies enfermés dans des arbres des pierres ou un souffle de vent Fais appel au courage voire à l’obstination mais laisse l’ange ou la divinité en paix quand leur intervention serait vaine L’ange n’a pas eu recours à ses pouvoirs il a préféré feindre et se laisser vaincre dépité de n’avoir pas été reconnu Les dieux piègeront les pigeons et couvriront leurs plumes de goudron incendieront le ciel en se servant d’alouettes comme allumettes avant le prochain déluge procèderont à l’hécatombe des colombes Il n’y a jamais eu de dieu fait homme tout au plus quelques humains divinisés mais il y faut vraiment beaucoup d’amour Au milieu du capharnaüm de notre maison où les visiteurs ne voient que bibelots hétéroclites accumulés je suis entouré d’histoires Nous avons fait profession de l’inutile qu’il s’agisse de refus ou de beauté en quelle unité devons-nous mesurer la valeur de l’improbable vie? Ton amour me divinise fais de moi ta récompense et ton châtiment de mes contradictions ta crucifixion Tu nous dépasses tous en regard de tes dons notre indignité n’exclut pourtant pas la réciprocité Tu savoures les choses en fermant les yeux alors que mon plaisir redouble de voir ta jouissance faire reluire ton visage 53
Os seus horários aos poucos deixaram de corresponder matinal ele acabava por se levantar quando insone ela se deitava velho casal de carteiro e de guarda nocturna A minha deusa está deitada nua bela para além da beleza desejável para além do desejo adormecida sob uma chuva de pavões Comportamo-nos sempre como principiantes porém muito cedo começámos a envelhecer Ele só gosta dos livros pois cada palavra é portadora de inúmeras histórias mesmo num texto administrativo há poemas esparsos passa o tempo a ler: se necessário uma cara ou uma pedra também serve Primeiro tens de lavrar-te palavra para poder morar na cama dos livros um livro em forma de fechadura convida-te a penetrar pelo menos a mirar o mistério da tua origem um livro sorri-te vertical ao fundo da biblioteca que escancara as suas estantes Há poetas que acreditam que o mundo só está aí para lhes oferecer imagens universitários que pensam que a poesia só existe para lhes fornecer um corpus ratos carunchos e térmitas que encaram as bibliotecas como reservas de comida A derrapagem é rápida (quase) insensível do amador ao consumidor livros e filmes adquiridos não por gosto e interesse mas por mania e colecção (frequentemente) arrumados sem que se lhes deite uma olhadela Terei mergulhado sem escafandro nas profundezas da escrita marinheiro perseguindo a sua sereia na esperança de te compreender pelo menos de te merecer Despir o decorativo escorraçar o artificial quebrar o barroco recusar os privilégios de classe do clássico a sua duplicidade diplomata a sua polidez corrupta já não tenho dentes suficientes para mastigar as minhas palavras Uma jóia é mais simbólica do que estritamente decorativa a minha ambição seria que a minha leitora cada manhã decorasse um poema fixando-o qual brinco secreto na sua orelha Possa um só verso dos meus lavra de larva corromper um leitor vindouro e ser-me-á concedida a vida ectoplásmica dos fantasmas 54
Leurs horaires ont peu à peu cessé de correspondre matinal il finissait par se lever quand insomniaque elle se couchait vieux couple de livreur et gardienne de nuit Ma déesse est étendue nue belle au-delà de la beauté désirable au-delà du désir endormie sous une pluie de paons Nous nous comportons toujours en débutants nous avons commencé très tôt pourtant à vieillir Il n’aime que les livres car tout mot est porteur d’innombrables histoires même dans un texte administratif il y a éparpillés des poèmes il passe son temps à lire: au besoin un visage ou une pierre fait l’affaire Tu dois d’abord te coucher mot pour pouvoir habiter dans les livres un livre en forme de serrure t’invite à sinon pénétrer lorgner le mystère de ton origine un livre te sourit vertical au fond de la bibliothèque qui t’ouvre large ses étagères Il y a des poètes qui croient que le monde n’est là que pour leur offrir des images des universitaires qui pensent que la poésie n’existe que pour leur fournir un corpus des rats des vers et des termites qui prennent les bibliothèques pour des réserves de nourriture Le dérapage est rapide (presque) insensible de l’amateur au consommateur livres et films acquis non par goût et intérêt mais par manie et collection (souvent) rangés sans même y jeter un coup d’œil J’aurai plongé sans scaphandre au profond de l’écriture marin suivant sa sirène dans l’espoir sinon de te comprendre de te mériter Décrocher le décoratif chasser l’artificiel casser le baroque refuser les privilèges de classe du classique sa diplomate duplicité son trop poli pour être honnête je n’ai plus assez de dents pour mâcher mes mots Un bijou est plus symbolique que strictement décoratif mon ambition serait que ma lectrice chaque matin choisisse un poème et le fixe pendentif secret à son oreille Qu’un seul de mes «vers» hante un lecteur à venir et me sera accordée la vie ectoplasmique des fantômes 55
Escrever um livro é construir um túmulo onde na morte se morará só se tenta caber lá Escrever não é prolongar a memória o texto quer esquecer os acontecimentos que o suscitaram pertence a uma outra temporalidade e forja a sua própria realidade Toda a poesia é forçosamente «de circunstância» pois a emoção e até o pensamento são circunstanciais passada a circunstância ficam os versos Na rede da escrita só apanho peixe miúdo o amador aprecia peixinho frito o verdadeiro pescador pesca apenas para pescar O pensamento anda às voltas variando as fórmulas mas regressando sempre aos mesmos motivos os meus versos desenham as grades das minha jaula As minhas palavras não traduzem o meu pensamento por isso não podem traí-lo mas ultrapassam-no seguramente comandadas pela música das trompas que derrubam as muralhas do sentido De tanto buscarem o seu leitor os livros esgotam-se correspondência perdida ou devolvida ao remetente reciprocamente escrevo para responder às cartas que não recebi A mão ao apertar outra limpa altas paradas de simpatia a boca através de um beijo absorve uma alma antes da assinatura do pacto o espírito pelos olhos e ouvidos embebe-se do poema ainda fresco e não escrito Como a estátua no mármore ou Pinóquio no seu toro de madeira a matéria do poema jaz no bloco de conversas tidas e ouvidas é preciso martelar cinzelar escavar esvaziar esvaziar até à evidência De vento em popa enfuna-se o poema até que doa: ouro lama dama larva cara ou coroa quer-se avante: sereia sem voz vã figura de proa 56
Écrire un livre est se construire un tombeau où l’on passera sa mort on essaie d’y tenir tout entier Écrire n’est pas prolonger la mémoire le texte veut oublier les événements qui l’ont suscité il appartient à une autre temporalité et forge sa propre réalité Toute poésie ne saurait être que «de circonstance» car l’émotion et même la pensée sont circonstancielles passée la circonstance restent les vers Dans les filets de l’écriture je ne pêche que du menu fretin l’amateur apprécie la friture le vrai pêcheur pêche seulement pour pêcher La pensée tourne en rond variant les formules mais revenant sans cesse aux mêmes motifs mes vers dessinent les barreaux de ma cage Mes mots ne traduisent pas ma pensée aussi ne sauraient la trahir mais assurément la dépassent commandés par la musique des trompes qui font crouler les murailles du sens À chercher leur lecteur les livres s’épuisent correspondance égarée ou retournée à l’envoyeur réciproquement j’écris pour répondre aux lettres que je n’ai pas reçues La main en en serrant une autre rafle les mises de sympathie la bouche par un baiser absorbe une âme avant la signature du pacte l’esprit par les yeux et les oreilles s’imbibe du poème tout frais pas encore écrit Comme la statue dans le marbre ou Pinocchio dans sa bûche la matière du poème gît dans le bloc des conversations tenues et entendues il faut marteler ciseler creuser évider évider jusqu’à l’évidence Le poème se gonfle à tout vent peu ou prou: or boue héros vermine preux ou poux il se veut en avant: sirène sans voix vaine poupée de proue 57
O sentido nem é único – sub-reptícia sanguessuga da evidência nem proibido – subterrânea censura do sensato e do inteligente somente secreto – subliminar à sublime sensualidade do som Elogio do concentrado: de uma longa demonstração apenas retemos a premissa e a conclusão de uma suma filosófica algum aforismo de um poema três versos de toda uma vida alguns instantes de êxtase ou de esperança O sucesso da forma romanesca está ligado à sua extensão: ersatz de infinito a condensação do poema articula um grito (a um só tempo) de pânico e de soberba escolha assumida do limite desafio ao divino O haiku tem algo da equação não apenas na forma condensada do resultado como no processo de eliminação das incógnitas ou da unidade imaginária A verdade de uma asserção não altera o seu carácter conjectural e hipotético não somente pode decorrer de uma conjectura aleatória e transitória mas não está excluído que o seu contrário possa ser igualmente verdadeiro Só temos acesso ao fragmento o que será uma totalidade capaz de caber numa palavra (um verbo quanto mais não seja)? em que é que se distinguem um fragmento de eternidade e um fragmento de tempo? A minha antiga matemática assentava no um mais um quando eu errava entre o zero e a unidade tu eliminaste o princípio de não pertença e convidaste-me a elaborar uma nova teoria dos (con)juntos A criança à nascença não sabe o seu tamanho pode julgar-se ilimitada antes de aprender a crescer tem de aprender a mingar A pedagogia não deve ser um método mas um cuidado a consciência de que todo o acto dita uma relação com o mundo de que cada gesto compromete o futuro Os três totens pedagógicos: o macaco para a imitação o papagaio para a repetição – mecânica e sem compreensão o burro para a submissão – graças ao pau e à cenoura 58
Le sens n’est ni unique – subreptice sangsue de l’évidence ni interdit – souterraine censure du sensé et de l’intelligent seulement secret – subliminaire à la sublime sensualité des sons Éloge du concentré: d’une longue démonstration nous ne retenons que la prémisse et la conclusion d’une somme philosophique quelque aphorisme d’un poème trois vers de toute une vie quelques instants d’extase ou d’espoir Le succès de la forme romanesque est lié à sa longueur: ersatz d’infini la condensation du poème articule un cri (à la fois) de panique et d’arrogance choix assumé de la limite défi au divin Le haïku a quelque chose de l’équation non seulement dans la forme condensée du résultat mais dans le processus d’élimination d’inconnues ou de l’unité imaginaire La vérité d’une assertion n’entame pas son caractère conjecturel et hypothétique non seulement elle peut être issue d’une conjoncture aléatoire et transitoire mais il n’est pas exclu que son contraire soit également vrai Nous n’avons accès qu’au fragment que peut être une totalité qui tiendrait dans un mot (fût-ce un verbe)? en quoi se distingue un fragment d’éternité d’un fragment de temps? Mes mathématiques anciennes reposaient sur un plus un quand j’errais entre le zéro et l’unité tu as éliminé le principe de non appartenance et m’as invité à élaborer une nouvelle théorie des ensemble L’enfant à la naissance ne sait pas sa propre taille il peut se croire illimité avant d’apprendre à grandir il doit faire l’apprentissage du rapetissement La pédagogie ne doit pas être une méthode mais un souci la conscience que tout acte édicte un rapport au monde que chaque geste engage l’avenir Les trois totems pédagogiques: le singe pour l’imitation le perroquet pour la répétition – mécanique et sans compréhension l’âne pour la soumission – par la carotte ou le bâton 59
Entre escola obrigatória segurança social e subsídio de desemprego a vida humana custa ainda demasiado caro houve superprodução então começam os saldos Os «pregos» onde se empenham jóias multiplicaram-se bem como os ferro-velho os pobres não podem permitir-se nem luxo nem lixo a «crise» revela que ainda havia alguma coisa a extorquir-lhes Na ficção de uma «sociedade de abundância» ser visivelmente pobre constitui um crime pelo menos uma ameaça Emparedar portas e janelas das casas desabitadas não impedirá os drogados os vagabundos os sem abrigo de lá entrar porém sentir-se-ão enclausurados O indício mais seguro de que uma guerra está em curso reside na assimilação da história à actualidade e da informação à propaganda Política da avestruz: toda a nossa acção se resumiu a deixar fazer deixar passar deixar dizer deixar ladrar e agora só nos resta apanhar os cacos A saúde é uma convenção – tão limitada como a liberdade a doença é um espectro – a parte corporal incontrolada os medicamentos são uma necessidade rotineira – forma moderna da oração A saúde é um fingimento uma finta a felicidade também mas continuam a ser as nossas melhores armas no incessante combate contra a morte Apesar da ausência de sintomas visíveis estou doente mal subreptício de incubação lenta não sou hipocondríaco: tenho de estar doente já que estou vivo Preço da idade: mais embriagante do que o prazer sexual – camisola de forças e sonda genital ou sensual – esfolamento por atrito parece-me o prazer sem suor – de presença e partilha ilimitadas O dito é devido: quem não goza de solvência não tem direito à salvação o futuro exerce o cargo de meirinho para efectuar as cobranças e impiedoso procede à penhora da alma 60
Entre école obligatoire sécurité sociale et indemnité de chômage la vie humaine coûte encore trop cher il y a eu surproduction alors on solde Les «clous» où gager les bijoux se sont multipliés ainsi que les ferrailleurs les pauvres ne peuvent se permettre ni luxe ni déchets la «crise» révèle qu’il restait quelque chose à leur soutirer Dans la fiction d’une «société d’abondance» être visiblement pauvre constitue sinon un crime une menace Murer portes et fenêtres des maisons inhabitées n’empêchera pas drogués clochards ou trimards d’y pénétrer mais ils s’y sentiront enfermés L’indice le plus sûr qu’une guerre est en cours tient à l’assimilation de l’histoire à l’actualité et de l’information à la propagande Politique de l’autruche: toute notre action s’est résumée à laisser faire laisser passer laisser dire laisser pisser il n’y a plus maintenant qu’à ramasser les pots cassés La santé est une convention – aussi limitée que la liberté la maladie est un fantasme – la part corporelle incontrôlée les médicaments sont une nécessité routinière – forme moderne de la prière La santé est une feinte le bonheur aussi mais ils restent nos meilleures armes dans l’incessant combat contre la mort Malgré l’absence de symptômes visibles je suis malade mal subreptice à incubation lente je ne suis pas hypocondriaque: il faut que je sois malade puisque je suis vivant Prix de l’âge: m’apparaît plus grisant que le plaisir sexuel – corsetage et forage génital ou sensuel – écorchage par frottement un plaisir sans sueur – de présence et partage illimités Le dit est dû: qui n’est pas solvable n’est pas sauvable l’avenir a charge d’huissier pour procéder aux recouvrements qui impitoyable exécute la saisie d’âme 61
Fernando, o que é que resta dos nossos sonhos? ter sido no fim de contas tão-só um ajuntamento de palavras valerá mais do que «um cadáver adiado que procria»? No teatro do mundo daquele que não representa correctamente o seu papel não se diz que improvisa mas que «faz uma cena» No que diz respeito aos animais outros que não ele mesmo o homem considera qualquer crescimento populacional acelerado um flagelo não suporta a evidência de que os ratos e as formigas lhe sobreviverão Quem gosta de se perder nos labirínticos desenhos de um tapete sabe que a variedade desses motivos não pode sequer rivalizar com uma pradaria varrida pelo vento Verdura reflectida no rio: a paisagem em si já é impressionista a presença de uma banhista marca o limite da figuração o «regresso à natureza» desperta (desoculta) o paganismo Se a terra fecunda é a imagem da mãe o mar seria antes a de uma velha mulher com vagas ondulações frisagens de espuma e sempre a resmungar revelando-se em certas luas bruxa uivante e desgrenhada A irrisão não impede a beleza o absurdo não significa a tristeza ainda há verde azul sol e nuvens Será a natureza a invasora evidência dos reinos animais e vegetais que torna o campo tão repousante ou simplesmente o horizonte e o céu desobstruído e um pouco menos gente? Círculo vicioso: quando o homem afastou-se da natureza quando deixou de ver nela uma metáfora da sua alma torturada inventou as cidades A cidade é antes de mais confusão sonora mal se sai de lá dezenas de sons ínfimos se tornam perceptíveis simultaneamente água vento aves insectos etc. lembrando-nos de mansinho que não somos os únicos habitantes 62
Fernando, que reste-t-il de nos rêves? n’avoir été pour finir qu’un assemblage de mots vaut-il mieux qu’«un cadavre ajourné qui procrée»? Sur le théâtre du monde de celui qui ne tient pas correctement son rôle on ne dit pas qu’il improvise mais qu’il «fait une scène» Chez tous les animaux autres que lui-même l’homme considère toute rapide croissance populationnelle une plaie il ne supporte pas l’évidence que rats et fourmis lui survivront Qui aime se perdre dans les labyrinthiques dessins d’un tapis sait que la variété de ses motifs ne saurait rivaliser même avec une prairie agitée par le vent Verdure reflétée dans la rivière: le paysage en soi est déjà impressionniste la présence d’une baigneuse marque la limite de la figuration le «retour à la nature» réveille (révèle) le paganisme Si la terre féconde est l’image de la mère la mer serait celle plutôt d’une vieille femme avec ses rouleaux ses ondulations ses friselis d’écume et toujours à maugréer se révélant à certaines lunes sorcière hurlante et dépeignée La dérision n’empêche pas la beauté l’absurde ne signifie pas la tristesse il y a encore du vert du bleu du soleil et des nuages Est-ce la «nature» l’envahissante évidence des règnes animaux et végétaux qui rend la campagne si reposante ou simplement l’horizon ou le ciel dégagé et un peu moins de monde? Cercle vicieux: quand l’homme s’est écarté de la nature quand il a cessé d’y voir une métaphore de son âme torturée il a inventé les villes La ville est avant tout brouillage sonore dès qu’on en sort des dizaines de sons infimes deviennent perceptibles simultanément eau vent oiseaux insectes etc. nous rappelant doucement que nous ne sommes pas les seuls habitants 63
A cidade é percorrida por fotógrafos mais do que de turistas apreciadores de casas velhas trata-se de agentes imobiliários que especulam com as próximas ruínas A câmara define o turista o microfone o jornalista de televisão não é de espantar que eu tenha vindo a preferir a escrita ao cinema! A avaliar pela pança (logo visto) dos artistas a arte madura e pura e a parte mole da graxa são sua cota e armadura pessoalmente prefiro a coita de amor Li e estudei sem estancar nem a sede de conhecer nem o desejo de compreender chamei lucidez à substituição de fantasias infantis por sérias convenções e lamento as minhas ilusões perdidas O nosso torrão não é seguramente o éden mas nem por isso é necessário transformá-lo no inferno contentemo-nos com um jardim e comecemos por plantar flores! A abundância dos frutos abole a tentação: o éden era um deserto (pois) apesar da proibição aguçar a curiosidade só a falta ou a fome terão provocado a infracção e a emigração Com o machado e o arado o homem escreveu a sua história à flor da terra desses sonhos e desse labor nada resta quando a página é virada Os sonhos são fragmentos de dia levados na viagem nocturna as sombras uma parte de noite conservada nas deambulações diurnas criaturas crepusculares reflectimos a luz sem poder emiti-la O vento ensinou-me a viajar a árvore ensinou-me a esperar preferia que me tivessem ensinado apenas a cantar Se voltasse atrás talvez no fim de contas fizesse outras escolhas não por arrependimento mas por indolência 64
La ville est parcourue de photographes plutôt que de touristes appréciant les vieilles demeures il s’agit d’agents immobiliers spéculant sur les prochaines ruines La caméra définit le touriste le microphone le journaliste de télévision pas étonnant que j’en sois venu à préférer l’écriture au cinéma! À en juger par la panse (et l’essuie) des artistes l’art mûr et dur protège et nourrit autant qu’une cuirasse de lard mou personnellement je préfère l’amour J’ai lu et étudié sans assouvir ni la soif de connaître ni le désir de comprendre j’ai appelé lucidité la substitution de fantaisies infantiles par des conventions sérieuses et je regrette mes illusions perdues Notre lopin n’est certes pas l’éden il n’est pas pour autant nécessaire d’en faire l’enfer contentons-nous d’un jardin et commençons par faire pousser des fleurs! L’abondance des fruits abolit la tentation: l’éden était un désert (car) si la prohibition aiguise la curiosité seuls le manque ou la faim auront provoqué infraction et émigration À la hache et à l’araire l’homme a écrit son histoire à même le sol de ces rêves et de ce travail il ne reste rien quand la page est tournée Les rêves sont des fragments de jour emportés dans le voyage nocturne les ombres une part de nuit conservée dans les déambulations diurnes créatures crépusculaires nous réfléchissons la lumière sans l’émettre Le vent m’a appris à voyager l’arbre m’a appris à attendre j’aurais voulu qu’ils m’apprennent juste à chanter Si c’était à refaire peut-être après tout ferais-je d’autres choix pas par repentir juste par nonchalance 65
Espanto-me ao ver tanta gente prezar o seu passado angustiar-se ao constatar crescentes perdas de memória quando eu devo a sobrevivência menos à faculdade de recordar do que à facilidade em esquecer Bastam dois passos para se sentir perdido ou pelo menos estrangeiro mas o espírito é bem mais lento do que os pés uma pessoa não se afasta do seu passado tão depressa como de casa Como qualquer pessoa durante muito tempo habituei-me à minha duplicidade (mas) temo bem que os médicos só tenham reanimado um dos meus «eu» (e ) não sei qual (deles) Meteste os pés pelas mãos nas tuas contradições e tropeçaste voltaste a pôr-te de pé e apesar do peso levantaste-as de um só fôlego consegues mantê-las erguidas mas são pesadas vais acabar por deixá-las cair A perfeita circularidade dos círculos na água é incompatível com a perfeição do reflexo a própria ideia de perfeição é uma aporia Por cinzentos que sejam os dias nunca se parecem exactamente uns com os outros o seu moiré resulta da sucessão O sol começa por dissipar os vapores que enevoavam as encostas depois seca a humidade que encerava o vale por fim lá para meio da manhã solta os aromas das plantas e da terra Em vez de maquilhares os olhos deixa a aurora verter uma gota de beladona na retina e aplicar com seu pincel sombra dourada nas pálpebras Madrugada típica do Porto: não chove nem uma ruga vem turvar a flor das poças mas as pedras reluzem o ar está tão saturado de humidade que ao cabo de uns passos está-se encharcado Traidora bruma de verão quando o ar se faz felino afagante levemente eléctrico antes de saltar à garganta e de lá se instalar A frescura da manhã não é apenas luz e promessa de calor a barrela nocturna lavou com as sombras cheiros e barulhos só de madrugada se pode sentir o cheiro do pão ou o café fresco 66
Je m’étonne de voir tant de gens chérir leur passé s’angoisser en constatant des pertes croissantes de mémoire alors que je dois ma survie moins à ma faculté de souvenir qu’à ma facilité d’oubli Il suffit de deux pas pour se retrouver sinon perdu dépaysé mais l’esprit est bien plus lent que les pieds on ne s’éloigne pas de son passé aussi vite que de sa maison Comme tout un chacun je me suis longtemps accommodé de ma duplicité (mais) je crains que les toubibs n’aient ranimé qu’un des «moi» (et) ne sais lequel Tu t’es pris les pieds dans tes contradictions et tu as trébuché tu t’es relevé et malgré leur poids les as soulevées à l’arraché tu les tiens à bout de bras mais elles sont lourdes et tu finiras bien par les lâcher La parfaite circularité des ronds dans l’eau est incompatible avec la perfection du reflet l’idée même de perfection est une aporie Aussi gris que soient les jours ils ne se ressemblent jamais exactement leur succession forme leur moire Le soleil commence par dissiper les vapeurs qui embrumaient les pentes puis sèche l’humidité qui cirait la vallée pour enfin au milieu de la matinée dégager les odeurs des plantes et de la terre Au lieu de te maquiller les yeux laisse l’aube y verser une goutte de belladone son pinceau y déposer son fard doré Aube typique de Porto: il ne pleut pas pas une ride ne trouble la surface des flaques mais les pierres sont luisantes l’air est si saturé d’humidité qu’au bout de quelques pas on est trempé Traître brouillard d’été quand l’air se fait félin caressant légèrement électrique avant de vous sauter à la gorge et de s’y installer La fraîcheur du matin n’est pas seulement lumière et promesse de chaleur la lessive nocturne a nettoyé avec les ombres odeurs et bruits c’est à l’aube qu’on peut sentir le pain ou le café frais 67
Tenho dificuldade em perceber os que se levantam tarde (tantos os amigos como os filhos) pois quando fecharem os olhos pela última vez não terão saudades da infinita variedade das auroras A luz do crepúsculo está assombrada pelo seu próprio fim cada janela tenta reter uma centelha em vão pronta a extinguir-se antes que o vidro escureça e o mundo se apague por fim A noite distribui a abundância de bens o dia seca os sonhos a «lei da adaptação» só joga no sentido do pior Na mitologia grega os profetas são cegos e os oráculos sibilinos o visível e o claro só podem ser logros A nossa única esperança no futuro assenta na sua imprevisibilidade (o seu ilogismo) que a visível ruína presente não configure as suas primícias (nem as suas premissas) os antigos adivinhos eram cegos mas vazar os olhos não faz o vidente
68
J’ai du mal à comprendre ceux qui se lèvent tard (tant mes amis que mes enfants) qui en fermant une dernière fois les yeux ne regretteront pas l’infinie variété des aubes La lumière du crépuscule est hantée par sa propre fin chaque fenêtre tente d’en retenir un éclat en vain qui se ternit avant que noircisse la vitre et le monde s’efface enfin La nuit distribue l’abondance de biens le jour assèche les rêves la «loi d’adaptation» ne joue que pour le pire Dans la mythologie grecque les prophètes sont aveugles et les oracles sibyllins le visible et le clair ne sauraient être que leurres Notre unique espoir en l’avenir repose sur son imprévisibilité (son illogisme) que la visible ruine présente n’en fonde pas les prémices (ni les prémisses) les devins antiques étaient aveugles mais se crever les yeux ne rend pas voyant
juin-juillet 2011 69
chat à neuf queues
Como escrever-te cartas de amor quando o alerta soa todas as noites e a frente recua até à nossa cama Quando nasci o mundo já era caça reservada os caminhos estavam cheios de armadilhas nos arbustos as emboscadas abundavam e eu só podia avançar se me mantivesse alerta Sou atravessado pelo mundo tanto quanto o atravesso (mas por vezes) o mundo fica-me entalado na garganta Começaram por arrancar as cerejeiras depois subiram o preço dos terrenos para desalojar os habitantes Provença de salão terra confiscada O campo é uma quadrícula de pequenos muros vestígios de um tempo em que toda a paisagem era uma imensa Bastilha Paisagem marcada pela ausência do canto das cigarras terei sonhado a minha infância ou uma convenção? Como que misturado com outros matizes o ocre domina entre os tons creme e os tons de areia sem cinzento nem sujidade cor de poeira antiga Entre os seixos redondos no leito do riacho e as pedras ainda agudas do caminho uma casa feita de calhaus Vincent era a febre que tos fazia torcer e flamejar o cipreste ergue-se rígido como um espeto concepção romana da árvore Já as escamas fossilizadas se esboroam e o focinho encheu-se de calhaus como poço entupido só restam os ciprestes derradeiros dentes cariados do dragão 72
Comment t’écrire des lettres d’amour quand l’alerte retentit toutes les nuits et le front recule jusque dans notre lit Quand je suis né le monde était déjà chasse gardée les chemins étaient semés de pièges le fourré fourmillait d’embûches je ne pouvais avancer qu’en restant sur le qui vive Je suis traversé par le monde autant que je le traverse (mais parfois) le monde me reste en travers de la gorge On a commencé par abattre les cerisiers puis on a haussé le prix du terrain pour déloger les habitants Provence de salon terre confisquée La campagne est quadrillée de murets vestiges du temps où tout le paysage était une immense Bastille Paysage marqué par l’absence du chant des cigales ai-je rêvé mon enfance ou une convention? Comme mêlé à toutes les autres teintes l’ocre domine entre crème et sable sans gris ni sale couleur de poussière antique Entre les galets roulés dans le lit du ru et les pierres encore pointues tapissant la route une maison de caillasse Vincent c’est la fièvre qui te les faisait tordre et flamber l’if se tient raide comme un piquet conception romane de l’arbre Ses écailles fossilisées déjà s’effritent sa gueule s’est emplie de pierres comme un puits se bouche seuls demeurent les ifs derniers chicots du dragon 73
Às profundezas oceânicas responde a superfície terrestre o grande verde Para onde foram as flores ? os caracóis tomaram o lugar delas na extremidade dos caules aliás aqui a mais pequena erva espalha mais cheiro Os vespões voam à nossa volta vociferando ameaças sitiam a casa e tentam entrar mesmo que morram esborrachados contra o vidro o seu zumbido acaba por se infiltrar e se instalar transistorizado Os vespões fazem a sua vindima em vez de cortarem o cacho furam os bagos para lá se enfiarem e se embebedarem de vinho novo No fim deste caminho de cabreiros que longínquo isso parece um dia acreditei na felicidade Uma rajada de mistral basta para apagar a fornalha do Verão ora pior ainda é um inferno frio ao tempo que Orf e Hefe continuam a discutir a minha subida A terra seca abre-se em gretas o céu permanece impiedosamente azul toda a humidade se condensou nos meus olhos Mais uma vez antes de uma partida o céu oferece-te a chuva não para afinar o dia pelo diapasão da tua tristeza mas antes para amenizar a saudade relativizando as tuas lágrimas Os passos sob as copas dos bosques despertam as presenças emboscadas nos arbustos a consciência do território partilhado Cada caminho é uma entrada de propriedade privada eles desnacionalizaram a paisagem e vão porventura acabar por deslocalizá-la Um copo de vinho uma erva um raio de sol na verdade parece simples a felicidade mas essa simplicidade tem de ser inata espontânea infantil egoísta e bestial ou permanecer ideal cobiçado nunca alcançado 74
Aux profondeurs océanes répond la surface terreuse: le grand vert Où sont parties les fleurs? les escargots ont pris leur place au sommet des tiges d’ailleurs la moindre herbe ici répand plus de senteur Les frelons nous frôlent en fredonnant la menace ils assiègent la maison cherchant à y pénétrer quitte à s’écraser contre la vitre leur bourdonnement finit par s’infiltrer et s’installer transistorisé Les frelons font leur vendange plutôt que de couper la grappe perçant le grain et s’y logeant pour s’y saouler de vin nouveau Au bout de ce sentier de cabriers cela paraît si lointain j’ai cru un jour au bonheur Un souffle de mistral suffit à éteindre la fournaise de l’été or pire encore est un enfer froid alors qu’Orphée et Hépha discutent toujours de ma remontée La terre sèche se craquelle le ciel reste impitoyablement bleu toute l’humidité s’est condensée dans mes yeux Encore une fois juste avant un départ le ciel t’offre la pluie pas pour mettre le jour au diapason de ta tristesse plutôt pour minimiser le regret en relativisant tes larmes Les pas sous le couvert des bois éveillent les présences tapies dans le fourré la conscience du territoire partagé Chaque chemin est une entrée de propriété privée ils ont dénationalisé le paysage et finiront sans doute par le délocaliser Un verre de vin un brin d’herbe un rayon de soleil vraiment le bonheur paraît simple mais cette simplicité doit être innée spontanée infantile égoïste et bête ou demeurer idéal envié jamais atteint 75
«Já não há estações»: o verão prolonga-se indevidamente como a minha vida não nos vamos queixar disso Um dia descobre-se que as ninfas e as deusas são mulheres deus um velho caquéctico os nossos heróis carniceiros os nossos valores logros com o avançar da idade os mistérios da vida revelam-se meros clisteres Do mesmo modo que a gravidez torna o olho sensível à rotundidade da barriga das outras mulheres e suscita a imagem de uma humanidade contagiosamente grávida da próxima geração eu só vejo à minha volta velhotes insones impotentes indigentes incuráveis Após o «fim do desenvolvimento do peito no adulto» pouco a pouco tudo vai ficando lasso reumatismo nos ossos gordura nas carnes açúcar nas artérias mesmo a máquina de excremento tem os seus solavancos Já não fumo já não bebo já só tomo dois ou três cafés por dia por este andar ainda acabo são ou até santo (visto que já não fodo) Posso sentir-me apressado pressionado aprisionado reprimido comprimido oprimido tenho mais falta de depressão do que sintomas dela A lucidez não impede a expansão do negrume a contenção não basta para evitar os contenciosos o recuo só serve para ganhar lanço A gente vai-se usando e a usura cobra os juros o tempo ao repetir-se começou por jogar comigo mais ao distender-se acabará por jogar contra mim Folhas secas flores murchas insectos encaixados objectos empoeirados arrumação etiquetagem: a colecção é a aprendizagem da ciência fechamento alfinetagem: a colecção é a aprendizagem da morte Nem a festa nem por fazê-la, nem por ócio nem por osso do negócio: os factos são factícios e tudo vem a ser falso: vida por procuração vitória por defeito a dança é macabra e a malta segue docilmente a grande foice brandida como bandeira 76
«Il n’y a plus de saisons»: l’été se prolonge indûment comme ma vie nous n’irons pas nous en plaindre Un jour on découvre que nymphes et déesses sont des femmes dieu un vieillard cacochyme nos héros des bouchers nos valeurs des leurres l’âge aidant les mystères de la vie s’avèrent n’être que des clystères Comme la grossesse rend l’œil sensible à la rondeur du ventre des autres femmes et suscite l’image d’une humanité contagieusement enceinte de la prochaine génération je ne vois autour de moi que vieillards insomniaques impotents indigents incurables Après l’«arrêt du développement de la poitrine chez l’adulte» petit à petit tout lâche: rhumatisme dans les os graisse dans les chairs sucre dans les artères même la machine excrémentielle a des ratés Je ne fume plus ne bois plus ne prends plus que deux ou trois cafés par jour à ce train je vais finir sain voire saint (puisque je ne baise plus) Je peux me sentir pressé compressé oppressé réprimé comprimé opprimé je manque plutôt de dépression que je n’en souffre La lucidité n’empêche pas l’expansion de la noirceur la contention ne suffit pas à éviter les contentieux le recul ne sert qu’à mieux sauter On va s’usant et l’usure touche ses intérêts le temps en se répétant a commencé par jouer avec moi mais en s’étirant finira par jouer contre moi Feuilles séchées fleurs fanées insectes emboîtés objets empoussiérés rangement étiquetage: la collection est l’apprentissage de la science enfermement épinglage: la collection est l’apprentissage de la mort Ni fête ni affaires: le factitif s’avère factice tout faux: vie par procuration victoire par défaut la danse est macabre on suit docilement le drapeau de la faux 77
Não só exigem que eu dure como ainda por cima tenho de dar provas de endurance vida transformada em castigo O meu corpo é um túmulo movimentado animado agitado que não deixa o meu esqueleto repousar em paz É-me impossível escrever no meio das conversas não por os anfitriões ou visitantes me tirarem a paz necessária mas antes porque me impedem de me concentrar nas minhas guerras interiores A guerra instalou-se em mim palavras e pensamento foram-me riscados pela censura da consciência ora não há estatuto para a abjecção de consciência A república só me reconhece como soldado a minha reincorporação inscreve-se no quadro da mobilização geral aliás cada escola foi transformada em trincheira A máquina é autofágica sabermos que somos peça é pressentirmos que ela acabará por nos esmagar Os meus aborrecimentos não resultam de um erro mas de um conflito entre memória virtual e memória vivida entre maquinal estatística e humano único O critério da eficácia tem de eliminar o humano e os seus erros nem a inteligência nem o sentido são requeridos para a execução dos programas tarefas sujas da máquina O inspector preveniu-me: está fora de questão pagarem-me uma pensão enquanto eu não tiver sido reconhecido Grande Inválido de Guerra Outrora os velhos eram venerados pela experiência e memória que tinham na era industrial reforma significava encostar à box e ser aparcado em asilos entretanto a única solução que encontraram foi pô-los a trabalhar até mais tarde! A inegável multiplicação das coincidências e das repetições em última instância da evidência só prova que o destino funciona tão mal como uma repartição pública 78
On n’exige pas seulement que je dure mais encore que j’endure vie faite châtiment Mon corps est une tombe mobile animée agitée qui ne laisse pas mon squelette reposer en paix Il m’est impossible d’écrire au milieu des conversations non pas qu’hôtes ou visiteurs m’ôtent la paix nécessaire plutôt qu’ils m’empêchent de me concentrer sur mes guerres intérieures La guerre est installée en moi mes mots et mes pensées sont caviardés par la censure de la conscience il n’y a pas de statut pour l’abjection de conscience La république ne me reconnaît que comme conscrit mon rappel s’inscrit dans le cadre de la mobilisation générale d’ailleurs on a fait de chaque école une tranchée La machine est autophage s’en savoir une pièce c’est pressentir qu’elle finira par nous broyer Mes ennuis ne résultent pas d’une erreur mais d’un conflit entre mémoire virtuelle et mémoire vécue entre machinale statistique et humain unique Le critère d’efficacité doit éliminer l’humain et ses erreurs l’intelligence ni le sens ne sont requis pour l’exécution des programmes basses œuvres de la machine L’inspecteur m’a prévenu: pas question de me verser une pension tant que je ne serai pas reconnu Grand Invalide de Guerre Jadis les vieillards étaient vénérés pour leur expérience et leur mémoire à l’ère industrielle retraite signifiait mise au rencard et bon pour le mouroir et on n’a trouvé d’autre solution que de les faire bosser jusqu’à plus tard! L’indéniable multiplication des coïncidences et des répétitions en dernière évidence prouve seulement que le destin fonctionne aussi mal qu’une administration publique 79
A criança mutila o gafanhoto sem maldade por pura curiosidade a sua única perversão reside na antropomorfização do bicho na confusão entre insecto e humano um superior hierárquico tem qualquer coisa de criança Pedrinhas semeadas pelo caminho para poder regressar bolsos cheios de pedras para não voltar à tona uma pedra no sapato para nunca sentir conforto Ao que parece o valor positivo ou negativo depende da proporção logo quando os caminhos estão cobertos de merda pisá-los já não dá sorte Obstinadamente caminho incapaz de correr para atender ao mais urgente como os meus contemporâneos incapaz como tu de parar a cada passo e de me maravilhar Uma porta basta para definir a prisão um pátio e uma campainha o quartel um naco de céu a evasão Julguei-me cisne e quis cantar ora eu não passava dum pato feio e desafinado Pinóquio é a alegoria da obra possível mas mais realista seria a aventura inversa de um anti-Pinóquio a redução de um homem ao estado de boneco Para ser realista haveria que substituir os valores pelo seu antónimo glória por vergonha gestão por fraude democracia por autoridade etc. pobre Kant: a hipocrisia tornou-se o único imperativo categórico Antropologicamente um sedentário é um nómada parado o estado declarou guerra a todos os seus cidadãos ao declarar guerra aos imigrantes É precisamente a mesma razão política que ontem consistiu em explorar desenfreadamente os recursos das colónias e hoje escorraça impiedosamente os que gostariam de usufruir da abundância: a razão do mais forte 80
L’enfant mutile la sauterelle sans méchanceté par pure curiosité sa seule perversion tient à l’anthropomorphisation de l’animal confondant insecte et humain un supérieur hiérarchique a quelque chose de l’enfant Des cailloux semés sur le chemin pour pouvoir retourner des cailloux plein les poches pour ne pas remonter à la surface un caillou dans la savate pour ne jamais se sentir confortable Il paraît que la valeur positive ou négative dépend de la proportion ainsi quand les chemins sont couverts de merde marcher dessus ne porte plus chance Obstinément je marche incapable comme mes contemporains de courir au plus pressé ni comme toi de m’arrêter à chaque pas et m’émerveiller Une porte suffit à définir la prison une cour et une sonnerie la caserne un coin de ciel l’évasion Je me suis cru cygne et j’ai voulu chanter mais je n’étais qu’un vilain canard Pinocchio est l’allégorie optimiste de l’œuvre possible mais plus réaliste serait l’aventure inverse d’un anti-Pinocchio la réduction d’un homme à l’état de pantin Pour être réaliste il faudrait remplacer les valeurs par leur antonyme: gloire par honte gestion par fraude démocratie par autorité etc. pauvre Kant: l’hypocrisie est devenue le seul impératif catégorique Anthropologiquement un sédentaire est un nomade arrêté l’état a déclaré la guerre à tous ses citoyens en déclarant la guerre aux immigrés C’est précisément la même raison politique qui a consisté hier à exploiter sans frein les ressources des colonies et aujourd’hui repousse sans pitié ceux qui voudraient bénéficier de l’abondance: la raison du plus fort 81
Vomito a fineza da francidade e a grosseria do francesismo a soberba hexagonal ou parisiense miséria a minha de não ter nascido belga! Não mordo a mão mas não lambo os pés de mim não esperem o reconhecimento do cão O recurso à autoridade é falta de argumentos prova de impotência medo sobretudo de mostrar fraqueza pois o corolário da razão do mais forte considera que o fraco é culpado de a não ter Tudo o que era censurado aos regimes ditos «comunistas»: hiato entre os planos cimeiros e as condições degradadas da base também se verifica nas «democracias avançadas» já não invocando um ideal mas em nome do pragmatismo Como não suportam a solidão que procuraram e são profundamente infelizes os burgueses fazem pagar aos outros a sua condição Conspirações infantis volvidas aspirações adolescentes esboroadas respiração ofegante da idade: tínhamos falta de fôlego ou de inspiração o emburguesamento começa com uma passagem do aspirador O pensamento é apenas o reflexo da actividade química do nosso metabolismo o conteúdo dos nossos sonhos decorre tanto da nossa digestão quanto das nossas angústias o próprio conceito de crescimento é uma ideia infantil Todas as instituições de autoridade – patrão pais pátria são coniventes ou estão porventura coligados para nos infantilizar nos impedir de nos tornarmos adultos ou pelo menos nós mesmos Invejo a tua infância tão feliz que nada dela esqueceste e diante de cada a coisa a revives arrebatada Tenho de voltar a mergulhar no passado de reencontrar gestos e palavras esquecidas resistindo contudo à infantilização Fotografias de infância : reconheço-me pelo olhar mistura de curiosidade por aquilo que o mundo me pode oferecer e de inquietude quanto às provas que ele me reserva 82
Je vomis francité et franchouillardise morgue hexagonale et parisianisme misère de n’être pas né belge! Je ne mords pas la main mais je ne lèche pas les pieds qu’on n’attende pas de moi la reconnaissance du chien Le recours à l’autorité est manque d’argument preuve d’impuissance peur surtout de se montrer faible car le corollaire de la raison du plus fort tient la faiblesse comme un tort Tout ce qu’on reprochait aux régimes dits «communistes»: hiatus entre les plans du sommet et les conditions dégradées de la base se vérifie dans les «démocraties avancées» non plus en invoquant un idéal mais au nom du pragmatisme Comme ils ne supportent pas leur solitude voulue et sont profondément malheureux les bourgeois font payer aux autres leur condition Conspirations infantiles éventées aspirations adolescentes effritées respiration haletante de l’âge: nous manquions de souffle ou d’inspiration l’embourgeoisement commence par un coup d’aspirateur La pensée n’est que le reflet de l’activité chimique de notre métabolisme la teneur de nos rêves tient autant à nos angoisses qu’à notre digestion le concept même de croissance est une idée infantile Toutes les institutions d’autorité – patron parents patrie sont connivents voire ligués pour nous infantiliser nous empêcher de devenir sinon adultes nous-mêmes J’envie ton enfance si heureuse que tu n’en as rien oublié et devant toute chose la revis ravie Je dois replonger dans le passé retrouver des gestes et des mots oubliés tout en résistant à l’infantilisation Photos d’enfance: je me reconnais à mon regard mélange de curiosité pour ce que le monde peut m’offrir et d’inquiétude quant aux épreuves qu’il me réserve 83
Evocando recordações examinando fotografias todas as vidas resumidas tendem a parecer-se umas com as outras será que só nos distinguimos pelos sonhos pelas ânsias insatisfeitas pelos desejos desenganados? É preciso um álbum de fotografias para provar que os pais foram crianças revelar que eles nunca deixaram de o ser que paternidade e maternidade não passam de disfarces A diferença genérica começa pelas orelhas: ao ouvir a história tu identificavas-te com o capuchinho vermelho enquanto eu me julgava lobo e metia medo a mim mesmo A família como uma chaga nunca completamente cicatrizada sob a casca do afecto que se afecta e que convém nunca coçar Admito que o ego seja redutível à memória o pensamento a uma organização de esquecimentos o tempo a uma irremissível amnésia O tempo é tão-só um equilíbrio instável entre conservação e degradação nem evolução (ou então a outra escala) nem revolução Apesar ou graças à sua invisibilidade as flores do tempo não desbotam nem murcham quando as colhemos Viver é sobreviver: luto conveniente de sobreviver aos pais dívida insustentável de sobreviver a um filho dor ectoplásmica de sobreviver a si mesmo A minha mãe era professora portanto nunca deixou de andar na escola o mundo é-lhe um manual escolar ilustrado em 3D Preguiça intelectual: não ter nenhuma ilusão quanto ao carácter parcial e não fiável da informação fornecida pelos media e ficar-se pelas fontes A abundância é feita de supérfluo como distinguir algo de essencial quando tudo se tornou igualmente irrisório? 84
Évoquant des souvenirs examinant des photographies toutes les vies résumées tendent à se ressembler ne nous distinguons-nous que par nos rêves nos souhaits inexaucés nos désirs déçus? Il faut un album de photos pour prouver que les parents ont été enfants révéler qu’ils n’ont jamais cessé d’être enfants que paternité et maternité ne sont que des déguisements La différence générique commence par les oreilles: en entendant l’histoire tu t’assimilais au chaperon rouge alors que je me prenais pour le loup et me faisais horreur La famille comme une plaie jamais complètement cicatrisée sous la croûte de l’affection qui s’affecte qu’il convient de surtout ne pas gratter J’admets que l’ego soit réductible à la mémoire la pensée à une organisation des oublis le temps à une irrémissible amnésie Le temps n’est qu’un équilibre instable entre conservation et dégradation ni évolution (ou alors à une autre échelle) ni révolution Malgré ou grâce à leur invisibilité les fleurs du temps ne se décolorent pas ni ne fanent quand on les a cueillies Vivre c’est survivre: deuil convenable de survivre à ses parents dette insoutenable de survivre à son enfant douleur ectoplasmique de se survivre à soi-même Ma mère était professeure elle n’a donc jamais quitté l’école le monde lui est un manuel scolaire illustré en 3D Paresse intellectuelle: n’avoir aucune illusion quant au caractère partial et non fiable de l’information fournie par les media et s’en tenir à ces sources L’abondance est faite du superflu comment distinguer quelque essentiel quand tout est devenu également dérisoire? 85
Embora já nenhuma criança brinque nas ruas foram-se multiplicando os canteiros de areia tão raros na minha infância era lá que fazíamos bolos e castelos doravante servem de cagadeira para os cães: é o progresso! Fim de semana: os vizinhos fazem rebrilhar os popós antes de esfregar molham cuspindo o paninho já não há graveto para meter gasolina mas ainda lhes resta a saliva Historicamente a prosperidade parece ter conhecido apenas dois modelos: feudal ou colonial a riqueza começa onde acaba a partilha a solidariedade só nasce com a necessidade Estamos supostamente na crista da crise mas o que vejo é o mercado negro de gente aos encontrões as próprias palavras só servem para apalavrar negócios Soou a meia-noite do grande baile da finança no fim de contas todos os coches eram apenas abóboras vai ser preciso reaprender a andar a pé Os corsários eram pagos por el rey os traficantes são empregados pelo governo a razão só serve para arrazoar o próximo Toda a perversão da linguagem traduz uma perversão do pensamento os abusos de linguagem são produtos do abuso de poder da violação das palavras o único indício é o indizível O nome cria o sentido como a função o órgão o reinado da ordem submeteu a tal ponto o social que o ordenado se transformou no ordinário Tudo está viciado todos se disfarçam: sociedade do espectáculo é preciso gozar a todo o custo (o pelo menos fingir): espectáculo da saciedade ora mal se levanta uma ponta do cenário aparece a ruína Os prédios elevaram o horizonte os subúrbios tapam a paisagem sitiada a cidade estende-se menos do que vira para dentro Estão sempre a correr: empurrões engarrafamento arranque a chiar dos vagões do metro milhões de passos apressados um surdo troar um magma sonoro a cidade incuba uma trovoada latente que não rebenta 86
Alors qu’aucun gosse ne joue plus dans les rues on a multiplié les bacs à sable dans mon enfance ils étaient rares où nous construisions pâtés et châteaux ce sont désormais des chiottes pour chiens: c’est le progrès! Fin de semaine: les voisins astiquent leurs voitures avant de frotter ils humectent le chiffon en crachant dessus il n’y a plus de quoi mettre de l’essence mais il leur reste la salive La prospérité semble n’avoir connu historiquement que deux modèles: féodal ou colonial la richesse commence quand finit le partage la solidarité ne naît qu’avec la nécessité On crie la crise mais je vois le marché noir de monde même les mots sont bons à barater Le minuit a sonné du grand bal de la finance finalement tous les carrosses n’étaient que citrouilles il va falloir réapprendre la marche Les corsaires étaient payés par le roy les trafiquants sont employés par le gouvernement la raison ne sert qu’à arraisonner le prochain Toute perversion du langage traduit une perversion de la pensée les abus de langage sont produits de l’abus de pouvoir du viol des mots le seul indice est l’indicible Le nom crée le sens comme la fonction l’organe le règne de l’ordre a tellement soumis le social que l’ordonné est devenu l’ordinaire Tout est truqué chacun est déguisé: société du spectacle il faut jouir à tout prix (au moins faire semblant): spectacle de la satiété or dès que tu soulèves un coin du décor la ruine apparaît Les immeubles ont surélevé l’horizon la banlieue bouche le paysage cernée la ville s’étend moins qu’elle ne se replie Ils courent toujours: bousculade embouteillage démarrage grinçant des rames de métro des millions de pas pressés un grondement sourd un magma sonore la ville couve un permanent orage qui n’éclate pas 87
Os pássaros não cantam nem falam: comunicam aprenderam nos fios telegráficos ou através das ondas rádio a menos que o chilreio seja antes o modelo de toda a comunicação Não tenho dúvidas de que os textos comunicam virtualmente entre eles mas o seu flirt desagua numa cópula material já que se reproduzem sob a forma de livros Em nossa casa os livros adoptaram a técnica chinesa da imigração clandestina: fazer de conta que se desaparece para dar lugar a longínquos primos e depois reaparecer quando todo o bairro está ocupado Diante de toda a coisa o primeiro sentimento é de espanto porquê assim e não de outra maneira? as minhas palavras não sabem nomear apenas traduzir a dúvida Tudo muda constantemente mas não à mesma velocidade pelo que nunca estamos síncronos com o que nos rodeia a linguagem uma e comum está aí para camuflar os hiatos Não tenho queda pelo exotismo – não mais pelo Japão que pelo Éden para mim o modelo do haiku seria antes o terceto final de um poema de Cros despojado das premissas sonantes qual ouro de lei do soneto A forma curta tem a vantagem de se poder deduzir da sua brevidade uma provável abundância desconhecida portanto uma inutilidade prática A poesia deve ser feita caminhando percorrendo covas cumes e colinas e colhendo as imagens como plantas para um herbário Há astros que desatam a piscar quando os fitamos estrelas fixas que se deslocam mal piscamos os olhos todo um enxame cobiçando o mel derramado pelo sol Suporta estoicamente todas as desgraças pois a sua noção de equilíbrio universal convenceu-o de que elas correspondem algures a uma felicidade directamente proporcional Grão de areia na mecânica do condicionamento social pedra no sapato da nossa condição de errantes o amor fez-se rochedo incondicional de presença sensível 88
Les oiseaux ne chantent ni ne parlent: ils communiquent ils ont appris sur les fils télégraphiques ou à travers les ondes radio à moins qu’au contraire le piaillement soit le modèle de toute communication Je n’ai pas de doute que les textes communiquent virtuellement entre eux mais leur flirt verbal débouche sur une copulation matérielle puisque ils se reproduisent sous forme de livres Chez nous les livres ont adopté la technique chinoise de l’immigration clandestine: faire mine d’avoir disparu pour laisser la place à de lointains cousins puis réapparaître quand tout le quartier est occupé Devant toute chose le premier sentiment est d’étonnement pourquoi comme ça et pas autrement? mes mots ne savent pas nommer seulement traduire le doute Tout change constamment mais pas à la même vitesse si bien que nous ne sommes jamais synchrones avec ce qui nous entoure le langage un et commun est là pour masquer les hiatus Je n’ai guère de goût pour l’exotisme – pas plus le Japon que l’Eden le modèle du haïku serait pour moi plutôt le tercet final d’un poème de Cros débarrassé des prémisses sonnantes mais trébuchantes du sonnet La forme courte a cet avantage que de sa brièveté on peut déduire sa probable abondance inconnue partant son inutilité pratique La poésie doit se faire en marchant en parcourant combes crêtes et collines et cueillant les images comme on herborise Il y a des astres qui se mettent à clignoter quand on les fixe des étoiles fixes qui se déplacent dès qu’on cligne des yeux tout un essaim convoitant le miel déposé par le soleil Il supporte stoïquement tous les malheurs sa notion d’un équilibre universel le convainquant qu’ils correspondent quelque part à un bonheur proportionnel Grain de sable dans la mécanique du conditionnement social caillou dans la chaussure de notre condition d’errants l’amour s’est fait roc inconditionnel de présence sensible 89
Eu viera à face da terra para urdir a tua graça e a tua desgraça (mas) não o sabia e inventava missões para mim mesmo que só podiam fracassar porque me teriam distraído Porventura naufragaremos juntos pois que juntos nos lançámos na travessia mas teremos aprendido pensado e dispensado o ouro dos levantes ou poentes e noites estreladas Valho apenas pelo ínfimo sentido das palavras que alinho e pelo amor insensato que me tens Mesmo para descer do paraíso é preciso não olhar para trás seja como for sempre concebemos o amor sem regresso
90
Je n’étais venu sur terre que pour tisser ton bonheur et ton malheur (mais) je l’ignorais et m’inventais des missions qui ne pouvaient qu’échouer puisque elles m’auraient distrait Nous naufragerons peut-être ensemble puisque nous avons ensemble entrepris la traversée mais nous aurons appris pensé et dispensé l’or des soleils levant ou couchant et des nuits étoilées Je ne vaux que pour l’infime sens des mots que j’aligne et l’amour insensé que tu me portes Même pour descendre du paradis il ne faut pas regarder en arrière de toute façon nous n’avons jamais conçu l’amour que sans retour
août-septembre 2011 91
appeler un chat
Admito o princípio da incerteza a interferência da observação a infelicidade nasce da introspecção talvez só haja consciência infeliz Ao nível cósmico variação segundo o ponto de vista – ensina a relatividade no plano infra-microscópico interferência pela simples observação – prova a mecânica quântica à nossa escala pura cegueira e nem sempre devida ao amor Para cantar o amor e os seus frutos um nadinha de lirismo basta mas estou prenhe de merda urina e sangue ulceroso que requerem deveras muita sublimação O médico disse-me num tom terapêutico: a vida não acaba aos cinquenta anos nem mesmo aos sessenta então em que idade? Aos sete anos era falador calei-me com receio de esgotar as palavras de que um homem pode dispor durante a vida era sensível chorei todas as lágrimas que numa vida me era dado derramar Esbarrei demasiadas vezes com o mundo para ser não um exemplo mas simplesmente útil a seja quem for posso desencorajar-me ao menos não conheço o medo Ignoro em que medida a minha infelicidade reflecte uma condição mais vasta na qual outros se podem reconhecer só essa hipótese me leva a continuar Os prazos que me (a que me) submeteram são infinitos: medidos em meses no máximo em semanas enquanto eu conto os minutos Não perdi nem o gosto nem a esperança nem a capacidade de me maravilhar não me sinto propriamente impaciente mas cansado Cada dia que passa me aproxima do fim do impasse porém cada prazo é conquistado às forças de esmagamento não há absoluto na liberdade apenas uma margem 94
J’admets le principe d’incertitude l’interférence de l’observation le malheur naît de l’introspection il n’y a peut-être de conscience que malheureuse Au niveau cosmique variation selon le point de vue – enseigne la relativité au plan infra-microscopique interférence par la simple observation – prouve la mécanique quantique à notre échelle pur aveuglement et pas toujours dû à l’amour Pour chanter l’amour et ses fruits un brin de lyrisme suffit mais je suis gros de merde d’urine et de sang ulcéreux qui requièrent vraiment beaucoup de sublimation Le toubib m’a dit d’un ton thérapeutique: la vie n’est pas finie à cinquante ans ni même à soixante à quel âge donc? À sept ans j’étais bavard je me suis tu de crainte d’épuiser les mots dont un homme dans sa vie peut disposer j’étais sensible j’ai pleuré toutes les larmes qu’en une vie je pouvais verser Je me suis trop cogné au monde pour être non pas exemple mais simplement utile à qui que ce soit je peux me décourager au moins ne connais-je pas la peur J’ignore dans quelle mesure mon malheur reflète une condition plus vaste où d’autres peuvent se reconnaître seule cette hypothèse me pousse à continuer Les délais qu’on me (auxquels on me) soumet sont infinis: mesurés en mois au mieux en semaines alors que je compte les minutes Je n’ai perdu ni le goût ni l’espoir ni la capacité de m’émerveiller je ne suis pas tant impatient que fatigué Chaque jour écoulé me rapproche du bout de l’impasse mais chaque délai est gagné sur les forces d’écrasement il n’y a pas d’absolu dans la liberté juste une marge 95
Só pelos limites se conhece a liberdade não encontrei entraves externos nem polícias nem fronteiras no fundo eles são fruto apenas do medo Dentro da cabeça estou a rodar vendo apenas o céu vazio através da fenda dos olhos condenado à clausura em si da qual ninguém se evade A asa da loucura roça-me e refresca-me sem me levar uma onda de raiva uma baforada de angústia antes de voltar a cair As minhas notas diárias constituem o meu contributo para a «história da loucura» ou a patologia decorre da cegueira quanto ao «desregramento de todos os sentidos» ou a lucidez é profundamente depressiva Sem ser do género romance cor-de-rosa ou novela com final feliz não me acho contudo pessimista: confiante no próximo e nas próximas gerações porquê rotular de «negro» o olhar ou o pensamento que não são néscios nem frívolos? Cérebro eréctil ânus preensivo neotenia da imaginação conservo porventura alguns traços característicos do humano mas mal arrumadas Ligo o leito tanto ao delito como ao deleite o cálice à borra o pecado à origem sobre o imaculado lê-se a culpa a toda a hora Os anti-depressivos bloqueiam quimicamente certas secreções anxiógenas mas o bloqueamento dos efeitos não corrói o bloco imenso das causas antes teria vontade de me embriagar: de desbloquear o passivo de demência Vivo de palavras as que digo e releio que o carteiro amor me traz as que rumino escrevo ou esqueço que o carteiro cansaço leva A linguagem é o meu instrumento e é difícil de tocar é preciso ter dedos lestos, sentido do ritmo, timbre no ouvido, voz bem afinada como os mestres morreram todos só existem auto-didactas 96
On ne connaît la liberté que par ses limites je n’en ai pas trouvé d’externes ni polices ni frontières toutes au fond ne relèvent que de la peur Je tourne dans ma tête ne voyant que le ciel vide par la fente de mes yeux condamné à l’enfermement en soi d’où l’on ne s’évade pas L’aile de la folie m’évente sans m’emporter une onde de rage une bouffée d’angoisse avant de retomber Mes notes journalières constituent ma contribution à l’«histoire de la folie» ou la pathologie tient à l’aveuglement quant au «dérèglement de tous les sens» ou la lucidité est profondément dépressive Sans être ni fleur bleue ni bibliothèque rose je ne me crois pas pessimiste: confiant en mon prochain et les prochaines générations pourquoi qualifier de «noir» regard ou pensée qui ne soient niais ni frivoles? Cerveau érectile anus préhensif néoténie de l’imagination sans doute conservé-je quelques caractéristiques de l’humain mais mal placées Je lie le lit au délit autant qu’au délice la coupe à la lie le péché à l’origine sur l’immaculé se lit la coulpe à tout coup Les antidépresseurs bloquent chimiquement certaines sécrétions anxiogènes mais le blocage des effets n’entame pas le bloc immense des causes j’aurais plutôt envie de me saouler: de débloquer Je vis de mots ceux que je lis et relis que m’apporte le facteur amour ceux que je rumine écris ou oublie qu’emporte le facteur fatigue Je joue du langage c’est un instrument difficile il y faut du doigté, le sens du rythme, le timbre dans l’oreille, la voix accordée comme les maîtres sont morts il n’y a que des autodidactes 97
Duvido da evidência mas ainda desconfio mais do hermetismo toda a leitura é já suficientemente projectiva de chavões e preconceitos se um pensamento original torturasse o leitor ele escrevê-lo-ia! Não posso desprezar os imitadores de Rimbaud ou Kafka: sou um deles provavelmente além do trabalho de vidência da capacidade de formular oráculos o poder que possuem consiste nessa virtude de suscitar imitadores Em autor há altura em artista há autista ora eu vejo a criação como uma partilha (até deus partilhava o éden) só gosto dos poetas que encaram o leitor como seu semelhante seu irmão Citar plagiar ou repetir-se tem a ver com gaguejar em lugar da confusão ou de tal irrisão terei outra escolha que não o silêncio? Enquanto escrevo sinto-me tão arrebatado quanto fico vazio – não triste – a seguir: as palavras arrombaram o dique o lago de represa está seco escrever é hoje a minha maneira de fazer amor Ao escrever (ao filmar) imagino um leitor (um espectador) mas espero uma resposta não tanto um comentário antes um diálogo que o texto (o filme) se torne elo e o leitor (o espectador) pegue na pena (na câmara) O cinema é invenção de luz filmar talvez um acto desesperado porém sempre optimista enquanto que escrever é obra de tinta de escurecimento Só pela vista percepcionamos a luz mas ela deve ser perfumada e doce já que abelhas vespas e vespões a vêm sugar Dura rude abrupta paisagem de calhaus e ervas secas violenta beleza que só requer que se caminhe e se abra os olhos O verão passou todos os frutos foram colhidos o Inverno aproxima-se a paisagem já pálida maquilha-se com todos os pós e pigmentos do Outono 98
Je doute de l’évidence mais me méfie plus encore de l’hermétisme toute lecture est déjà assez projective de clichés et préjugés si une pensée originale torturait le lecteur il l’écrirait! Je ne peux mépriser les imitateurs de Rimbaud ou Kafka: j’en suis probablement outre leur travail de voyance leur capacité d’oracle leur puissance tient à cette vertu de susciter des imitateurs Dans auteur il y a hauteur dans artiste il y a autiste or je vois la création comme un partage (même dieu partageait l’éden) je n’aime que les poètes qui prennent le lecteur pour leur semblable leur frère Citer plagier ou se répéter tient du bégaiement plutôt que la confusion ou une telle dérision ai-je d’autre choix que le silence? Autant je suis emporté pendant que j’écris autant je reste vide – pas triste – après: les mots ont rompu une digue le lac de retenue est à sec écrire est ma façon aujourd’hui de faire l’amour En écrivant (en filmant) j’imagine un lecteur (un spectateur) mais j’attends une réponse pas tant un commentaire qu’un dialogue que le texte (le film) se fasse chaînon et le lecteur (le spectateur) prenne la plume (la caméra) Le cinéma est invention de lumière filmer peut être un acte désespéré pourtant toujours optimiste alors qu’écrire est œuvre d’encrage de noircissement Nous ne percevons la lumière que par la vue mais elle doit être odorante et sucrée puisque abeilles guêpes et frelons viennent la butiner Dur rude raide paysage de caillasses et d’herbes sèches violente beauté qui ne requiert que de marcher et ouvrir les yeux L’été est passé tous les fruits ont été cueillis l’hiver approche le paysage déjà blafard se maquille de tous les fards de l’automne 99
Texturas demasiado puídas para cumprir o texto que lhes coube revelando a nudez fecunda da terra em vez de a ocultarem as parras coram até à raiz antes de renunciarem Dias melados de um Outono que se imagina Verão abelhas e vespões caem no logro e bêbedos à falta de flores beijam o ar A paisagem escolheu o ruço e o rubro como pinturas de guerra os pássaros arvoram as suas penas mais garridas para desafiar o caçador há quem chame a isto «Verão índio» pois o Inverno branco não deixará sobreviventes A paleta de Outono rompe finalmente a monotonia do verde mal se sabe condenada a beleza desvenda-se haverá alternativa aos guinchos que não o canto dos cisnes? O Outono barrou de compota o pão da terra destilando todas as plantas no seu alambique o Inverno mal poderá fazer uma simples tisana Quando já se colheram os frutos o sangue da terra passa para as folhas matadouros do Outono Com folhas ruças em jeito de pêlos o Outono reconstitui os imensos despojos de Osíris-Pã-Hades uma vasta parra mal esconde a parte que lhes falta O espaço físico é metáfora, ilusão, trompe-l’œil, persistência retiniana a paisagem é temporal composta de luzes: na orla dos bosques nocturnos desfralda-se a campanha da aurora Antes de revelar os seus ocres e a sua verdura a madrugada levanta o lençol azulado sob o qual a terra dorme para com ele colorir o céu Na aurora o sol é dito «rasante» pois enquanto uma espuma de sombra cobre ainda o chão ele recorta poupa de copa barbicha de mata bigode de bosque 100
Trop petites taches pour leur tâche révélant la nudité féconde de la terre au lieu de l’occulter les pampres rougissent avant de renoncer Journées mielleuses d’un automne qui se prend pour l’été guêpes et frelons s’y trompent et ivres faute de fleurs butinent l’air Le paysage a choisi le roux et le rouge comme peintures de guerre les oiseaux arborent leurs plumes les plus vives pour défier le chasseur on l’appelle l’«été indien» car l’hiver blanc ne fera pas de quartiers La palette de l’automne rompt enfin la monotonie du vert sitôt qu’elle se sait condamnée la beauté se dévoile n’y a-t-il d’alternative aux piaillements que le chant des cygnes? L’automne a tartiné la terre de confiture distillant en bon bouilleur toute plante laissant à l’hiver à peine de quoi faire une tisane Quand on a cueilli les fruits le sang de la terre passe dans les feuilles abattoirs de l’automne Avec des feuilles rousses en guise de poils l’automne reconstitue la dépouille immense d’Osiris-Pan-Hadès un large pampre cache mal la pièce manquante L’espace physique est métaphore, illusion, trompe-l’œil, persistance rétinienne le paysage est temporel composé de lumières: à l’orée des bois nocturnes se déploie la campagne de l’aube Avant de révéler ses ocres et sa verdure l’aube soulève le drap bleuté où dort la terre pour en colorer le ciel Le soleil à l’aube est dit «rasant» car tandis qu’une écume d’ombre couvre encore le sol il découpe et dégage favoris de maquis bouc de bosquet bacchantes de frondaisons 101
São brumas matinais não impedirão o sol de brilhar mais tarde mas roubam à aurora toda a sua glória Males de insónia tantas palavras derramadas a tingir a noite não hão-de fazer com que o sol se levante mais cedo para as dissolver nem mais tarde O Inverno da idade não é apenas uma metáfora dias encurtando escuridão invadindo (para além do frio) A chuva põe-me macambúzio preferia ver a terra seca tornar-se deserto não temo o calor no inferno sentir-me-ia em casa A paz é privilégio do camponês encarar desastre ruína ou desgraça como partes de um ciclo regozijar-se porque chove As grades da chuva deslizam sem ruído cerram-se os portões do horizonte o céu solta um trovão para fechar a minha cela Não esqueci a caça às borboletas da minha infância nesta estação acompanhei a mutação das folhas e o fecho do ângulo solar consegui viver cada Verão como se fora único O amor das divindades é difícil e complicado as linhas com que se escreve são tortas porventura retorcidas não terei eu ficado retido nestas paragens para aqui beber um verão maravilhoso até à borra?
102
Ce sont des brumes matinales elles n’empêcheront pas le soleil plus tard de briller mais elles ôtent à l’aurore toute gloire Maux d’insomnie tant de mots versés à encrer la nuit ne feront pas pour les dissoudre le soleil se lever plus tôt ni plus tard L’hiver de l’âge n’est pas qu’une métaphore: raccourcissement des jours envahissement de l’obscurité (outre le froid) La pluie me rend morose je préfèrerais voir la terre sèche se faire désert je ne crains pas la chaleur en enfer je me sentirais chez moi La paix est privilège de paysan: prendre accident ruine ou malheur comme parties d’un cycle se réjouir de la pluie Les barreaux de la pluie coulissent sans bruit les grilles de l’horizon se referment le ciel donne un tour de tonnerre pour verrouiller ma cellule Je n’ai pas oublié la chasse aux papillons de mon enfance j’ai accompagné cette saison la mue des feuilles et la fermeture de l’angle du soleil j’aurai su vivre chaque été comme unique L’amour des divinités est difficile et compliqué leurs voies sinon tordues tortueuses n’ai-je été retenu ici que pour y boire un merveilleux été jusqu’à la lie?
103
O ocidente oxidou-se o poente enferrujado tingiu a parra das vinhas vindimadas ao esplendor do ouro sucede inevitavelmente o banho de sangue Ao cabo de um século de guerras, genocídios, extermínios, massacres numa escala inaudita impossível admitir a lei moral no máximo uma divindade esteta que após as belezas eterna e fugitiva pretendeu impor a beleza torturada Escravos colonizados neo-colonizados imigrantes legais ou clandestinos como não ver que todo o nosso conforto – estradas, cidades, sem falar dos tapetes é feito do sangue e do suor dos mais miseráveis? Só os pobres têm uma consciência e uma prática do luxo luxo de um vestido bordado ou de uma jóia de pacotilha quando se tem fome luxo de estar vivo Não é à partida em pasta ou posses que se devem medir as desigualdades sociais mas em relações humanas: poder não confundir amante e proxeneta ver na criança que vai nascer uma alegria não um peso As gravidezes confirmam a passagem de testemunho não conseguimos mudar o mundo dificilmente os nossos sucessores farão pior Os objectos que julgamos utilizar na verdade escravizam-nos comandam a nossa gestualidade organizam o nosso tempo limitar-se ao estritamente necessário não é uma restrição mas uma libertação Subrepticiamente a satisfação (o privilégio) tende a apresentar-se como modelo antes de se impor como regra Moeram-me o juízo: para que serve? O que hoje é escandaloso amanhã será elogiado Justamente! O escândalo é sinal de pertença a verdadeira recusa mantém-se discreta só se recupera o que é recuperável É uma questão de velocidade e de lugar no quotidiano em suma, de tempo a perder: música dança ou mesmo embriagues poderiam espairecer sem estontear sem serem fuga ou alienação 104
L’occident s’est oxydé le couchant rouillé a déteint sur le pampre des vignes vendangées à l’éclat de l’or succède inévitablement le bain de sang Au bout d’un siècle de guerres, génocides, exterminations, massacres à une échelle inouïe impossible d’admettre la loi morale tout au plus une divinité esthète qui après les beautés éternelle et fugitive a voulu imposer la beauté torturée Esclaves colonisés néo-colonisés immigrés légaux ou clandestins comment ne pas voir que tout notre confort – routes, villes, sans parler des tapis est fait du sang et de la sueur de plus misérables? Seuls les pauvres ont une conscience et une pratique du luxe luxe d’une robe brodée ou d’un bijou de pacotille quand on a faim luxe d’être vivant Ce n’est pas d’abord en fric ou en biens qu’il faut mesurer les écarts sociaux mais en rapports humains: pouvoir ne pas confondre amant et maquereau voir dans l’enfant à naître une joie pas un poids Les grossesses confirment le passage du relai nous avons failli à changer le monde difficilement nos successeurs feront pire Les objets que nous croyons utiliser en fait nous asservissent commandent notre gestuelle organisent notre temps s’en tenir au strictement nécessaire n’est pas une restriction mais une libération Subrepticement la satisfaction (le privilège) tend à se poser comme modèle avant de s’imposer comme règle On m’a seriné: à quoi bon? Ce qui est aujourd’hui scandaleux sera demain encensé justement! Le scandale est signe d’appartenance le vrai refus reste discret on ne récupère que ce qui est récupérable C’est une question de vitesse et de place dans le quotidien bref de temps à perdre: musique danse voire ivresse pourraient épanouir sans étourdir ne pas être fuite ou aliénation 105
Não podemos contentar-nos com «passar o tempo» cada fracção de tempo é uma oportunidade que passa e não voltará não é o tempo é a nossa vida que passa somos nós que mais não fazemos do que passar O passado tem de se decompor para alimentar o futuro reconstruído em puzzle os seus pútridos pedaços não colam mas envenenados apodrecem o presente O passado é memória reconstituição reinvenção ficção ou até projecção os factos ou pelo menos o seu sentido depressa se dilui os fantasmas não são saudades sobreviventes mas encarnação dos medos presentes Deslizamos entre lençóis para exercitarmos a posição deitada nos habituarmos à mortalha escondemo-nos sob lençóis para procurarmos refúgio nos protegermos das agressões do mundo mas os fantasmas habitam os lençóis assombram-nos e nunca deixam uma pessoa sozinha Aqueles que não se conhecem não podem odiar-se mas as lendas dizem que seriam capazes de se amar pois será que os que se amam deveras se conhecem? O amor faz-se em qualquer lugar e posição os colchões são demasiado duros para o desejo só existem para amortecer a queda ao sair do sonho A esperança é leve são as recordações que nos pregam ao chão as nossas ilusões pesam-nos a gravidade é uma massa de saudades Quem julga salvá-lo amando-o engana-se o danado não quer ser salvo apenas amado Noutros tempos guardava-se uma arma pelo menos em cada casa ou havia mata-ratos à mão de semear maneira de arrancar o mal da vida pela raiz Interminável partida entre a vida e a morte os prolongamentos são esticados os golos anulados já não se sabe quem ganha até se esquece com que equipa se joga 106
Nous ne pouvons nous contenter de «passer le temps» chaque fraction de temps est une opportunité qui passe et ne reviendra pas ce n’est pas le temps c’est notre vie qui passe c’est nous qui ne faisons que passer Le passé doit se décomposer pour nourrir l’avenir reconstruit puzzle ses morceaux putrides ne collent pas mais empoisonnés pourrissent le présent Le passé est mémoire reconstitution réinvention fiction voire projection sinon les faits du moins leur sens se dilue vite les fantômes ne sont pas des regrets survivants mais l’incarnation de peurs présentes On se glisse entre les draps pour s’exercer à la station couchée s’habituer au linceul on se cache sous les draps pour chercher refuge se protéger des agressions du monde mais les fantômes habitent les draps les hantent et ne vous laissent jamais seul Ceux qui ne se connaissent pas ne sauraient se haïr mais les légendes disent qu’ils pourraient s’aimer car ceux qui s’aiment se connaissent-ils vraiment? L’amour se fait en tout lieu et dans n’importe quelle position les matelas sont trop durs pour le désir ils ne sont là que pour amortir la chute au sortir du rêve L’espoir est léger ce sont nos souvenirs qui nous retiennent au sol nos illusions qui pèsent la gravité est une masse de regrets Qui croit en l’aimant le sauver se trompe: le damné ne veut pas être sauvé juste aimé Dans le temps on gardait une arme au moins dans chaque maison ou on avait de la mort-aux-rats sous la main le moyen de résoudre la vie par la racine Interminable match entre la vie et la mort les prolongations s’étirent les buts sont annulés on ne sait plus qui a l’avantage on oublie dans quel camp on joue 107
Não estar intacto não estar inteiro não oferece apenas desvantagens os golpes só atingem na razão directa da integralidade da integridade O pensamento é elástico mas será que se sabe até onde se pode esticá-lo torcê-lo enxugá-lo até ele rebentar e quebrar borracha seca No campo do mental só a mentira se cultiva em cada crânio a polícia da psique passa todas as palavras pelo detector desconfiando da pena proibindo o chumbo e trocando este último por banal ouro Quem não se chama Picasso e depende da criação para comer moldará inconscientemente a sua obra em função da procura – auto-censura e aceitabilidade A filha do ogre só lhe tinha lançado um tímido sorriso sem promessas mas desde que o irmãos enriquecidos o enjeitaram o polegarzinho lamenta ter trocado as toucas Ninguém duvida de que a rainha-mãe na Branca de Neve era uma moeda falsa que pretendia subornar os espelhos as verdadeiras rainhas ignoram a sua própria beleza As pessoas são tão absolutamente únicas que não podem entrar em ficção alguma excepto a sua num filme ou num romance não pareceriam suficientemente «realistas» pois só o comum se comunica – donde a inutilidade das fábulas Importância do matiz e do pormenor material a fenda que serpenteia através dos tijolos opõe-se à brecha recta do betão esventrado a ruína é grande criadora de formas Domesticaste os teus medos e as mágoas passadas incorporaste-as de tal modo que nenhum gesto exterior nem carícia nem promessa podem aliviar-te todas as noites dão à luz um novo pesadelo Não meças nada mas trabalha em prol da máxima economia concentra condensa nunca hás-de reduzir o suficiente no pior dos casos não hesites em riscar tudo 108
Ne pas être intact ne pas être entier n’offre pas que des désavantages: les coups ne vous atteignent qu’en proportion de votre intégralité de votre intégrité La pensée est élastique mais sait-on jusqu’où on peut l’étirer la tordre l’essorer avant qu’elle craque et pète caoutchouc sec Dans le champ du mental on ne cultive que le mentir en chaque crâne la police psychique passe tous les mots au détecteur se méfiant de la plume prohibant le plomb et le troquant pour du vulgaire or Qui n’est pas Picasso et dépend de sa création pour bouffer inconsciemment façonnera l’œuvre selon la demande – autocensure et acceptabilité La fille de l’ogre ne lui avait jamais offert qu’un timide sourire sans promesse mais depuis que ses frères enrichis l’ont rejeté le petit poucet toujours regrette l’échange des bonnets Nul ne doute que la reine-mère de Blanche-neige était une pièce fausse qui prétendait soudoyer les miroirs les vraies reines ignorent leur propre beauté Les gens sont si absolument uniques qu’ils ne peuvent entrer dans aucune fiction sinon la leur dans un film ou un roman ils ne feraient pas assez «réalistes» car on ne communique que le commun – d’où l’inutilité des fables Importance de la nuance et du détail matériel: la fente qui serpente à travers les briques s’oppose à la déchirure droite du béton éventré la ruine est grande créatrice de formes Tu as domestiqué tes peurs et souffrances passées les as incorporées si bien qu’aucun geste extérieur ni caresse ni promesse ne peuvent t’en soulager elles enfantent chaque nuit un nouveau cauchemar Ne mesure rien mais travaille à la plus grande économie concentre condense tu ne réduiras jamais assez au pire n’hésite pas à tout rayer 109
Assume a tua escolha da arte como sacerdócio só tens direito aos prazeres na medida em que alimentam a tua criação Compor um ramo de palavras não é difícil basta nomear uma orquídea para ela desabrochar no texto mas o arranjo das flores de retórica é sempre falho de naturalidade Língua e gramática foram funcionalmente inventadas por mercadores fenícios o verbo está sempre por reencarnar os seus tempos por reencontrar imperfeito do presente, passado decomposto, futuro acabado A menor palavra transporta o mundo as conotações dos seus referentes os acordos da sua sintaxe a assonância dos seus fonemas nenhuma página é virgem no máximo é ilegível Há palavras vazias todas sorridentes capazes de devorar a lua palavras prenhes penosamente prontas a parir o sol do amanhã palavras borda fora a ponto de obrarem a bosta da terra A prosa – o «realismo» – sabe a desfasagem entre o móvel e o termo «mesa» mas não tem isso em conta a poesia percebe a mesa como tabuleiro do mundo intangível suspensa entre o som e a presença entre a imagem e a memória Circunstancial o poema nasce de uma fagulha que logo se apaga mas a palavra certa só se revela ao cabo de uma interminável noite de luta corpo a corpo fruto de séculos de língua-terra lavrada e regos traçados Forram a minha cela, decoram-na sem lá morar nem a cimentar: não escrevo pelas palavras escrevo na solidão mas não escreveria se me soubesse só: escrevo para os outros que imagino ou de quem me lembro: escrevo talvez para os mortos Nem poemas nem aforismos antes provas do impotente desejo de escrever como quem vegeta rimando em branco por dever não por convicção e seguindo à socapa um regime de carne feita verbo 110
Assume ton choix de l’art comme sacerdoce tu n’as droit aux plaisirs que dans la mesure où ils nourrissent ta création Composer un bouquet de mots est aisé il suffit de nommer une orchidée pour qu’elle éclose dans le texte mais l’arrangement des fleurs de rhétorique manque toujours de naturel Langue et grammaire ont été fonctionnellement inventées par des marchands phéniciens le verbe est toujours à réincarner ses temps à retrouver imparfait du présent, passé décomposé, futur achevé Le moindre mot porte le monde les connotations de ses référents les accords de sa syntaxe l’assonance de ses phonèmes aucune page n’est vierge tout au plus illisible Il est des mots vides tout souriants capables de dévorer la lune des mots pleins et peinant prêts à accoucher du soleil de demain des mots trop-plein débordant au point de chier la crotte de terre La prose – le «réalisme» – sait l’écart entre le meuble et le mot «table» maisn’entientpas compte la poésie perçoit la table comme plateau du monde insaisissable suspendue entre le son et la présence entre l’image et la mémoire Circonstanciel le poème naît d’une étincelle sitôt éteinte mais le mot juste ne se révèle qu’au bout d’une interminable nuit d’empoigne éclos de siècles de langue-terre retournée et de sillons tracés Ils tapissent ma cellule la décorent sans l’habiter ni la cimenter: je n’écris pas pour les mots j’écris dans la solitude mais n’écrirais pas si je me savais seul: j’écris pour les autres que j’imagine ou dont je me souviens: j’écris peut-être pour les morts Ni poèmes ni aphorismes preuves plutôt d’impuissant désir d’écrire comme qui végète à rien par obligation et non par conviction poursuivrait en douce son régime «carnet» 111
Contradições fraquezas traições o facto de não estar à altura da minha ética não impedem nem a revolta nem a mágoa nem a solidariedade com as dos outros a indignidade não diminui a indignação As imitações de haikus em francês traduzem uma regressão a uma concepção da pohesia inefável oda ela feita de emoções: os ai-cu-cus Desmanchando a tela das metáforas agarrando o fio das palavras fui até ao centro do seu labirinto onde encontrei a aranha do amor As linhas emaranhadas da minha escrita estão entrançadas com os teus cabelos que me lançaste qual corda do alto da torre donde fixas o horizonte É demasiado frequente faltar um ingrediente à felicidade ora estamos juntos o sol veio ao nosso encontro e os copos estão cheios amanhã por contraste parece tão mais ameaçador Irás até ao esgotamento para te sentires útil a vida já não é assim tão fácil será que ainda por cima tem de ser justificada? A escolha da margem é escolha de vida recusa de eternidade não ficar inscrito nem na história nem na arte o amor não deixa rastos (ao Boris) Não somos os mais fortes pelo contrário somos fracos donde a nossa compaixão pelos mais fracos do que nós apenas tentamos pela pena ou pelas imagens preservar e sobreviver À alienação opusemos a aliança dos contrários a proximidade do amor generalizado e o afastamento das convenções colectivas ou individuais a incansável azáfama da formiga e a pomba levantando voo Avançamos até longe nas selvas inexploradas do amor e da solidão onde não há passagem traçamos signos – para quem vier depois não para arrepiar caminho: nunca se pode voltar atrás 112
Contradictions faiblesses trahisons le fait de n’être pas à la hauteur de mon éthique n’empêchent ni ma révolte ni ma souffrance ni ma solidarité avec celles d’autrui l’indignité ne diminue pas l’indignation Les imitations de haïkus en français traduisent une régression à une conception de la pohésie ineffable toute d’émotions: des aïes-cuculs Défaisant la toile des métaphores j’ai remonté le fil des mots jusqu’au centre de son labyrinthe où j’ai trouvé l’araignée de l’amour Les lignes enchevêtrées de mon écriture sont tressées de ta chevelure que tu m’as jetée en corde du haut de ta tour d’où tu fixes l’horizon Il manque trop souvent un ingrédient au bonheur or nous sommes ensemble le soleil est au rendez-vous et les verres sont pleins demain par contraste paraît d’autant plus menaçant Tu iras jusqu’à l’épuisement pour te sentir utile la vie n’est déjà pas si facile a-t-elle en outre besoin d’être justifiée? Le choix de la marge est choix de la vie refus d’éternité ne rester inscrit ni dans l’histoire ni dans l’art l’amour ne laisse pas de traces (à Boris) Nous ne sommes pas les plus forts au contraire nous sommes faibles d’où notre compassion pour de plus faibles que nous nous tâchons seulement par la plume ou les images de préserver et survivre À l’aliénation nous avons opposé l’alliance des contraires la proximité de l’amour généralisé et l’éloignement des conventions collectives ou individuelles l’infatigable affairement de la fourmi et l’envol de la colombe Nous avançons loin dans les jungles inexplorées de l’amour et de la solitude où il n’y a pas de passage nous traçons des signes – pour qui viendra après pas pour rebrousser chemin: on ne peut jamais revenir sur ses pas 113
Cada um terá sido para o outro a divindade discreta que distribui o melhor e o pior tu companheira plural que por toda a parte me acompanhas nós companheiros múltiplos que sempre te acompanhamos Desejo acabar os meus dias descabidos como descamei as minhas noites descabeladas: à tua cabeceira A escolha e a ordem são minhas e se as palavras são de toda a gente o eco dos versos só a ti pertence
114
Chacun aura été pour l’autre la divinité discrète qui distribue le meilleur et le pire toi compagne plurielle qui partout m’accompagnes nous compagnons multiples qui toujours t’accompagnons Je désire achever mes jours écervelés comme j’ai enchevêtré mes nuits échevelées: à ton chevet Le choix et l’ordre m’appartiennent si les mots sont à tout le monde l’écho des vers n’est qu’à toi
octobre-novembre 2011 115
table des matières
chats à fouetter autres chats à fouetter de quoi fouetter un chat chat à neuf queues appeler un chat
3 27 49 71 93