O QUE FAZ FALTA Falando curto e grosso: 48 é um filme que fazia falta. Fazia falta num país onde, como indignada e amargamente uma das resistentes entrevistadas por Susana Sousa Dias sublinha, os agentes da PIDE-DGS tiveram direito à protecção zelosa de um aparelho de justiça apostado em branquear o cadastro dos criminosos, nem que isso implicasse denegrir as pessoas das vítimas vivas e injuriar a memória dos mártires mortos. Pois claro, 48 fazia falta num país em que os contornos de um passado recente, marcado pela prática quotidiana da violência e pela insidiosa instilação do medo, tendem a esbater-se, a ponto de ter sido possível um concurso – para o qual grandes meios mediáticos foram mobilizados – atribuir ao criminoso-mor o estatuto de «melhor português de sempre». Contudo, a falta que este 48 surgido por «entre as brumas da memória» nos fazia ecoa tanto mais poderosamente quanto, de facto, é «falta» que sentimos, uma vez volvida hora e meia de confrontação com fragmentos de testemunhos, com farrapos de vozes testemunhando, com o cilício dos muitos silêncios, com o difícil reconhecimento dos rostos congelados pelos próprios «protagonistas», de várias e perversas maneiras desapossados das suas caras, corpos e crenças. Foi talvez preciso hiper-esteticizar o cortejo de imagens para diferir do contexto de desumanidade em que aquelas fotografias foram tiradas, obviamente contra a vontade dos retratados, mas ainda assim convocando todas as fileiras da vontade de resistir, como a dada altura confidencia um dos entrevistados. Foi talvez necessário extrair do caos emocional, mental e moral das memórias de cada um a quintessência das palavras que se reportam ao capítulo da humilhação e da ofensa: tortura física, maus tratos psicológicos, manipulação afectiva, aniquilamento moral, etc. Foi porventura útil enfatizar a heroicidade de uma galeria de cidadãos que preferiram suportar, até ao limiar da alucinação e da loucura, até às portas que separam da morte e a fazem desejar, os piores horrores e terrores em vez de ceder às ameaças e aos actos dos torcionários. Foi decerto uma opção estilística plenamente consciente das suas consequências entrecortar os pedaços de depoimento com silêncios densos de ruído e gritantes de vazio, fazer entrar as vozes em solene derrapagem ou na rasura da incerteza, a fim de que o fora de campo se tornasse mais avassaladoramente habitado de pressentimentos. Porém, tudo isso – tudo isso acrescido do que se imagina ser a penosa abertura das comportas perante os pequeninos clichés de má memória – apenas contribui para que a tal falta se torne sensorialmente espessa e eticamente dolorosa. Porque – e a ordem das razões aponta para o pau de dois bicos deste exercício no fio da navalha – as pessoas cujo testemunho foi sabiamente retalhado, reduzido ao paroxismo de um dizer que não pode ser ousado por comparação à tortura da lembrança e à lembrança da tortura, todas essas pessoas que afirmam terem resistido possuíam motivos de grande envergadura para o fazerem. E se, desafiando os limites do humano, resistiram lá dentro é porque cá fora, desafiando as condições de possibilidade impostas pelo regime, também se atreveram, activamente, a resistir. Da expressão desses motivos que mantiveram vivos os recursos de resistência de um punhado de vítimas da opressão salazarista e pidesca, o espectador não pode deixar de sentir falta. Em última análise, o silenciamento dos motivos que é parte constitutiva do dispositivo de 48 pode soar como uma, mais uma, operação de censura, infligida a pretexto de valores estéticos que mais alto se alevantaram. Frente à dilaceração das palavras que 48 encena e encerra, por entre negros e negros, qualquer espectador se sente abalado, combalido, comovido, imensamente desconfortável com a perspectiva de que os gestos e actos relatados aconteceram mesmo, num passado não longínquo, aos donos daquelas vozes. O carácter insuportável e intolerável do que ali se conta configura uma verdade transpessoal. Absoluta, digamos. No entanto, a fraquíssima sinalização do contexto historicopolítico e a ausência quase total de referência aos motivos que moviam os resistentes coloca o espectador na estranhíssima situação de pactuar com um dispositivo que prefere não correr o risco da dispersão dos afectos e da deflagração das ideias. Mais do que abrir o leque daqueles sofrimentos que ninguém suporta em vão, Susana Sousa Dias fecha-os na caixa de ressonância das confissões. E quem se «vê» na situação de «ver» o que apenas se ouve, algures por detrás fotografias que são fruto de roubo de imagem e violação de pessoa, só pode sentir-se duplamente excluído de um
entendimento mínimo das dores e pavores em questão: porque não pode, evidentemente, ter deles vivência, e porque as pessoas que os viveram não têm a ocasião de exprimir ali quais os modos de resistência mental que lhes permitiram, contra tudo o que é expectável, manter a sua dignidade, através da árdua prática do silêncio atirado à cara do carrasco. Ora, esse entendimento mínimo deveria ser-nos pão para a boca. Em tempos de ditadura, era eu uma catraia, havia lá por casa um poster – os posters eram coisa bastante em voga nas famílias anti-regime e faziam as vezes de cartazes contra a repressão dentro do espaço privado, já que na rua não podia ser... – com um poema do LIVRO SEXTO da Sophia de Mello Breyner. Os três últimos versos desse texto causavam-me grande inquietação, embora na altura eu não conseguisse compreender porquê. PRANTO PELO DIA DE HOJE Nunca choraremos bastante quando vemos O gesto criador ser impedido Nunca choraremos bastante quando vemos Que quem ousa lutar é destruído Por troças por insídias por venenos E por outras maneiras que sabemos Tão sábias tão subtis e tão peritas Que nem podem sequer ser bem descritas Se fizesse algum sentido resumir a primeira impressão que colhi do primeiro visionamento de 48, ela giraria em volta de palavras para falar de uma inquietação, essa inquietação, a inquietação de saber que as maneiras sábias, subtis e peritas da opressão – na verdade, grosseiras, brutais e perversas – não podem, ao contrário do que parece pensar Susana Sousa Dias, ser bem descritas. Posto isto, e para que não se depreenda de todos os meus senãos uma rejeição liminar e injusta da presente obra de Susana Sousa Dias, é-me imperativo acrescentar duas notas finais altamente positivas. A primeira tem a ver com o lugar concedido às vozes femininas em 48, um lugar preponderante que não somente lança alguma luz sobre a forma como os carrascos defensores da (sagrada) família utilizavam os laços de afecto familiar no âmbito da sua actividade criminosa, como também contribui para esclarecer que a resistência antifascista não encaixa no molde da virilidade, não coincide com o boneco da masculinidade, barba rija e companhia. A segunda prende-se com a preciosa inclusão de depoimentos que nos revelam a que ponto a actividade da PIDE-DGS nas chamadas «províncias ultramarinas» era redobradamente violenta e assassina, sendo que pouco tem sido dado a conhecer acerca desta faceta da intervenção da polícia política do salazarismo-marcelismo. Embora eu não capte o propósito das imagens concretas utilizadas para colmatar a ausência de fotografias nesse trecho do filme, há que reconhecer a força inaudita dos antepenúltimo e penúltimo depoimentos. Uma força, também no sentido estrito, que recentra pertinentemente a questão dos interesses subjacentes a um regime apodrecido cujo derrube contudo tardou. O «desfecho» de 48 é uma oportuna chamada de atenção para uma potencial prossecução dos trabalhos de memória relativos à história negra da PIDE-DGS, tão imprescindível e urgente quanto os que directamente podem testemunhar o farão à custa da dolorosa convocação de lembranças impossíveis de apagar nas suas cabeças. Sob o ângulo de uma retórica assente no pathos, esta é uma escolha de abrupta quebra de um contínuo crescendo. Todavia, Susana Sousa Dias faz aí, creio eu, uma opção ajuizada. 48 é o filme que fazia falta porque fazia falta a falta que o fissura. Regina Guimarães 10 de Junho de 2010