Ísis triste

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ÍSIS TRISTE REGINA GUIMARÃES e SAGUENAIL 1992 O cenário representa estilizadamente uma casa projectada num plano linear horizontal. O efeito pretendido situa-se entre um esquema de arquitecto e um labirinto em corte. Os móveis não estão colocados de maneira funcional, aparecem no centro dos aposentos; a casa não evocará um espaço habitado, mas antes a 'noutra duma loja de mobiliário. No caso do palco não ter dimensões suficientes (18 metros de boca de cena), a casa poderá ter dois andares a imagem do labirinto desaparecerá e será substituída pela referência à casa de bonecas. Os aposentos serão, por ordem da esquerda para a direita, os seguintes: 1. Um quarto grande com cama de casal. 2. Uma casa de banho com sanita, lavatório e chuveiro. 3. Um vestíbulo com um telefone de parede (no caso do cenário ter primeiro andar, acrescentar-seão as escadas que levam ao piso superior). 4. Uma sala de jantar. 5. Uma cozinha com banca, fogão e frigorífico. 6. Um quarto pequeno com uma cama e uma cómoda ou um guarda-vestidos.

Os aposentos serão separados por paredes perpendiculares à boca de cena. As personagens passam duma sala para a outra por um corredor imaginário situado à frente do palco, excepto para entrarem na divisão (2) (casa de banho) à qual só têm acesso através duma porta que a separa da sala (3) (vestíbulo). O aposento (3) e o aposento (5) possuem ambos uma porta ao fundo pela qual se farão as entradas e as saídas, respectivamente porta principal e porta de serviço. Se o cenário tiver dois pisos, as salas (1), (2) e (3) ficarão (da esquerda para a direita) no rés-do-chão, e as salas (4), (5) e (6) no andar de cima. Para compensar a fria geometria do espaço, a luz sugere intimidade e varia conforme o suposto proprietário em cena. Na mudança de cena, a luz da sala onde se desenrolou a acção anterior deverá extinguir-se lentamente, enquanto se acende a do aposento onde decorrerá a nova sequência, de forma a que o palco nunca fique às escuras. ACTO 1 CENA 1 Sala (5). Luz do dia, típica de fim de tarde.

Uma cozinha moderna, excessivamente limpa e arrumada. Amélia, 32 anos, indumentária demasiado severa para a sua estatura miúda e para o seu rosto ainda menineiro, entra como um furacão abraçada a um ramo de flores artificiais e sofisticadas. Olha à sua volta: reina uma ordem inesperada e intolerável. Pousa o ramo no chão, soltando um grito.


AMÉLIA (descontroladamente autoritária) - Ísis! Ísis! (Ergue-se devagar) Ísis! (Pausa.) Ai, é o fim! CENA 2 Salas (3) + (2). Luz idêntica à da cena anterior na sala (3). A sala (2) está às escuras.

Carlos, 35 anos, pasta de executivo, gabardina e fato de bom corte usado com negligência, entra precipitadamente no vestíbulo e dirige-se para a casa de banho, semeando pelo caminho todas as peças de roupa que traz vestidas. Acende a luz, põe o chuveiro a correr, penetra nu na banheira, fecha a cortina de plástico. De repente, põe a cabeça de fora e desata a chamar aos berros: CARLOS (estupefacto e desamparado) - Ísis! Ísis! Ísis! O que é que se passa? CENA 3 Sala (6). Luz artificial.

Bernardo, 17 anos, vestido de negro dos pés à cabeça, abre a porta do quarto (à esquerda) e estaca embasbacado ao ver que a cama não foi feita. BERNARDO (despropositadamente irado) - Ísis! Puta que pariu! Tenso, curva-se para apanhar uma das muitas peças de roupa espalhadas pelo chão. Senta-se na beira da cama de solteiro, leva a peça de roupa ao nariz e aspira ruidosamente o cheiro a suor. BERNARDO (bruscamente divertido) - Ai, quando a cabra da Beatriz vir este estendal! (Terno e irónico.) Ísis! Ergue-se, dá três saltos em cima da cama, desata a rir a bandeiras despregadas. Possesso, arranca um lençol e, agitando-o como uma enorme bandeira, vai derrubando os objectos pousados na cómoda. Abre febrilmente uma gaveta e despeja o conteúdo. BERNARDO (entre duas gargalhadas) - Ísis! CENA 4 Salas (2) + (1).

A iluminação é idêntica à da cena 2. A sala (1) está às escuras no início desta cena. Carlos sai do chuveiro a tiritar, encharcado e nu. CARLOS (indignado) - O Ísis, o que vem a ser isto? Então não há toalhas? Arrepiado, aproxima-se do armário da casa de banho em bicos de pés, abre várias portas; esvazia metade do móvel (dentífrico, frascos, lâminas de barbear...) até encontrar uma minúscula toalha com a qual se enxuga desconsoladamente. CARLOS - Ó Ísis! Estás a ouvir? Isto nem parece teu! Onde é que puseste o meu fato azul?


Encaminha-se para o quarto, deixando atrás de si um rasto de indescritível desordem, e acende a luz ao entrar. CARLOS (monologando como se Ísis estivesse presente, agastado com a manifesta ausência da interlocutora) - Então eu agora vou nu? Ísis! Lis! Traz-me a roupa que eu estou a morrer de frio! Ísis! Tenho a certeza que o jantar da Amélia me vai cair mal! (Senta-se no chão e discorre num tom de absurda conciliação.) Não era preciso chegarmos a este ponto. Se querias um homem, falavas comigo. Julguei que tivesses mais confiança em mim do que nos outros... de solidão percebo eu. E de boas companhias também. Olha que viver só é o menor dos males porque as companhias passam a saber melhor. Por exemplo, hoje, quebro o voto de solidão e vou enfardar casa da Amélia. Mesmo o pateta do Álvaro parece um companheiro aceitável quando oferece um bom jantar. (Levanta-se nu, indefeso.) Não tinhas direito de romper assim, de me trocar por um desconhecido. Entre nós havia uma espécie de pacto... CENA 5 Sala (5).

A iluminação é idêntica à cena 1, mas a luz baixou. Ao entrar, Álvaro acende uma luz artificial, fria. Álvaro, 34 anos, aparência de quadro superior temperada pelo toque indolente do pretenso amador de arte, entra na cozinha (péla porta do fundo) com uma revista de luxo debaixo do braço e dá de caras com Amélia que chora convulsivamente sentada à mesa. ÁLVARO (distraído) - Então, querida, não conseguiste fechar o negócio com o tal cliente? (Apercebendo-se de que Amélia está mesmo transtornada.) O que é que tens? O jantar ainda não está pronto? Onde está a Ísis? AMÉLIA (chorosa e enraivecida) - A Ísis sumiu. Já te esqueceste? Ou não tiveste tempo para pensar nisso? ÁLVARO (displicente) - Ah, pois era... Sempre vai casar? AMÉLIA (agastada) - Claro. Casar é uma boa desculpa. Incontornável como tu costumas dizer. E o jantar desta noite também. Só que eu não arranjei uma boa desculpa. ÁLVARO (com uma fleuma estudada) - Ó querida, mas isso até é divertido. Havemos de desencantar alguma coisa para fazer o jantar. Álvaro abre a porta do frigorífico e começa a pousar frascos em cima da mesa. ÁLVARO - Que dia é hoje? Podemos comemorar... AMÉLIA (mais serena, ironizando) - Podemos comemorar o noivado da empregada... ÁLVARO (examinando um rótulo) - Por exemplo... Espargos, é bom! AMÉLIA (irritada) - Não vais dar dieta ao Carlos. E eu não estou disposta a passar por urna vergonha com a sonsa da Beatriz que tem a mania dos pratos com imaginação. Entretanto, Álvaro começou a procurar comida na despensa e encheu a mesa de embalagens de papel, latas de conserva, garrafas, etc. ÁLVARO (mostrando os produtos a Amélia sem fazer menção de lhes tocar) - Ela nunca mais arranja patrões como nós. Máquinas para tudo, despensa cheia e ninguém para desarrumar. AMÉLIA - E a minha roupa que ela herdou? Se calhar vendeu tudo... (Reparando no monte de mercearia.) Ó Álvaro, tu achas que eu tinha coragem para servir comida de conserva? ÁLVARO (em tom de conselho) - Faz-se um arroz... (Jovial.) Já pensaste na Ísis vestida de branco, à porta da capela, com os miúdos da aldeia a atirarem-lhe arroz? AMÉLIA (com desprezo) - Arroz não, que ela é muito poupada.


ÁLVARO - Tem-se andado a poupar à nossa custa. É típico dos estratos sociais inferiores: poupam para casar e depois gastam-se no casamento... (Voltando à vaca fria.) E aquela receita de gratinado que ela costuma fazer à 3n feira? AMÉLIA - Olha, Álvaro, em vez de dares sugestões, não achas que era melhor fazeres alguma coisa por ti abaixo? Por enquanto, só me encheste os ouvidos e conseguiste pôr tudo em pantanas... ÁLVARO (despeitado) - As pessoas com ideias são sempre mal vistas... No fundo, a Ísis... AMÉLIA - No fundo, a Ísis tinha mais sorte do que eu porque ninguém dava conselhos. Mulher-adias é uma profissão liberal. Margem de manobra absoluta e riscos nulos. ÁLVARO - Quem te ouvisse, havia de julgar que tu estavas disposta a trocar de papel com a ripa que lava a tua roupa suja. CENA 6 Sala (4).

Luz artificial (iluminação escassa). Daniela, 36 anos gastos a conservarem-se, meias de vidro sem sapatos, saia travada, combinação do nylon, senta-se à mesa da sala de jantar, pousa um espelho redondo em cima do tampo, cruza as pernas e começa a depilar as sobrancelhas. Ao cabo de alguns instantes, entra Delfim, 40 anos, saia e casaco pardo, blusa de folhos, sapato raso. Sente-se imediatamente que a austeridade da indumentária é uma forma de disfarce corno se a personagem andasse sempre fardada. Traz um maço de cartas na mão. Empertigada, compõe alguns bibelôs, ignorando ostensivamente a presença da irmã, mas acaba por romper o silêncio. DELFINA (sarcástica) - Ah, já cá estás? Então hoje o patrão não precisa de horas extraordinárias? DANIELA (com uma ponta de langor na voz) - E se guardasses a saliva para os envelopes? (Lembrando-se.) A Ísis não veio, deve estar doente. Não sabes onde é que ela terá arrumado a minha blusa verde? Entretanto, Denta sentou-se na outra ponta da mesa e começou a examinar o correio: facturas c publicidade exclusivamente. DELFINA - A Ísis, princesa, não é como tu. Não quer chegar atrasada ao casamento. Não é como tu. Não anda em lua-de-mel sem ter aliança no dedo. DANIELA - Lua-de-mel? Quando o noivo sentir o cheiro a cebola e a lixívia, muda de ideias. DELFINA - Olha a dor de cotovelo. Tu tomas banho em perfume e é o que se vê. (Meditativa.) Claro que não vai dar certo. A Ísis tinha uma vida endireitada, sem preocupações. Agora atura mais um patrão e fora das horas de serviço. DANIELA - Aturam-se um ao outro, deixa lá. DELFINA - Esta noite até dá jeito. Não há jantar para fazer, poupa-se no gás e na mercearia. Ficamos por conta da Amélia. DANIELA - Ó Delfina, se fosses de lua-de-mel, poupavas no mel porque a lua é de graça? (E prossegue com um ar sonhador sem deixar a irmã responder.) Ísis não chegou a apresentar-nos o... DELFINA - É mais discreta do que tu, lá isso... Se estava grávida, ninguém deu por ela, eu... DANIELA - Grávida? Só se fosse do espírito santo ou dos espíritos maus corno o teu. Além disso, não me parece que sejas a pessoa ideal para avaliar uma coisa dessas. DELFINA - A Ísis era uma mulher decente, pelo menos até lhe terem metido na cabeça esta fantasia do casamento. É fácil uma mulher decente entender outra mulher decente, não achas? DANIELA - Acho que as mulheres decentes mordem pela calada. A Ísis tinha segredos e só agora é que se descobriu. Daniela pousa o espelho e a pinça, pega num frasquinho de verniz, aquece-o friccionando-o entre as mãos e começa a pintar as unhas do lado esquerdo.


DELFINA - Tu confundes ter segredos e fazer caixinha. A Ísis fez disto um grande mistério, porque já não está em idade de apregoar uma notícia assim. Mesmo na insensatez foi sensata. DANIELA - A Ísis não tem idade. Entra e sai e, à volta dela, são os outros que envelhecem. Espanta-me que alguém tenha reparado nela. Há certas coisas de que a gente se esquece sempre nas listas de compras. E só nos lembramos de que existem quando nos fazem falta. (Vira costas à irmã e prepara-se para pintar as unhas do lado direito.) Não sabes onde é que ela costuma arrumar as blusas para passar a ferro? CENA 7 Sala (6).

Iluminação idêntica à da cena 3. Beatriz penetra no quarto e encontra o filho deitado na cama, com os pés ao alto na cabeceira. Bernardo brim, com um soutien, fitando o tecto, perdido num devaneio. Beatriz abafa um grito de pavor. BERNARDO (sem se virar para a mãe) - A Ísis, onde é que se meteu? O que é que lhe fizeste? BEATRIZ - A Ísis?! Olha, meu menino, primeiro, eu não fiz nada a essa mulher. Segundo, posso muito bem passar sem ela. Toda a minha vida, tenho passado sem a ajuda dos outros. BERNARDO (imitando-a) - Só falta dizeres que o teu filho é a prova viva disso. BEATRIZ - Bernardo, não tens o direito de brincar comigo. Eu não sou a Ísis, não sou tua criada. E já não tenho idade para brincadeiras. (Começa a apanhara roupa espalhada pelo chão.) BERNARDO (exaltado) - Normalmente queixas-te do contrário. Costumas achar que eu devia brincar mais... Aliás, tu julgas que és a única pessoa capaz de levar as coisas a sério. Só a Ísis é que estragava um bocado o teu jogo. Foi por isso que a despediste? BEATRIZ - Já te disse que não despedi ninguém. (Estaca.) Espera aí... que dia é hoje? BERNARDO (com uma ponta de saudade amorosa na voz) - É um dia sem a Ísis. BEATRIZ - Cala-te. Tu pões-me fora de mim. (Recomeça a apanhar peças de roupa, dobrando-as urna a urna, cuidadosamente.) Vão ser muitos dias sem a Ísis. Ela vai-se casar. (Suspira profundamente.) Contigo, perco a noção de tudo. BERNARDO - Era o que eu te dizia: tanto chagaste a mulher que ela trocou-te por um homem... CENA 8 Sala (1).

Iluminação idêntica à da cena 1. Carlos nu debaixo duma toga improvisada com a colcha da cama, abre o guarda-fatos e contempla durante alguns instantes o seu reflexo no espelho interior. Puxa por várias gravatas, examina-as e deita-as ao chão uma por uma. Nervoso, saca da primeira camisa que lhe vem à mão e apanha uma das gravatas rejeitadas: não condiz. Procura segunda camisa, terceira. A roupa vai-se amontoando à sua volta. Por fim, enfia umas cuecas, escova um par de calças brancas e observa-se de novo ao espelho com um ar infeliz. CARLOS - Porra! Isto são calças de Verão! Está tudo tão bem arrumado que não se consegue encontrar nada. (Bruscamente, vira-se.) Pronto, vou de camisola de gola alta. Ó Ísis, espero que não tenhas emprestado o meu fato azul ao teu noivo. (De gatas, procura um par de sapatos debaixo da cama.) E por que é que te vais casar? (Encontra um sapato.) A gente dava-se tão bem! (Desiste de procurar o par.) Um marido não vale mais do que um bom patrão. Vale menos, porque não paga na


proporção do que exige. (Começa a pentear com os dedos as madeixas de cabelo ainda molhado.) Com as lições que tiveste cá em casa, como é que te deixaste seduzir, Ísis? Uma mulher seduzida é uma mulher abandonada cm potência. Não há casamento que lhe valha. O contrato não prevê perdas e danos. Fala do melhor para fazer engolir o pior (Divertido com a associação de ideias.) O ÍS1S, tu vais engolir um sapo porque julgaste que era um príncipe? (Olha meditativamente para a barriga.) Nunca mais vou chegar àquele jantar. CENA 9 Sala (5).

Iluminação idêntica à cena 5. A mesa e a banca da cozinha estão agora completamente atravancadas com toda a espécie de géneros alimentares. Álvaro e Amélia, paralisados como duas crianças a quem o pai Natal tivesse dado prendas a mais, não parecem dispostos a confeccionar comida com o que tiram do frigorífico e da despensa. AMÉLIA - No outro dia, ensinaram-me uma receita muito simples à base de restos de carnes frias. ÁLVARO - Ai, comida fria é um desconsolo! (Reconsiderando.) Mas há quem acho muito chique. AMÉLIA - Desiste. Não sei onde é que a íris escondeu a máquina de picar carne. (Percorrida por um calafrio.) Álvaro, a culpa é tua. Tu é que tiveste a ideia deste jantar. Com a tua mania de fazer triângulos, ou quadrados ou lá o que foi... Eu vou-me arranjar. Pega num livro de culinária e procura nos soufflés. Ovos não faltam... ÁLVARO - A Delfina tem maus ligados. (Espirituoso.) Não se oferecem ovos a uma solteirona. (Tem urna ideia.) Ó Amélia, lembras-te daqueles canapés em arco-íris que serviram na inauguração da tua loja? As bandejas eram autênticas obras de arte naif... O Carlos ainda hoje fala das tuas pinturas comestíveis... AMÉLIA - Foram encomendadas a uma velhota que a Ísis conhecia. Paguei-lhe com uma faiança do século XVIII. ÁLVARO - Mas então, não podes telefonar-lhe? AMÉLIA - Estás doido? Já viste que horas são? Nesta altura, está a velhota a fritar croquetes para a boda da Ísis. CENA 10 Sala (2).

Se possível, urna iluminação diferente da luz das cenas 2 e 4 (mais coada, atmosfera de aquário). Denta e Daniela, em trajos menores, estão na casa de banho a arranjar-se para o jantar. DELFINA - Não imagino a Amélia de avental à volta dos tachos. DANIELA - É bem feita. Ela queria roubar-nos a Íris. Prometeu-lhe mundos e fundos. Mas a Íris respondia sempre que gostava de mudar de casa. Para variar. DELFINA - Tanto variou que tropeçou no primeiro marido. Onde é que se lerão encontrado? A que propósito? DANIELA - Eu, à Ísis, só lhe conheço um prazer na vida: os tais passeios que ela dava à beira-rio. DELFINA - Nunca percebi muito bem o gozo dessas caminhadas. Sozinha, numa zona onde só param vagabundos e bêbedos... Aqueles passos que a gente mal ouvia, parecia que os pés dela não tocavam o chão, que andavam em cima de brasas. Aquela bondade maldosa. Aquele olhar vazio...


DANIELA (penteando-se) - Ó mana, o teu tem código secreto como o cofre dum banco. (Olhando Delfina dos pés à cabeça.) Não vistas essa saia e casaco. Vamos a um jantar, não vamos a um enterro. Daniela agarra a manga da blusa que Delfina acabou de enfiar. Delfina vira-se bruscamente. Daniela fica com a manga da blusa rasgada na mão. DANIELA - E isto? Parece uma camisa de freira. A violência do jogo não transparece nos gestos mas está patente no resultado: a manga rasgada. A última réplica de Daniela surge corno uma tentativa de desanuviar a tensão de longe mais forte cio que as tenções. CENA 11 Sala (5).

Se possível, uma iluminação diferente da luz das cenas 5 e 9 (muito crua; por exemplo apliques de parede sem abat-jour). Carlos entra na cozinha e olha de relance para o amontoado de mercearia em cima da banca e da mesa. Encolhe os ombros, vira costas e apaga a luz. CARLOS (para si próprio, no escuro) - Vou ter de arranjar alguém para substituir a Ísis. Felizmente, hoje janto em casa da Amélia. CENA 12 Sala (4).

Se possível, uma iluminação diferente da luz da cena 6 (mais luz; lustre?) Beatriz e Bernardo, de pé, conversam junto à mesa, cada qual numa extremidade, dando mostrar' duma animosidade crescente. No decorrer da cena, vão mudando de lugares, conservando contudo a distância relativa que os separa e executando várias voltas em torno do tampo, «perseguindo-se» e «esquivando-se» corno num jogo do gato e do rato. BEATRIZ (pedagógica) - Pois é, Bernardo. Acabou-se a boa vida. Com a Ísis a faltar-nos, vais ter que dar urna ajuda valente cá em casa... BERNARDO - Pois é, Beatriz. Acabou-se a boa vida. Com a Ísis a faltar-nos, vais ter que desistir da valorização profissional... BEATRIZ - Não desconverses. (Dura.) Foste criado com duas mulheres que tratavam de tudo: cama, comida, roupa lavada. BERNARDO (insolente) - Adoro camas desfeitas, prefiro comer fora, detesto roupa a cheirar a alfazema. Estou como quero. BEATRIZ - Não discuto os teus gostos, exijo que mudes de atitude. Até vai ser bom este desaparecimento da Ísis. BERNARDO (irado) - Isso é o que tu pensas. Não estou disposto a servir de bode expiatório às depressões da senhora professora. Vai treinar a autoridade para o raio que te parta! Tens a mania que mandas em toda a gente, que a vida é uma sala de aula. Estás farta de saber que eu nasci para ser mau aluno, para ficar ovelha ranhosa. BEATRIZ - Não te gabes, Bernardo. Só é calaceiro quem pode. A minha paciência tinha limites. Esgotou-se o crédito... BERNARDO - E não é que a mãe galinha quer que o pinto esgravate para ser frango!


BEATRIZ - Esgotaste o crédito. BERNARDO (fora de si) - O crédito, o tanas! Aproveito para te comunicar... (Atrapalha-se) que estou cheio de ideias, que vou passar pouco tempo em casa... que vais ter imensos serões para corrigir...exercícios. BEATRIZ - Não sais desta casa sem arrumares a cozinha. BERNARDO - Já topei... queres ir sozinha ao jantar da Amélia. Tens... como é que se diz?... vergonha do teu filho. Tens, ou fazes de conta que tens, necessidade de cortar o cordão umbilical. Serve de trela, serve de forca, serve para puxar e tocar a campainha. Falo bem, não falo? Pena às vezes gastar o meu latim. Tu tens tomates, Beatriz, mas eu tenho badalo. Bernardo desata a rir à gargalhada, curvado sobre a mesa. BEATRIZ - Não sais desta casa sem teres lavado a tua roupa interior. BERNARDO (forçando-se a rir) - Desde quando é que as pessoas precisam da tua autorização para se baldarem, para desatinarem? Olha, a Ísis, o teu braço direito, trocou-te as voltas. Ficaste maneta. BEATRIZ - Não sais desta casa sem teres feito a cama. BERNARDO (entre risadas) - A tua? Faço-ta já. Uma cama grande como a Ísis vai ter na noite de núpcias. Às tantas, a primeira cama que ela não teve de fazer. Enfia-se lá dentro, leve como mão na luva, com o quarto às escuras. O marido pede para acender a luz... não pede, fica na sombra. Ele é o homem sombra, a criatura mistério. BEATRIZ - Mistério só na tua cabeça. As mulheres como a Ísis Casam-se porque é hábito dizer sim. Ao hábito está ela habituada. BERNARDO - A Ísis é uma excepção porque não tenta ser excepcional como tu. Eu conheço-a bem, tínhamos uma relação... não te conto porque tu não mereces. Tenho a certeza de que foi vítima duma chantagem. Nos últimos dias, andava mais fria comigo Misterioso.) Uma cama dupla, uma vida dupla... BEATRIZ - Pois é, passas os dias na cama a cismar com a morte da bezerra e depois vês fantasmas por toda a parte. BERNARDO - Mas não ando distraído... BEATRIZ - Andas na vida por ver andar os outros. BERNARDO - E até ando para ver andar os outros, Beatriz. E não tenho vagar para lhes foder os cornos. (Exaltado.) O que é que lhe fizeste? Qual foi a ameaça? Bernardo estaca fitando Beatriz com um olhar feroz, quase cómico. CENA 13 Sala (1).

Iluminação diferente da luz das cenas 4 e 8 (intimidade, candeeiros de mesinha de cabeceira). Amélia, à beira duma segunda crise de choro, está prostrada em cima da cama desfeita. Álvaro, pouco afectado pelo estado da mulher, mas visivelmente incomodado com a situação, vai lançando sugestões num tom pedante, desadequado. AMÉLIA - Corno é que aquela mulher me deixou descalça numa ocasião destas? Depois de tudo o que eu fiz por ela... vesti-a dos pés à cabeça como se fosse minha irmã... ÁLVARO - Amélia, controla-te. Controla esses nervos. (Pausa.) Pronto, está-se a fazer tarde, vamos telefonar, arranjar uma desculpa... AMELIA (violenta) - Arranjar uma desculpa? Tu não tens a mais pequena noção do que é viver em sociedade, parece que nasceste lá na aldeia corno a Ísis. Vocês não entendem que há normas entre as pessoas civilizadas. ÁLVARO (intoleravelmente sereno) - Entendo que te estás a portar como uma provinciana, uma ingénua. Telefonamos... Não! Deixamos que eles cheguem e levamos toda a gente ao restaurante. Dizemos que era uma surpresa...


AMÉLIA (com a cabeça enterrada na almofada) - Ingénuo és tu! Ninguém engole essa da surpresa. Olha com a Beatriz... ou com a Delfina. Duas cabras desmamadas. (Levanta a cabeça; com lágrimas prestes a saltar) Ó Ísis, eu até tinha falado em emprestar uns arranjos bonitos para a mesa da boda... ÁLVARO (prosseguindo o seu raciocínio) - Toda essa gente adora ir ao restaurante... quanto mais não seja porque raramente são convidados ou não têm dinheiro para luxos assim. AMÉLIA - Álvaro, a esta hora, neste bairro não há sítio onde se coma. Não estás a pensar levá-los a uma espelunca? ÁLVARO - Podemos ir de carro até à beira-rio. AMÉLIA - Isso é passeio de sopeira com magala. (Vira costas ao marido e fica encolhida como um feto.) Ó Ísis, o que é que tu pretendes provar com este casamento precipitado? É chantagem? ÁLVARO (pedante) - Amélia, tens imenso «charme» quando choras, tens montes de «chien» quando te zangas, mas agora não há tempo para amuos. Cinco minutos para tomares uma decisão. É menos do que a Ísis tem para dizer que sim. AMÉLIA (cínica) - Parece incrível. Até para decidir és preguiçoso. ÁLVARO - Pedes à Ísis que atire o ramo para o teu lado e mudas de marido num prazo de seis meses. AMÉLIA - Não desconverses. (Dura.) Vives à custa de duas mulheres que tratam de tudo: uma na cama, outra na cozinha. Uma dentro de casa para que a casa brilhe, outra fora de casa para que tu brilhes. ÁLVARO - Ó filha, não te apoquentes. Telefonamos à Daniela, que tem um certo sentimento do humor, e dizemos que é um jogo. AMÉLIA (perdendo as estribeiras) - Para jogo chega-me a jogada suja da Ísis. (Pausa) Além disso, o Carlos está muito mais informado sobre restaurantes do que a puta da Daniela. Mas os homens adoram pedir-lhe conselhos e ela adora não ter conselhos para lhes dar. Eles sentem-se mais viris e ela caga de alto e de repuxo. ÁLVARO - Está bem, ganhaste. Não se pode competir com a ordinarice das mulheres que acham que têm muito chá. Ganhaste. Adia-se o jantar. Não vejo outra solução contra a tua má vontade. AMÉLIA - Ai é?! (Furiosa) Então trata t.0 do assunto. Daí lavo as minhas mãos, Mas vais ter que arranjar um pretexto in-con-tor-ná-vel. CENA 14 Sala (6).

Iluminação diferente da luz das cenas 3 e 7, mais berrante e kitsch (luz vermelha?). No quarto de Daniela, as duas irmãs continuam a preparar-se para sair. Delfina parece aterrorizada com a desarrumação e, ao mesmo tempo, excitada por ter penetrado num espaço onde raramente é admitida. Daniela tenta reparar o acidente ocorrido na casa de banho. O tom geral da cena é vagamente melancólico. DANIELA (afável) - Empresto-te o meu vestido azul às bolas. É discreto como tu gostas. A única excentricidade é a gola. (Brincalhona.) Não te proponho a toga transparente porque não eras capaz. DELFINA - Se as pessoas me vissem vestida com isto, não me reconheciam... DANIELA - Quando vires a Ísis com urna coroa de flores de laranjeira, também não a vais reconhecer. E nessa altura, o que pensares, disfarças. Tu até tens lata para disfarçar... poupas chatices. Portanto, se ao espelho não te reconheceres, é meio caminho andado. DELFINA (perplexa) - Daniela, isso são os whiskies que tu bebes a toda a hora. Não dizes coisa com coisa.


DANIELA - As coisas é que não condizem. Por exemplo, a Ísis a ser beijada por um desconhecido em frente ao altar. Ou... eu hoje achar que tudo me fica mal. Ou tu estares no meu quarto a experimentar vestidos. E estarmos ambas atrasadas para o jantar da Amélia... DELFINA (como se agradecesse a disponibilidade da irmã) - Falas dessa maneira, vestes-te da maneira que é costume... intimidas os homens. DANIELA (fria) - Tu pouco sabes dos meus homens e eles pouco sabem de mim. Felizmente. (Conciliadora) E tu, Fina? Não intimidas os homens? Quantos admiradores não terás tido que não se atreveram a abrir a boca? Para pedir... para dar... Ó Fina, o corpo não se poupa. Põe-se a render... no bom sentido. DELFINA (generalizando) - Lembras-te que a madrinha dizia que os homens fogem das mulheres demasiado aperaltadas... DANIELA (particularizando) - Mas também dizia que há dois tipos de mulheres: as que se vestem e as que andam vestidas porque estão nuas por baixo. E estava convencida de que fazia parte da primeira categoria. Morreu solteira e cheia de afilhadas. (Olhando para o espelho da cómoda.) O vermelho mata a paixão. Vou de vermelho. DELFINA - Para o Carlos ficar com os olhos em bico. DANIELA - O Carlos não, o Álvaro. (Rindo.) Não é nada do que estás a pensar. (Decidida.) Agora estou com pressa. Vou comprar umas flores para a Amélia. Urna pequena provocação. De mulher para mulher. Com muito chá, como ela gosta. DELFINA - Ó Daniela, ninguém te paga as despesas de representação. O teu dinheiro vai todo em ninharias. Como é que a gente arranja uma empregada ao preço da Ísis? É o teu patrão que te vai dobrar as cuequinhas e metê-las na gaveta? És tão desordenada! DANIELA (brincando com o soutien como Bernardo na cena 7) - Rosas amarelas? Um ramo de rosas amarelas porque ela anda sempre amarela... de inveja. Rosas chá... com veneno. Com whisky. (Ri de boa vontade; coloca o soutien na cabeça, de copas para cima, como uma louca.) Ponho logo urna na lapela do Álvaro. DELFINA - Não vou levar o teu vestido de seda. Visto antes um camiseiro beige que dá para tudo. DANIELA - Fica-te mal mas não faz mal. Nesse caso, eu troco por um preto, muito decotado. Para compensar a tua fila de botões. (Sonhadora.) Pantera e camaleão... que lindo par. Pena não sermos meninas das alianças da Ísis. Ajoelhadas uma de cada lado, como bichos. DELFINA - Se fosses mesmo bicho, não desarrumavas mais do que desarrumas. Imagina um homem a entrar por aqui dentro, de repente... DANIELA - Tinha dó de ti, ficava fascinado com a tua compostura no meio deste caos. Escolhia logo a mana bem comportada. O que vale é que não vais ter essa sorte porque eu nunca ofereci a minha casa a um homem. Escolhida a roupa e seleccionados os acessórios, Daniela coloca cuidadosamente as peças em cima da cama desfeita. Delfina olha para a irmã, escandalizada com o despudorado culto da aparência que aquele zelo revela. DANIELA - Chega aqui, Fina. Deixa-me dar-te um jeito ao cabelo. Eu adorava quando tu me fazias a trança. Puxavas tanto... é das únicas dores que consegui achar boas. CENA 15 Sala (3)

Iluminação idêntica à da cena 2. Luz discreta e sofisticada. Completamente desnorteado, Carlos volta ao vestíbulo e começa a apanhar as peças de roupa que deixara espalhadas pelo chão na cena 2.


CARLOS (a suar em bica) - Porra, não posso levar esta camisola de gola alta. Ainda mal sai do chuveiro, já estou completamente transpirado. (Passa as costas da mão pela testa, enxuga as têmporas com um lenço branco, faz uma bola com o lenço e arremessa-o furiosamente contra a parede.) Ó Ísis, podias ter escolhido outra altura para casar. Que semana! São três casos de partilhas, dois casos de divórcio, dois casos de vendas i lícitas, só me faltava o caso da mulher-adias desaparecida e o caso do jantar a que, involuntariamente, vou faltar. Involuntariamente, nota bem, Ísis, porque eu estou com um apetite dos diabos. Comia mais depressa uma perna de carneiro do que a perna depilada da Daniela. (Tira a camisola, fica em tronco nu.) Vou-lhe telefonar antes que ela saia. A Dani adora chegar atrasada, mas a dragona da irmã faz gala em ser pontual, faz gala em pôr toda a gente pouco à vontade. Não deixa aliás de ser interessante como a falta de à vontade da Delfina é uma coisa contagiosa. Se eu telefonar, vem a dragona ao telefone, numa de controlar os encontros da irmã. Que lhe digo? Que preciso de dar uma palavra à Daniela? Ela respira fundo, bufa fumo pelas narinas, cospe fogo pela boca e pede com maus modos que aguarde um instante. Não, vai-me dizer que a irmã de momento não pode atender mas que, se puder, entra em contacto. Tudo como se não me conhecesse. Vai-me tirar o apetite. Perco logo a vontade com aquela mulher. Ó Ísis, tu é que devias estar aqui para fazer este telefonema. Onde estás, Ísis? A depilar a perna esquerda? Não faças isso, Ísis, pernas depiladas é o que mais há. Se voltares com pernas depiladas, eu vou ficar pouco à vontade ou, pior ainda, sou capaz de me sentir demasiado à vontade contigo. Não cortes o cabelo, não rapes os pêlos debaixo dos braços, não arranjes as sobrancelhas. (Implorando) Ó Ísis, telefona agora cá para casa. Falamos cinco minutos e eu deixo-te o recado para a Daniela... não, para a Amélia. E depois vamos jantar juntos. Fazemos a tua despedida de solteira. (Tira as calças brancas, enrola a camisola de gola alta à volta da cabeça) Se calhar, o telefone está mal pousado. Talvez a Ísis tenha tentado telefonar. Ela sabia perfeitamente que eu precisava do fato azul de linho. CENA 16 Salas (1) + (3) + (4) + (6).

A iluminação nos diferentes aposentos corresponde às cenas 12,13,14 e 15. As luzes acendem-se em cada divisão à medida que acção progride pela seguinte ordem: (1), (3), (4), (6). (1) Sentada em cima da cama, com a cabeça pousada nos joelhos, dobrados ao alto corno uma adolescer) te, Amélia fita Álvaro com um ar de desafio. AMÉLIA (quase altiva) - Então? Pena às vezes perderes o latim... Quem diria?... Um sujeito tão cheio de bom senso e de bom gosto. ÁLVARO - Uma mulher tão combativa... quem diria? Isto não chega a ser o fim do mundo, Amélia. Mas tens razão, entre o fim do mundo e o fim da escravatura, o diabo que escolha. (Pensativo.) Acho que inventei um bom pretexto. Vou-lhes dizer que o quadro eléctrico rebentou, que não há luz cm casa. Claro que vamos ter de ficar às escuras, não vá algum deles aparecer antes da hora marcada. Desliga-se o quadro, acendem-se as velas e telefona-se já ao Carlos que é quem costuma vir a tempo para os acepipes... Álvaro sai. Alguns instantes depois, o quarto fica às escuras e Álvaro volta a entrar com um candelabro - três velas acesas. Senta-se aos pés da cama, de costas viradas para a Amélia, tira o telefone portátil do bolso, consulta urna pequena agenda. (3) Entretanto, Carlos, de tronco nu, aproxima-se da mesinha do vestíbulo e começa a marcar o número de Beatriz. CARLOS (nervoso) - Sete, sete, um, sete, sete, dois... (Pausa.) Hello, Beatriz? (4)


Na sala de jantar, Beatriz e Bernardo continuam a fitar-se estáticos, separados pelo tampo da mesa. Quando o telefone toca Bernardo salta selvaticamente para o aparelho, impedindo a mãe de atender a chamada. BERNARDO - Não, não, é São Bernardo ao telefone. (3) CARLOS (apressado) - Olá, Bernardo. Deixa-me falar com a tua mãe. (4) BERNARDO - Não sei se posso. Quer dizer, não sei se ela pode. Está com os azeites, não quer ver ninguém pela frente. Mas, neste caso, é só ouvir. Ouvir com um só ouvido. (3) CARLOS (agastado) - Bernardo, deixa-te de gracinhas. Passa-me a Beatriz. (1) Álvaro marcou três vezes o número de Carlos. Rende-se à evidência de que está ocupado. AMÉLIA - Procura o da Beatriz. Despacha-te. Daqui a nada, eles estão por aí a pintar. (3) Carlos segura o auscultador com o ombro e aproximando o rosto do espelho do vestíbulo, espreme um ponto negro que descobriu na asa do nariz. (4) Bernardo pousa o telefone em cima da mesa e berra como se a mãe estivesse na outra ponta da casa, fazendo gestos obscenos a Beatriz. Deve ser claro que a grosseria de Bernardo revela uma suspeita de que a mãe tem uma ligação com Carlos. Beatriz limpa umas lágrimas incontidas, funga num lenço e atende sem convicção. BEATRIZ - Boa tarde, Carlos. BERNARDO (atrás da mãe, suficientemente alto para Carlos poder ouvir) - Podias ser mais meiga! (3) CARLOS - O que é que se passa, Beatriz? Estás com uma voz de enterro. (4) BEATRIZ (agastada) - Telefonaste para ter notícias minhas? BERNARDO (mesmo jogo) - Tratas os homens com uma pedra na mão! Julgava que era só comigo. (3) CARLOS (hesitante) - Não, é por causa da Ísis. Quando é que a viste pela última vez? (4) BEATRIZ (neutra) - Segunda-feira, Anunciou-me o casamento. Assim, de pé para a mão. BERNARDO (mesmo jogo) - Queres ver que o filho da puta do Carlos fez um filho à Ísis? (1) Álvaro desiste de marcar o número de Beatriz. ÁLVARO - Se fosse outra, dizia que estava a namorar ao telefone. Vou experimentar para casa da Daniela. AMÉLIA - Tinha de ser. Essa puta não mexe uma palha sem ter um homem a girar à volta do celeiro. ÁLVARO (irritado) - Queres falar tu? Com a Delfina? AMÉLIA (com voz ensonada) - Nem por sombras. Eu não tenho nada a dizer a ninguém. Os convidados são teus, a culpa e tua. (3) Carlos, meio divertido com as bocas de Bernardo, prossegue com dificuldade, desprovido que se encontra de assunto de conversa. CARLOS (espirituoso) - Diz ao teu filho que eu aprecio o interesse dele. Um destes dias, vamos jantar os três. Depois, levo-te a ti a casa e levo-o a ele às putas. (Aclarando a voz.) É que a Ísis Levou o meu fato azul para a lavandaria e eu não consigo encontrar o talão. (4)


BEATRIZ (cansada) - Ó Carlos, é só isso? Eu estou estourada, tive um dia infernal. Ainda por cima, há o jantar da Amélia... BERNARDO (mesmo jogo, mais perto do auscultador) - Foda-se, graças a Deus! Por aqui vai uma crise! Não há comida, não há roupa, não há cama... (3) CARLOS - Pronto, Beatriz, diz ao Bernardo que a Amélia faz sempre comida a mais. Em vez de ficar para o cão da vizinha, traz-se num saquinho para ele. (Propositadamente terno.) Olha, querida, eu ia aí buscar-te, mas também estou atrasadíssimo. Até logo. Carlos desliga abruptamente, sem medir a indelicadeza do gesto. (1) Álvaro, que deixara cair a agenda debaixo da cama, procura-a desesperadamente, de rabo para o ar, na penumbra do quarto. (3) Carlos saca dum pente pequeno enfiado no bolso das calças e começa a fazer penteados grotescos em frente ao espelho do vestíbulo, como se o tempo e o atraso deixassem de contar. (1) Álvaro encontra a agenda e o número de Daniela. ÁLVARO (com dificuldade em distinguir os números no telefone portátil) - Dois, dois, um, dois, zero, dois. (3) CARLOS (entre dentes, para o espelho) - Chiça! A minha avó tinha razão. Os meninos malcriados fecham-se no quarto escuro. A pão e água. Este Bernardo nem tem pai, nem tem papão. (1) ÁLVARO (com uma voz sumida) - Estou?... É da casa da Daniela? (6) DELFINA (a ladrar) - Não. É da casa da Delfina, porque a Delfina paga a conta do telefone. Quem fala? (1) ÁLVARO (assustado) - Boa tarde, Daniela. Boa noite, desculpa, Delfina. É só o Álvaro. Posso falar com a Daniela, Delfina? (6) DELFINA (controlando-se) - Um momento. (4) Beatriz, estupefacta, fica uns instantes com o aparelho na mão sem saber o que pensar. Bernardo abraça-se violentamente à mãe (que está de costas), impedindo-a quase de respirar. Beatriz debate-se em vão e acaba por imobilizar-se, vencida nos braços do filho. BERNARDO - Estás a precisar dum consolo. Vá lá, eu consolo-te. A Ísis ensinou-me a consolar. Imagina que Os meus braços são umas asas, era assim que ela falava, uma asas que não servem para voar. Imagina que são asas dum pássaro adormecido e o teu coração vai bater ao ritmo certo, ao ritmo dum coração adormecido. (3) Carlos larga o pente, pega no telefone e marca o número de Daniela. Soa ocupado. CARLOS - Às tantas, enganei-me. (Volta a marcar.) Dois, dois, um, dois, zero, dois. (Soa ocupado.) Está? Estou? É de casa da Ísis? É Carlos. Posso falar com a Ísis? Não está? Foi passear? Será possível deixar-lhe um recado? Ai não volta tão cedo? Mas volta, não volta? Até porque isto não são horas de andar a passear à beira-rio... Ai não é nada comigo? Isso é o que você julga... Não se importa de ir ao guarda-fato ver se por acaso está lá um fato azul? Exactamente. Eu espero o tempo que for preciso. Enquanto Carlos prossegue o seu monólogo, corno se estivesse a dialogar com o noivo de Íris. (6) Daniela atende a chamada de Álvaro que, apavorado com a dureza de Delfina, não consegue lembrar-se da desculpa que inventou para adiar o jantar.


DANIELA - Álvaro? Álvaro? Aconteceu alguma coisa, Álvaro? Está lá? O que é que se passa? (1) ÁLVARO (com Urna voz de além-túmulo) - Não se passa nada. Estamos todos muito cansados. Muito cansados. Muito... (6) DANIELA (verdadeiramente inquieta) - Estou? Álvaro, o que é que aconteceu? A Amélia está doente? (Sem resposta.) A Amélia está aí? (1) AMÉLIA (erguendo-se ligeiramente) - Diz-lhe que estou e estou de perfeita saúde. (6) DANIELA - Álvaro, diz qualquer coisa. (1) ÁLVARO - A Amélia está de perfeita saúde. Eu é que... eu é que... enfim... (6) DANIELA - Homem, desembucha! Ou melhor, não. Não digas nada, a gente vai já para aí. Estávamos mesmo a sair. (1) ÁLVARO (aflito) - Ai, não! Não venham! Eu é que... por isso é que estou a telefonar. Sinto-me muito mal. Fui ao médico, há bocado. Ele receitou-me, ordenou repouso absoluto, entendes? É o excesso de trabalho e este medo, esta fobia da escuridão? Só aparece ao lusco-fusco (Lembrando-se dum termo lido algures) É um estado crepuscular. Portanto, decidimos cancelar o jantar. Não, a ideia é adiar. Até sempre. Eu depois aviso. Álvaro desliga o telefone a suar em bica como se estivesse a acordar dum pesadelo. ÁLVARO (aliviado) - Ufa! Esta já está! Vou aviar o Carlos. AMÉLIA (sentada na cama, furiosa) - Ó Álvaro, tu não estás mesmo bom da cabeça. Julgas que estás a mentir mas, cá para mim, fugiu-te a boca para a verdade. ÁLVARO (perdendo as estribeiras) - Cala-te. Cala-te! As bonecas de salão não ladram. Fica aí quietinha, sentadinha em cima da cama. «Poupée de porcelaine». Belle époque. Oitenta e cinco mil escudos. Bom preço. Não, eu não sou mulher de fazer descontos. É pegar ou largar. Sabe... Já não se fabrica disto. Pintada à mão. A menina que recebeu esta prenda estimou-a bem. E não é como as bonecas modernas: não fala, não mexe, não mija. Belle époque. (6) Delfina, que presenciou toda a conversa da irmã com Álvaro, está positivamente radiante. Arranca aparelho das mãos de Daniela e liga para Beatriz. DELFINA (eufórica) - Sete, sete, um, tá, tá, dois. (Pausa) Mexe esse cu, Beatriz. (4) Beatriz, ainda muda e queda nos braços de Bernardo, estende lentamente a mão para apanhar auscultador. BEATRIZ (muito serena) - Estou. Quem fala? (6) DELFINA (precipitadamente) - Ó Beatriz, desculpe incomodá-la, mas é só para evitar que vocês saiam de casa sem necessidade. (Não dando tempo a que Beatriz responda.) O Álvaro telefonou há coisa duns instantes. Eu até pensei que ele estivesse a fazer charme à Daniela, só queria falar com a Daniela, sabe como Os homens são. Mas não, aquilo vai o fim do mundo lá por casa. Ele mal conseguia acabar as frases. A escuridão para aqui, a solidão para acolá. A saúde da Amélia. A receita do especialista. Repouso absoluto, nada de jantares. Foi a Ísis que lhe indicou um médico muito bom. Mas ele foi sozinho ao consultório porque a Amélia está de perfeita saúde. Entende onde é que eu quero chegar? (1) Álvaro desapertou o nó da gravata e despiu a camisa. ÁLVARO (marcando o numero de Carlos) - Este sei eu de cor. (Soa ocupado.). Carlos, conto até três. Se não desligares esse telefone, não volto a tentar. Podes tocar à minha porta o tempo que


quiseres, ficas a saber que não estamos para ninguém. Um, dois, três. (Volta a discar.) Estou? Carlos? (3) CARLOS (que entretanto pousou efectivamente o auscultador) - É o próprio. (1) ÁLVARO (atrapalhadamente) - Olha, pá, eu estou cheio de pressa. A casa... é um problema de doença. Puramente técnico. Falhou a luz. Estamos mergulhados nas trevas. Não se pode jantar às escuras. A Amélia não quer à luz das velas, acha que não faz sentido. Sete pessoas!? Three is a crowd. Fica para a próxima. (3) CARLOS (noutro comprimento de onda) - Certo. Chame a Ísis, por favor. Eu tenho estado este tempo todo a tentar telefonar. O que é que você faz na vida? Deixe-me adivinhar... É que a Ísis não nos disse nada sobre si. Calculo que seja vendedor. Digo isto porque está permanentemente ao telefone. A Ísis é de poucas talas. Poucas mas definitivas. Sorte a sua. (1) ÁLVARO (caindo em si à medida que ouve o solilóquio disparatado de Carlos) - Ó Carlos, tomaste banho em whisky? Ainda bem que não vens cá a casa. A Amélia não tolera excessos de espécie nenhuma, só os dela. Vou desligar. Tenho que apanhar a Beatriz. A Ísis não deixou recado para ti, fica descansado. Não venhas. Até qualquer dia. Álvaro desliga com um ar triunfante. ÁLVARO - Este não sabe de que terra é. Tenho a impressão de que já se tinha esquecido do jantar. (Respira profundamente.) A garrafa de whisky ainda está na mesinha de cabeceira? Amélia, o meu whisky não mudou de sítio, pois não? (4) Beatriz leva bastante tempo a reagir à litania de Delfina. Tapando com a palma da mão o auscultador, vira-se para Bernardo e comenta. BEATRIZ - Esta mulher não regula bem da cabeça mas, pelos vistos, o Álvaro disse-lhe que o jantar de hoje está anulado. (Para Delfina.) Acho que entendo onde é que você quer chegar. Obrigada por ter telefonado. (6) DELFINA - O Bernardo está bom? Deve estar crescidíssimo, se o vir já não o reconheço. A Ísis disse-nos que ele é uma estampa. (4) BEATRIZ (irónica) - Tem a quem sair, não acha? Olhe, Delfina, eu vou tentar tirar nabos da púcara. Aproveito para lhes telefonar, já que tinha reservado o serão. Cumprimentos à sua irmã. Beatriz pousa o auscultador, liberta-se dos braços de Bernardo. O telefone toca imediatamente. (1) É Álvaro, doravante muito descomposto e descontraído, de garrafa de whisky na mão. ÁLVARO (ligeiramente ébrio) - Estou, é Triz ao telefone? (4) BEATRIZ (adivinhando) - Álvaro? Foi mesmo por um triz que me apanhaste. Íamos a sair. Precisas de alguma coisa? Eu estava a pensar num vinho óptimo que a Ísis desencantou numa mercearia muito antiga. (1) ÁLVARO - Vinho não. Não cai bem em jejum, Beatriz. É um veneno quando se tem a barriga vazia e a cabeça cheia. (4) BEATRIZ - Então levo uns salgadinhos que a Ísis preparou na 2ª feira. (1) ÁLVARO - Não vale a pena, Triz. Os outros não vêm, portanto o que é que tu vinhas cá fazer? Quer dizer, prova-se o vinho noutra altura. Eu até sou apreciador de vinhos. Aquela velha máxima:


«O vinho é a poesia do paladar». É da autoria dum poeta... autêntico... que trabalha na publicidade. É cliente da Amélia... talvez... seja. (4) BEATRIZ - Ó Álvaro, passa-me a Amélia. Tu não estás nos teus dias. Passa-me a Amélia. (1) ÁLVARO - A Amélia adormeceu... AMÉLIA (erguendo-se num salto) - Adormeceu, meu estupor? (Arrancando-lhe o portátil.) Hello, Beatriz? Não te apoquentes. A Ísis vai casar, todos devem saber. Se não encontrar mais ninguém para o efeito, eu e o Álvaro vamos ser padrinhos. E uma mera formalidade. Aliás, ela chegou a pensar em ti e no Carlos. Até colocou a hipótese da Daniela, imagina... Mas depois achou que parecia comprometedor dois solteirões como vocês a abençoar um casamento. Restávamos nós. Só no caso de ela não arranjar pessoas mais próximas, parentes. A Ísis perdeu o rasto à família toda, coitada. De modo que, para evitar qualquer discussão sobre este assunto (o assunto, de resto, não nos compete) resolvemos cancelar o jantar. O Álvaro tirou um dente do siso esta tarde. Está cheio de dores. Aquilo só passa com aguardente. (Pequena pausa.) Julgo que não há mais nada a dizer. Na semana passada, vi-o de relance na rua. A Ísis tem sempre razão. Adeus. (3) Durante esta conversa, Carlos anda às voltas pelo corredor e tenta várias vezes telefonar para a Beatriz cujo telefone está ocupado. Por vezes, vai à casa de banho, às escuras, molhar a testa. CARLOS (percebendo que o jantar foi anulado) - E agora, Ísis? Quem vai matar esta fome canina? Ísis, tu tinhas um fraquinho pela Beatriz, confessa. Porque a Beatriz é muito senhora do seu nariz. Convido-a para jantar comigo. (Disca o número de Beatriz.) Não me digas que o puto está ao telefone! Ui! Com aquela boca suja, temos muito que esperar (Volta a discar.) Sete, sete, um, sete, sete, dois. (Soa ocupado.) Achas que faço bem em convidar a Daniela, Ísis? Porque a Daniela é muito senhora do nariz dela. (Marca o número de Daniela.) Dois, dois, um, dois, zero, dois. Estou? É com a Delfina que estou a falar? (6) Depois da conversa entre Delfina e Beatriz, Daniela tirou o telefone à irmã e desligou, dando-lhe a entender que foi longe de mais. Delfina tenta protestar e fazer valer os seus direitos. Daniela encolhe os ombros. Ambas contemplam os vestidos inutilmente tirados do guarda-roupa. A cumplicidade entre as irmãs desapareceu. Delfina percebe que mais vale retirar-se. No momento em que vai a sair (dirigindo-se para a cozinha), o telefone toca e ela precipita-se para responder. Daniela olha-a com um ar de cansaço. DELFINA (espantada) - É sim... Quem fala? (3) CARLOS (galante) - Um admirador seu. Secreto. A sua irmã está sempre a falar de si. E eu fui-me prendendo a uma pessoa que, de facto, mal conheço. (6) DELFINA (não sabendo se deve sentir-se lisonjeada) - Quem está ao telefone? (3) CARLOS - Não posso revelar. (Disfarçando a voz para prolongara partida.) - Sou muito tímido. Passe-me a sua irmã. Eu vou-lhe deixar uma mensagem para si. São coisas que não tenho coragem para dizer directamente... nem pelo telefone. (6) Silêncio. Devorada pela curiosidade e temendo que o «desconhecido» desligue o telefone, Delfim chama pela irmã que já renunciou ao jantar e está a arrumar a toilette. DELFINA - Dani (muito baixinho.) É alguém que quer falar contigo. DANIELA (atendendo) - Que vem a ser isto? (3) CARLOS - Vem a ser um convite para jantar. Talvez para mais. Talvez só para jantar. Talvez à luz da veia. Talvez ao luar, (6)


DANIELA (irritada) - Carlos, vai à merda. Delfina rompe num choro convulsivo, agarrada às saias da irmã. (1) Amélia, radiante por ter «humilhado» o marido, vira-se para Álvaro com um ar de desprezo. Álvaro bebe afincadamente. Amélia sopra as velas do candelabro. O quarto fica às escuras. (3) Carlos segura o telefone na mão, especado. CARLOS - Ouviste, Ísis? É o fim... É o mundo às avessas. A velha toda mel e a nova toda fel. Ísis, estragaste-me a noite. Não sei se te perdoo a fome que sinto. Quando te levantares a meio do sono para comer uma laranja ou uma bolacha, zás, o meu fantasma faminto morde-te o pescoço. Tens um pescoço que nunca mais acaba, Ísis. Um choupo. É lá que guardas os suspiros, os soluços, as cantigas. Só conheces o começo das cantigas. O teu pescoço é um pergaminho e as rugas do teu pescoço são as mais lindas que jamais vi. (Pausa.) Vamos atacar a Beatriz que deve estar morta por se livrar do filho. (Marca o número de Beatriz.) Beatriz? (6) Daniela acaricia distraidamente a cabeça da irmã, sem tentar consolá-la a sério. A luz vai baixando até à escuridão no quarto. (4) Após o desconcertante telefonema de Amélia, Beatriz sentou-se à mesa da sala de jantar e começou a escrever uma carta. Insatisfeita, rasgou vários rascunhos. Bernardo, atento, foi apanhando, desamarrotando r lendo as bolas de papel escritas pela mãe. Quando o telefone toca, Beatriz faz sinal a Bernardo que não, atenda. Inesperadamente, Bernardo obedece e senta-se, dócil, ao lado da mãe que continua a escrever. (3) CARLOS (num tom quase suplicante) - Não me digam que já está deitada?... Estou! Beatriz? (4) BEATRIZ (depois de ter deixado tocar por mais de vinte vezes) - Estou? (3) CARLOS - Foi a Ísis que me disse para eu te telefonar. Vamos jantar os três a algum lado? (4) BEATRIZ - Carlos, não são horas. Beatriz desliga calmamente e retorna a carta. Lança um olhar desconfiado a Bernardo que se levanta, faz menção de se retirar, mas vem ler por cima do seu ombro mal ela recomeça a escrever. A luz baixa lentamente. CENA 17 Salas (5) + (6).

Na sala 6, a iluminação é idêntica à da cena anterior. Na cozinha, 5, a luz é escassa. Daniela, ainda vestida, está deitada na cama do seu quarto, num estado de completo abandono e alheamento. Delfina, na cozinha, parece prestes a atacar a arrumação. A mesa e a banca continuam atulhadas de géneros alimentares de toda a espécie. De mão na ilharga, Delfina vira-se para o quarto da irmã e hesita durante alguns instantes. DELFINA - Daniela? (Gritando.) Daniela! Daniela mexe lentamente uma perna, depois outra. Sacode a cabeça como para acordar duma profunda meditação. DANIELA - Gaita! Por é que eu não nasci filha única? Finalmente, levanta-se para acudir à irmã.


DELFINA (vendo Daniela assomar à porta da cozinha) - Ah! Pensei que já estivesses a dormir... não respondias. DANIELA (ligeiramente agastada) - Vontade não me falta! A vida devia ser feita de encontros com desconhecidos. As pessoas conhecidas dão cabo de nós. (Pensativa.) A Ísis tem sempre razão. DELFINA (retomando a atitude de secura e procurando exercer autoridade) - Não preciso da razão da Ísis para nada. (Apontando para os víveres.) Vês? Eu nunca fico descalça nestas ocasiões. Tenho sempre a despensa cheia. Nunca se sabe... DANIELA (sarcástica) - Pode vir o fim do mundo... DELFINA (afectando indiferença) - Tanto não direi, mas parece que passou por aqui um furacão. Tu és tão desnorteada... Tão cabeça de vento. Ajuda-me a arrumar a tralha. DANIELA (pegando em duas garrafas de vinho e afectando um grande cansaço) - Ai, Delfina, eu amanhã trabalho. (Boceja.) Tu própria reparaste que tenho feito imensas horas extraordinárias. (Voltando a pousar as garrafas.) A Ísis trata deste caos quando voltar. DELFINA (empilhando perigosamente uma série de latas de conserva) - As latas de ervilhas foram urna pechincha. É importante ter comida sempre à mão!... DANIELA (indolente) - A propósito de comida: podíamos petiscar qualquer coisa... depois tornávamos um banho quente e íamos dormir. DELFINA - Olha, eu não tenho fome nenhuma. E tomar banho depois de comer, nem pensar. Ir para a cama de barriga cheia é fatal... (Pausa.) A Amélia é que está em falta... DANIELA - Tá bem, Fina, os teus conselhos tiram-me o apetite. Mas, sem comer, não me peças para pôr a cozinha em ordem. (Langorosa.) Ai o meu corpo está mesmo a pedir cama. DELFINA (cedendo ao cansaço, exasperada) - Há aqui coisas que se estragam. Dói-me o coração ao ver que as coisas se estragam. Ó Ísis estragaste-nos a noite! É tão raro eu ser convidada! A Ísis, uma mulher-a-dias que mais é, casa quando quer!? Não vale a pena voltares amanhã, estás despedida! CENA 18 Sala 1.

Iluminação idêntica à da cena 4. Carlos, visivelmente desanimado, está entretido a apanhar as peças de roupa que juncam o chão do quarto. CARLOS (apanhando as roupas e amontoando-as aos pés da cama) - Basta uma mulher trair para todas as outras a imitarem. Ísis, traíste-me. Olha como as minhas amigas me tratam. (Pausa) Estou de barriga vazia e perdi a fome. Perder a fome é perder a inocência. Nunca tal me acontecera. Ísis, rainha do ventre, mulher das mulheres. Reinais sobre todos os ventres: os vossos ventres porque são vossos, os nossos ventres porque são vossos, os altos ventres e os baixos ventres. (Pausa) Sonho noites a fio com a barriga da perna, mais acima a barriga bela e ossuda do joelho, a barriga da íris dilatada, a barriga da lágrima que rebenta, as duas barrigas anãs que trazeis ao peito, as nádegas em forma de barriga, a cabeça que é um totem da barriga. (Pausa) Ísis, não há nada mais perigoso do que ficar sozinho na insónia ou ser abandonado no meio dum sonho sem conseguir voltar para trás. Não tenho fome, não tenho fome, não tenho fome. Se não voltares depressa, sei que vou aprender os teus ensinamentos. Ora, eles deviam ser infixáveis, lições suspensas, máscaras negras da nuvem que anuncia o fim do mundo. O que tu ensinavas não era para ser aprendido. Não tenho fome, não tenho sono, não tenho insónia, não tenho sonhos. Carlos apanhou toda a roupa espalhada e prepara-se para dormir. Despe as calças, tira as meias e atira tudo para cima do monte aos pés da cama. CARLOS (melodramático) - Eu trocava-te por tudo, e só por tudo, e tu trocaste-me por nada.


Quando se enfia dentro dos lençóis, a pilha desmorona-se e as peças de roupa voltam a espalharse pelo chão. CARLOS - Ísis! Não se pode morrer e ficar vivo ao mesmo tempo! Não tens o direito de partir e ficar presente! CENA 19 Salas (3) + (2).

Iluminação diferente, se possível das cenas 2, 4 e 10. Casa de banho: luz neutra. Vestíbulo: luz violenta, expressionista. Bernardo, fechado na casa de banho, empunha vitoriosamente a carta que Beatriz escrevia na cena anterior. Beatriz, aos pontapés à porta, exige que Bernardo lhe abra e lhe devolva o papel roubado. BEATRIZ (desabrida) - Bernardo, abre imediatamente e devolve-me essa carta. BERNARDO - Não te preocupes que eu não me vou matar. Talvez tenhas medo que as tuas palavras me envenenem a alma, Beatriz. BEATRIZ - As palavras são minhas, a folha é minha... Eu não ando a mexer nos teus papéis. Pisaste o risco, Bernardo. Isso é propriedade privada e eu não sou propriedade tua. BERNARDO - Foda-se, graças a Deus. (Pausa; Beatriz continua aos chutas à porta) A mamã exaltou-se. Não compreende as manobras do filhote desmamado. Eu diria até rejeitado. (Pausa; irado) Ó cabra, precisavas de dar uma tampa ao Carlos? Não me perguntaste a minha opinião! Eu, estou com uma fome desgraçada. A ti, comia-te viva. (Pausa.) E dá-se esta mal-fodida ao luxo de mandar bugiar o único amigo decente que tem. Primeiro, despede a Ísis; depois, desliga ao Carlos. E, no fim, escreve cartas. Puta que pariu, Beatriz, quando é que ganhas juízo? BEATRIZ - Se não tivesses desligado ao Carlos, tinha-lhe pedido para te dar um par de estalos. BERNARDO - Só depois de irmos às putas. Nesse caso, era um castigo bem merecido. Até te oferecia a cara para teres menos trabalho. Agora de barriga vazia e de pau feito, é difícil conversar com calma. BEATRIZ - Bernardo, eu ponho-te na rua. BERNARDO - Cada vez que abres a boca, dás-me razão. Bernardo lê para si o primeiro parágrafo da carta. Depois, senta-se na sanita e dispõe-se a ler o resto em voz alta. No vestíbulo, Beatriz encostada à porta da casa de banho, está lavada em lágrimas. BERNARDO (aclarando a voz) - Hum! Hum! Isto é um acto de chantagem emocional pura. Aprendi contigo. (Pausa; num tom solene) Passamos à leitura da missiva. BEATRIZ (num lamento) - Ísis! Eu não acredito que isto me está a acontecer. BERNARDO (solene) - Sem comentários! «E sendo tu tão necessária para o governo desta casa, tendo tu ajudado ao crescimento harmonioso do Bernardo...» — seguem-se uns sarrabiscos «proponho-te que partilhes o nosso tecto. Eu sei muito bem o que é a solidão, Ísis. Percebo melhor do que julgas a tua escolha, mas por isso mesmo a acho precipitada.» — aqui a Beatriz borratou tudo porque verteu urna lágrima sentida «Nós somos a tua família, apesar de não sermos bem uma família. A porta está aberta...» — por acaso, não está — «Não vou tocar em nada do trabalho que te compete porque creio que ficarias magoada.» — ai, a cabra, não tem mesmo vergonha na cara! — «Ambas pecamos por orgulho, é o mais belo dos defeitos...». BEATRIZ (interrompendo-o, num tom de profundo desprezo) - E quem te diz a ti, meu menino, que eu ia enviar essa carta à Ísis? Há coisas que, mal se escrevem, deixam logo de ser verdade. BERNARDO (enlouquecido) - O Ísis, eu vou cagar no lavatório, vou mijar no copo dos dentes. Pego na escova para diluir merda e escrevo o teu nome na parede. E tu voltas amanhã para dizer à Beatriz que é tudo mentira.


CENA 20 Sala (4).

A cena será iluminada pelo candelabro como já acontecera em 16. Álvaro, extenuado, está sentado â mesa da sala de jantar com um ar absorto. Amélia, de olhar vazio, põe a mesa para duas pessoas, como se de facto tivesse a intenção de servir o jantar. Álvaro parece não se dar conta dos gestos mecânicos de Amélia. AMÉLIA - Há dias em que uma pessoa não devia acordar. É corno entrar num sonho mau e não conseguir voltar para trás. Amanhã, se calhar, vai ser bom sair de casa e descobrir que afinal não é o fim do mundo. Mas, até lá, fica a dúvida, a certeza de que está tudo estragado. (Embacia os copos de cristal e dá-lhes brilho com um pano branco.) Ó Ísis, imagina o que ias sentir se convidasses uma data de gente para o teu casamento e depois não houvesse boda, não aparecesse o padre e o noivo faltasse. Estavas tão bem solteira, como todos os outros... Casar é perder a ambição. E perder a ambição é perder a inocência. (Contempla a mesa posta, satisfeita com a disposição dos talheres.) As coisas saem melhor quando são obra duma só pessoa, quando os outros servem apenas de termo de comparação. (Começa a retirar metodicamente os talheres, arrumando tudo como se renunciasse a servir o jantar.) O casamento foi o primeiro passo para este lamaçal: os amigos viram costas e a pessoa vai-se atolando. E aquele que te estende a mão, não é para te salvar, é para que te afundes mais e mais depressa. (A mesa vai ficando vazia.) Ísis, estás contente com o teu trabalho? ÁLVARO (com voz neutra) - Não, não está. A Ísis queria ver-te afogueada por cima dos tachos, de unhas quebradas em frente a um monte de loiça gordurosa. (Pausa.) Nas folgas, ela dava passeios à beira-rio. Não era para andar de barco, não era para atravessar e chegar à outra banda, não era para remar contra a corrente. Era da lama que ela gostava, daquele lodo negro das margens. Álvaro levanta-se e vai acender a luz. (Iluminação indirecta, suave e sofisticada). Amélia apaga as três velas do candelabro. AMÉLIA - Ísis, agora me lembro... Tu ficaste de ir pagar a conta da electricidade. ÁLVARO - E prometeste que ias tratar da instalação do novo telefone. AMÉLIA - E não te esqueças de polir os amarelos e de lavar o mármore da soleira. CENA 21 Salas (1) + (2) + (3) + (4) + (5) + (6).

No decorrer desta cena, as personagens, que não abandonaram os lugares que ocupavam nas quatro cenas anteriores, reiteram algumas das queixas e acusações que proferiram contra a Ísis. A essas vem acrescentar-se apelos, preces e maldições, num crescendo polifónico que se torna progressivamente insuportável. (6) DANIELA - A Ísis tem sempre razão! (5) DELFINA - Não preciso da razão da Ísis para nada! (6) DANIELA - A Ísis tem sempre razão! (5) DELFINA - Ó Ísis, estragaste-nos a noite!


(1) CARLOS - Não tens o direito de partir e ficar presente! (5) DELFINA - Urna mulher-a-dias não casa quando quer! (6) DANIELA - A Ísis trata deste caos quando voltar! (1) CARLOS - Não se pode morrer e ficar vivo ao mesmo tempo! (5) DELFINA - Não vale a pena voltares amanhã, estás despedida! (2) BERNARDO - Volta amanhã para dizer que é tudo mentira! (1) CARLOS - O que tu ensinavas não era para ser aprendido! (2) BERNARDO - Vou escrever o teu nome na parede! (3) BEATRIZ - Há coisas que, mal se escrevem deixam logo de ser verdade! (4) AMÉLIA - Estavas tão bem solteira como todos os outros! (3) BEATRIZ - Nós somos a tua família! (1) CARLOS - Ísis, traíste-me! (3) BEATRIZ - Eu não acredito que isto me está a acontecer (1) CARLOS - Olha como as minhas amigas me tratam! (4) ÁLVARO - Era da lama que ela gostava! (2) BERNARDO - Eu vou cagar no lavatório! (4) AMÉLIA - Ísis, estás contente com o teu trabalho? (6) DANIELA - As pessoas conhecidas dão cabo de nós! (3) BEATRIZ - Ísis, não te conheço! (1) CARLOS - Tu trocaste-me por nada! (2) BERNARDO - Não te conheço de lado nenhum! (4) ÁLVARO - Ísis, Ísis, porque nos abandonaste? (5) DELFINA - Ísis, estás despedida! (3) BEATRIZ - Ísis, perdoa-nos! (5) DELFINA - Ísis volta, estás despedida! (6) DANIELA - Ísis, arde no fogo do inferno!


(4) AMÉLIA - Ísis, afunda-te na lama! ÁLVARO - Ísis, se existes, faz um milagre! (2) BERNARDO - Ísis, mata o teu marido! (1) CARLOS - Ísis, mata-me à fome! (4) ÁLVARO - Ísis, perdoa-nos, nós não sabemos o que fazemos! (2) BERNARDO - Ísis, mata a minha mãe! (4) AMÉLIA - Ísis, ressuscita! (2) BERNARDO - Ísis, mostra o teu eu! (5) DELFINA - Ísis, põe-te no olho da rua! (4) ÁLVARO - Ísis, vai para o raio que te parta! (6) DANIELA - Ísis, cobre-me de beijos! (4) AMÉLIA - Ísis, cobre-me de honras! (1) CARLOS - Ísis, cai-me nos braços! (2) BERNARDO - Ísis, não me toques! (5) DELFINA - Ísis, não olhes para mim! (6) DANIELA - Ísis, olha bem para mim! (3) BEATRIZ - Ísis, olha por nós! (4) ÁLVARO - Ísis, sofre por nós! (6) DANIELA - Ísis, não chores! (4) ÁLVARO - Ísis, não fales! (1) CARLOS - Ísis, diz! (6) DANIELA - Ísis, sê feliz! (4) ÁLVARO - Ísis, sê breve! AMÉLIA - Ísis, sê leve! (3) BEATRIZ - Ísis, bate-me! (2) BERNARDO - Ísis, bate-me! (3) BEATRIZ - Ísis, leva-me!


(2) BERNARDO - Ísis, leva-me! ACTO 2 CENA ÚNICA Uma mesa estreita posta para treze pessoas. Dos treze lugares, seis estão vazios, dos quais cinco foram anteriormente ocupados por Ísis, pelo Padre, pela Madrinha, pelo Padrinho e pela menina das alianças (a empregada do registo civil, seu marido e filha) e um, reservado ao noivo, não chegou a ser ocupado. As personagens do Primeiro Acto ‒ os patrões de Ísis ‒ estão colocados à volta da mesa conforme o esquema acima reproduzido. A boda acabou. A mesa está atulhada de garrafas e restos de comida. Extremamente bem dispostos, os sete convidados não parecem prestes a arredar pé, apesar da ausência da noiva que, consoante a tradição, se despediu para partir em lua-de-mel, antes do fim do copo-de-água. O dispositivo cénico deve ser instalado o mais perto possível dos espectadores (num palco à italiana, estaria à boca de cena). ÁLVARO (com a voz toldada pelo álcool) - no pleno uso das minhas faculdades... estéticas... proponho que façamos um brinde ao providencial desaparecimento dos nossos rústicos companheiros... de mesa. (Arrota.) Enfim sós! AMÉLIA (para Carlos) - Realmente, aquela gente não tem conversa que se aproveite. (Reflectindo.) Aliás, só deviam abrir a boca para comer. CARLOS (divertido com a imagem que lhe ocorre) - Comer e pasmar. Criados no meio de bois, lá aprenderam com eles. Olhavam para nós como bois a olhar para um palácio. (Suspiro.) Vão ter assunto para ruminar durante uma semana. BERNARDO (berrando, sem controlar a voz) - Então?! Não bebemos à saúde dos parolos?! BEATRIZ (inquieta) - Bernardo, tu já tens a tua conta. Não me obrigues a levantar-me que eu estou muito bem. (Para Amélia.) Os ares do campo abriram-me o apetite. (Tirando um espelho da carteira e mirando-se.) Estas rosetas não são maquilhagem. CARLOS (de braguilha aberta, acariciando a barriga) - A Ísis excedeu-se... como sempre. BEATRIZ (comovida) - Ela até estava bonita com aquela coroa de flores de laranjeira. (Pausa.) Pareceu-me mais magra... DELFINA (esganiçando a voz para ser ouvida por todos) - Mais magra? BERNARDO (provocador) - Pudera... quantos dias a cozinhar para esta cambada de alarves? AMÉLIA - Pois é... repararam que tínhamos a mesa quase por nossa conta? A maioria dos lugares... BERNARDO (cortando-lhe a palavra) - E o marido que nem chegou a sentar-se? Viemos para ver as trombas do marido e afinal demos de trombas uns com os outros. DELFINA (sentenciosa) - Eu, pelo pouco que vi dele... DANIELA (escangalhando-se a rir) - O Fina, o que é que tu viste do noivo? Chegámos duas horas atrasadas, o homem tinha-se posto ao fresco. DELFINA (vexada) - Nem me lembres o atraso que a culpa foi tua. Perdes tempos infinitos ao espelho. DANIELA - Desculpa lá, Fininha, mas estava pronta com imensa antecedência. Não quiseste que eu pegasse no volante... DELFINA - Tu guias o carro como se estivesses a posar para um calendário pornográfico. Isto aqui não é o Texas, as estradas têm muitas curvas, não se pode ir a sonhar... DANIELA - Pronto, Fina, acabou por ser engraçado. Perdemo-nos... Com o sol a pino, a subir e descer encostas, até fiquei bronzeada na cara e no peito. E tu não sonhas a conduzir... que faria se sonhasses!? DELFINA (para Bernardo) - Eu vi-o de relance. Na sacristia. Estava a pagar o casamento ao padre.


BERNARDO (muito alio) - O Beatriz, por que é que eu não tenho uma mana assim corno a Delfina? Ou uma tia? Uma tia do género da Daniela? Divirto-me à brava com elas. DELFINA (lisonjeada) - Qualquer dia, vens lá a casa ver as fotografias em que eu estou nova e tu és bebé... DANIELA (tom neutro, forçado) - Não lhe queres mostrar outra coisa? AMÉLIA (parecendo acordar após urna longa contemplação da mesa) - A mesa... as flores... tudo posto com gosto. Aliás, o estilo rústico está na moda. No fundo, a Ísis aprendeu muito comigo... DELFINA (sem saber onde quer chegar) - A Amélia acha que a Ísis vai voltar grávida? AMÉLIA - Não sei... Não tive tempo de lhe perguntar. Esqueci-me de lhe pedir a receita do galo bêbedo. O molho estava no ponto certo. Deve ter tirado do meu livro de cozinha. DANIELA - Ó Amélia, com um bocado de sorte, a Ísis dá-lhe a receita do galo e dos pintainhos. Ela aprende coisas por toda a parte... é a vantagem de ter vários empregos. AMÉLIA (ignorando o chiste) - Claro, com os empregos que tem, não pode engravidar. Eu, por exemplo, sacrifiquei quase tudo à carreira. A loja come-me o tempo todo! ÁLVARO (num tom pedante, de olhos semicerrados) - Ainda bem que o reconheces... Carlos, subitamente embevecido, sobe para cima da cadeira com o copo na mão. CARLOS (acariciando a barriga) - Salve Ísis, de barriga redonda como uma pipa. Ísis cheia de desejos... com bolachas de gengibre no bolso da bata... BEATRIZ - Nunca senti desejos. CARLOS - É natural... Olha para a minha pança. Eu sempre senti desejos e sempre desejei ter desejos. (Levanta o copo.) E desejo que a Ísis... BEATRIZ (entrando no jogo) - Sacerdotisa da panela... CARLOS - Os tenha por mim e por ela. ÁLVARO (tentando manter os olhos abertos) - E que não perca a criatividade. A Ísis é um génio naif. A ideia de fazer um bolo de noiva em forma de ponte... Pensou em mim que só como com os olhos. DANIELA (levantando-se, corno sonâmbula, e contornando a mesa em direcção a Álvaro) - O Álvaro tem mais olhos que barriga. E a Ísis só tem olhos. Olhos e mãos. Não há tempo para abrir a boca. Ela adivinha o que se vai pedir. DELFINA (virando-se para a irmã que se colocou de pé atrás dela) - Viste as caixinhas de bolos que ela preparou para os convidados levarem? Assim as coisas boas não se estragam. Ao pequenoalmoço é que nos vamos desforrar. BERNARDO (simulando candura infantil) - E para mim ração a dobrar porque a mamã só come açúcar em ocasiões muito especiais. DANIELA - É como eu. (Maliciosa.) E em que ocasiões? Será que compensamos da mesma maneira? BERNARDO (ignorando Daniela) A tia Fina conhece a dieta dos astronautas? DELFINA (jubilante com a atenção de Bernardo) - Ó querido, acho que eles só tomam pílulas. E não é uma invenção fascinante? Podia-se matar a fome à humanidade inteira. Em vez de arruinar a bolsa na mercearia, engolir pastilhas. BERNARDO (divertido com a conversa) - Não sei. A Ísis está sempre a dizer à minha mãe: «Deixe o menino comer. Antes para a mercearia do que para a farmácia». Daniela, despeitada, reparando que Álvaro fechou os olhos, começa a fazer-lhe cócegas com uma flor arrancada a um arranjo de mesa. AMÉLIA (inventando) - Olhe que o meu marido é asmático. Não suporta o pólen. CARLOS (surpreendido, quase perdendo o equilíbrio em cima da cadeira) - O Álvaro asmático? Eu andei com ele na tropa e nem suspeitava. AMÉLIA (atrapalhada) - É... é... muito recente. Ele não admite... não aceita, diz que é uma doença demasiado... inestética. Não lhe toques no assunto. Carlos senta-se em cima da mesa com uma garrafa de espumante entre as pernas. Álvaro, sobressaltado, abre um olho. ÁLVARO (voz ensonada) - Bom dia, minha flor!


DANIELA - Há trinta anos que ninguém me chama flor. Era a minha mãe. Depois mais ninguém. Do meu pai, mal me recordo. Seria como o marido da Ísis? Dizem que tenho uns ares dele. (Pausa.) Sempre que me apanhei com um noivo na cama, pensei: «É este? Por quantos anos?» E achei que mais valia contentar-me com uma memória incerta, como o tal marido da Ísis que podia ser meu pai. (Pausa.) Flor no deserto das alcatifas e do ar condicionado. Álvaro, de olhos esbugalhados, escuta Daniela, não se sabe se estremunhado se embevecido. BEATRIZ - Ó Bernardo, dá um copo de água à Daniela. (Pedagógica) Na sala de aula, tenho um jarro de água. Quando algum aluno está na lua, obrigo-o a beber um copo. Há muitos mundos, a questão é escolher aquele onde se está. BERNARDO - Mamã, estamos todos a águas! Os parolos foram pregar para outra freguesia e a festa ficou em águas de bacalhau. Apetece-me brindar... à perfeição da Ísis. (Sobe para a cadeira) Ergo o meu copo (Olha ferozmente para os convivas) a uma mulher do outro mundo. (Berrando) Onde quer que estejas, Ísis, fica ciente de que és perfeita. Não és feita para este mundo. Todos erguem solicitamente o copo, aparentemente cúmplices do discurso de Bernardo. Álvaro procura chocar com a taça de Daniela. BERNARDO - A mamã, que é professora, diz que eu não tenho queda para nada. (Cambaleia perigosamente) Só tenho queda para comunicar... ÁLVARO - Comunicar não é encher os ouvidos das pessoas como tu fazes. DANIELA (objectiva) - Não. É mais com os pés a roçar, como o padrinho da Ísis. Silêncio. Ninguém aprova a frontalidade bem-humorada de Daniela. DANIELA (mais alto) - E há quem comunique através da doença. Li algures que a asma é psicossomática. É o corpo a protestar. BERNARDO (interessado) - Eu também tenho dores psicossomáticas. A Ísis dizia: «Este menino, vai-lhe tudo para a barriga». DANIELA (brejeira) - É só somatizares um nadinha mais abaixo. Isto a propósito do teu problema de queda... BERNARDO (irado, saltando elástico para o chão) - Álvaro, não ligues a esta mulher que é uma parola. Diz tudo o que lhe passa pela cabeça mas mete os pés pelas mãos... Daniela faz menção de pregar um estalo a Bernardo, mas Delfim protege-o, abraçando-o maternalmente. Carlos põe-se de pé em cima da mesa com um copo numa mão e a garrafa de espumante noutra. CARLOS (tentando desanuviar o ambiente) - Então, minha querida Ísis, deste o nó... e eu que ainda não brindei à felicidade dos noivos (imitando os «parolos») Ao pé do altar florido A Deus disseste que sim Cuida bem do teu marido Como cuidaste de mim. BEATRIZ (estranhamente grave) - Ela não disse que sim a Deus. Disse sim perante Deus. CARLOS - Como é que sabes? Por mim não vejo diferença. De resto, nenhum de nós esteve cá para falar com Deus. Faltámos a essa parte... (Imitando os «parolas».) Beatriz ficou solteira Mulher de poucos amores É casta como uma freira Ninguém lhe oferece felores Tanta felor viu nos prados Que todas quis apanhar Chegámos muito atrasados Já na hora de almoçar. Nunca vi noivo tão esquivo Nunca vi mesa tão farta...


BEATRIZ (cortando-lhe a palavra) - Ó Carlos, tu não tens estômago, tens um buraco... uma ferida. CARLOS - Pois, mas não fosse a fome que eu tinha, ainda estávamos a apanhar malmequeres ou parados à espera que o Bernardo acabasse de mijar. (Arrota ruidosamente; fingindo-se ofendido.) Porra, Beatriz! Estragaste-me a rima. Eu andava à procura dum verso em que a bis chamava o marido morto-vivo e doutro que mandava o homem p’ró caralho. Boda farta... raio que o parta. ÁLVARO (ninguém lhe liga) - O poeta... moderno,.. não se dá ao trabalho de rimar... AMÉLIA (agastada com a atenção que Carlos dispensa a Beatriz) - Ó Carlos, eu não andei propriamente contigo na tropa... mas conheço-te... do tempo em que estava interna no colégio, e não sabia dessa veia. CARLOS - Veia seca, veia seca. E não é veia... são coisas que se aprendem na única idade em que se aprende ou se quer aprender. (Pausa.) As flores de estufa aqui presentes, digo as minhas amigas, embora elas detestem que as trate assim, por causa dos subentendidos... para bom entendedor basta meio copo... as flores de estufa aqui presentes ignoram, embora julguem que sabem tudo sobre mim, inclusive sabem coisas e não querem que se saiba como sabem, porque eu sou da raça dos mortos-vivos, de relance na sacristia, pago ao padre, pago e calo, pago e fujo, as flores de estufa aqui presentes ignoram, embora regadas com amor desigual ou com desamor igual, bebem e calam, as flores de estufa aqui, de mim ausentes, ignoram que eu cresci no ESTRUME. Flor de merda, à minha maneira e com muito gosto, não conto renunciar ao gosto, deus proteja a boca, deus proteja a língua, muito gosto em conhecê-las, e flor de merda, criado com muito verso dito e cantado ao desafio, é com muito gosto que versejo com os olhos postos em vós. Eu sou o boi e vós o palácio. (Pausa.) Álvaro e Bernardo, príncipe consorte, príncipe mal disposto... não acordem a flor adormecida... Carlos deita-se em cima da mesa, derrubando alguma loiça. BEATRIZ (aflita) - Álvaro, passa-me o jarro de água. Depressa. AMÉLIA (jubilante) - Não há um resto de café? DELFINA - Deitem-lhe sal. E arranjem gelo... DANIELA - Ai, meninas, que aflição! A serpente já escarrou o veneno. Deixem que ele arriba, não tarda nada, fresco como um anjo. (Maliciosa.) Olhem, eu vou-lhe fazer umas festinhas nos pés. Os pés pelas mãos... Álvaro, meio aparvalhado, está com uma xícara de café na mão, sem saber se há-de socorrer o amigo. DELFINA (estendendo um pratinho a Beatriz) - O Beatriz, faça-me a fineza de me cortar uma fatia de bolo de noiva aqui para o meu prato. DANIELA (sarcástica, para Delfina) - Isto é que é tirar a barriga de misérias. BERNARDO - Não te metas com a tua irmã. DANIELA - Ouve lá, v puto malcriado, eu sou mana dela há mais tempo do que tu és Bernardo. Olha, faz como o Carlos, mas alivia antes os tomates... Bernardo prepara-se para agredir Daniela mas ela esquiva-se e corre à volta da mesa. Bernardo persegue-a, meio divertido, meio irado. BEATRIZ (para Amélia, tentando desculpar Bernardo, com urna ponta de orgulho na voz) – Os homens têm todos mau génio e ele está a ficar um homem. AMÉLIA - O da Ísis sempre é mais... discreto. Extremamente fino para um campónio... BEATRIZ (intrigada) - Chegaste a vê-lo então? AMÉLIA - Foi. Estava a fotografar um fontanário à entrada da aldeia e vi passar um carro. Um carro grande, daqueles que se alugam para casamentos. Ia um homem sozinho ao volante. Cinquentão. Muito pálido, uma tez de azeitona. Cabelo ainda preto. ÁLVARO (desconcertado) - Ó querida mas tu... eu... nós não... DELFINA (que não perdeu uma palavra) - Não pode ser esse. A madrinha disse-me que o noivo é um homem na casa dos trinta. Trinta e três, para aí... AMÉLIA (despeitada) - E a Delfina não o viu na sacristia? DELFINA - Vi e por isso confirmo. É uma criança à beira da Ísis.


Bernardo, ofegante, agarra-se a Delfina, abraçando-a pela cinta. BEATRIZ - A Ísis não parece nada a idade que tem. Daniela gatinha aos pés de Álvaro. DELFINA - Ou não tem a idade que parece. BERNARDO - E que idade tem ela, Tia Fina? DELFINA - Muito mais velha do que o marido. ÁLVARO (para Daniela) - Miau! DANIELA (de gatas) - Fru! Fru! BERNARDO (para Delfina) - Uma diferença como de mim para si? DELFINA (lisonjeada) - Pois, só que a Ísis decerto não andou com o marido ao colo. Entretanto, Álvaro p6s-sc de gatas e brinca com Daniela, respondendo desajeitadamente aos gestos felinos dela. BERNARDO (cínico) - Mas podia bem ter andado. É incesto puro. (Para Beatriz.) Vês, mamã, onde a levaram os nossos exemplos? BEATRIZ (sem reflectir) - Bernardo, eu ainda chego muito bem para ti! BERNARDO - Chegas e sobras, Beatriz. A cama é que está a ficar um bocado estreita para o teu cu. Daniela e Álvaro escapuliram-se felinamente para debaixo da mesa. Delfina ri descontroladamente. DELFINA (pouco à vontade, contendo dificilmente as risadas nervosas) - O meu sobrinho vai fazer um acordo comigo. Um pacto de não-agressão... que inclui a Beatriz que o criou com muitas dificuldades. Veja só... urna mulher sozinha... a sustentar uma casa. Peça-lhe desculpa, vá. Bernardo imita os latidos dum cachorrinho. BEATRIZ (furiosa) - Primeiro tinha de lhe pedir desculpa a si. E, que me conste, você nunca andou com o Bernardo ao colo. AMÉLIA - Nunca é tarde. (Em jeito de desculpa) Talvez os mimos da Delfina lhe convenham mais do que os teus berros. É uma questão de educação. A prata da casa fica negra quando não há ninguém para a polir. BEATRIZ (exaltada) - Estás a falar dos teus bibelôs, do teu bule de casquinha? BERNARDO (exultante) - Mamã, não te apoquentes, a Amélia é um bibelô. Foi preciso um Álvaro para ela não ficar na prateleira. Mas, corno o Álvaro é calaceiro, a Ísis dava-lhe lustro três vezes por semana. Porque o Álvaro não ia gastar o cuspo — o precioso cuspo do Álvaro — com uma coisa tão pequenina. Amélia ergue-se, pronta para se atirar a Bernardo. Beatriz agarra no jarro de água e despeja-o violentamente em cima dela. Amélia, molhada como um pintainho, uiva. AMÉLIA (conseguindo enfim articular) - Álvaro! Álvaro! Esta, mulher é doida! Carlos! Álvaro! Deixa-te de marmelada com a Daniela! Carlos leva a tua namorada para casa. Carlos levanta a cabeça. AMÉLIA (possessa) - A gente tem aturado Os teus engates, mas este namoro já cheira a mofo. Tresanda. CARLOS (retornando urna posição mais normal, meio aturdido) - Amélia, tu não sabes o que estás a dizer! AMÉLIA - Que fedor! (Espumando.) Eu entendo que tu não a queiras. Até uma mulher-a-dias arranja marido com mais facilidade. Mas ela não te larga. Carlos lenta acalmá-la, passando-lhe o braço por cima do ombro. AMÉLIA - Larga-me! Larga-me! Eu arranjei marido para a Ísis, podia ter arranjado uma mulher para ti. Eu INVENTEI o marido da Ísis. Pálido. Mãos finas, cor de azeitona. Cinquenta anos. Cabelo de azeviche. Pintado, claro. Olhos grandes de fêmea. Vende selos e postais antigos numa lojinha minúscula perto da ponte. Aos fins-de-semana, tem uma banca à beira-rio. Eles devem-me tudo porque eu queria ser útil. Mas tu não permites que eu volte a entrar na tua vida. Doutra maneira, claro, como uma irmã mais velha, como um pau-de-cabeleira. BEATRIZ (teatral) - Como alcoviteira.


DELFINA (cúmplice da mulher solteira contra a mulher casada) - Ó Beatriz, faça de conta... Casadas, todas elas se acham casamenteiras e mandam muito nos homens da boca para fora. Veja se ele manda no dele, ele que é um pau mandado. (Numa pose de irmã mais velha.) Daniela, não me faças passar por vergonhas. Vem provar o bolo de noiva que esse cão tem dona... CARLOS (com o braço pousado nos ombros de Amélia) - E ferra, não ferra? A culpa é minha, ferra em mim. Carlos despe o casaco e agasalha Amélia que está a tiritar de frio. AMÉLIA - Ó Carlos (Com os olhos rasos de lágrimas.) o pior é que o Avaro deve estar quase a dormir. Tudo lhe dá sono. O frio, o calor, as mulheres bonitas, as mulheres feias. Só acorda para dizer coisas despropositadas e parece um sonâmbulo a falar. Depois, como ninguém lhe liga, volta a adormecer. Ó Carlos (Chora agarrada a Carlos.) eu queria ter ciúmes, mas só tenho... inveja. Daniela emerge discretamente e senta-se no seu lugar. Bernardo empilha pratinhos de sobremesa e começa desajeitadamente a servir o bolo de noiva. Daniela ajuda-o. BEATRIZ (com doçura) - Quando eu era pequena, queria ser criada de servir. Pensava que quanto mais baixo conseguisse pousar, maior seria a vertigem das alturas. Enganei-me. A nossa Ísis teceu a teia no fundo dum poço. E cada vez que algum de nós se abeira do buraco e espreita para murmurar um desejo ou gritar uma queixa, desejos e queixas ficam presos como gotas aos fios inúmeros. Quem vive nas profundezas, não sofre de vertigem, porque fabricou outras nuvens, outros cimos. O círculo de céu que avista parece pequeno, apenas suficiente. Mas nenhuma agitação à superfície perturba a aranha no seu trabalho. (Agradecendo o pratinho de bolo a Daniela.) Obrigada, Daniela. DANIELA - Mais cedo ou mais tarde, toda a gente sente vontade de fugir para debaixo da mesa. Ai, eu adoro amuar, não incomoda ninguém. Sobretudo quando se amua sem razão. DELFINA - Dantes fazíamos concursos para ver quem amuava mais tempo... DANIELA - Quem ficava mais tempo sem respirar... DELFINA - Qual das duas imitava melhor a rigidez dum cadáver... DANIELA - É mais fácil de olhos arregalados. DELFINA - De olhos fechados, começamos a ver coisas que metem medo ou dão vontade de rir. DANIELA - A Fina aguentava tudo, até bofetadas e beliscões. (Pausa.) Corno é que de tão parecidas nos tornámos tão diferentes? A Fina é o meu marido, percebem? Foi um casamento de conveniência, desses do tempo em que os pais escolhiam os noivos, Por isso tenho tanto prazer em enganá-la. Entorpecido, Álvaro tenta voltar ao seu lugar mas dá uma turra no tampo da mesa. ÁLVARO (gemendo) - Ai, Amélia, magoei-me tanto! BEATRIZ (para Amélia, com malícia, sem maldade) - Queres que lhe aplique o meu tratamento especial? Ainda há água no jarro. AMÉLIA - Não, ele que acorde pelos seus próprios meios. (Pausa curta.) Tem graça, comigo é o contrário. Angustia-me adormecer. Quantos carneiros preciso de contar para entrar no mundo das trevas! (Durante a confidência que se segue, Daniela dá voltas à mesa soltando «mémés» de ovelha e distribuindo «cornos» pelas cabeças dos convivas...) O meu pai dizia: tu és pastora, vais à frente do rebanho, levas um cordeiro recém-nascido debaixo do braço direito. É Primavera e os bichos andam atarantados com o cheiro das flores, fogem em todos os sentidos. Mas tu és pastora e deves levá-los a bom porto antes que a noite caia. Na cama, os lençóis esfriam em vez de aquecerem com o calor do meu corpo e as ovelhas não obedecem ao meu comando, ao meu cão, à minha flauta. Galgam muros, trepam ladeiras, rebolam nas ribanceiras, dançam nas escarpas. E eu perco-lhes a conta, berro desalmada. O meu pai entreabre a porta do quarto: «Vou deixar a luz do corredor acesa. Ainda não contaste os carneiros todos!» Lavada em lágrimas, viro-me para o outro lado. É Inverno. Os carneiros estão fechados no curral. São tantos que quase não têm espaço para respirar. Ouço milhares de corações a bater no meu peito, um bater abafado de lã e de palha. Pastora não, meu pai, que eu hei-de casar com um príncipe. ÁLVARO (surpreendido e assustado com a segurança de Amélia) - Sonhos... é perigoso uma só palavra designar coisas tão distantes. Fechas os olhos e estás no reino da impunidade: os crimes não se castigam, os ódios não envelhecem. Mas pagas por cada sonho que sonhas de olhos abertos.


Daniela vai sentar-se ao colo de Carlos o mais "discretamente" possível. CARLOS (como se percebesse) - O que não se paga, não tem valor. Ou tem um valor improvável, o que vem dar ao mesmo... BEATRIZ (como se Carlos pretendesse atingi-la) - Isso é uma boca foleira. E injusta. ÁLVARO (prossegue cativado pelas suas próprias palavras) - Os artistas já criaram tudo o que era possível pagar. Só nos restam as obras inefáveis... e os crimes. Na noite em que... falhou a luz em nossa casa (Olha para Amélia), adormeci extenuado e sonhei que matava o namorado da Ísis. Um crime sem gesto, bastou-me pensar que o tinha cometido para se tomar irreparável. No instante seguinte, estávamos todos na igreja a assistir ao ofício fúnebre. Dentro do caixão, eu fazia um esforço sobre-humano para não me mexer. Tinha os olhos fechados, de facto, mas não sabia se estava morto para não estragar a cerimónia ou se cerrava as pálpebras para me proteger da luz. Quando deixei de ouvir a voz do padre, senti os passos de alguém que se aproximava e logo uma boca beijar-me na testa e murmurar: «Perdoo-te porque não morreste, nem mataste.» Era a voz da Ísis. (Delfim, que encheu sorrateiramente o prato, devora doçarias. Daniela despenteia Carlos, distraidamente) Tentei abrir os olhos. Não consegui. O cheiro branco das flores dava-me vómitos, uma náusea parecida com a ideia que temos de eternidade. Percebi que o noivo da Ísis só voltaria a ocupar o lugar que lhe cabia naquele caixão, se eu fosse capaz de o tornar presente em cada parte do meu corpo inerte. Primeiro, o ventre brutal duma adolescente, a seguir o pescoço quadrado e as nádegas duras. Depois, senti o pé esquerdo, peixe frio e viscoso, o pé direito atolado no lodo. Moldei as pernas, respirei fundo. (Carlos enxota delicadamente Daniela que lenta não parecer despeitada. Delfina limpa a boca com maníaca aplicação. Bernardo evoca por gestos vários clichés de crime sangrento; Beatriz é a única a observá-lo, divertida) Respirei fundo para encher o peito e chamar o sangue à máquina do coração. Com o suor dos sovacos fabriquei os braços inúteis e as mãos murchas: a direita fechada em punho, a esquerda apontar para o céu. Por fim, consegui pensar uma cabeça sem olhos como sonhara um corpo sem sexo. E nessa altura pude abrir os meus. (Suspende o relato como se esperasse um sinal de aprovação. Retoma num tom menos compenetrado) Portanto, um dia, Os artistas; sonharão por encomenda. (Espirituoso) E ninguém dirá que dormem sobre os louros. CARLOS (disposto a quebrar o tom pedante de Álvaro, cantando brejeiramente) E se dormires De rabo para o ar No olho da rua A culpa é tua A culpa é tua A culpa é tua (Gesto de maestro para incitar os outros a acompanhá-lo) E se cagares De cu às avessas No fundo da fossa A culpa é nossa A culpa é nossa A culpa é nossa (A única voz que se junta à de Carlos é a de Delfina) E se foderes Debaixo da cama Com uma cadela A culpa é dela A culpa é dela A culpa é dela (Bernardo junta-se ao coro. Delfina, meia envergonhada, lenta compor urna atitude grave) E se morreres Como um cão rafeiro


No olho da rua A culpa é tua A culpa é tua A culpa é tua DELFINA (grave) - A Daniela tem razão. Este marido... este casamento... já estava tudo planeado. Algum primo, alguma promessa feita aos pais. Sendo assim, a idade e o feitio não importam. Foram feitos um para o outro. Hoje em dia, os pais não se atrevem a traçar o futuro dos filhos. É pena. (suspira.) Tiravam-lhes um grande fardo das costas... BERNARDO - Eu, por exemplo, namoro com a minha mãe desde o berço, luas ela não assume. Engana-me com o Carlos, engana-me com os alunos, é uma mulher perdida. Até agora, vingava-me com a Ísis... DELFINA (crédula) - Então tu e a Ísis??? A Ísis não tinha vergonha na cara? BERNARDO - Ó Tia Fina, a criada metida com o menino da casa, não acha isso natural? Eu sigo a tradição, hei-de ser padrinho do primeiro filho, tendo conta que podia ser meu. O marido da Ísis trabalha como segurança num banco. Está tudo conversado: abrimos uma conta em nome do bebé e, no primeiro dia de cada mês, deposito um terço da minha modesta mesada... DELFINA (duvidando) - Segurança? Ai, não me cheira nada. Um homem tão franzino!? CARLOS (para Bernardo) - E se o teu bastardo se parecer com a mãe? BERNARDO - Com a dele ou com a minha? CARLOS - Com a dele, sei lá, cabelos escorridos, boca grande... BERNARDO (sem se descair) - Nesse caso, a mamã não reconhece o neto. DELFINA - E o dinheiro? Quem é que fica com acesso à conta? BERNARDO - O dinheiro, Tia Fina, tire daí o sentido, o dinheiro nunca mais o vejo... DELFINA (indignada) - Ó Beatriz, você deixa o seu filho ser levado por um estupor dum segurança, que vive de noite como os ratos e, se calhar, assina de cruz? BEATRIZ (divertida) - O Bernardo é menor. Não abre contas bancárias, tem medo que se pela dos polícias e fecha-se no quarto para a Ísis não o ver nu... DANIELA (beliscando Delfina para ela não responder) - De resto, as histórias que se contam têm muito mais piada do que a vida real. Sabem como é que a nossa mulher-a-dias arranjou um homem a noites? Por anúncio... ÁLVARO (prontamente) - Homem, meia-idade... AMÉLIA - Cabelo negro. BEATRIZ - Não. Madeixas grisalhas, olhos cinzentos. AMÉLIA - Olhos pretos, nariz aquilino. BEATRIZ - Nariz adunco, grandes entradas. AMÉLIA - Bem conservado. DANIELA - Conservado em álcool. BERNARDO - Em formol. DELFINA - Homem, boa aparência, coração de ouro. DANIELA - Procura mulher, bom fundo, cabeça no ar. BERNARDO - Viúvo, filhos criados, procura companheira para estourar a herança da defunta. ÁLVARO (descrevendo-se) - Quadro superior, conhecedor de arte e amador de coisas belas, procura mulher meia santa, meia puta, para fazer dela a musa inspiradora dos seus sonhos. DANIELA (percebendo o truque) - Mulher, idade inconfessável... mas tudo no sítio certo... procura jovem na idade do armário para partilharem a mesma cama. BERNARDO (sem candura) - Só se a Beatriz ficar sentada à cabeceira. ÁLVARO (insistindo) - Empresa bem implantada no mercado nacional procura secretáriaintérprete com experiência na área das relações públicas e carreira no domínio das relações privadas. Discrição assegurada. DANIELA - Se a empresa pretende renovar os quadros, tem que admitir gente nova, com sangue na guelra, para abanar as estruturas. Mas é uma proposta a estudar... por este ângulo.


Amélia, corada até á raiz dos cabelos, está prestes a explodir. Carlos e Beatriz entreolham-se, hesitando em intervir. Daniela levanta-se, contorna lentamente a ponta da mesa, acaricia o rosto de Bernardo e vai sentar-se ao colo de Delfina. DANIELA (dengosa) - O colo da minha mana é um consolo. E há quem diga que o meu também não é de deitar fora. Aliás, ambas temos um instinto maternal extremamente desenvolvido. A Fina poupa, eu ponho a render... ÁLVARO (com um ar aparvalhado) - Ó Bernardo, realmente elas são impagáveis. Amélia vira costas ao marido, tremendo como varas verdes. AMÉLIA (voz trémula, para Carlos) - Realmente, eu não sou "impagável" como a Beatriz. Ela contenta-se com o perfume das amantes do Carlos, com o relato das conquistas do Carlos, com as horas vagas do Carlos, com as horas vagas da empregada do Carlos. É uma espécie de coleccionadora, um arquivo de prazeres puramente intelectuais. (Mais firme) Eu realmente não sou "impagável" como a Delfina. Ela satisfaz-se com o cheiro dos homens da Daniela, com as longas esperas da Daniela, com os troféus de caça (Faz um gesto que evoca um par de cornos) da Daniela, com a empregada que a Daniela paga três manhãs por semana. É uma múmia sepultada no bordel da irmã. (Volta-se para Álvaro) Realmente, eu não sou "impagável" como essa ca-de-la. Ela não cobra nada por escancarar as pernas e dá todas as facilidades de pagamento aos clientes habituais. E as pequenas ajudas de custo não chegam a pagar o desgaste do material. Entre nós, o marido da Ísis já a proibiu de trabalhar para uma patroa abaixo de puta. CARLOS (abismado) - Amélia, pega no casaco, eu levo-te a casa. ÁLVARO (abruptamente) - Não toques na minha mulher que ela não sabe o que diz. CARLOS (duro) - Não achas que já chega de disparates? Vão lavar a roupa suja para o outro lado. ÁLVARO - Eu tenho uma empregada, ela que lave! (Gritando.) A Ísis que lave! A minha mulher está de rastos e põe-me de rastos. A Ísis que trate! Porra! Reservei hotel durante uma semana para poder dormir cm lençóis passados a ferro. E fui obrigado a comprar uma camisa para vir ao casamento da minha mulher-a-dias. BERNARDO (para desanuviar) - O hotel!!! Como é possível não termos pensado no hotel? Ó mãe, mudamos já para o hotel e esquecemos a louça atrasada, a banheira entupida e as compras por fazer. Ainda por cima os pequenos-almoços nos hotéis dão para aguentar sem fome até ao jantar! AMÉLIA (como se rezasse) - Andei eu durante quinze dias mal dormida, a escolher os enfeites parara mesa da boda... até tirei coisas da montra! E ela, armada em grande dama, nem sequer me aparece na loja e resolve encomendar só flores naturais! Perdi horas de sono, perdi o meu tempo... o Álvaro não ajuda nada... Vive obcecado com os investimentos, agora cisma que há-de trocar a nossa aguarela do cais por um desenho a carvão, que desencantou sabe deus onde, e quer que eu convide o dono da galeria para jantar lá em casa. Jantar? A palavra cozinha tira-me o apetite... CARLOS - Eu resolvi o problema: encomendo tudo pelo telefone. DANIELA (ainda sentada ao colo da irmã) - Nós temos o telefone cortado. A Fina ia tendo um ataque quando viu a conta e eu não tenho arranjado tempo para ir pagar. AMÉLIA (mentindo para remediar os anteriores excessos) - Lá em casa, as contas estão-se a acumular. Nem tenho coragem para pensar no que vai acontecer... CARLOS (visivelmente exausto) - É muito simples, ficas sem luz como eu e andas aos apalpões. Felizmente, a conta do telefone vai para o consultório... (Suspirando.) O que mais me custa é não encontrar nada. A Ísis tinha aquela arte de pôr tudo à mão. Como num campo semeado: não se vêem as sementes, mas elas estão lá. Tudo à mão de semear. BEATRIZ (escamoteando seu próprio desvario) - Eu bem digo às minhas colegas: a vida é bela, os maridos é que dão cabo dela. A gente pagou estes anos todos para a Ísis ficar solteira e ela põe-me os cornos com um desconhecido. (Pausa.) Está-se a fazer tarde... BERNARDO (tom didáctico, imitando a mãe) - Por que é que o Carlos é bom rapaz? Porque não é marido da minha mãe. Porque é que a Daniela é boa rapariga? Porque não há marido que a queira. Porque é que a Amélia é uma peste?... DELFINA (cortando-lhe a palavra) - Eu bem a alertei para os perigos desta união? (Pausa) Acho que são horas de ir andando...


BERNARDO (fingindo interesse) - A Tia Fina dava conselhos à Amélia? DELFINA - Não, à Ísis. Eu alertei a Ísis para os perigos deste casamento. BERNARDO - Casamento de conveniência, Tia Fina... A Ísis deu o nó para se livrar de nós. CARLOS - Ui, Bernardo! Tanto bom senso na tua boca até assusta! (Suspira, boceja.) Nós é que estamos em idade de murchar... (Pausa) Pois é... são mais que horas... DANIELA (sonhadora) - Mas há flores... flores pequenas... que rompem o asfalto em plena estiagem. (Levanta-se, volta ao seu lugar, pousa a cabeça em cima da mesa como uma criança prestes a adormecer.) Ai, a grande força do escuro: dorme-se a bem, dorme-se a mal. A justiça do sono toca a todos. DELFINA (espevitada) - Até se castigam as crianças com o sono! DANIELA (ensonada) - Eu nasço sozinha, tu morres sozinha, ele dorme sozinho. Claro que sem solidão não haveria revolta. DELFINA - Que sabes tu de revolta, Dani? Tu só sofres quando te falta o conforto. DANIELA - Tens razão. (Fecha os olhos.) A Ísis tinha razão: nunca é tarde. A cada instante as coisas deixam de ser o que eram. Sacana, quem me dera virar as costas ao patrão com essa facilidade! CARLOS (imitando Daniela, pousa a cabeça no tampo da mesa e fecha os olhos) - Sacana, que não tens nada a perder! ÁLVARO (encostado ao ombro de Delfina) - Mas para sacana, sacana e meio... CARLOS (quase adormecido) - O último a rir, rirá a dormir. DANIELA (com voz empastada) - Cuidado, Ísis! No meio dum sonho, hei-de arranjar maneira de te roubar o marido! (Pausa.) Bom, eu amanhã tenho uma reunião... ao romper da aurora. BERNARDO (inesperadamente atencioso) - A Tia Fina não tem sono? Vamos pedir à Beatriz que nos cante aquela da barca. Canta, mãe, a Tia Fina... DELFINA - A Tia Fina desafina... BEATRIZ (canta) Meu Amor anda embarcado Numa barca sem destino. Ó noite dá-lhe o recado Que me nasceu um menino. Meu Amor anda embarcado Numa barca portuguesa. Ó estrela dá-lhe o recado Que eu finei de tristeza. Meu Amor anda à deriva Sua barca foi ao fundo Se não posso amá-lo viva Será meu no outro mundo. Bernardo cai nos braços de Morfeu com um sorriso nos lábios. DELFINA (muito perturbada) - Ó Beatriz, isso é a sério? BEATRIZ - A sério o quê? DELFINA - A canção? BEATRIZ - A canção era da Ísis. O Bernardo adora ser embalado. Mesmo agora já crescido. E ela fazia-lhe sempre a vontade. (Fechando os olhos.) A Ísis foi um grande mal para nós. (Pausa.) Carlos, não durmas. Onde é que estacionaste o carro? ÁLVARO (sem abrir os olhos) - Delfina, não estou a pesar muito? DELFINA - Por mim, pode pesar à vontade... Todos os pesos fossem esses! ÁLVARO - Eu caio como uma pedra. É como se caísse em mim. DELFINA - Alguém nos empurrou. (Fecha os olhos; boceja) Dormimos sozinhos, mas dormimos ao mesmo tempo...


Todas as personagens mergulharam no sono excepto Amélia que se levanta, roda a cadeira e se senta ficando de costas para a mesa e de frente para o público. Hierática, Amélia olha para a assistência durante uns segundos. Depois iça as pernas, pousa os calcanhares na borda da cadeira e encolhe-se de maneira a caber o melhor possível no assento mantendo urna posição fetal. AMÉLIA (segura) - Do mal o menos. Amélia deixa cair pesadamente a cabeça, forçando-se a adormecer.

ACTO 3 O dispositivo cénico do primeiro acto está agora completamente iluminado. Unia luz crua que revela iodos os apontamentos e adereços do cenário. CENA 1 Salas (6) + (3) + (4) + (2).

No quarto de Daniela, Sónia, 16 anos, a nova empregada, de fato de treino amarelo e walkman nos ouvidos, está a aspirar. Daniela entra no quarto com um postal ilustrado na mão e atira a carteira para cima da cama. Sónia, mais absorvida pela música do que pelas limpezas, abana a cabeça com convicção e conduz o aspirador como se dançasse. A chegada da patroa não parece perturbá-la minimamente. Daniela queda-se uns instantes imóvel aos pés da cama, de postal na mão, olhando fixamente para a bela adolescente com um ar que traduz interesse e espanto. Enquanto isto, Delfina penetra no vestíbulo, dirige-se a passos elásticos para a sala de jantar, pega num maço de correspondência pousado em cima da mesa no topo do qual encontra um postal ilustrado e entra na cozinha onde descobre uma pequena pilha de louça suja amontoada na banca. DELFINA (aos berros) - Ísis! Ísis! Sónia dá-se finalmente conta da presença de Daniela e arranca o walkman dos ouvidos. SÓNIA (ouvindo os gritos de Delfina. Num tom de desprezo.) - Foda-se! Eu chamo-me Sónia. DANIELA (meia ausente) - A Ísis também não se chamava assim. Lá terá encontrado aquele nome num romance barato... Com o queixo apoiado no cano de metal do aspirador, Sónia olha de relance para o quarto com uma expressão altiva e dá a limpeza por acabada. Saca um cigarro do bolso das calças, acende-o e deita o fósforo gasto para dentro duma caixa de jóias pousada na esquina da cómoda. Com a mão livre, puxa pelo aspirador e dirige-se para a porta. SÓNIA (virando o rosto para Daniela) - Em vez de comprar tantos boiões de creme contra as rugas, você devia mas era arranjar um aspirador novo. Cá em casa, anda tudo a pedir reforma. (Suspirando) Bom, vou atender a sua irmã, antes que ela fique sem voz. Daniela vai retorquir mas contem-se, fazendo de conta que lê o postal. Na cozinha, Delfina acaba de lavar a loiça do pequeno-almoço e está a limpar colheres de chá. Sónia entra na cozinha a fumar, arrastando o aspirador com o tubo entre as pernas como uma criança montada num cavalo de vassoura. SÓNIA (insolente) - Então, Dona Fina, está-se a sentir mal? DELFINA (ríspida, limpando as mãos ao pano de cozinha) - Faltam duas colheres de prata. Este faqueiro é muito valioso. A minha mãe herdou-o da minha avó. SÓNIA (com desprezo) - Chiii! Que velharia! Eu não mexia o açúcar com uma porra dessas. DELFINA (ríspida) - Faltam duas colheres de prata e a casa não tem buracos.


SÓNIA (elevando a voz como se estivesse exaltada) - Olhe, Dona Fina, escusa de olhar para mim com esses olhos que eu não sou ladra. E não admito que me fale com maus modos! (Mais mansa, quase ingénua) Ainda por cima, quem é que ia roubar umas colheres pretas pesadas como chumbo? DELFINA (ríspida) - Estão pretas porque não as enxugas com um pano. Onde é que param as duas colheres? A casa não tem buracos. SÓNIA (sacudindo a cinza para o chão. Num tom de convincente exaltação) - Se quiser pode-me revistar. Você revista as minhas coisas, paga-me o mês e eu ponho-me a andar. Não falta quem me queira. Daniela atravessa a cozinha rapidamente, mantendo-se alheia à conversa. DELFINA (um pouco menos dura) - Mas, ó Sónia, as colheres não têm pernas, não desaparecem por magia. SÓNIA - Podem ter ido para o lixo com as revistas da menina Daniela. Ela acumula tanta tralha na mesinha de cabeceira. Sei lá. Ninguém faz nada de propósito... Daniela está na casa de banho, sentada na sanita, a urinar. Não descola os olhos do texto do postal. Delfina renuncia a discutir com a empregada, volta à sala de jantar e instala-se numa cadeira para ler a correspondência ‒ prospectos e contas para pagar. A leitura do postal fica reservada para o fim. Sófia larga o aspirador no meio da cozinha e dirige-se para a casa de banho. Carrega mecanicamente no interruptor ‒ apagando a luz e deixando Daniela às escuras ‒ e tenta abrir a porta manipulando a maçaneta com brutalidade. DANIELA - Ó Fina, estás assim tão aflita? Acende-me a luz! SÓNIA - Desculpe lá. É que eu estou mesmo aflita. Preciso de sair mais cedo porque marquei uma consulta no... médico da pele. Para tirar um sinal que tenho nas costas. DANIELA (estarrecida) - Mas a banheira, o lavatório, o chão... fica tudo por limpar...? SÓNIA - E então não era isso que eu vinha fazer? Daniela desiste de perceber, abre a porta e puxa pelo autoclismo. Sónia aproxima-se do lavatório, tira um pente da prateleira de vidro colocada sob o espelho e começa a pentear-se. Mira longamente o penteado, abeira o rosto do espelho e espreme uma espinha no meio da testa. Abre a cortina do chuveiro, pega num balde, põe a água a correr e espera que o recipiente esteja cheio, sentada na sanita. Daniela observa os gestos da adolescente durante alguns instantes e sai precipitadamente para não explodir. DELFINA (irritadíssima) - Está-se a passar das marcas! (Daniela entra na sala de jantar) Eu não encomendei nenhum pulverizador super especial. Cá em casa, sempre se limparam os vidros com água e sabão. DANIELA (sem saber se há-de rir ou participar na cólera da irmã) - Isso deve ter sido a miúda. Lá meteu conversa com um vendedor... os sujeitos que andam a vender de porta em porta. DELFINA - Vou-lhe descontar este dinheiro ao fim do mês. DANIELA - Descontar como? Ela compra o pulverizador, ou lá o que é, para lavar as janelas da tua casa. (Curiosa.) Já leste o postal da Ísis? DELFINA - Quero lá saber da Ísis. Quero é saber onde é que enfiaste as colheres que faltam no faqueiro da avó? DANIELA - Ó Fina, não me chateies. As colheres de chá... sei lá das colheres de chá. Se calhar a Sónia levou-as para mandar fazer um par de brincos. A culpa é tua. Passas a vida a falar do valor disto e do preço daquilo. (Falsamente apaziguadora.) Então a Ísis escreve-te e tu vais deitar o postal ao lixo junto com os prospectos e as cartas do banco? DELFINA - Escreve-me porque se lembra de mim. Não é por acaso, é porque pensa em mim. DANIELA - Francamente, se eu estivesse em Jerusalém, tinha mais em que pensar. DELFINA (decepcionada) - Como é que sabes donde vem o postal? DANIELA - Porque ela também mandou um para mim. DELFINA - No meu, só diz «Delfina». DANIELA - Pois, enviou outro, à parte. (Impaciente) Portanto, ainda não leste?... DELFINA - E que é que ela diz? Mal de mim não diz, senão já mo tinhas lido. DANIELA - No cabeçalho vem «menina Daniela»...


DELFINA - É chamar os bois pelos nomes. DANIELA - Tenho a certeza que a ti pôs «Dona Fina». DELFINA (despeitada) - Só mostra que tem respeito por mim. DANIELA (encolhendo as palavras) - Efectivamente, tu inspiras imenso respeito (Sónia entra na sala de jantar de balde a pingar na mão) às empregadas. SÓNIA - Dona Fina, a banheira está quase entupida. Consegui esvaziá-la... a custo. É dos cabelos da menina Daniela... (Pausa) Quer que vá à rua procurar o canalizador? DELFINA - Nem pensar. Vais fazer a minha cama e adiantas o almoço. (Lembra-se de que Sónia não sabe cozinhar.) Não. Não toques nos tachos. Passa a ferro que há um monte de roupa atrasada. E não me pingues a casa toda com esse balde. Sónia retira-se vagarosamente e dirige-se para o quarto de Delfina, sempre de balde a pingar. DELFINA - Ó Daniela, podias ter mais cuidado. São os pedaços de algodão da maquilhagem, são os lenços de papel por toda a parte e agora os cabelos a entupirem a banheira. Daniela, de novo perdida na leitura do postal, não chega a ouvir as recriminações da irmã. DELFINA (levantando-se e sacudindo a irmã) - Que tens? É moiro na costa? DANIELA (sonhadora) - Não é moiro, é esta moirama. Os minaretes, as casas cor de areia... A Ísis diz que se morre de prazer com tanto calor. Deve estar preta como o chocolate. DELFINA - Pois, pois, tu dás cabo do cabelo a lavá-lo todos os dias e ela estraga a pele na torreira do sol. DANIELA (alhures) - Imagina tu que foi contratada para fazer uma figuração. Um anúncio que vai passar na televisão israelita. A cara toda tapada com um véu negro, só se lhe vêem os olhos. DELFINA (duvidando) - Ela conta esses pormenores no postal? DANIELA - Mais ou menos. O tema era uma linha de sombras para os olhos. Percebe-se logo. Só difundem o programa daqui a umas semanas. Mas ela diz que lhe deram umas fotografias para recordação. Sónia fez a cama de Delfina às três pancadas. Arvorando um ar de extrema lassidão, pega no balde, e vai largá-lo no meio da casa de banho. Depois volta a colocar o walkman nos ouvidos e atravessa sorrateiramente a sala de jantar sem se deter, mas escutando com interesse a conversa das patroas. DELFINA - Eu não tinha coragem de pintar as trombas para serem mostradas num país desconhecido. E o marido não se zangou? DANIELA - O marido? Ela nem fala do marido. (Citando) «Foram horas de massagens faciais em frente ao espelho». DELFINA - E o marido não assistiu? DANIELA - O marido recebeu a massa, com toda a certeza. DELFINA - E achas que é bem pago? DANIELA - Bem pago? A peso de ouro, queres tu dizer. Olha bem para o postal. Aquilo lá é o luxo do Oriente. O que é que pensas que os cruzados foram roubar a Jerusalém? As relíquias? Uns farrapos, meia dúzia de ossos e uma data de pó? Não me lixem! Foram mais os perfumes, as jóias, as sedas, os tapetes. (Suspirando) Nem me apetece ir trabalhar. DELFINA - Almoças comigo? DANIELA - Não. (Voltando à realidade.) Merda, o patrão marcou encontro à uma em ponto. Tenho meia hora para me arranjar. (Olhando de novo para o postal) O Fina, tu não achas que eu sou mais fotogénica do que a Ísis? Sem esperar pela resposta da irmã, eclipsa-se. Entretanto Sónia, pouco disposta a cumprir à risca as ordens de Delfina, enfiou-se no pequeno quarto de Daniela e começou a experimentar as roupas espampanantes da patroa, tomando poses de Cinderela moderna. Delfina, sozinha na sala de jantar, senta-se de novo à mesa e lê avidamente o postal de Ísis. Daniela abre a porta do quarto c dá de caras com a empregada muito compenetrada numa atitude infantil, quase cómica. DANIELA (espumando de raiva) - Com que então cá em casa está tudo a pedir reforma? E tu (Aproxima-se de Sónia.) estás a pedir despedimento, minha sirigaita?!


SÓNIA (fazendo-se desentendida) - Mas eu... mas eu estava só a arrumar a roupa da menina Daniela. A menina Daniela deixa tudo espalhado pelo chão... DANIELA (gritando) - Olha, Sónia, comigo não te armes em sonsa. Eu não nasci ontem e detesto que façam de mim parva (Imitando Sónia) «A arrumar a roupa da menina Daniela». É como o ladrão apanhado a tentar abrir a carteira duma transeunte que se desculpa explicando que estava a verificar se a mala estava bem fechada. SÓNIA (num misto de protesto e de queixume) - Você é que não fecha bem da mala. Todos me disseram isso. E eu que até tenho tido paciência... DANIELA (gritando) - Todos disseram o quê? (Arrependida de entrar no jogo de Sónia. Ainda aos berros mas num tom de desprezo) Tu julgas que eu dou crédito aos mexericos duma sirigaita que ganha a vida a limpar a merda dos outros? Estás redondamente enganada, Sónia. Eu posso ter o quarto desarrumado mas já há muito que arrumei a minha cabeça. SÓNIA (insolente) - Pronto, vou-me embora. (Espera por uma reacção que não vem) Tenho este mês a receber. DANIELA (gritando) - Era o que faltava! Andas a fazer o enxoval à custa da prata da casa e agora queres receber o mês por inteiro quando ainda estamos no dia 3? SÓNIA (insolente) - Foda-se! Você ainda é mais unhas-de-fome do que a sua irmã. Delfina atraída pelos berros acorre ao local do conflito. Percebe-se que ouviu a última parte da conversa e que tem dificuldade em disfarçar o seu íntimo contentamento. DELFINA (tentando provara sua autoridade de «dona da casa» e humilhar indirectamente Daniela) - Então, meninas? Não estamos na lota. (Para Sónia) Desanda da minha vista. Tens um monte de roupa para dar a ferro. (Sónia retira-se, triunfante. Para Daniela) A Ísis diz que os homens são uns mãos largas. Pousas o olhar em qualquer coisa, logo te querem oferecê-la. E não cobram. Enfim, outros costumes, gente menos bárbara. DANIELA - Menos bárbara? E o tráfico de carne branca? DELFINA - Ora, isso só cá é que acontece e só acontece a quem anda na má vida. (Suspirando) Terra Santa! Lá as mulheres são mulheres a tempo inteiro. Aqui somos todas mulheres em parttime. DANIELA - Ó Fina, uma dirigente sindical não fala assim... DELFINA (falsamente modesta) - Dirigente não. Delegada. (Pausa) Que lata! És a rainha dos amarelos, a primeira a furar as greves e tens o desplante de trazer à baila o sindicato. (Pausa) Isto é um assunto privado. O postal da Ísis é um assunto privado... está escrito num tom muito íntimo (Citando) «Vogo ao sabor da corrente dos meus desejos.» O que é que ela fez para merecer... eu tenho feito tanto para merecer o pouco que tenho... DANIELA - Fazes muito mas sonhas pouco. Dormes em cama estreita enquanto a minha (Aponta.) é de casal para lá caberem os meus sonhos. DELFINA (citando) - «É como se urna mão invisível conduzisse os meus passos no escuro.» Enquanto Delfina fala, Daniela acaba de se preparar para sair. Eficaz embora sem convicção. Sónia, na cozinha, montou a tábua de passar a ferro com a indolência estudada de quem está a fazer horas. DANIELA (apressada) - Se queres boleia, anda. Deixo-te na Baixa. DELFINA - Não te parece felicidade de mais para uma só mulher? DANIELA (apressada) - Se queres boleia, despacha-te. Não posso chegar atrasada. Delfina e Daniela atravessam a casa cm direcção ao vestíbulo. DELFINA (perturbadíssima) - Soa a falso. (Apressando o passo para acompanhar a irmã) Quando vejo um casal a beijar-se no jardim... à frente de toda a gente... também não acredito. Tenho a impressão de que estão a fazer de conta... para os outros. DANIELA - Eu, nesse caso, desvio os olhos. DELFINA - Eu não. Fico hipnotizada. DANIELA (abrindo a porta) - Ficas... não descansas enquanto não os pões à rasca.


Ambas saem. Sentindo a porta bater; Sónia arruma rapidamente a tábua, o ferro, a roupa. Volta a colocar os auscultadores nos ouvidos e tira de debaixo da camisola do fato de treino uma revista e um postal ilustrado. CENA 2 Salas (5) + (3) + (4) + (6) + (1) + (2).

Sentada à mesa da cozinha, com o walkman nos ouvidos, Sónia está a ler um magazine ilustrado. Carlos penetra no vestíbulo, passa pela sala de jantar, procura em vão o correio habitualmente pousado em cima da mesa. Sónia fecha a revista e começa a ler um postal ilustrado. Carlos entra na cozinha e apanha a nova empregada em flagrante delito de leitura do correio alheio. Não sabendo como reagir, Carlos abre a porta do frigorífico com um gesto brusco, um pouco para denunciar a sua presença. CARLOS (de costas para Sónia) - O que é que há para almoçar? SÓNIA (tirando os auscultadores) - Diga? CARLOS (virando-se para Sónia) - O que é que há para o almoço? SÓNIA (com uma familiaridade que deve soar estranha) - O Carlos é que sabe o que lhe apetece. Eu nunca tenho fome... você é que é muito exigente na comida. CARLOS (tolerante) - Como qualquer coisa, estou com uma fome de cão. SÓNIA - Isso é o que o Carlos diz sempre. Mas depois põe defeitos em tudo. CARLOS (irritado) - Ó Ísis, além de cheio de fome, estou cheio de pressa. Tenho uma cliente importante ao princípio da tarde. SÓNIA (sublinhando) - Eu-cha-mo-me-Só-ni-a. CARLOS - Pois, a Ísis também não se chamava assim. É uma deturpação do nome verdadeiro. Só que toda a gente se habituou a Ísis, e ninguém conhece o outro. SÓNIA (agitando o postal numa pose de clara provocação) - Ela escreveu-lhe... do estrangeiro. CARLOS (de novo irritado) - Pois. Eu reparei que tu andas a ler a minha correspondência. SÓNIA (dengosa) - Quem escreve postais não guarda segredos. (Pausa.) Posso ficar com ele para a minha colecção? CARLOS (irritado) - Ó Sónia, não abuses. SÓNIA (dengosa) - O Senhor Doutor é que quer abusar de mim. CARLOS (achincalhando) - Preciso de comer, preciso de rever um dossier, não posso... perder tempo. SÓNIA (dengosa) - Mas olhe que nem todos os dias eu acordo tão bem disposta. CARLOS (agarrando brutalmente no braço de Sónia que ainda não largou o postal) - Então vamos a isso depressa senão também perco o apetite?... Carlos arrasta Sónia ‒ que se faz dócil e mole como uma boneca de trapos ‒ para o quarto dos hóspedes contíguo à cozinha. SÓNIA (sentada em cima da cama) - Ai, aqui não que a cama é estreita de mais! Traz má sorte... eu não quero ficar solteira. (Experimentando a moleza do colchão.) E não gosto de coisas moles. CARLOS (meio divertido, meio zangado) - A minha cama serve-te? Cabe lá um regimento de cavalaria... SÓNIA (dengosa) - Não sei. Só experimentando. Carlos encaminha-se para o seu quarto que fica na outra ponta da casa. Sónia segue-o, sem se apressar, abanando o postal como um leque. CARLOS (sentado na cama para Sónia que se quedou encostada ao umbral da porta) - O postal é meu. Podes ficar com a revista. SÓNIA (insolente) - É barata a feira! Acho que não ganho nada com o negócio. (Abanando o postal.) Ainda por cima, está-me a dar o apetite... CARLOS (desconcertado) - Pode-se saber que género de apetite?


SÓNIA - Sei lá... apetite de coisas que nunca provei. CARLOS (sem se render totalmente à evidência do jogo) - Nunca me disseste de que é que já provaste... SÓNIA - O senhor Doutor nunca me convidou para comer fora. CARLOS (subitamente agastado) - Comer fora de quê? Fora do prato como as cadelas? SÓNIA (simulando indignação) - Eu não sou nenhuma puta. CARLOS - Nem podias ser. Quem te dera... Precisas de comer muita sopa para estares à altura de ser uma puta... em condições. Pretensamente ofendida, Sónia sai precipitadamente e vai-se fechar à chave na casa de banho. Indiferente à atitude da Sónia, Carlos deita-se na cama e fica a olhar para o tecto como se esperasse um desenlace razoável. Na casa de banho, Sónia dá um jeito ao cabelo e faz caras a olhar para o espelho. Silêncio. SÓNIA (farta de aguardar uma reacção de Carlos) - Podíamos encomendar... pelo telefone... uma comida fria... é muito chique... e champanhe para acompanhar. CARLOS - E para o cu não vai nada? SÓNIA (encostado à porta da casa de banho) - Para o cu, vê-se depois. Não se pode comer e foder ao mesmo tempo. CARLOS (informado) - Isso é o que tu julgas. Eu não te dizia que tens muito que aprender? SÓNIA - Eu estava a falar das pessoas normais. Você não é muito normal. CARLOS - Se fosse muito normal, tu estavas no olho da rua... a aprender a ser puta. Foder, foder não é preciso aprender. As cadelas nascem ensinadas. Mas fazer amor... SÓNIA (informada) - Oi! Você acha que é preciso ser rico para ler revistas pornográficas e o jornal do sexo? CARLOS (retomando sem lhe dar troco) - Fazer amor... eu estou sempre a fazer amor. Quando se começa, não se pára. Quer dizer, só paro para foder. E fico arrependido. SÓNIA - Com essa conversa porca, não percebo como é que você ainda tem clientes. Com essas ideias... CARLOS - Com estas ideias é que eu arranjo mais clientes. E não é a saltar-lhes para a espinha. (Satisfeito consigo próprio.) Toda a gente tem confiança num homem cheio de apetite, cheio de aventuras. Um homem sem poiso certo não faz mal a ninguém. Um homem com fome consegue fazer das tripas coração. SÓNIA - Tenho a certeza que já meteu na cadeia pessoas menos perigosas do que você. CARLOS (rindo) - A minha profissão não é meter as pessoas na cadeia. Aliás, a maior parte das pessoas vão parar à cadeia porque querem. Como tu que te fechaste na casa de banho porque profundamente sabias que estavas a passar das marcas. SÓNIA (não se deixando embrulhar) - E quem é que marcou as marcas? Eu não escolhi ser criada. Queria ver se você tinha o apetite que tem se andasse a limpar a merda dos outros. Queria ver se você tinha tanta conversa se olhassem para si como para um monte de merda. CARLOS (rindo) - Eu não olho para ninguém como se fosse um monte de merda. SÓNIA - Mas não se importa de foder com a criada. Foder, foder, não tem nada que se lhe diga. Ao preço que as criadas agora levam, você até acha que paga bem porque eu ainda não aprendi o suficiente para ser uma puta em condições. E até se zanga se eu não me deixar comer depressa porque fazer amor só com a papelada. (Pausa) Esta do postal é que tem razão. Pôs-se a andar antes que os patrões a comessem viva. CARLOS (incomodado) - Devolve-me o postal. Armares-te em vítima não te dá o direito de... SÓNIA - Você atirou-se a ela como se atira a mim? CARLOS (gritando) - Devolve-me o postal. SÓNIA - Isto não parece escrito por uma criada. CARLOS (insistindo) - Isso é propriedade privada. E eu não sou propriedade tua. SÓNIA - Com que então eu fechei-me à chave porque sabia que estava a passar das marcas? (Pausa) Mas eu posso sair daqui quando me apetecer. Se tiver fome, por exemplo. Você é que está trancado no quarto.


CARLOS - Eu não acredito que isto me está acontecer. Ísis! SÓNIA - No fundo, sou boa rapariga. Sou menos filha da puta do que me pintam. Até lhe vou ler o postal. Chegue-se à porta para eu não ser obrigada a berrar. CARLOS - Uma analfabeta fechada na casa de banho a ler... contado ninguém acredita. SÓNIA - Porte-se bem, Dr. Carlos. Olhe que tem uma cliente importante à sua espera... Carlos levanta-se, vai até ao vestíbulo e senta-se no chão com o ouvido encostado à porta. CARLOS (o mais serenamente que consegue) - Sou todo ouvidos. SÓNIA - Vamos fazer um jogo. CARLOS - Que jogo? SÓN IA - A ver se você consegue adivinhar donde vem o postal. Tem três hipóteses. CARLOS - De Paris. SÓNIA - Ui! CARLOS - De Roma. Silêncio. CARLOS - De Madrid. Não. De Santiago de Compostela. SÓNIA - Perdeu. (Pausa) Agora para continuar a jogar tem de enfiar uma nota de mil por debaixo da porta. CARLOS - Merda. SÓNIA - É pegar ou largar. (Pausa.) Pronto, eu volto daqui a dois dias. Prometo que vou fazer um banquete à maneira... à maneira daqueles que a Ísis anda a comer lá na terra dos moiros. CARLOS (enfiando uma nota de mil tirada do bolso das calças, pela frincha) - Já adivinhei. Vem de Marrocos. SÓNIA - Não faço ideia onde é Marrocos, mas o carimbo diz Jerusalém. CARLOS - Nunca foste à missa? SÓNIA - O quê? CARLOS - Se fosses à missa, sabias o que é Jerusalém. SÓNIA - Não vou à missa, vejo televisão. É um país onde andam à pedrada uns aos outros, não é? (Pausa) Foda-se! Não gabo o gosto desta gaja. CARLOS - Lê lá o postal, porra! SÓNIA - Pronto. Reza assim: «Jerusalém, Maio de 1993. Dr. Carlos, ontem lembrei-me muito de si. Provei uma especialidade à base de ovos de peixe. Era uma papa cor de carne, linda que até custava comê-la.» CARLOS - Ai que vou desmaiar com fome. SÓNIA - Espere que o prato principal ainda está para vir. «Depois serviram-nos carpa recheada. É tão bom como passear de manhã à beira-rio. Há quem ache que sabe a lodo, mas tenho a certeza que o Dr. Carlos não se consolava com uma dose.» CARLOS - Estás a inventar. SÓNIA - E eu era capaz de inventar um disparate destes? CARLOS - Não. Tu não inventas, imitas. E não vais sequer até ao fim da imitação. SÓNIA - Eu imito muito bem, sem dar a entender o que estou a imitar. (Imitando Carlos e imitando-se a si) Imitar não tem nada que se lhe diga. Difícil é variar no que se imita. Estou sempre a imitar, só paro para mentir. E fico arrependida. CARLOS (cansado de argumentar) - A Ísis não diz mais nada? SÓNIA - A Ísis diz: «Fiquei com as receitas.» CARLOS - Haverá carpas à venda no mercado? SÓNIA - «Embora não possa trazer o resto...» CARLOS - Que resto? SÓNIA (com desprezo) - Ora, que resto?! Aquilo que não se imita. Os gajos à pedrada. Não conhece a história da sopa de pedra? Deve haver muito disso por lá. Calhaus, muitos calhaus. (Lendo) «Tantos dias longe da cozinha, as minhas mãos nem parecem minhas. Comer as maravilhas que os outros fazem para nós abre o apetite.» (Pausa) E que género de apetite? CARLOS - Ela não tem merda na cabeça como tu.


SÓNIA - Quem lhe dera a ela ter a minha cabeça? Eu ao menos não estrago as mãos na cozinha. «Cumprimentos a todos.» CARLOS - Há alguma coisa que se coma nesta casa? SOMA - Leite concentrado na porta do frigorífico. Laranjas na fruteira. Chocolate na minha carteira. CARLOS - Não tenho idade para essas coisas. SONIA - Nunca é tarde para fazer dieta. Quem come pouco, faz pouca merda. CARLOS (olhando para o relógio) - Vou chegar atrasado ao escritório. Dá-me o postal. SÓNIA - São mil... pela leitura. CARLOS - Dou-te cem. (Enfia a nota pela frincha.) Fiquei sem comer. (Divertido.) Hás-de pagálas todas juntas. (Ergue-se.) SÓNIA (berrando) - O Carlos até gosta. CARLOS (preparando-se para sair) - Gosto de não foder com uma mulher. Detesto perder uma refeição. A mulher fica para depois, a comida não se adia. (Sai de casa.) Percebes, Sónia? CENA 3 Salas (4) + (1) + (6) + (5).

Mal a porta bate, Sónia sai da casa de banho e precipita-se para a cozinha. Abre o frigorífico, tira urna travessa de carnes frias e vai instalar-se à mesa da sala de jantar. Manifestamente esfomeada, devora com apetite a refeição tardia. Bernardo entra em casa a assobiar e espreita para dentro da sala de jantar. BERNARDO - Estás a comer as carnes que a mãe guardou para mim no frigorífico? SÓNIA (neutra) - A comida não tinha letreiro. BERNARDO - E desde quando é que almoças cá em casa? O teu serviço é de tarde. SÓNIA - A Dona Beatriz disse que eu podia servir-me à vontade. (Continua a comer. Com a boca cheia) Aliás, hoje vim mais cedo, porque o Dr. Carlos não tinha tempo para comer comigo... Cheguei aqui em jejum. Para adiantar as roupas... passar a ferro. (Suspira.) Sois todos uns mal agradecidos. BERNARDO - A roupa? Desde que eu queimei um braço com o ferro, quando era pequeno, ninguém passa nada cá em casa. Vai tudo para a engomadeira. SÓNIA (mudando de assunto) - Então não se senta para petiscar qualquer coisa? Julguei que estava com fome... BERNARDO (começa a enervar-se) - Não, tenho sede. (Arreganhando os dentes.) Estou-te cá com uma sede. (Pausa. Autoritário.) Faz-me um sumo de laranja. SÓNIA - Não há laranjas. BERNARDO - Há sempre laranjas na fruteira. SÓNIA (erguendo-se com a travessa vazia na mão) - A sua mãe esqueceu-se de comprar. Beba água da torneira. Beatriz chega a casa a cantarolar. BEATRIZ (bem disposta) Meu amor anda embarcado Numa barca portuguesa... Sónia! Já te disse que não deixasses a porta do quarto de banho aberta. Incomoda-me chegar a casa e dar de caras com o trono vazio. SÓNIA - É que eu ia começar pela casa de banho. Até tinha enchido o balde. BEATRIZ - Não havia nada no correio? SÓNIA - Que eu saiba... BERNARDO - A Ísis escreveu-nos um postal.


BEATRIZ - Onde é que ela está? SÓNIA (para agradar) - Em Jerusalém, Dona Beatriz. BEATRIZ (estupefacta) - Como é que sabes? SÓNIA (atrapalhada) - Tenho namoro com o carteiro. BEATRIZ (indignada) - E o carteiro lê a nossa correspondência?! BERNARDO - Não atrapalhes a rapariga. (Dá um beijo a Beatriz.) Tudo se explica. (Inventando à medida que vai explicando.) Eu e a Sónia estávamos a ler o postal no preciso instante em que tu chegaste. (Malicioso.) Acabas sempre por interromper qualquer coisa. (Suspira.) Feitios. SÓNIA (muito depressa) - Ó Dona Beatriz, o menino Bernardo está a fazer de propósito. Ele gosta de a ver zangada. BERNARDO (simulando fúria) - Não mintas, Sónia. SÓNIA (para Beatriz) - Ele só está bem a picá-la. Não ligue. BERNARDO (para Sónia) - Ai queres brincar às queixinhas? (Formal. Para Beatriz.) Mamã, a Sónia comeu a carne toda. E deu sumiço às laranjas. E fechou-me no quarto escuro. Não sei quais eram as intenções dela. SONIA (decidida) - Eu não ganho para aturar chanfrados. Vou-me embora. BEATRIZ (suplicante) - Ó Ísis, não vás. Tens... SÓNIA - Porra! Eu chamo-me Só-ni-a. BEATRIZ - Desculpa. É o cansaço... são os nervos. A Ísis também não se chamava assim. Era o nome duma gata que ela tinha. A gata morreu, a dona ficou com o nome da bicha. Em sinal de luto. SÓNIA (com desprezo) - Outra chanfrada. (Pausa. Impaciente) Tenho a receber este mês. BEATRIZ (repreendida) - Mas eu paguei-te há três dias!? BERNARDO - Ó mãe, não vês que estamos feitos um com o outro? Precisamos de pasta. Para vazar daqui. Partir, desaparecer. É o que a Ísis diz no postal. BEATRIZ - Onde é que está o postal? BERNARDO - Comi-o. BEATRIZ (em tom de ameaça) - Bernardo! BERNARDO - Verdade. Quer dizer, deitei-o fora. Rasguei-o e foi pela sanita abaixo. Beatriz repara que Sónia está deleitada com o espectáculo da discussão. BEATRIZ - Sónia, vai limpar o pó do meu quarto. SÓNIA - Eu despedi-me. BEATRIZ (autoritária) - Aqui quem despede sou eu. Não te armes em vidrinho de cheiro. Toma conta do teu serviço. Ou queres que eu ande atrás de ti a ver se o trabalho é feito como deve ser? SÓNIA (num tom de docilidade calculada) - É só por ser para a Dona Beatriz. (Afasta-se) Tenho imensa pena de si. (Afasta-se) Se tivesse um filho como o seu, punha-o fora de casa. Sónia dirige-se para o quarto de Beatriz, abre uma gaveta donde tira um álbum de fotografias e começa a folheá-lo sentada na cama. BEATRIZ - Bom, meu menino, dá-me o postal e desanda para o teu quarto. Tens muito que estudar. BERNARDO - O postal foi pelo cano. (Pausa) Mas aprendi o texto de cor. BEATRIZ - Não acredito. BERNARDO - Bem sabes que a minha memória é de elefante. Como tenho o cérebro pouco ocupado, tudo o que leio fica aqui (Aponta para a cabeça) escrito. BEATRIZ - Pena não aproveitares os miolos para fins mais úteis?... BERNARDO - Chamas inútil a decorar um texto que se perdeu no esgoto? (Pausa) Para mais, esqueço tão facilmente quanto aprendo... BEATRIZ (capitulando) - O.K. Bernardo. É mais um jogo. Se não começas imediatamente, não entro. BERNARDO (muito sério) - A origem da missiva é Jerusalém. «Partir, desaparecer. Habituei-me depressa a viajar. Parece que nunca fiz outra coisa na vida, eu que só conhecia os passeios a pé. Ao fim de cada dia, colo os bocados daquilo que encontrei pelo caminho, mas falta sempre um pedaço. Durmo bem nas camas estranhas como o peixe dorme no rio e durante a noite continuo a viajar.


Que bom não ter família nem terra à minha espera. Tudo morto para trás e para a frente nada sei. Porte-se bem e dê cumprimentos às pessoas que ainda me querem bem.» Bernardo tem olhos rasos de lágrimas. Beatriz, impressionada, engole sucessivas vezes as palavras que lhe queimam a língua. BEATRIZ (de mansinho) - Ela não podia escrever um postal assim. Inventaste, não foi? BERNARDO - Não, juro-te. (À beira duma crise de cólera.) Ela lê nos meus pensamentos. Ela enfeitiçou-me. Ela roubou-me a alma. Depois disto, nenhum desejo me pertence. As mulheres são mesmo fodidas... muito alegres quando nos vão parir... até se esforçam... mas nunca nos deixam nascer. BEATRIZ - A Ísis nunca diria: «Porte-se bem, Beatriz.» (Pausa) Mostra-me o postal. Após uns segundos de hesitação, Bernardo tira o postal do bolso das calças e entrega-o meio amachucado à mãe. Silêncio. BERNARDO - Só te menti num pormenor. As palavras não eram para ti. (Silêncio) Mas o jogo continua. Tenho mais um postal (Tira-o do outro bolso) de Jerusalém. Dou-te cinco minutos para aprenderes de cor o que está escrito. (Não a deixa retorquir) Ou fazes isso por mim ou quebro tudo. Tu é que estás sempre a falar de partilhar o melhor e o pior, Já gastámos o melhor que era a Ísis, resta-nos aguentar a peste da Sónia. (Pausa) Vou para o meu quarto. (Pausa) Quanto mais longe desse monstro... Sozinha, concentras-te e decoras num instante. Bernardo vira costas sem admitir réplica, dirige-se para o quarto pequeno, estende-se em cima da cama e fica a olhar fixamente para o tecto. Sónia fecha o álbum de fotografias e limpa o pó do quarto de Beatriz com displicência. Beatriz, de pé, lê atentamente o postal. A seguir, fecha os olhos e repete o texto palavra por palavra, em voz baixa, com o postal encostado ao peito. Sónia dá a limpeza por suficiente e aparece à porta da sala de jantar. SÓNIA (muito alto) - E agora, Dona Beatriz? BEATRIZ (sobressaltada) - Vais fazer o mesmo no quarto do menino Bernardo. E diz-lhe que pode vir ter comigo. SÔNIA - E a casa de banho? BEATRIZ - Fica para depois. SÓNIA - Depois são horas de eu ir embora. BEATRIZ (definitiva) - Cá nos havemos de arranjar com a nossa porcaria. SÓNIA (num tom afável) - A Senhora não é obrigada a lidar com a merda. É para isso que eu aqui estou, não é? BEATRIZ (pelos cabelos) - Será que tu consegues passar despercebida? Será que tens de aparecer quando não és precisa, falar quando não foste chamada, responder quando ninguém te perguntou nada? Põe-te no teu lugar, Sónia, põe-te no teu lugar. SÔNIA (virando costas) - E onde está ele? Vocês ocupam os lugares todos! Sónia dirige-se para o quarto de Bernardo e cruza-se com este último que atravessa em sentido contrário. SÓNIA - O quarto está livre? BERNARDO - Porquê? Fazes tenção de me tirar a cama como me tiraste a comida? SÓNIA - A cama é dura demais. Condiz com a sua cabeça. BERNARDO Ao menos posso andar às cabeçadas nas paredes... SÓNIA (afastando-se) - Pois é. Há quem não pague as cabeçadas que dá. Bernardo está agora na sala de jantar e fita Beatriz numa atitude de expectativa. BEATRIZ - Varreu-se-me tudo. BERNARDO - Faz um esforço. BEATRIZ - Não consigo. BERNARDO (duro) - Tens medo de dizer aquelas palavras em voz alta. Não és capaz de ficar nua. Quem te quer nua, é obrigado a arrancar-te a roupa. BEATRIZ - Nua estou. Despida nunca. Não tenho feitio para estátua.


BERNARDO - Mas adoravas que te fizessem muitas estátuas. Havias de lhes pôr defeitos, claro. Achas sempre que te falta alguma coisa, mesmo que essa coisa não faça falta. Por exemplo, o amor não te faz falta, mas ninguém te ama como tu achas que te devia amar. BEATRIZ - O contentamento é urna armadilha terrível. BERNARDO - Por isso estás contente contigo e o resto do mundo é imperfeito. Ninguém te ama, ninguém te atinge. Nem o estupor da Sónia. BEATRIZ (num tom de sensatez) - A Sónia, no fundo, atura tudo. É o pior defeito dela. Não faz mas suporta. BERNARDO - Então é defeito ou qualidade? BEATRIZ - Não vejo diferença. BERNARDO - Sou eu que estou a mais cá em casa? Foi o postal da Ísis que te pôs mal disposta? BEATRIZ - A Sónia tem graça. Tu não tens. BERNARDO (cínico) - A Sónia é uma pobre rapariga. Ideal para ti. Só te falta metê-la na minha cama. Até chegas a casa atrasada para eu poder comer a criada à vontade. BEATRIZ (exaltando-se) - Bernardo! BERNARDO - Comigo não jogas como queres. E como não queres fazer-me a vontade, vou recitar o teu postal, Beatriz. Desenrasco-me sozinho, são longos anos de treino a brincar sozinho. Se cantas, cantas para ti. Se falas, é para te ouvires. Se te calas, é para teres razão. (Pausa) A origem da missiva é a Terra Prometida. «Dona Beatriz. Hoje de manhã andei a passear no bairro dos Drusos. Quando ouviram o meu nome no hotel, falaram-me duma gente que adora uma deusa em vez dum deus, uma deusa com o meu nome. Em Jerusalém, há tantas religiões que eu acreditei e tive curiosidade de ir ver o povo da Ísis. Os seus livros devem falar disto tudo. Comprei uma estátua pequenina. O porteiro do hotel acha que sou parecida com a Nossa Senhora dos Drusos.» Silêncio. Bernardo e Beatriz parecem pregados ao chão. Enquanto isto, Sónia limpou sumariamente o pó do quarto de Bernardo e deitou-se no chão para dormir a sesta. Ao cabo de alguns instantes de mutismo carregado, Beatriz começa a remexer nervosamente nuns papéis, um pouco para ocupar as mãos e o espírito com outro assunto. BEATRIZ (rompendo o silêncio) - Sónia! Sónia abre um olho. BEATRIZ (berrando) - Sónia! SONIA (erguendo-se) - Não é preciso gritar. Beatriz agarra no maço de papéis pousados na mesa da sala de jantar e empunha-os com um ar bélico. BEATRIZ (para Sónia) - Os trabalhos dos alunos estão cheios de manchas de gordura. Já te proibi de mexeres nas minhas coisas. Com que cara é que eu vou entregar estes exercícios? SÓNIA (sonsa) - Pois, mas estava a mesa coberta de papelada e eu tive de empurrar tudo... para poder servir o almoço ao menino Bernardo. BEATRIZ (duríssima) - O menino Bernardo diz que tu comeste as carnes frias que eu deixei para ele. SÓNIA (sonsa) - Ele mandou-me comer à vontade. Como tinha fome, não fiquei desconfiada. BEATRIZ - Desconfiada de quê? SÓNIA (cabisbaixa) - Desconfiada da comida. O menino Bernardo só tem veneno. Ofereceu para depois me acusar de andar a roubar a Dona Beatriz. BEATRIZ - E por que é que ele havia de fazer isso? SÓNIA - Porque eu não durmo com ele. BEATRIZ (provocadora) - Achas que ele é feio? SÓNIA (prontamente) - Os homens não se querem bonitos. BEATRIZ - Achas que ele é bonito? SÓNIA - Eu não sou mãe dele. Bernardo assiste estupefacto a este diálogo. BEATRIZ - E se fosses? SÓNIA - Punha-o fora de casa.


BEATRIZ - Isso é o que ele quer. SÓNIA - Isso é o que ele julga. (Pausa.) São horas. Tenho que ir. BEATRIZ (maternal) - Hoje ficas a dormir cá em casa. BERNARDO (reagindo) - Adeus meninas. A noite é toda vossa. BEATRIZ (autoritária) - Para onde é que vais, Bernardo? BERNARDO - Vou almoçar com a Daniela. Jantar. Jantar e dormir. O patrão dela é um mãos largas. Bernardo sai precipitadamente. Beatriz hesita e corre no seu encalço, desvairada. Sónia, imperturbável, volta à cozinha, abre o frigorífico, tira um saco de laranjas e começa a descascar uma peça de fruta com os dentes. CENA 4 Salas (5) + (4).

Álvaro entra em casa com um ar derreado, revista debaixo do braço, e surpreende Sónia a comer laranjas na cozinha. A empregada olha-o de cima abaixo como se avaliasse o estado geral do patrão. SÓNIA - Sempre é preciso fazer a cama do quarto de hóspedes? ÁLVARO - Fazer a cama? SÓNIA - Sim. A Dona Amélia deixou-me um bilhete: «Faz a cama para o Senhor Doutor no quarto de hóspedes.» ÁLVARO (surpreendido) - Mas por que é que me obrigam a dormir naquele sofá-cama manhoso? SÓNIA - Isso não é comigo. São ordens da Dona Amélia. (sentenciosa.) Entre marido e mulher, não metas a colher. ÁLVARO - Tu também trabalhas para mim. Eu é que escolho onde durmo. SÓNIA (provocadora) - Então prefere dormir na sala de jantar? Ou na casa de banho? ÁLVARO - Hei-de passar a noite na minha cama. A Amélia é pequena, cabe em qualquer lado. Ela que pegue num cobertor e que vá dormir para onde quiser. SÓNIA (conciliadora) - O Senhor Doutor está a exagerar. Isto é uma birra passageira. Amanhã já estão de bem um com o outro. ÁLVARO - Eu nunca deixei de estar de bem com tudo. SÓNIA - Pronto, pronto. Mas não me obrigue a desobedecer à Dona Amélia. Ela é de gancho, quando se zanga... o Senhor Doutor sabe disso melhor que eu. (Pausa.) Quantas almofadas quer? ÁLVARO (irritado) - A filha da puta comprou-te, não foi? O que é que te ofereceu? O anel de noivado? Não, não é mulher para tanto. Deu-te a saia casaco de linho? Não aceites, é pesado de mais para ti. SÓNIA (ofendida) - Não costumo aceitar prendas dos patrões. O meu namorado não me autoriza. (Pausa.) Quer antes um travesseiro? Entretanto Amélia chegou a casa, silenciosa como um ladrão, foi, pé ante pé, refugiar-se na sala de jantar e escutou a última parte da conversa. Indignada, acercou-se lentamente da porta da cozinha com mil precauções para não denunciar a sua presença. AMÉLIA (à porta da cozinha) - O travesseiro é meu. É de penas de pato, veio da casa da minha avó. Álvaro e Sónia estremecem, sobressaltados. SÓNIA - E onde é que o Dr. Álvaro pousa a cabeça? AMÉLIA - Ele que se amanhe... com uma pilha de revistas. Não te aflijas Sónia, o Doutor só ainda tem chave de casa por especial favor. Aliás, nem estava a contar com ele para o jantar. Mas os homens são assim: quando lhes damos para trás, não desgrudam. (Noutro tom.) Traz-me o correio, deve ter vindo o meu extracto de conta.


SÓNIA (metendo a mão ao bolso das calças e exibindo dois postais ilustrados) - Só veio isto... da terra do Cristo. Parece que os homens de lá são melhores do que os de cá. E comem peixe em vez de carne. A Dona Fina e o Dr. Carlos ficaram cheios de vontade de conhecer... AMÉLIA - A minha correspondência não tem nada que ir parar ao fundo do teu bolso. ÁLVARO (tentando desviar a fúria de Amélia sobre Sónia) - Como os postais eram bonitos, ela andou a mostrá-los a toda a gente. AMÉLIA (ríspida) - Não é da tua conta. (Para Sónia.) Dá cá isso, Ísis. Sónia não se mexe. AMÉLIA (irritada) - Ouviste? SÓNIA - Julguei que não era da minha conta. Eu não me chamo Ísis. ÁLVARO (tentando desanuviar a atmosfera) - A Ísis também não se chamava assim. Acho que andava metida com uma seita esquisita em que as pessoas mudavam de nome. Lembras-te, Amélia? AMÉLIA (agressiva) - Eu não ouço confidências de criadas. SÓNIA (sonsa) - Mas recebe postais. AMÉLIA (cortante) - Nem recebo postais. SÓNIA - Então o correio não é para si. ÁLVARO (julgando perceber) - Ai a Ísis escreveu-te...? E mandou um postal para casa do Carlos e outro para casa das corujas?! (Ironizando) É uma atitude interessante... do ponto de vista sociológico. O círculo dos leitores da Ísis... o courrier du cœur da sopeira revela uma amostra significativa de destinatários. SÓNIA (insolente) - Vocês não merecem que a mulher-a-dias vos escreva... E tenho eu a sina de sujar as mãos na vossa merda... A Dona Beatriz bem avisou a minha mãe... AMÉLIA (indignada) - Estás despedida. Podes dizer à tua mãe que não vale a pena ir chorar lá para a loja. Quem não tem dinheiro, não faz filhos. ÁLVARO (maldoso) - Tu, nem que te cobrissem de ouro, eras capaz de parir uma criança. Felizmente, nunca hás-de ter uma filha da idade desta malcriada... entravas em parafuso, não tens estofo para lidar com pessoas de carne e osso. Só sabes brincar com bonecas... Belle époque. SÓNIA (formal) - Dr. Álvaro, passe-me o cheque. Não tenho vagar... ÁLVARO - O problema é da Amélia. AMÉLIA (fria) - A Amélia pagou... há trás dias... agora paga tu pelos disparates que dizes à frente da criada. Enquanto Amélia responde, Sónia pega num maço de papéis pousados em cima da mesa e vai colocar-se entre Álvaro e Amélia. SÓNIA - Ou os Senhores param imediatamente com esta cena ou eu vou mesmo embora. E levo estes papéis para ler no autocarro. ÁLVARO (num tom de desespero) - Amélia, aquilo são os meus relatórios... é a minha vida. AMÉLIA (indiferente) - Olha que pena! Sem os relatórios, não vais conseguir adormecer. ÁLVARO (decidido) - Mas, Sónia vai-me devolver os relatórios porque eu não a despedi. Tu prescindes dela... a rapariga passa a estar ao meu serviço. (Para Sónia) Não te aflijas, Sónia, a Dona Amélia ainda se há-de arrepender. A Dona Amélia só acredita naquilo que vende, não dá valor ao esforço dos que a ajudam. AMÉLIA (com desprezo) - A rapariga é toda tua. Se ela te aturar as esquisitices que a Ísis te aturava. SÓNIA (exigente) - A Ísis morreu. Eu chamo-me Sónia. ÁLVARO - Podes ficar descansada. Eu trabalho muito e sei reconhecer o trabalho das pessoas... Sónia sacou um postal do bolso, pegou num isqueiro, acendeu-o. Numa atitude grave, começa a ler a missiva, queimando com a chama um dos cantos do rectângulo de papel. SÓNIA - A Ísis morreu. (Lê desajeitadamente) «Doutor Álvaro. Um dia ouvi o senhor dizer que os homens não vieram ao mundo para trabalhar. Agora acho que tem razão. Nesta terra santa aparece tudo feito e eu não sinto falta nenhuma das minhas canseiras...» (Noutro tom) Tem graça... nunca fala do homem dela!? Amélia arranca o postal a Sónia e verifica o nome do destinatário com um ar de incredulidade.


AMÉLIA - Incrível... escreve ao marido da patroa e assina «Sempre sua criada Ísis.» ÁLVARO - É bonito... escreve como era dado noutros tempos. AMÉLIA (lendo) - «As mulheres andam de véu na rua e obedecem cegamente ao pai e ao esposo. A cidade parece calma apesar da guerra. Toda a gente acredita em qualquer coisa e vive sem sobressaltos porque o mal vem por bem. Quanto maior é a fé, menos é preciso puxar pelo corpo. O Senhor Doutor afinal lá terá as suas razões.» Álvaro arranca o postal a Amélia e relê avidamente a mensagem. SÓNIA (provocadora) - Realmente o Dr. Álvaro deu-lhe muita confiança. A Dona Beatriz diz que ela é do género «dá-se-lhe a mão agarra logo no braço.» AMÉLIA (irritada) - A Dona Beatriz não tem nada que meter o nariz onde não é chamada... ÁLVARO (virando o postal. Alheio) - Pôr-do-sol sobre Jerusalém. Tu queimaste o sol que se estava a pôr no canto do postal... SÓNIA (provocadora) - A Dona Beatriz é minha patroa. AMÉLIA - Só enquanto o Carlos sustentar o Bernardo, apesar daquele malcriadão não ser filho dele... ÁLVARO (sonhador) - Jerusalém mergulha nas trevas. Terra Prometida, Pátria do Sono... SÓNIA - A Dona Beatriz é uma boa mãe. Boa mãe e boa patroa. E o menino Bernardo não é tão malcriado como o pintam. É um bocado mimado mas fica-lhe bem. ÁLVARO (sonhador) - Pátria do Sono... o que é que ela dirá no outro postal? SÓNIA (prosseguindo a conversa com Amélia, tira o segundo postal do bolso das calças e entrega-o a Álvaro.) - Quem lhe dera a você ter um filho como o menino Bernardo! ÁLVARO (lendo como se declamasse) - «Senhora Dona Amélia. Este país é diferente! Os casais têm muitos filhos. Nunca vi tantos meninos na rua. As mães passeiam cheias de orgulho com os bebés ao colo e os mais velhos pela mão. Sem as crianças a vida deles não tem sentido e, no fundo, connosco é a mesma coisa. Na minha idade não sei o que posso esperar, mas ainda assim tenho esperanças. Quem sabe, quando voltar, talvez traga uma boa notícia. Cumprimentos ao Dr. Álvaro. Sua dedicada, Ísis.» (Noutro tom) Afinal quantos anos terá esta mulher? AMÉLIA (perturbada) - Muitos anos e pouco juízo. SÓNIA - A minha mãe teve-me ia para os cinquenta. E tenho tudo no sítio, sem desfazer. ÁLVARO - Isso é duvidoso. Assunto a estudar. AMÉLIA (exaltando-se) - Álvaro, eu não te admito intimidades à minha frente! SONIA - E a Dona Amélia julga que eu ia dar um filho ao seu homem? Pfff! Para já o meu namorado não me deixa trabalhar para homens! ÁLVARO - Mas tu dás imensas horas ao Carlos! SÓNIA (veemente) - Ele é um santo. Até tomou conta do caso da minha mãe que não lhe pode pagar. E anda com as partilhas da Dona Fina. (Sublinhando.) E trata-me como uma filha. Se eu quisesse, ele mandava-me estudar num colégio para gente rica. AMÉLIA (transtornada) - Se tu quisesses, eu também te tratava como uma filha. Dava-te do bom e do melhor. Levava-te para a loja. Não fora a tua mãe ser muito agarrada a ti... SÓNIA - Ó Dona Amélia, eu não tenho idade para ser filha (Razoável.) E há coisas que não se escolhem: nem as mães escolhem as filhas, nem as filhas as mães. Se me quer como empregada e eu quiser a Senhora como patroa, aí podemos ambas escolher. (Mudando de assunto.) Bem. Está-se a fazer tarde. Vou indo que depois a minha mãe fica à toa. Sónia dirige-se para a saída. Amélia estende a mão para reaver o seu postal e vai refugiar-se no quarto do casal, enquanto Álvaro se encaminha para o quarto de hóspedes. Ambos se deitam em cima das respectivas camas a reler os postais de Ísis.


ACTO 4 CENA ÚNICA Durante todo o quarto e último acto, as personagens passeiam à beira-rio por grupos que se cruzam e se perdem de vista numa luz crepuscular. O dispositivo cénico deverá ser extremamente simples. A presença do rio corresponderá a um simples sinal, sonoro por exemplo. Vindos dos bastidores pelo canto direito do palco, Beatriz e Bernardo entram em cena caminhando cm direcção à esquerda e discutindo acaloradamente. BERNARDO (exaltado) - Não, não é verdade, eu não emprestei dinheiro à Sónia. Aliás, nem percebo como tens lata para me falar dessa gaja. Sabes perfeitamente que eu nunca atinei com ela. Tu é que lhe deste confiança. Tu é que te armaste cm mãe adoptiva como se já não te bastasse armares-te em mãe solteira. Mãe coragem! (Risadas de escárnio.) Foda-se! Quem não a conhecer que a compre. A Sónia arranjou nota para fazer um aborto? É porque alguém se sentiu responsável. (Pára uns instantes, olhando frontalmente para Beatriz.) E não olhes para mim assim. Ainda não vais ser avó e a mim o deves Beatriz. Porque se o pito da Sónia dependesse de ti, eu tinha manjado a gaja três vezes por semana. BEATRIZ (desculpando-se) - Não fiz mais do que a minha obrigação: defendi uma miúda de dezasseis anos, que não nasceu num berço de ouro como as tuas amigas, da atitude humilhante que o meu filho achava por bem ter com ela. Humilhar os mais fracos é fraqueza de carácter. E isso, eu não tolero. BERNARDO (duro) - Não me venhas com a conversa da nobreza de alma... Ajudar os fracos é pior do que humilhá-los. E não vamos mais longe: o filho da puta que pagou a aborto à Sónia estava a só a ajudá-la. A ajudá-la para ela não o Poder. BEATRIZ (pensativa) - Não acredito que tenha sido o Carlos! BERNARDO - A Daniela diz que se cruzou com o Carlos no restaurante e que a Sónia estava a almoçar com ele. BEATRIZ (despeitada) - Essas manas vêem casos por toda a parte. E logo a Daniela que não suporta concorrência. BERNARDO (sério) - A Daniela é a pessoa menos maldosa que eu conheço. Às tantas foi ela que abriu os cordões à bolsa. Por generosidade... (Rindo) Para safar o Carlos. Entretanto Carlos entrou em cena vindo do canto esquerdo do palco. Bernardo avista-o e faz-lhe um sinal. BEATRIZ (sem se aperceber de que Carlos se aproxima) - O Carlos sempre gostou de mulheres mais... maduras. (Sem convicção) Aposto que foi a intriguista da Amélia que inventou o boato para esconder aquilo que toda a gente topou: o Álvaro anda de cabeça perdida pela criada. (Com veemência) Dantes o Carlos nunca teria ligado a uma catraia. BERNARDO (estendendo a mão a Carlos) - É da idade, não é, tio Carlos? BEATRIZ (confusa) - Olá, Carlos. A passear sozinho? O grupo pára a conversar perto do canto esquerdo do palco. CARLOS (jovial) - Olá. O que é que é da idade? Passear sozinho? Estamos sozinhos desde que nascemos. BERNARDO - Estávamos a falar da nossa mulher-a-dias. CARLOS (displicente) - Pois, a Ísis. Chega por estes dias... Por agora estou servido de empregada... e custa-me despedir a miúda... BERNARDO (malicioso) - Dizem que estás mesmo muito bem servido! CARLOS (fazendo de conta que não percebe) - E tu, Beatriz, estás satisfeita com a Sónia? BEATRIZ (cortante) - Eu satisfaço-me com pouco. BERNARDO (cínico) - E há que contar com a fibra maternal. (Pausa.) A Sónia trouxe uma lufada de ar puro às nossas vidas! Ao cabo destes anos todos, a mamã arranjou-me uma irmãzinha para eu brincar. CARLOS (agastado) - Bom proveito!


BERNARDO (cínico) - O tio Carlos tem fibra paternal? CARLOS - Não queiras conhecer a minha fibra paternal... (Pausa. Para Beatriz) Vocês costumam vir passear para estes lados? A Ísis dava esta voltinha ao fim de semana. Era sagrado. BEATRIZ (muito tensa) - Raramente temos tempo para passeios. Olha, Carlos, estamos com pressa. Marquei uma mesa para as sete no restaurante. (Cortante) Num sítio muito íntimo que a Sónia me aconselhou. (Virando-lhe a cara) Até mais ver, Carlos. Bernardo, atónito, estende a mão a Carlos e caminha às arrecuas atrás da mãe, como uma criança puxada por um fio invisível. Ambos saem de cena pelo lado esquerdo. Carlos queda-se uns instantes especado e depois prossegue o seu caminho na direcção oposta, assobiando para se recompor da agressão da amiga. CARLOS (coçando a cabeça) - Mas por que é que eu gosto de mulheres? Os homens são quase tão divertidos, quase tão inteligentes, quase tão afectuosos como as mulheres. E têm muito mais tacto. São chatos mas não chateiam. O meu pai, por exemplo, era odioso e infinitamente discreto. Já a minha mãe era amorosa e temível. (Pausa) A Ísis vai voltar... é o cúmulo da chatice. Muito gostava eu da Ísis e agora não há lugar para ela no meu coração. E na cabeça também não. E na barriga... (Surpreendido.) perdi o hábito de comer. Vindos do canto direito do palco, Amélia e Álvaro vão cruzar-se com Carlos. AMÉLIA (irritada) - Não me apetece pôr os pés nessa inauguração. Detesto andar de copo na mão, a fazer de conta que aprecio uma data de lixo, e ver outras tantas como eu a fazerem a mesma triste figura. A fazerem má figura mas muito bem vestidas. Com um bom vestido podem-se correr esses riscos... ÁLVARO (exasperado) - Não posso ir sem ti. As pessoas comentam a tua ausência. Além disso não me pareces maltrapilha. Fartas-te de dar roupas praticamente novas à empregada. Carlos dá de caras com o casal. Com um largo sorriso, estende a mão a Álvaro e fita Amélia de lado, com um lampejo de ternura no olhar. CARLOS (jovial) - A nossa empregada escreveu-vos a dizer quando volta? ÁLVARO (franco) - Não recebemos carta nenhuma... AMÉLIA (mentindo) - Recebi eu. A Ísis vem viver comigo. Tenho um quarto vago. CARLOS (espantado) - E o marido? ÁLVARO (estupefacto) - E eu? AMÉLIA (metendo os pés pelas mãos) - Viver... é só uma força de expressão. Pode-se viver com uma pessoa e não viver. E às vezes não se vive e vive-se. Ela não vem propriamente... morar... mas fica ao meu serviço a tempo inteiro e quando o marido for para fora... ou eu andar sobrecarregada... ela pernoita... eu ofereci-lhe cama... e a Sónia é um assunto à parte... não lhe posso confiar certas tarefas... polir os amarelos... nem recados... ela diz que a criada de dentro não é obrigada a andar na rua... a Ísis... tenho a certeza de que vai aceitar... casada, tem mais despesas, e o marido é daqueles que não têm parança... vende seguros de vida... as cobranças... ÁLVARO (para agradar a Amélia) - Eu não estava a par, mas o que a Amélia achar... é pelo melhor. CARLOS (num tom de alivio) - Então a Sónia deixa de dar aquelas horas em vossa casa? AMÉLIA (mentindo) - A Sónia vai tirar um curso de restauro de peças antigas. Aprender a retocar bonecas pintadas, por exemplo. Decidi tomar a cargo a educação dela... a todos os níveis, não sei se me faço entender. A minha mãe sempre disse que as empregadas deviam ser ensinadas... ÁLVARO (aparvalhado) - Ninguém nasce ensinado... CARLOS (malicioso) - Eu julguei que a Sónia já tinha a escola toda. AMÉLIA (com autoridade) - Olha, Carlos, se eu venho a saber que a Sónia é vítima de assédio... no local de trabalho... estou disposta a tomar medidas... desagradáveis. Ela é menor e a mãe deu-me plenos poderes. (Noutro tom.) Vamos Álvaro, senão ainda chegamos atrasados à inauguração. ÁLVARO (no encalço de Amélia que recomeça a caminhar em direcção à esquerda) - Um destes dias passo no teu consultório. Propuseram-me um negócio de gravuras... a meias é menos pesado... e tu tens as paredes muito nuas... Carlos sai de cena pelo canto direito arvorando um ar desconcertado.


ÁLVARO (num tom de repreensão o mais brando possível) - Colocaste-me numa posição insustentável: ser obrigado a disfarçar as tuas mentiras perante um amigo de longa data. AMÉLIA (sonsa) - Não são mentiras, são meias verdades. ÁLVARO - Então queixas-te de que o negócio não dá para meteres uma empregada na loja e ficas com duas criadas em casa? AMÉLIA - Não és tu que defendes a teoria da escravatura esclarecida? E a tua mamã, que sempre foi doméstica, não tinha duas criadas de dentro? ÁLVARO - A mamã tinha seis filhos e vivia num casarão de dois andares... (Pausa) Quanto à escravatura... a Ísis não tem perfil para o meu programa de... relacionamento entre senhores e servos. A Sónia talvez, mas com dezasseis anos é tarde de mais para condicionar uma pessoa. (Pausa) Mentes e ainda por cima não sabes mentir. AMÉLIA - Tenho-te mentido estes anos todos e só agora é que descobres que não sei mentir! Estás a ser desonesto. Delfina e Daniela entram em cena vindas do canto esquerdo do palco. Vêm vestidas a rigor, como se fossem participar numa cerimónia. Álvaro faz um sinal pouco discreto a Daniela. Amélia obriga ostensivamente o marido a passar-lhe o braço por cima dos ombros. Delfina obriga ostensivamente a irmã a dar-lhe a mão. AMÉLIA (antecipando-se) - Então as meninas donde vêm? Estão com ar de quem assistiu a um enterro! ÁLVARO (galante) - Mas cada dia mais jovens... DANIELA (espirituosa mas dura) - Andamos a enterrar a nossa juventude... com toda a pompa. Delfina olha de esguelha para a irmã. AMÉLIA (menineira) - Nós andamos a namorar. O Álvaro quer levar-me a uma exposição... para me oferecer uma prenda. É uma pintura, que não representa nada, mas a cor é a dos meus olhos. Tal e qual. Em vez de me oferecer um tecido bonito para um vestido, oferece-me uma tela para os meus olhos... repousarem. (Pausa) O Álvaro é impagável, não acham? ÁLVARO (enredado nas mentiras da mulher) - Há um artista... de além-mar... que pinta por encomenda quadros... de vários metros... da cor exacta dos olhos dos clientes. É um artista de vanguarda. E... a Fina nem vai acreditar... o homem está milionário! DELFINA (boquiaberta) - Realmente há quem tenha jeito para o negócio! DANIELA (agastada) - Grande coisa! Os fabricantes de lingerie lançam todos os anos colecções de meias, cuecas e soutiens para todas as cores de pele. É a chamada arte... camaleónica. DELFINA - Foi a prenda de casamento que a Daniela deu à Ísis. Eu, na altura, achei que era um gesto inconveniente mas, pelos vistos, é um presente muito em voga. DANIELA - Espero que lhe tenha feito bem proveito! ÁLVARO - Se a Ísis criou hábitos de luxo... a começar por aquilo que traz à flor da pele... vai-nos levar o couro e o cabelo. DELFINA (inquieta) - O Álvaro está-me assustar! DANIELA (agastada) - Vamos, Fina, que eles não querem chegar atrasados. Pode vir alguém com a mesma cor de olhos que a Amélia e ela fica a ver navios. Daniela, numa atitude máscula que não condiz com o seu comportamento habitual, estende a mão a Amélia e depois a Álvaro. Delfina encolhe-se sem saber como agir. Daniela vira costas. Delfina segue a irmã e atira beijinhos tímidos com a palma da mão. Álvaro e Amélia saem pelo canto esquerdo do palco. Daniela e Delfina caminham na direcção oposta. DELFINA (sonhadora) - Ela não trocava os passeios à beira-rio por nada deste mundo. Ainda estou para entender o que ela via no lodo preto. Na água porca. Até as pedras do cais parecem de luto. DANIELA (pragmática) - Ela era uma alma negra. Se um dia a compreendêssemos, ficávamos como crianças perdidas no escuro. Eu, felizmente, não sou daquelas pessoas que precisam de passar pelo medo para sentirem emoções fortes. DELFINA - Tu tens medo de ter medo... e não aceitas que eu tenha receio de sofrer privações.


DANIELA - Privas-te de tudo para não sofreres privações! Contigo é como se vivêssemos em tempo de guerra... guerra permanente. Entrincheirada atrás das latas de ervilhas e dos panfletos do sindicato. (Pausa) Não suporto os vossos ares sofredores. Aquele sorriso de mártir nos olhos da Ísis é igual ao da tua viuvez. Mas vocês não tinham homem para carpir, porra! A piedade que encontrais nos outros é o vosso capital. Se calhar, uma bela manhã, apareces-me de aliança, fazes a mala e vais estourar as cotas do sindicato num cruzeiro pelo Nilo abaixo. E eu fico com as ervilhas. (Pausa) Pensar que durante anos tirei os sapatos antes de entrar em casa para não te acordar e tomei chuveiro antes de ir para a cama para não te cheirar a homem... Carlos volta a entrar em cena vindo da direita. Denta avista-o, acena-lhe com a cabeça e dá um beliscão na irmã. DELFINA (entre dentes) - Cala-te! Vem aí o Carlos. (Cumprimentando Carlos) Boa tarde! Quase boa noite, não tarda muito. Temos tido notícias suas pela Sónia. CARLOS (macambúzio) - Como estás, Fina? (Olhando de esguelha para Daniela) E tu, Daniela? (Pausa) Pois. (Pausa) A Sónia é boa rapariga. (Pausa) Sinto frio. Às vezes gosto de sentir frio... DANIELA (sarcástica) - A Sónia não chega para te aquecer? CARLOS (com um ar ausente) - A Sónia aquece os nossos corações. DANIELA - E chega-te a roupa ao pêlo, conta lá? A Sónia é uma perita em educação. Os patrões andam a toque de caixa. CARLOS (enigmático) - Por acaso, sentia falta de um pouco de disciplina na minha vida. A esperança é uma coisa bem pequena... eu chamava-lhe rotina. Agora fui obrigado a arrumar a cabeça. DELFINA - Mas o Carlos não nos vai tirar a Sónia? CARLOS - Dou-vos a Ísis, não vos tiro nada. DELFINA - A Ísis custa-nos os olhos da cara. Chupa-nos o sangue com as exigências que há-de ter. DANIELA (definitiva) - A Ísis, arranjo-lhe um emprego numa agência de viagens. Já que andou a correr o mundo... (Pausa) Três quarentonas debaixo do mesmo tecto dá mau resultado. CARLOS (divertido) - Acaba em morte! Eu dantes achava as três encantadoras!... DELFINA - E mudou de opinião? CARLOS - Não, mudei de empregada. E a Amélia quer-ma roubar. Diz que a manda estudar, que a põe a restaurar bonecas antigas. DANIELA - Não estou a ver a Sónia a pintar as maçãzinhas do rosto da Senhora. O que ela quer naquela casa, sei eu. Só que o Álvaro não tem tomates para te sacar a Sónia... como te sacou a Amélia. CARLOS (sereno) - Eu nunca tive ciúmes do Álvaro. DANIELA - Isso é que a Amélia acha imperdoável. DELFINA (confusa. Para Carlos) - Então o Carlos ficou solteiro por causa da Amélia? CARLOS - Quem disse à Fina que eu fiquei solteiro? (Maldoso) Um macho da minha idade é um bom partido. Não preciso de explicar às minhas amigas que os homens nascem diferentes das mulheres. DELFINA (melindrada) - E a Ísis que casou na idade dela? CARLOS - A Ísis é uma criatura improvável. Tem pêlos nas pernas e músculos nos braços. E as mamas dela inspiram respeito, não imagino nenhum homem a apalpá-las. (Pequena pausa.) A propósito, as meninas não sentem frio? DELFINA (perturbada) - Carlos, eu não lhe admito...! DANIELA - Tu até admitias, mas este macho não chega para duas. (Virando-se.) Não fiques para aí especada Fina. Parece que nunca viste um homem a queixar-se com o frio. (Delfina saltita atrás da irmã e dá-lhe a mão. Muito alto) É uma estratégia de principiante. Delfina e Daniela saem pela direita. Carlos recomeça a caminhar na direcção oposta. CARLOS (falando consigo próprio) - A Sónia tem razão quando diz que a Daniela é uma solteirona pior que a irmã. Gente nova, razão nova. (Pausa) Está mesmo frio e não é um frio de fim de tarde, é mais uma frescura ácida de madrugada. (Pausa) Tenho frio nas mãos sempre que recebo


o cheque da causa ganha e suores frios nas fontes na hora da certeza de ganhar. Ajuste de contas, mudança de luz. Alguns lugares não mudam nem no tempo nem no espaço. Os portos são iguais em toda a parte, zona de contacto de três elementos, zona de exclusão do fogo. (Pausa) Como será o rio do inferno? E o próprio inferno, porque não corte de náufragos, palácio de humidade e podridão? Beatriz e Bernardo entram em cena pelo canto esquerdo do palco. BERNARDO (estendendo a mão a Carlos) - Tio Carlos!!? Perdido nos seus pensamentos? CARLOS (convicto) - Ela que vá para o inferno! BERNARDO - Ela quem? A Beatriz? CARLOS - A Beatriz não, a Ísis. BERNARDO - A Beatriz também não quer que ela volte ao serviço. CARLOS (surpreendido. Para Beatriz.) - Despediste-a? Ela era tão agarrada ao Bernardo! BERNARDO (não deixa Beatriz responder) - Eu acho bem. Mãe tenho uma e já chega. CARLOS - Mas ela vem a contar com o vosso apoio. Vocês são a família dela! BEATRIZ (seca) - A Ísis casou-se. Eu nunca quis casar. Não estou disposta a viver os problemas conjugais da Ísis. Tenho imensas preocupações... a essas consegui escapar. Por mérito próprio. Silêncio pesado. CARLOS (para desanuviar a conversa) - Então já jantaram? (Silêncio.) Se quiserem vamos todos ao tal restaurante onde eu fui almoçar com a Sónia no outro dia... BERNARDO (fingindo entusiasmo) - E depois levas-me às putas? Beatriz prega um violento par de estalos ao filho. Sente-se que as bofetadas que dá a Bernardo são destinadas a Carlos. BEATRIZ (violenta e seca) - Eu sou uma mulher em segunda mão, mas nunca hei-de ser segunda escolha. Carlos encolhe os ombros e sai de cena pela esquerda sem se despedir de Beatriz e lançando um olhar de piedade a Bernardo. BERNARDO - Espero que arranjes um substituto que me agrade. Pai, nunca tive, agora fiquei sem tio. BEATRIZ (enervada) - Estás proibido de me falar de homens! BERNARDO (irónico) - Preferes porventura que te fale de mulheres. Sou bastante mais versado nesse assunto, por razões biográficas... evidentes. E recentemente a minha biografia foi enriquecida por dois... ou três episódios apaixonantes... Delfina e Daniela entram em cena pelo canto direito do palco. Caminham apressadamente como se andassem sobre brasas. BERNARDO (com uma lentidão estudada) - Primeiro houve a ruptura da Ísis... depois o glorioso engate da Sónia... e por fim o flirt com a Daniela (Bernardo avista as duas irmãs e grita.) Ni! Ni! Tia Fina! Dani! Beatriz quer virar costas, puxa pela manga de Bernardo, mas Delfina estendeu a mão a Bernardo para o cumprimentar. DELFINA (extasiada) - Bernardo! É fantástico, conseguiste crescer mais um palmo desde a boda da Ísis. BEATRIZ (com uma expressão feroz) - Boa tarde. Eu agradecia que as Senhoras deixassem duma vez por todas a minha família em paz. DANIELA (num tom de desprezo) - Chamas família a ti e ao teu fedelho? BEATRIZ (ameaçando) - O Bernardo é menor. À primeira tentativa de entrarem em contacto com ele, meto queixa por assédio. DANIELA - Nós conhecemos um advogado que está a par de todos os pormenores... (Sublinhando.) escabrosos da vossa vida familiar. Aliás é um amigo comum e há-de querer o bem de ambas as partes. Aposto que se vai divertir como um preto a lavar a roupa suja da amante. Examante ao que consta. Dantes, era substituída no seu papel de fada do lar por urna criada, agora é substituída na cama por outra criada. BEATRIZ (com uma serenidade impressionante) - Nem por isso cedo o meu filho a duas putéfias. Delfina chora silenciosamente, um pouco afastada do grupo. Bernardo evita o olhar de Daniela.


DANIELA - Preferes confiá-lo (Vira-lhe costas e queda-se a olhar para o rio) a duas sopeiras... BEATRIZ - A sopeira mais velha é toda vossa. Não quero que o meu filho tenha familiaridades com mulheres na fase do cio... DANIELA (sarcástica) - Porque tu já estás na menopausa?!! DELFINA (aproximando-se, chorosa. Para Beatriz) - Mas a Beatriz está a fugir às suas responsabilidades. A Ísis criou-lhe o Bernardo ou quase. E eu não posso suportar sozinha a despesa duma empregada se a Daniela alugar uma casa. BEATRIZ - O Bernardo é um fraco e a culpa é da Ísis. Não sinto a mínima obrigação para com essa praga que anda com o mundo inteiro ao colo como se tudo e todos lhe pertencessem. (Para Bernardo) Menino, vamos à nossa vida que tens muito que estudar. Beatriz volta-se, puxa pela manga de Bernardo e arrasta-o atrás de si. Caminham em direcção ao canto esquerdo do palco. Delfina e Daniela também dão meia-volta e vão sair pela direita. DELFINA (em tom de queixume) - Tenho a cabeça em água e nem sinto os pés! DANIELA - O caminho para regressar é sempre mais longo. (Pausa) Ó Fina, lembras-te do nosso jogo? Se fechares os olhos o que é que vês? DELFINA (fechando os olhos e caminhando como uma cega) - Vejo gotas de sangue e moedas de ouro. BERNARDO (descontrolado. Após a saída das irmãs) - Foste odiosa. Se o marido da Ísis me aceitar em casa, vou morar com eles. Faço dezoito anos daqui a menos dum mês. Podes mandar as tuas queixas p'ró caralho! (Pausa) Peço a Sónia em casamento. Agarro nela e andor... para o raio que me parta. O mundo é uma grande casa. Podes meter o nosso lar pelo cu acima! A Sónia não se importa de me sustentar. Com a esperteza dela e a minha raiva, o teu cu vai ficar do tama nho duma baliza de futebol. Grande cu, Beatriz, grande cu! Corpo com vistas para as traseiras! Álvaro e Amélia entram em cena pelo canto esquerdo do palco e avistam Bernardo que pontua as suas frases com grandes gesticulações e Beatriz que caminha vagarosamente como se um peso a vergasse. AMÉLIA (amável) Beatriz! Há que séculos! Vínhamos precisamente a falar de vocês os dois. Íamos bater à vossa porta... BEATRIZ (tentando compor um ar neutro) - E a que é que devemos uma honra tão inesperada? AMÉLIA (mentindo descaradamente) - É que eu estou grávida... para mim também é um pouco inesperado. BERNARDO (carrancudo) - Quem anda à chuva, molha-se! BEATRIZ (surpreendida) - Parabéns! (Pausa. Percebendo que Álvaro olha para Amélia com um ar aterrado.) É uma boa notícia, não é? (Pausa.) Só não percebo em que é que vos posso ser útil? A minha experiência é antiga... e as circunstâncias eram muito diferentes... BERNARDO (para Beatriz) - Ó mãe, não obrigues as pessoas a dizerem de caras aquilo que mal se atrevem a pensar. Fizeste um filho mas podias ter fabricado um anjo. Os bebés são como as camisolas de malha... se calharem mal, desmancham-se. AMÉLIA (indiferente aos comentários de Bernardo) - É uma situação totalmente nova para mim... talvez desista da minha actividade profissional... para me dedicar à casa. Acho que de certo modo me inspirei no teu exemplo... a tua relação com o Bernardo é invejável e... (Não encontra palavras) decidi educar o meu filho sozinha e... portanto a Ísis não volta ao serviço... é bom para ambas porque ela te fazia imensa falta... a Sónia não sabe fazer nada, mas eu meto-a na ordem... não há maneira de meter a Ísis na ordem... e o bebé não convém... não convém que o bebé seja criado por duas mulheres... uma vez ouvi aquela história do Rei Salomão... não se partem crianças ao meio... evitar o pior... a Sónia é um mal menor... vou treinar com ela... no fundo a Sónia não passa duma criança... com paciência e afecto... e quando a Sónia vir a barriga a crescer... ÁLVARO (literalmente estupefacto) - Mas tu estás... de quanto tempo? AMÉLIA - Os homens... a Beatriz tem carradas de razão... De quanto tempo? Sei lá, não fiz as contas... uma semana, um mês, três meses. Ando muito enjoada. E os desejos? Apetece-me comer laranjas a toda a hora e sopa de ervilhas. Eu que detesto sopa...


BEATRIZ (sarcástica) - Para seres uma boa mãe, começas por sacrificar tudo aos teus desejos. (Pausa) A Ísis não te vai levar a mal, ela agora está bem na vida. Não precisa de nós. Julga que não precisa de nós. Ainda se há-de arrepender. De não precisar de ninguém. ÁLVARO - Obrigadíssimo, Triz. Noutra altura, a gente bate mesmo à sua porta. A Amélia, como vê, está a atravessar uma fase de grande perturbação. Não dorme o suficiente... é falta de hábito... aquela cama dá para deitar um regimento. Nestes estados críticos, o sonho e a realidade... BEATRIZ (sem saber o que pensar) - Há médicos para tudo... AMÉLIA (veemente) - Isto não é doença nenhuma... BEATRIZ (mesmo tom) - Mas não há remédios para tudo... AMÉLIA - Eu sou contra os remédios. O parto há-de ser em casa... não suporto batas brancas. BEATRIZ - Ó Amélia, mas isso não é razoável! AMÉLIA - Estou farta de ser razoável. ÁLVARO - Vamos indo, querida. Tu não gostas de andar às escuras. BEATRIZ (apressando a separação) - Nós também... o Bernardo tem um exame amanhã. Vais ver, Amélia, quando vier a tua hora. Uma vida inteira não chega para parir um filho. Beatriz e Bernardo saem pela esquerda (este último recusa-se a dar a mão à mãe). Álvaro e Amélia caminham na direcção oposta. ÁLVARO (levemente indignado) - Ó Amélia... tu não estás grávida! AMÉLIA - Mas podia estar. ÁLVARO - Se estivesses o filho não era meu. AMÉLIA - É natural. Os homens nunca sabem de quem são os filhos que as mulheres trazem na barriga. Desde que Adão e a Eva se multiplicaram... (Pausa.) Que ia ser de nós se a vida não tivesse mentiras e mistérios? ÁLVARO - São duas coisas muito diversas. AMÉLIA - Não, senhor. São iguais como moeda de troca. Quando falta o mistério, a mentira faz perfeitamente as vezes de mistério. ÁLVARO - A Ísis era o mistério. A Sónia é a mentira... AMÉLIA - E, como vês, uma substituiu a outra. Se queres que te diga, a mentira é bem mais necessária que o mistério. Porque é transparente. ÁLVARO (desolado) - Pois, não se pode caminhar sempre às apalpadelas. Eu brincava aos cegos quando era criança, mas de repente, a tentação era demasiado grande... então abria os olhos mesmo sabendo que ia perder. Álvaro e Amélia saem pela direita. Carlos entra em cena pelo canto esquerdo e atravessa o palco aos ziguezagues, com os olhos postos no solo como se procurasse qualquer coisa perdida no chão. A luz vai baixando. Carlos levanta a cabeça, fita o «céu» e sai pelo canto direito do palco. CARLOS (antes de sair de cena) - Ísis, Ísis por que é que havias de voltar? (Pausa) Quem foi ao vento, perdeu o assento. Quem foi ao ar, perdeu o lugar. (Num tom objectivo) Começaste a morrer há muito tempo.


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