A alma não se ama

Page 1

A ALMA NÃO SE AMA Estruturalmente, talvez um filme assente sempre num triângulo amoroso. Atrás da câmara, está quem quer dar a ver; à frente, está quem dá a cara. Quem mostra o corpo, é «amado». O autor desalma-se no actor que ao público vende a alma. E por aí fora. Sobre esta matéria de sedução correram cascatas de celulóide e rios de tinta. Se a visão de CYRANO DE BERGERAC nos evoca tais lugares-comuns da completude fílmica, é porque, curiosamente, aborda a questão duma forma central mas não metacinematográfica. A peça de E. Rostand presta-se a uma apropriação perfeita, permitindo aliás a inclusão de mais alguns níveis de reflexão sobre os meios e o suporte duma cadeia expressiva sem quebrar o encanto de um Cyrano mítico, i.e., a-histórico. Com estes trunfos razoavelmente jogados (melhor na primeira meia hora...) o filme não podia deixar de ser sedutor. Os filmes franceses, caídos em desgraça, raramente conseguem instalar uma relação de cumplicidade com o público que, a priori, deles foge como o diabo da cruz. Ora, nestes últimos tempos, por duas vezes na mesma sala do Lumière, a excepção abriu-se (para confirmar a triste regra?). Foram eles o arrebatador JULES E JIM de François Truffaut, em reprise, que toda a gente entendeu como urgente e subjugou a plateia e CYRANO DE BERGERAC. Acresce que a fita de J. P. Rappeneau conta com a notável interpretação de Gérard Depardieu, boomerang possante e desobediente cuja trajectória preenche o ecrã, despista as próprias manobras (algumas bem falsas) da já de si nervosa câmara, tapa todos os buracos e o grande vazio de concepção estética de que o filme padece par ailleurs — i. e, no tocante ao questionamento sobre o «tempo» que convém a uma personagem teatral e arrancada à lógica da história dos homens e das letras. Ele, o actor, é de facto mais rápido do que a sombra do autor (do filme), agarrando-se de unhas e dentes aos versos e desvarios do outro autor (do texto) e transformando a sua prestação num bouquet de ultrapassagens perigosas — um pouco à imagem do que acontece com Cvrano-personagem, veículo espiritual utilizado mas nunca controlado por Christian. A identidade entre o esquema de representação de Depardieu e o funcionamento diegético da peça salva o filme dum irreparável desequilíbrio — essa identidade valorizada enquanto «excesso» reforça ainda a adesão do público. Um último factor concorre para a fluência desta fita — a vertigem de «velocidade» que o verbo poético confere aos diálogos; é um outro discurso, feito de carne e luxo, que fascina o ouvido e assegura a vitalidade do conjunto, um pouco falha pelo lado da imagem. Em menos palavras: o nariz de Cyrano é verdadeiro porque é falso. E verdadeiro porque é enorme. O verdadeiro Cyrano nunca teve um nariz enorme. R. G.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.