A câmara de verónica

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A CÂMARA DE VERÓNICA Olhai: isto é a minha imagem O Acto da Primavera parece-me um cume: quase todo o trabalho futuro de Manoel de Oliveira — que na época ainda assinava Manuel — lá se encontra em germe e a obra é tão moderna e multiforme que a tentativa de descrever o filme mais facilmente constatará aquilo que ele não é do que aquilo que é. Podemos começar por aí: O Acto da Primavera não é um documentário — as cenas foram interpretadas e repetidas cada vez que Manuel mudava de ângulo de tomada de vista, e a representação do mistério desenrola-se não perante o seu público habitual (aldeãos e turistas) mas diante da câmara; algumas cenas, como o episódio da Samaritana, parecem não fazer parte do auto da "Paixão"... Mas O Acto da Primavera não é uma reconstituição no âmbito da qual Oliveira porventura tentasse restituir o mistério representado na sua íntegra: passamos aos poucos de uma posição exterior — preparativos, chegada dos citadinos, presença da câmara e da equipa de gravação sonora — para uma posição interior em que somos confrontados, por intermédio das caras e das vozes transmontanas, com a tristeza de Jesus Cristo, a dor da Virgem, o desespero de Madalena, etc. E no entanto O Acto da Primavera não é uma ficção: os episódios da Paixão, as frases do Novo Testamento, transportam uma mímica e uma música que nunca permitem separá-los da consciência da representação. Porque O Acto da Primavera é tudo isso ao mesmo tempo: uma ficção — a Paixão de Cristo —, um documentário — os aldeãos envolvidos na representação do auto —, uma reconstituição — as etapas do mistério enquanto interpretação particular das palavras do Evangelho — e muitas outras coisas: uma parábola em que a condição de Cristo se transforma na do homem — com a cruz a actualizar-se sob a forma de cogumelo atómico —, uma missa — na qual se misturam canto e narração e onde a imagem opera diante dos nossos olhos a transubstanciação do mito em carne —, uma reflexão sobre o cinema — em que a representação do auto é enquadrada por duas sequências que respondem uma à outra: os jogos marciais — paulada e chega de touros — integrados na ideia de génese (da vida, da paisagem), uma génese fruto do "suor da fronte", i. e. génese à escala humana, consciência do carácter sagrado do gesto do semeador, anunciam e situam o "auto", enquanto a montagem final de actualidades da guerra alarga a reflexão e liga a figura de Cristo a todas as vítimas, a crucificação a todas as destruições, a Paixão ao apocalipse. A abertura brechtiana, apresenta-nos a metáfora divina como uma metáfora da realidade humana, o fecho, lírico, mostra nos o horror e a miséria como materialização da parábola crística. As árvores vergadas pelas flores parecem ser a única ressurreição a que nos possamos agarrar. Da Paixão, a representação realça veementemente a vertente humana, mesquinha e perversa daquela condenação do homem que a História aparentemente só tem conseguido repetir, e o lado passivo de Cristo que se sabe de antemão renegado, que prega no vazio... Ora, o fervor e o amadorismo dos "actores" transmontanos revela-se mais rigoroso e comovente do que qualquer encenação pseudo-realista. Oliveira conjuga as lições de Rosselini e de Bresson antes de eles as levarem até às últimas consequências — sem falar dos vindouros J.M. Straub e D. Huillet. A sua própria obra futura retomará todas as apostas fortes do Acto da Primavera: a prioridade à palavra, a íntegra ponderada, a musicalidade, a metaforização, a fidelidade — que não exclui a manipulação estilística — ao "real" e às suas matérias, a denúncia da presença da câmara, a reconstituição pessoal das imagens "canónicas", o tema da fé enquanto objecto de questionamento, etc. Todavia, embora em cada filme de Oliveira eu descubra novas audácias e uma renovada inventividade formal, poucos me confrontaram com uma forma tão forte e inédita: o cinema litúrgico — é um ateu o autor destas linhas. Graças às vozes inegualavelmente timbradas e à dicção cantante dos aldeãos transmontanos, graças à corporização das poses e dos enquadramentos canónicos — do "Ecce Homo" à "Mater Dolorosa" — com rostos, troncos e membros concretos, Oliveira atingiu, antes e mais intensamente do que Pasolini, o sublime de certos pintores italianos que sabiam a que ponto a verdade do apóstolo pintado passava pela do mendigo, do vadio, do pobre camponês. A visão e a audição do Acto da Primavera — só Ordet de Dreyer tinha tocado tais cumes — transcendem a palavra humana e a imagem cinematográfica. Pela mão e pelo olhar de Oliveira penetramos no "mistério". Saguenail


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