A canção do bandido

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A CANÇÃO DO BANDIDO A primeira coisa que me ocorre a propósito do primeiro filme de David Mamet recentemente estreado no Porto (valha-nos a Sala Bebé e poucas outras) é um comentário sobre a estranha tradução do título (HOUSE OF GAMES — JOGO FATAL) que, por um processo de associação, o liga a outro filme (que aliás não vi) também recentemente estreado no Porto — ATRACÇÃO FATAL. Fatal de fado, soa que nem sino ao ouvido do espectador português assim promovido a vítima de uma pré-manipulação. Condiz formalmente com a fita, lá isso não digo... só que desta vez o crime compensa. Quem arrisca (quem pisa o risco que o separa doutro mundo) PETISCA. Do cruzamento de padrões e códigos de comunicação resulta a possibilidade de apostar mais forte — com sobriedade e eficácia, o filme de Mamet leva o espectador a acompanhar de fora e por dentro (condição de PATO) a subida da parada. O jogo de classes é de algum modo substituído por um desafio entre universos de crenças. A «vida» (cadeia de encontros) é retratada como uma encenação, um complicado bailado de aldrabões e aldrabados, como uma história de amor às peles das personagens que sucessiva e alternadamente cada qual pode vir a desempenhar. É o excesso de mestria táctica (em campos diversos mas não opostos) que conduz o vigarista e a psiquiatra a uma última confrontação sem artifícios. Não se trata pois da fatalidade do jogo mas, pelo contrário, do perigo a que se expõem e que representam aqueles que param de jogar, prescindindo, por um minuto que seja, da possibilidade de mudar de pele. Ora, a suspensão (provisória) do jogo corresponde ao momento em que um dos jogadores verbaliza efectivamente o ponto fraco do adversário, em que este vislumbra e revela, para além dos indícios que denunciam a regra e/ou a batota, os sinais que significam a natureza do OUTRO jogador. Neste caso, o primeiro vai para os anjinhos, o segundo entrega-se à doença. No plano estético o filme investe simultaneamente numa forte estilização (os movimentos de câmara, por exemplo, são «marcados» como uma coreografia) e numa constante referência à montagem em continuidade convencional. A primeira escolha assegura um certo recuo, a segunda garante com eficácia os momentos de surpresa. O filme «funciona» na medida em que o espectador, mesmo sem se identificar com a psiquiatra, é colocado em situação de partilhar a atracção desta pela ficção que perante o olhar de ambos se constrói. Num processo de cura psiquiátrica passa-se da ficção doentia à tomada de consciência por parte do doente de que a sua ficção é uma encenação. O filme de Mamet percorre o caminho inverso, visto que a ficção não sendo dada à partida, acaba por devorar a encenação. Trata-se pois de transcrever a perda de recuo por parte da psiquiatra. Exercício no bom sentido do estilo, JOGO FATAL pega por esta PONTA num tema delicado, mas batido... e convence. R. G.


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