A cor do humor aos belgas espanhóis (comereis o que convosco trouxerdes)1 A – O Quê I A mistificação, uma velha tradição A própria noção de autenticidade só é plenamente valorizada na época romântica, corolário de uma paixão pela História e de um culto do passado, em reacção contra as transformações que as revoluções acarretaram, tanto no plano político como industrial. Até então, os critérios de reconhecimento ou de rejeição dos textos submetiam-se, de modo perfeitamente assumido, às directivas ideológicas do poder instituído, que integravam tal texto no cânone ou o declaravam apócrifo independentemente dos seus fundamentos históricos. Foi portanto no século XIX, paralelamente ao fomento das «comunicações de massas» – antes das redes da era digital em que as fake news, divulgadas tanto anonimamente como por instituições governantes, sofrem tal inflação que já ninguém é capaz de distinguir a verdade da mentira –, que as falsificações vão multiplicar-se, do mais inofensivo – ou seja confinado ao campo cultural –, tal como o teatro de Clara Gazul ou os poemas ilíricos de La Guzla, de Prosper Mérimée, aos mais nocivos – que podem servir para legitimar a guerra ou o terrorismo –, tais como os Protocolos dos sábios de Sião cujo autor e cujas circunstâncias de redacção são perfeitamente conhecidas mas, não obstante, continuam a ser citados num artigo da constituição do Hamas. Indistintamente, o trabalho jornalístico almeja simultaneamente criar a opinião e esclarecê-la, contar patranhas e desmontá-las. A obra de Poe é, neste aspecto, exemplar: tanto forjou o Balloon-hoax como revelou a fraude do autómato Maelzel’s chessplayer, chegando mesmo a resolver o Mystery of Marie Roget transpondo-o ficcionalmente para as margens do rio Sena. No encalço de Nietzsche, George Steiner formula a hipótese de que a mentira é não apenas intrínseca à linguagem como também o fermento do seu desenvolvimento e da sua complexificação, na medida em que permite enganar o inimigo e assim derrubar o regime da «lei da selva» ou do «direito do mais forte». A História, que tem como função primeira justificar um estado social presente enquanto resultado de um longo processo, é uma ficção que tem de ser permanentemente reescrita. II Do «pintor da vida moderna» à arte moderna Ao promover um desenhador de esquissos de moda, ao desprezar a justificação fonética da rima – invocando a «rima normanda» para emparelhar o verbo «aimer» com o substantivo «mer» ou o verbo «rêver» com o substantivo «hiver»2 –, Baudelaire antecipa a radicalidade das rupturas literárias – mas também pictóricas – que se vão precipitar na viragem do século, formuladas e cumpridas por grupos e movimentos – muito embora os elementos mais fortemente influentes sejam jovem meteoros, assaz isolados, Ducasse, Rimbaud, Jarry – que, todos eles, se situam assumidamente na sua linhagem. O programa de todas essas correntes estéticas, do «simbolismo» ao «futurismo», começa por se definir pela negativa, pela recusa dos valores «clássicos» e do «bom gosto». A experimentação e a afirmação construtiva assenta numa prévia demolição, para a qual patranhas e manifestações de humor podem contribuir: Alphonse Allais, vinte e cinco anos antes de Francis Picabia – que, no âmbito de «dada» queria exprimir metaforicamente o apagamento de toda a tradição no domínio da pintura – ou Malevitch – que afirmava com o seu «quadrado branco sobre fundo branco» a virgindade da criação pictórica em gestação – expusera, entre outros quadros monocromáticos, sob o título «Primeira comunhão de meninas anémicas em tempo de neve», uma tela imaculada, inteiramente branca. Essas revoluções culturais no seio da boémia parisiense suscitam tanta hostilidade quanto entusiasmo e o seu reconhecimento oficial, que não foi imediato, esteve no centro dos debates intelectuais do século XX. Baudelaire é tido como um doente 1
Jogo fonético e semântico baseado na expressão «auberge espagnole», que designa um albergue no qual pretensamente os comensais só poderão comer os víveres que consigo trouxerem. 2 Ora [eme] não rima propriamente com [mεr] e [ʀεve] não rima propriamente com [ivεr]. A aproximação dos pares não rimantes obedece a um critério de gosto, semântico e subjectivo, e a um critério visual, concreto, de similitude gráfica.
perverso, Rimbaud como um drogado, Jarry como um brincalhão. A falta de documentos relativos a certos períodos das respectivas vidas – Baudelaire na «ilha Bourbon», Rimbaud na Inglaterra e na Etiópia, Ducasse no Uruguai e em Tarbes (a juntar ao facto de que o único retrato conhecido do poeta só foi descoberto em 1977) – fez sonhar os seus admiradores, despoletando a vontade de preencher essas lacunas, por vezes de maneira poética – retrato imaginário pintado por Man Ray – por vezes com recurso à impostura – invenção da conversão de Rimbaud por Paterne Berrichon e Claudel – e à falsificação. III O absinto de todos os encontros substituído pelo pastiche3 A Terceira República em França é reaccionária no sentido estrito: nascida da derrota do império e do esmagamento da Comuna de Paris que se lhe segue, fomenta as forças de repressão, tanto policial quanto militar. A censura abate-se sobre toda e qualquer publicação julgada não compatível com os bons costumes, o espírito revanchista é inculcado desde a escola primária – «O primeiro dever da França é não esquecer a Alsácia e a Lorena, que não a esquecem.», conclusão do manual «Histoire de France», de Ernest Lavisse, 1911 – que prepara as novas gerações para a próxima guerra enquanto o exército vai treinando com a conquista da Argélia e a aventura colonial. No entanto, toda a autoridade instituída suscita oposição, tanto mais provocadora quanto o horizonte parece tapado pela «linha azul dos Vosges» – «nunca se fala disso mas nunca se pára de pensar no assunto». É neste ambiente marcado pelo desespero que floresceram, em finais do século XIX, no seio da boémia parisiense, grupos de artistas à margem das escolas – e das querelas – de primeiro plano – «naturalismo», «simbolismo», «decadentismo», etc. – que cultivam a insolência e praticam alegremente a mistificação. Os seus nomes são, de per si, verdadeiros programas: os «Vilains bonshommes» (Sujeitos Vis), os «Fumistes» (Fraudulentos), os «Hydropathes» (Hidropatas), os «Incohérents» (Incoerentes), os «Hirsutes» (Hirsutos), etc. Alguns autores animam vários grupos – Charles Cros e Alphonse Allais participam em quase todos –, outros passam de uns para os outros – André Gill, Paul Bourget. O humor e a embriaguez – antes de mais bebedeira de absinto, mas de um modo mais geral o rimbaldiano «desregulamento de todos os sentidos» – presidem a todas as suas manifestações. O pastiche é um dos exercícios praticados. Assim, o album zutique4 contém vários poemas pretensamente assinados por François Coppée – o alvo favorito dos boémios –, Armand Silvestre ou Léon Dierx, poetas oficiais – condecorados ou mesmo consagrados «príncipe dos poetas» – e conservadores, tanto no plano estético como político. A circulação dessas paródias mantém-se todavia no plano do confidencial – o dito álbum só será impresso perto de um século mais tarde, no quadro da publicação das obras completas de Rimbaud. IV Os tiques apanham-se5 Além desta prática caricatural, o pastiche é herdeiro da retórica. Com o desenvolvimento da linguística, destacam-se novos critérios de análise estilística – de ordem sintáxica e lexical –, pelo que o pastiche pode ser encarado como um exercício crítico e formador. Ao produzir nove versões do relatório do processo «Lemoine», que pretendera deter o segredo do fabrico artificial do diamante, «à maneira» dos seus grandes predecessores – Balzac, Flaubert, Sainte-Beuve, Henri de Régnier, os irmãos Goncourt, Michelet, Émile Faguet, Renan, Saint-Simon – Marcel Proust contribui para a sua consagração. Pouco depois, os jornalistas Paul Reboux e Charles Müller propõem-se redigir, sistematicamente, À maneira de, fabricando pastiches de dezenas de autores, clássicos ou contemporâneos – primeira série, 1908: Maurice Maeterlinck, Paul Adam, Francis 3
Jogo de palavras baseado na semelhança entre o termo «pastiche» e o termo «pastis», sendo que este último designa a bebida popular com sabor a anis que substituiu o «absinto», dito fada verde, quando foi proibido por motivos de saúde pública. 4 O Cercle des poètes zutiques (ou Les Zutiques) era um grupo informal de poetas, pintores e músicos franceses que se reuniam no Hôtel des Étrangers, Paris, a partie de Setembro-Outubro de 1871. Das reuniões desse grupo restou sobretudo o «Album Zutique», uma espécie de diário de bordo que funciona simultaneamente como laboratório aberto às experiências poéticas e registo de desabafos e caricaturas. 5 No original «Les tics ça s’atrappe» formulação que contém um sofisticado jogo de palavras com o termo «éthique» (ética) e «satrape» (sátrapa), podendo pois ter como segunda leitura: a ética pode ser apanhada em flagrante delito, quando acaso se descobre a mão oculta de sátrapa, sendo que «satrape» era um dos graus dos participantes no Collège de ‘Pataphysique.
Jammes, Maurice Barrès, José-Maria de Heredia, Tristan Bernard, La Rochefoucauld, Joris-Karel Huysmans, Charles-Louis Philippe, Lucie Delarue-Mardrus, Conan Doyle, Henry Bataille, Jules Renard, Shakespeare; segunda série, 1910: Octave Mirbeau, Henri de Régnier, Léon Tolstoï, Lamartine, Mme de Noailles, Baudelaire, Marcelle Tinayre, Frédéric Mistral, Pierre Loti, Gyp, Jean Jaurès, Charles Dickens, Edmond de Goncourt, Émile Zola, Alphonse Daudet; terceira série, 1913: Jean Racine, Gabriele D'Annunzio, Chateaubriand, Paul Déroulède, Georges d'Esparbès, Henry Bordeaux, Henry Bataille, Paul Fort, G. Lenotre, Max e Alex Fischer, Stéphane Mallarmé, André de Lorde, Charles Péguy, Marcel Prévost, Brieux, Abel Bonnard, Paul Verlaine, Rudyard Kipling, Émile Faguet, Catulle Mendès, Auguste Rodin, Jules Claretie, Angelo Mariani, Octave Mirbeau, Cécile Sorel, René Bérenger, Doutor Doyen, X, director do Matin, Léon Frapié, Rothschild, Colette Willy, Mme Séverine, Henry Bernstein –, que Reboux prossegue sozinho após o falecimento do parceiro, não tardando a ser revezado por Georges-Armand Masson, que prefacia enunciando três critérios fundadores do exercício: notoriedade do autor parodiado, tiques e características «francas», reconhecíveis e imitáveis; veia cómica. O pastiche reivindica-se como tal, constitui-se como género e distingue-se radicalmente da falsificação literária. B – Quem V Na «Maison des amis du livre» Em plena guerra, a 15 de novembro de 1915, Adrienne Monnier inaugura a livraria La Maison des Amis des Livres no número 7 da rua do Odéon em Paris, estabelecimento que também funciona como biblioteca de consulta e onde a proprietária organiza sessões de leituras públicas e exposições. Também lá acolhe inúmeros escritores: Paul Fort, Paul Valéry, Pascal Pia, Jules Romains, James Joyce, Gertrude Stein, Louis Aragon, André Breton, Ezra Pound, Charles Vildrac, Georges Duhamel et músicos, nomeadamente Francis Poulenc e Erik Satie, até à altura em que a livraria «Shakespeare et Cie» – dirigida pela sua companheira Sylvia Bleach – se torna o centro da Odeónia, onde se encontram, nos anos 20 e 30, além dos primeiros fiéis, Ernest Hemingway, Jacques Lacan, Francis Scott Fitzgerald, Léon-Paul Fargue, André Gide, Walter Benjamin, Nathalie Sarraute, Valery Larbaud, Simone de Beauvoir, Jacques Prévert. Passado pouco tempo, ela confia a direcção da livraria a Maurice Saillet. Assim, as principais personagens que vamos reencontrar mais tarde por ocasião da descoberta do «Tutu» eram conhecidos de longa data uns dos outros, tinham-se frequentado, zangado, insultado, pelo que o significado e o valor da obra em questão são, em grande parte, determinados – não apenas a nível simbólico – por esse passado acerca do qual os testemunhos são insuficientes. Dum lado, temos dois mistificadores mais ou menos assumidos, do outro um poeta a ditar orientações, tanto estéticas como ideológicas, a impor posturas e a proferir exclusões. Todos são bibliófilos; os primeiros sem envergadura nem sentido crítico, mas com forte gosto pela brincadeira. Pascal Pia é autor de poemas falsamente atribuídos a Baudelaire ou a Apollinaire – mas publicados em prestigiosas colecções e antologias antes de essa fraude ter sido denunciada – para os quais solicitou a caução de André Breton. Ora o culto que Breton dedicava a esses poetas, na linhagem dos quais consagrava a atitude e as experiências do movimento que fundara, definindo muito precisamente as suas orientações, não lhe permitia encarar com ligeireza tais facécias literárias. O rigor de Breton valeu-lhe tantos inimigos quantos adeptos. VI O pequeno mundo dos editores, livreiros, coleccionadores e bibliófilos O último protagonista do caso já tinha falecido quando O tutu foi descoberto e só involuntariamente participou na trafulhice enquanto testa de ferro e pretenso autor. Editor dos Cantos de Maldoror – originalmente, Ducasse tinha feito uma edição de autor da sua obra –, é dado como desaparecido na sequência da penhora do Relicário – compilação das obras de Rimbaud – e da sua fuga para Inglaterra. Ora, dez anos mais tarde, ele está em Paris, continua a trabalhar no mesmo ramo e a frequentar os mesmos meios – eventualmente a conhecer os mesmos clientes – que Maurice Saillet ou Pascal Pia. Gérard Tasset, nos Cadernos Lautréamont, foi no seu encalço: «A série de obras publicadas fez com que Genonceaux fosse considerado o primeiro editor pornográfico parisiense do final do século XIX.
Prevendo uma condenação por ultraje aos bons costumes [efectivamente interveio, por defeito, a 12 de janeiro de 1892, de 13 meses de cadeia e 3.000 francos (da época) de multa – jornal “Est républicain” de 5 de janeiro de 1892], Genonceaux abandona, no fim de 1891, a sua editora da rua Saint-Benoît e o seu domicílio do número 5 da rua Adam Mickiewcz para se refugiar em Londres, no 30 Store Street, onde publica, em junho de 1892 «os inéditos recolhidos em Londres», continuação de um primeiro fascículo publicado em Paris antes da fuga. (...) Ume coisa é certa: tudo está preparado para o dia 8 de abril de 1902, dia em que Léon Genonceaux se casa, na junta de freguesia do 5º bairro com Elise Guionnet, nascida a 20 de Dezembro de 1871 em 16600-Ruelle sur Touvre. (...) Léon Constantin Genonceaux é então director da Librairie Internationale, que volta a ser a Librairie Française até 1903. É também director de uma livraria instalada no número 4 da praça Saint Michel em Paris VI. Mas esta última entrou pretensamente em falência a 5 de dezembro 1902 como o «Journal des Papetiers» de 1-1-1903 relata (fonte: Gallica) (...) Terá sido esta falência que o levou a abandonar então a edição para se tornar mercador de autógrafos? Todavia, ao que parece Genonceaux voltou a estabelecer-se como livreiro já que voltamos a encontrá-lo no Anuário da Livraria francesa de 1907 (Imp. L. Danel, rue Nationale, 93 à Lille, página 224 em 460) e no de 1909 (H. Le Soudier, editor, página 232 em 476) (fonte: Gallica).» Levanta-se assim a questão dos motivos do silêncio de alguns quanto à sua presença no bairro latino. https://cahierslautreamont.wordpress.com/2018/02/06/de-nouveaux-elements-sur-genonceaux/ VII Os émulos do papa6 – o surrealismo como disciplina Após seis anos de intervenções, de publicações – a revista « Littérature» –, de exposições e de conferências – certas dentro do género chalaça –, Breton, acompanhado por Aragon, Éluard e Péret, rompe com «dada» e funda o grupo «surrealista» – termo que foi buscar a Apollinaire depois de ter hesitado em adoptar o de «supernaturalismo» utilizado por Nerval –, do qual define a estética num longo Manifesto onde inventaria precursores detectáveis na História literária – especificando em que é que cada um deles pode ser considerado surrealista – e também poetas – os pintores só mais tarde se juntarão ao movimento – que experimentaram a «escrita automática», tendo assim dado provas de «surrealismo absoluto». O grupo reúne-se quotidianamente num café da praça Blanche, o Cyrano, onde se discutem todos os assuntos, estéticos ou políticos, gerais ou pessoais, teóricos ou práticos, onde se decidem as próximas acções e se praticam certos jogos ou experimentações. Paradoxalmente, enquanto Breton exige uma total coerência e solidariedade por parte dos membros do grupo em todas as suas tomadas de posição individuais ou colectivas, as reuniões são abertas e os curiosos que se apresentam são convidados a participar. Breton encarrega-se da formulação das directivas de fundo, mas o grupo intervém a propósito de todos os incidentes da vida cultural e política, publicando panfletos redigidos e aprovados colectivamente. Em certos aspectos, Breton não transige, nem admite hesitação ou diplomacia. Mais ainda que o carácter dogmático das suas injunções, foi a seriedade exigida por Breton no tratamento de todos os assuntos, inclusive o humor – cf. infra – que lhe valeu a alcunha de «papa», atribuída pelos seus adversários – baseada na expressão idiomática «sério como um papa» em língua francesa corrente. Se por um lado as práticas lúdicas – «jogos de papel» – e as brincadeiras sempre fizeram parte das actividades surrealistas, por outro, a exigência ética foi deveras a marca específica do grupo, amiúde acarretando fricções entre os membros. Bem antes das estrondosas rupturas dos anos trinta, desenha-se uma divisão entre a «margem esquerda» e a «margem direita», entre a rua Fontaine e a rua do Château. VIII Dominação da paisagem cultural Durante quinze anos, o surrealismo certamente constituiu a ponta da vanguarda estética, na poesia como nas artes plásticas, chamando a si todos os grandes criadores do seu tempo – Max Ernst, Pablo Picasso, Joan Miró, Yves Tanguy, Alberto Giacometti, Man Ray, Hans Arp, Hans Bellmer, Luís Buñuel, Salvador Dali, André Masson, René Magritte, etc. – e os poetas mais originais – além de Paul Éluard, Louis Aragon e Benjamin Péret que participaram na sua fundação, Antonin Artaud, 6
Trocadilho a partir da expressão «la mule do pape» (a mula do papa) que ela mesma provém do título de uma novela de Alphonse Daudet.
Robert Desnos, Jacques Prévert, etc. –, e não tardou, de tal maneira cresceu a sua influência, a internacionalizar-se. Breton coloca as orientações do programa surrealista sob a tutela de «poetas malditos» do século XIX, devido ao fulgor das suas formulações poéticas, mas também ao seu talento de descobridores – Baudelaire citando Aloysius Bertrand, Jarry estabelecendo a lista dos «livros pares» do doutor Faustroll – ou à infalibilidade do juízo crítico relativamente às glórias literárias contemporâneas – Rimbaud julgando-os sob o ângulo da «vidência» na sua carta a Paul Demeny de 15 de maio de 1871, Ducasse condenando as «Grandes-Cabeças-Moles» da sua época. É sem dúvida essa capacidade de avaliar lucidamente – e humoristicamente – os seus pais – porventura os seus pares – que torna, aos olhos de Breton, Ducasse intocável: no segundo Manifesto, não hesita em atacar Baudelaire e Rimbaud por não terem «tornado absolutamente impossível certas interpretações desonrosas» do seu pensamento, mas mantém Ducasse «à parte», a despeito da explícita viragem do autor, passando da exaltação do mal para a apologia do bem, de Maldoror às Poésies. Ainda em tempos de «dada», Breton copiou as sentenças de Ducasse do único exemplar conservado na Biblioteca Nacional para as publicar imediatamente na revista «Littérature» – por muito que Maurice Saillet pretenda, em 1954, numa série de artigos intitulados «Os inventores de Madoror», «reduzir a nada a lenda da descoberta de Maldoror pelos Surrealistas» («este último ponto era o seu verdadeiro objectivo, embora não implicitamente confessado»), é obrigado a reconhecer que «o quarto de século» («do simbolismo a 1920») «figura bastante bem aquilo a que se poderia chamar o Purgatório de Maldoror». C – Porquê IX O assassínio simbólico do pai Retrospectivamente, o panorama da vida intelectual francesa dos anos cinquenta e sessenta – foi em 1966 que Pascal Pia revela a sua descoberta do «Tutu» –, dividido entre correntes que possuem cada qual sua revista – o existencialismo de Sartre e « Les temps modernes», a obediência comunista de Aragon e «Les Lettres françaises» – concorrente das tradicionais NRF e Mercure de France, deve ser analisado em função do jogo de reacções contra essa dominação intransigente do grupo surrealista antes da guerra. Pois desde 1930, no seio do grupo, os desacordos vão tornar-se conflitos quando Breton – antecipando a noção de «engajamento» que Sartre formulará mais tarde – reclama a adesão colectiva dos membros do grupo ao partido Comunista Francês, e desencadeia o ciclo de rupturas e de exclusões que continuará mesmo depois a morte de Breton. A maior parte serão definitivas – Breton e Artaud só se reconciliaram quando o segundo estava internado em Rodez – ora por «razões pessoais» – Raymond Queneau era cunhado de Breton – ou políticas: René Daumal e Roger Gilbert-Lecomte, da revista «Grand jeu», recusam a adesão ao materialismo dialéctico, Robert Desnos começou por se juntar a Georges Bataille mas acabará por entrar no partido durante a resistência, Aragon fica no Partido quando Breton rompe em 1935 – na sequência da recusa de lhe dar a palavra no «Congresso internacional dos escritores pela defesa da cultura» que terá motivado o suicídio de René Crevel – e Éluard adere de novo durante a guerra. Tanto a adesão ao grupo como a ruptura reveste um carácter passional que salta aos olhos num panfleto como «Um cadáver» – título idêntico ao que, na época «dada», fora utilizado contra Anatole France –, em que os insultos fazem as vezes de argumentos, texto escrito e publicado por iniciativa de Georges Bataille. Essas inimizades perdurarão durante várias décadas e algumas não chegarão a extinguir-se. Todavia, até à segunda guerra mundial, o grupo surrealista sobrevive às cisões e conserva a sua influência – vai ganhando inimigos na razão directa da sua aura. A exigência de Breton, que reclama uma «assepsia moral de que ainda muito poucos homens querem ouvir falar» não lhe será perdoada . X Da «ocultação» à historicização A segunda guerra mundial marca uma viragem na História da França. Num país, profundamente dividido pelo «caso Dreyfus», em que o anti-semitismo triunfa; em que a disciplina e a ordem nazis fascinam; em que o medo dos revolucionários leva o governo, composto de partidos supostamente de esquerda unidos numa «Frente popular», a instalar os primeiros campos de concentração para
acolher os combatentes espanhóis vencidos por Franco; em que a esmagadora maioria da população, como em muitos outros países, colaborou; em que o ajuste das contas mais mesquinhas se resolveu com denúncias à Gestapo, a qual recebeu quotidianamente milhares de cartas; os vencedores da «Libération», tanto gaullistas como comunistas, fizeram questão de apagar esta página pouco gloriosa e de reescrever a História, fazendo retrospectivamente da «resistência», que contara com escassos milhares de combatentes, a alma e a essência da pátria. Nesse contexto, todos aqueles que tinham abandonado o território, sobretudo rumo à América mal sentiram a sua vida e a sua actividade ameaçadas, foram estigmatizados, considerados cobardes por terem fugido e excluídos do debate intelectual. Breton partira para Nova Iorque. Antes do seu regresso, Maurice Nadeau, que acompanhara as actividades do grupo nos anos trinta, publica uma «História do surrealismo» que simultaneamente reconhece a sua influência preponderante antes da guerra e anuncia o seu insucesso no quadro da nova situação política de uma Europa libertada mas também de uma guerra fria a dividir águas. No segundo Manifesto, Breton reclamara «a ocultação profunda» do surrealismo; ora Nadeau sentencia «in absentia» a extinção do movimento – todavia, de volta à Europa, Breton reformou o grupo rodeando-se de jovens poetas. O panorama intelectual francês do pós-guerra é dominado pelo «existencialismo» – Sartre ataca o surrealismo em «O que é a literatura?», condenando tanto a sua poesia como a sua obediência freudiana – e o partido comunista triunfante – o panfleto «A desonra dos poetas» publicado por Péret no México, que critica os poetas resistentes da clandestinidade, fazem dele o homem a abater. Na medida do possível, relativamente aos surrealistas, passa a reinar a lei do silêncio. XI A Antologia, uma bomba-relógio. Durante vários anos, antes da sua partida para a América, Breton empreendeu aquela que será, pelo menos em volume, a sua maior obra: a «Antologia do humor negro». Proibido pela censura de Vichy, no momento da sua publicação em 1940, o livro só começa a circular em 1945, depois da «Libération». A todo o custo se tenta abafar o alcance da obra – Queneau declara-a «datada» e contesta o seu valor libertador: «a luta contra o nazismo, ela, não se fez ao nível desse tal humor negro. Fez-se com metralhadoras e bombas de dez toneladas.» Todavia teve, já em 1950, uma segunda edição enriquecida, antes da edição definitiva revista por Breton no ano da sua morte. Com efeito, Breton não se limita a retomar a lista dos precursores do surrealismo, trocando a definição lapidar do primeiro Manifesto por uma nota simultaneamente mais informada e esclarecedora, destacando para cada um dos autores tanto a sua originalidade como os horizontes que ele abre. Ao fazer isso, Breton imiscui-se em terreno que costuma ser caça reservada aos universitários incapazes de rivalizar com as suas considerações teóricas e dos bibliófilos, hierarquizando os escritos de cada autor pois nem todos revestem igual importância e, por vezes, numa mesma obra, os diamantes estão envoltos em escórias. Por um lado, Breton define não apenas o funcionamento – distinguindo definitivamente o humor do cómico e eliminando o critério do Riso analisado por Henri Bergson – mas, retomando a demonstração e as considerações de Freud a propósito do «dito espirituoso e das suas relações com o inconsciente», uma função do humor, que permite enfrentar e ultrapassar as forças negativas geradas pelo real – a solidão, o encarceramento, a dor, ou até a morte. Por outro lado, propõe uma contra-história da literatura em que, com base em critérios claramente definidos, inúmeras glórias oficiais são relegadas para o poço do esquecimento e, graças a uma orientação coerente, autores reconhecidos e escritores quase desconhecidos encontram-se reunidos numa só obra. A Antologia do humor negro continua a ser uma referência passadas várias décadas. A expressão, tal como a de «L’amour fou» (amor louco) – escrito e publicado em 1936 –, entrou no léxico corrente e acabou por se degradar do ponto de vista semântico, à falta de necessários regressos à fonte, até se tornar sinónimo de humor macabro. XII O «caso Rimbaud» Por entre os autores seccionados para a «Antologia», alguns são quase coutada de alguns protagonistas da «descoberta» do Tutu: Pascal Pia, especialista de Baudelaire e de Apollinaire – publicou Baudelaire par lui-même e Apollinaire par lui-même – de quem forjou alguns pastiches não imediatamente identificados como tais; Maurice Saillet, de Ducasse e Jarry; François Caradec, de Alphonse Allais;
Emmanuel Peillet, de Jarry – multiplicado por inúmeros heterónimos, fundou por sua (quase) solitária iniciativa o Collège de ´Pataphysique onde todos se vão cruzar. Mas bem antes de Le tutu, todos participam, directamente ou indirectemente, no escândalo de «La chasse spirituelle» (A caça espiritual). Em 1949, um manuscrito (quase) mítico de Rimbaud – mencionado unicamente na correspondência com Verlaine – foi confiado, sob sigilo, ao empregado de livraria Marcel Billot que não tarda a mostrá-lo a Maurice Saillet que o dá a ler a Pascal Pia – prefaciador da sua edição –, a Emmanuel Peillet – que levantará dúvidas quanto à sua autenticidade ou, pelo menos, quanto à sua qualidade – e a Maurice Nadeau – que, com a sua caução, legitimará o inédito. Ora, mal o texto é publicado, Breton denuncia com virulência a falsificação – sob o título Flagrante delito: já fora enganado por Pia e Saillet e não tinha grande apreço por Nadeau, coveiro do surrealismo – cujos autores logo se deram a conhecer: Akakia Viala e Nicolas Bataille tinham querido vingar-se de críticos que, aquando da representação de um espectáculo concebido a partir de Une saison en enfer, tinham posto em causa a sua competência rimbaldiana. Nadeau nunca admitirá o erro cometido e afirmará até ao fim dos seus dias estar convencido de que o texto era de Rimbaud, provando obstinadamente a sua incompetência crítica. No fim de contas é François Caradec, amigo dos falsários mas, neste caso, não cúmplice, ele mesmo grande especialista da mistificação e, por outro lado, colega bibliotecário de Akakia Viala no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques), que responde a Breton, opondo ao Flagrante delito um Simples auto policial, texto no qual subtilmente desloca o enfoque sobre a autenticidade de La chasse spirituelle para a personalidade intransigente – a seu ver praticamente paranóica, na sua mania das grandezas como na sua mania da perseguição – de Breton. D - Quando XIII Todos contra um «Não quero deixar este vale de larvas7 antes de ter escrito claramente o que sei da aventura que aconteceu a dois amigos perdidos, Pascal Pia et Maurice Saillet, e na qual o senhor esteve envolvido, já que se trata da Chasse Spirituelle, e eu mesmo também porque era bibliotecário no IDHEC ao mesmo tempo que Akakia Viala. Serve isto essencialmente para dizer aos que não o sabem ou não o querem saber quem era visado e quem se julgou visado, mas também para mostrar a importância, o quase congestionamento, de Rimbaud nos anos do pós guerra, e a própria origem rimbaldiana do Collège de ’Pataphysique.» (carta de François Caradec a Maurice Nadeau, 25 de janeiro de 1998, citada na p. 279 do posfácio de Jean-Jacques Lefrère da reedição de La chasse spirituelle sob a autoria de Rimbaud en 2012 – entretanto houve, por ocasião do centenário do nascimento do poeta, uma edição em que o texto, assumido como «pastiche rimbaldiano» fora restituído a Akakia-Viala e Nicolas Bataille). Esta confissão um tanto tardia é porventura uma chave que se nos oferece para a reconstituição dos contornos da descoberta do Tutu. Em 1948, pouco antes do «caso Rimbaud», foi fundado o Collège de ‘Pataphysique por uma singular, ou, melhor dizendo, múltipla, personagem: «Emmanuel Peillet apreciava particularmente os pseudónimos e, segundo ele, o seu nome «Emmanuel Peillet», era o seu «pseudónimo legal». São-lhe atribuídas múltiplas identidades, que ele sempre negou com firmeza, mormente : P. Lié, Latis, Anne de Latis, Jean-Hugues Sainmont, Dr Sandomir, Mélanie le Plumet, Oktav Votka, Elme Le Pâle Mutin, etc.» (https://fr.wikipedia.org/wiki/Emmanuel_Peillet) – trata-se da lista oficial dos fundadores do Collège de 'Pataphysique. Sob a égide de Jarry, vai reunir-se uma boa parte dos inimigos de André Breton: já em 1948, François Caradec e Maurice Saillet; em 1950 Raymond Queneau junta-se a eles, antes de Pascal Pia em 1951. Porém, o antagonismo que opõe o Collège ao grupo surrealista nunca será objecto de declarações abertas, traduzindo-se antes por uma concorrência intelectual, tanto ao nível da teoria como da investigação literária, ou até dos jogos praticados colectivamente. XIV A ética dos Satrapes Em qualquer grupo humano, seja ele qual for, o talento não se encontra repartido em partes iguais. No caso dos surrealistas, a par dos solistas notáveis, poetas de menor interesse acompanham o movimento. De idêntico modo, no Collège de ‘Pataphysique, nem todos são do calibre de um Raymond Queneau, de um 7
Jogo de palavras baseado na proximidade da expressão «vallée de larmes» (vale de lágrimas) com esta invenção «vallée de larves» (vale de larvas).
Boris Vian, de um Jacques Prévert ou de um Eugène Ionesco – assim como o Oulipo 8, que é, à partida, uma secção do Collège, não reúne unicamente escritores da envergadura de Georges Perec, Italo Calvino ou Jacques Roubaud; certos oulipianos menos dotados ousaram mesmo defender que uma «boa» restrição9 devia permitir, e até prever, infracções! Aquilo que junta os membros que estarão implicados na revelação de uma obra não inédita mas quase, que escapa a qualquer classificação, O tutu – a saber os sátrapas Maurice Saillet e Pascal Pia e o regente François Caradec – é, além do ódio de André Breton, a fusão de uma autêntica curiosidade erudita com o espírito de mistificação. Muitos inéditos de Jarry foram efectivamente encontrados e publicados nos Cahiers do Collège após pacientes pesquisas, e a falsificação pode, nesta perspectiva, ser considerada como parte do processo de procura e resposta ao desejo frustrado de descoberta. Também entra em jogo a vontade de recuperar certos autores «confiscados» por Breton, nomeadamente Jarry, Ducasse, Rimbaud e Allais. A par destes interesses nimbados de seriedade, os três praticam e defendem a mistificação, sob a égide de Allais, grande coleccionador de embustes, mas também de Charles Cros, animador do círculo «zutiste» no qual participaram Rimbaud, Verlaine e Nouveau. François Caradec publicou, em parceria com Noël Arnaud – outro sátrapa, biógrafo de Boris Vian – uma Encyclopédie des Farces et Attrapes et des Mystifications10. Maurice Saillet, no seu artigo «Defesa do plágio», fez deste último o arquétipo de toda a escrita – os escritores mais originais não inventaram a língua na qual se exprimem –, incluindo nessa categoria «os géneros circunvizinhos do plágio – o pastiche e a paródia – que nos valeram o maremoto poético de Maldoror» e interpretando o mandamento ducassiano – «A poesia deve ser feita por todos, não por um» – não como uma abolição de privilégio cultural mas como uma consciência da natureza metaliterária da literatura. XV Crítica «externa»: capas – a montante (anúncio) e a jusante (atribuição) do texto Do Tutu, a única peça autenticada de 1891 é um anúncio da edição do livro «no prelo» por Léon Genonceaux na Bibliographie de la France de 6 de junho. Os únicos exemplares impressos do livro aparecem um século mais tarde e apresentam fortes contradições: o próprio texto está datado na última página de 6 de setembro de 1891 e portanto não teria sido acabado na data em que foi anunciado como estando no prelo. Não existe nenhum rasto material nem da sua impressão, nem da sua distribuição quando Genonceaux deixa Paris, nem a menor menção da sua existência antes da revelação de Pascal Pia em 1966 – que omite a prossecução das suas actividades editoriais, mencionada por Saillet, em 1902 ainda. Os cinco exemplares pretensamente encontrados reduzem-se na verdade a três, porque «um deles não tem capa, enquanto dois coleccionadores possuem capas sem miolo.» Em contrapartida, existem duas capas diferentes, a lombada de uma dá como autor «Sapho» sem nenhum outra indicação, o título sem subtítulo e o editor no singular, enquanto uma outra lombada tem inscrita «princesse Sapho» como autoria, o subtítulo «Mœurs fin de siècle» 11 e dá como «editores» no plural «L. Genonceaux et Cie». Dá a impressão que se trata tão-só de um jogo de provas tipográficas e que o tipógrafo hesitava ainda quanto ao aspecto formal a dar ao livro e à respectiva capa: os corpos dos tipos impressos são diferentes, os espaçamentos também, a qualidade do papel também não é a mesma. Entre 166, data do artigo de Pia que orienta de antemão todas as futuras tentativas de identificação do autor escondido sob o pseudónimo «Sapho», e a publicação em fac-simile, a partir de um desses exemplares em 1991, passaram 25 anos durante os quais só se conhece o texto dactilografado pelo próprio Pascal Pia. Pelo que uma crítica «externa» conduz à hipótese de que é bem possível que se trate de uma mistificação, de uma composição tardia de um falso livro escrito no século anterior. Um dos membros do Collège (pelo menos um) possuía o saber fazer e os meios necessários a realizar materialmente o objecto, François Caradec, que começou por ser tipógrafo e retomou a sua própria tipografia quando deixou o seu posto na biblioteca do IDHEC. 8
OUvroir de LIttérature POtentielle. Nos antípodas da escrita automática dos surrealistas, submetida tão-só ao ditado do inconsciente, os oulipianos optaram por um caminho recheado de restrições e imposições cujo pretenso efeito, paradoxalmente libertador, se traduziria por um aumento das potencialidades da criação literária. 10 «Enciclopédia das Partidas, Burlas e das Mistificações». Em França, são tradicionais as lojas dedicadas a objectos cujo único propósito é a brincadeira – «Magasin de Farces et Atrappes». 11 «Costumes de fim de século». 9
XVI Alvo falhado: o prato frio e o corpo arrefecido O verdadeiro nascimento do Tutu data pois de 1966, com o artigo de Pascal Pia publicado por Maurice Nadeau na sua revista «La quinzaine littéraire» a 15 de abril. Essa data não se deve ao puro «acaso» que Pia gostava de invocar para justificar os seus achados, verdadeiros ou falsos. Em 1966 é anunciada a edição «definitiva» da Anthologie de l’humour noir pela casa de edição Jean-Jacques Pauvert. O surgimento de um livro tão «estranho», completamente eivado de humor «negro», em que o grotesco vai de mãos dadas com o transgressivo, parece naturalmente fadado para ter lugar de destaque na dita antologia conquanto Breton o descubra a tempo. Embora tenha declarado a sua intenção de não actualizar a lista dos autores incluídos, Breton não esconde a pena de não figurarem na antologia autores entretanto descobertos, tais como Georges Darien – de quem prefaciou Le voleur –, Maurice Fourré – de quem fez publicar La nuit du Rose-hôtel pela Gallimard, numa colecção «Révélation» que, dado o magro sucesso obtido pelo primeiro título, foi imediatamente extinta –, etc. Talvez a leitura do Tutu o fizesse mudar de ideias. O artigo de Pascal Pia tem tudo para despertar a curiosidade e o carácter hipotético da atribuição a Genonceaux não apenas deixa em aberto a possibilidade de aventar outras suposições – coisa que JeanJacques Lefrère não deixará de fazer em 2008 – como estimula a veia de detective do leitor, o que deveria bastar para adormecer a desconfiança que qualquer achado da sua parte levantava forçosamente. Por não atribuir a paternidade do livro a um autor conhecido, Pia reduzia consideravelmente os riscos de denúncia de embuste e coloca Breton num beco sem saída: caso não inclua Le tutu, a sua Anthologie ficará para sempre lacunar; caso inclua, provará a mesma incompetência que tão violentamente denunciou a propósito de La chasse spirituelle. É a própria invisibilidade do livro, durante vinte e cinco longos anos, que confere, retrospectivamente, consistência à hipótese de uma mistificação especialmente montada para consumar uma vingança: com efeito, Breton morre a 28 de Setembro desse ano e o livro, já sem razão de ser posto a circular, cai no poço do esquecimento da História literária. Quando volta a emergir, em 1991, nas edições Tristram, a maior parte dos protagonistas do caso – os que foram acusados em 1949 – entretanto também já faleceram: Peillet em 1973, Pia em 1979, Saillet em 1990.
E - Como XVII Le(con)frère12 Um novo interveniente pega na pena para redigir um posfácio documentado com vista à reedição de 2008. Trata-se de Jean-Jacques Lefrère, médico especialista em transfusões antes de se tornar investigador no domínio das letras, cuja coroa de glória terá sido a descoberta, em 1977, da fotografia de Isidore Ducasse – a única jamais desencantada – no álbum da família Dazet, na cidade de Tarbes. Com efeito, Lefrère não se limita a vasculhar bibliotecas, arquivos e colecções, não hesitando, para encontrar documentos inéditos, em lançar-se na pista dos autores. Assim, foi até Montevideo para investigar a família de Ducasse e a infância do poeta, como mais tarde irá, no encalço de Rimbaud, até Aden e ao Harrar para recolher vestígios da passagem do poeta. É amigo de Maurice Nadeau, na revista de quem publica textos críticos, e de François Caradec. Especialista quase intocável, em 2012 republica La chasse spirituelle acrescentando-lhe um posfácio de mais de 260 páginas nas quais, sem apresentar nenhum elemento novo, defende os «caçadores»13. «Como em qualquer bom romance policial, Jean-Jacques Lefrère acumula os indícios, as provas, os desmentidos, as falsas pistas, os depoimentos, os contra-testemunhos, vai gerindo o suspense. Avança-se, recua-se. Uma pessoa acaba por se perder. Quem manipulou quem, e porquê ? Onde é que o autor do inquérito pretende conduzirnos? Será que ele mesmo sabe para onde vai?» (Philippe Sollers, 30 décembre 2012, http://www.pileface.com/sollers/article.php3?id_article=1348). No seu posfácio do Tutu, Lefrère adopta uma outra estratégia: em lugar de confundir o leitor com a cortina de fumo composta de documentos contraditórios, recorre à técnica de prestidigitação que consiste em focar a atenção sobre uma falsa pista – a atribuição da autoridade não a Genonceaux mas a Henri d’Argis, seu contemporâneo, que se teria auto-caricaturado a si mesmo, ao confirmar a antiguidade do texto faz as vezes do jogo de três copos – para a desviar da verdadeira manipulação – as contradições de datas ou de apresentações são mencionadas mas não sublinhadas, e não lhe merecem o menor comentário. A falsificação é paradoxalmente legitimada pelas próprias dúvidas que deixa pairar. XVIII Tu relus Tutu14 Julián Ríos sintetizou perfeitamente a impressão imediata, antes de qualquer outro juízo de valor, que a leitura do Tutu suscita: «Esse aerólito literário do final do século XIX, descoberto um século mais tarde, parece conservar vestígios de astros posteriores à sua formação». Na medida em que nenhum autor conhecido, nem nenhum precedente literário lhe pode ser atribuído, já não se pode falar de pastiche mas antes de postiço – feito de bocados heteróclitos –: na verdade, só a partir do artigo de Maurice Viroux em 1946 e a tese de doutoramento de Pierre Capretz – Quelques sources de Lautréamont15 –, em 1950, é que o princípio da colagem praticado par Ducasse – que não se limita aos artigos da Encyclopédie d’histoire naturelle do doutor Chenu – foi reconhecido como característico da sua escrita; a integração de capítulos dos Chants de Maldoror (capítulo VIII) em Le tutu constitui pois uma mise en abyme inimaginável no final do século XIX. O parentesco entre a «vitalina» (capítulo VII) e a «resurrectine» imaginada par Raymond Roussel – outro autor disputado a Breton pelos garimpeiros do Collège – em Locus solus (1914) salta aos olhos e parece uma alusão directa. Na carta escrita com ortografia extravagante (capítulo VIII) e na declaração formulada com palavras truncadas (capítulo VII), reconhecem-se as imposições propostas por Queneau nos seus Exercices de style nos capítulos «homofónico» e «apócopes» respectivamente. Etc. Uma lista exaustiva das referências, alusões e inspirações seria deslocada num prefácio. O que é mais notável é que cada pirueta estilística aparece apenas num único capítulo, como se, à imagem do que acontece com os «cadernos de encargos» estabelecidos por Georges Perec para a redacção de obras de maior fôlego – La vie, mode d’emploi16 em 12
Não esquecer que a palavra «con», cujo sentido estrito é «cona», é utilizada em francês como injúria dirigida a alguém que se considera estúpido e mal intencionado. Para além do jogo de palavras advindo do nome «Lefrère», já que «frère» significa «frade». 13 Nome dado aos defensores da autenticidade de «La chasse spirituelle». 14 Jogo de palavras apoiado na homofonia entre a proposição «Tu relus Tutu» (em português: Releste Tutu) com a onomatopeia francesa «turlututu» que, em linguagem infantil, indicia a recusa desdenhosa de ouvir alguém. 15 «Algumas fontes de Lautréamont». 16 «A vida, modo de usar».
particular –, o autor tivesse dividido, ao longo do livro e correndo porventura o risco de se contradizer, os modelos a citar ou a parodiar. A incontornável evidência é que todas essas referências remetem para textos estudados ou redigidos – no caso de Raymond Queneau – por membros do Collège. Seja qual for o nosso ponto de vista sobre o texto, Le tutu conduz-nos sempre às mesmas premissas e aos mesmos comparsas. XIX Crítica «interna»: fou littéraire ou faux littéraire17 – uma autoria colegial? Os argumentos aventados para a atribuição a um autor passam pela identificação de personagens do romance a pessoas próximas de Genonceaux, putativo editor do livro. Esse reconhecimento, transparente em Pascal Pia – Maurice de Brunhoff por detrás de Mauri de Noirof –, mais laboriosa em Lefrère – Henri d’Argis por detrás de Jardisse, hipótese que ele próprio admite ser «pouco convincente» – não constitui de modo nenhum um argumento em favor da autenticidade do livro: um falsário tem como obrigação mínima ser uma criatura informada. Uma faceta muito relevante do Tutu é a descontinuidade de um capítulo para o outro: ao nível formal da enunciação, passa-se do descritivo inscrito na duração – emprego dominante do imperfeito (capítulos I e IV) – para o narrativo pontual – emprego do pretérito perfeito simples, dito «passé simple» (capítulos III e V) –, com uma fatia intermédia de diálogo dramático no presente (capítulo II), antes de um regresso à alternância convencional entre os dois tempos verbais; ao nível da coerência narrativa, em que os dados fornecidos acerca de uma personagem podem inverter-se uns capítulos a seguir – o bispo de Jurjura começa por surgir como um debochado mas mais tarde revela-se um banal escroque, Hermínia, apesar do seu alcoolismo, é-nos apresentada como uma inocente ou, pelo menos, como um ser sexualmente abstinente mas vem a revelar-se adúltera desde a primeira hora, etc.; por fim, ao nível estilístico, a utilização no capítulo III da conjunção alternativa «ou» desencadeia uma enumeração de hipóteses equivalentes – «...a princípio, o cheiro dava vómitos mas parecia sublime mal uma pessoa se começava a habituar, e com um bocado de imaginação, evocava um patchouli almiscarado ou um almíscar patchoulicado. Ou, melhor dizendo, evocava o perfume de uma mulher semi-mundana, estragada pelas lutas do amor e frescamente impregnada pelas múltiplas fragrâncias do seu boudoir. Ou melhor ainda, evocava o cheiro de uma mulher muito honesta, solteira, virgem, ciumenta, maldosa, fumadora de tabaco do Oriente e capaz de despejar água de Colónia da marca Lubin na sua roupa interior...» – enquanto no capítulo IX a mesma conjunção passa a introduzir tão-somente uma inversão dos termos – «...da quantidade de horrível fealdade ou de horror feio...». No caso de estarmos perante uma falsificação, a hipótese de uma redacção colegial não parece mais inverosímil do que as improváveis atribuições propostas por Pia ou Lefrère. Julián Ríos é o primeiro a sugerir: «O tutu parece ser obra de inúmeros autores, o filho precoce e escandaloso de vários pais». N XX Trouver ça faux (l’auteur) néanmoins – comme Cléopâtre – curieux (le texte)18 Além das inspirações imediatamente identificáveis, é possível ler em Le tutu uma revisitação ou, pelo menos revisão, da História literária francesa – ou parisiense – do século XX, cujos marcos relevantes se encontram transpostos num tom bufo. Logo na primeira página, do simbólico nevoeiro que enceta a narrativa emerge um pedaço de tijolo cuja significação se resume à sua presença obstinada e que Mauri acaba por apanhar e conservar como um amuleto – reaparece no capítulo VII, nos perdidos e achados, por entre os muitos que o protagonista perdeu ‒; o sentido de um elemento deste tipo, reforçado pelo seu carácter irrisório, é parente da árvore que provoca a náusea de Roquentin. As paródias das formulações «surrealistas», oxímoros – «...num cavalo, sem cabeça mas com o freio nos dentes, às arrecuas...» (capítulo I), «...uma chuva de mulheres nuas com muito dinheiro nos bolsos, um rio de calhaus povoado de peixes...» (capítulo VI) – ou eivadas de absurdo – «...havia plantas transparentes com folhas pretas. Havia roseiras que davam peras. Um pouco adiante, havia um arbusto sem folhas cujas raízes cresciam no ar. Uma ameixoeira frutificava espirais de papel. Nas filas de morangueiros, floriam rosas verdes...» 17
Jogo sobre a proximidade sonora entre a expressão «fou littéraire« (louco literário) a a expressão «faux liitéraire» (falsificação literária). Um «fou littéraire» é um autor que não obteve reconhecimento nem por parte da comunidade intelectual, nem por parte do público, nem por parte da crítica, nem por parte do mundo editorial. Raymond Queneau debruçou-se sobre os «fous littéraires» numa obra intitulada «Les enfants du limon». 18 Literalmente: Achar falso (o autor) todavia – como Cleópatra – curioso (o texto), sendo que «trouver ça faux» soa como «trouver sapho» e «néanmoins» soa como «nez en moins». Relativamente ao nariz de Cleópatra, Blaise Pascal escreveu: «Se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais curto, toda a face do mundo teria mudado».
(capítulo VII) – encontram-se espalhadas por todo o livro. Já anteriormente mencionámos a proximidade das invenções de Messé-Malou neste capítulo com as de Martial Canterel no romance de Raymond Roussel Locus solus; as considerações acerca do cheiro da urina no capítulo III relembram as páginas sobre os espargos em Du côté de chez Swann, de Marcel Proust; sem falar dos já citados recursos estilísticos colhidos quase directamente na obra de Queneau. Este breve inventário não passa de uma primeira colecção a completar. A originalidade do Tutu consiste em integrar esta faceta meta-literária num enredo kitsch do mais duvidoso gosto, onde tanto as convenções politicamente correctas como os tabus mais severos, do aborto ao incesto, são sistematicamente transgredidos. Livro monstruoso, «hénaurme»19, à imagem da sua personagem dupla Mani-Mina, Le tutu, no fim de contas, não se parece com nenhuma obra conhecida. Talvez não seja precursor mas também não possui precursor. E é porventura enquanto falsificação que mereceria figurar na Anthologie de l’humour noir. Saguenail Junho 2019
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Ortografia deformada do termo «énorme» num sentido hiperbólico, utilizada por Jarry.