A cor do humor aos belgas espanhóis (comereis o que convosco trouxerdes)1 A – O Quê I A mistificação, uma velha tradição A própria noção de autenticidade só é plenamente valorizada na época romântica, corolário de uma paixão pela História e de um culto do passado, em reacção contra as transformações que as revoluções acarretaram, tanto no plano político como industrial. Até então, os critérios de reconhecimento ou de rejeição dos textos submetiam-se, de modo perfeitamente assumido, às directivas ideológicas do poder instituído, que integravam tal texto no cânone ou o declaravam apócrifo independentemente dos seus fundamentos históricos. Foi portanto no século XIX, paralelamente ao fomento das «comunicações de massas» – antes das redes da era digital em que as fake news, divulgadas tanto anonimamente como por instituições governantes, sofrem tal inflação que já ninguém é capaz de distinguir a verdade da mentira –, que as falsificações vão multiplicar-se, do mais inofensivo – ou seja confinado ao campo cultural –, tal como o teatro de Clara Gazul ou os poemas ilíricos de La Guzla, de Prosper Mérimée, aos mais nocivos – que podem servir para legitimar a guerra ou o terrorismo –, tais como os Protocolos dos sábios de Sião cujo autor e cujas circunstâncias de redacção são perfeitamente conhecidas mas, não obstante, continuam a ser citados num artigo da constituição do Hamas. Indistintamente, o trabalho jornalístico almeja simultaneamente criar a opinião e esclarecê-la, contar patranhas e desmontá-las. A obra de Poe é, neste aspecto, exemplar: tanto forjou o Balloon-hoax como revelou a fraude do autómato Maelzel’s chessplayer, chegando mesmo a resolver o Mystery of Marie Roget transpondo-o ficcionalmente para as margens do rio Sena. No encalço de Nietzsche, George Steiner formula a hipótese de que a mentira é não apenas intrínseca à linguagem como também o fermento do seu desenvolvimento e da sua complexificação, na medida em que permite enganar o inimigo e assim derrubar o regime da «lei da selva» ou do «direito do mais forte». A História, que tem como função primeira justificar um estado social presente enquanto resultado de um longo processo, é uma ficção que tem de ser permanentemente reescrita. II Do «pintor da vida moderna» à arte moderna Ao promover um desenhador de esquissos de moda, ao desprezar a justificação fonética da rima – invocando a «rima normanda» para emparelhar o verbo «aimer» com o substantivo «mer» ou o verbo «rêver» com o substantivo «hiver»2 –, Baudelaire antecipa a radicalidade das rupturas literárias – mas também pictóricas – que se vão precipitar na viragem do século, formuladas e cumpridas por grupos e movimentos – muito embora os elementos mais fortemente influentes sejam jovem meteoros, assaz isolados, Ducasse, Rimbaud, Jarry – que, todos eles, se situam assumidamente na sua linhagem. O programa de todas essas correntes estéticas, do «simbolismo» ao «futurismo», começa por se definir pela negativa, pela recusa dos valores «clássicos» e do «bom gosto». A experimentação e a afirmação construtiva assenta numa prévia demolição, para a qual patranhas e manifestações de humor podem contribuir: Alphonse Allais, vinte e cinco anos antes de Francis Picabia – que, no âmbito de «dada» queria exprimir metaforicamente o apagamento de toda a tradição no domínio da pintura – ou Malevitch – que afirmava com o seu «quadrado branco sobre fundo branco» a virgindade da criação pictórica em gestação – expusera, entre outros quadros monocromáticos, sob o título «Primeira comunhão de meninas anémicas em tempo de neve», uma tela imaculada, inteiramente branca. Essas revoluções culturais no seio da boémia parisiense suscitam tanta hostilidade quanto entusiasmo e o seu reconhecimento oficial, que não foi imediato, esteve no centro dos debates intelectuais do século XX. Baudelaire é tido como um doente 1
Jogo fonético e semântico baseado na expressão «auberge espagnole», que designa um albergue no qual pretensamente os comensais só poderão comer os víveres que consigo trouxerem. 2 Ora [eme] não rima propriamente com [mεr] e [ʀεve] não rima propriamente com [ivεr]. A aproximação dos pares não rimantes obedece a um critério de gosto, semântico e subjectivo, e a um critério visual, concreto, de similitude gráfica.