A EVASÃO CENÁRIO O dispositivo reduz-se a uma grade, paralela à boca de cena, que divide o palco em duas partes. ACTO I Escuridão total. Uma voz. VOZ DO GUARDA Habituar-se ao escuro. E não basta fechar os olhos. Aliás seria o contrário. Olhar o escuro. Como os mortos. Fechamos os olhos aos mortos. Quando já não há bafo para embaciar os espelhos, zás, zás mas devagarinho claro, não vão eles ficar abertos para toda a eternidade. Os olhos arregalados dos mortos são um escândalo. Andam os vivos vidas inteiras a tentar habituar-se ao escuro e os gajos só porque morreram, muitos morrem novos, ainda por cima, enfrentam o escuro logo à primeira. É certo que ficam cegos. A luz do escuro cega. Dizem-nos: não se deve olhar o sol de frente. Ninguém diz: não se deve olhar o escuro. Porque não é preciso. É uma coisa que se sabe intuitivamente. Mas vem um dia, vem uma noite em que não se resiste à tentação. E começa o treino. Às escondidas. Faz de conta que um gajo está morto e pode. Uns segundos apenas e com os olhos prontos a fecharem-se se a coisa correr mal. Zás, depressa, claro. Só há um problema. É que depois, mal um gajo baixa as pálpebras, começa a ver de olhos fechados aquilo que viu no escuro. Esquinas e mais esquinas. Não bater com a cabeça. Baixas as pálpebras, mudas de sítio. Bates as asas. O álcool não ajuda. Se estiveres com os copos, pior um pouco. Aí os monstros do escuro crescem em número e em tamanho. É toda uma família que tu não desejas conhecer. Já os sinto a roçar-me os pêlos do peito e dos ouvidos. Está aí alguém? (O dono da voz acende uma lanterna de bolso que aponta para os espectadores.) Ninguém, claro. Só monstros. Bichos com bafo que dava para embaciar todos os espelhos desde que se inventaram os espelhos. É como na selva. Daquelas onde as árvores são tão cerradas que a luz do dia não pode descer pelas lianas. E eu sei que estou escondido atrás de cada árvore, de cada flor gigantesca, e pressinto a luz que deve queimar as últimas folhas. Escondido sim. Entre mim e mim, escondido atrás de cada árvore e de cada flor gigantesca, há apenas um passo porque todas as plantas estão cerradas como os dedos da mão, mas quem se atreveria a dar esse passo'? Cada um de mim diz para si próprio: Quieto! Quieto! O espaço de uni passo chega para abrigar um ninho de serpentes. Afinal queres morrer ou só queres fechar os olhos? Sssssssss. Não as ouves? Sssssssssss... Elas são a própria essência do silêncio. (Um tempo.) A mão na arma. Não largues a arma se queres dar esse passo. Nem para dormir deves largar a arma. (A lanterna de bolso varre a plateia como se procurasse...) Dormir ao pé de uma árvore que é nossa, ser essa árvore e ser o tufo de silêncio que à sua volta cresceu. 6 meu, ainda estás aí? Quem está aí? Um homem? Uma árvore? Quantas árvores para cada homem? Mostra a cara, pá. Se não podes mostrar a cara, mostra ao menos a sombra. Preciso de saber quantos sois. Preciso de vos contar. No escuro, cresceis em número e em tamanho. E em silêncio. É o silêncio que faz a qualidade desta selva, não é pá? Faz toda a diferença. (A lanterna vai-se quedando no rosto de cada espectador, revelando-lhe identidade e presença física concreta.) Faltam Os gritos dos bichos. Não gritas, pá? Perdeste o pio? Uma selva sem gritos não tem graça. Perdeu a graça de deus esta selva, pá. Não te ensinaram a imitar os animais? Nunca é tarde, pá, nunca é tarde para aprender. Vamos treinar. Eu sei que estás cheio de vontade de treinar. Olha... O cão... é fácil (imita um cão a ladrar), o gato (imita um gato a miar), o leão (imita um leão a rugir), a galinha... é mais difícil... grau dois (imita o cacarejar da galinha), o nosso irmão macaco (excita-se macaqueando a voz do macaco), a hiena a rir (risadas que se pretendem uma imitação da hiena), o tigre... serve qualquer coisa desde que seja feroz (imitação "feroz"). Todos juntos! (Sucessão de berros, urros, grunhidos, assobios, etc.; depois, sequência em crescendo de sons, cada vez mais parecidos com gritos de desespero, acompanhada de uma dança frenética da lanterna que varre a plateia e o tecto do recinto, descontroladamente.)
VOZ DO PRISIONEIRO Você quer gastar as noites todas numa só? O guarda vira-se para a grade, semi-agachado como um caçador e aponta a lanterna para o fundo do palco em busca do corpo que lhe respondeu. O feixe de luz varre a parede. A cada paragem da lanterna, há um círculo branco que se desenha e não se apaga quando o foco se desloca. (Nos teatros em que os meios técnicos o permitirem, a passagem da lanterna deverá deixar um rasto de dentro do qual os círculos se sucederão.) Junto à grade, muito mais perto da boca de cena do que o poderíamos imaginar, o prisioneiro, de pé, acende um cigarro no momento em que o foco da lanterna o ilumina. O GUARDA (triunfante) Então tu também não consegues dormir? O prisioneiro atira o cigarro para o peito do guarda e fita-o da cabeça aos pés. O GUARDA Pois é, não se consegue. (Olhando para a biqueira dos sapatos.) Por razões diferentes, não se consegue. E tudo em ti me dá razão. O prisioneiro nem se mexe, nem responde. Entretanto, uma luz geral, extremamente ténue, começou a subir até atingir a intensidade própria da iluminação permanente de um corredor de prisão. O GUARDA Quem me dera estar no teu lugar. Numa noite assim, a ver se eu não dormia... Bem sei que há esta luz sempre acesa. É fraca mas incomoda. Nunca ficas às escuras. Mas um gajo acaba por se habituar à luz. Era o que eu te dizia, um gajo habitua-se a tudo. Os dentes postiços, por exemplo... Um gajo habitua-se à dentadura. A princípio, parece que temos uma muralha dentro da boca, até deitamos perdigotos como os bébés quando começam a falar e querem dizer tudo ao mesmo tempo. Mas depois... lá se engole esse sapo. Com as armas é a mesma coisa, pá. Um dia a coisa deixa de pesar e um gajo esquece-se. No fundo, é leve uma arma, se um gajo não tiver crimes na consciência. Tás a ver, os que cometem os crimes recebem um quartinho, com a luz sempre acesa, como os bebés, para não acordarem estremunhados no escuro. E andamos nós aqui a fazer a ronda, armados em mães, porque os reclusos têm que nanar. É uma injustiça, foda-se! O PRISIONEIRO Eu durmo bem. Os culpados dormem como anjos. A morte apaga em nós todo o ressentimento. Levantei-me para fumar um cigarro. É uma questão de higiene um tipo não perder os maus hábitos. O GUARDA (procurando no bolso do casaco da farda) Queres um dos meus? São mentolados. O PRISIONEIRO Você não fuma. Isso de mentol é para quem gosta de pastilha elástica. O GUARDA A boca nunca te sabe mal? O PRISIONEIRO A minha boca sabe a boca. O suor cheira a suor. O mijo tresanda a mijo. Na merda é que há mais variações, não acha? O GUARDA (acendendo um mentolado) Nunca lavei sanitas, pá. O PRISIONEIRO Trabalho limpo, o seu. Ainda por cima, os grandes culpados não dão estrilho. São uns paz-de-alma, comparados com os delinquentes. O GUARDA (tossindo, talvez afectadamente) Não andas longe da verdade, pá. (Suspirando.) Chiça! Muito se pensa cá dentro... O PRISIONEIRO Quando uma pessoa já não tem salvação possível, só lhe resta pensar. E aí, de repente, uma pessoa tem o tempo todo... Não é maravilhoso? GUARDA (cospe para o chão)
Infelizmente a gente não manda nisto. Se eu mandasse nisto, não vos dava essa prenda. Pena de morte, pá, pena de morte. Aqui entre nós... não se pode dar uma prenda assim a um gajo que matou. Que prenda é que se dá aos gajos que não matam? O PRISIONEIRO Então são os crimes dos outros que lhe tiram o sono? O GUARDA (atirando o cigarro ao peito do Prisioneiro) Não, não. Quanto aos crimes, já não há nada a fazer. Mas fico revoltado com os castigos. Cada vez que faço a minha ronda, sinto o bafo de dezenas de gajos que têm a sorte de viver em paz consigo mesmos. Por isso é que a prisão fica tão quente e o ar que aqui se respira é irrespirável, pá. O PRISIONEIRO (fala calculada) Você tem alguma coisa contra os conventos? A prisão moderna é um convento perfeito, com os actos da vida reduzidos ao essencial e o relógio do corpo a registar todos os estragos. Nunca lá fora este relógio esteve tão bem oleado. Lá fora, saltam-se segundos, galgam-se horas, é uma bagunça, uma greve de zelo ilimitada. Consigo a rondar, pesado como uma madre superiora com dois halteres no lugar das mamas, eu não posso fugir à regra, não posso cair no esquecimento. É uma estranha felicidade sentir-me fabricar, com a sua ajuda, todos os segundos da minha vida... Uma pessoa que deixou de acreditar em Deus encontra aqui a prova de que Ele não dorme. As suas pernas e os seus braços são as pernas e os braços d’Ele. As prisões são as casas d’Ele., as únicas... O GUARDA (picado) Tu julgas que pensas, meu filho da puta, julgas-te capaz de pensar porque não sofres. Tás enganado, pá, tás iludido. Achas que o que pensas é pensar? Isso não é pensar, é só encher a cabeça. Se queres pensar precisas de sofrer a sério. Pensamento é sofrimento. Se a gente mandasse nisto, púnhamos o maralhal todo a pensar. Cada dia, sua tortura. Inventava-se uma tortura nova para cada dia, topas? Nada que fosse grave, nada de ferimentos mortais. Só feridinhas originais. E, de noite, tínhamos equipas de médicos, enfermeiros, etc., para tratar o pessoal. Cuidados especiais, do bom e do melhor, de forma a que no dia seguinte o pessoal estivesse pronto para outra dose. Muito eficaz, sem falar na quantidade de empregos que um sistema deste género permitia criar. (Acende um mentolado e sopra o fumo para o rosto do prisioneiro.) Ah, e como estamos em democracia, sempre que chegasse aqui um condenado, perguntávamos ao gajo, por escrito, claro: Você prefere morrer ou pensar? E o gajo escolhia livremente. Livremente, isso é importante em democracia, não achas, filho da puta? O PRISIONEIRO Já lhe respondi. Livremente. Respondi-lhe livremente. O que não quer dizer nada. E o que você traz ao colo não é o mundo. Quando a mãe senta o filho nos joelhos e lhe dá dois açoites, não castiga nem corrige. Digo-lhe eu que apanhei alguns. Ela apenas volta a colocar as coisas num lugar mais antigo onde tudo se vergava porque nem homens nem árvores cresciam na vertical. O GUARDA Era precisamente o que eu te dizia, pá. Pesava-lhes tanto a cabeça que andavam curvados. Tu não pensas, filho da puta, mas o teu crime dá-me razão. O crime de sangue obriga-nos à justiça primitiva, pá. Olho por olho, por olho, por olho, por olho. Era uma cadeia sem defeito. Quando a caça estava aberta o ano inteiro, sem arame farpado. Agora temos o arame farpado porque há esconderijos por toda a parte. A cidade é o triunfo do esconderijo, até do céu um gajo se esconde. Sendo assim não podia deixar de haver prisões. Se queres que te diga, pá, há prisões a menos, tendo em conta o número de esquinas, cruzamentos, caves, sótãos, vãos de escada, skates, parques de estacionamento, estações de metro, bombas de gasolina, bares, bordéis, escolas, ruínas... Mesmo que a caça ao homem voltasse a estar aberta o ano inteiro, não seria possível prender todos os forade-lei, quanto mais não seja porque as prisões não chegariam nem para a missa a metade. Isto aqui é o único serviço público útil, no dia em que os cabrões da política entenderem essa merda fecham escolas, fazem umas obras e transformam aquilo em cadeias. Algumas já têm pátio, refeitório e tudo, não custava quase nada transformá-las... Ó pá, basta leres os jornais: há mais gajos a roubar na rua do que a lavrar a terra, há mais criminosos com vontade de cometer crimes do que estudantes com vontade de estudar. Tu tens estudos, não tens, filho da puta? O teu crime é de quem andou
muito tempo na escola. Olha o que te aconteceu. Não foi por acaso, pá. Dantes matava-se por razões mais simples. Olho por olho, por olho, por olho, por olho... Agora é preciso ir ao tribunal para se perceber porque é que um gajo mata. E certos estupores ainda dizem que nós não resolvemos nada... Pois não, claro que não. Não temos meios suficientes. Somos necessários mas não somos suficientes, pá... O PRISIONEIRO Só posso agradecer-lhe... como sempre. Aos favores que lhe devo, se andasse na porcaria da política, fazia de si um conselheiro de Estado. De Estado, no sentido nobre... O GUARDA (atirando a beata ao peito do Prisioneiro) Ó pá, eu cago na política, percebes? Quem vive na prisão, vê os homens por dentro. Esses cabrões da política não fazem estágio, na prisão e são muito raros os que aqui vêm parar, pá. O PRISIONEIRO Por isso mesmo. Você é a perna de Deus, o braço da regra, o olho do olho. Desde que você me guarda, deixei de ter prisão de ventre e só fumo por higiene. Você é o olho do escuro enquanto os políticos são criaturas que um dia acordaram com uma mão a menos porque tinham gente à volta que chegava e sobrava para lhes esvaziar os colhões. (Oferecendo um cigarro ao guarda.) À minha maneira, eu estou a seu lado. O GUARDA (agarrando as grades com fúria incontida) Tu não me fales no teu lado, filho da puta, não me fales assim que eu não te admito que me engraxes. Os lados são uma coisa bem assente e só há dois: culpados de um lado, guardas do outro. Não me lixes, filho da puta, que eu fodo-te os cornos com a lei do meu lado ou sem ela. (Um tempo. Risada escarninha.) Achas que eu era capaz de matar alguém? De matar uma fêmea mesmo que não fosse minha mulher? Mesmo que fosse minha mulher? O PRISIONEIRO Você não precisava... O GUARDA O caralho é que eu não precisava! O que é que tu sabes do que é preciso para ser guarda? O PRISIONEIRO Você já estava cá dentro. O GUARDA E tu onde estavas, minha besta? Estavas na choldra, caso não saibas, a tua cidade era uma prisão. Prisão cinco estrelas porque os filhos da puta como tu e os outros nem se dão conta de que foram dentro. Julgas que eu não topei que isto aqui é um esconderijo para ti e para os filhos da puta como tu? Para se verem as grades, temos de deixar espaço entre elas, mas vocês só vêem o espaço entre as grades. O PRISIONEIRO Está enganado. Uma pessoa só se pode agarrar às grades! O GUARDA A gente não pode ensinar-vos a pensar. Vocês escapam por esse lado. Com a tortura púnhamos o maralhal a pensar mas é proibido. E anda aqui a gente a vigiar o cuzinho dos filhos da puta prontos para se evadirem a toda a hora. Falta sempre uma parede, pá, e a gente mata-se aqui a aparar o vosso jogo de evasão, a dar cobertura legal à vossa evasão. (Para os espectadores.) Olhem-me a onda deste maricas que mata a mulher do melhor amigo porque ela se meteu entre os dois! Não querem dar-lhe uma mãozinha para o gajo se evadir melhor? Não querem vigiar as entradas? Ah, você não quer porque o sujeito é perigoso. E a senhora também não está disposta a isso... quem mata uma, mata sete, está visto... Isto de crime está no sangue, é inato como gostar de animais. Digam-lhe, digam a este filho da puta que não somos todos iguais. A cona do mundo, desde que o mundo é mundo, pode parir dois géneros: o criminoso e o guarda. A verdadeira diferença não está no sexo, está na mão, feita para matar ou feita para castigar quem mata. E não me venham com circunstâncias atenuantes. Quanto a mim elas ainda agravam a culpa porque só provam que o filho da puta era criminoso de nascença, de feitio, feito para matar. (Respira fundo, aproxima-se da linha de fosso ou de boca. Imita o suposto tom dos vários intervenientes no julgamento.) Infância infeliz,
orfão de mãe aos quatro anos... (Retomando o seu próprio papel.) Não me fodam, pá. O meu pai, nem sequer o conheci, graças a Deus, não era boa prenda. (Tom de advogado.) Forçado a interromper os estudos à morte do pai, refugia-se na companhia de um colega de escola até ao casamento do dito... O PRISIONEIRO (lá do fundo) Foi ele que se "refugiou" em minha casa... O GUARDA Caluda! Tu não és para aqui chamado! (Tom de advogado.) Tendências homossexuais confirmadas pelo psicólogo. (Retomando subitamente o seu papel.) São todos. Os criminosos são todos paneleiros. Basta visitar uma prisão para saber isso. Aliás, os paneleiros deviam ir todos dentro antes de cometerem os crimes que têm na cabeça. (Tom de advogado.) Um gesto de loucura... momentânea. O PRISIONEIRO Falso! Nunca perdi a cabeça! O GUARDA (virando-se para trás) Não me desconcentres, porra! (De novo para os espectadores, imitando o tom severo do procurador.) O reconhecimento de culpa por parte do autor do crime só pode neste caso ser considerado circunstância agravante... O PRISIONEIRO Certo! Nunca me arrependi. O GUARDA (virando-se para trás) Se não te calas, levas mais dez anos à sombra. (De novo para os espectadores.) Aqui têm o bicho. E a maior culpa deste culpado é o desplante com que ele se gaba de ser culpado. A justiça nada pode contra ele. Agora, entre nós, talvez haja outros métodos... O PRISIONEIRO Cuspir-me na cara. Cuspa-me nas ventas. É muito humilhante. E primitivo como você gosta. Infantil. (O guarda aproxima-se do prisioneiro com um andar semi-agachado de caçador.) Às vezes ainda me divirto a cuspir dentro da cela. Cuspo para as esquinas do escuro. Quando estou constipado, escarro. Com um escarro acerta-se melhor na aresta da esquina. (O guarda, junto à grade, como que paralisado, arfa.) Não me olhe com esses olhos. Parece que tem medo de mim. Cuspa. Cuspa à vontade. Eu estou inteiro à sua guarda. Estou à sua disposição. Eu sou o escuro onde você berra, a esquina onde você escarra porque você é um guarda. O meu anjo-da-guarda. (O guarda saca da arma, tremendo como varas verdes, pronto a fazer pontaria.) Aposto que em casa você também não consegue dormir, meu anjo-da-guarda. A cona do céu só pode parir dois géneros, ambos sem sexo: os anjos maus e os anjos da guarda. Os primeiros têm de cair, cair, cair. E os segundos são obrigados a... (O guarda dispara um tiro. Silêncio. imobilidade. De súbito a voz do prisioneiro rompe o silêncio gritando.) Falhaste! Acto II Doravante o prisioneiro está frente à grade, do lado dos espectadores, e o guarda encontra-se do outro lado. O GUARDA (grito lancinante) Estás a dormir? O PRISIONEIRO (acende um cigarro) Não. Estou a fumar a um bom ritmo. Quatro a cinco por hora. Imagine os estragos. O GUARDA Acho que precisavas de coisas mais fortes. (Bebendo um trago numa garrafinha.) O álcool é uma boa companhia. (Limpando a testa.) Sobretudo quando faz calor. Faz o mesmo efeito que uma multidão... até te arrasta. O PRISIONEIRO Eu matei para ficar sozinho.
O PRISIONNI1t0
((Wel/de/h/O 111(11.S
ca fiz sombra a ninguém.
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'1(1(1110S, O •ti ► Oli1111,11 . - I • tio Chã() C
pedir p0r,i morrer.
O GUARDA (bebe mais um gole) Mataste sozinho. Mas não vais morrer sozinho. Isso é o privilégio dos que não matam. O PRISIONEIRO Falso! Falso! Na hora de lhe dar caça, matei em nome de todos os humilhados. A beleza humilha milhões, sabe... Aqui dentro você talvez escape a essa humilhação. A beleza parece-se com a vida no que ela tem de acaso, de risco, de traição. Matei porque não podia desfigurar toda a gente. O GUARDA (despindo o casaco da farda) És um doente, pá, és um doente. Aqui estás de quarentena mas não estás sozinho. Ouve. (Com o indicador apontado para o tecto. Silêncio.) Não estás a ouvi-las? O PRISIONEIRO (atirando a beata ao peito do guarda) Só o ouço a si. O GUARDA Não te armes em surdo. Ouve. Um tempo. O PRISIONEIRO Só ouço o meu corpo. Os pulmões, o estômago, os intestinos. Os estragos da solidão. Já nem ouço o coração porque o resto da máquina faz mais barulho. O GUARDA Não cagaste? O PRISIONEIRO (provocador) Não quero. Estou à espera de me borrar todo. O GUARDA Só dizes merda, só falas de merda. Falas para não <as ouvires. Mas elas estão aí, as sombras. Sombras mais próximas de ti que a tua sombra. São as sombras das tuas vítimas, todas as que podias ter matado. Nunca mais te hão-de largar. O PRISIONEIRO Sabe, eu nunca fui de grandes convívios. Conhecia pouca gente. Um tempo. O PRISIONEIRO (acendendo mais um cigarro) E nunca fiz sombra a ninguém. O GUARDA (despe a camisa e fica de camisola interior sem mangas como o prisioneiro) Com a tua lábia? Com a tua língua venenosa? Não acredito. O PRISIONEIRO (incomodado) A verdade é que já estava bastante só antes de vir para aqui. Tenho muito treino de solidão. Ninguém deu pela minha falta, quanto mais as sombras... O GUARDA (acendendo um mentolado) Ó pá, eu não falo da gente que tu conheces. Falo de todas as sombras de todos os mortos, todos os assassinados. O braço do assassino é um e único, embora obedeça a muitas cabeças. Tu não mataste sozinho, em boa verdade. Atrás de ti tinhas a força da vontade da casta inteira dos assassinos. Por isso é que te sentes forte. Que ilusão! Vais cair de alto. Não as ouves, agora? Confessa. O PRISIONEIRO (atirando a beata ao peito do guarda, nervosamente) Ouço qualquer coisa. Mas vem de dentro. O GUARDA (triunfante) Claro que vem de dentro, filho da puta. Donde querias que viessem as sombras mais próximas de ti que a tua sombra? As sombras atravessam tudo, entram em qualquer corpo. E quando elas te subirem da barriga para a cabeça, e te azucrinarem os ouvidos e te puserem a suar de cagaço, hei-de ver-te de joelhos, a espolinhar-te no chão e a pedir para morrer. O PRISIONEIRO (quase a pedir) Se me guarda a mim, se até aos meus pensamentos quer guardar, não lhe custa muito ter um olho no resto. O GUARDA (atirando a beata ao peito do prisioneiro, com desprezo) Isso é que era bom! E para o olho do cu não vai nada, ó panasca? E borrares-me os sapatos também querias? Olha, pá, desenrasca-te com as sombras que eu tenho escuridão de sobra para .guardar.
O PRISIONEIRO Você é um guarda, não devia ser um carrasco. O GUARDA (tirando os sapatos, com a desenvoltura de quem marcou um ponto definitivo) Justamente. (Tira uma meia.) Justamente. (Tira outra meia.) Tu gostas do pivete, não gostas? Isso é mesmo de larilas. (Põe as meias dentro dos sapatos.) Não tenho nada que dar caça às tuas sombras. Proteger-te? Elas a mim não me incomodam, pelo contrário. Até são melhor companhia do que tu... O PRISIONEIRO (recompondo-se) Pois é, você não consegue estar sozinho. E quando não pode conviver com um homem, manda vir a sombra. Entra por aqui aos berros, faz a festa, deita os foguetes. O GUARDA (sublinhando) Tenho a obrigação de fazer tudo o que está ao meu alcance para não adormecer em serviço. Uma ronda é uma ronda. Só posso conferir a presença dos reclusos se eles derem sinais de vida. O PRISIONEIRO Um trabalho de animação, em suma. De reanimação. O GUARDA (quase divertido) Não fui eu que fiz disto um infantário, pá. Isto é como o resto: ninguém consulta os interessados. Não tarda nada, algum ministro há-de mandar pôr televisores nas celas para vocês verem os desenhos animados ao acordar, para vocês acordarem super-heróis... O PRISIONEIRO Talvez. Mas quando você entra por aqui dentro a matar, aos berros para acordar a prisão inteira, não é certamente para conversar com a sombra das nossas vítimas. Quem morreu, morreu. Os mortos não precisam de resolver os problemas que minam os miolos dos vivos: como matar não matando, como morrer não morrendo. Eu. matei uma pessoa, resolvi-lhe esse problema. A morte, como higiene, é definitiva. O GUARDA E achas que tinhas o direito de matar? O PRISIONEIRO E você acha que tem o direito de me chatear? Que tem o dever de entrar por aqui dentro aos berros? Não me venha com os seus treinos. Este corredor é a sua rua e há uma esquina que você não dobra porque atrás dela estão aqueles que desejou matar e os que queriam morrer às suas mãos. É o bafo deles que você sente... Felizmente uma rua basta. Queima mais devagar que um cigarro. Demora mais tempo a despir que uma mulher. É mais comprida do que um sexo ou uma arma. O que é que você procura neste corredor que ainda não tenha encontrado? O alívio de ter acabado de nascer com duas pernas e dois braços? O grito que lhe encheu de ar os pulmões pela primeira vez? A árvore onde o sexo se enrola para encontrar o caminho da luz? (Sarcástico.) O colo de um assassino para sentir as costas quentes? O GUARDA (irado) Cala-te, filho da puta. Tu não és deste lugar. Tu pertences ao inferno e eu hei-de obrigar-te a marchar para o inferno, quer queiras quer não. Já começaste a ouvir as sombras, eu sei que começaste. Mas era só a crista das sombras, pequenos ecos nos teus cornos. Deixa-me levar-te ao pino da escuridão, onde elas só podem crescer pelo teu corpo dentro, encher-te de negro como uma múmia, sufocar-te... Aí, não vais mais ouvir a musicazinha simpática dos órgãos, fica tudo tapado, não sai saliva, não sai suor, não sai esperma, não sai mijo, não sai merda. Prisão de ventre definitiva, prisão de dentro absoluta. Dessa prisão ninguém se evade. O Prisioneiro fita o Guarda com um olhar quase sereno. Ao cabo duns instantes, vira-se lentamente para os espectadores e começa a contar, esticando muito o braço direito e o dedo indicador, para localizar cabeças na assistência; com a mão esquerda agarra nos colhões e abana-os levemente, em gesto de provocação, cada vez que acrescenta um número. O PRISIONEIRO (apontando e abanando os colhões) Um! Dois! Três! Quatro! Cinco! Cinco outra vez, estão muito juntas! Seis! Sete! Oito! Nove! E as que estão lá fora à porta! As que não se atreveram a vir à visita. As que são discretas. As que se perderam pelo caminho. As que se perderam de mim. As que andam perdidas à minha procura. As
que se vestem todos os dias para morrer muito, morrer pouco, morrer nada. Bem me querem as minhas vítimas. Bem me querem. Cada um sabe de si mas o assassino sabe de todo o ser no instante de matar. Como a mãe se surpreende na hora em que é capaz de dar à luz, o assassino descobriu o amor universal quando foi capaz de acrescentar um pouco mais de sombra à sombra. As sombras estão comigo, estão do meu lado. Fui eu que as fiz. Sou eu quem as diz. Matar é recuar para deixar avançar a sombra. (O Guarda, atrás da grade, anda de um lado para o outro como um bicho encurralado.) Saber que a luz é apenas uma variação da escuridão. Uma variação ínfima. Insignificante. Improvável. Não se deve viver na excepção. Não se deve deixar viver na excepção. Homem, ou te apagas ou não mereces a escuridão donde tu vens, donde tudo vem e para onde tudo voltará. Conhece a regra do negro. Aceita a regra. Eu não me conheço, mas elas conhecem-me. (Sem se virar para trás.) É de você que elas têm medo. Anjo-da-guarda, você ainda aí está? Veja, cada passo que eu dou (começa a avançar para os espectadores) é um passo na direcção das sombras. Elas estão tão juntas que já não passa réstia de luz. (Chega à linha de fosso ou de boca. O Guarda, com a mão na arma, continua a agitar-se atrás da grade.) Corre um rio muito antigo neste inferno tão nosso, tão moderno. Este é um lugar de passagem. Um lugar de voltar atrás sem parar de avançar. Nenhum esforço, as sombras também caminham para mim. (Desce uma escadinha que conduz à plateia.) Pronto, estamos atravessados uns nos outros. Confundidos. Eu estou ao colo dela e ela está ao meu colo. (Senta-se num lugar que ficou vago na plateia.) O assassino verteu o seu corpo numa infinidade de cabeças. Calou-se a culpa. Calou-se a boca do corpo. Calou-se a boca do mundo. Silêncio. O Guarda, possesso, estacou, virado para o público, com a arma pronta a disparar. O GUARDA (gritando) Daqui ninguém se evade! De súbito, o Guarda começa a disparar desordenadamente em direcção aos espectadores, soltando urros de alegria e tristes risadas. Quando a arma fica por fim descarregada, agarra-se à grade e tenta trepar. O GUARDA (gritando) Daqui ninguém se evade! Escuridão total.