A EVASÃO CENÁRIO O dispositivo reduz-se a uma grade, paralela à boca de cena, que divide o palco em duas partes. ACTO I Escuridão total. Uma voz. VOZ DO GUARDA Habituar-se ao escuro. E não basta fechar os olhos. Aliás seria o contrário. Olhar o escuro. Como os mortos. Fechamos os olhos aos mortos. Quando já não há bafo para embaciar os espelhos, zás, zás mas devagarinho claro, não vão eles ficar abertos para toda a eternidade. Os olhos arregalados dos mortos são um escândalo. Andam os vivos vidas inteiras a tentar habituar-se ao escuro e os gajos só porque morreram, muitos morrem novos, ainda por cima, enfrentam o escuro logo à primeira. É certo que ficam cegos. A luz do escuro cega. Dizem-nos: não se deve olhar o sol de frente. Ninguém diz: não se deve olhar o escuro. Porque não é preciso. É uma coisa que se sabe intuitivamente. Mas vem um dia, vem uma noite em que não se resiste à tentação. E começa o treino. Às escondidas. Faz de conta que um gajo está morto e pode. Uns segundos apenas e com os olhos prontos a fecharem-se se a coisa correr mal. Zás, depressa, claro. Só há um problema. É que depois, mal um gajo baixa as pálpebras, começa a ver de olhos fechados aquilo que viu no escuro. Esquinas e mais esquinas. Não bater com a cabeça. Baixas as pálpebras, mudas de sítio. Bates as asas. O álcool não ajuda. Se estiveres com os copos, pior um pouco. Aí os monstros do escuro crescem em número e em tamanho. É toda uma família que tu não desejas conhecer. Já os sinto a roçar-me os pêlos do peito e dos ouvidos. Está aí alguém? (O dono da voz acende uma lanterna de bolso que aponta para os espectadores.) Ninguém, claro. Só monstros. Bichos com bafo que dava para embaciar todos os espelhos desde que se inventaram os espelhos. É como na selva. Daquelas onde as árvores são tão cerradas que a luz do dia não pode descer pelas lianas. E eu sei que estou escondido atrás de cada árvore, de cada flor gigantesca, e pressinto a luz que deve queimar as últimas folhas. Escondido sim. Entre mim e mim, escondido atrás de cada árvore e de cada flor gigantesca, há apenas um passo porque todas as plantas estão cerradas como os dedos da mão, mas quem se atreveria a dar esse passo'? Cada um de mim diz para si próprio: Quieto! Quieto! O espaço de uni passo chega para abrigar um ninho de serpentes. Afinal queres morrer ou só queres fechar os olhos? Sssssssss. Não as ouves? Sssssssssss... Elas são a própria essência do silêncio. (Um tempo.) A mão na arma. Não largues a arma se queres dar esse passo. Nem para dormir deves largar a arma. (A lanterna de bolso varre a plateia como se procurasse...) Dormir ao pé de uma árvore que é nossa, ser essa árvore e ser o tufo de silêncio que à sua volta cresceu. 6 meu, ainda estás aí? Quem está aí? Um homem? Uma árvore? Quantas árvores para cada homem? Mostra a cara, pá. Se não podes mostrar a cara, mostra ao menos a sombra. Preciso de saber quantos sois. Preciso de vos contar. No escuro, cresceis em número e em tamanho. E em silêncio. É o silêncio que faz a qualidade desta selva, não é pá? Faz toda a diferença. (A lanterna vai-se quedando no rosto de cada espectador, revelando-lhe identidade e presença física concreta.) Faltam Os gritos dos bichos. Não gritas, pá? Perdeste o pio? Uma selva sem gritos não tem graça. Perdeu a graça de deus esta selva, pá. Não te ensinaram a imitar os animais? Nunca é tarde, pá, nunca é tarde para aprender. Vamos treinar. Eu sei que estás cheio de vontade de treinar. Olha... O cão... é fácil (imita um cão a ladrar), o gato (imita um gato a miar), o leão (imita um leão a rugir), a galinha... é mais difícil... grau dois (imita o cacarejar da galinha), o nosso irmão macaco (excita-se macaqueando a voz do macaco), a hiena a rir (risadas que se pretendem uma imitação da hiena), o tigre... serve qualquer coisa desde que seja feroz (imitação "feroz"). Todos juntos! (Sucessão de berros, urros, grunhidos, assobios, etc.; depois, sequência em crescendo de sons, cada vez mais parecidos com gritos de desespero, acompanhada de uma dança frenética da lanterna que varre a plateia e o tecto do recinto, descontroladamente.)