A fé que nada move

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A FÉ QUE NADA MOVE (...) É por isso que, hoje de manhã, tenho a certeza de que se o pedisse, o céu aprovar-me-ia, mandar-me-ia um sinal de que há um milagre que vos mostraria a minha divisa de solitário e abandonado inscrita no céu e vo-la faria repetir: alegria e amor. Se quiserdes, eu peço. Tão certo como eu estar aqui, uma voz nas alturas responder-me-ia, pois as caixas de ressonância, os altifalantes e os divinos relâmpagos, Deus, se eu os reclamar, tem-nos já preparados para sob o meu comando gritarem: alegria e amor. Mas aconselho-vos a não pedir. Primeiro, por uma questão de regras. Ao jardineiro não cabe o papel de reclamar a Deus uma tempestade, mesmo de ternura. E depois é tão inútil. Sente-se tanto que neste instante, e ontem, e amanhã, e sempre, eles estão todos lá em cima, todos sem tirar nem pôr, e mesmo que só haja um, e mesmo que esse um esteja ausente, prontos e a gritar alegria e amor. É tão mais digno de um homem acreditar na palavra dos deuses — na palavra, é um eufemismo —, sem os for çar a acentuarem, a empenharem-se, a criarem entre uns e outros obrigações de credor a devedor. A mim, sempre foram os silêncios que me convenceram. Sim, peço-lhes que não gritem alegria e amor, não é melhor? Mas, se fizerem questão disso, que gritem. Ou antes, suplico-lhes, suplico-vos, meu Deus, como prova do vosso afecto, da vossa voz, dos vossos gritos, que façais um silêncio, um segundo do vosso silêncio... É uma prova muito mais cabal. Escutai... Obrigado! Lamento do jardineiro, in Electra de Jean Giraudoux Dreyer é porventura o único cineasta que conseguiu captar, não o visível, mas aquilo que dele emana: a alma, além da luz que é apenas a sua irradiação. Para isso, teve de transgredir todas as convenções, tanto da nossa percepção do real — as sombras são autónomas em relação ao objecto que as projecta (VAMPYR), os mortos erguem-se do caixão (ORDET) — como da encenação cinematográfica — os grandes planos de Falconetti em A PAIXÃO DE JOANA D'ARC são tão apertados que deixam de ser retratos da actriz, a câmara dá em VAMPYR, através de um travelling em contra-picado absolutamente na vertical, o ponto de vista subjectivo do morto, as personagens dialogam sem nunca olharem umas para as outras em GERTRUD. Esta transgressão permite-lhe atingir o ponto «onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente». Com efeito, o rosto de Falconetti exprime indissociavelmente a fé e o medo de Joana, a primeira reforçando ou talvez até despoletando o segundo. Da mesma maneira, em ORDET, o constante vaivém em panorâmica de uma personagem para outra exprime simultaneamente a súplica muda dirigida ao profeta e a incredulidade perante o seu delírio. Em GERTRUD, os tais diálogos de costas bastam para materializar dramaticamente a comunicação e a ausência de comunicação, a necessidade da confissão e a sua inutilidade, o


carácter falso das verdades enunciadas. Porque, embora seja evidente que Dreyer é crente, a sua concepção protestante obriga-o a afirmar a fé sem negar a ineficácia da fé, contra a evidência da imobilidade das montanhas. Uma atitude deste tipo foi frequentemente mal compreendida — imaginando que Dreyer devia acreditar nos vampiros, na bruxaria e na ressurreição dos mortos, João Bénard da Costa vislumbrando um abalo da convicção dos juízes na cena em que as certezas de Joana são postas à provas —; Dreyer não cai na rede lançada pela sua encenação, e é justamente a humanidade das suas personagens — o terror de Joana, a loucura de Johann, a feminidade de Gertrud — que faz com que a fé que professam tenha força e sentido para além dos seus fracassos ou fraquezas pessoais — pois o Deus de Joana não a salva da fogueira, o milagre de Johann não tira nada à sua loucura, o amor de Gertrud não impede a cobardia dos seus parceiros masculinos. No entanto, de A PAIXÃO DE JOANA D'ARC a ORDET, passando por VAMPYR e DIES IRAE, o obstáculo intransponível que a fé tem de afrontar sem vacilar é sempre a morte. Com GERTRUD, a problemática desloca-se, humaniza-se mais ainda se possível, e o obstáculo passa a ser o tempo e o envelhecimento — e, consequentemente, a fé passa do nível religioso, pois só o divino podia transcender a morte, para o plano místico: GERTRUD afirma, contra a mediocridade do mundo dos homens, a sua fé no amor. GERTRUD dá-nos a conhecer uma personagem que, cena a cena, vai consumando rupturas sucessivas. Porém, quando na última imagem a porta se fecha, quem lá fica é ela, e o espectador é mandado de volta para esse mundo do qual a protagonista soube escapar intacta ou, pelo menos, proteger-se. Cada lugar filmado é um lugar que a personagem vai abandonar mas, no momento em que a câmara o regista, ela habita-o, comunicando-lhe a luz quase ofuscante que soube extrair do seu passado — os dois flash-back são imagens quase «queimadas». Durante todo o filme, as personagens não param de falar, Gertrud responde-lhes, sem nada revelar, sem esconder nada porém, e é o caudal das palavras alheias que materializa a solidão que envolve a personagem. Dreyer escolheu (exceptuando na curta sequência do confronto em campo/contracampo em que o marido, desejoso de saber se ela já cometeu adultério, se comporta como um juiz) filmar unicamente em planos-sequência, que começam sempre com uma chegada e que, apesar de acompanharem Gertrud e os respectivos parceiros ao longo das suas deslocações, parecem nunca romper com a posição simétrica do enquadramento — mobilidade de Gertrud contrastando com a rigidez de sentimentos dos companheiros —; ora esse movimento contínuo de Gertrud é, no fim de contas, pura circulação do cenário, visto que ela se mantém no centro da imagem — o travelling do segundo flash-back é, neste aspecto, emblemático de todo o filme. Mesmo «velha», Gertrud permanece igual a si mesma, apenas mais serena, desligando-se do passado — devolve as cartas ao amigo que as queima imediatamente —, «tal como nela própria a eternidade a muda»: em cada plano de GERTRUD, Dreyer encena alguns minutos de eternidade. S.


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