A ficção ou a morte

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a ficção ou a morte! O «autor» deve trabalhar simultaneamente contra a instituição — não se é autor quando se é «pintor oficial» ou escritor académico — e contra o material que utiliza — pintar contra a pintura, escrever contra a literatura... a afirmação de um pensamento individual implica necessariamente a contestação dos quadros sociais dentro dos quais ele se inscreve; é nesse sentido que o «autor» é obrigatoriamente «maldito» e revolucionário. Assim, Orson Welles viu-se forçado a lutar contra a máquina de produção cinematográfica e contra a estrutura formal esclerosada da ficção fílmica; o primeiro combate faz parte da sua biografia e é suficientemente conhecido pelo seu carácter exemplar. O segundo está patente nos seus filmes e será este que tentaremos aqui definir. Welles não rejeita o funcionamento ficcional, mas dinamita-o por dentro. O princípio da ficção é o facto de ser imediatamente perceptível e de possuir um campo autónomo: a perceptibilidade baseia-se, ora em estruturas fixas — contos —, ora num realismo suficientemente estereotipado para o passado dos personagens poder ser rapidamente induzido a partir de denotações diversas; esse realismo, que comanda o desenrolar da acção, resume-se a três pólos sócio-culturais, um trabalho, uma família, uma pátria, que correspondem aos pólos da moral pequeno-burguesa fascinante que nos governa. A autonomia traduz-se, pelo contrário, por uma superficialidade, senão dos temas abordados, pelo menos das soluções propostas, que aniquila o embrião de reflexão que a ficção poderia ter suscitado e remete o seu consumo para um nível de lazer inofensivo. A ficção tem uma função social: criar a memória colectiva duma sociedade à qual os espectadores tentarão adaptar-se, começando por modelar os seus desejos à insípida imagem que deles é proposta. A ficção em Welles é sempre incerta, sem passado definido, deslocando o seu centro duma personagem para outra no decorrer da acção, proibindo qualquer classificação moral e obrigando o espectador a voltar atrás quando o objecto do desejo é finalmente rejeitado ou destruído. É uma ficção sempre e para sempre inacabada, como uma ferida que a morte não conseguisse cicatrizar. Orson Welles desmonta a ficção mostrando o seu fabrico: a personagem principal é levada a descobrir, ao longo de cada filme, uma ficção da qual é impossível determinar a parte que ela próprio inventa e a que lhe é proposta à partida (no fim dada como falsa): de Rosebud, suposta alcunha de mulher, à real(ização) da HISTÓRIA IMORTAL, passando pela culpabilidade de K, pela amnésia de Arkadin, pela infidelidade de Desdémona, pelas predições das bruxas de MACBETH e pelo desejo de protecção d' A DAMA DE SHANGAI. Para elaborar esta ficção, as personagens não recorrem aos indícios materiais — mesmo no único filme policial de Welles, as provas são totalmente forjadas —, mas ao discurso das testemunhas, que aliás nunca mentem porque propõem uma verdade parcial que, não correspondendo às expectativas da ficção, se revela inútil. A solução final que se esboça obrigaria a personagem — o espectador — a rever tudo desde o início, mas o filme desagua nessa ficção dinamitada. A par desta ficção vã, Welles propõe-nos parábolas que representam simultaneamente uma ilustração heráldica da ficção maior e uma brecha na fortaleza semiológica que se abre para uma nova ficção, mais profunda, a qual deve levar o espectador a rever a sua interpretação do filme. Assim, os tubarões cm A DAMA DE SHANGAI anunciam que o gosto pelo sangue é mais forte, em certos meios, do que o desejo da beleza; a duração da vida reduzida ao tempo duma amizade em CONFIDENTIAL REPORT, enquanto parábola, é imediatamente contrabalançada pela parábola do «character» — que em inglês significa alternativamente personagem e personalidade — suicidário do escorpião, etc. No interior duma intriga que põe em relevo a constatação do fracasso e da irrisão dos desejos «sociais» (propostos por um sistema sócio-económico no poder), desde o gosto pela dominação — omnipresente na filmografia de Welles — ao primado de uma beleza feminina standard — tema central de A DAMA DE SHANGAI, mas igualmente patente noutros filmes, CITIZEN KANE, CONFIDENTIAL REPORT, etc. — com todas as hostes dos desejos anexos (respeitabilidade, glória, etc.) tais parábolas evocam outros desejos, mais subterrâneos, mas igualmente fictícios: nostalgia da infância, da inocência, da amizade, da confiança, em suma, de um modelo ideal que as personagens, no entanto, teimaram cruelmente em destruir ao longo de cada filme. Welles não condena as personagens mas as ficções que estas escolheram.


A ficção ergue-se porém como força/forma vital: o seu abandono, ou a sua substituição pela nostalgia doutra ficção, traduz-se pela morte. As personagens sabem-no e consagram toda a sua energia a proteger esta ficção contra o desmentido que poderia ser fornecido pela História, quer dizer pelo tempo, e sobretudo contra a tentação nostálgica de uma outra ficção de felicidade, e através desta postura provocam o seu próprio desmoronamento. Welles, precisamente porque nesta concepção vida e ficção estão inextricavelmente emaranhadas, foi morrendo lentamente de não poder montar as ficções cinematográficas que sempre denunciara. O seu trabalho consistia em dramatizar o choque das ficções, em opor as ficções umas às outras: em CITIZEN KANE, o desejo de poder de Kane ao de uma perversidade sexual que o jornalista lhe atribui e a esta última a nostalgia de um momento em que as escolhas ainda pareciam possíveis; em MACBETH a sede de poder ao sentimento de culpabilidade e a este à crença infantil na invulnerabilidade; em A DAMA DE SHANGAI a lucidez cínica adquirida na vida de embarcado ao reflexo paternalista de protecção e a esse o amor-próprio ferido pela consciência de ter sido vítima duma maquinação; em CONFIDENTIAL REPORT a amnésia à vontade de apagar todos os vestígios dum passado condenável e, a esta, a imagem de um pai odiado por um poder cuja origem é indiferente, etc. Neste último filme (mais ainda do que em CITIZEN KANE no qual cada testemunha descobria no seu próprio discurso a ambiguidade da ficção quimérica elaborada por Kane), cada cena, cada etapa do inquérit, nos apresenta o confronto entre duas ficções: o aventureiro não chega a conseguir impor definitivamente a sua, mas as interrogações que coloca abalam as certezas das testemunhas que por isso são condenadas à morte. Orson Welles assume sempre o papel central que cria as diversas ficções contraditórias as quais dialecticamente se resolvem pela sua morte, excepto em A DAMA DE SHANGAI. Nesta fita, o personagem de O'Hara, apesar de se julgar responsável pela construção e pelo controlo da ficção, acaba por descobrir que não passa dum pião: por isso é Ela que morre e ele sai ileso mas esvaziado, espoliado das suas ficções mas vivo porque não consegue esquecer, isto é, ilogicamente detentor de uma ficção morta a venerar. Deleuze insistiu sobre a «impossiblidade de julgar» os personagens de Welles; tal incapacidade implica a ausência de qualquer culpabilidade — todos eles são manietados pelo poder a que acederam, manipulados pelos obscuros intentos dos outros — e paralelamente a ausência de qualquer inocência. As ficções que observamos em confronto engendram-se aliás mutuamente. Welles postula este movimento como expressão da própria vida, da qual a morte é o corolário necessário. A vida confunde-se com as ficções que cada um se mostra capaz de criar — o talento de contador de Welles é inegável; a vida mede-se em desejos, por muito vãos que estes sejam. Assim, a complexidade que advém da necessidade vital de produzir ficções múltiplas e contraditórias reflecte-se na maneira de urdir e contar a intriga, e na dramatização pela encenação (no sentido lato) e pela montagem. O fundo é em Welles rigorosamente indissociável da forma. As fitas de O.Welles comunicam todas uma certa vertigem, devido a este desdobramento de ponto de vista; para citar um só exemplo, marcante pela sua neutralidade, que confirma a que ponto nenhum detalhe escapa a esta lei de construção: em A DAMADE SHANGAI, quando para operar a transição entre uma cena (o embarque) e a seguinte (a chegada do associado) o realizador ter-se-ia normalmente limitado a intercalar um plano do iate, Welles monta uma dúzia deles no lapso de alguns segundos, mostrandonos o barco filmado por todos os lados mas sempre parcialmente enquadrado. Não é o recurso à montagem rápida ou a utilização da focal curta que neste caso nos interessam, mas a produção de sentido a partir da distorção sistemática dos objectos, da deformação da perspectiva, da concentração do tempo. Todas estas manipulações dos elementos constitutivos da imagem animada revelam o seu carácter ficcional e provocam um duplo movimento de ficcionalização e de desmontagem da ficção a qual, por ser demasiado rara no cinema, permite abordar problemas e emoções mais profundos que a convenção elimina. A ficção sensata, estupidificante e tranquilizante adquire brutalmente um impacto que a máquina de produção cinematográfica não pode controlar a partir do momento em que se esboça uma tendência para a sua proliferação. O «mais lindo dos comboios eléctricos» lançou-se a todo o vapor. Welles inverteu os pólos: a vida sem ficção, a ficção sem vida; os carris, as barreiras, o sentido único, o julgamento, a saúde estão do lado da morte; o cancro, a implosão, é a vida. S.


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